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PORONGALÚDIO

O passado a se ligar ao presente, as histórias


antigas aos dramas atuais – veredas da
Amazônia para sempre míticas.
Grande Amazônia: veredas
Marcos Frederico Krüger.

ORONGALÚDIO, neologismo caboclo

P para pre­lúdio, ato primeiro para as


quatro histórias deste livro – narrativas
urdidas com signos linguísticos e iconográficos
e inspiradas na vida de seringueiros e de
“soldados da borracha” que viveram em terras
de um estado brasileiro: Rondônia.
Sob a luz da poronga: memórias de
nordestinos em seringais da Amazônia é uma
tela de não diálogo, de contradições. É corte
abissal entre Natureza e Cultura. Luta insana do
humano contra o mundo florístico e faunístico
amazônicos, contra o próprio semelhante
e, pasmem, autodestrutivo, suicidário. É

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representação de um modo de viver ilógico.
Exercício terrificante de voragens ininterruptas.
Euclides da Cunha – ao prefaciar a primeira
edição de Inferno Verde (1909), pinturas
sígnicas denunciativas das atrocidades do
humano contra outros humanos e, em grande
medida, aterradoramente, em constante
combate com a natureza, apartando-a do
próprio homem e de seu mundo cultural
– enxerga, com assaz perplexidade, “esta
cruel antilogia: sobre a terra farta e a crescer
na plenitude risonha de sua vida, agita-se,
miseravelmente, uma sociedade que está
morrendo...”
Essa sociedade, ou comunidades
amazônicas dos seringais em terras que, na
contemporaneidade, conformam o estado
de Rondônia, estão plasmadas ou, como
esclarece o subtítulo, rememoradas e
significadas neste livro. Não ousaríamos
lembrá-las aqui. É regozijo deixado ao leitor
e à leitora percorrer esses estirões de rios e
essas barrancas e toda a incomensurabilidade
aquífera amazônica que, à moda de John
Hemming, é uma Árvore de rios em que

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o homem se assemelha a uma jiquitaia,
formiguinha, subindo incansavelmente o
tronco dessa samaúma, a imperatriz de todo
o exército florestal, e se perdendo entre a
folhagem de seus incontáveis galhos, rios,
igarapés, igapós, furos, enseadas, remansos,
estirões, todos esses lençóis aquosos,
perfumados de odores inigualáveis, da Esfinge
Verde. É, como o disse Cunha, “a geena de
torturas”.
Sob a luz da poronga é a emolduração
de quadros sígnicos e iconográficos que
denunciam, de certa forma, o aprisionamento
do humano nas malhas do próprio viver. Essas
histórias são pintadas com cores e matizes
advindas da presença cabocla, negra, indígena
e, obviamente, do branco, o nordestino, em
sua maioria. Tais personagens amazônicas
ocupam lugar central nas histórias e, a partir
de suas memórias, expõem o sistema de
escravismo em que viviam esses sonhadores.
Nenhum deles escapa dos sofrimentos, dos
preconceitos sofridos ou aplicados aos seus
companheiros de jornada na vida.

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Os espaços percorridos pelas personagens
são vários; isso demonstra um estado de
peregrinação a que tais personagens estavam
acorrentados. Há o tempo da colheita do látex
da seringueira, há o tempo da saída do seringal,
em que esses peregrinos, ciganos dos rios,
buscavam outra forma temporária de trabalho
e também de diversão ou de punição de seus
atos cotidianos. Cheia e vazante comandam
esse ir e vir das personagens em busca de
sobrevivência. É um mundo governado
pelos machos e, portanto, as mulheres
sequer são nominadas. Porém, nas narrativas
iconográficas, nas pinturas que estão
encaixadas em meio às histórias, há a figura
do feminino, como que para demarcar a
impossibilidade de o homem viver sem uma
mulher, por isso mesmo ser dito tratar-se de
moeda rara nos seringais.
Pode-se seguir, nessas histórias de
seringueiros e de “soldados da borracha” –
denominações que agenciam dois tempos
históricos da indústria da borracha na Amazônia
brasileira –, os passos do narrador ou da
narradora e de personagens de cada uma das

