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A FAMÍLIA CASERTA
Título original: Nosotros, los Caserta
© 1969, Liliana Viola, herdeira de Aurora Venturini
Nota preliminar © 2021, María Paula Salerno
Todos os direitos reservados
© desta edição:
2024, Penguin Random House Grupo Editorial, Unipessoal, Lda.
Direitos de tradução acordados com Agencia Literara CBQ
Proibida a venda no Brasil
Penguin Random House Grupo Editorial apoia a proteção do copyright. Este livro
não pode ser reproduzido, no todo ou em parte, por qualquer processo mecânico,
fotográfico, eletrónico ou por meio de gravação, nem ser introduzido numa base
de dados, difundido ou de qualquer forma copiado para uso público ou privado,
além do uso legal como breve citação em artigos e críticas, sem a prévia
autorização por escrito do editor.
ISBN: 978-989-787-862-6
Site: penguinlivros.pt
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Instagram: penguinlivros
Índice
A família Caserta
Créditos
Nota do editor
Nota preliminar
Dedicatória
Epígrafe I
Epígrafe II
Epígrafe III
A família Caserta
A fotografia
O relatório
O concurso
O apartamento
Revelação
A estirpe
O camafeu
Planos interrompidos
O guardanapo
Chile que ri
Ilha da Páscoa
Regresso a casa
Iniciação parisiense
Sabine e Jules
Outro regresso
A invasão
Paris que chama por mim
Roma
Caserta
Os antepassados
Em família
Anjo, Angelina
Ulisses
Garrafa ao mar
Escorpião
¡Amore!
FUOCO DI PAGLIA
(…) e tenho quase a impressão de que o que escrevi
nestas folhas, e que agora o leitor desconhecido lerá, não
é mais que um centão, um cármen figurado, um imenso
acróstico que não diz nem repete nada além do que
aqueles fragmentos me sugeriram, como também já não
sei se quem falou até agora fui eu ou se, na verdade,
foram eles que falaram pela minha boca.
UMBERTO ECO
(…) Pictoribus atque poetis
Quidlibet audendi semper fuit
aequa potestas.
[A pintores e poetas
sempre assistiu a justa liberdade
de ousar seja o que for.]
HORÁCIO
A família Caserta
A fotografia
Espero que a Chela compreenda até que ponto pode ser prejudicada
pela sua total falta de autoconfiança, o seu afã desmedido de
autoaperfeiçoamento e a sua incomum condição de sobredotada. Julgo
que o afastamento da família a favorecerá, porque no instituto de regime
severo talvez consiga valorizar o que é a estadia no seio do lar.
Esta rapariga — agora adolescente — é como um navio difícil de
comandar. Pessoalmente, penso que se trata de um ser excêntrico e
sádico. Expresso esta última ideia porque ela faz tudo o que pode para
agravar qualquer acontecimento, para o tornar mais pesado. Tento
observá-la sem que perceba, e impressiona-me verificar que sou eu a
observada com maior profundidade, com agressividade. Sinto-me
desorientada. Gostaria de despertar alguma sensatez no seu íntimo, na
sua psique, na sua alma ou seja o que for. A Chela não tem sentimentos
pelos seus semelhantes e só gosta de animais.
Neste preciso momento sabe que deve descer à «casa das gentes»,
expressão que ela dá ao piso térreo, e oiço-a ler, aos gritos, uma página
de Romain Rola. Fala para uma coruja. Não reconheço a voz da Chela
naquele vozeirão de homem.
De facto, esta rapariga é desagradável; faz tudo o que pode para
ofender as pessoas, é suja e diz palavrões. Será aquele vozeirão da
Chela? Ou será que algo ou alguém terrível a habita, possuindo-a?
Enquanto cientista, não acredito em possessões demoníacas, a Chela está
dominada por um intenso sentimento de ódio e rejeição.
Espio por uma fenda da porta, e vejo que se dirige à coruja, e a minha
pele fica inevitavelmente eriçada quando oiço: «Embora não nos
víssemos com os olhos da cara, víamo-nos com aqueles olhos que ambos
conhecemos, e regressaremos das nossas cinzas para ser o que somos e
caminhar juntos.»
Tenho de interromper isto.
— Chela, tem de se vestir e descer.
— Acha que estou despida?
Apesar do demónio iracundo, tiro um par de sapatos da sapateira,
lustro-os, convidando a Chela a calçá-los. Obtenho apenas esta resposta:
Disse à Chela:
— Seria a Madame de Noailles, pastora de pomares, bela e distinta,
uma espécie de rainha por quem Marcel estava intelectualmente
apaixonado?
