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As Forças do Jarê e(m) Torto Arado

Thomás Antônio Burneiko Meira1

Uma das tantas contradições marcantes destes tempos pandêmicos foi a adoção do
isolamento social ligada à exposição, cada vez maior, das pessoas na Babel da Internet.
E em meio à profusão de fotos, lives e videochamadas, tornou-se notável, para mim, a
partir das redes, que parcela significativa dos meus contatos encarava o premiado – e já
clássico – Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, publicado, em 2019, pela Editora
Todavia.

Curioso, aproveitei o embalo das minhas férias e há umas poucas semanas adquiri o
livro. Desde então, permaneço atento às redes: aqueles que ainda não concluíram,
encantados, a edição, estão a atravessá-la ou, então, pretendem fazê-lo. Agora, enfim,
posso dizer que todo esse interesse – no meu alcance virtual, ao menos – é pleno de
justificativa. E sem a mínima competência para a crítica literária, apenas lanço, leigo, a
partir do coração: a obra de Itamar Vieira Junior é, de fato, fascinante, maravilhosa.

Somente para uma situação mínima quanto ao livro, não julgo que anunciarei aqui um
spoiler, pois certo dos eventos cruciais de Torto Arado ocorre já no capítulo inicial, e
com nada além das quatro primeiras páginas da obra. De todo modo, me dirijo mais a
quem já cumpriu a leitura, e não tanto aos que pretendem fazê-la. Pois bem. Na fazenda
denominada Água Negra, na Chapada Diamantina, as irmãs Bibiana e Belonísia,
crianças, reviram, curiosas, uma velha mala que a avó, Donana, guarda embaixo da
cama; dentro, envolta sob pano, há uma faca. Em tensão crescente, essa curta seção
inicial se finda com um banho de sangue e a língua de uma delas, já fora da boca, nas
mãos, extraída por acidente. Lembro-me, aliás, do meu choque, com o ar em falta, logo
nos primeiros instantes do livro, que iniciei sereno, deitado na rede, durante um sábado.

A partir do desastroso evento, Bibiana e a irmã, Belonísia, se veem ligadas de modo, eu


diria, espiritual, em um vínculo poroso, porque uma delas precisará assumir a voz da
outra, captar os seus anseios, incapaz, essa, da fala. Das conexões muito íntimas
(re)criadas entre as duas, abrem-se mais tantas, ampliadas, mas simultâneas, não
linearmente extensivas. Há a família, feita, além da avó, Donana, por irmãos, somados à
mãe e ao pai, Zeca Chapéu Grande, maior sacerdote e curador de jarê – uma modalidade
religiosa, popular – da região; os demais moradores da fazenda, que podem habitar
aquelas terras, sem o pagamento, contudo, pelo trabalho realizado ali; figuras vindas,
vez em quando, da cidade para a inspeção da roça; entidades várias, entre caboclos e
orixás, ativas e cultuadas nos jarês promovidos naquele casebre em que uma das
crianças perdeu a língua.

Tais relações, que envolvem trajetórias pessoais, estão narradas por três partes, cada
qual com perspectiva distinta: as das irmãs, Bibiana e Belonísia, além de uma terceira,
surpreendente. Ao diversificar pontos de vista nas histórias transcorridas desde a
fazenda, o autor faz emergir temáticas como a da dominação patriarcal e a
superexploração do trabalho nas terras, soadas, ali, no seu caráter mais completamente
arbitrário, mas também nas possibilidades, estratégias e forças do resistir por parte
daquela gente. No fio do corte, Itamar Vieira Júnior sabe fazer pular questões duras,
duríssimas, porém com uma poética cuja potência salta da própria crueza, suposta
simplicidade, das palavras e coisas. Como quem sabe, no cuidar do solo, bruto e
repisado, fazer brotar a flor; das pedras, que levaram à exploração da Chapada
Diamantina, extrair o brilho. De um arado torto, desfavorável, produzir, no limite da
vida, todo o sublime que nos falta em um mundo hostil, desigual e truculento. E são
assim, também, elevadas, algumas das pessoas que habitam Água Negra: do pouco que
têm, se põem a compartilhar, enquanto constantemente pilhadas por aqueles que mal
conhecem as próprias terras, de posse inexplicável e sem nunca, jamais, cultivar nada
por ali.

