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Edição em formato digital: março de 2024

A FAMÍLIA CASERTA
Título original: Nosotros, los Caserta
© 1969, Liliana Viola, herdeira de Aurora Venturini
Nota preliminar © 2021, María Paula Salerno
Todos os direitos reservados

© desta edição:
2024, Penguin Random House Grupo Editorial, Unipessoal, Lda.
Direitos de tradução acordados com Agencia Literara CBQ
Proibida a venda no Brasil

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além do uso legal como breve citação em artigos e críticas, sem a prévia
autorização por escrito do editor.

Editora: Clara Capitão


Tradução: Guilherme Pires | oficinacaixaalta.pt
Revisão: Maria de Fátima Carmo
Capa: Wonder Studio / Ana Teixeira
Fotografia da capa © Sebastián Freire

ISBN: 978-989-787-862-6

Composição digital: M.I. Maquetación, S. L.

Site: penguinlivros.pt
Twitter: @PenguinLivrosPT
Facebook: alfaguaraportugal
Instagram: penguinlivros
Índice

A família Caserta

Créditos
Nota do editor
Nota preliminar
Dedicatória
Epígrafe I
Epígrafe II

Epígrafe III

A família Caserta
A fotografia

O relatório

O concurso
O apartamento

Revelação

A estirpe
O camafeu

Planos interrompidos

O guardanapo
Chile que ri

Ilha da Páscoa

Regresso a casa

Iniciação parisiense
Sabine e Jules

Outro regresso

A invasão
Paris que chama por mim

Roma

Caserta

Os antepassados
Em família

Anjo, Angelina

Ulisses

Garrafa ao mar

Escorpião

Regressar uma e outra vez

Sobre este livro


Sobre Aurora Venturini
Edição revista e corrigida a partir da investigação de
María Paula Salero sobre a génese textual e a história
editorial de Nosotros, los Caserta, tendo em consideração
os manuscritos da autora, as suas notas em provas
paginadas e as sucessivas edições do romance desde
1992.
[1]
NOTA PRELIMINAR

Em janeiro de 2015, recebi um e-mail de Aurora Venturini com


uma única linha: «Prezada Paula, entre em contacto comigo por
mensagem. Aurora». Queria e exigia-me que me tornasse sua
secretária. A minha tarefa consistiria em ir a sua casa uma vez por
semana para transcrever os seus escritos, levar-lhos impressos
quando quisesse corrigi-los, ler os textos em voz alta e gerir
algumas comunicações com a sua agente literária e os seus
editores. Tínhamo-nos conhecido alguns anos antes, na altura em
que ela recuperava de um acidente em que magoou a anca.
Telefonei-lhe para lhe dizer que queria começar um trabalho de
investigação sobre a sua obra literária e que para isso precisava
de ter acesso aos seus arquivos. Como ainda estava em
reabilitação, marcou encontro para alguns meses mais tarde. No
dia em que me recebeu pela primeira vez, foi ela quem me
investigou. Passámos horas a conversar, a ler, a interpretar,
escarafunchando na biblioteca e nos móveis do quais saía toda a
espécie de papéis acumulados e guardados desorganizadamente
após uma vida inteira dedicada à literatura. Era dia 18 de outubro
de 2011, sei-o porque está anotado no exemplar da edição
espanhola de A família Caserta que simpaticamente me ofereceu
com esta dedicatória: «Uma história familiar para a Paula, na sua
entrevista». Não foi o único presente que recebi nesse dia. Já
tinha caído a noite quando, diante da imensa pilha de documentos
que se gerara na sala de estar, anunciou: «Quer que lhe chame
um táxi?» Devo ter feito uma expressão de desconcerto porque,
na verdade, não apanho táxis, ando a pé, e não vivíamos longe
uma da outra. Mas antes de ter tempo de pensar o que dizer,
acrescentou: «É que, se não o fizer, como levará tudo isto
consigo?» Fui de táxi para casa com um tesouro de papel.
Passaram mais alguns anos até que decidi dedicar o meu
doutoramento em Letras ao estudo de A família Caserta. É
possível que ela, com a sua assumida alma de bruxa, o tenha
planeado desde o início.
Aurora Venturini não teve filhos. O medo de gerar seres
monstruosos, que ecoa nos seus escritos, também se lhe
vislumbrava nos olhos, no que dizia e no que calava. Aurora
Venturini escrevia incansavelmente. Vivia na letra manuscrita
estampada nos seus cadernos, nas histórias traçadas pela sua voz
exígua e nos episódios fabulosos dos seus contos e romances.
Narrar foi o modo que encontrou de se narrar, de se multiplicar
em mundos possíveis, de ser e de se expandir na vida e na
literatura. As fronteiras entre o ficcional e o vivencial perdem-se
nas suas histórias, por onde circulam diferentes versões de uma
mesma coisa, felizes por se encontrarem. Quando se encontram,
surgem o sorriso pícaro e o olhar arguto de quem as urde. Se as
referências se ocultam, é porque os textos estão vivos.
Os tempos mudam e as obras também. As dinâmicas da história
exigem soluções materiais e simbólicas para que os escritos
continuem a circular e despertem o interesse de novos leitores.
Aurora Venturini sabia disso e trabalhou sempre para manter a
vitalidade dos seus textos, que se metamorfosearam para avançar
no mundo editorial. De todos os seus romances, A família Caserta
é o que apresenta uma narrativa textual mais rica, envolta por
vezes numa aura de incerteza e mistério, como a vida da sua
autora. O processo criativo desta ficção remonta à década de 60,
quando Venturini começou a dedicar-se à escrita criativa. Nessa
altura, o texto circulava sob outros títulos e com uma estrutura
diferente, em volumes dactilografados que foram submetidos a
vários concursos literários. Segundo as versões apresentadas nos
paratextos, este romance — alternativamente intitulado Los bichos
del desván, Las islas, L’Isola (Crónicas sicilianas) — ganhou
prémios internacionais em 1969, 1982 e 1988. Apesar disto, a
primeira edição que hoje se conhece surgiu em 1992, publicada
pela Pueblo Entero, casa editorial muito vinculada à figura do
historiador Fermín Chávez, que fora marido da escritora. A
segunda edição, quase idêntica à anterior, viu a luz do dia através
da Corregidor, em 2000. Mas nenhuma das duas teve grandes
repercussões. Aurora Venturini só era conhecida por um círculo
seleto de leitores.
Anos depois, o êxito de As primas concedeu à narrativa desta
velha escritora da cidade de La Plata um lugar sem precedentes
no mundo editorial. O nome e a imagem da autora brilharam na
imprensa, e esta notoriedade despertou o interesse de leitores e
editores, que partiram à procura das suas obras prévias. E assim,
sendo uma ficção «de outro tempo», A família Caserta sucedeu a
As primas. Com a edição da Caballo de Troya em Espanha e de
Mondadori na Argentina, em 2011 este título chegou às mãos de
um grande público leitor. É evidente que os contextos em que se
enquadrou a preparação das novas edições respondiam a
dinâmicas de produção, transmissão e receção muito díspares das
verificadas nas décadas anteriores, pelo que o romance teve de se
adaptar aos tempos para ganhar vitalidade. É por isso que estas
últimas publicações de A família Caserta se apresentaram com
mudanças significativas, tanto ao nível do projeto editorial como
do texto e dos elementos paratextuais. Deste modo, entre os
leitores de Venturini circulam hoje versões diferentes da mesma
ficção.
No que me diz respeito, estudei aturadamente as mutações da
obra ao longo do tempo. Cotejei as quatro edições e todos os
documentos de génese recuperados do arquivo pessoal da
escritora, com o objetivo de compreender o conjunto de
transformações materiais que o romance sofreu e as suas
possíveis interpretações. Este trabalho levou-me a perceber que,
além das mudanças intencionais que os editores fizeram com o
propósito de dar outra vida ao texto para que fosse incluído em
coleções literárias específicas, as novas edições continham um
número significativo de erros provenientes de descuidos que são
comuns nos processos de produção de um livro e que,
infelizmente, afetavam negativamente a leitura.
A minha investigação serviu de base para a edição revista que
oferecemos hoje, diferente de todas as anteriores e que
representa, por isso, mais uma metamorfose na vida textual de A
família Caserta. Em conjunto com Liliana Viola, herdeira de Aurora
Venturini, e Paola Lucantis, editora da Tusquets, trabalhámos para
fixar um texto que mantivesse a fidelidade à voz de Aurora
Venturini e, ao mesmo tempo, soubesse responder aos requisitos
do mundo editorial contemporâneo. Desta sorte, optámos por
manter a estrutura em 26 capítulos titulados, presentes nas
últimas edições do romance, mas interviemos no texto para
emendar erros, reincorporar passagens omitidas e recuperar
formas expressivas características da poética venturiniana que
tinham sido normalizadas nessas versões. Com isto, pretendemos
revalorizar as marcas de escrita de outro tempo, vivas nos
tesouros de papel que a autora nos legou. Graças a este
minucioso labor, o leitor atento poderá, entre outros pormenores,
detetar o gosto pelo esotérico e a herança neorromântica que
polvilharam desde sempre a narrativa mordaz de Aurora Venturini
e que proporcionam à sua linguagem literária uma mistura
elegante e singular.

MARÍA PAULA SALERNO


Professora universitária e investigadora
argentina, responsável pela edição crítica de
textos modernos de Aurora Venturini
[1]
Salerno, María Paula. (2020) La voz literaria de Aurora
Venturini y de Ana Emilia Lahitte: archivos de escritura, génesis
textual y edición crítica. Tese de doutoramento. Universidade
Nacional de La Plata. Faculdade de Humanidades e Ciências da
Educação.
Aos meus primos
Caserta e Tomasi di Lampedusa
Ore che tu hai ucciso
il mio amore,
Si è oscurato il mare,
mentre il mio cuore
é pieno di dolore.

¡Amore!
FUOCO DI PAGLIA
(…) e tenho quase a impressão de que o que escrevi
nestas folhas, e que agora o leitor desconhecido lerá, não
é mais que um centão, um cármen figurado, um imenso
acróstico que não diz nem repete nada além do que
aqueles fragmentos me sugeriram, como também já não
sei se quem falou até agora fui eu ou se, na verdade,
foram eles que falaram pela minha boca.

UMBERTO ECO
(…) Pictoribus atque poetis
Quidlibet audendi semper fuit
aequa potestas.
[A pintores e poetas
sempre assistiu a justa liberdade
de ousar seja o que for.]