Suspirou:
— Hirondelle d’argent.
Encarando-me, perguntou:
— Diga-me, alguma vez serei uma andorinha de prata?
— Talvez — respondi com um certo medo.
— Sabe quem foi a Madame de Noailles?
— Sim, ouvi alguns dos seus poemas.
Ela repetiu algo que eu tinha pensado:
— Acredita que da minha torre intelectual vencerei a incúria das
gentes?
Não soube o que responder «àquela coisa de nove anos».
Insistiu na ideia da andorinha de prata:
— A senhora não foi sincera comigo, nunca serei bonita como a
Madame de Noailles, delicada como «une hirondelle d’argent».
Este diálogo deixou-me perplexa. A Chela, depois, entrou num torpor,
fixou a atenção sonhadora na revista, e quase pude acompanhar a sua
viagem imaginária, a que ela levava a cabo evadindo-se da desgrenhada
feiosa que era e do lugar onde se abrigava como um bicho, para entrar
na residência da escritora, em Chambéry, e conversar com pessoas
importantes, passeando pelos terraços do século XVIII, entre as torres e
os belos parques civilizados à francesa.
De repente, disse:
— Apagaria com uma borracha gigante este campo selvagem, este
azul explosivo, e desenharia o tom plúmbeo «de la champagne»,
derramado sobre os peixes oxidados dos tanques.
Insinuei:
— Chela, com essa voz tão bem modulada, deve descer à casa das
gentes e fazer-se ouvir.
— Não tenho medo deles, descerei.
Percebi que ela murchou enquanto descia, e quando se aproximou do
pai, nada disse.
— A menina viajará até ao Instituto com a Sara no automóvel do
Narciso. Prepare as suas coisas, já levarão a mala à sua pocilga.
Considero que o senhor Stradolini foi bastante inflexível e ríspido, mas
que outra atitude poderia assumir diante do horroroso espantalho que o
insultava com o olhar?
Fui com ela ao sótão e ficámos a observar a chegada do outono pela
janelita; as folhas caídas já tapavam os escoadouros e, por causa das
chuvas e da humidade, das poças subia um vapor pestilento, como um
tule imundo. Na bolsa da Chela, a dos achados, pusemos livros e papéis,
cadernos, pequenos objetos.
Recordo que regressámos à quinta. O padre Ariel vive ali desde então.
Embora tenha regressado com eles, sentia-me destroçada e decidida a
renunciar; percebi que a Chela tinha crescido, era uma senhorita de dez
anos. Nessa noite, eu jantaria com os Stradolini. Na sala de jantar, na
parede enorme, um espelho veneziano entregava-me a cena por
completo: a Chela estava quase bonita, com a sua curta saia plissada e a
sua blusa de broderie, calçada com sapatos brancos de salto raso. Com o
passar do tempo, parecer-se-ia com as mulheres trinca-espinhas que
Modigliani pintou. A Lula tinha oito anos e ajudava a pôr a mesa; a mãe,
outra vez grávida, dava a mão ao Juan Sebastián. O pai envelhecera
ostensivamente. Também lá estava a Camelia, amiga da casa. O Juan
Sebastián, cinco anos mais novo que a Chela, parecia um bonequinho de
presépio. Anão imbeciloide, ronronava: «Mmm… Mmm… Mmm…»;
repulsivo, babava-se porque estava com fome. A Chela, que acabara de o
conhecer, recordou-se sem dúvida da sua rubéola.
Foi um jantar silencioso, tenso, até, e estava prestes a terminar
quando o senhor Stradolini disse algo sobre a viagem. Ofereci-me para
dormir com a Chela no sótão, pensando em rever a possibilidade de
atrasar a minha renúncia, pois sentia-me seduzida pela simples ideia de
uma viagem pela Europa.
Quis cativar a rapariga devolvendo-lhe as páginas da Revue des Deux
Mondes com o artigo de Marcel Proust dedicado a Madame de Noailles.
Naquele tempo, tratávamo-nos por tu, por isso disse-lhe:
— Já não queres apagar com uma enorme borracha este céu e o seu
sol explosivo, para pintar «la champagne» sobre o tanque com os seus
peixes oxidados?
Cansada, respondeu:
— Nunca serei «une hirondelle d’argent».