Impossível não notar, também, o sensível estendido aos humores de jardins, árvores,
rios, precipitações, estiagens, territórios, animais e das entidades – bondosas e
melancólicas – do jarê; e até as coisas, como a protagonista faca, parecem ter suas
vontades, vidas e destinos. Estão (e são) todos, ali, como (n)os (dis)sabores das pessoas
humanas: elementos dispostos a prover, ao menos um pouco, e mesmo nas condições
mais adversas; e são capazes, igualmente, de tirar, como o fez a lâmina responsável por
privar uma das crianças de articular fala, capacidade humana por excelência, tal o
trabalho, cujos frutos são expropriados por outrem, entre ações das chuvas e os roubos
empreendidos por gente. A vida, pois, é assim, complexa, e tudo, absolutamente tudo,
têm dois, ou muitos, lados.

Para não embarcar demais nas viagens, e usar um termo caro ao livro, eu diria que Torto
Arado me deixou “encantado”. Se esses, os encantados, são, afinal, aqueles seres que,
nas matas, nos rios, nos mares, simplesmente somem e passam a outro plano, mas sem
conhecer a experiência da morte, foi exatamente isso que o livro me provocou. Instantes
de sublimação, idas a outro patamar existencial, nos quais, contudo, o sopro que me faz
parte deste mundo se renovou.

Torto Arado, durante toda a minha leitura, me remetia a outra obra, muito diferente e
bem parecida, que eu conhecia apenas por algumas consultas bastante rápidas: falo d'As
Forças do Jarê, escrita por Gabriel Banaggia e lançada em 2015 (Garamond/FAPERJ).
Trata-se de um dos raros livros de antropologia, uma etnografia, acerca do jarê, a
religião característica da Chapada Diamantina, e que compõe matrizes africanas,
indígenas e daquele catolicismo chamado “popular”.

Pelo que imaginava na leitura das tramas passadas em Água Negra, engatei, logo
depois, curioso, a etnografia ao livro que, encantado, havia acabado de concluir. Torto
Arado, contudo, é uma obra literária – tornada um clássico imediato e que,
merecidamente, está nas listas de mais vendidos. As Forças do Jarê, pelo seu lado, se
originou de um doutoramento em antropologia; no limite, configura uma peça
acadêmica e voltada, portanto, a um público bem mais restrito, embora também
reconhecida na sua área. Apesar disso, os já muitos leitores de Itamar Vieira Junior
deveriam ser apresentados ao escrito científico de Gabriel.

Primeiro, o livro de Gabriel, por si, já traz forma e proposta inovadoras, que tornam a
leitura cativante e, eu diria, tão agradável quanto as dos romances, tal o de Itamar Vieira
Junior. Apenas para não exagerar no tom acadêmico, me limito a adiantar que o texto
d'As Forças do Jarê, não tem, no seu corpo, qualquer referência bibliográfica; as
intervenções e ponderações teóricas estão reservadas às notas de rodapé. Isso faz a
experiência do leitor fluir agradavelmente pelas linhas, páginas, seções e capítulos, mas
carrega, também, uma postura teórica e metodológica, e, ademais, política: fazer da
obra, publicada, o “mero” suporte para que as forças evidenciadas no jarê falem, tanto
quanto possível, por elas próprias; o dizem a partir das vivências e conexões do autor
nos seus propósitos antropológicos, decerto, mas sem tutelas corretivas e que lhes
expliquem, transcendentes, advindas de fora dali, pela legitimidade comumente dada, de
partida, à ciência institucional. É o jarê apresentado e elucidado nas vozes dos seus
praticantes, compiladas sob as intervenções de Gabriel.

E o modo mais interessante de enredar os dois livros, me parece, é a repetição dessa


manobra, sem que a antropologia do jarê de Lençóis, onde transcorre o trabalho de
Gabriel, venha a racionalizar, do exterior, as histórias contadas em Água Negra – pelo
menos, se os legados trazidos n'As Forças se prestassem a isso. O justo contrário: do
relato antropológico, atualizar virtualidades ocultas e sensíveis em Torto Arado, para
fazê-las explodir, com intensidades mais concentradas de energia literária, naquilo que
já se tem ali sem dizê-lo. Adensar para somar as potências ao limite, e sem resfriá-las
pelas, no caso, dispensáveis explicações desencantadas do campo acadêmico.