HORÁCIO
A família Caserta
A fotografia

Na sala de espera de uma clínica platense voltei a ver a cabeça


do Luis, um capitel lascado, tenebrosamente posto entre os
ombros da sua segunda esposa. Agora sei que o perdi para
sempre e compreendo que jamais, em toda a eternidade, voltarei
a sentir o seu contacto, tão doce e tão meu naqueles tempos,
porque o seu segundo casamento deve ter sido uma união feliz, e
por isso ela pôde salvar da morte a cabeça dele, salvar a
expressão do único ser humano que amei como companheiro
normal. Porque também amei apaixonadamente a minha tia-avó.
Durante longas noites invernais aconchegava-me abraçando-me
a mim mesma. Imaginava o amoroso reencontro na penumbra
lilás-azulada, tonalidade em que se movem os fiéis defuntos.
Agora sei que ele a espera apenas a ela, talvez para que lhe
devolva a sua cabeça. A minha mãe opinava que os casais muito
unidos e harmoniosos, na velhice, parecem irmãos. Não foi o seu
caso, porque a minha mãe tinha uma certa semelhança com o
senhor Roux. Mas essa é outra história.
Perante a viúva do Luis, embora nada nem ninguém me possa
rasgar, quebrar ou mutilar, porque tudo isso já me aconteceu,
sinto uma medonha sensação de terror. E a ameaça de um
desenraizamento total, final e horrendo abate-me até derramar
rios de lágrimas na Lagoa Estígia, depois de dar as costumeiras
sete voltas ao Inferno para cair no sótão do Além. E invejo aquela
mulher. Invejo a sua viuvez. O que não daria para ser a viúva do
Luis, eu, que nunca fui nada de ninguém.
Golpes e cacetadas transformaram-me numa imitação da minha
tia-avó, e talvez a anãzinha esteja à minha espera, estacada à
porta do misterioso arcano, a acenar-me para entrarmos juntas.
Subo a coxear até ao meu sótão. O bicho asqueroso em que me
transformei remexe num baú de papéis e fotografias antigas,
relatórios de professores e psicólogos solicitados pelo meu pai,
empenhado em revelar o porquê do monstro que tinha gerado,
para concluir se era culpa dele ou consequência de uma herança
mórbida do lado materno da família.
Posso entrar e até perder-me no cofre, a par com a minha alma
de velha-anã-proustiana, pois, no fim de contas, é isso que aqui
vim fazer.
É desnecessário dizê-lo, mas repito que sou uma mulher
enfiada num baú de cartas, fotografias, relatórios, cartões e
papéis amarelecidos. Salta dali uma menina vestida de organdi: a
minha fotografia de quando tinha quatro anos cronológicos. A
Alegoria da Melancolia de Dürer também dali salta. Estava numa
moldura da qual a retirei para a guardar no baú.
Mais tarde descreverei a menina vestida de organdi, mas
primeiro fá-lo-ei a respeito da fotografia do meu humor presente,
pois sou a Alegoria da Melancolia de Albrecht Dürer, e o meu
espaço é o mesmo ambiente da personagem.
No meu sótão da mansão da quinta estão todos os objetos do
exílio, rodeiam-me; enquanto apoio a minha cabeça fervente e
malárica na mão esquerda, na direita seguro um compasso de
inútil espera. Estão aqui a escada que não leva a lado nenhum, o
querubim sentado na roda enferrujada, o sino estragado, os
relógios sem música, a balança descalibrada, o cão faminto. Só
faltam os símbolos que Dürer incluiu na gravura e que são de
esperança, a estrela do fundo e o selo de dezasseis números que
somam trinta e quatro em qualquer sentido, garantindo farta
solução para qualquer problema.
A menina.
Segura um cesto de vime com rosas de papel. Essa criança é a
defunta de mim, o duende do hemisfério sombrio das minhas
dores futuras, que põe a mão e até o bracinho em baús de outono
e de inevitável invernia.
Eu tinha começado a minha temporada no Inferno quatro anos
antes desta fotografia: o dia em que nasci. Menina-testemunha,
larva no seu casulo que se desfia e volta a acasular para que o
rebento pulse, saia e se projete, por vezes suave, noutras
compulsivo, sempre destemido.
Observo a fotografia e consigo lembrar-me da minha mãe no
dia em que me levou para que me fotografassem.
Era um entardecer quente de verão e chovia. Um céu
desagradável tingia a cidade de cinzento metalizado, zinco azedo,
cor de borralho. Ambas transpirávamos, com a testa perlada de
um suor irritante, sentadas no banco de couro verde da
carruagem puxada por cavalos escuros. Vejo, na fotografia, os
sapatinhos vermelhos com fivela. Molharam-se e eu quis secá-los
com o meu lencinho fino e a mãe deu-me um carolo. Vejo a
pequena corrente de ouro com o medalhão de camafeu alpino que
se enroscou na bolsinha de fio de prata. Dei um puxão e a mãe
bateu-me outra vez.
Sinto a suavidade do couro verde do banco, o barulho dos
cascos na calçada, as gotas de chuva, gordas, que se infiltram por
um rasgo na capota, o meu desejo fervoroso de falar com ela, que
permanecia estática como uma cariátide no Erecteion, o espirro
provocado pela gota contínua na minha cabeça, impossível de
evitar porque a minha mãe não me deixava mexer. Vem o espirro.
«Cataplasma… A menina vai constipar-se outra vez.»
O perfil clássico da minha mãe, esboçado pela perfeição da
testa e do queixo, corrompia-se no seu nariz, violentamente
arrebitado, teria cerca de vinte e cinco anos, mas perguntava-me
como teria sido na sua juventude.
Na verdade, ela foi jovem apenas uma vez na vida, e eu
murchei essa novidade numa estocada. Quando ela franzia o
sobrolho, as rugas ondulavam-lhe a superfície da pele, carris sobre
os quais circulava o comboio das preocupações, no qual viajava
eu, causa dos sulcos que hora após hora lhe degradaram a beleza
até a espantarem como a uma borboleta num campo de alfafa
castigado pelo vento das pampas.
A sua preferida era a Lula, a filha mais nova. A loira gordinha,
doce bebé que protegeu toda a vida, e que maltratei tanto quanto
pude. A minha mãe cantava para a sua boneca de roliça lisura,
María Salomé, Lulita; até esses nomes me roubaram, impingindo-
me o ridículo nome de María Micaela, que na minha idade pré-
escolar me deixava um sabor azedo na boca. Primogénita, eu
devia ostentar os nomes da minha mãe, que ela guardou para
oferecer à segunda filha. Para cúmulo dos meus males, eu não era
bonita.
… Sou rebelde e a mãe bate-me, mas bato-lhe com mais força
sem levantar um único dedo. O rebento nos seus braços
protetores, e eu a inventar doenças para caber num quadro do
qual já me tinham desterrado.
Fingia na mesma; ou talvez fossem dores da alma que se
traduzem em mentirosas queixas: «Dói-me a cabeça» ou: «Tenho
os pés frios.»
Tudo isto um fracasso; a mãe bruxa intuitiva descobria o
embuste, e então uma maldita e nervosa gargalhada, que em
situações difíceis ainda me acomete, sacudia-me o corpo, como se
risse com a garganta de dez mulheres.
Observo de novo a fotografia, viajo naquela carruagem.
Descemos e já na sala do fotógrafo põem-me ao lado de uma
mesinha em cima da qual está a cesta. «Finja que está a pegar
numa flor», indica o homem, suplica: «Sorria.» De mim não
consegue nada. O meu braço pende ao longo do corpo como um
raminho de salgueiro-chorão e não consigo sorrir. Máscara de
tragédia, faço um esgar e desenho um beicinho. Os olhos da
minha mãe têm um brilho terrível quando declara que a fotografia
será um fiasco.
O fotógrafo, amável, compõe uma pequena dobra do meu
vestido e diz: «Cara menina, olhe o passarinho.» Faço uma
tentativa e sai a gargalhada; sinto que toda aquela cena é
estúpida.
A minha mãe ameaça: «Quando voltarmos a casa, direi ao seu
pai tudo o que aconteceu.» Resignada, diz ao homem: «Faça o
que conseguir com esta cataplasma.»
A mãe sabe que nunca conseguirá dominar-me, sabe que sem
dizer uma única palavra considero o ato da fotografia uma tontice,
que leio e escrevo apesar da minha tenra idade, que leio placas e
números nas ruas desde os três anos, sem precisar de
professores; que os rotulo, aos mais velhos, de acordo com o meu
parecer, que faço troça deles, que os detesto. Sabe que estou num
nível muito superior ao de todas as crianças da minha idade, que
engendrou a sua desgraça e a da sua filha predileta. Tem medo de
mim e eu sei-o.
Quando deixámos a sala escura, já não chovia. O ouro do sol
caía a cântaros, estorricando as flores disciplinadas da praça San
Martín, as tílias, as magnólias.
Esse sol tinge de dourado a seda do vestido da minha mãe, que
é castanho com pintas e de saia plissada. Castanhas são as suas
botas de salto alto e, dobrada para cima, a capelina italiana, que
não escurece a tez pálida de crioula distinta. Leva uma bolsa de
camurça macia, tão macia quanto a pele da Lula. O feio, o único
elemento feio é o que arrasta consigo, Chela, María Micaela
Stradolini, a sua primogénita magra e morena, de olhos
esbugalhados.
Nas confeitarias, as crianças livres bebiam e sorviam natas
geladas, cones de chocolate, de frutas vermelhas e cor-de-rosa.
Ninguém as vigiava, e elas, nos balcões, afirmavam-se como
pequenotes de livre vontade, enquanto eu pendia da mão materna
como marioneta furiosa. Teria dado a minha alma por um gelado
saboreado em liberdade, mas ela entrou na confeitaria La Perla
para tomar o seu chá com bolinhos. Detesto chá com bolinhos.
Do passeio, como um trinado, ouço a algazarra alegre dos
emancipados. A minha imaginação ficou presa nos flocos
multicoloridos enquanto o empregado servia o que fora pedido
deixando-o sobre a toalha de mesa onde eu lia, estampado, o
nome da confeitaria.
Depois, lia os rótulos dos frascos, das caixas nas prateleiras, as
marcas dos produtos doces. A minha mãe espumava de ira.
O bule e a caneca de metal fumegavam, os bolos no pires
adocicavam e caramelizavam o ambiente.
Fazendo-me de parva, continuava a ler rótulos, modo de
demonstrar que rejeitava o convite. Ela leu-me os pensamentos:
«Os gelados pioram-lhe a bronquite.»
Os meus brônquios pareciam motores a arrancar, mas um
gelado, que mal poderia fazer a um mal já crónico. A mãe serviu-
me: «Vamos, coma.»
Ela sorvia a delícia dos ingleses, que sempre me pareceu
insossa.
Na água sólida da pedra do seu anelar navegaram os meus
olhos de gaivota solitária, em pleno mar avarento e inimigo, águas
negras de mar profundo, as contas azeviche do seu colar de duas
voltas, dos seus pingentes de ouro.
Mãe, porque não gostaste de mim nem um pouco?
Apontou para a tacinha: «O seu chá está a ficar frio.»
A fumarola exausta já não ascendia da concavidade da loiça,
vencida pela minha obstinação. Fiz dois bochechos, como quando
lavava os dentes, e engoli de um trago o líquido repugnante. Ela
comia os bolinhos com creme, os palmiers retorcidos e crocantes,
enquanto uma música de açúcar caramelizava o ar, chocalho da
minha infância, «La violetera», reminiscência de Charles Chaplin, e
as tímidas flores dançavam com perninhas entre azul e escarlate,
trepando a um céu raso de fim de século, colunetas gráceis,
barroquismo inocente, inocência de capitéis redondos e roseirais
de mel.
Ano de 1925, ainda edénico na cidade de La Plata, capital da
província de Buenos Aires. Tínhamos viajado desde a nossa
fazenda nos arredores só para tirar a fotografia e enviá-la à tia
Angelina, parente paterna, em Itália. Belos tempos, apesar da
amargura que as pessoas da casa me causavam.
Debaixo da mesinha, as minhas pernas dançavam, tontas como
as de Chaplin, uma dança desajeitada que, se fosse em público,
faria rir os fregueses, tal como a que bailava o infeliz Carlitos,
calçado com os seus trágicos sapatões que o ajudavam a fugir
pelas longas estradas depois de ter feito figura ridícula perante a
trupe.
Eu sofria no cinema a ver os seus filmes. Era uma rapariga
chaplinesca, tosca e cómica. Aos quatro anos, decidi que aquele
ator era o meu irmão espiritual.
Ainda hoje me doem os diálogos em mímica, os sentimentos e
os amores expressos por puras pestanas tremeluzentes e
sobrancelhas sofredoras; a pena do diminuto bigode como
mancha de chocolate colado ao lábio superior, a aristocracia do
bufão que mostra o descarnar da caveira mais claramente do que
Hamlet. A família comentava os meus longos membros de
avestruz, os pés grandes que me pesavam tanto quanto pesariam
os sapatos de Chaplin.
A mãe continuava imperturbável — o amuo contido —,
observando a minha falta de apetite e a minha gula por unhas.
«Porca… Daquilo já gosta… Vou pôr-lhe cocó nas unhas, pode ser
que assim goste ainda mais delas.» Sabia dissimular. Uns senhores
lançaram-lhe uns piropos: «Que boneca.» Ela mal corou. Os tipos
devem ter pensado o que a «boneca» estaria a dizer-me: «Coma,
filhinha, estes bolos com creme estão deliciosos.»
Então ela começou a calçar as luvas. Mãos de concertista de
piano falhada por se ter casado antes da sua irmã mais nova. Quis
sempre ganhar. Perdeu sempre.
«Assim que chegarmos a casa direi ao seu pai as figurinhas que
me obrigou a fazer toda a tarde.»
Que figurinhas?
A tentação do riso na sala do fotógrafo, onde fiquei dura como
um sabre e considerei estúpida a promessa do famoso passarinho,
lendo e relendo coisas escritas, que serviam para isso, claro.
A mãe não tardaria a engordar. A gravidez acabaria com os
vestidos justos como fronhas, as saias plissadas, os saltos altos ao
estilo Luís XV.
Eu já sabia de onde vinham as crianças, e tudo o resto, embora
não em pormenor, conseguia deduzir por raciocínio. A minha mãe
achava que tinha a seu lado um monstro.
«A Chela é uma peste», pelo menos nisto as minhas duas avós
concordavam.
Discutem:
— A Lula é bonita como a mãe.
— Não, sai aos Stradolini.
As velhas disputam uma beleza normal, uma bebé harmoniosa
e dócil.
Os meus apodos: «Pernilonga e nariguda.»
Grito-lhes: «Velhas de merda.»
Quero que o meu futuro irmão seja horrível. Talvez seja uma
irmã. Não. Sei que é um varão horrível.
«A Lula não dá trabalho, sabe comportar-se à mesa.»
E não dizem nada sobre mim e isso é pior do que se gritassem
odiosa, rebelde, fedorenta.
Ignoram qualquer qualificativo, e a indiferença magoa-me como
se eu nunca tivesse nascido. Até à quinta, duas horas de viagem,
e o medo: «Direi tudo ao seu pai.»
Já deitei formigas nas fraldas da Lula, a mãe atribuiu a invasão
a um descuido da menina. Pus figuras de animais feios no tule do
mosquiteiro: répteis, hipopótamos, manadas de seres
antediluvianos tiradas das páginas brilhantes e coloridas de Caras
y Caretas. Chora quando a belisco, ou aguenta a minha picada de
vespa fingindo dormir. Odeio-a. Tenho dois anos de avanço sobre
a minha irmã e estou a fazer obstinadamente outra inimiga.
Embora a noite esteja quente, sinto frio. É o frio que superei
apenas uma vez em toda a minha vida. Sinto uma dor no peito. É
a dor que também só superei uma vez na vida. O portão de ferro
range e começamos a entrar no território da amargura.
O meu pai, como sempre, lê à secretária enquanto fuma o seu
cachimbo de espuma do mar, tão leve. Os seus correligionários
acabam de o agraciar com um cargo. «Talvez esteja bem-
disposto», digo para mim própria. A mãe beija-o ao passar por
ele. A tonta da Lula: «Mam… mamã.»
— A Chela obrigou-me a fazer toda a espécie de figuras.
— Vá para o seu quarto sem jantar.
Para mim, não é sequer um castigo. Atiro-me para a cama e
choro, pelo meu pai já chorei muito. Nunca por ela. Molho a
almofada com lágrimas de raiva, quero morrer.
De manhã inventava ocupações, criava fantasias com os
objetos, imaginava personagens, sendo a protagonista de mil
façanhas. A minha psique e o meu corpo, ambos entidades
integradas em harmonia, moviam-se em paisagens idílicas, um
pouco verdadeiras, um pouco inventadas. Não gostava das tarefas
domésticas. Bem, sim, é um prazer lavar a loiça fina e os bibelots
da cristaleira da minha mãe. Deitava uma grande quantidade de
sabão numa enorme bacia, um verdadeiro sincelo de neve
saponária, e com um trapinho limpava peças delicadamente
esculpidas, pequenas obras de arte em porcelana, cristal de
Murano, porcelana da Áustria, Alemanha e França. A minha mãe
adorava aqueles bibelots. Agarrava-se a esses universos mortos da
ourivesaria para escapar ao seu mundo doméstico de pianista
falhada. Eu lavava a faiança inglesa, os monges orientais, as
máscaras venezianas iridescentes, tão misteriosas com os seus
pormenores de ouro infiltrados, as gôndolas navegantes do Lido
no mar Adriático. E na grande bacia espumosa surgiam à tona
paisagens sob o meu comando de lavadeira.
«Cuidado, são recordações… Não percebo por que razão se põe
a fazer isto», soluçava a minha mãe.
Eu continuava com o meu trapinho, tornando a limpar as
esculturas, as molduras, as diminutas assinaturas que
autenticavam esta ou aquela proveniência, as datas antigas. E
passava outra vez o pano, depois de o ter ensaboado bem, sobre
copos, pequenos frascos, ânforas, garrafões napolitanos de vinho
cujo sangue precioso circulava vivo mesmo depois de esvaziado,
como rasto de um pequeno pirilampo. Enquanto fazia o trabalho
que tinha escolhido de livre vontade, imaginava a Europa e a Ásia,
transportava os continentes para o ar daninho da quinta. A minha
capacidade intelectual já me permitia ler História da Arte, a
Europa já era a minha meta. A vigilante suplicava: «Cuidado, são
recordações.»
Eu esbarrava deliberadamente numa aresta de um móvel ou,
com uma imprecisão ponderada, punha uma chávena que
titubeava em desequilíbrio por falta da base e, quando estava
prestes a cair, apanhava-a em pleno ar. A minha mãe sofria.
Camelia Obieta, mais do que amiga do meu pai, gritava: «Como
é que podes deixar a fedelha mexer nos objetos da cristaleira?»
Durante os trabalhos de casa eu costumava fazer pequenas
peças de teatro, uma das quais, intitulada Falsidade, era
protagonizada por Camelia Obieta. Não conseguia perceber como
é que a minha mãe, sabendo disto, o tolerava. Opinava: «A minha
mãe é tão indecente como eles», e às vezes, para me conformar,
dizia a mim mesma que talvez apenas eu tivesse reparado nisto.
Com o tema «Camélia» em mente, lavei a tampa da terrina da
sopa onde uma bela paisagem mostrava o golfo de Nápoles. Ali
estavam Capri, as suas árvores esparsas, o céu esplêndido sobre a
marina, Santa Lucia e a Rocca della Madonna. De repente, o
Vesúvio explodiu. Vi nuvens de fumo e rios de lava que corriam e
queimavam, e fendas horríveis na crosta terrestre: o topo foi
arrancado e estilhaçou-se.
De uma costa distante, ouvi as Górgonas: «Quando o seu pai
chegar…»
Fiquei petrificada. Sentia-me impotente como o herói que
perdeu o seu escudo e a sua espada; dos meus calcanhares, como
folhas mortas, caíram duas asinhas. Estava sozinha à porta de um
orfanato, mas não chorei. Recolhi os pedaços centenários, julgo
que os beijei. Senti que o meu peito também se despedaçava, e
tossi, os meus brônquios pareciam dois motores.
Como tinha lido sobre o banquete dos deuses, sentei-me à
mesa e ouvi as horas abrirem as portas do medo: meio-dia e
meia; uma hora; uma e meia, e assim sucessivamente até às
quatro horas, quando o meu pai chegaria.
Deitei-me sobre a raiz de um salgueiro. Não comi. Do meu
lugar, ouvia as conversas tolas da mãe e de Camelia. Tinha a
esperança indecente de que o pai se esquecesse de mim ao ver a
mulher fatal. A Lulita estava a almoçar na sala de jantar. Eu
espiava e via um único prato sobre a toalha cor-de-rosa e os
talheres de prata que tinham pertencido à minha mãe em criança,
a Lula usava tudo com muito boas maneiras.
Na minha infância nunca consegui comer com talheres, comia
com as mãos para acabar mais depressa, para pôr fim àquilo e me
dedicar a outra coisa. «A Chela é um animal», diziam, e com isso
não me ofendiam. Eu gostava de animais, aquilo não me ofendia.
O meu pai comentava: «Ela pode ser muito inteligente,
sobredotada, mas come como um porco.»
Agora eu mastigava ervinhas porque tinha sede. A minha
barriga ardia e levantei a camisa; descobri manchas vermelhas no
ventre, como se as vespas tivessem andado por lá a picar.
Apercebi-me de que estava doente e uma alegria selvagem
apoderou-se de mim. Eles iam finalmente dar conta de que eu
existia, de que era suficientemente humana para adoecer como as
outras crianças. A febre alta secou-me a garganta e os meus olhos
lacrimejavam. Adormeci enquanto pedia aos deuses para ter
varíola.
O meu pai chamou-me.
Acordei. Fui ao escritório. O meu pai fumava e não lia; não se
dignou a virar o seu cadeirão para mim: «A menina fez estragos,
partiu uma peça de coleção que a minha mãe, a sua avó, ofereceu
à sua mãe quando nos casámos, cometeu um crime contra a
beleza.»
Respondi com um pio de pássaro fedorento. «Cale-se, é má e
rebelde como um demónio, não parece minha filha nem da sua
mãe.»
Piar não é falar.
A minha mãe e Camelia vieram e repararam na minha
vermelhidão.
— O que é que se passa com esta rapariga que a faz ficar tão
vermelha?
— Era só o que faltava, estou grávida de três meses e, se for
rubéola, coitada de mim e do meu menino…
— Será que é sarampo?
— Ela já teve.
— Varicela?
— Rubéola!
— Talvez não a apanhes.
— Teria de perder a criança.
Eu estava nua como uma boneca de celuloide e eles
auscultavam a minha nudez infantil. Pensei que teriam
enlouquecido: sendo eu a doente, porque é que se preocupavam
com a futura criança?
Confinaram-me no sótão, juntamente com a Sara; ali passei
todos os meus males. Naquele sótão, criei raízes para sempre.
Pela janela estreita via o rosicler crepuscular, cuja cor era a
mesma do doce de pêssego que recomendam aos doentes.
Marmelada e compota por dentro e por fora, e a minha constante
vontade de vomitar. A Sara traz um penico e diz: «Vomite.» A Sara
é negra e parece feita de plástico, por mimetismo perde-se nas
sombras da sala e eu fico sozinha no naufrágio.
A Sara e a papeira; a Sara e o sarampo; a Sara e a escarlatina;
a Sara e a varicela, e agora ao lado das máculas ardidas e
ardentes.
A Sara e os pesadelos que transformam a casa num cone
quebradiço para gelados de morango, ou para que surjam os
espantalhos ensacados que correm pelo sótão e caem na minha
cama, anões macrocéfalos de dentes pontiagudos e olhos de ovo
cozido.
Grito.
«Não se assuste, é a febre.»
Vem o médico: «Deixe ver a sua língua, minha filhinha…»
E o diminutivo emociona-me. Choro. Mas o médico não repara,
pois a minha doença produz lágrimas. Mas eu sei que choro pela
novidade de uma ternura.
— Um gelado, doutor, um gelado de fruta…
— Sara, dê-lhe um grande gelado, vai fazer-lhe bem. — A Sara
pergunta pela minha mãe.
— A María Salomé preocupa-me, esta doença no terceiro mês
de gravidez…
— Pobre senhora.
— Aconselhei que abortasse, seria a coisa mais prudente a
fazer. Mas agora eles estão com o padre e a Igreja não quer ter
nada a ver com abortos.
Da minha cama eu fazia deduções.
Curei-me. Como os bichos do pântano, deixei o meu covil e saí
para o campo.
A Sara odiava-me por causa da minha mãe. Antes, quando a
Sara gostava um pouco de mim, eu tomava banho. Agora evitava
esse incómodo. Com o meu pijama agarrado ao corpo, corria pelo
campo. Descia as escadas a deslizar sobre o corrimão, como um
carro de corrida. As minhas trancinhas despenteadas, atadas com
fitinhas, dançavam nas minhas costas. A saúde era uma planta
que afundava as raízes no lodo, e uma felicidade selvagem
abrilhantava o meu céu.
Floridas, as árvores frutíferas já se transformavam no
verdadeiro ser da fruta que guardava a semente para outra
estação; os pessegueiros, as tangerineiras do Oriente, as
romãzeiras do Sul de Espanha, as parreiras americanas chamadas
«chinche», tão suaves no cacho firme: e as ameixeiras temporãs
que derramavam a fruta nos caminhos, pintando-os de sangria.
Até à próxima estação, com a explosão melada das urzes e as
suas grossas lágrimas de ouro açucarado, tudo aquilo percorria
eu, desgrenhada e livre. Suja e manchada, gozava de uma
independência sem limites. E trepava às árvores frondosas, tão
limpas, aos salgueiros, cuja seiva cristalina é um pranto que pede
um lenço verde para se enxugar; ao choupo tão hirto e ao ainda
mais hirto e fino cipreste. Corria pela minha terra bonaerense,
tapete queimado em breves trechos com cardos vermelhos e azuis
como galos vegetais, a trama de florzinhas insignificantes e
emaranhadas, formando mantas provençais junto ao campo
coberto de trevos.
Assim era a minha propriedade edénica.
O meu bisavô amava aquela terra com paixão italiana. Era
engenheiro agrónomo. Sabia mandar porque compreendia os
obreiros.
Plantou ele próprio as árvores, para que os seus descendentes
se lembrassem dele e o imitassem.
Conheci-o num retrato a óleo que ainda está no quarto onde
faleceu.
Deixou um livro de memórias. Não tinha boa opinião do
camponês bonaerense. «Os locais são arrogantes e contentam-se
com biscoitos, chá-mate, assados e vinho, e custa-lhes vergar o
lombo», disse, entre outras coisas de igual jaez. Exigia demasiado,
e os seus trabalhadores não gostavam dele. Para ele, o campo era
um semideus que urgia adorar e servir a toda a hora, fosse noite
ou dia.
Foi lacónico como um dório, frugal como um estoico.
O meu pai herdou algo deste interessante indivíduo, mas o meu
pai era cruel, e sei-o por experiência própria, cruel e hostil. O pai
do meu pai, o meu avô, viveu em Paris toda a vida, esbanjou
tanto quanto pôde sem chegar a derreter os cofres que o tenaz
imigrante enchera. As mulheres da minha família eram velhas de
medo e preconceito. Os meus parentes maternos, de San Juan,
limitaram-se a plantar a árvore genealógica, que não serviu para
um pentelho.
Estávamos em pleno verão, e eu redescobria um mundo. Os
objetos e os assuntos entregavam-se-me, e assim eu apreendia
novas dimensões. Resolvi arrumar o que me rodeava e dar a cada
objeto e a cada assunto um lugar específico, de acordo com a sua
importância e substância. Resolvi moderar a minha imaginação.
Raciocinaria o mais logicamente possível.
Eram as minhas férias do pré-escolar, depois entraria no
primeiro ano. A professora, conhecedora da minha capacidade
intelectual, aconselhou-me a ingressar no segundo ano, para não
perturbar os outros. «Como é que vai estar no primeiro ano, onde
se aprende o bê-á-bá, se já lê e escreve e sabe a tabuada?»
Nesse verão, chegou à quinta a minha avó de San Juan com o
meu primo Arnaldo. O Arnaldo era tão branco que se fundia nas
rendas da velha tanto como a Sara na escuridão do sótão. O
imbecil vestia umas calças de veludo e tinha num dos bolsos um
elástico para atirar aos pássaros. Assim que saiu para o pátio,
ameaçou a paisagem. Os pássaros piaram e os cães uivaram.
Soube que seríamos inimigos para sempre. «Parece um
inglesinho», disse a avó, e levantou-lhe um pouco as calças para
mostrar uma perna pálida e repugnante.
«Obrigo-o a trazer os cremes de Paris, não gosto de pessoas de
pele morena e o menino pode queimar-se com este sol.» Pelo
canto do olho, a velha olhava para a minha firme pele de indígena,
para o meu cabelo despenteado, para os meus chinelos
enlameados, para a minha aparência desastrosa. Aproximei-me
como quem não quer a coisa e sussurrei ao ouvido do rapazinho:
«Mariquinhas.»
A avó preparou a repreensão:
— A minha filha não ficará bem, porque a peste que a menina
lhe passou vai dar frutos, e não dos bons.
Decidi chocar:
— A mãe vai fazer um aborto.
Apressadamente, a velha informou o menino:
— As crianças, meu amor, vêm de Paris, ou os pais encontram-
nas dentro de repolhos.
O menino:
— Gosto mais das que vêm de Paris.
A avó acrescentou:
— Sim, meu amor, meu querido, são as cegonhas que as
trazem.
Acrescentei:
— Velha burra, as cegonhas são holandesas.
E de seguida expliquei ao meu primo como as crianças nascem
e a avó desmaiou.
Quando fiz dois anos, a minha mãe estava grávida da Lula.
Nessa altura, uma senhora apareceu lá por casa com uma mala de
couro. Eu brincava nas traseiras com colheres e um pedaço de
metal, fingindo que tocava xilofone.
Alguém me disse que a minha irmãzinha tinha chegado dentro
da mala, mas eu sabia que lá dentro só havia instrumentos
cirúrgicos.
Recordo-me, quando a Lula viu a luz, entre as notas
improvisadas do xilofone, do grito desesperado de um ser
despertado à força, obrigado a trocar uma suave serenidade pelo
estrépito do mundo.
Agora, depois da Lula, nasceria outro irmãozinho, porque o
padre disse: «A vontade de Deus não pode ser desfeita», e a
minha família respondeu: «Ámen.»
O complexo de culpa dava-me calafrios e a minha pele eriçava-
se ante o enigma da minha doença e das suas consequências para
o bebé. A minha carência de afeto aumentou quando fiz cinco
anos. A Sara pôs-me de lado. Cuidava de mim sempre que era
preciso, mas por obrigação. Os objetos da cristaleira foram-me
proibidos.
Encaminharia a minha vida noutro sentido. Passaria a procurar
tesouros escondidos na terra. Estava a ler a vida e obra de
Florentino Ameghino, e decidi imitá-lo, carregando uma trouxa ao
ombro em busca de coisas extraordinárias. Seria «A Louca dos
Ossos».
Ajoelhada na terra, raspava-a, fazendo buracos, e o odor que
dela emanava, e as mil bocas que nela se abriam, engolindo
matéria orgânica e devolvendo outro elemento, explicaram-me o
conceito de simbiose, e disse para mim mesma que nada se
perde, que tudo se transforma, chegando à conclusão de que não
existe nada mais desperto e ávido do que a mãe terra de
aparência inerte. Naqueles dias, a minha obsessão por achados
conformava-se com pedrinhas coloridas, cascalho, vidros, raízes,
insetos ressequidos pelo sol. Com a minha pele a cada dia mais
escurecida, transformei-me numa boneca de terracota.
A Sara deixava perto da minha toca uma sanduíche de presunto
e queijo e um copo de sumo que quando ficava morno sabia a
xixi. Por vezes comia a sanduíche, e no guardanapo de papel que
a envolvia escrevia infalivelmente: «O xixi é para a negra.»
O meu primo começou as depredações de fauna e flora: caçou
uma cria de coruja. A pedrada feriu o animalzinho numa asa e o
tarado divertia-se a sacudir a corujita pela asa semiarrancada.
Jurei que um dia o mataria.
Fi-lo, de certo modo, muito tempo depois. A corujinha era uma
cria pequena e cinzenta com olhos felinos. Decidi dialogar com o
asqueroso.
— Dou-te vinte centavos pela coruja.
— Trinta ou mato-a.
— Dou-te quarenta, depravado. Dá-ma.
— Dá-me os quarenta…
— Primeiro dá-me a cria.
Arrebatei-lha de um puxão, o idiota perdeu o equilíbrio e pisei-
lhe a mão. Depois, com toda a minha alma, dei-lhe uma paulada
na cabeça. Ele chorou enquanto chamava pela avó.
Perdi-me entre o capim alto com a minha ave: «Vou batizar-te.
Chamas-te Bertoldo.»
Somaria outro habitante ao meu sótão onde já viviam os
gatinhos e a gatona, e também a Josefina, a lagartixa. Eles
comiam muitas vezes a minha comida e eu debicava-lhes as
migalhas; eles tinham sempre fome; eu, às vezes. E embora
alguns duvidem disto, tínhamos conversas muito bonitas naqueles
maravilhosos serões.
No sótão da quinta, que eu imaginava torreão ou miradouro
com vista para as pampas e virado para as barracas de trabalho
dos portugueses floricultores, discorria com os meus inquilinos, e
eles prestavam atenção e reagiam conforme as inflexões da minha
voz.
«Ninguém é dono de ninguém, se ficaram é porque me
escolheram.»
A gatona discutiu com o Bertoldo e foi para o terreno bravio
com as suas crias. Costumava visitar-nos com as criaturas já
crescidas.
Certa noite, ouvimos um gemido. A Josefina, já velhota,
expirou. Sepultei-a ao pé de uma roseira. O Bertoldo instalou-se
na estante dos livros, como um candeeiro, como um minúsculo
farol, a sua cabeça girava para trás, um espectro cervical, bico de
castanholas.
«Hu… Hu… Hu…», cumprimentava-me.
Aprendeu a descer as escadinhas em caracol, a voar pelo janelo
e a esperar por mim lá em baixo. Partilhávamos quaisquer
alimentos e estávamos magrinhos mas muito contentes; as nossas
almas estavam bem nutridas. Com ele festejei o meu quinto
aniversário.
Pena que tenha afrouxado a minha relação com a Sara.
— Sara, que dia é hoje?
— Vinte de dezembro.
— Não te lembra nada?
— É um dia como todos os dias do ano, 20 de dezembro de
1926.
Eu tinha entrançado uma ponte com fios de prata, ou seda
como nas gravuras japonesas, entre a minha solidão e a negra, e
ela cortou-a de uma tesourada. Comecei a cantar: «Os negros
cheiram a tabaco podre.» Ela entristeceu-se e eu prossegui: «Para
mim, os negros foram feitos de cocó e xixi.»
E tal como eu fazia cinco anos, notei que ela de repente fez
quinhentos, levantou-se da sua cadeira de verga e como que
fatigada por um atavismo escravo, secou uma lágrima que lhe
aclarou a pele.
Com a Sara, morria a minha infância.
Nunca mais voltaríamos a conversar uma com a outra.
Inaugurei a minha postura intelectual, a minha idade insensível
para com as gentes que desdenhei, porque foi isso que elas me
ensinaram.
Apesar de tudo, da minha atitude de indiferença, numa noite de
extrema solidão bebi o desinfetante bucal para me suicidar. Fazia-
o pela Sara, para que sofresse depois da minha morte. Pôs-me
diante da pia da casa de banho e ordenou-me: «Vomite.» Eu não
conseguia, e ela estava prestes a explodir: «Enfie os dedos na
garganta e vomite.»
Vomitei. A minha orgulhosa tentativa de suicídio escorreu pelo
ralo sem honra e sem graça. Andei enjoada durante um mês, mas
não me queixei.
Na companhia do Bertoldo, éramos dois alegres mendigos do
campo. A idílica agrimensura proporcionava-nos tanta beleza e
também achados para guardar na bolsa, desde um pôr do sol até
um tijolo com uma inscrição burilada, «Viva a Santa Federação»,
berlindes e machadinhas, astrágalos para o jogo dos ossos,
vasilhas de gaúchos, esporas gastas, moedas caídas de cintos
crioulos, algumas de prata, paus de antigas lavadeiras para bater
as roupas.
Esvaziávamos a bolsa no sótão. Disse ao meu camarada:
«Juntarei isto à “Louca dos Ossos” “e Afins”.» Fomos até ao lugar
onde havia uma antiga construção, entrámos nos quartos sem
telhado e com paredes escoradas e semidestruídas. Perigosas.
Trepámos à atalaia já fragilizada, húmida, que parecia oscilar. O
«Hu… Hu… Hu…» do Bertoldo vagueava pelos telhados das
barracas, e os portugueses persignavam-se. Naquela arcaica
construção havia uma cave, descemos e encontrámos barricas
bordalesas estripadas com a palha de fora como tripas, garrafões
de odor azedo e um pouco de vinho no fundo; todas as bordalesas
e garrafões exalavam aromas concentrados de licores muito
envelhecidos, e dei-me conta de que estávamos numa adega. Nas
proximidades, encontrámos caveiras de bovinos que antes eram
usadas para as pessoas se sentarem.
Naquele lugar da antiga construção removia os ladrilhos
vermelhos de um pátio com picareta e pá. Dali saltavam bichinhos
que o Bertoldo devorava; enquanto eu o via comer aquelas
coisinhas vivas, pensava em Deus a alimentar-se assim, impassível
enquanto nos almoçava. Sem prescindir do meu natural
paganismo, considerava a possibilidade de um deus único.
Observando aquele lugar, concluí: «Deve ter sido o edifício
principal da quinta, a sede da propriedade.»
Disse ao Bertoldo:
— Porque é que não terão aproveitado estas estruturas para
construir a nova casa?
— Hu… Hu… Hu…
Eu pisava os ladrilhos com passada firme de soldado e o
Bertoldo ia saltitando de uns para outros. De súbito, um deles
cedeu. Apoiei o pé com força e surgiu um buraco bastante
profundo. Hesitei antes de enfiar a mão. Depois enfiei a mão, o
braço até ao cotovelo, e o tato denunciou algo frio mas
inanimado; não era sapo nem réptil, mas sim uma coisa com
relevo, talvez uma estatueta. Retirei o objeto e verificámos que se
tratava de um pequeno conjunto escultórico, muito tosco, que
representava uma família de monstros cabeçudos.
Lembrei-me de As Meninas, de Velázquez. Disse ao Bertoldo:
— Estão no Museu do Prado, em Madrid.
— Hu… Hu… Hu…
O casal de pais não era tão espantoso; as crianças eram o
elemento terrível.
Faltava um pedaço à escultura. Continuaria à procura dele.
Tornei a enfiar a mão, o braço até ao cotovelo, e extraí de lá uma
chapa de metal com a inscrição: La Angelina.
Caíra sobre nós uma noite de veludo e lua cheia. Sexta-feira.
Sentimos medo e, como os órficos, regressámos à superfície,
sem olhar para trás na ponte que separa o mágico do banal e
comum.
Íamos ambos tensos e duros, apontando verticalmente para o
mistério que vagueia, como neblina, entre o céu e a terra.
Entraríamos, como sempre, na casa pela porta de serviço,
trepando para o sótão pela escadinha em caracol, com a nossa
bolsa cheia. Eu estava orgulhosa do meu valor por ter enfiado a
mão e o braço até ao cotovelo no abismo. O Bertoldo sentou-se
na estante e eu fui lavar-me na bacia vertendo água da jarra: por
ter medo das pessoas da casa não ia à casa de banho principal.
No nosso sótão havia uma, pequenina. A comida estava na
bandeja de servir, junto ao copo com refresco.
A Sara chamou:
— Está aí?
Respondi:
— Hu… Hu… Hu…
— Não se faça de engraçadinha e desça, que o seu pai quer vê-
la.
Imersa no pânico, senti que os esfíncteres não me obedeciam e
que, lenta e ardente, a urina corria pelas minhas pernas. Uma
agressiva e ácida dor de estômago dobrou-me, transpirei por
todos os poros. Gelada como uma planta em agosto, julguei ter
adoecido de súbito. Mas obedeci na mesma.
O meu pai lia e fumava como sempre. Abriu as mandíbulas
bigodadas e barbudas, aguçou os olhos de basalto, dobrou o
jornal, fez várias espirais de fumo. Senti que a maldita tentação
nervosa me atacava e contive as gargalhadas mordendo as unhas.
— Saiba que tem um irmão. A sua mãe pariu há duas horas.
— Hu… Hu… Hu…
— O que está a fazer?
Não comunicava com mais nenhum ser além do Bertoldo. E
corei porque a palavra «pariu» me deu vergonha.
— A menina é muito inteligente, é um monstro de saber, por
isso informo-a sem rodeios que a sua mãe pariu.
Atacava com vantagem, como sempre, e eu via-o dentro de
uma moldura vermelha e odiava-o. Uma aura esverdeada
inundava o sítio. Nós, os Stradolini, não nos amávamos.
A moldura vermelha que rodeava o meu pai flutuava, e ele
estava dentro dela como uma imagem esquisita que não tinha
nada em comum comigo. Jorros verdes maculavam-no,
salpicando-o. O meu pai não estava feliz com a chegada da nova
criança. O meu ódio crescia com fragor.
Disse:
— Vejo que não tem nada a dizer, que não quer saber de nada;
pode retirar-se.
Fugi da caverna do barbado-barbudo-bigodudo e grandíssimo
filho da puta do meu pai, subi a escadinha em caracol, e no sótão
pus uma vela no castiçal de bronze, cujo pavio iluminou a
pequena escultura que descobrira, com um misterioso resplendor
que incutia um aparente movimento nas personagens do grupo.
Os anões, de dentes afiados, mastigavam a hora. O Bertoldo
olhava para tudo com grande preocupação. A Sara subiu para ir
buscar o tabuleiro e o copo.
— Como é que se chama o meu irmão?
— Juan Sebastián.
Na penumbra que a luz do candelabro aureolava como delicada
bordadura, disse ao Bertoldo, apontando para o anão mais feio:
— Será assim?
Abanou a sua cabecita redonda e disse um único «Hu…».
Agora, uma aura diferente envolvia os objetos do sótão, uma
espécie de nuvem lilás flutuava e quase nos tocava. O Bertoldo
também reparou nela. Guardada num canto, esquecida e coberta
de pó, estava a harpa da minha bisavó que, como se uma mão de
seda a pressionasse, emitiu uma espécie de gemido. Vi, como se
veem as coisas debaixo de água, uma mão com dedos enluvados
com dedais de ouro a beliscar as cordas. O Bertoldo virou a
cabeça naquela direção e arrulhou. Aproximei-me da harpa e
toquei nas cordas. Um roçar muito suave acariciou a minha mão,
o meu braço até ao cotovelo, e notei que despertava na minha
alma uma adormecida nota de amor, de carinho familiar e caseiro.
Vibraram pela primeira vez vivências desconhecidas e
descartadas nalgum canto da minha existência ruim, e a
esperança de um resquício de companhia, de calor, de
humanidade encheu-me de um prazer estranho. Sim. Deveria
haver um universo para os desesperados, para os abandonados.
Para os bichos do sótão. Dormimos sem medo até ao amanhecer.
Não queria encontrar a minha mãe por nada deste mundo.
Teria dado tudo para não encontrar o meu irmão. Mas adorava os
nomes do menino e repetia-os: «Juan Sebastián, Juan Sebastián.»
Repetia-os no sótão e no campo, ao sol, junto às altas e frescas
alfafas. Repetia-os no cimo de árvores frondosas, tão limpas, os
salgueiros cuja seiva cristalina é como um pranto que pede um
lenço verde para se enxugar, o choupo tão hirto e o ainda mais
hirto e fino cipreste.
Como se quisesse impregnar a planície fina com aqueles
nomes, pronunciava-os enquanto corria pelo tapete de vegetação
queimado em pequenos trechos, com cardos vermelhos e azuis
como galos, sobre a trama de florzinhas espalhadas junto ao
campo coberto de trevos. Cantava «Juan Sebastián» no meu
território, no meu éden, forma de o partilhar com alguém que
ainda nem sequer tinha visto.
E não partilhava com Juan Sebastián apenas a paisagem, mas
também os achados: tijolos com inscrições, berlindes e
machadinhas, moedas de prata, paus de lavadeiras, ossos sem
fim.
Éramos Bertoldo, o fantasma e eu.
Mostrámos ao fantasma o buraco do velho pátio vermelho de
onde saiu a pequena escultura e a chapa da antiga La Angelina, e
agora éramos três os exilados, mendigos, vagabundos a regressar
à superfície sem olhar para trás na ponte que divide o mágico do
banal.
Íamos, os três, tensos e duros, apontando verticalmente para a
lua bruxa, vermelha e crescente.
Eu estudava o catecismo na capela porque tinha de fazer a
primeira comunhão. Tornei-me ajudante do padre. Recebi um livro
de História Sagrada e nomearam-me catequista. Intrigava-me a
pequena lua de pães ázimos no sacrário; enfim, a maravilhosa
trama de contos e histórias que a nossa preparação incluía não me
convencia.
As solteironas, catequistas a sério, começaram a ficar furiosas
comigo, porque segundo os miúdos eu explicava tudo de modo
divertido, ao passo que as velhotas não. Mas apesar de fazer
perguntas estimulantes, às quais eles respondiam com prazer, tive
de desistir porque as crianças mais velhas me atiravam bolinhas
de papel humedecido com saliva e amendoins.
Atiravam-me essas porcarias e eu respondia-lhes com palavras
tão insultuosas que elas ficavam enlouquecidas e duvidavam da
minha natureza, porque nas bulhas eu era mais brava do que os
rapazes. Destaquei-me. Acabei esquecida sem vergonha nem
glória. Pensei ter encontrado a paz.
O rebuliço irrompeu por causa do padre Luzón. Luzón cheirava
a sabão amarelo e a água-de-colónia barata, e as beatas eram
loucas por ele. Diziam: «É um amor» e lutavam pela confissão,
fazendo fila diante do confessionário. Ele, acantoado naquele
habitáculo semelhante a uma catedral de madeira em miniatura;
elas, ansiosas por descarregar os seus pecadilhos.
Ao fim do dia, Luzón saía de lá mais morto do que vivo, pálido e
macilento.
Já se tinha chateado comigo por causa das Filhas de Maria e
das minhas observações sobre ele. Uma tarde, entrei no
confessionário e senti um forte odor a lixívia, semelhante ao
cheiro dos carneiros em época de cio. Deduzi que Luzón se
excitava com as catequistas e se masturbava. Pensei:
«Grandíssimo filho da puta, está sempre a chatear-nos com o
ramerrame sobre as más ações e na verdade é um punheteiro do
pior.» Este pensamento fulminou-me, causou-me um problema
que resolvi à minha maneira.
Tive de me confessar a Luzón, que naturalmente me
perguntou, como repetia a todas as crianças:
— Minha filha, praticas más ações? Sozinha ou acompanhada?
Eu tinha discutido com as Filhas de Maria sobre a masturbação
em idade imatura; carecia de necessidades afetivas, nunca tive
amor, o meu sexo dormia bloqueado pela minha capacidade
intelectual tão sobredotada. Vira muitas vezes os rapazes
masturbarem-se e considerei aquilo normal, deixei passar. Na
capela, garantiam que era pecado mortal.
Com voz baixa mas incisiva, respondi a Luzón:
— Isso a que o senhor chama más ações é normal numa certa
idade, mas o que o senhor faz quando se excita com as beatas é
nojento.
Uma catequista, a senhora Masselotte, foi incumbida de falar
com o meu pai.
«Dói-me a alma, mas amanhã às quatro da tarde irei à quinta
falar com o seu pai.»
Decidi causar-lhe dor em algo mais concreto do que a alma.
Juanín Grande Pistola, o louco, brandia o seu enorme pénis.
Juanín oferecia aos que passavam o seu único tesouro deitado de
barriga para cima no estreito trilho. Os rapazes incitavam-no,
«mostre, mostre». As raparigas fingiam-se escandalizadas, «vejam
bem, é tão grande». Juanín pedia com insistência, «toquem,
toquem».
A um nível diferente, Juanín e eu padecíamos do mesmo
problema; ele, zero em intelecto e dez em afetividade: e eu, vice-
versa. Éramos dois monstros. Devíamos ter morrido, ou então ter
sido sacrificados por misericórdia. Éramos duas raridades
degeneradas, servíamos de alvo para os atiradores normais.
O louco Juanín estava sempre esfomeado, por isso chamei-o
enquanto brandia a minha sanduíche de presunto e queijo,
sussurrando-lhe: «Masselotte toque toque.»
Falar com Juanín e falar com os animais era a mesma coisa;
compreendeu o que eu disse, devorou a comida e manteve-se
alerta, de pénis na mão.
Aproximei-me da orelha dele: «Dou-te mais se…» Cantei:
«Masselotte toque toque.»
Masselotte descia a ladeira pelo pequeno trilho de Juanín
Barriga Pra Cima, escrito todo em maiúsculas, de tão enorme que
estava aquilo.
Saltou como uma cascavel, e Masselotte ficou debaixo dele.
Juanín esfregava a sua esplendorosa oferta em todo o corpo da
beata sem esquecer a cara e o cabelo, nem deixar sítio nenhum
limpo dos seus esguichos.
Por entre os cardos, gritei: «Não tem vergonha de cometer más
ações com o inocente Juanín Grande Pistola, sua puta solteirona?
Vou contar tudo ao seu namorado, o padre Luzón.» Ela fugiu
campo adentro, como uma desalinhada e impura menina violada.
Nenhum catequista nem catecúmeno tornou a vê-la. Disse para
mim mesma: «Ter-se-á escondido numa catacumba qualquer.» E
desde essa tarde propus-me ganhar todas as minhas guerras
fosse como fosse, com raiva e sem remorsos. Não tinha pelo que
amar o próximo se o próximo me odiava: e, por ser diferente,
quem seria o meu semelhante?
A minha mãe vivia em Buenos Aires com o Juan Sebastián. O
meu pai ficava quase todos os dias em La Plata. A Sara estava
inteiramente dedicada à Lulita, mas também me costurou o
vestido da primeira comunhão, comprou os sapatos e as luvas.
Luzón evitava-me. Eu comungaria sem confissão, no fim de
contas não acreditava em nada daquilo.
No dia 8 de dezembro vesti-me de branco. A Sara ajudava-me a
enfiar o vestido, a pôr o véu de tule; afogada no tubo de seda e
vencida pelo véu, era mosca em leite; «em má hora», maldisse, e
calcei os sapatos nas minhas patas habituadas aos chinelos. A
Sara tinha-me ajudado a disfarçar-me de mosquiteiro.
— A menina não acredita em Deus; então porque comunga?
— Deram-me o livro de História Sagrada…
— Até pode saber sobre Religião, mas não acredita em Deus.
Agarrei no rosário e saí em passada larga. A Sara seguia-me.
— Como vê, a sua mãe não lhe deu o rosário de ouro porque
está a guardá-lo para a Lulita.
O meu rosário de marfim fora da tia Angelina Stradolini de
Caserta, uma tia italiana do meu pai, para a qual me fizeram a
fotografia daquele dia tormentoso.
Naquela altura, a Angelina era apenas um rosário de marfim.
Não sei que palermices murmurava a Sara, dei-lhe um
empurrão e corri até à capela.
Gritou, quase caída no matagal: «A menina é muito má e Deus
irá castigá-la.»
Seguiu atrás de mim, tentando salvar a cauda do véu que se
enredava nas silvas; soluçava lentamente. Eu já ouvia o coro de
meninas: «Oh, santo altar/ por anjos guardado,/ venho a ti/ pela
primeira vez.»
Será que Masselotte sairia do seu covil?
Ela não estava lá, mas a sua amiga íntima aproveitou uma
pausa para dizer: «A Stradolini é a mais feia.» Tinha razão.
Parecia uma avestruz pernuda num lugar nada apropriado a uma
cria de tachã-cinzenta.
«Os pássaros não precisam de comungar»: tive vontade de rir e
saltaram-me as lágrimas pelo esforço de as conter.
Ao receber o pão consagrado, não conseguia aguentar mais,
continuava a ter vontade de rir e quase asfixiei.
Quando os pais beijaram as suas filhas, cheguei à conclusão de
que os meus nunca me tinham beijado.
Ergui-me com violência do genuflexório, e uma farpa maldita
ficou presa na minha cauda, que se rasgou com um gemidinho de
tule desfiado.
«Cataplasma», gritou a Sara.
A título de informação, acrescentou: «A menina é muito
inteligente nos estudos, mas quanto ao resto, não serve para
nada, e em casa chamamos-lhe Cataplasma.»
Mais do que comunhão, aquele foi o meu segundo batismo ou
confirmação. A Sara rebatizou-me: «Cataplasma». Se pudesse, tê-
la-ia assassinado.
Matricularam-me na escola com uma certidão de nascimento
falsa, que indicava a data de nascimento em 1917, e aos oito anos
cursei o sexto ano de ensino, quando, nessa idade, as crianças
começavam habitualmente a escolaridade. Obtinha dez em todas
as matérias e zero em comportamento. As professoras respiravam
de alívio quando, a meio do ano, me promoviam ao ano letivo
seguinte. A minha passagem de ano para ano foi tão rápida que
não pude cultivar amizades.
A minha incomunicabilidade crescia como uma trepadeira
tropical. Comia com os animais, quer dizer, com o Bertoldo e os
bichos do campo, apoiada numa parede, enquanto terminava de
ler o livro que começara na mesma manhã, ou revendo algum
teorema ou silogismo. Nunca usei talheres. Tive a oportunidade de
sair com rapazes, mas a alcunha de «Cataplasma» isolou-me
ainda mais.
Soube que a mãe regressara de Buenos Aires com o Juan
Sebastián.
O meu sótão sobre «a casa das gentes» era o meu refúgio,
agora, e por recear encontrar-me com a minha mãe e o meu
irmãozinho, servia-me de esconderijo quando voltava das minhas
andanças com o Bertoldo.
Tinha saído de cena total e absolutamente, fria, selvagem e
violenta, por isso supunha que o encontro com eles seria
pavoroso. Evitava o horror, sem conseguir especificar qual, mas na
casa das gentes pulsava algo assustador, sístole diástole que me
descontrolava, fazendo-me perder o equilíbrio.
Eu mergulhava no meu mundo de Matemática e Lógica e nos
paraísos e meandros dos Diálogos de Platão. Tecia o meu universo
íntimo com fios de prosápia ilustre, aspirava a uma morte pessoal,
incomum, que me permitisse deixar gravada a minha marca
notável na memória dos outros.
Oh, sim… a morte ao estilo de Rilke.
E como nada se negava à minha capacidade intelectual,
aprendia e aperfeiçoava o francês e o italiano. Deliciava-me com
as palavras de Madame de Noailles e a coleção intitulada «Vita dei
Animali», belissimamente ilustrada, que pertencera ao meu avô e
que levei para o sótão.
Utilizava o tempo que as pessoas normais perdem com a
higiene, o embelezamento da aparência física, o pequeno-almoço,
o lanche, o jantar e outros compromissos e ocupações, ou como
se quiser chamar-lhes, em instruir-me e ganhar cultura.
Tive uma preceptora que foi minha professora e psicóloga,
María Assuri. Examinava-me com os seus olhos cinzentos e
apontava no seu caderno coisas minhas, sobre mim, até que
alguns dos da casa lhe sugeriram que se internasse comigo num
instituto privado.
Em março eu ingressaria nesse instituto para cursar o ensino
secundário. Mas ainda faltava um grande pedaço do verão.
Selecionei bibliografia para levar para o instituto: Rilke, Romain
Rola, Gide, Proust, Wilde; também os poetas franceses Rimbaud e
Baudelaire; revistas francesas do século anterior: e os romances
de Benito Lynch, que vivia em La Plata e era amigo do meu pai.
Quando María Assuri tratou do meu internato — e do seu —, as
gentes da casa passaram para um segundo plano porque decidi
pôr fim a um ciclo vivido. Uma forma de queimar tudo aquilo foi
escrever a minha autobiografia em dois cadernos San Martín, que
incinerei de imediato. Acreditei ter-me libertado através da catarse
pelo fogo.
A Sara dizia:
— Agora que a Lulita já não precisa de mim, cuidarei do
menino.
Eu ainda não conhecia o meu irmãozinho.
Trepando ao telhado do sótão como se fosse uma macaca,
espiava os pátios e parte dos corredores, mas nunca encontrei o
bebé nem a mãe. A única coisa que pesava na minha vida como
responsabilidade era o Bertoldo. Pensava: «Quem irá amá-lo?», e
decidi que o melhor seria o Bertoldo morrer.
Verifiquei a sua longevidade na «Vita dei Animali». Estacou
sobre a página, ensombrando o texto, os seus olhões cálidos
fixados na minha possível crueldade. Expliquei-lhe
pormenorizadamente as razões, as minhas: e disse-lhe sobre a
natureza das gentes da casa; ele compreendeu e envelheceu. Para
apagar a minha atitude maldita, saía para o campo mais vezes.
Deambulávamos por entre as altas plantas de alfafa, pelos trilhos
dourados de folhas caídas e secas que estalavam ao passarmos; o
Bertoldo voava para a copa de um pinheiro, de um salgueiro com
aquele fundo inesquecível de total verdura. Agradava-nos o aroma
resinoso dos incêndios rurais gerados por um pequeno foco e que
depressa alastravam, deixando em certos trechos uma cor
castanha, ouro velho e carvão.
Estes incêndios são bastante comuns em janeiro e fevereiro, e
podem ser causados por um vidro partido ou a beata de um
cigarro. As chispas, nos limites da fazenda, colavam-se à pele e
irritavam-nos os olhos. Tínhamos pena das árvores, vítimas
inocentes, talvez de um descuido, com as suas despedidas
dramáticas em forquilha, como um braço esfomeado que tentasse
deter a chama, e nos talos lenhosos dos gigantes que resistiam ao
incêndio como se quisessem regressar à vida brotavam raminhos
de um verde tenro. A zona da velha Angelina teria sido vítima de
algum incêndio monstruoso?
Talvez a casa tenha perdido o telhado por causa do fogo, ali
estavam os muros sem estuque, ainda verticais, com os seus
pátios de ladrilhos vermelhos onde uma certa mácula sinistra
enlutava a sua estranha lisura como se viesse do além…
O pátio do nosso achado…