Se tivesse suspeitado do que planeava, tê-la-ia seguido para o campo
na manhã em que subiu para o arado e partiu quebrando talos e
levantando terra e pedras com as lâminas. Fez capotar a carroça e ficou
com um braço preso, ouviu-se um «craque» sinistro, como acontecera
com a Analía. Limpou-se o desastre, e ela andou com gesso e tala, cuja
sombra no sótão fazia par com a harpa no canto. Já não poderia viajar.
Naquela noite, na escuridão partilhada, julguei ter ouvido: «Hu… Hu…
Hu…», guincho de coruja.
Ela disse:
— Eu não assassinei o Bertoldo, apenas contribuí para o salvar de
futuras dores e solidões.
Fingi não ter compreendido, como se estivesse semiadormecida:
— O que se passa, Chela?
Seguiu-se um lento silêncio tingido de medo, porque os objetos do
sótão, tocados por algo espiritual que eu não conseguia captar
plenamente, ganharam movimento. E a harpa soou, ténue, como se um
biquinho de ouro lhe tangesse as cordas, e o xaile de Manila que a
tapava caiu como um indigente defunto.
Talvez por influência de um copo a mais, talvez por causa do ar
rarefeito do sótão, interpretei aquele «Mmm… Mmm… Mmm…» como o
canto do verão. Mas depressa vislumbrei o menino anão, subira a
escadinha, saltou para a minha cama e atacou-me à dentada. A Chela
começou a bater na parede com a tala, e o gesso soltou-se e libertou-lhe
o braço.
Foi por isso que parti. Foi por isso que abandonei o trabalho muito
antes de poder terminá-lo. Sou uma mulher da ciência, e não uma
exorcista.
O concurso
Tinha na mão
o tronco apodrecido
de um homem morto
e levava-o alternadamente
dos olhos ao nariz,
do nariz à boca.
É isto que a Sara come,
carne de sepultura.
Infiltrar-nos-emos
entre as grades,
cortar-te-emos em pedaços
e de-vo-rar-te-emos.
Exposto às injúrias
de um céu rigoroso,
ali está abandonado,
privado de toda a esperança.
Nenhum amigo, nenhum
companheiro de infortúnio.
Ninguém capaz de lhe acalmar
a dor e fazer parte
da sua desventura.
Disse o antiquário:
— Está a pensar em Rimbaud?
— O senhor lê pensamentos?
— O seu pensamento é o meu pensamento, não há
pensamentos alheios.
Era um indivíduo ogival. A sua nobre magreza refletia-se na lua
veneziana, meio clara, meio escura, totalmente misteriosa. Vi-o
como uma enguia com braços e pernas em cuja mão a minha
escultura abria um buraco na água pelo qual eu descobriria aquilo
que ansiava e temia. Sentiu o mesmo que eu sentia e,
compadecido, propôs: «Observe os relógios e os instrumentos,
sou relojoeiro e músico.»
De súbito:
— Rapariga, descobri uma data: 1848. Descobri uma gravura
de uma harpa eólica… Esta família é originária da Sicília, não são
camponeses nem gente comum porque aqui está a flor de lis, que
é a heráldica do lírio, e uma minúscula marca de sinete onde leio
«Condestáveis de Caserta».
Nuns incunábulos, comparou: «Esta família viveu na Sicília, na
época borbónica, quando o reino das duas Sicílias foi dominado
por Alfonso Conde de Caserta.»
Apontou para o casal:
— O senhor é o condestável, a sua esposa é a condestablessa,
os anões não são bobos, mas sim os maus rebentos do azarado
casal.
Eu não disse uma única palavra porque uma grande tristeza me
escureceu a alma. O sábio antiquário tangeu uma harpa para a
acalmar. Pelas cordas vibrava a sua pátria, a Alemanha, e a
melodia destilava gelo e neve que salpicaram os copos de
Nuremberga, as tampas cinzeladas dos cântaros, os medalhões de
madeira do século XVI, e transbordaram a loiça de um batistério.
A lembrança do meu irmãozinho desfez o encanto, e desci à
rua. Interrompi os meus estudos para cuidar dele. Morreu um ano
depois. Perdi-o. Antes, devolveu-me as duas palavras que lhe dei.
Com o Juan Sebastián sepultei a minha infância e boa parte da
minha adolescência.
Decidi deixar-me viver, simplesmente.
Planos interrompidos
Brinquei na noite,
dormi na aurora.
Fui víbora no pântano,
águia sobre os cumes,
lobo na selva.