Eu, contudo, suponho necessário me explicar. Existem diversas possibilidades de


contatos entre o livro de Itamar Vieira Junior e As Forças do Jarê, independentemente
do sentido no curso que se queira assumir – na tomada de um ou outro como início.
Itamar Vieira Junior escreve, digamos, com conhecimento de causa: da formação em
geografia e do seu longo período no INCRA (Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária), sabe bem das pessoas ligadas diretamente à terra, para, assim, vir a
criar desde esses pontos de vista. A ciência de Gabriel, pelo seu lado, é veículo para
sensibilidades, e ao ponto da sua etnografia comportar – ao menos daqui, para mim – a
qualificação de “romanceada”, na melhor concepção do termo: porque repleta de poesia
e das linhas de vida – não apenas corpóreas – no compor do jarê em Lençóis, naquela
mesma Chapada de Água Negra. “Não chorem, meus filhos, pois eu sou a Rainha da
Morte”, diz certa entidade, instantes antes da partida do seu “cavalo”, ou “aparelho”, na
sentença desde a qual o autor d'As Forças se inspira para tecer uma das seções do livro.
Literatura da realidade sertaneja baiana, um; outro, a ciência no limite da arte.
Intersecionam-se, pois, ambos.

Além disso, do mesmo modo que em Torto Arado há a troca de perspectivas ao longo
da trama, nos quatro capítulos descritivos d'As Forças do Jarê – afora a entrada e a
conclusão do texto –, cada qual aciona e prioriza um dentre os vínculos criados pelo
autor durante sua pesquisa na cidade de Lençóis. Dessas linhas, diversas, de vida, ele,
Gabriel, costura o belo e acalentador tecido do jarê, complexo na sua imanência
literária, motivada pelos etéreos caboclos, encantados e orixás, dados nas trajetórias
particulares das pessoas enredadas nos títulos do livro. Um jarê descrito, portanto,
localizado, mas, em si, transversal, repleto de multiplicidades.

Afora os realismos poéticos, e as formas de ambos, é pelo conteúdo das descrições, no


entanto, que o jarê de Lençóis parece poder irradiar em cheio o livro de Itamar Vieira
Junior e, assim, lhe oferecer ainda mais potência – aquela, acima, capaz de concentrar
energia literária até um explodir do sentido em sensibilidades. E a partir de uma
primeira leitura, sem efetivamente ter estudado a etnografia de Gabriel, puxo, de
memória, algumas disposições, dentre as muitas intuídas possíveis.
No começo do percurso etnográfico d'As Forças do Jarê, que, em minha leitura, foi o
trecho mais acidentado, menos fluido, há, contudo, já um valioso panorama sobre a
ocupação da Chapada Diamantina desde quando lá chegaram contingentes
populacionais ávidos pelas preciosidades da região, conforme a sua nomenclatura,
afinal, nos insinua. Dali, do início da obra, tem-se, pois, alguma dimensão do fascínio,
espécie de feitiço, provocado pelos diamantes entre aqueles que se aventuraram na área,
como, por sua vez, reitera Itamar Vieira Junior, segundo os personagens habitantes de
Água Negra, em Torto Arado.

Para dizer mais diretamente do jarê, que marca muitas das cenas, personagens e
biografias na fazenda Água Negra, de Torto Arado, outro tema capaz de assumir novas
dimensões se visto sob aporte do livro de Gabriel refere-se à mística da terra. O autor
d'As Forças qualifica a religião típica da Chapada como “telúrica”, e o faz pautado em
muitos elementos; dos mais literais, como o fato de os espaços de jarê terem as suas
potências assentadas, “plantadas”, no solo, até as interpretações poéticas e perspicazes,
como as vistas nos atos das entidades no saudar dos fieis, abraçados e suspensos,
momentaneamente, por elas, da terra: tratar-se-ia de colocar alguém, por instantes, na
dependência direta do ser cósmico manifestado; da intensificação dos vínculos, que
permite a transmissão das energias de um para outrem.

O elo entre os seguidores do jarê e a terra surge, então, espiritual, e não só afetivo ou
econômico. A existência depende, assim, dos cultos ao – além de cultivos do – chão,
onde reside, diga-se, o ímpeto dos entes constituintes, espiritualmente, de quem é, ou
está, humano. E caboclos, encantados e orixás se fazem, porosos, dentro e fora dos seus
“cavalos”, tal Bibiana e Belonísia uma à outra. Relacionar-se no íntimo não é deixar-se
alcançar, mas transpor, entrar; tal existir, forte, algo divino, implica cultuar um solo
sagrado, sacralizado. Os homens e as mulheres são, também, enfim, um terreno,
“aquela” terra. Essas conexões, espirituais, tão poeticamente descritas por Gabriel, me
parece, escapam quando dos comentários, resenhas e análises produzidas, até aqui,
sobre o livro de Itamar Vieira Junior.