Naquele pátio, o buraco abrira a sua cabeça negra. Isso


incomodou-me como se estivesse a fazer pouco da minha cara
pobre e também da minha emplumada companhia, e dei-lhe um
pontapé. Soltou-se um pedaço da laje vizinha.
Continuei a dar-lhe pancadas com o pé e dali saiu um material
corroído e corrompido, aumentando o buraco.
Disse ao Bertoldo: «É um buraco astuto.»
Mordia-nos, e mordia a noite, com as suas extremidades
dentadas.
O calhambeque travou, moendo trevos. Era o carrinho do
italiano da quinta, dom Narciso Gemmi, que se ofereceu para nos
levar.
Perguntei-lhe:
— Esta era a casa da Angelina?
— Julgo que sim. Demoliram esta parte em 1868. O seu bisavô
morou aqui.
— O senhor conheceu-o?
— O meu avô conheceu-o.
Entrámos no carrinho, íamos no assento de couro verde em
direção à casa das gentes, do nosso sótão. Chegámos.
Começámos a subir a escadinha em caracol até ao exílio. O
Bertoldo saltou para a sua estante, eu peguei nos contos de
Hoffmann. Lia em voz alta «O homem de areia», o Bertoldo
piscava os olhões como se neles tivesse entrado areia. O homem
de areia costumava torturar as suas criaturas com alfinetes e
agulhas. Pensei em María Assuri, fui um inseto cravado com
alfinetes no seu insectário, que ela examinava com olhos
cinzentos, imobilizava, classificava, rotulava: «Adolescente
sobredotada; os seus problemas na sociedade elementar e outros
inconvenientes». Consolava-me porque sabia que nós, os
anormais, vivemos pouco, e que o Juanín Grande Pistola tinha
morrido no fim do verão.
A Sara trouxe uma mensagem: «O seu pai diz que hoje a
menina jantará com a família, porque hoje estará connosco a
senhora María Assuri.»
O relatório

Não consigo apagar da minha memória a cara do Luis insepulto


por obra e graça do amor da sua segunda esposa. Não sei porque
penso na flor asteca. Mas basta de ironias, tenho de aceitar que
se tratava de algo sublime, embora me doa. Exumo do meu
sepulcro pessoal — do meu baú ancestral — o relatório de María
Assuri:

Espero que a Chela compreenda até que ponto pode ser prejudicada
pela sua total falta de autoconfiança, o seu afã desmedido de
autoaperfeiçoamento e a sua incomum condição de sobredotada. Julgo
que o afastamento da família a favorecerá, porque no instituto de regime
severo talvez consiga valorizar o que é a estadia no seio do lar.
Esta rapariga — agora adolescente — é como um navio difícil de
comandar. Pessoalmente, penso que se trata de um ser excêntrico e
sádico. Expresso esta última ideia porque ela faz tudo o que pode para
agravar qualquer acontecimento, para o tornar mais pesado. Tento
observá-la sem que perceba, e impressiona-me verificar que sou eu a
observada com maior profundidade, com agressividade. Sinto-me
desorientada. Gostaria de despertar alguma sensatez no seu íntimo, na
sua psique, na sua alma ou seja o que for. A Chela não tem sentimentos
pelos seus semelhantes e só gosta de animais.
Neste preciso momento sabe que deve descer à «casa das gentes»,
expressão que ela dá ao piso térreo, e oiço-a ler, aos gritos, uma página
de Romain Rola. Fala para uma coruja. Não reconheço a voz da Chela
naquele vozeirão de homem.
De facto, esta rapariga é desagradável; faz tudo o que pode para
ofender as pessoas, é suja e diz palavrões. Será aquele vozeirão da
Chela? Ou será que algo ou alguém terrível a habita, possuindo-a?
Enquanto cientista, não acredito em possessões demoníacas, a Chela está
dominada por um intenso sentimento de ódio e rejeição.

Vi-a regressar das suas deambulações.


A Sara diz-lhe que desça, por ordem do pai; devia estar a lavar-se,
mas continua a ler:

«Cada um traz dentro de si uma espécie de pequeno cemitério dos


seres amados.
Ali dormem anos e anos sem que nada os perturbe. Mas chega um dia
em que a sepultura se torna a abrir e de lá saem os mortos, sorriem com
os seus lábios descoloridos, contudo sempre amantes à chamada do
amante em cujo seio descansam, tal como dorme o menino nas
entranhas maternas.»

Espio por uma fenda da porta, e vejo que se dirige à coruja, e a minha
pele fica inevitavelmente eriçada quando oiço: «Embora não nos
víssemos com os olhos da cara, víamo-nos com aqueles olhos que ambos
conhecemos, e regressaremos das nossas cinzas para ser o que somos e
caminhar juntos.»
Tenho de interromper isto.
— Chela, tem de se vestir e descer.
— Acha que estou despida?
Apesar do demónio iracundo, tiro um par de sapatos da sapateira,
lustro-os, convidando a Chela a calçá-los. Obtenho apenas esta resposta:

A vida é apenas parte… de quê?


A vida é apenas som… de quê?
A vida é apenas sonho de um sonho
e a verdade está noutro lugar.

— É um poema de Rilke… não é, Chela?


— A senhora é muito sociável, não seria capaz de compreender Rilke.
A senhora, como muitos, balbucia poesias e nada mais.
Saio do sótão. Um pouco depois ela desce, suja, um desastre. Será
que algum sentimento se agitou dentro dela ao ver o pai? Talvez algo
parecido com um sentimento, porque o senhor Stradolini estava muito
abatido.
Disse o pai:
— Sei que estas formalidades a incomodam, mas partirá em breve, é
justo que fique a par de algumas novidades.
O senhor Stradolini aguardava alguma palavra, uma pergunta que lhe
demonstrasse que a filha estava interessada. Mas não.
Continua o pai:
— A menina fez nove anos, mas com o certificado falso
acrescentámos-lhe quatro, o que faz um total de treze, suficientes para
ingressar no Instituto Religioso, onde fará o ensino secundário. A menina
e o Juan Sebastián são a minha desgraça, porque dois monstros são
demasiado para um só pai.
Notei que no interior da Chela algo se agitara, algo escuro, como um
complexo de culpa. O pai prosseguiu:
— No fim de contas, faça o que quiser com a sua vida, se deseja
ingressar no Instituto, ingresse, se preferir outro colégio, diga-o, ou
dedique-se à vadiagem como até agora com essa porcaria de bicho, sua
porca.
Intervim.
— As crianças muito inteligentes são raras, e nunca tive uma aluna tão
inteligente como a Chela.
Os Stradolini não se amam. Talvez o problema fosse a Chela e, com a
saída dela, tudo se resolvesse ou a situação melhorasse.
A mãe entrou com a Lula, sem o irmão que a Chela, suponho,
esperava conhecer. A imagem de sem-vergonha da minha aluna nada
tinha que ver com aquelas duas mulheres.
Disse:
— Os sábios e as sábias são distraídos e não respeitam a etiqueta.
Concentraram na Lula toda a atenção, a Chela perdeu o equilíbrio que
ainda lhe restava. A situação piorou quando chegou a comida, peru
recheado. A Chela desconhece o uso dos talheres. Espeta uma peça, que
salta e voa para longe.
Disse o pai:
— Poderá ser muito sábia, como a senhora afirma, mas à mesa
comporta-se como um animal.
Interveio a Lula:
— Como uma Cataplasma.
E eu:
— Isso pode corrigir-se.
Todos se calaram.

A Chela não comeu nem disse uma única palavra, e apercebi-me de


que nunca falara em família. Incomunicabilidade que ela própria
fomentava, fazendo tudo o que pudesse para chocar com os pais.
Quando serviram a sobremesa, atirou com o guardanapo e fugiu para o
sótão. A senhora Stradolini derramou duas lagrimazitas e depressa se
esqueceu do incidente.
Subi ao sótão. A Chela estava a conferir os seus pertences e a rasgar
papéis, como se cortasse todos os laços que a prendiam ao passado.
Nunca vi uma rapariga tão parecida com uma cigana, e se ela não tivesse
traços tão semelhantes aos da mãe e um temperamento, direi, herdado
do pai, teria pensado que se tratava de uma menor adotada ou agregada
ao grupo familiar, embora nunca assimilada.
Gizou um plano para poupar tempo. A) De manhã, percorrer os
campos para procurar objetos. B) De tarde, ler, escrever, pensar. C) De
noite, destruir tudo o que é inútil, mesmo que seja algo muito querido. O
ponto C preocupou-me. A única coisa querida para a Chela era a coruja.
Angustiava-me uma ideia cruel, e dispus-me a observar, a espiar se fosse
necessário. Certa noite ouvi que o animalzinho espirrava como um frango
moribundo e vi que a Chela lhe punha no bico um pó dissolvido em água,
semelhante a uma aspirina. Depois, um silêncio pesado, cinzento, de
chumbo tomou conta do sótão. A Chela saiu, como sempre, a grande
velocidade, levando um pequeno embrulho; entrei no sótão e olhei pela
janelinha para o campo, ela enterrava algo ao pé da roseira. Lembrei-me
de que ali houvera outros animaizinhos que foram desaparecendo. O
problema seria muito mais grave se esta rapariga se sentisse no direito
de matar. Como cientista, não podia arriscar uma opinião até aprofundar
o caso. Desde o momento do enterro, ganhei aversão, senti nojo daquela
estranha criatura.
Antes de abandonar o sótão peguei em alguns escritos. Li: «As
borboletas enfraqueceram ao vento e a paisagem despede-se de mim.
Cresci para quê? Eu não pedi para nascer. Não me deixarei dominar pela
chamada sociedade de seres normais; se em mim não se cumprir a
evolução que transforma em pessoa um indivíduo comum, pior para
eles… Eu sou um animal sobredotado, lançado ao mundo por erro dos
humanos vulgares. Sou uma divindade zoomórfica. O meu pai diz que
sou uma besta, e tem razão. Agora deixá-los-ei na sua paz imunda com
cheiro a especiarias de cozinha, na sua sala de jantar de loiça fina e
talheres complicados; sobre isso sabem mais do que eu. Já não tenho
com quem dialogar porque o Bertoldo em breve terá morrido e ele sabe-
o, tornou-se taciturno e calado. Sou um escaravelho de barriga para
cima. Farei o enorme esforço de me virar. Antes de partir do Inferno,
falarei.»
Vaticinava a morte da coruja. Senti-me doente. Que venenos
manipulava? Que faria à Lula a qualquer momento, se envenenou o único
ser que amava? Eu estava entregue às minhas imaginações, atitude nada
apropriada a uma psicóloga. A Chela chamou-me para que a ajudasse a
tomar banho no pequeno lavabo, porque não queria descer à casa de
banho da casa das gentes. Receei que tivesse notado o meu estado de
tensão.
É trabalhoso limpar um território longo, embora estreito, que raras
vezes se submeteu à higiene. Despida e ensaboada, ela parecia uma
boneca sem sexo, uma maria-rapaz jovem, magra e impúbere. Foi
cansativo pentear o seu cabelo comprido, que lhe chegava quase à
cintura, frisado por causa das tranças que fazia constantemente. No fim,
ficou uma rapariga simpática desde que mantivesse a boca fechada, não
direi bonita, apenas graciosa. Ou um rapazito travesso, muito moreno.
Alguém perdido na selva e que nunca foi a um cabeleireiro.
Começou a modular a voz, a ajustar o timbre e o tom para não soar
como falsete ou trombone na casa das gentes. Depois de arriar a sua
bandeira de solidão, lia Proust, num número das Revue des Deux Mondes
coligidas pelo avô. Da sua altiva torre de intelectual, queria vencer a
incúria dos parentes. Espreitei a revista por cima do ombro dela. Em
destaque estava a «casa de Madame de Noailles» seguida de um
comentário de Proust:

Vinde comigo ao jardim


ver se germinou a vide,
ver a erva do vale.
O meu jardim tem bosquedos
onde a romãzeira se mistura
com os mais belos frutos;
o ligustro, o nardo, o açafrão,
a canela, o cinamomo, a mirra,
e toda a espécie de árvores perfumadas.

Disse à Chela:
— Seria a Madame de Noailles, pastora de pomares, bela e distinta,
uma espécie de rainha por quem Marcel estava intelectualmente
apaixonado?
Suspirou:
— Hirondelle d’argent.
Encarando-me, perguntou:
— Diga-me, alguma vez serei uma andorinha de prata?
— Talvez — respondi com um certo medo.
— Sabe quem foi a Madame de Noailles?
— Sim, ouvi alguns dos seus poemas.
Ela repetiu algo que eu tinha pensado:
— Acredita que da minha torre intelectual vencerei a incúria das
gentes?
Não soube o que responder «àquela coisa de nove anos».
Insistiu na ideia da andorinha de prata:
— A senhora não foi sincera comigo, nunca serei bonita como a
Madame de Noailles, delicada como «une hirondelle d’argent».
Este diálogo deixou-me perplexa. A Chela, depois, entrou num torpor,
fixou a atenção sonhadora na revista, e quase pude acompanhar a sua
viagem imaginária, a que ela levava a cabo evadindo-se da desgrenhada
feiosa que era e do lugar onde se abrigava como um bicho, para entrar
na residência da escritora, em Chambéry, e conversar com pessoas
importantes, passeando pelos terraços do século XVIII, entre as torres e
os belos parques civilizados à francesa.
De repente, disse:
— Apagaria com uma borracha gigante este campo selvagem, este
azul explosivo, e desenharia o tom plúmbeo «de la champagne»,
derramado sobre os peixes oxidados dos tanques.
Insinuei:
— Chela, com essa voz tão bem modulada, deve descer à casa das
gentes e fazer-se ouvir.
— Não tenho medo deles, descerei.
Percebi que ela murchou enquanto descia, e quando se aproximou do
pai, nada disse.
— A menina viajará até ao Instituto com a Sara no automóvel do
Narciso. Prepare as suas coisas, já levarão a mala à sua pocilga.
Considero que o senhor Stradolini foi bastante inflexível e ríspido, mas
que outra atitude poderia assumir diante do horroroso espantalho que o
insultava com o olhar?
Fui com ela ao sótão e ficámos a observar a chegada do outono pela
janelita; as folhas caídas já tapavam os escoadouros e, por causa das
chuvas e da humidade, das poças subia um vapor pestilento, como um
tule imundo. Na bolsa da Chela, a dos achados, pusemos livros e papéis,
cadernos, pequenos objetos.