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4 narrativas que (en)formam a obra, como na
Primeira história, em que a narradora e um
velho “exterminador de indígenas” conversam:
“Fiquei perplexa com a mansidão de sua voz e
seu olhar firme. Estava velho, franzino e frágil.
E já na primeira visita, disse-me: – Estou velho,
mas ainda sou “homem”.
Tem-se aí a perplexidade da narradora
diante de uma personagem masculina não
pelo fato de ser ele um homem de “voz
mansa e suave”, mas por haver construído o
imaginário de tratar-se de um “exterminador
de indígenas”, em um tempo e espaço em que,
contar vantagens em detrimento do Outro,
parecia ser a representação “ideal” do macho.
Assim, crueldade e violência contra o
humano e o não-humano são temas pincelados
aqui e ali nessas 4 histórias. Sempre em luta
ferrenha contra a natureza e na luta pela
sobrevivência, os personagens centrais se
colocam como os guias de outras personagens,
filhos, mulheres, vizinhos e também o mundo
vegetal e animal.
Se as águas determinam o ritmo de vida
das personagens, as ações destes seringueiros

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e seus familiares demonstram o quão sofrível
era viver nos seringais. Além de as dificuldades
na abertura de clareiras na mata em lugares
propícios para uma colônia de sofrimentos,
ou seja, um seringal, as intrigas e todos os
tipos de vícios humanos em busca de suas
satisfações pessoais denunciam o estado de
escravidão em que viviam.
Se não eram escravos do seringalista e
do sistema de endividamento, que imperou
na Amazônia na época dos seringais, eram
escravos de seus vícios e, muitas vezes, da
ganância, do desejo violento de enriquecer, daí
as atrocidades contra os nativos.
Arrasta-pés, remelexos das cadeiras, dos
ombros, braços que abraçam corpos suados,
emanações de odores fortes desses corpos
suados, a música e os instrumentos musicais
também aparecem nas narrativas, posto que
havia muitos bailes nos barracões, nos terreiros
que davam para o barranco do rio ou do
igarapé.
Esses bailes aconteciam durante a
celebração do dia de algum santo padroeiro
daquela comunidade de seringueiros, ou o

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agradecimento de algum devoto pela benção
recebida. Assim, o sagrado e o profano
se intercalam em muitas das histórias de
seringueiros.
A fertilidade não apenas das terras,
como também dos casais, comprovada pela
quantidade de filhos nas famílias, espelha a
situação da mulher em constante estado de
gravidez e critica a desassistência e abandono
dessas famílias pelo governo brasileiro.
São quadros salpicados de tintas frias e
tristes, embora também estejam pincelados
momentos de diversão e contentamento
das personagens. Entretanto, é um mundo
mergulhado no longínquo dos centros urbanos
e, em sua maioria, ignorados pelos moradores
das cidadezinhas amazônicas.
Os bailes nos seringais, todavia, não
saciavam os seringueiros e seringalistas
e os bordeis eram os ambientes que
proporcionavam, a esses homens das matas e
dos rios, o “alívio”, mesmo que momentâneo
e ilusório, de suas necessidades carnais, embora
saíssem desses prostíbulos sem um centavo no
bolso. E essa situação do humano em busca

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da constituição de si mesmo está espraiada
nas histórias de seringueiros, como se pode
constatar ao lê-las.
Em relação à leitura, as 4 histórias que
compõem a obra podem ser lidas em qualquer
ordem. A primeira história pode ser lida como
quarta, ou vice-versa, posto que a ordem dessas
pinturas sígnicas não altera a compreensão,
muito menos impede a rememoração dos
fatos. Essa estrutura de sentimentos disposta
em todas as histórias enfaixa todas elas numa
urdidura completa e ajustada ao meio ambiente
amazônico.
Ler Sob a luz da poronga é assenhorar-se
de um mundo das eras passadas do boom da
borracha, dos sonhos de enriquecimento a
curto prazo, das intempéries enfrentadas pelos
seringueiros, familiares, compadres e comadres
das brenhas dos rios, lagos, igapós, igarapés,
estradas de seringa, caminhos, muitas vezes, sem
volta, desses filhos das matas e das águas.
Mesmo que muitos leitores e leitoras não
tenham tido essas experiências de seringais,
podem se familiarizar com tais paisagens e
personagens de Sob a luz da poronga. Assim,

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leiam e apropriem-se dessas narrativas que,
em grande parte, podem nos levar ao
imaginário de um mundo que ainda não faz
parte do passado; faz parte, na verdade, da
identidade do “brabo”, do “arigó”, do caboclo
e da cabocla, do e da indígena e também do
branco nordestino, agora amazônico.
Percamo-nos, então, nas entrelinhas das
incontáveis imagens espraiadas nos rios,
igarapés, igapós, furos, remansos e estirões de
rios-parágrafos deste mosaico de palavras que
é SOB A LUZ DA PORONGA.

Hélio Rodrigues da Rocha


Universidade Federal de Rondônia

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