E é por essa porosidade que uma entidade, Santa Rita Pescadeira, aparece, em Torto
Arado, meio indistinta do “aparelho” por ela eleito, tida, aos demais, uma mulher louca.
Porém, loucura, no jarê, ensinam Gabriel e os seus amigos de Lençóis, indica excesso
divino que precisa ser reequilibrado; tanto, nesse caso literário, que já não há muita
distinção entre a força, da Santa, que está dentro e se insinua, de modo permanente,
ainda bruta, aos de fora. Essa relação, da suposta des-razão com o transbordar das
potências divinais, joga mais luz, também, às narrativas impressionantes de figuras, em
Água Negra, chegadas amarradas aos cuidados de Zeca Chapéu Grande, o maior pai-de-
santo dali e perito na sua lapidação, pela qual intenta deixar-lhes somente um brilho, a
luz, agora, já não dos diamantes, que, pela ganância, faz enlouquecer, mas divina.

Zeca Chapéu Grande, um dos protagonistas de Torto Arado, como exímio curador,
esteve, ele próprio, pois, enlouquecido, antes da sua própria cura. E esses loucos de
Água Negra podem, amarrados, ser direcionados aos sacerdotes, mas, ainda, na
realidade telúrica do jarê, caminham, e, certas vezes, muito, muito. O pai-de-santo, por
exemplo, na sua juventude, saiu descabido em uma andança errática, e, na lógica trazida
por Gabriel, imagino, aqui, se isso não pode ter se dado pelo próprio telurismo, agora,
eu diria, mais do que intensivo, extensivo ao território, durante o seu período insano.
Tais disparadas, como a de Zeca, contudo, seriam apenas um caso limite dos
desprovidos da razão, visto que os sãos, na fazenda oferecida por Itamar Vieira Junior,
também se movimentam o tempo todo: da casa aos jardins e cursos d'água, de um
casebre a outro, do campo à cidade etc. Uma ética bem própria do jarê, fala Gabriel, que
organiza o seu livro como fosse, aquela etnografia, uma caminhada: chegar, pisar,
dançar, tombar, levantar e voltar. Uma exploração não predatória do território, ao modo
dos garimpos, mas, isso sim, existencial, pelo solo onde estão assentadas as potências
do jarê.

Seriam muitas porosidades possíveis entre Torto Arado e As Forças do Jarê, além das
que intuo, aqui, sem muito cuidado nessa caminhada breve e um tanto apressada, na
qual assumo os riscos dos tropeções. No entanto, a mais intrigante, para mim, e que me
motivou a arriscar esses passos, com os quais quero apenas oferecer uma trilha a ser
superada, foi a semelhança daquele tido, nos relatos de Gabriel, como o maior pai-de-
santo do jarê de Lençóis, Pedro de Laura, e o curador Zeca Chapéu Grande, o mais
reconhecido sacerdote da região, em Torto Arado. Além dessas posições, eles, ambos,
são descritos sob trajetórias muito parecidas, marcadas pela loucura e uma recusa,
diante da morte, de abandono das terras nas quais fundaram os seus jarês; e o mesmo ar
que me faltou quando percebi, em Itamar Vieira Junior, a língua de uma das irmãs, fora
da boca, nas mãos cheias de sangue, escapou, no livro de Gabriel, na apresentação do
mestre das antigas cerimônias de Lençóis. Seriam, os dois, um mesmo, e as relações,
dos escritos, mais direta do que imaginamos?

O episódio da faca, que inaugura o livro de Itamar Vieira Junior, diz, também, sobre um
oculto que não deve ser tocado, bem como a realidade religiosa, tal aquela das forças do
jarê, é tecida de mistérios. De todo modo, se “a antropologia” – nas palavras de um
antigo professor, que gostava de nos lançar, provocativo, e, talvez, inspirado em Lévi-
Strauss – “serve ‘apenas’ para que pensemos melhor”, a praticada e escrita por Gabriel,
entremeada a Torto Arado, nos ajuda a sentir mais, muito mais.
1
Antropólogo, docente do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá
(DCS/UEM) e ogã de candomblé.

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