Partimos às seis da manhã, e a poucos quarteirões do Instituto


começámos a ver as raparigas, algumas a pé, outras em automóveis; a
Chela, impávida, não demonstrou qualquer emoção. Eu estava mais
emocionada do que ela. No pátio, as freiras verificavam as presenças.
Algumas espiavam para descobrir as antigas educandas e ver caras
novas; as alunas provenientes do ensino preparatório público gozavam de
certas vantagens sobre as que vinham de outros colégios. A Sara e o
Narciso tiraram a mala do carro e foram-se embora no automóvel. A
Chela observava, não sei se com escárnio ou inveja, as raparigas que não
queriam que as mães as deixassem. Algumas choravam. A irmã
preceptora, ao ler o nome da Chela na lista de presenças, disse: «Ah, a
sobredotada.» Ouvimos uns risinhos de troça no pátio; a Chela ardia de
fúria. Espirrou três vezes, como se estivesse constipada. Uma
rapariguinha disse: «Pelo menos espirra como as outras.»
— As meninas vão partilhar o quarto com a Analía.
A Analía era uma loirinha da alta sociedade. Pegou nas suas maletas e
levou-as agilmente para o primeiro piso; a Chela parecia um pouco
desengonçada por causa dos sapatos. Quando a Analía quis beijá-la, ela
estendeu-lhe a mão. E enquanto abríamos a mala da Chela, gerou-se um
pequeno motim à porta do quarto, porque todas insistiam em ver o que o
monstro traria.
Esperariam que, ao abrirmos a mala, dali saltasse um bando de
espantalhos, coelhos, salamandras e duendes, mas apenas saíram trapos
de mau gosto comprados pela Sara na loja do turco.
A Chela não se importou minimamente. A Analía começou a
desembalar um verdadeiro enxoval de roupa assinada na etiqueta por
modistas estrangeiras, incluindo um vestido de festa.
— Não trouxeste um vestido de festa?
— Planeias dançar aqui?
— De onde vens tu? És tola?
A Chela não podia ser sincera naquela comunidade, não podia dizer à
sua colega de onde vinha porque não teria acreditado nela. Compreendi,
com pena, que a Chela levava consigo uma espécie de exílio. Durante o
primeiro diálogo que mantiveram, a Analía qualificou a Chela de «tola».
Tão acertada. A Chela é uma tola genial. (O Juan Sebastián é um tolo
imbecil.) Ela não suportaria aquela comunidade social mais que básica,
secundária e académica. Na verdade, ela não seria capaz de se integrar
em nenhum grupo humano. E ali estava, parada no quarto dos aposentos
partilhados, sem se interessar pelos luxos da Analía espalhados e exibidos
em sua honra.
Comparei-a com uma aranha. Uma dessas aranhas pequenas que
vivem nas paredes esburacadas e que se mantêm quietas até que uma
criança travessa as incomoda. Nesse momento, enfurecem-se e saltam. A
Chela juntava veneno. A estada de Chela no Instituto não durou muito
tempo. As causas: um pouco foi a sua incapacidade de adaptação, outro
a qualidade da instituição, apenas apta para adolescentes normais. A
minha tola genial exigia um tratamento distinto.

Há pessoas como a Chela em número suficiente para que o Estado se


decida a fundar institutos para sobredotados. Para que nasça uma
reivindicação, um clamor. Institutos para sobredotados. O sobredotado é
o anormal mais infeliz porque compreende a sua condição e nisto é
inferior ao intelectualmente menos capaz, que vive feliz da vida. Nos
testes e nas aulas, a Chela obteve sempre dez pontos, sem exceção. E a
inveja das colegas. Eram doze, treze e até quinze anos contra nove.
Para não se aborrecer, quando terminava os testes a sobredotada fazia
os de toda a sua fila. As colegas arranjavam forma de lhe passar a folha
em branco. Depois bocejava ostensivamente, para incomodar. Repito que
a Chela nunca poderia ser sincera naquela comunidade, e era impossível
que ninguém se apercebesse de que vinha de um lugar incomum, onde
se tinha sentido deprimida, perdendo qualquer contacto com a moda, no
que respeitava não só à roupa como ao vocabulário e às formalidades
envolvidos na convivência com as raparigas da sua idade. A Chela,
natural e primitiva na forma, profundamente culta no conteúdo, era algo
impossível de suportar.
A Analía desfrutava especialmente da sua capacidade. «Hoje não
estudaremos História, a María Micaela vai salvar-nos com a sua lábia», e
ela entrava no século de Péricles com regozijo, como se tivesse vivido em
Atenas; tinha gosto em mostrar, assinalar nos mapas o desenrolar das
antigas guerras. A professora batizou-a de «Heródota», e a Chela
estremeceu, porque sabia o peso de tal alcunha. Algumas professoras
não a chamavam, outras saltavam o seu nome durante a chamada; numa
reunião de professores rotularam-na de «pedante», e as freiras, já de
longe, observavam o possível súcubo.
— Porque é que os pais não a visitam?
A madre superiora queria abrir uma fresta na parede para ver fluir
uma lágrima ou outro humor que lhe desse a indicação de que aquela
rapariga, que quase não saía da biblioteca, que não gostava de exercício
físico, que não sabia dançar, era humana.
Insistiu:
— Porque é que ninguém a visita?
— Não sei, senhora.
— Trate-me por Madre.
Ficou calada.
— A menina isola-se, não se integra. Está descontente?
— Não.
A freira, visivelmente contrariada pelo laconismo, apertou o seu
rosário:
— Deve integrar-se, partilhar.
— O regulamento obriga-me a isso?
— A menina não sabe nada sobre o regulamento…
— Claro que sei, li-o, e nada diz sobre integração.
— Bom, aqui mando eu, e a menina tem de se integrar.
A Chela sorria, com ar de troça. A freira mandou chamar a Analía.
Depois, convocou o pai da Chela para uma reunião e esperou por ele em
vão. A madre superiora decidiu tirar-lhe um ponto em cada matéria por
não se integrar e reprová-la em Educação Física. Não obstante, a Chela
decidiu passar aquelas férias no Instituto. A madre superiora chamou-me
e submeteu-me a um interrogatório próprio de uma freira: nada
importante nem profundo, mas deduzi que a Chela era um elemento
muito perturbador e que ela procurava um pretexto qualquer para a
expulsar.
Disse:
— Ela não quer sair durante estas férias. Prefere preparar, tendo-a a si
como auxiliar, dois anos de estudo por conta própria, vontade que
dificilmente lhe será concedida.
Respondi que não me opunha a ficar com a rapariga durante os meses
das férias, e que tentaria dissuadi-la da ideia de estudar sozinha.
Sabia que não seria bem-sucedida, pois a Chela tem ideias fixas.
Foram três meses de sacrifício para mim, o dia inteiro na biblioteca,
breves pausas para o almoço, nada mais. Vendo-a entusiasmada, quase
feliz, não me atrevi a dizer-lhe que o seu pedido seria recusado. Será que
intuiu o desenlace? Quando lhe negaram o pedido, não alterou o
comportamento. E durante três meses só falou e lidou com livros. A irmã
bibliotecária sabia que ela falava com os livros, sabia como lidava com
eles, e quanto trabalho lhe deu, obrigando-a a subir e descer a pequena
escada da biblioteca.
As raparigas voltaram com o verão e o amor na pele, porque além da
praia tiveram namorados. Entre risadas e gritinhos, falavam de coisas de
fora, segredos. Enquanto o cheiro a maresia e a magia da montanha
fluíam da conversa das adolescentes recém-chegadas, a Chela cogitava
sobre o seu pedido recusado, chegando à conclusão de que naquele
ambiente não havia lugar nem esperança para ela. Resolveu que naquele
ano a Analía não tiraria partido dos seus conhecimentos. A bruxinha
sociável apercebeu-se disso e montou a sua máquina de guerra fria.
— A Madre Superiora chamou-me para que lhe dê informações sobre
uma certa pessoa.

A Analía era filha de pequenos proprietários. Ela dizia «fazendeiros»,


porque tinham uns pequenos campos e alguns animais. Conheciam a
família de María Micaela. Nesta fase dos acontecimentos, a Analía sabia
mais do que a Chela, até pormenores do que se passava no seio da casa
dos Stradolini.
Reparei que a Chela estava a comer muito bem, com calma,
aguentando algumas piscadelas de olho e gestos das suas colegas.
Pensou: «Que informações irá dar a Analía?»
Fez uma lista de possíveis irregularidades: falta de integração, troça
das professoras preguiçosas, guardar nus greco-romanos nos cadernos,
possuir as revistas Deux Mondes, fumar.
— Que mexericos vais contar à freira?
— Direi a verdade e só a verdade, não farei mexericos.
— És uma ignorante…
A Chela não pôde terminar a frase porque a irmã preceptora
intercedeu:
— A menina, María Micaela, está a cometer os pecados do orgulho e
da vaidade.
— Há pecados piores, como o de instigar a delação.
— O que pretende insinuar?
— Pergunte à Superioridade.
— Refere-se à Madre Superiora?
A preceptora transpirava, e o suor acumulava-se-lhe comicamente no
buço.
A Chela gritou:
— Enxugue os bigodes, estão suados.
A gorda freira preceptora enxugou os bigodes e saiu a chorar. Antes
disso, atirou na direção da Chela:
— A menina é um animal.
Conseguiram aquilo a que se tinham proposto há muito tempo…
Montaram uma operação de comando nos aposentos da Chela, e de lá
tiraram: Os Cantos de Maldoror, Uma Temporada no Inferno,
Iluminações, As Flores do Mal, a coleção de revistas francesas, um
caderno cheio de notas e dois maços de cigarros.
Convocaram o senhor Stradolini, que delegou na Sara tal encargo.
Estávamos em meados do ano escolar e já preparavam a Festa da
Primavera; chegavam as caixas com os vestidos, algumas etiquetas
denunciavam «Paris-Roma». Chegavam prendas para o Instituto.
Soube que nesse ano ela não seria usada como exemplo, com a
subtração de pontos e o chumbo em Educação Física. Pedi uma audiência
com a madre superiora, porque a Chela queria conversar com ela.
Concederam-lha.
— Senhora, quando me devolverão os meus livros, os meus nus, as
minhas revistas e os meus cigarros?
Desejei que a terra me engolisse. A freira apertava as contas do
rosário:
— A menina é um demónio… Quanto a si, senhora Assuri, foi para isto
que solicitou a audiência? Saiba que no próximo ano já não estarão por
cá.
Nessa mesma tarde chegou a Sara. Conversou com a madre superiora
e partiu sem nos vermos.
Perto da festa, sobre a caminha da Analía luzia o vestido de organza
amarelo debruado a renda no decote e com bordado de favo no corpete.
— Agrada-te? — perguntou à Chela.
— Bufa.
A Analía tentou arranhá-la e a Chela deu-lhe um pontapé no estômago
que a fez dobrar-se.
— Que porcarias foste contar à freira?
— És tão louca e degenerada como o teu irmão, o anão, são ambos
maçãs podres, ou julgas que não se sabe?
Vi que a Chela titubeava por causa da emoção da notícia. E a outra
prosseguiu: «A tua mãe está grávida outra vez e terá outro louco.» Não
consegui conter a fúria «daquilo». A força da Chela era como a de uma
besta enjaulada que se solta. Empurrou-me e atirou-se sobre a Analía.
Ouvi um «craque» macabro de osso partido. Partiu-lhe um braço e queria
partir-lhe o pescoço, puxando-lhe o cabelo por trás, com o joelho posto
entre as omoplatas da rapariga. Pedi auxílio. Chegaram duas freiras
jovens, que nada conseguiram fazer. No quarto soprava um furacão, e os
hábitos voaram como capas da Idade Média. A besta continuava o ataque
à Analía. Chegou Ariel, o padre confessor, e tentou desatar todo aquele
drama que as duas criaturas formavam. Não foi capaz. Veio o jardineiro e
derrubou a Chela, que a princípio cedeu, mas de imediato reiniciou a luta
contra o homem de igual para igual. Aproveitaram para tirar dali a Analía,
meio morta. Um minuto depois, a Chela estava como se nada tivesse
acontecido. A Analía, na enfermaria. Eu, com uma enxaqueca
inacreditável.
— O que farei? — dizia a madre superiora. — Se isto se sabe, os
padres tiram-nos as meninas.
Decidiram encarregar-me do fardo de ir à quinta pedir que viessem
buscar a Chela imediatamente.
O senhor Stradolini, menosprezando o episódio, disse que iria assim
que pudesse.

Como castigo, trancaram a Chela num quarto onde havia um caixão


com um esqueleto. A Chela derrubou a porta e emergiu como um
monstro furioso. Em vez de atacar, recitava versos de Rimbaud com
aquele seu vozeirão de homem, o mesmo que usava no sótão:

Sou escravo do meu batismo.


Pais, fizestes o meu infortúnio e o vosso.
Pobres inocentes…
Sacerdotes, professores, mestres,
equivocais-vos ao entregar-me à justiça.
Nunca pertenci a este povo,
sou da raça que cantava no patíbulo.
Não compreendo as leis,
careço de sentido moral.
Sou um bruto;
equivocais-vos.
No pátio, ninguém. Fiquei sozinha. A pouco e pouco, o padre Ariel foi-
se aproximando. Será que ignorava que se dirigia a um abismo do qual
nunca poderia emergir?
— Menina, María Micaela.
— Vá para a puta que o pariu.
— Porque devo ir para um lugar tão feio?
O monstro sorriu ao padre, o padre tirou uma cigarreira do seu bolso
fundo e ofereceu-lhe um cigarro, ela aceitou e, sentados no chão,
fumaram.
Disse o padre Ariel:
— Tenho um presente para si, do seu pai.
Estendeu-lhe um envelope.
— Veja — continuou Ariel —, dois bilhetes para a Europa; o outro é
para a María Assuri.
— Por favor, diga ao meu pai que me deixe ficar na quinta este verão.

Recordo que regressámos à quinta. O padre Ariel vive ali desde então.
Embora tenha regressado com eles, sentia-me destroçada e decidida a
renunciar; percebi que a Chela tinha crescido, era uma senhorita de dez
anos. Nessa noite, eu jantaria com os Stradolini. Na sala de jantar, na
parede enorme, um espelho veneziano entregava-me a cena por
completo: a Chela estava quase bonita, com a sua curta saia plissada e a
sua blusa de broderie, calçada com sapatos brancos de salto raso. Com o
passar do tempo, parecer-se-ia com as mulheres trinca-espinhas que
Modigliani pintou. A Lula tinha oito anos e ajudava a pôr a mesa; a mãe,
outra vez grávida, dava a mão ao Juan Sebastián. O pai envelhecera
ostensivamente. Também lá estava a Camelia, amiga da casa. O Juan
Sebastián, cinco anos mais novo que a Chela, parecia um bonequinho de
presépio. Anão imbeciloide, ronronava: «Mmm… Mmm… Mmm…»;
repulsivo, babava-se porque estava com fome. A Chela, que acabara de o
conhecer, recordou-se sem dúvida da sua rubéola.
Foi um jantar silencioso, tenso, até, e estava prestes a terminar
quando o senhor Stradolini disse algo sobre a viagem. Ofereci-me para
dormir com a Chela no sótão, pensando em rever a possibilidade de
atrasar a minha renúncia, pois sentia-me seduzida pela simples ideia de
uma viagem pela Europa.
Quis cativar a rapariga devolvendo-lhe as páginas da Revue des Deux
Mondes com o artigo de Marcel Proust dedicado a Madame de Noailles.
Naquele tempo, tratávamo-nos por tu, por isso disse-lhe:
— Já não queres apagar com uma enorme borracha este céu e o seu
sol explosivo, para pintar «la champagne» sobre o tanque com os seus
peixes oxidados?
Cansada, respondeu:
— Nunca serei «une hirondelle d’argent».
Se tivesse suspeitado do que planeava, tê-la-ia seguido para o campo
na manhã em que subiu para o arado e partiu quebrando talos e
levantando terra e pedras com as lâminas. Fez capotar a carroça e ficou
com um braço preso, ouviu-se um «craque» sinistro, como acontecera
com a Analía. Limpou-se o desastre, e ela andou com gesso e tala, cuja
sombra no sótão fazia par com a harpa no canto. Já não poderia viajar.
Naquela noite, na escuridão partilhada, julguei ter ouvido: «Hu… Hu…
Hu…», guincho de coruja.
Ela disse:
— Eu não assassinei o Bertoldo, apenas contribuí para o salvar de
futuras dores e solidões.
Fingi não ter compreendido, como se estivesse semiadormecida:
— O que se passa, Chela?
Seguiu-se um lento silêncio tingido de medo, porque os objetos do
sótão, tocados por algo espiritual que eu não conseguia captar
plenamente, ganharam movimento. E a harpa soou, ténue, como se um
biquinho de ouro lhe tangesse as cordas, e o xaile de Manila que a
tapava caiu como um indigente defunto.
Talvez por influência de um copo a mais, talvez por causa do ar
rarefeito do sótão, interpretei aquele «Mmm… Mmm… Mmm…» como o
canto do verão. Mas depressa vislumbrei o menino anão, subira a
escadinha, saltou para a minha cama e atacou-me à dentada. A Chela
começou a bater na parede com a tala, e o gesso soltou-se e libertou-lhe
o braço.
Foi por isso que parti. Foi por isso que abandonei o trabalho muito
antes de poder terminá-lo. Sou uma mulher da ciência, e não uma
exorcista.
O concurso

Meio século depois, releio os documentos que María Assuri


intitulou «Relatório»; quantos erros, quanto desconhecimento da
psique e das suas zonas luminosas e das obscuras e de tudo.
María não era psicóloga, era «professora de psicologia do ensino
secundário», uma docente semiculta.
Restos desbotados com vestígios celestiais, eis o que encontrei
no mesmo baú daquela época, e apesar de María Assuri ter sido
injusta, tantas folhas secas e cartõezinhos com ramos de violetas
adoçaram, sem enjoar, os meus sentimentos. Creio que não bati
na Analía com tanta violência, enfim, do acontecido retenho
apenas um rebolar pelo chão, um forcejar e o «craque». Não
perderei tempo a analisar o citado relatório.
O Juan Sebastián subiu para o sótão, resolveu viver ali,
escolheu-me e eu aceitei-o, adaptámo-nos um ao outro por
sermos ambos anormais.
— Vou ensinar-te a pensar, vou ensinar-te a falar.
— Mmm… Mmm… Mmm…
Compreendeu.
A Sara levou para baixo a cama onde María tinha dormido e
trouxe para cima o berço do Juan Sebastián; ficámos com mais
espaço. Arranjei livros para me preparar para os cursos livres do
secundário e depois para entrar na universidade.
Repetia à frente do meu irmãozinho: «Che… la», queria que
alguém que eu amasse dissesse o meu nome.
O Juan Sebastián observava os meus lábios com a atenção de
um cachorrinho que deseja agradar ao dono; eu continuava:
«Che… la.»
Perante a dificuldade que sentia, ou a impossibilidade de o
fazer, escondia-se, envergonhado.
O meu amor por Rimbaud levava-me, em jeito de catarse ou de
resignação, a lê-lo; claro que também lia para o Juan Sebastián,
que me ouvia com adoração.

Seres imprevistos e perfeitos


oferecer-se-ão às tuas experiências…
Zumbirão flores mágicas,
embaladas nos taludes,
génios de uma beleza
inefável, inconfessável, até.

Flutuou na escuridão miserável: «Sim… Sim… Che… la…»


O meu irmão aplaudia porque o ritmo tremendo do verso, um
dos poucos versos escritos no mundo, tangeu alguma corda
abafada, aflorou o som da voz e da palavra.
Palavra e voz surgiram do sinuoso e sublime pentagrama do
estranho poema do poeta mais puro que alguma vez existiu.
— Sim… Sim… Che… la…
O meu irmãozinho baboso, bicho infame, aplaudia, do seu vazio
sem esperança, a luz, a beleza suprema, a perfeição. E estreava
as suas duas palavras aos pulos no sótão como um gato e dando
cambalhotas como um bobo da corte.
A sua saliva, tão abundante, deixava um rasto de caracol da
cama à estante.
Dei-lhe uma ocupação: recolher as bolinhas de papel que eu
deitava para o chão e pô-las no caixote do lixo. Ele gostava e
parecia um velho homem de lixo preocupado em fazer o seu ofício
sem errar. De certa forma, Juan Sebastián foi o mensageiro de
uma notícia que me deixou feliz durante algum tempo: todos os
jornais e revistas que a Sara deslizava por baixo da porta
passavam para as mãozinhas do meu irmão, que não sem esforço
mos entregava. Num desses jornais estava a notícia de um
concurso literário para jovens autores. Num destaque: «Concurso
Ediciones Roux para jovens e novos escritores». O prémio
consistia na publicação da obra.
Por cortesia, propus ao meu irmão mais novo que
escrevêssemos um pequeno romance, e ele aceitou com as suas
duas palavras. Quando terminei, li-lhe o texto e ele aprovou:
«Sim… Sim… Che… la.» Fui aos correios e enviei-o.
O que María diz sobre o padre Ariel é verdade. Ainda vive na
quinta. Nos já longínquos tempos do Juan Sebastián via-nos
trepar às árvores e correr atrás de insetos, apanhar guitarreros[1]
de belos tons de azul-elétrico, magrinhos como jograis da Idade
Média, fazê-los cantar, fechados entre as nossas mãos, e depois
libertá-los, sob o céu intenso dos verões bonaerenses. Via-nos
partilhar as nossas travessuras de roubar carne dos grelhadores
das barraquinhas, por diversão e por fome, porque já ninguém
nos prestava atenção.
«Il testone ostinato», diziam os trabalhadores italianos; «El
cabezudo», diziam os espanhóis. Ano após ano, o meu irmão
parecia mais assustador. E era. Passaram as libélulas, os frutos e
toda a verdura se moderou; o meu irmãozinho quase criança,
quase inseto, quase fruto, quase flor, partilharia tal fugacidade. E
desse quadro edénico com duendes e manes restaria um balbucio,
um zumbido, uma fragrância, um torpor. A nossa existência
transcorria naquelas águas-furtadas miseráveis, deslizando como
lagartos, silenciosos, quando um leve odor prometia comida, ou
quando ambos mergulhávamos num comedouro de pássaros, ou
descíamos como ovelhas para o bebedouro. Mas sentíamos
alguma alegria sempre que a agulha de aço percorria a superfície
dos discos de Mozart e Beethoven, e o Juan Sebastián
pronunciava as duas palavras que conhecia. Quando ele dormia a
ronronar como um gato, eu estudava sozinha para os exames. Ao
mesmo tempo, olhava para a sua camisolita suja, para os seus
pezinhos minúsculos, corolários de duas pernas liliputianas, para o
enorme buraco que a sua cabeçorra deixava na almofada. Sabia,
não obstante, que todo aquele horror guardava uma alma bonita.
A nossa singular orfandade, combinada com as grotescas
criaturas da noite, pintava uma terra seca, um lamento, um lugar
cego.
E compensávamo-nos mutuamente: eu, que nunca precisei de
nada de ninguém; ele, que precisava de toda a gente e que só me
teve a mim, para curar as suas pústulas, os seus achaques, as
suas feridas, as suas febres e terrores noturnos que o expulsavam
do berço como um pardal do ninho na tempestade.
Por vezes eu acordava-o e sacudia-o por recear que tivesse
morrido, tão leve era a sua respiração. Um poema de Rimbaud
ajudava-me a resolver o quebra-cabeças das nossas vidas, cujas
peças separadas careciam de significado, e que ao encaixar certos
cantos côncavos e convexos se tornaram um todo inteligível:

Meu triste coração que se baba na popa,


meu coração cheio de lixo.
Lançam sobre ele jorros de sopa.
Meu triste coração que se baba na popa.

Passaram semanas sem que a Sara subisse para limpar o sótão,


e embora o meu irmãozinho se esforçasse a apanhar folhas de
papel, o chão regado de porcaria enojava-nos, mas menos do que
o chão da casa das gentes, lustroso e entapetado.
Certo dia, a Sara veio ter connosco e trouxe notícias.
— Os vossos pais vão viajar para França com os bilhetes que a
menina não aproveitou, a Lulita entrará no noviciado das
Carmelitas e, como a senhora María se foi embora, o Juan
Sebastián ficará a meu cargo.
— Veremos…
O Juan Sebastián, agarrado às minhas calças desbotadas,
pronunciava aceleradamente as suas duas palavras.
A Sara repetiu:
— O menino ficará a meu cargo.
Gritei:
— Faz o favor de nos deixar em paz?
A negra compreendeu que a sua integridade física estava em
perigo.
Quando os nossos pais se foram embora, tomámos conta da
casa. Invadimos a cozinha e a cozinheira fugiu, agarrámos os
enchidos pendurados dos seus ganchos e mordemos-lhes as
pontas, mastigámos a pele dos salames, jogámos futebol com os
queijos redondos. Comemos como nunca. A cozinheira chorava no
pátio diminuto e o Juan Sebastián limpou o ranho ao avental dela,
depois trancámo-la na despensa e batemos-lhe. O meu
irmãozinho patinava na bancada, ia de uma ponta à outra com
agilidade de alpinista, eu imitei-o.
Vingámo-nos do lugar onde guardavam os alimentos.
Donos absolutos da casa das gentes, uivámos na noite como
lobos e rebolámos no quarto chique da Lula, na colcha branca, na
almofada com as iniciais gravadas, no tapetinho azul.
Espantada, a Sara perguntou:
— Dormiram aqui?
— Uma noite, aqui; outra, acolá…
— Os meninos vão acabar por conseguir que eu me vá embora.
Soluçou como uma criança negra. Depois fechou-se no seu
quarto, ouvimos o «tric» do candeeiro, o «tlic» das agulhas de
tricotar. Eu saboreava uns teoremas do quarto ano, o meu irmão
saltava sobre o colchão macio como se fosse uma marioneta.
Estudei vários teoremas, o meu irmão esteve sempre a saltar.
Propus:
— Assustemos a Sara.
Aplaudiu. Saímos para o pátio vindos do corredor. Tanto nos
torturaram os mosquitos… A casa tinha — ou tem — janelas que
parecem vitrais. Por um ângulo, espiávamos a negra, com a sua
longa camisa branca e a sua branca touca; já não estava a
tricotar, lia o seu missal movendo os grossos beiços, exorcizando
demónios. Apagou a luz elétrica e acendeu a lamparina de prata,
cujo pavio incitava — e incita — uma dança de ninfas e de faunos.
Nós, os bichos do sótão, inventámos maldades enquanto os
mosquitos pernaltas nos devoraram as pernas. Ela depressa sentiu
os nossos olhares; virou os olhos precisamente para onde
estávamos e persignou-se.
Eu disse ao meu irmão:
— Traz a corneta.
O duende retrocedeu caminho e regressou com a corneta do
fonógrafo, que me entregou, e por ela recitei uns versos de
Maldoror que sabia de cor, misturando-os com alguns da minha
lavra que os tornavam mais inteligíveis e temíveis:

Oh, luz de candeeiro de prata,


os meus olhos distinguem-te na sombra;
camarada das abóbadas das catedrais;
os meus olhos perguntam porque iluminas
esta negra imunda.
Estarás obrigada
a servir a imundície?

Os uivos do menino, cujos olhitos brilhavam como os do


Bertoldo, faziam-me companhia. Prossegui:

Tinha na mão
o tronco apodrecido
de um homem morto
e levava-o alternadamente
dos olhos ao nariz,
do nariz à boca.
É isto que a Sara come,
carne de sepultura.

Ela não conseguia fechar as portadas de madeira de


castanheiro, era uma boneca de borracha petrificada, um
cordeirinho de astracã à espera de ser degolado. O seu choro
histérico enfureceu-nos. Cantei com a voz grave e oca dos
cavernosos:

Infiltrar-nos-emos
entre as grades,
cortar-te-emos em pedaços
e de-vo-rar-te-emos.