Subi ao sótão e disse à Bertha: «Na casa das gentes está tudo
loucooo.» A Bertha devorava a sua folha de alface nacional com
mais gosto do que as alfaces francesas. Observei a pequena
escultura da nossa descoberta. Na bruma familiar, ouvi o arpejo.
Uma pavana para infanta adormecida, para infanta morta. O xaile
de Manila caiu, e, naquele frio, o arcanjo despido era um menino
morto.
Do baú antigo tirei uma folha de papel do século XVIII, passei
longas horas a ler «Chaves para Abrir o Coração». Para cúmulo
dos meus males, pensava no Luis.
Permaneci no sótão durante um mês, no mesmo sítio de agora,
com os mesmos papéis e objetos. A Sara trazia-me, como antes,
uma sanduíche de presunto e queijo e um copo com sumo que
quando aquecia sabia a mijo. Numa noite, um cacarejo
semelhante ao de um galinheiro despertou-me. Espiei, como certa
vez fiz à mãe e ao senhor Roux. Eram seis comadres,
capitaneadas pela Sara, a beber chá na minha baixela, aquelas
fuças na porcelana centenária. Aguentei. Mais tarde explodiria.
Encontrei-me com o padre Ariel:
— O senhor deu permissão a este horror?
— Não é assim tão mau, Chela, são de carne e osso…
— Quanto temos de pagar para indemnizar a Sara? Não a quero
na quinta.
O padre Ariel, escandalizado, persignou-se. Chegou o Arnaldo,
como mediador; a sua falta de tato deixou-me ainda mais furiosa.
— Vais-te filiar, priminha?
Levei-o até à porta com tal compulsão que o infeliz pensou que
lhe estava a apontar uma arma. Fugiria daquela selva
incompreensível. Preenchi a papelada na mesma agência onde já
me conheciam. Fui almoçar ao mesmo restaurante, levei a Bertha
no bolso. Ainda tenho o guardanapo desse dia. Sentámo-nos num
local isolado para podermos ver sem sermos vistas. Eu intuí-o. O
Luis entrou e estacou no meio da sala. Eu espiava-o como sempre
fazia. Pediu para não ser servido, estaria à espera de alguém?
Entrou uma mulher jovem, baixinha e gorda, com a cara cheia de
acne. Observei as suas mãozinhas gordurosas agarradas à manga
do casaco às riscas azuis do meu amado; falou para que todos a
ouvissem, numa voz esganiçada, sobre os miúdos, as compras, a
escola.
Deduzi: seria professora.
Ele limpou-lhe uma borbulha supurante com a ponta do lenço, e
o ar impregnou-se do perfume do meu desespero. Ele deslizou um
braço protetor por detrás da cadeira que ela ocupava, pelas costas
e pousou a mão no seu pescocito roliço. Oh, sim… Era um bom
casal.
«Vamos», disse à Bertha. Deslizei-a no meu bolso e
escapulimo-nos por uma porta lateral.
Na calçada ardiam todos os desertos do mundo. Os meus
mortos caíram de súbito sobre mim como enormes timbales. A
minha única esperança foi cortada cerce por uma rapariga tola.
Disse à Bertha: «Demasiados tolos, demasiadas expropriações.»
Ingeri dois comprimidos da garrafita azul, e pouco depois tudo me
sorria. Entrámos na mesma confeitaria de sempre; pedi um gelado
de morango. Não pedi que pusessem a tocar «La violetera»
porque já não era habitual pedir música. Acariciei a Bertha:
«Somos tão livres.»
Já na quinta, chamei a Sara:
— Diga-me: quanto deseja como indemnização?
Fiz contas num caderninho. Passei-lhe um cheque com o dobro
do valor.
— Chega-me para comprar uma casa prefabricada. Saio
amanhã.
— Sai agora mesmo.
Dizia-me adeus entre duas maletas, levando um pacotinho frágil
na mão.
— O que leva nesse pacotinho?
— Menina Chela, por favor…
Desatei-o. A náusea subiu-me o vómito para a garganta; era ali
que bebiam chá, as negras beiçudas. Na bacia da infância em que
lavava os objetos da cristaleira, fiz ondas de sabão e esfreguei as
chávenas em que os asquerosos beiços beberam, as asas que as
porcas mãozorras agarraram; apanhei algumas das chávenas em
pleno ar.
A espuma lavou-me.
Paris que chama por mim
La Nación
SOBRE AURORA VENTURINI