O Juan Sebastián esmagou a cara contra o vidro da janela, e a


negra caiu desmaiada no tapete de juta. Regressámos ao sótão. Li
o livro de Matemática até às quatro da manhã. O meu irmãozinho
dormia. O anjo dourado da harpa vibrou. Agasalhei o meu
irmãozinho com o xaile de Manila.
Na manhã seguinte o carteiro trouxe uma notícia que nos
alegrou: o envelope «Ediciones Pastor Roux» dirigido à senhora
María Micaela Stradolini.
Disse ao Juan Sebastián:
— Marcaram encontro para terça, e hoje é segunda.
— Sim… Sim… Che… la.
Localizei, com um mapa, a editora de Buenos Aires. Procurei no
guarda-roupa algo para vestir e encontrei um vestido azul-claro,
plissado, com pérolas; lavei os meus sapatos brancos de salto raso
e sequei-os na colcha. Tomei um duche, escovei o cabelo, despejei
sobre mim um frasco inteiro de água-de-colónia. Às sete da
manhã, já vestida, pus quarenta pesos, que tirei da gaveta da
secretária do meu pai, numa pequena carteira de couro e fui
andando para a estação. Comprei o meu bilhete para Buenos
Aires.
Senti uma ligeira tontura. Os nervos…
Uns rapazes disseram: «Que rapariguinha medonha.» Eu estava
quase a fazer doze anos, mas era demasiado alta para a minha
idade. Umas vizinhas viajavam na mesma carruagem.
— É a filha mais velha dos Stradolini.
Conhecia as minhas vizinhas: as velhas Mendizábal.
— São três ou quatro?
— Três. A senhora perdeu o último.
— Eu costumo dizer que o dinheiro não traz felicidade.
Fiquei de ouvidos atentos:
— Lembras-te do avô, che? Viveu sempre em Paris.
— Foi lá que apanhou sífilis.
A velha mais linguareira foi ao lavabo, e eu atrás dela. Para
enxaguar a boca, tirou uma prótese e deixou-a na bacia. Rocei
com a minha bolsa naqueles asquerosos dentes postiços e pus-
lhes o pé em cima quando caíram. Ouvi um «craque» de ossos
partidos. A velha pôs-se a juntá-los, enquanto choramingava.
Gemeu com a fuça franzida:
— Veja bem o que fez…
— Desculpe, foi sem querer.
Entrei satisfeita na latrina, para mijar. Estraguei-lhes o passeio à
capital, desceram numa estação qualquer. Gostava tanto que o
meu irmãozinho estivesse ali comigo.
Consultei no mapa a localização da editora. Fingindo ser cidadã
emancipada, olhei para as montras e tomei café. Fumei. Às dez,
cheguei à editora. Disseram-me que esperasse. Adormeci numa
poltrona suave de couro verde.
— O que deseja, menina?
Conheci Roux, tinha barba e era francês. Disse ao que vinha.
Reparei na sua surpresa ao ver a minha idade.
— Veio com os seus pais?
Expliquei que estavam em viagem.
— Almoçou?
Convidou-me para almoçar. Enquanto eu comia, ele bebia
conhaque.
— Pareço-lhe muito jovem?
— Não pensei que fosse assim tão nova.
— O concurso não estabelecia limite de idade.
— A menina é a vencedora.
Voltámos à editora, e ele pediu que me trouxessem do prelo um
exemplar do meu romance, que depois de impresso emagrecera
tanto que mais parecia um folheto.
— Muito bem, como ainda é uma criança, terei de falar com os
seus pais.
No regresso, acompanhou-me a Constitución, comprou-me,
além do bilhete, uma caixa de chocolates que parecia feita de
prata e um ramo de rosas. Não me beijou. Apercebi-me de que
tinha medo de que eu me apaixonasse.
Viajava no comboio às sete da tarde, fumei um cigarro, sentia-
me quase sensacional, como Greta Garbo. Levava um ramo de
rosas, uma caixa de chocolates, um pacote de livros… meus… algo
que me pertencia, estranha sensação.
Tinha a alma exultante, doce como um rebuçado de mel. «A
felicidade deve ser isto», pensei.
Uns rapazes disseram: «Que borracho.» Pode-se mudar assim
tanto numa viagem de ida e volta?
Cheguei à quinta já de noite. O Juan Sebastián esperava-me
ansiosamente, dei-lhe a caixa de chocolates. Deixou o espaço
melado e espalhou chocolate em tudo quanto tocou. Desatou o
pacote dos meus livros (os nossos livros), empilhou-os e
pronunciou as suas duas palavras. Compreendi que ele também
estava feliz. Senti remorsos por tê-lo deixado sozinho durante
algumas horas. Começou a chover, aquela «chuva tão fina que
não parece chover», segundo López Merino. O meu irmão dançou
ao ritmo das gotas no telhado, como um pequeno bufão.
No início de 1934 os meus pais regressaram da Europa. Quanto
a mim, se passasse a mais três disciplinas, entraria na
universidade. Continuava a estudar sozinha. Passava. O senhor
Roux veio à casa da quinta, o meu pai enxotou-o com grande
estrondo. Combinou-se que o padre Ariel, que já estava instalado
na quinta, se encarregaria de uma «tutoria intelectual», como lhe
chamámos. Esse pequeno romance, que muito tempo depois
comparei com Um Certo Sorriso, de Françoise Sagan, foi a minha
filhinha prematura.
Ariel disse:
— Vamos dar graças ao Senhor.
Partimos em direção à capela. Com o senhor Roux,
conversavam sobre ícones religiosos, e o bom editor, ao ver a
imagem do santo que impõe o silêncio com o dedo indicador nos
lábios, segurando um báculo na mão esquerda, lembrou-se da sua
Paris natal:
— É Saint Marcel.
Aos pés da imagem contorce-se um dragãozinho, moribundo.
Perguntei-lhe:
— Porque é que o castiga?
O senhor Roux esclareceu-me:
— É uma velha história de Paris.
Não a conhecíamos.
O senhor Roux comentou:
— Por culpa das mulheres, acontecem sempre coisas
maravilhosas e tremendas. Uma serpente dormia num lugar
apropriado, entre as pedras de um dos muros de Notre Dame.
Naqueles dias, a Duquesa Pecadora morreu; enterraram-na num
lugar muito próximo do ninho da grande serpente. Sempre
faminto, o réptil devorou o corpo da Duquesa, cuja alma devorara
em vida.
» Dado que o corpo humano tem quatro membros, não é
preciso explicar como se formou o dragão que atormentou a
cidade durante muitos anos. Então, Saint Marcel abriu a cripta e
com o seu báculo exterminou o monstro. Nada disse sobre o
horrível acontecimento, que recordamos quando vemos a imagem
do dedo indicador nos lábios.
O padre Ariel comentou:
— Alguns de nós acreditávamos que isso garantia o segredo da
confissão.
Roux:
— A Igreja guarda alguns segredos.
Como um milagre, começou então um bom período para mim:
colaborei em várias revistas, no Día e no Argentino, jornais de La
Plata. O meu pai adoeceu com angina de peito. Quando me
chamou ao seu escritório, voltei a entrar em pânico.
— A menina está muito valentona e mais presunçosa que
nunca. Onde é que já se viu um caso destes, de uma intelectual
notável que come e defeca no mesmo tacho?
Diverti-me ao ouvir a palavra «defeca» da boca do meu pai,
rodeada de bigode e de barba, mostrando um lábio vermelho
apertado pelos dentes superiores ao pronunciar o «f». Quase
desatei a rir. Ganhei coragem:
— Pai, não me magoa porque está morto.
O velhote tremeu. Escapuli-me fazendo xixi na escadinha em
espiral que dá para o sótão. O meu pânico recrudescido impedia-
me de respirar. O meu pai morreu cinco dias depois de ter ouvido
a minha voz pela primeira e última vez.
A Sara disse-me:
— Não desça com o seu irmão para o velório, venha sozinha.
Procurei o meu irmão:
— O pai morreu.
— Sim… Sim… Che… la.
Desceu comigo à casa das gentes. «Mmm… Mmm… Mmm…»,
chorava pelo seu progenitor. De súbito levantou a cabeçorra e
olhou para mim, notando que eu não me afligia. Então saltou e
fez cabriolas, mijou a perna de uma cadeira. A Sara tentou caçá-
lo, ele cuspiu para cima dela. Mordeu uma senhora. A Lula
desmaiou, e umas freiritas auxiliaram-na. Consegui apanhá-lo, e
naquela disputa o infeliz fez algo mais sólido do que xixi.
Rimo-nos tanto no sótão a ouvir o ronronar das orações pela
possível alma do nosso pai.
O senhor Roux chegou com o seu automóvel novo e fomos ao
cemitério para passear.
Atrás de nós vinha uma caravana de carroças puxadas a
cavalos, bem como alguns automóveis, e na frente do préstito,
orgulhoso, solitário e sinistro como sempre, ia o meu pai deitado
no seu caixão preto, no cortejo fúnebre de quatro cavalos negros
como os que levam o famoso viajante ao castelo de Drácula.
Quando o páramo apareceu, lembrei-me de uns versos de
Rimbaud:

Segue-se pela estrada vermelha


para se chegar à estalagem deserta.
O castelo está à venda;
as persianas pendem soltas.
Ao redor do páramo
os alojamentos dos guardas
encontram-se desabitados.
As paliçadas são tão altas
que só vemos os cumes sussurrantes.
Terá o padre levado as chaves da igreja?
De resto, lá dentro não há nada para ver.

O guarda e o padre abriram o mausoléu dos Stradolini de


Caserta Salina, cuja veia etrusca os induzia a juntar águas-ruças.
[1] Insetos coleópteros da família dos Cerambicídeos
(Cerambycidae) e naturais da América do Sul, conhecidos em
países de língua espanhola por guitarreros devido ao ruído
estridente que produzem. (N. do T.)
O apartamento

Fiz as três disciplinas que faltavam. Tinha dezassete anos


quando me matriculei na Faculdade de Humanidades e Ciências da
Educação. Inscrevi-me em Filosofia. Procurei um apartamento
para não ter de viajar e gostei de um próximo do bosque;
partilhá-lo-ia com a Clarisa Vieytes, estudante «crónica» que já lá
vivia.
A separação do Juan Sebastián afligia-me, a Sara cuidaria dele,
porque a minha mãe, já libertada, decidiu reiniciar os seus
estudos de música em Belas-Artes.
Para fugir da Clarisa, que vinha ao meu quarto com demasiada
assiduidade, iniciei um curso de dactilografia e taquigrafia. Faria
apontamentos nas aulas e vendê-los-ia ao Centro de Estudantes,
desse modo poderia prescindir e libertar-me do dinheiro que a
minha mãe me dava.
Fiz os exames de novembro, dezembro e março; desejava
formar-me e cursar as cadeiras do doutoramento; em novembro
tive nota máxima em sete cadeiras, e os meus colegas passaram a
ser os meus antigos colegas. Exilava-me novamente. Percebi-o.
Nunca fui a uma festa nem a um baile, e quanto ao cinema, ia
quando tinha a certeza de que o filme valia a pena. Nos exames
de dezembro e março já me catalogavam de «monstro».
Conheci o Carlitos Ringuelet, eminente estudante e poeta, com
quem podia falar francês; acho que, se tivesse tido tempo, me
teria apaixonado, porque sentia algo diferente junto ao já bastante
maduro e formoso galã, mas ele era casado e a coisa nunca foi
longe.
Certa tarde quase bizantina, platense, densa de tílias e
magnólias, durante os exames de dezembro com pinheiros e
compotas natalícias, o Carlitos Ringuelet disse-me: «Os teus olhos
andaram pelo Mediterrâneo.»
Olhei-me ao espelho e não me desagradou. Ele perguntou-me:
— Porque é que estudas tanto?
— Não me custa nada.
Era um «crónico» brilhante que, aliás, não fazia todos os
exames porque precisava do ar dos claustros, de andar pelos
pátios e pelos corredores do edifício que eram a vida da sua vida.
A Clarisa não perdia uma oportunidade de se enfiar no meu
quarto, eterna repetente insatisfeita, tinha fracassado noutros
cursos, começara Filosofia para não regressar a casa.
— Porque insistes, se não gostas de estudar?
— Não quero voltar a casa.
Prudente, não perguntei mais nada. Ela deitava-se na minha
cama e fumava longamente. Chorosa e desamparada, tentou
quebrar-me o silêncio.
— Tens algo para beber?
— Laranjada.
— Vem ao meu quarto, que tenho de tudo.
Havia de tudo menos livros. Serviu dois whiskies.
— Clarisa, eu não bebo álcool.
— Não te preocupes, eu bebo os dois.
A Clarisa tinha feito vinte e dois anos. Disse-lhe que ia trocar
Grego e Latim por Antropologia. Respondeu-me:
— Tanto faz, para ir contigo também farei essa troca, aliás,
comecei por fazer Medicina e correu-me mal, depois fiz Direito e
falhei absolutamente, e agora em Filosofia está a ser uma merda.
Olhei para ela, desta vez com atenção, e estremeci. Era uma
magnólia enorme, uma gigantesca flor impúdica. Algo de
natureza-morta, algo apodrecido. Na verdade, o único elemento
vivo nela era a sua cabeleira fria, porém latente como trama de
algas marinhas que se enredavam em todas as coisas: na aldraba,
na máquina de escrever, numa caneta de tinta permanente, num
botão de uma camisa alheia; a sua cabeleira, que a precedia e a
seguia como asas de estranha ave. Receava aproximar-me
demasiado da Clarisa e que aquela bátega de seda me afogasse
na sua maré escura e húmida. Prendia o meu cabelo num rabo de
cavalo.
— Solta-o — disse, e puxou a ponta do laço.
Senti a diferença, mas percebi que devia, pelo menos, cortar as
pontas espigadas.
A Clarisa continuou, como se me lesse os pensamentos:
— Vou cortar-te as pontas do cabelo.
Trouxe do seu quarto um óleo e as tesouras, e enquanto punha
mãos à obra, perguntou:
— O que fazes esta noite?
— Estudar.
— Estás louca? Vamos ao cinema.
Voltei para o meu quarto, estudei e revi matérias até às duas da
manhã. A Clarisa bateu à porta com os nós dos dedos.
— Andei por aí, cansei-me e vim estudar contigo.
Senti-a desorientada, muito estranha. Perguntei:
— Vais fazer a cadeira de Introdução?
Tentou distrair-me:
— Che, o que é isso?
— Um jarrão chinês. O que achavas que era?
Acrescentei, irritadíssima:
— Não me faças perder tempo, presta atenção ou vai-te
embora.
Foi-se embora, como pássaro ferido na asa.
Evitei-a durante uma semana. Via-a na aula de Introdução à
Filosofia, sorrindo-me tolamente da sua mesa. Consegui sempre
despistá-la com algum pretexto.
Eu tentava falar com o professor Coriolano Alberini; conseguiu
sempre evitar-me, pendulando entre as suas duas muletas.
Sentia-me mal quando isso acontecia. Talvez, noutro nível, a
Clarisa sentisse o mesmo?
Passei com louvor em três cadeiras.
A Clarisa sorria e reprovava, já não era um pássaro ferido, mas
sim um pássaro em agonia.
Apanhou-me na rua 47 e suplicou-me que a ajudasse a
preparar o exame de Psicologia; fi-lo e ela passou.
Exultava de alegria, deu-me pena. Aquela estúpida conseguia
animar algum sentimento em mim.
Disse:
— Nunca consegui entender Psicologia, e tu esclareceste-me
tudo.
Agarrou-me a cabeça e beijou-me nos lábios. Confusa com os
cheiros de tabaco e whisky, senti uma enorme vergonha. Depois
convidou-me a ir ao cinema e a jantar, também resolveu estudar
Estética comigo. Julgo que durante algumas horas ela teve a
certeza de que me tinha dominado.
Aceitei fazer a cadeira de Estética. O professor Guerrero era um
obstáculo intransponível para o estudante medíocre, e Estética
gerava o pânico entre os alunos. A Clarisa nunca poderia transpor
o obstáculo que incluía a interpretação de textos como Laocoonte,
de Gotthold Ephraim Lessing; ainda assim, eu faria o teste para
motivar as suas respostas.
— Ouve-me — disse —, «Laocoonte sofre como Filoctetes de
Sófocles»; significa que a serenidade grega é contrária ao pranto
e ao grito de dor.
Por não ter obtido resposta, nem de palavra nem de expressão,
montei um teatro grego, com mímicas sereníssimas e outros
gestos e expressões dramáticos, atirando cinzas para a minha
cabeça. Da Clarisa, apenas silêncio.
Insisti:
— Só os gregos mantêm uma atitude digna, e se sofrem não
gritam; os troianos amaldiçoam e uivam, são semente de
barbárie.
Começou a soluçar:
— Perdoa-me, comoveste-me.
— És piegas e tola.
Na Ilíada mostrei-lhe a ilustração do pobre Laocoonte e dos
seus miseráveis filhinhos.
— Trabalharemos em diferentes graus de paixão.
Não escutou nem compreendeu, fumou. Imaginariamente,
iluminei-a com toros de abeto.
Pensei: «Se conseguisse ressuscitá-la, fazê-la crepitar como
Meléagro, ver a chama comer-lhe as entranhas, derreter este
manequim de cera, fazer brotar este ramo podre que já se
desgarra, este fruto que já apodrece.»
Perguntei-lhe:
— Achas que o poema é anterior à escultura?
Respondeu-me como se regressasse da escuridão lilás-azulada
dos mortos:
— Sim… Sim… Che… la…
Dissimulei a minha angústia:
— Clarisa, vais ter de estudar sozinha.
Sussurrou:
— Mmm… Mmm… Mmm…
Quem estava no meu quarto a pôr naquela boca exangue
palavras e sussurros conhecidos apenas por mim?
Li uns versos do Laocoonte:

Exposto às injúrias
de um céu rigoroso,
ali está abandonado,
privado de toda a esperança.
Nenhum amigo, nenhum
companheiro de infortúnio.
Ninguém capaz de lhe acalmar
a dor e fazer parte
da sua desventura.

Reapareceu a criatura tola:


— Chela, vou dar-te cosméticos, para que fiques linda… Não me
entendes…
Quase lhe bati enquanto chorava como os dois filhitos de
Laocoonte em uníssono.
Atirou-se para o chão, soluçando:
— Ninguém me entende.
Isto amoleceu-me, porque a mim tão-pouco. Aquilo encorajou-
a. E algo começou a rastejar entre as minhas pernas. Oh, sim, era
a mão de Clarisa. Compreendi.
Dei-lhe um pontapé na fuça, e com a minha força animalesca
renascida e multiplicada atirei-a para o pequeno pátio.
Gemia:
— Sim… Sim… Sim… Che… la.
Pensei:
«Amanhã regresso à quinta.»
Revelação

Viajei para a quinta. Trazia um vestidinho creme, blusa


vermelha de seda, sapatos de salto não muito alto, e tinha
cortado o cabelo à garçon. Percebi que me observavam. Admirei a
paisagem sob o sol que dissipava a neblina; nos telhados,
resvalavam lágrimas de cristal. Como sempre, entrei pela porta de
serviço e subi as escadinhas em caracol até ao sótão.
Gritei:
— Juan Sebastián.
Gritou:
— Sim… Sim… Che… la.
Com uivo de cachorrinho reencontrado, saltou-me para o
pescoço. Fizera dez anos sem crescer um centímetro. Desatei
embrulhos de prendas: berlindes, uma bola rosa, chocolates e
caramelos. Ofereceu-me o primeiro caramelo e meteu dois ao
mesmo tempo na boca. Estava muito magrinho, muito sujo.
Quando a Sara entrou, cuspiu-lhe enquanto comia os dois
caramelos.
— Voltou, menina.
— Parece que sim.
— Avisarei a senhora.
Ouvi o piano da minha mãe: estaria a ensaiar ou a estudar, o
que era aquilo, Bach ou um simples exercício? Horrível. Saímos
então para o campo, nós dois, os monstros. Fugindo, acabámos
no antigo pátio vermelho, onde o Juan Sebastián insistia em levar-
me como se quisesse revelar-me algo. Tirou o ladrilho do buraco
das descobertas, enfiou a mão, o braço, até ao cotovelo e exumou
outro anãozinho. Tinha-o descoberto sozinho, e tornou a escondê-
lo até que eu regressasse. Na solitária herdade, éramos dois
defuntos a vaguear pelo mausoléu familiar de fuste etrusco. O
Juan Sebastián tocava na cabeçorra do boneco e depois fazia o
mesmo na sua cabeçorra: reconhecia alguma semente imunda.
Indubitavelmente, éramos dois vagabundos mortos no nosso
sepulcro; inocentes, carregaríamos culpas alheias? Iria descobrir.
Ouvimos o grito e o galope:
— Olá… loucooos.
Respondi.
— Mais louca seria a puta que te pariu.
Arnaldo, o primo a quem já chamavam dom Arnaldo.
— Porque insultas, desgraçado?
— Olá, degenerados. O que tens aí na mão?
Arrancou a pequena escultura da mão do meu irmãozinho.
— Brinquemos à apanhada.
Ele circundava-nos a cavalo, e nós saltávamos como infelizes
tentando tirar-lhe o objeto. O Juan Sebastián chorava
desesperado; eu atirei uma pedra ao meu primo e ele enrolou-me
o braço com o chicote. O meu irmãozinho ofegava e tossia.
Peguei-lhe ao colo e segui o rasto do cavalo, que terminou na
entrada principal. O animal estava amarrado a um poste.
A minha mãe, sentada ao piano, sem olhar para trás,
perguntou:
— Como estás, Chela? — Continuou a tocar, na mesma posição:
— O senhor Roux disse-me maravilhas de ti.
A viuvez assentava bem à minha mãe, estava lindíssima. A
minha abominável avó estava ali, mostrando o sapato ortopédico
debaixo da saia negra:
— Sabe que a sua mãe vai dar um concerto?
Soltei a minha antiga gargalhada.
Disse a minha abominável avó:
— Não seja imbecil. De que se ri?
O meu irmãozinho saltava com um bobo de corte. O Arnaldo
interveio:
— São dois degenerados.
Pôs a nossa descoberta sobre o piano.
— É nosso, encontrámo-lo na antiga La Angelina.
Disse o Arnaldo:
— Mentirosos. Por onde terão andado estes mentirosos?
Jurei:
— Um dia mato-te.
Num salto, o Juan Sebastián apoderou-se da pequena
escultura.
Suspirou a abominável avó:
— Ai, María Salomé… Acabou-se a nossa paz. Deus queira que
o teu segundo casamento seja mais feliz que o primeiro.
Deduzi que aos quarenta anos a minha mãe estava noiva e
senti pena. Para me recompensar de toda aquela idiotice
ambiental, arrebatei o chicote ao meu primo e vergastei-o até a
pele dele ficar roxa e a minha mão e o meu braço entorpecerem
até ao cotovelo.
— A cútis… — gritava a avó.
— Mariquinhas, a velha porca continua a barrar-te com o creme
de Paris?
— A desgraça voltou — gemia a mãe.
Fugimos para o sótão. O Juan Sebastián dormia, cansado da
batalha travada na casa das gentes.
A Sara contou-me:
— O senhor francês visita a sua mãe e vem tomar chá com ela,
a sua avó, o senhor Arnaldo e a menina Camelia.
Uma dúvida assaltou-me. Não disse nada. Ouvi o piano. Como
uma criança principiante, a minha mãe executava a peça de um
compositor qualquer. Que alegria adolescente reinava no salão.
Entre duas escalas, o piano era interrompido pelo riso de dois.
Espreitei, como era meu hábito.
O salão estava iluminado pelas velas dos candelabros
florentinos, e nas zonas mais sombrias gracejavam os mais
maduros. O senhor Roux era o Gigante Amapolas[2]. Excitado
como um rapazola, perseguiu a minha mãe; um dos sapatos dela
saltou-lhe do pé, e ambos rebolaram no tapete. Debatiam-se em
jogos amorosos sem chegar a nada de profundo. Lembrei-me do
meu pai, e o meu riso sufocou-me porque, sem querer, tinha-lhe
apresentado o autor dos seus cornos.
— Não vais faltar ao meu concerto.
— Não, não faltarei.
Seguiu-se uma corrente de beijinhos barbudos no pescoço da
minha mãe. Que nojo.
— Coceguinhas não…
— Coceguinhas sim…
Tive de correr para não explodir ali mesmo. A Sara subiu para
nos trazer uma bandeja com um pouco de comida.
Perguntou:
— Menina, desceu há pouco?
— Sim.
Acendi um cigarro e esperei, ela estava nervosa e continuaria a
fazer perguntas.
— Viu alguma coisa?
— Quer dizer se vi os gerontes?
Não compreendeu e foi-se embora. Nós pegámos na bandeja e
atirámo-la ao ar, salpicou o teto e partiu-se ao cair no chão.
Rebolámos naquele líquido, naquele azeite igual ao da mãe e de
Roux no tapete do salão.
O Juan Sebastián atirou a sopa contra a porta e espalhou parte
da sobremesa na cara do senhor Roux, que se atrevera a subir.
— Chela, tenho de a informar sobre algo muito delicado e grato
para mim, e espero que o seja também para si.
— Já sei.
Confuso, parecia um balão que se desinchava. O meu afeto do
dia anterior havia evaporado; decidi, se conseguisse, meter medo
ao barbudo.
— Senhor Roux, não vê uma espécie de fantasma junto à
harpa?
— Não, nada.
— É uma mulher, a alma de Madelaine Fornier, acaba de me
dizer que é esse o seu nome, «Madelaine Fornier».
— Chela, está a brincar comigo… o nome da minha defunta
esposa era Madelaine Fornier.
Com certas coisas não se brinca. Uma estatueta de barro muito
lisa, de pura seda, flutuou até ao senhor Roux. O meu irmão
pronunciou as suas duas palavras, desta vez com devoção. O xaile
deslizou quando as cordas do instrumento tangeram.
«Perdão, Madelaine», soluçava Roux, ajoelhado. Fugiu pela
porta de serviço e nunca mais voltou.
De um só golpe, destruí a segunda juventude da minha mãe,
talvez a única.
[2]
Personagem criada por Juan Bautista Alberdi (1810-1884) na
peça homónima, uma sátira política aos tiranos argentinos e às
revoluções anónimas, sem heróis. (N. do T.)
A estirpe

Voltei a La Plata para pagar as propinas da universidade. Ao


passar por uma loja de animais, comprei uma tartaruguita e fiz um
furo na sua carapaça, por onde passei um fio de prata. Dei-a ao
Juan Sebastián. Batizámo-la: Bertha.
Começavam então as minhas aulas de Antropologia. Subi a
escadaria de pedra entre os dois tigres-dentes-de-sabre e, atrás
do busto do perito Moreno, descobri um mural com motivos
antediluvianos; de início não compreendi por que razão uns versos
de Rimbaud me invadiram a alma:

Flores mágicas zumbiam.


Encostas embalavam-nas.
Circulavam animais
de uma elegância fabulosa.

Mais tarde descobri o porquê de a minha alma ter sido invadida


quando compreendi que o poeta terá existido num tempo anterior
ao Tempo. Estive um bom bocado ali, a enfiar uma mão, um braço
e até um cotovelo psíquicos, mas tão reais, como os que me
ajudaram a exumar as esculturas. Depois chegou aquela primeira
aula do professor Cristofredo Jacob, no anfiteatro.
O professor empurrava um pequeno banco por todo o lado,
porque gostava de se sentar e, ao mesmo tempo, de ir de um lado
para o outro; de facto, caminhava sentado. Tema: idades da pré-
história. Material: filmes que projetava numa tela e um pequeno
ponteiro.
Eu divertia-me a olhar para as patas dos sáurios, tão bem
feitas, e para a mão do professor, à qual faltavam três dedos.
Amputou-os ele mesmo quando se feriu num osso, ao fazer
investigação na Patagónia. Por medo da cadaverina. Na tela
projetavam-se paisagens antediluvianas. Mais tarde, passaram as
calotas. Primeiro, do triste Pitecantropo. Segundo, do dinâmico
Neandertal. Terceiro, do avô Cro-Magnon. E as janelas do
anfiteatro do Museu de La Plata misturavam tons azuis-
esverdeados e lilases. Os cheiros da floresta de La Plata entravam,
quase líquidos, pelas fendas das velhas janelas, através dos
espaços de chumbo dos vitrais instalados pelos fundadores. Eram
figuras de Ingres. Jacob impelia-nos a esmiuçar um passado
possível, delicado e monstruoso.
Era difícil integrar o círculo de Jacob, e só os mais capazes
permaneciam. Ele gostava de mim, recebia-me no seu gabinete.
Entre os papéis deste sótão há vestígios da vida de estudante
que eu dividia entre as aulas no museu, as de Humanidades e as
viagens à quinta. Foi a melhor época da minha vida, sobretudo
porque quando batia à porta do gabinete do professor, que ficava
no mesmo edifício do museu, umas águas-furtadas onde reinava a
ordem desordenada, ou vice-versa, era recebida pelo sábio
solitário que já me contava entre a família que escolhera
pessoalmente. Livros, livrinhos, papéis, papeluchos, ossos e
pedras, fotografias e filmes e uma ou outra flor posta na água
límpida de um copo. Quando me contou o seu acidente na
Patagónia, comentou: «Nena (chamava-nos, aos seus discípulos
preferidos, nena ou nene), devemos agir sempre de acordo com
as exigências do momento, ou arriscamos perder a vida.»
Numa noite muito especial, confessei-lhe que teria gostado de o
ter como pai.
«Não precisas de tal coisa, és naturalmente capaz de te
desenrascar sozinha. Mas tens de manter os pés em terreno firme,
caso contrário qualquer empurrão mal-intencionado poderá fazer-
te perder o equilíbrio, não procures o amor e, se estiveres perto
do desamor, não permitas que ele te puxe, que te derrube. Luta
por ti.»
Naquela tarde, quis perguntar-lhe qualquer coisa, mas ele
continuava a pontificar: «Tudo é importante, até um inseto,
porque está cheio de vitalidade. Sabes quem morrerá se continuar
a fazer o que não deve? O ser humano, que come e destrói tudo o
que se move, e devora a vitalidade do universo ao ponto de
morrer de fome quando já nada se mover em seu redor. Para não
precisar de nada nem de ninguém, há que respeitar a vida.»
— Sim… Sim…
— O que me querias perguntar?
— Sobre isto.
Mostrei-lhe a pequena escultura. Tinha medo de que troçasse
de uma possível bugiganga.
— Deixa-me ver essa coisa.
Raspou a superfície de vidro e terracota com um canivete.
— Nena, não é uma bugiganga, é uma miniatura copiada de um
camafeu, ou uma reprodução tardia de um grupo de maior
tamanho. Meu Deus, as meninas lembram-me a senhora Agustina
Sarmiento e a senhora Isabel de Velazco, esta parece María
Bártola, e os meninos, Nicolasito Petusato e Nicolás Hobson.
Depois, corrigiu:
— As meninas parecem-se com María Bártola. Porque María
Agustina e Isabel não eram feias. Onde encontraste isto?
— Em La Angelina.
— Isto é italiano e muito antigo.
Indicou-me a morada de um antiquário alemão. Perguntei:
— Os anões podem ser consequência da sífilis?
— Sim.
— Da consanguinidade?
— Sim.
— Da rubéola?
— Sim.
O professor não sabia da existência de um anão em minha
casa, dos rios de sangue incestuoso que me afogavam, da sífilis
que o meu avô apanhou em Paris. Ignorava as minhas rubéolas.
Mesmo ignorando que eu poderia ser uma judia convertida ou
descendente de sefarditas, ergueu a sua bandeira ariana:
— Por exemplo, os semitas vão exterminar-se a si próprios por
obra do sangue repetido e cansado de ser transmitido de uma
geração para outra durante séculos e séculos; os seus indivíduos
já são fracos, deficientes, degenerados. Os sifilíticos estão podres
e, embora os tratamentos sejam por vezes eficazes, a meu ver
não existe cura definitiva, e é preciso castrá-los.
Enumera uma série de casos. Num deles, se a mulher grávida
contrair rubéola ao fim de três meses, tem de abortar.
Fala muito sobre procedimentos dos seus tempos de vida na
Alemanha:
— Nós, arianos, iremos para as estrelas de onde descemos para
cair nas estepes e avançar sobre a Europa. Regressaremos ao céu
como anjos em carros de fogo, porque tratámos dos flagelos e
amputámos tudo o que era necessário.
Pôs a mão entre os olhos e a luz. Sussurrou: «Mmm… Mmm…
partiremos em naves espaciais.» O candeeiro a petróleo iluminava
as manchas do velho fato de Jacob, o emaranhado de cabelos na
cabeça e no rosto. A sua voz trovejava, e eu temia que as iguanas
despertassem do seu longo sono. «Será assim.»
Disse:
— Acompanho-te.
— Onde mora, professor?
Eu era uma gata muito ágil, ele ofegava ao meu lado.
— Onde vive, professor? — insisti.
— Nas catacumbas, como os mortos.
— Sim… Sim… — (O contágio de Juan Sebastián.)
— Vais sofrer tanto, nena. Mas não mudes, e não procures a
felicidade, que não existe tal coisa para pessoas como nós, não
apodreças, nem permita que os apodrecidos te salpiquem.
Despedimo-nos à entrada do bosque, onde começa o caminho
de pedra. Entrou no mato denso de altos eucaliptos rumo ao seu
sótão.
O camafeu

Fui a Buenos Aires para entrevistar o antiquário. Ele jantava


tortas negras sobre um papel, e bebia café numa bonita chávena
de porcelana; de vez em quando, observava o objeto. Tudo
acontecia numa torre gótica, sótão portenho de antiga data.
Como se pedisse desculpa:
— Como pouco, este é o meu único alimento. Já estou velho…
Velhos os rodapés, as madeiras, as paredes, as coisas, o
colchão de palha onde o antiquário dormia.
Eu disse:
— Está tudo muito bem.
Ele indicou:
— Olhe ali enquanto eu examino a sua descoberta.
Apontou para o zootrópio, no meio do habitáculo, moldado em
forma de taça, sustentado por um pé mudéjar sobre o tapete de
veludo vermelho. Aproximei-me, girei o cilindro móvel sobre o seu
eixo e espiei pelas frestas simétricas, e ali, no fundo, dançavam
animais da selva e do bosque, dos rios e dos mares na neblina
ambígua. Aquilo terá inspirado Rimbaud quando escreveu:

Distante dos pássaros,


dos rebanhos,
das aldeãs,
que bebia eu,
ajoelhado
naquelas urzes
rodeadas de ternos
bosques de avelaneiras,
numa tarde de névoa
ambígua e verde.

Disse o antiquário:
— Está a pensar em Rimbaud?
— O senhor lê pensamentos?
— O seu pensamento é o meu pensamento, não há
pensamentos alheios.
Era um indivíduo ogival. A sua nobre magreza refletia-se na lua
veneziana, meio clara, meio escura, totalmente misteriosa. Vi-o
como uma enguia com braços e pernas em cuja mão a minha
escultura abria um buraco na água pelo qual eu descobriria aquilo
que ansiava e temia. Sentiu o mesmo que eu sentia e,
compadecido, propôs: «Observe os relógios e os instrumentos,
sou relojoeiro e músico.»
De súbito:
— Rapariga, descobri uma data: 1848. Descobri uma gravura
de uma harpa eólica… Esta família é originária da Sicília, não são
camponeses nem gente comum porque aqui está a flor de lis, que
é a heráldica do lírio, e uma minúscula marca de sinete onde leio
«Condestáveis de Caserta».
Nuns incunábulos, comparou: «Esta família viveu na Sicília, na
época borbónica, quando o reino das duas Sicílias foi dominado
por Alfonso Conde de Caserta.»
Apontou para o casal:
— O senhor é o condestável, a sua esposa é a condestablessa,
os anões não são bobos, mas sim os maus rebentos do azarado
casal.
Eu não disse uma única palavra porque uma grande tristeza me
escureceu a alma. O sábio antiquário tangeu uma harpa para a
acalmar. Pelas cordas vibrava a sua pátria, a Alemanha, e a
melodia destilava gelo e neve que salpicaram os copos de
Nuremberga, as tampas cinzeladas dos cântaros, os medalhões de
madeira do século XVI, e transbordaram a loiça de um batistério.
A lembrança do meu irmãozinho desfez o encanto, e desci à
rua. Interrompi os meus estudos para cuidar dele. Morreu um ano
depois. Perdi-o. Antes, devolveu-me as duas palavras que lhe dei.
Com o Juan Sebastián sepultei a minha infância e boa parte da
minha adolescência.
Decidi deixar-me viver, simplesmente.
Planos interrompidos

Adotei a Bertha, trazia-a pendurada numa pequena corrente de


prata, como se fosse um medalhão. Arrendei um apartamento
perto da Faculdade de Humanidades e mudei-me para lá com ela.
Aos vinte anos terminei os meus estudos universitários. Pensei
em não regressar à quinta. Não queria dar aulas nas escolas
normais nem no colégio nacional; ofereceram-me umas horas no
liceu, mas recusei. Tentaria, tanto quanto fosse possível, não gerar
compromissos nem afetos, evitaria criar amizades. Fazia traduções
de francês para uma editora e ajudava alunos insubordinados e
repetentes. Frustrada a minha esperança de viajar para a Europa,
por causa da guerra, iria ao Chile, a Ilha da Páscoa era a minha
meta.
Mas o diabo fez das suas.
A mãe adoeceu e chamou-me. Tiritando sob o meu casaco de
pele de potro, cheguei à quinta. O inverno gelava a casa com um
lençol de geada, as árvores devastadas pareciam esqueletos
suplicantes; de um qualquer lugar do telhado piava um borracho.
A minha mãe era um pedaço da paisagem arrasada pelo furacão.
Em seu redor estavam a minha abominável avó, o Arnaldo e a
Camelia; a Lula ainda não tinha sido chamada. O padre Ariel
rezava. Ela morria e eu não sentia nada. O aquecedor ronronava.
Alguém tirou um ramo de flores murchas de um jarro. Uma
presença visível só para mim levou a minha mãe, mas antes
conversámos.
— Minha filha.
Teríamos ambas ganhado tanto se ela me tivesse chamado
assim, muito antes.
Disse:
— Minha filha, Chela, vou morrer.
Não sei porque respondi:
— Sim… Sim… Che… la.
— Quero pedir-lhe algo em privado.
Os outros saíram e a minha mãe pediu:
— Deve garantir que irão cremar os meus restos mortais pois
tenho medo dos vermes, sempre senti nojo e horror dos vermes.
Renovei a cada dois anos o meu título no cemitério da Chacarita,
tudo está em dia e certificado. Garanta que a minha vontade se
cumpre.
Enquanto velavam a mãe, chegou a Lula. Fez má cara quando a
informei da última vontade da nossa mãe. Compreendi que o
assunto não seria nada fácil. Embora a minha avó e o Arnaldo me
apoiassem, a Lula e o grupo de freiras que a acompanhavam,
depois de se terem benzido, ameaçaram ir à cúria e ao Vaticano,
se fosse preciso. A minha mãe ignorava que basta um membro da
família se opor para que a cremação não se realize. Eu teria de
avançar com um processo legal.
Cumpriria a vontade da morta e irritaria a Lula.
E os dias passavam.
Por enquanto, o caixão da minha mãe ficaria na capela, não no
mausoléu familiar, como queria a Lula. Havia outros caixões na
capela. Quando puseram a minha mãe no seu caixão, eu não
estava lá. E certa tarde, quando lá fui, não sabia qual era o seu,
de tão bem arranjados e polidos que estavam todos os caixões.
Qual deles seria? Estaria eu a jogar um macabro jogo de xadrez?
Qual deles mover?
Bah… Estava farta. Iria perder o caso.
E quando menos esperava, a Lula telefonou-me.
Numa breve conversa, propôs a partilha dos bens e a venda das
suas terras; escolheu para si as terras férteis — assim já não se
oporia —, deixando-me as terras secas para cultivar súcubos,
íncubos e duendes verdes. O padre Ariel ajudou-me a tratar da
papelada.
De volta à capela, perguntei ao pároco:
— Qual é o caixão da minha mãe?
— Chela… Estou confuso…
Em redor de um santo, seis caixões pareciam amontoados.
— Será este?
— Talvez.
Para cúmulo da solidão, só me faltava ter de brincar com as
quinquilharias da morte.
— Temos de abrir o caixão?
— Temos.
Quinze dias depois da morte, tornei a vê-la. Estavam presentes
o padre Ariel e os responsáveis por transportá-la ao cemitério da
Chacarita. Lembrei-me das imagens medievais do Triunfo da Morte
e uma ternura até então desconhecida pela minha mãe roçou-me
esquivamente a pele. Não chorei. Abandonei-a às chamas
purificadoras. Era uma feia tarde de agosto de 1941.
E de repente entrei na minha infância dos quatro anos, na
menina vestida de organdi e na sala escura do fotógrafo. Pelo
trilho de brita do cemitério, pisei as poças formadas pela chuva,
que fazia buracos na areia. Ouvi «Cataplasma» e compreendi que
a minha mãe morreu para mim muito antes, num dia longínquo de
1925.
O guardanapo

Senti um desejo de comer um gelado de morango, tão urgente


que me causou dores de estômago e secura na garganta. Cheguei
a La Plata nestas condições. Apanhei um táxi para a confeitaria de
outrora.
Guardo entre os meus papéis dois guardanapos com manchas
vermelhas do morango. Já na confeitaria La Perla, sentei-me na
cadeira de sempre e pedi um gelado de morango; os meus
brônquios ronronavam.
— Um gelado, com este frio?
O homem senta-se na cadeira da minha mãe naquele dia já
distante. E eu sei que estou ali presa porque preciso de desabafar
com alguém. Conto-lhe o triste episódio que acabo de
protagonizar, ele sorri, é médico e já viu muitos casos assim ou
piores. Bebe vinho do Porto, depois de provar o gelado e usar o
meu guardanapo.
Para aligeirar a conversa, falamos sobre filmes, sobre Chaplin,
ele adora a canção «La violetera», pergunta ao empregado de
mesa se eles têm essa música nos seus discos. Eu sei que têm. E
a música açucarada sobe e adoça o ambiente como inocente
abelha confusa que quer libar nas flores decadentes do teto
barroco da pastelaria. Apresentámo-nos. Ambos somos platenses.
Ele conhece um pouco da minha incipiente produção literária,
porque a cidade ainda é um lugar em que sabemos com quem
conversamos.
— É um luxo estar consigo.
Vislumbro uma certa ironia.
— O meu filho mais velho tem a sua idade.
Vislumbro uma certa angústia. E percebo que este homem será
decisivo na minha vida.
Gostaria de chorar na lapela dele. Contenho-me.
Deveria ter chorado, como muitas, como quase todas, pois
assim não estaria tão sozinha, não guardaria uma única claridade:
a do dia 21 de setembro de 1941.
A luz do rio de La Plata, a única conversa com o Luis no seu
carro. Nunca houve outra luz. O sol primaveril batia em cheio no
carro, e as crianças jogavam futebol:
— Estes vão dormir hoje nem que o céu lhes caia na cabeça —
disse o Luis.
Ele fumava. Eu incrustava-me no corpo dele como um
crustáceo. Sempre fui um tanto ou quanto tola, um tanto ou
quanto desajeitada quando me deslizava ao longo da sua estatura
com humidade de lágrima e muco, talvez, sei agora, enojando o
ser maduro que me despertou e suportou os meus primeiros
humores amorosos. Naqueles dias, eu insistia apenas em me
amalgamar e ser uma peça única com o corpo daquele homem
tão alheio. Domina-me um desesperado anseio de posse, paro de
raciocinar, e trata-se de um exercício perigoso e cruel porque
avanço aos tropeções num território desconhecido, o do amor que
me estorricará.
De uma dentada, arranco um pedaço da sua lapela e mastigo-
o.
«O que fazes, maluquinha?» Ele compreende que desejo comê-
lo.
Trago os néctares do seu contacto. Um modo de o incorporar.
Mordi-lhe os lábios. Mordi-o tanto. Existo num âmbito estreado de
amar, tremenda desgraça, desapiedado orgasmo para alguém que
nunca sequer foi beijada. Se pudesse devorá-lo, acrescentá-lo-ia
às minhas entranhas e poria fim às suas obrigações de marido e
de pai, de funcionário público, de ser social. Não deixaria sequer
um rasto do meu amado para ninguém.
Para ninguém.
E o desgraçado recebe essas carícias reprimidas durante vinte
anos, unguladas, ásperas: «És um animalzinho tremendo»,
grunhe.
Hoje, repenso tudo isto. Ele era um homem comum; eu, a sua
louca apaixonada. Casal sem par. Parelha impossível. Naquele
tempo, eu percorria o seu extenso território adorado tal como um
cego percorre um texto em braille, sem deixar recanto intocado,
procurando a origem, a veia, o poro infinitesimal que forçaria o
êxtase total e irrepetível. Já não queria estar só, não queria ser o
animal solitário de La Angelina, preferia ser uma fera apaixonada
e cega à procura dos olhos do amor para poder ver.
Ele diz:
— És o que me faltava.
Na sua longa existência de mulherengo, nunca teve nada assim.
Nem terá, se sobreviver.
Digo-lhe:
— Não quero partilhar-te.
— Aonde iria nessa condição?
Eu não estava apresentável. Vivo num apartamento ao nível da
rua. Vulgar. Às vezes irrito-me com isso.
— Fica a noite toda.
Não pode. Disputam-no as suas pessoas, os seus compromissos
e as reuniões do Jockey Club. Começa a preparar-se em frente do
espelho e torno a agarrá-lo. O frio de antes, o frio de sempre que
me aprisiona quando ele se vai embora porque é um cidadão
comum, um homem de sociedade, um entre tantos, e custa-me
pensar porque o amo tão ardentemente.
— Divorciar-te-ias?
— Chela, são vinte e quatro anos de casamento.
— Amanhã parto para a quinta.
Receou perder-me. Desferi um golpe baixo:
— Mesmo que nunca mais te veja, serás sempre o meu grande
amor.
Parecia um adolescente repreendido:
— Chela, nunca amei ninguém como te amo a ti.
A avó tinha-se instalado na quinta. O Arnaldo brincava aos
fazendeiros. A Sara parecia uma árvore doente. O padre Ariel
mantinha-se bastante bem conservado.
Este último contou-me:
— O seu primo arranjou uma companheira.
— Que outras coisas arranjou?
— Gere a quinta e namora com a filha mais nova do Jacinto
Gay.
Uma menina forrada a ouro, filha de uma das Mendizábal. Os
dentes postiços da do comboio morderam-me, maldita ferradela.
O padre Ariel riu-se:
— O seu primo vai ajudá-los a gastar apostando em La Plata e
em San Isidro.
O degenerado apostava em qualquer coisa que se mexesse.
— Quando se casar, espero que se decida a mudar-se, ele e a
abominável avó.
— Quer comprar-lhe umas parcelas da propriedade.
— Tão esperto…
Nesse mesmo dia, perante um escrivão público, nomeei o padre
Ariel meu procurador.
Para comemorar este feito, de noite bebemos Lágrima de Cristo
na sacristia, brindando em bonitas taças de Murano.
— Sabe, Ariel, tenho um amante.
Ele engasgou-se com o gole e tossiu.
— Porque não se casam, filha?
— Porque é casado, padre.
— Filha, que Deus me perdoe, mas ele que se divorcie.
— Está casado há vinte e quatro anos.
— Deixe esse homem, tenha piedade da sua alma.
— Estou apaixonada, Ariel, louca até mais não.
— Apaixonada… Como será esse homem?
— Como todos.
Não, não pode ser como todos. O casarão vazio uivou. As
janelas mostraram os reflexos de espectros humanos e
humanoides. Os tapetes cobriram-se do pó que um andarilho
espírito marcou com os seus pés disformes e lamacentos. Ariel
parecia muito envelhecido.
— Case-se com um rapaz forte, com alguém preparado,
inteligente, ou com um português rico, e traga um bando de
crianças para La Angelina.
— Um bando de anões cabeçudos.
O bom padre ficou tenso, mas pouco depois ríamos como
loucos.
— Querida priminha…
Arnaldo. Pensei em erradicá-lo juntamente com a abominável
avó.
Continuou a fingir:
— Che, podias ter avisado…
— Para quê? Para que me atropelasses com o teu puro-sangue?
— És tão rancorosa.
E a sacristia encheu-se de infames: chegou a avó, apoiada na
sua bengala de cana-da-índia; sob o debrum da saia mostrava um
feio sapatão ortopédico. Chegou a Sara, negra e envelhecida.
A quinta era um mausoléu. Saí para os campos com o padre
Ariel. O sol fulgia nos penachos azuis dos cardos. Pólenes doces e
azedos viajavam nas antenas dos insetos, uma aura de beatitude
obrigava-nos a ficar em silêncio e, embora não falássemos,
pensamentos afins assolavam-nos. Nas janelas das estufas, o
orvalho deslizava como um choro de vidro. Ariel escutava o seu
interior devoto. Eu invocava os meus duendes, Bertoldo e Juan
Sebastián. Parámos na casa mais antiga. Ali estava o pátio de
ladrilhos vermelhos com o buraco da nossa descoberta.
Depois da partilha dos bens, os terrenos secos da quinta da
antiga La Angelina pertenciam-me. À minha irmã, as terras
arrendadas aos portugueses, solos férteis para cultivar e fazer
hortas.
Pensei que as minhas terras eram de saudade e nunca mais.
Entre as ruínas acendemos cigarros. Atirei uma pedra ao vento
sul, que bateu nos cilícios e nas alvenarias daquele lugar
execrável.
Ouvi: «Hu… Hu… Hu…»
Ouvi: «Sim… Sim… Che… la.»
Estávamos no último reduto da quinta, onde os meus
fantasmas me esperavam. Eu entoava uma antiga canção de
embalar com a minha voz de cana rachada, e os ardis do sol
pintavam imagens dignas de Goya nas mandíbulas do páramo.
Nessa noite viajei para La Plata. Vi luz no meu apartamento,
escorria por baixo da porta. Lembrei-me de que o Luis tinha uma
chave. E lá estava ele à minha espera como um adolescente, a dar
uma folha de alface à Bertha, o que me fez rir e despertou a
minha ternura.
Disse:
— Convido-te a irmos ao cinema, vão passar um filme com a
Greta Garbo.
— Tomo banho e depois saímos.
Oh, sim, A Dama das Camélias desfazia-se como um junco
doente. Uma chuva com neve caía sobre Paris e caiu também
sobre a minha alma a par de uma angústia insofrível. Já na
confeitaria, a mesma de antes e de sempre, retomámos uma
conversa insignificante para roçar uma maior seriedade.
A canção da moda inundava o ambiente ingénuo e barroco,
uma estúpida cançãozinha que se enfiou nos meus brônquios e
me obrigou a tossir:
Cuando se quiere de veras,
como te quiero yoy a ti,
es imposible, mi cielo,
tan separados vivir.[3]

As lágrimas queimavam-me o pescoço. Enfureci-me:


— Transformei-me numa pirosice ambulante.
— És uma rapariguinha.
— Não me faças chorar mais.
— Vamos embora…
No meu apartamento, cansámo-nos de amar como dois
desgraçados.
— Vais divorciar-te?
— Espera um pouco, tem paciência. — Parecia um rapazola. —
Não poderei viver sem ti, Chela.
— A tua mulher sabe disso?
— O que é que não se sabe em La Plata…
— Porque não lho disseste tu mesmo?
Mordeu o polegar da mão direita, a mão com que sustinha o
cigarro, e contou uma história que incluía a sua mulher, prima do
governador, uma possível promoção que dependia dessa alavanca.
Devia portar-se bem. Um divórcio, agora, acabaria com as suas
aspirações como pó varrido com uma vassoura molhada.
Senti-me suja. Precisei de um banho quente e de muito sabão.
Pensei na María Assuri, porque se ela estivesse aqui como quando
eu era criança, ter-me-ia ensaboado e limpado tão bem, tão longa
e profundamente. Fechei a porta da casa de banho com um
pontapé e entrei no chuveiro.
Gritou:
— Quando te vejo?
Respondi, desanimada:
— Amanhã almoço no mesmo lugar.
Intuí a conveniência de ninguém me ver com o Luis.
No restaurante, sentei-me num recanto com a Bertha no bolso.
Pedi uma costeleta e alface. Enquanto lia Proust: «Nada dura,
nem sequer a morte.»
Sorriria ao Luis quando ele chegasse. Ouvi uma saudação de
alguém: «Bom dia, doutor, como estão?» Logo depois, a mão
suave do meu amado pousou-me no ombro e ouvi, espantada:
«Apresento-te a minha mulher.» Acho que lhe estendi a mão como
se estivesse debaixo de água turva e insalubre. Vi, horrorizada, o
Luis puxar duas cadeiras para junto da minha, porque decidira que
almoçaríamos juntos.
Não sei de que falaram, porque me enfiei na minha carapaça ou
na da Bertha.
Nunca consegui recordar nada do tenebroso encontro que
serviria para acabar com os mexericos platenses. A cada minuto
pensava em como me evadir, mas porque já era um ser sociável,
aguentei até à sobremesa. Saí com o casal para o passeio, todavia
não aceitei a boleia de carro. Parti como um cão com uma lata
amarrada à cauda. Tranquei a porta do apartamento e regressei à
quinta.
Decidi viajar. Iria para o Chile. Assim, em meados de 1943,
como um dente cariado com o orifício atormentado por chumbo
fervente, com dores nos ossos de todo o esqueleto, caí na dura
superfície de Santiago.
Estava doente, com bronquite e ansiedade. Tomava soníferos e
calmantes, ingeria comprimidos com bastante assiduidade,
embora acreditasse não estar viciada. Guardava as «balas» numa
garrafinha azul, de vidro, a que chamei a «minha lâmpada de
Aladino», e sempre que a abria, prometia: «É a última vez», mas
o doutor regressava e eu «esfregava» a minha lâmpada.
Era um verdadeiro encantamento, aquele génio da serenidade
que fluía do vidro azul para afugentar os ogres angustiantes que
eu trouxera do outro lado da cordilheira.
[3]«Quando se ama de verdade,/ como eu te amo a ti,/ é
impossível, meu amor,/ viver tão separados.» (N. do T.)
Chile que ri

Um poeta chileno que viveu em La Plata, Alfonso Gómez


Líbano, que quando cursava Humanidades publicou Suicidada en
las aguas e Población de la noche, recomendou os meus serviços
num jornal de Santiago e, durante a leitura de um novo livro que
tinha em preparação, apresentou-me ao círculo de Neruda.
Recitava Alfonso:

Dentro de ti, Diego de Almagro,


palpita o coração como campainha
e faz a sua cova de profundo vale,
quando o vento o percorre e tem a forma
de um magro guerreiro saído da febre.

Alfonso propunha-se ler o extenso poema.


— Como se chama? — perguntou Neruda.
— «Sangue povoador».
Não continuou a leitura.
Já não me chegavam as «balas», nadava em ácido lisérgico
como muitos dos intelectuais daqueles dias em Santiago. Embora
não fizesse falta, a droga agigantava ainda mais o abrupto e
perigoso Neftalí Reyes, recitando os seus poemas com voz grossa
e sob uma máscara completa ou cabeça de papelão. O fumo e os
tragos subiam-nos do estômago à boca, e eu perguntava-me:
«Por que raio escrevo depois de ouvir este fenómeno?»
Lançava côdeas aos poetas, permitindo-lhes ler algo: eu nunca
o fiz porque percebi que o espírito jocoso, quase não domesticado,
daquele índio zombava deles. Uma tarde abriu as mandíbulas para
mim:
— Tu não lês nada?
Quase me mijei:
— Não…
Dia sim, dia não levava os meus textos ao jornal de Santiago, e
num dos números publiquei um artigo sobre Neruda. Durante uma
semana não fui ao cenáculo, um pouco envergonhada, um pouco
aterrorizada.
Quando o monstro se mudou para a sua «Isla Negra», fui sem
ter sido convidada e instalei-me no círculo. Como quem escuta
debaixo de água, ouvi-o dizer algo sobre o meu artigo. Não sei por
que motivo o considerou engraçado, mas não fez pouco do texto.
Quase me apaixonei por Pablo.
Contive os meus ímpetos no momento certo, porque ele tinha
tempo para todas. Além disso, eu estava vacinada contra o amor.
E a certeza de habitar o sótão do monstro que meditava sobre a
sua pobreza, na infância, naquela casita e naquela chapa que o
vento fustigava, erguendo pedregulhos, enternecia-me. E a chuva
de pedras amassava a casinha quando o vento se intensificava,
furibundo. Eu sofria com o gesto repetido do poeta, ao tapar as
próprias orelhas com as mãos, com se acalmasse um pranto
antigo.
Perguntei:
— Nasceu em Temuco?
— Em Temuco. Na sua noite oceânica ladram os cães
desorientados, as rãs coigüillas iniciam os seus coros a partir da
água, e esse ruído de água, essa aspiração dos seres estende-se e
interceta-se entre os grandes rumores do vento. A noite passa
assim, batida de costa a costa pela rejeição dos ventos, como um
aro de metais escuros lançado do norte para os campanários do
sul. O amanhecer solitário, empurrado e retido como uma barca
atracada, balança até ao meio-dia, e a tarde de telhados azuis, a
branca vela principal do navio desaparecido, aparece na solidão da
aldeia.
Em frente às minhas janelas, atrás das árvores de fruto verdes,
mais distante das casas e do rio, três colinas encostam-se ao céu
tranquilo. Castanhos e amarelos, paralelogramos de campos e
sementeiras, estradas, matagais, árvores isoladas, a grande colina
de cereais dourados quebra lentas ondas uniformes contra o topo.
A chuva aparece na paisagem, cai do céu vinda de todos os lados.
Vejo os grandes girassóis dourados curvarem-se e o horizonte das
colinas escurecer-se com o seu véu palpitante. Chove sobre a
cidade, a água dança desde os subúrbios de Coilaco até à parede
dos montes; a tempestade corre pelos telhados, entra nas quintas,
nos campos de jogos; junto ao rio, entre bosques densos e
pedras, o mau tempo enche os campos com aparições de tristeza.
Chuva amiga dos sonhadores e dos desesperados, companheira
dos inativos e dos sedentários, agita, estilhaça as tuas borboletas
de vidro nos metais da terra, corre pelas antenas e pelas torres,
despedaça-te nas casas e nos telhados, destrói o desejo de ação e
ajuda a solidão dos que têm as mãos na testa atrás das janelas
que solicita a tua presença. Conheço o teu rosto inumerável,
distingo a tua voz e sou tua sentinela, a que desperta ao teu
chamamento na aterradora tempestade terrestre e abandona o
sonho para recolher os teus colares, quando cais nos caminhos e
nos casarios, e ressoas como perseguições de sinos, e molhas os
frutos da noite, e mergulhas profundamente as tuas rápidas
viagens sem sentido. Assim danças, sustendo-te entre o céu lívido
e a terra como um grande fuso de prata girando entre os seus fios
transparentes. Entre as folhas molhadas, gotas pesadas como
frutos pendem dos ramos; o cheiro da terra, da madressilva
humedecida; abro o portão pisando as ameixas tombadas,
caminho sob os galhos verdes e molhados. De súbito aparece o
céu entre eles como o fundo do meu copo azul, recém-lavado
pelas chuvas, sustido pelos ramos e perigosamente frágil. O cão
acompanhante caminha, cheio de gotas como um vegetal. Ao
passar pelos campos de milho esquiva-se dos pequenos
aguaceiros e dobra os enormes girassóis que, de repente, me
põem os seus grandes distintivos ao peito. Apareces então,
sobressaltado, seguro da fuga da água, e corres sigilosamente sob
a tempestade, ao encontro dos montes, açambarcas dois anéis de
ouro que se perdem nas charcas da aldeia.
Há uma avenida de eucaliptos, há poças debaixo deles, cheios
da sua intensa fragrância de inverno. A grande dor, o pesar das
coisas gravita à medida que caminho. À minha volta a solidão é
grande, as luzes começam a trepar as janelas e os comboios
choram na lonjura antes de entrar nos campos. Existe uma
palavra que explica o pesar desta hora, procuro-a enquanto
caminho sob os eucaliptos taciturnos, e pequenas estrelas
começam a assomar das charcas, escurecendo o ambiente. Eis a
noite que desce dos montes de Temuco.
E tudo isto através do cabeçudo de papelão.
Pensei em favorecer-me com uma catarse pessoal de poemas.
Fui ao editor de Alfonso Gómez Líbano, levei-lhe um molho de
versos. Ele aceitou-os e publicou-os. Ah… Não consegui limpar-me
de toda a minha miséria vivida. Não pôde ser, porque os
fantasmas domésticos salpicavam cada um dos poemas com o seu
ambíguo sangue imundo. Atrevi-me, tentei tudo. Pedi a Neruda
uma recomendação para fazer artigos e fotografias na Ilha da
Páscoa. Obtive-a em meia hora.
Depois dos meus três anos em Santiago, voltei a partir, com
uma boa máquina fotográfica e uma máquina de escrever portátil.
Ilha da Páscoa

Diante de Rapa Nui, a quatrocentos quilómetros da costa


chilena, o chão é vulcânico, com tons de cinza-elefante, como
couro esticado sobre a província de Atacama, à qual a ilha
pertence. Do mar ascende uma névoa azul-lilácea e as pessoas
recostam-se num fundo acidentado, à espera que o Colosso do
Pânico, figura goyesca demencial, brote da marina como fungo.
No solo arcaico, que antigamente era mole, enormes pés
plantaram as suas pegadas como mensagens vizinhas dos
monumentos. Entre a vegetação rala emergem cabeçudos de
pedra, segundo se diz obra de uma estranha civilização
desaparecida. Ou serão os deuses representados por um
insuspeito paganismo?
«À noite cantam», contou-me um nativo.
E eu presenciei esse fenómeno. A noite canta no vento das
concavidades dos rostos de quinze metros de altura. A quem
dedica os seus cantares? Talvez a uma aldeia de argonautas
escondida no Pacífico? Talvez aos habitantes das outras ilhas,
encalhadas como galeões de uma frota fantástica e impossível?
Descobrimos a voz da muda ou antiga pátria Rapa Nui.
Saudamos a cratera, a Ranu Raraku. Tornamo-nos aprendizes de
vulcões, como o Pablo Neruda menino, observando as línguas do
Aconcágua, o fogo do Tronador. E, como em A Rosa Separada ao
seu anoitecer, vemos o fogo do Villarrica a fulminar o gado entre
um crepitar de bosques incendiados.
Dizem que as ilhas foram criadas pelo vento transportador de
argila, barro e sémen que voava. De tal feito nasceu a Melanésia e
mais tarde a Polinésia. E os dedos do Senhor Vento esculpiram
com argila molhada a estátua inaugural e, com alegria de
traquinice infantil, ele próprio de imediato a desfez. Construiu
depois uma segunda estátua, dessa vez a partir de sal: com fúria
de artífice ciumento, o mar dissolveu-a. E o Senhor Vento
demonstrou o seu poder superior a qualquer outro esculpindo o
Silêncio moai de granito, eterno. E o Ser que ele é observa com os
olhos da pedra. Cheira com o seu nariz de proa. Mede a distância
a partir da claridade do retângulo. O Senhor Vento gostou de
proliferar os ciclopes de pedra em amoroso conúbio com as brisas
da Oceania, e daí foram brotando as enormes cabeças de pescoço
alto e grave permanência.
Preocupante permanência. Como a eternidade.
Eu escrevia apoiando a máquina de escrever numa rocha plana,
enviava os textos para o continente e no fim de cada mês recebia
um salário. Fiz fotos luminosas e muito interessantes. De certo
modo, eu tinha regressado à minha infância pastoril, pois comia
ao ar livre, e com isso agravou-se o meu hábito de falar sozinha.
Pior, estava viciada, embora não ousasse admiti-lo. Numa noite
azul-lilás, um rosto derrotado, quebrado e caído, com o nariz
afundado na crosta calcária da ilha, o mais afundado de todos,
aquele que insiste em regressar à lava dos confins oceânicos do
umbigo do mundo, esse mesmo cantou para mim: «Único e
perfeito amor.»
Caí de bruços e beijei o calcário, como despedida, para voltar
ao meu país.
Regresso a casa

Voltei à quinta em agosto de 1948, quando as cercas douradas


de giesta e acácia faziam brilhar a fronde, douravam a paisagem.
Pensei ter ouvido uma imensa harpa tocar para mim, as notas que
viajavam na lonjura como as nuvens do inverno prestes a
terminar.
Passei algum tempo a rondar as cercas, não tinha pressa em
entrar depois de um lustro de ausência. O padre Ariel viu-me e
veio a correr como uma matrona, pois tinha engordado.
Conversámos sobre tudo.
— A sua avó morreu em junho.
— Ah…
— O Arnaldo casou-se e já se divorciou.
— Degenerado.
— Para lhe dar a novidade da sua avó, enviei um telegrama
para Santiago.
— Eu não estava em Santiago. Além disso, não faz mal, porque
não teria vindo.
— O Luis enviuvou dois anos depois de ter partido, mas não me
pareceu oportuno avisá-la.
— Porquê? Eu teria regressado.
— Pode procurá-lo. Ele deixou o endereço no espeto para
papéis.
— Acha que devo procurá-lo? Passou tanto tempo…
— Deveria vê-lo o quanto antes.
O padre Ariel continuou a informar-me: uma revolução em
1943, um movimento popular em 1945; li essas notícias em
Santiago e pensei em como estaria o Luis com a derrocada do
partido conservador, o seu partido. A Lula tinha sido transferida
para Espanha; transferência dogmática. Passei um ano na quinta
sem me atrever a fazer um único movimento que me aproximasse
do Luis.
Eu mudava de sítio o espeto com a mensagem sem sequer ler o
endereço, a rua do meu amado. Por intuição, sabia que devia
proteger-me. Fui a La Plata, ao posto de turismo. Pus o meu
passaporte em dia para prevenir quaisquer situações. A Europa
era a minha meta. A cidade luzia uma agressiva primavera
perfumada de tílias. Comovida pelos doces duendezinhos da
minha juventude e pela minha sensibilidade agudizada, senti a já
antiga dor nos brônquios. Seria alergia, esse mal-estar que me
fluía pelos olhos e pelo nariz, como água?
Ou pranto. Os duendes e os fantasmas da quinta nunca me
fizeram chorar. Eu chorava pelo Luis. A lâmpada de Aladino. Ingeri
um comprimido do seu protuberante seio de vidro azul;
fortalecida, ganhei coragem para espreitar o endereço anotado no
papel preso no espeto. Tomei café. O mundo era meu.
Disse à Bertha, pendurada no meu pescoço na sua
correntezinha de prata:
— Bertha, agora que o mundo é nosso, vamos buscá-lo.
Eufórica, premi a campainha do apartamento. Uma porteira ou
encarregada disse que o doutor voltaria às quatro horas. Quando
fechou, deslizei um bilhetinho por baixo da porta: «Espero por ti
hoje e amanhã, na quinta, a qualquer hora.»
E naquele mesmo dia às seis da tarde o seu perfume invadiu a
casa. Subiu ao sótão. Fascinada, considerei que o parêntese que
me impusera era estúpido e desci a correr do meu exílio até à
casa que fora das gentes para reeditar o tempo do amor, do único
e perfeito amor.
O Luis já não era o mesmo de antes…
Estendeu-me a mão com todo o formalismo, não me encarou
uma única vez. Falámos de assuntos desinteressantes e pouco
depois ele despediu-se. Fiquei a escutar o motor de automóvel até
se tornar um murmúrio.
Senti vergonha como quando o meu pai me disse: «A sua mãe
pariu um varão.» Invejei os mortos: os meus pais, o Juan
Sebastián, a minha avó abominável, e recitei em voz baixa uns
versos de Rimbaud que encaixavam bem naquele momento
maldito:

Um raio vindo do céu


aniquilou a comédia.

Oh, sim… eu devia partir, despedaçar, cortar às fatias, levantar


âncora. Fui tão certeira em ter posto a minha documentação em
dia.
Iniciação parisiense

Paragens técnicas tornaram longa a viagem. Dormi um pouco,


comprimidos. Trazia como única bagagem a minha bolsa de pano,
a mesma dos achados com o Bertoldo e o Juan Sebastián. Lia,
num texto que me acompanhava sempre, estes versos de
Rimbaud:

Invejava a felicidade dos animais,


as lagartas, que representam o sonho dos limbos,
as toupeiras, o sonho da eternidade.

Pensei que um raio do céu aniquilou a minha comédia e me


atascou na merde. O padre Ariel tinha depositado dólares em meu
nome num banco de Paris; eu trazia algum dinheiro na bolsa, caso
fosse necessário. Voei durante quinze horas. Aterrei no aeroporto
de Paris, sozinha e sem parentes à minha espera, e veio-me à
memória o dia da minha primeira comunhão.
Disse à Bertha:
— Basta de autocompaixão, vamos procurar um lugar para nós
duas.
Íamos num táxi em direção ao bairro de Sacré Cœur. Por
indicação do chauffeur, encontrámos um quarto que ficava por
cima de uma padaria. Nele, havia um pequeno chuveiro separado
do resto do espaço por uma cortinita de cretone desbotado, e a
água do banho escorria por um ralo de madeira. Havia um
bengaleiro em forma de harpa. Suspirei: «Os sótãos perseguem-
nos.»
Da padaria subia um delicioso aroma. Desci para arranjar uma
folha de alface para a Bertha, que pus na saboneteira em cima da
mesa de cabeceira, e saí para a noite.
Eu era um animal faminto, um friorento bicho em luto, prestes
a uivar.
Caminhei pelas sombras lilás-azuladas, pontilhadas por
coruchéus góticos, até chegar às luzes de néon. Num ápice,
apanhei um táxi. As confeitarias aguçavam-me a fome. As
perfumarias davam vida ao fantasma de alguém que usava loção e
perfume francês. Entrei num café. Sentando-me perto da cozinha,
reconfortei-me com peixe, batatas e castanhas. Bebi conhaque e
supliquei por companhia. Estava tão magra que temia passar
despercebida ou ser invisível. Como eu mal ocupava um canto da
mesa, os três jovens ocuparam o resto. As minhas preces foram
ouvidas. Eu ia matricular-me no Instituto de Psicologia, e eles
também.
Depois de comer, convidaram-me para tomar um banho de
gárgula, batismo de coruja. Chovia. O céu ficou menos carregado,
e os monstros de Nossa Senhora vomitavam jorros enferrujados
sobre o Sena. Deitados, recebemos um ensalmo pluvial que nos
consagrou filhos da noite parisienne. Adotaram-me três irmãos: a
Pauline, a Solange e o Jean. E fomos quatro irmãos apreciadores
do cheiro das mansardas, às quais se sobe por longas, estreitas e
retorcidas escadinhas em caracol; da música de cordas, que
poucos podem ouvir porque brota de encordoamentos que mãos
transparentes dedilham, dedos com dedais de ouro; das portas
cujas fechaduras bolorentas se abrem com chaves buriladas como
joias; da simbiose amorosa que transforma qualquer um em amor
ideal, único e perfeito.
Entretínhamo-nos exercitando o corpo fora do tempo presente.
Varríamos cinzas ao pé das acácias. Lambuzávamo-nos com sumo
de mandrágora. Com óleo de rícino e cânfora. E, para superar a
nossa fotofobia, refugiávamo-nos em velhas arcas até não
aguentar mais. Contraí fotofobia em Paris, por habitar a noite de
néon, de iluminação elétrica, de candeeiro a gás e querosene.
Encontrei aqueles três sobredotados ao cruzar o oceano de ar,
com as minhas antenas nada comuns. Ou foram eles que me
atraíram e me encontraram? Nas aulas de Psicologia distinguimo-
nos em pouco tempo.
Ofereceram-nos estágios remunerados como assistentes, e foi
assim que me tornei independente dos envios de dinheiro do
padre Ariel e das filas no banco.
Era inverno e noite quando a Solange se atirou para o Sena.
Pescaram-na, garganteio entre os vómitos das gárgulas que
agitavam as margens do rio, pescaram-na como a um peixe
comprido com algas coladas ao corpo que quase a prenderam ao
fundo.
Ela melhorou e levámo-la para o albergue de Sacré Cœur.
Acendemos a salamandra e ficámos na torre a conversar, como se
nada tivesse ocorrido. A polícia aceitou que se tratara de um mero
acidente. A Solange pediu ao irmão um sumo de mandrágora e ele
derramou um líquido vivo, reluzente, sussurrante, cujo vocabulário
entendi.
A Solange saiu connosco, reanimada. Não aguentava caminhar
mais do que dois quarteirões. Estendida num sofá de bombazina,
parecia liquefazer-se, e temíamos que quando olhássemos de
novo para ela restasse apenas uma mancha de humidade. Há
vinte e quatro anos que andava apoiada nos dois irmãos. A
invertebrada inteligente tinha de escalar para ocupar qualquer
sítio. Parecia Michèle Morgan em A Sinfonia Pastoral.
O bar que mais frequentávamos tinha uma parede decorada
com esqueletos de crustáceos: baratas, gafanhotos, lagostas,
camarões, todos eles transformados em músicos com guitarra,
violino e contrabaixo por algum artesão paciente e original. Tal
cenário era o pano de fundo para o repouso da Solange, pálida
enguia acrescentada ao mural.
Perguntei ao Jean:
— O que lhe deste a beber?
— Mandrágora.
Entre os dedos, a Solange brincava com uma estranha
terracota. Do seu pescoço pendia uma correntezinha de prata; vi
as suas três faces, que formavam um triângulo, e notei o
movimento rotativo.
— Mostra isso à Chela — disse o Jean.
Na minha mão, a correntezinha latejou como uma artéria.
Juntos, declararam: «Somos druidas.» Eram donos de um castelo
no país dos Carnutes e as suas origens remontavam à pré-história.
A mansão datava de 1200. Assim se uniram ao meu espírito os
três irmãos Flamel de Taliesin. Convidaram-me a conhecer o seu
lugar de origem. Viajámos uma noite inteira de comboio, tirámos
uma semana de férias. Celebrariam uma cerimónia de iniciação de
um rapaz chamado Lazare, e, embora eu não tenha perguntado
em que seria iniciado, compreendi que integravam uma das
muitas seitas que existem em Paris. Entrava-se no castelo através
de uma ponte, antes levadiça, agora fixa. A fortaleza castelã
parecia contemplar os prados pelas suas claraboias circulares e
abria-se à área externa através de janelas laterais de torreões
redondos, com molduras cheias de ornamentos e vigias em
ameias. Um pavilhão do jardim fazia par com a capela e, na
fachada, a heráldica familiar reproduzia o medalhão trifásico.
Ali, pude ler: «EURE-CHER», nome de dois rios.
Contemplei a sala de jantar medieval com a sua mesa comprida
e as suas cadeiras, o espaço para a criadagem e a tribuna para
jograis e copeiros. Os meus três amigos desapareceram. Subi uma
escadinha em caracol gasta pelos séculos até à sala dos
escudeiros com cavalos de couro e cavaleiros de cera, cheios de
ferraduras, que espiavam com olhos gauleses pelas viseiras, como
tigres, como gatos ou coelhos ruminando um desgosto. Nos
relicários, admirei pobres madeixas naturais repousando entre
fitas e espartilhos, nas cristaleiras. Cada coisa com nome e data.
Contei setenta e quatro. Estava no melhor sótão do mundo.
Naquele momento, não imaginei que ainda viveria outra
experiência muito mais extraordinária. Mas aconteceu bastante
tempo depois.
Saí para o bosque e descobri, encostada a um muro, outra
escadinha em caracol que conduzia a umas vetustas águas-
furtadas. Subi e bati na porta de madeira de acácia, que cedeu, e
lá dentro encontrei os meus amigos.
Não sei se me informavam ou se falavam entre eles.
— A Solange está grávida — disse o Jean.
A Pauline admoestou:
— Deviam ter tido cuidado.
A Solange afirmou:
— Não quisemos ter cuidado.
Tirei terríveis conclusões.
O Jean decidiu:
— Vamos consultar a avó.
Como seria a velha? Tão abominável quanto a minha? Entendi
que a raiz daquela família se afundava em algo pantanoso.
Lembrei-me do buraco no pátio de La Angelina e do achado.
Lembrei-me do Juan Sebastián.
Convidaram quinze jovens a integrar o círculo de iniciação de
Lazare, todos eles da mais pura estirpe, ou seja, descendentes de
fundadores do lugar. Sociedade muito fechada. Referir-me-ei
apenas ao Jules e à Sabine de Saint-Germain, irmãos, ela casada
com um negro, Remus de Tamise, e fisicamente defeituosa. A
nossa amizade durou muitos anos. O banquete em homenagem a
Lazare conjugava os seus aromas com o cheiro a sebo das velas,
pois não havia luz elétrica. As tochas nas paredes criavam um
verdadeiro teatro de sombras. Havia sempre pratos frios de aves e
peixe e champanhe para os presentes. Percebi que os pais de
Lazare estavam nervosos.
O meu espírito predispunha-me a presenciar qualquer prodígio,
e tentei ligar-me aos espíritas do grupo. Dedilhei antigas cordas já
tocadas, agucei os meus radares, comuniquei com Aquilo do
universo paralelo, tangível como este que pisamos. E as sombras
dançantes metamorfosearam a Solange num enorme caule, cujos
contornos instáveis se enroscaram nas colunas. Ela vestia um
hábito verde de seda. Os seus irmãos conduziram-nos ao pavilhão
e subimos até às águas-furtadas, em cujo frontão li: «CAVEAU».
Todos os membros da confraria se instalaram em banquinhos, nós
incluídos, de acordo com o seu grau. Eu não tinha grau e sentei-
me ao lado do Jules, que morria de riso. O Jean entoou uma
ladainha alquímica:

Quando a pedra é perfeita para alguém,


transforma-o de mau em bom,
torna-o liberal, doce, piedoso,
tira-lhe a raiz de todo o pecado,
permanecendo, daí em diante,
contentado com as graças
que tiver obtido
depois da procissão.

O Jules explicou (ao meu ouvido): «A processionária é uma


lagarta que passa a vida a roer as azinheiras; consegue roer tudo,
menos o carvalho.» Enquanto isso, o Jean suplicava:

Somos como a Processionária,


adquirimos consistência ciliar
e atormentamos aqueles que
nos tentarem destruir:
se rasgarmos os epitélios,
nasceremos borboletas
e pousaremos no totémico carvalhal.

O Jules sussurrou-me de novo: «Os da frente já são borboletas;


nós somos lagartas.»
Como lagarta, comecei a rastejar pelas paredes cinzeladas e
esmaltadas de azul-esverdeado, onde um anjo bicéfalo amparava
um carvalho jovem, um pássaro arrancava penas do seu bucho e
três serpentes esticavam as línguas em direção à ave; atrás do
anjo, um leão de oito patas, duas cabras violinistas e um grande
selo preto com a legenda: Spiritus Facro Fancti Gratia. Non Ex Mes
Fcientia, Fed Ex. Vi numa grossa coluna, ao longo de todo o fuste,
símbolos listados. E recordei-me então de um livro da biblioteca
do meu avô, cujas capas de cobre resguardam folhas de casca de
árvore, divididas em três partes, de sete páginas, em cujo ex-líbris
uma serpente se enovela, e uma segunda aparece crucificada,
enquanto de uma fonte brotam mais ofídios. Uma legenda em
ouro brasona as margens: «Abraão, o Judeu, Príncipe, Sacerdote,
Levita, Astrólogo, Filósofo, à Nação dos Judeus, pelo Olho de
Deus, dispersará os Gauleses. Saudações. DI.» Era um documento
assinado por Nicolas Flamel em 1357. Rastejei para baixo,
descendo por outro fuste, e vi as cruzes desenhadas: ansata,
grega, latina, patriarcal, de Tao, de Santo André, de Malta, de
Jerusalém…
Caí no chão, suavemente. Os confrades tiraram de uma arca as
suas togas em forma de dominó, com cruzes gamadas no peito;
nós, as lagartas, não tínhamos direito a usá-las.
A Solange levantou uma retorta fumegante e recitou:

Existindo desde a eternidade,


não pude nascer
de um pai, nem de uma mãe,
mas de uma força
elemental da Natureza:
dos galhos das árvores,
dos frutos dos bosques,
das flores da montanha.

Brinquei na noite,
dormi na aurora.
Fui víbora no pântano,
águia sobre os cumes,
lobo na selva.

Vagueei longamente sobre a terra


até adquirir a Ciência,
e vivi em cem mundos,
e caminhei em cem círculos.

O coro de borboletas respondeu-lhe:

Nós erguemos os dólmenes e os menires


na aurora dos tempos; quando Chartres
não era o que é, erguemos a bandeira
dos Carnutes.

Exterminaremos com fogo os inimigos da raça pura,


cujas cinzas cairão no mar.

Antes dos invasores celtas, antes dos arianos,


na idade de ouro megalítica, fomos donos.
Voltaremos… Voltaremos…
Submeteremos à fogueira, mãe da pureza,
quem se opuser a nós.

Acenderam velas pretas. A Solange enfiou a mão, o braço e até


o cotovelo numa cesta de vime e retirou uma serpente, que, com
harmoniosa delicadeza, se lhe enroscou até ao pescoço. Lembrei-
me das minúsculas serpentes da quinta, com as quais
brincávamos, e senti saudade do éden. Os iniciados bebiam
alternadamente de uma mesma jarra, em transe, caíam no chão e
gesticulavam. Como chegara o instante supremo para Lazare,
ordenaram que nós, as lagartas, saíssemos.
O Jules disse:
— Divertem-me.
Perguntei:
— O que vai acontecer ao Lazare?
— Se o matarem, ressuscitará.
Pelas claraboias entrava uma alvorada suja.
— O que bebiam os iniciados?
— Sumo de mandrágora.
Uma hora depois, juntaram-se a nós.
Sabine e Jules

O Jules convidou-me para sua casa: «Não te iludas, não é um


castelo.» Ele dividia um apartamento amplo com a irmã e o
cunhado. Morei ali durante algum tempo, convinha-me pela
proximidade com o Instituto de Psicologia. Naturalmente, levei a
Bertha comigo. A Sabine contou-me que possuíam um grande
castelo, mas que o arrendavam ao município, o que lhes
proporcionava um bom rendimento. Sabine de Saint-Germain era
uma pessoa «diferente». Bela na juventude, sofreu uma doença
óssea que lhe deixou uma grande corcunda nas costas. Desde
então, caminhava a olhar para o chão como se procurasse algo
oculto, inescrutável. Mas tinha tal inteligência e sofisticação que
era um verdadeiro prazer estar na sua companhia, falava mais do
que qualquer um numa conversa e, sempre por dentro dos últimos
acontecimentos em artes e letras, informava melhor que uma
revista especializada. Agradável, pícara, irónica, a Sabine foi
minha amiga.
O Jules tinha feito trinta e dois anos e aparentava ter dezoito.
Consigo vê-lo neste preciso momento: sofisticado como a Sabine,
embora um pouco melancólico, adora madeiras e metais
preciosos. Passamos horas e horas em êxtase diante dos esmaltes
dramáticos dos templos, dos vitrais italianos e das porcelanas de
Sèvres-Limoges. Em redor do Jules há um halo de cera e almíscar,
não me lembra ninguém e nunca conhecerei alguém que se
pareça com ele. A sua inteligência anda a par com o seu
refinamento. Ainda que as suas camisas sejam de seda com
punhos de renda, e que prefira o veludo para a confeção dos seus
fatos, jamais será anacrónico, muito menos ridículo.
— Quando me cansar de mim mesmo, suicidar-me-ei.
Ensaia comigo o «idioma argentino» e acha-o mais doce que o
espanhol, que considera «uma galegada banal».
— Chela, contigo eu casar-me-ia. És uma linda rapariga, sabias?
— Nunca pensei em casar-me.
Estava a mentir.
Agosto de 1949. Iríamos a Madrid por causa de um romance
cujo concurso ganhei; talvez dali resultassem algumas pesetas, o
que não seria nada mau. Viajaríamos o Jules, a Bertha e eu. Céu
de verão espanhol. O mais azul da Europa. O de Itália é radiante,
e este é um medalhão votivo. Fomos ao parque do Retiro para ver
as estátuas. Subimos a esplanada por onde antes da república só
subiam os reis e a sua corte. Ao voltar pela avenida José Antonio,
afuroámos as lojas pitorescas, ao passar perto da fonte de
Cibeles. E a cidade perfumada lembrou-me La Plata com o seu
cheiro de tília. Mas o madrileno era o espectro exótico do Levante.
Assim, fazíamos as nossas férias do sótão, submetendo-nos a
um déspota encantador: o ócio. Sentados na relva dos jardins que
rodeiam o Prado, esperávamos o horário de abertura,
comprávamos o bilhete de entrada, e lá estávamos na sala de
Goya. O Jules sussurrou: «Chela, somos nós os retratados, tu aos
setenta e eu aos cem»: velhos a comer. Imersos na água do
espelho da rotunda de As Meninas, integramos a família de Felipe
IV; a infanta Margarita trouxe-me à memória a Lula, a única
normal, e um anão qualquer recordou-me o Juan Sebastián. As
personagens pareciam sair da moldura do quadro real para
passear pelo Prado dos Jerónimos.
Quando outubro começou a esfriar a cidade, fomos à editora, e
então lembrei-me do senhor Roux e da mãe. Naquele antro
horroroso, o editor disse:
— Já liquidei a edição desse romance.
— Gostou?
— Sim, claro.
— O que fez com as pesetas?
— Os senhores conhecem a autora?
O cotovelo do Luis crava-se nas minhas costelas e uma luz
piedosa ilumina-me, porque este velhote, apesar de tudo, é um
senhor, como são todos os espanhóis.
— Se tiver, levaremos alguns exemplares.
— O que dirão à autora?
— Que o livro foi para a cona que o pariu.
O Jules não compreendeu porque é que o senhor espanhol se
zangou: no que respeita a conas era neófito. Propôs fazer um
filme com a narrativa.
— Vamos rodá-lo no nosso castelo.
— Está arrendado.
— Desocupamo-lo…
Quase chorei, pois senti que ele me protegia. Não aceitei.
Bebemos manzanilla no bar Manila, da avenida, e fomos ao
Prado. Diante de um janelão que dá para o parque dorme uma
Ariadne de mármore cor-de-rosa, já nada a atormenta, nem
queima, nem flecha, e ela descansa num leito de bronze, longe do
Touro de Creta e do Minotauro. Já não tem medo dos monstros.
Acariciei os seus pés lânguidos, viúvos de afeto, com veias
levemente azuis, porém exangues.
O Jules declarava-se a mim:
— Eu não seria infiel como Teseu.
Respondi:
— Somos os descendentes do Touro e do Minotauro, e até de
Caríbdis e de Cila; temos de pôr fim à nossa genética monstruosa.
Podíamos ser perfeitos, mas na humanidade não existe
perfeição, e alguma desgraça nos quebrou.
E falámos do Museu do Louvre e daquela preciosidade exposta
num dos patamares de uma escadaria, que tenta voar com um
empurrão do torso para cima, forçando a cintura, a túnica húmida
da água do Mediterrâneo. Tanta perfeição num ser perecível, os
deuses castigaram-na e decapitaram-na. Agora, o limo não a suja,
o fumo não a tisna, mas ninguém saberá quão bela foi a sua
cabeça. Quando era inteira, presidiu a dança cósmica em honra
dos cabiros na sua ilha de Samos, na Trácia. Quem ordenou que
se mutilasse a perfeição?
Se a Mãe Natureza tivesse obedecido aos alquímicos: «Mãe
Natureza, não durmas, não produzas seres simples e coisas vãs
como estanho, pedregulhos e outras banalidades; defende a tua
substancial fórmula que te induz a fabricar ouro, pedras preciosas
e semideuses.» Se a Mãe Natureza não se tivesse distraído, hoje
os académicos pediriam esta lista nas livrarias: A Palavra
Abandonada; A Luz Saindo de Si Mesma; Basilio Valentín; Regelio
Bacon; Raimundo Lulio; Nicolas Flamel; Arnaldo de Villanova;
Morien, Lavimus, Trismosino, Filaleto, Du Soucy.
A tartaruga anã dormia no meu bolso; quando conversávamos,
esticava a sua cabecinha e as suas patinhas — eu sentia-o —, com
saudades da grandeza de um tempo edénico em que exibia uma
gigantesca e revestida carapaça de tartaruga-de-pente,
transparente como mel cristalizado. A Bertha, único laço com a
quinta bonaerense, palpava a minha coxa e eu devolvia-lhe a
carícia. Partilhávamos conferências, concertos e museus, fez-me
companhia em dias muito aziagos; é justo que a retrate através
de um acontecimento singular.
Aconteceu no Louvre, sobre o chão ladrilhado aos losangos
brancos e azuis do pátio das Cariátides. Pus a Bertha no belo
chão, e ela começou a deslizar até um ponto que escolhera. Parou
ante a estátua da rapariga grega separada do grupo das suas
irmãs da Acrópole, levantou a cabecinha rugosa tanto quanto
pôde, e nas suas bochechas de réptil brilharam duas centelhas: a
Bertha chorava a beleza inalcançável. Disse-lhe: «Não chores,
Bertha, nem tu nem eu receberíamos dos deuses a piedade de
nos concederem a graça desta menina de hábito talar.»
Outro regresso

Voltámos a Paris no dia seguinte. Fui lá buscar a minha


correspondência e encontrei uma carta e um cabograma. Na
carta, o padre Ariel comunicava-me uma ordem de expropriação
oficial; dizia que o governo popular peronista me daria o dobro do
valor das minhas terras, o que ele considerava justo, porque o
latifúndio estava destinado à fundação de um asilo para idosos. A
carta fora escrita há dois meses e o cabograma «urgente» datava
de há dois dias. Decidi não iniciar as aulas e partir de imediato.
No dia 5 de setembro cheguei à quinta. O padre Ariel explicou-
me uma infinidade de coisas que eu rejeitava compreender. Devia
deslocar-me ao gabinete do governador Mercante.
— Não haverá forma de parar isto?
— Não há.
O peronismo amputava a única coisa que me restava. Dei a
Ariel uma procuração. A minha fúria exilou-me no sótão. A Sara
subia até lá, como antes. Uma novidade: atreveu-se a opinar.
— Porque quer tantas terras se passa a vida em França?
O mundo estava virado do avesso… e até a Sara pensava. E não
só pensava, como argumentava sobre política, os sindicatos, a
Unidade Básica[4]; dizia que não haveria quem fosse demasiado
pobre nem demasiado rico. Observei a negra. Oh, não… Não era
de maneira nenhuma aquela mulher. Tinha alisado o cabelo e
estava maquilhada. Murmurava enquanto servia:
— A senhora não perde nada, ganha o dobro; vocês não faziam
caridade nem ajudavam os pobres.
Queria dizer mais alguma coisa e não ganhava coragem para
isso.
— Desembucha, negra.
— Aqui vão acabar-se os maus-tratos… o senhor Arnaldo é
deputado e tem bastante poder.
Odiei-a como quando não se lembrou da data do meu
aniversário. Começou a fazer petições para receber ordenados em
atraso, dizendo não sei o quê sobre a Confederação Geral do
Trabalho5: trouxe umas contas. Eu era devedora daquela porcaria.
Passei-lhe um cheque com o dobro do que ela pedia.
— Se tornar a chatear-me, ponho-a na rua, negra de merda.
Tremeu ante a mesma criatura que antigamente a atormentara.
Senti como se me tivessem operado para debelar uma doença
grave. Saí para o campo para visitar a última fronteira, a velha La
Angelina. Queria lá eu saber dos velhos do asilo… Os portugueses
que compraram as terras à Lula tentaram falar comigo; não lhes
dei oportunidade. Andei horas por La Angelina. Despreguei uma
placa nojenta de expropriação e feri-me com os pregos;
pontapeei-a e tornei a magoar-me, desta vez no pé. Partiria de
novo para a Europa.
O padre Ariel esperava-me no grande salão com um sobretudo
volumoso e documentos para assinar:
— Consegui tratar de tudo, veja, pagam pontualmente, a lei é
dura mas é a lei.
A alma da minha gente em papel-moeda. Perguntei em agonia:
— Quando começam?
Respondeu entusiasmado:
— Imediatamente: este governo pensa que é melhor fazer do
que dizer, e ainda melhor concretizar.
— Não percebe que estou a sofrer…
— Tem de se atualizar, Chela.
— Não sou uma atrasada, o senhor sabe-o muito bem.
— Vive em Paris, mas é mais atrasada que a Sara.
[4]
Centros locais ou de bairro onde se reúnem os simpatizantes
e militantes do Justicialismo, o movimento político argentino
inspirado pela figura e as ideias de Juan Perón, para realizar
atividades de intervenção política e social. (N. do T.)
[5]
Central sindical fundada em 1930 na Argentina. (N. do T.)
A invasão

Subi ao sótão e disse à Bertha: «Na casa das gentes está tudo
loucooo.» A Bertha devorava a sua folha de alface nacional com
mais gosto do que as alfaces francesas. Observei a pequena
escultura da nossa descoberta. Na bruma familiar, ouvi o arpejo.
Uma pavana para infanta adormecida, para infanta morta. O xaile
de Manila caiu, e, naquele frio, o arcanjo despido era um menino
morto.
Do baú antigo tirei uma folha de papel do século XVIII, passei
longas horas a ler «Chaves para Abrir o Coração». Para cúmulo
dos meus males, pensava no Luis.
Permaneci no sótão durante um mês, no mesmo sítio de agora,
com os mesmos papéis e objetos. A Sara trazia-me, como antes,
uma sanduíche de presunto e queijo e um copo com sumo que
quando aquecia sabia a mijo. Numa noite, um cacarejo
semelhante ao de um galinheiro despertou-me. Espiei, como certa
vez fiz à mãe e ao senhor Roux. Eram seis comadres,
capitaneadas pela Sara, a beber chá na minha baixela, aquelas
fuças na porcelana centenária. Aguentei. Mais tarde explodiria.
Encontrei-me com o padre Ariel:
— O senhor deu permissão a este horror?
— Não é assim tão mau, Chela, são de carne e osso…
— Quanto temos de pagar para indemnizar a Sara? Não a quero
na quinta.
O padre Ariel, escandalizado, persignou-se. Chegou o Arnaldo,
como mediador; a sua falta de tato deixou-me ainda mais furiosa.
— Vais-te filiar, priminha?
Levei-o até à porta com tal compulsão que o infeliz pensou que
lhe estava a apontar uma arma. Fugiria daquela selva
incompreensível. Preenchi a papelada na mesma agência onde já
me conheciam. Fui almoçar ao mesmo restaurante, levei a Bertha
no bolso. Ainda tenho o guardanapo desse dia. Sentámo-nos num
local isolado para podermos ver sem sermos vistas. Eu intuí-o. O
Luis entrou e estacou no meio da sala. Eu espiava-o como sempre
fazia. Pediu para não ser servido, estaria à espera de alguém?
Entrou uma mulher jovem, baixinha e gorda, com a cara cheia de
acne. Observei as suas mãozinhas gordurosas agarradas à manga
do casaco às riscas azuis do meu amado; falou para que todos a
ouvissem, numa voz esganiçada, sobre os miúdos, as compras, a
escola.
Deduzi: seria professora.
Ele limpou-lhe uma borbulha supurante com a ponta do lenço, e
o ar impregnou-se do perfume do meu desespero. Ele deslizou um
braço protetor por detrás da cadeira que ela ocupava, pelas costas
e pousou a mão no seu pescocito roliço. Oh, sim… Era um bom
casal.
«Vamos», disse à Bertha. Deslizei-a no meu bolso e
escapulimo-nos por uma porta lateral.
Na calçada ardiam todos os desertos do mundo. Os meus
mortos caíram de súbito sobre mim como enormes timbales. A
minha única esperança foi cortada cerce por uma rapariga tola.
Disse à Bertha: «Demasiados tolos, demasiadas expropriações.»
Ingeri dois comprimidos da garrafita azul, e pouco depois tudo me
sorria. Entrámos na mesma confeitaria de sempre; pedi um gelado
de morango. Não pedi que pusessem a tocar «La violetera»
porque já não era habitual pedir música. Acariciei a Bertha:
«Somos tão livres.»
Já na quinta, chamei a Sara:
— Diga-me: quanto deseja como indemnização?
Fiz contas num caderninho. Passei-lhe um cheque com o dobro
do valor.
— Chega-me para comprar uma casa prefabricada. Saio
amanhã.
— Sai agora mesmo.
Dizia-me adeus entre duas maletas, levando um pacotinho frágil
na mão.
— O que leva nesse pacotinho?
— Menina Chela, por favor…
Desatei-o. A náusea subiu-me o vómito para a garganta; era ali
que bebiam chá, as negras beiçudas. Na bacia da infância em que
lavava os objetos da cristaleira, fiz ondas de sabão e esfreguei as
chávenas em que os asquerosos beiços beberam, as asas que as
porcas mãozorras agarraram; apanhei algumas das chávenas em
pleno ar.
A espuma lavou-me.
Paris que chama por mim

Recebi um cabograma do Jules; ele estava a par da mudança


operada na política do meu país; perguntava-me se regressaria ou
se renunciava ao cargo de assistente no Instituto. Além disso,
dizia que a Solange estava gravemente doente. Respondi que iria
no início de dezembro. Cheguei a Paris no dia 3. Tinha dinheiro
suficiente para viver sem trabalhar. Instalei-me com Bertha no
sótão de Saint-Germain e senti-me prestes a atirar para a rua os
meus trapos cheios de parasitas, tal como Rimbaud atirou os seus
do sótão que lhe foi dado por Theodore de Banville.
O criado do Jules trazia as bebidas e os alimentos para me
auxiliar. O Jules passava a maior parte das tardes e das noites
comigo; trouxe um clavicórdio.
— Música de cordas, mon ami?
— Este clavicórdio pertenceu ao meu antepassado Saint-
Germain, senhor de Belle-Isle, filho bastardo de Frederico II
Rackezi, que o adquiriu na Alemanha no tempo de Luís XV.
E o Jules amenizava o frio crepúsculo com cordas do século XVII,
feridas com palhetas de metal, vestindo um traje apertado de
arlequim, de bombazina espanhola e punhos de renda. Resolveu
dormir no meu sótão. Trouxeram-lhe uma caminha idêntica à
minha, de madeira dourada, cujo ouro, aqui e ali com partes
carcomidas, revelava um vermelho-sangue. A Bertha dormia numa
velha saboneteira de Limoges, com as patinhas e a cabeça ao ar
livre.
Acendemos um lume de lenha num trípode, perfumámos o
ambiente com incenso e louro, e a névoa pintava opalas nos
vidros, flores do mal nas paredes.
— O meu antepassado descobriu a fonte da juventude.
Inscrições nos baús de ferro — havia dois — atestavam a
existência de um continente exilado dos mapas. Seria o da fonte
da juventude?
O Jules prosseguiu a sua história:
— Foi um homem extraordinário, que encontrou a pedra
filosofal.
Que maravilhas guardava aquele sótão. Todo o apartamento de
Saint-Germain era um museu; os motivos dos abajures mostravam
óvalos rosa-cruzistas, com pelicanos a arrancar as penas do papo
e as suas crias a chilrear há trezentos anos. A cruz de Santo
André, rematada em rosas, a estrela de David virada para trás e,
numa prateleira, o esqueletinho dourado que cabe numa mão,
esculpido osso a osso, deixando antever nos espaços palavras em
grego.
— Que maravilha.
— O meu antepassado fez isto friccionando um esqueletinho de
madeira com a pedra filosofal.
A Sabine contou-me que a Solange se recusou a ser vista pelo
médico. A gravidez complicou-se e abortou no sexto mês.
— A que horas faleceu?
— Às seis da tarde.
Fomos para o país dos Carnutes no carro da Sabine; veríamos a
Solange pela última vez.
A Sabine, de óculos escuros, parecia um daqueles bonequitos
suspensos nos pinheiros de Natal, como se enforcados; ao seu
lado, o Remus chorava. Estávamos no dia 23 de dezembro. As
pessoas desapareciam atrás dos pacotes de presentes, da
algazarra e do visco. Pensei que velariam a Solange no Caveau;
velavam-na no sótão do pavilhão, na pequena torre abobadada.
Ao entrar, li «CAVEAU». Parecia uma infanta morta. O luto
ordenado pela sua avó cobria as gravuras e as letras das colunas,
pelo que o universo de Solange desaparecia nas trevas. A voz do
padre, tio dos Flamel de Taliesin, celebrava um réquiem lento, e
do grande salão do piso térreo ascendia música do século XVII.
Quando o padre terminou e saiu, a avó pôs nos braços da
mãezinha um feto envolto em seda vermelha com um escudo de
três perfis que reproduzia a heráldica da família. O último Flamel
de Taliesin escapava ao horror de crescer como um ogre, um
íncubo, um anão cabeçudo.
À Delfina, ninguém a poderia salvar do rio.
Eu sentia um desejo imenso do calor do lar, de alguém algures
em Itália que fosse sangue do meu sangue; de conhecer a raiz da
minha angústia e de me expor à besta ancestral, mesmo que esta
me dilacerasse. Sairia do velório da Solange rumo ao meu?
Fugi sem me despedir de ninguém. Pensariam em «mais uma
loucura da Chela» e sepultar-me-iam com a Solange e o seu
pequeno incestuoso.
Roma

A minha absoluta autonomia era das que se forjam com


dinheiro e desenraizamento. Às seis da manhã apanhei um
comboio para Roma. Pelo caminho que traçara, sentia-me o centro
do meu universo, capaz de pegar o touro familiar pelos cornos.
Poderia conseguir ou não; mas, fosse como fosse, existia em
contínua tomada de consciência, e o meu exercício diário consistia
em inquirir, analisar, sintetizar, e quando me cansava, caminhava
bastante.
Rimbaud escreveu em certa ocasião: «Talvez tenhas razão em
caminhar e em ler muito. Razão, em todo o caso, de não te
confinares em escritórios e casas de família. Os embrutecimentos
devem executar-se longe desses lugares.» Fugia da casa dos
Saint-Germain sabe-se lá para que novos embrutecimentos.
Instalei-me no Hotel Minerva, em Roma. Deitei-me a pensar: o
que teria sido de mim se não fosse, de certo modo, autista, o que
teria sido de mim abarrotada de objetividade e sem
disponibilidade para a fantasia. Sobretudo, o que teria sido de
mim erradicada do seio da minha família se não fosse
sobredotada.
Agora, precisava de um colchão de palha em família. Sim, por
causa do Luis tornei-me sensível. Vaguearia, bisbilhotaria,
caminharia, correria e sentar-me-ia num qualquer banco de
caminho para arrancar os espinhos, como o menino do Spinario. E
em que é que se resumia tudo isto? Em procurar algo do Luis em
cada um dos homens que se cruzassem comigo: um gesto, um
perfume, o aroma do seu cigarro; em comportar-me como uma
preciosista do século XVII. E magoava-me tanto procurar essas
subtis ninharias, montar o louco quebra-cabeças cujas peças
nunca se encaixavam: a marca do seu tabaco, a suavidade dos
seus lenços, a pregadeira dourada que me deu numa tarde de
novembro, simples quinquilharia que usei até durante o sono, que
desgastei e perdi quando se partiu o seu ganchinho.
Uma noite, em Roma, tive uma grande desilusão. Corri e
abracei um cavalheiro elegante que fumava com a displicência do
Luis: «Lamento não ser ele», disse. Será que casar-me com o Luis
fora a minha única vocação? A minha liberdade absoluta permitia-
me dormir com quem quisesse; mas o Luis castrou-me. Um ato
sexual com outro homem seria uma falha, algo sujo. E eu
procurava uma tela para pintar um quadro de setembro, no meu
país, junto ao rio de La Plata, nas margens do qual alguns miúdos
jogavam à bola, na primavera, perto da falésia. Atormentada por
estar acordada toda a noite, recorri ao sonífero.
Transferi a minha conta bancária para um banco italiano.
Gastava pouco. Voltei a ser a rapariga suja da quinta, que
vagueava de calções amarrotados, uma blusinha de qualquer cor,
chinelos, o cabelo preso em duas tranças. Já contava trinta anos e
aparentava ter uns vinte e dois. Não era mais que uma vagabunda
ou uma infeliz criatura do pós-guerra. Vivi em Roma durante um
ano, sem fazer amigos, sem ir a conferências, reuniões ou algo do
género, porque o cenáculo de Paris me tinha esgotado. Comprava
uma sanduíche e um refrigerante, uma folha de alface para a
Bertha, e era assim que passávamos os nossos dias romanos.
Desci às catacumbas, que são os sótãos invertidos, quero dizer,
o inverso dos que ficam na parte superior das casas, e na sua
sinistra intimidade as pinturas ingénuas mostraram-me a infância
da minha religião. No Museu do Vaticano, vi a Laocoonte, e
gostaria de ter estudado Estética mais uma vez, no curso de
Humanidades e com o professor Guerrero.
E tanta grandeza acabava por me afogar, a grandeza da cidade
cesariana que se imiscui por qualquer orifício, qualquer poro do
corpo, ou da alma, pelas janelas do autocarro, o buraco da
fechadura, qualquer escaparate.
Aconteceu diante da Pietà de Michelangelo: achei que estava a
morrer. O que seria da Bertha se a morte me surpreendesse de
súbito? Ninguém sabia por onde vagava o andrajo humano em
que me transformara. Acordei num hospital da Via Veneto.
Sim, a Bertha estava na saboneteira da mesa de cabeceira.
Contraí paludismo e administraram-me quinina e antibióticos.
Avisaram o consulado argentino. Perguntaram se tinha família em
Roma. Como se estivesse debaixo de água, respondi: «Na Sicília.»
Melhorei, mas desde então padeço de febres esporádicas muito
incómodas.
Após um mês de internamento, sentia-me exultante por deixar
o hospital. Uma enfermeira acompanhou-me à estação para
comprar o bilhete de viagem para a Sicília.
Caserta

Janeiro de 1953. Enviei um cabograma para o Borgo Stradolini


de Caserta: Messina. «Para a minha tia-avó Angelina», como
quem atira uma garrafa ao mar.
Na estação de Roma descobri que faziam descontos, e por
duzentas liras poderia viajar em primeira classe. Às seis horas de
uma manhã gelada, parti. Dormi duas horas e acordei em
Nápoles. Enquanto esperava pelo comboio de transbordo, almocei
macarrão e queijo, bebi um pouco de chianti. A Bertha devorou a
mesma comida de sempre e estava feliz. Voltei a dormir no
transbordo e acordei na Calábria, ao som dos apitos da locomotiva
de vapor Correo de Sicilia.
Pouco depois estava rodeada de nativos da ilha, magros, de
cabelo encaracolado. Os olhos do meu pai observavam-se de
todas aquelas caras. Generosos, ofereceram-me um saboroso e
delicado pedaço de queijo de cabra, um pouco de vinho de
Messina num copo de latão; compreendem que sou estrangeira e
querem saber algo sobre mim.
Digo-lhes que vou ao Borgo e perguntam se vou «para
trabalhar», na visão deles devo ser, necessariamente, uma criada.
É isso que pareço porque as minhas calças — o segundo par que
comprei — se sujaram durante a incómoda viagem, e como trago
chinelos e cabelo em rabo de cavalo, sou uma miserável. Sou uma
imundície viva e lembro-me do que me aconselhou o enfermeiro
do hospital: Acqua e sapone.
Insistem, perguntam-me se sou francesa. Acho que tenho esse
estilo. Num tropel, descemos no cais de desembarque. Messina.
Procuro um hotel. Atrasarei a minha chegada ao Borgo o mais
possível. Envolve-me um ar pegajoso, de azeite. Uma densa
poeira atmosférica agarra-se-me à pele, com aroma a citrinos e
especiarias. No caminho para o Borgo há um pequeno hotel e três
mulheres: Cloto, Láquesis e Átropos. Outra mulher, ao longe,
canta música da ilha que soa a cretense.
O cansaço deita-me num divã vermelho, num vestíbulo pintado
de cor-de-rosa pálido. Da parede, uma imagem de uma santa com
os seios amputados derrama sangue sacrificial sobre a minha
cabeça.
Uma das mulheres oferece-me algo:
— Quer uma maminha de santa Ágata?
Doces como maminhas amputadas, a pingar açúcar carmesim.
Na ilha, até os doces são trágicos.
— Obrigado, não gosto de maminhas.
— Veio sozinha? Vai ficar muito tempo?
Falo fluentemente o dialeto; compreendo que desconfiem de
mim, porque as guerras não derrotaram as mulheres de Messina,
que não concebem que uma senhora viaje sozinha.
Pergunto-lhes:
— Têm um quarto com casa de banho?
— Venha, lave-se aqui.
É uma bacia ao ar livre onde me lavo em partes e também me
seco. Estou gelada.
— Têm uma latrina?
Trazem-me um penico enorme.
— Venha, faça aqui, faça, faça com calma.
Mas elas ficam a olhar para mim, paradas como estacas.
— Vai para o Borgo para trabalhar?
— Não, para viver lá.
— Vai viver lá?
— Sim.
Mudam de atitude.
— Venha para dentro, menina, vamos servir-lhe vinho e
arenque.
Bebo bastante vinho, porque o arenque deixa-me com sede. No
quarto há uma cama com uma colcha muito branca, uma mesinha
com um copo, uma imagem de santa Ágata dentro de uma
pequena cúpula de vidro; ao olhar para ela, lembro-me da Lula: o
que será da Lula?
A Bertha dorme na almofada, já comeu e está contente porque
estamos numa aventura e ela gosta de mudanças. Amanhã vou
pedir à mulher mais nova que diga no Borgo que me venham
buscar. Estou cansada.
A garrafa atirada ao mar chegou ao destino. Surge um
automóvel, vindo do Borgo, tão velho como o da quinta. Ao
volante está o Vittorio, motorista e jardineiro da minha tia-avó.
Através dos mexericos de Cloto, Láquesis e Átropos, sei coisas
«de dentro»; por exemplo, que a minha tia-avó é proprietária das
minas de enxofre que tingem o ar de amarelo e dos olivais que o
engorduram; de uma rede de lojas especializadas no comércio da
seda dos bichos da Angelina, que também exporta para o
continente; de um cinema; de vários complexos de apartamentos
em estilo californiano. Estremeço, e o Vittorio repara:
— Freddo, eh? [6]
Contemplo o campo esparso e as pequenas esculturas que
despontam na relva. Os trabalhadores tiram os chapéus e
cumprimentam-nos.
— O seu pai era sobrinho da senhora Angelina?
— Sim.
— A menina é sobrinha-neta, a única?
— Tenho uma irmã que é freira.
— Morta…
— Porque diz isso?
— Não vê o mundo, está morta.
— É muito bonita, Vittorio.
— Como eu disse, está morta.
Diálogo siciliano, simples e lacónico. O Vittorio prossegue, no
seu estilo sumário:
— Vocês, antes, eram espanhóis.
Fez-se um silêncio que interrompi:
— Como está a minha tia-avó?
— Sai pouco.
Agora verifico que as pequenas esculturas são cabeçudas.
— O que representam as estátuas?
— São de pedra.
— A minha tia é solteira?
— É uma senhora.
Entramos num pátio de ladrilhos vermelhos. Nas cavalariças,
onde as lajes partidas indicam que em tempos foi um pátio de
cavaleiros, agora um burrico morde a ponta de uma estaca, no
local onde o Vittorio guarda o automóvel. Nalguns sítios os
ladrilhos cederam, como na antiga La Angelina, exatamente no
buraco da descoberta. No frontão, em relevo, estão os nossos
antepassados com os seus nomes ao pé de cada retrato; constato
que o nosso apelido é o mesmo desde 1200. Debaixo da varanda
espanhola, leio a epopeia:
«Os Stradolini viveram em Messana ou antiga Zancle, antes da
invasão cartaginesa, e lutaram com os Mamertinos, em Roma,
sem se renderem. Faziam parte da nobreza espanhola por direito
de sangue no início do século VIII: combateram em Espanha
contra os árabes da Mauritânia. Os condestáveis de Caserta
fundaram academias e vilas.»
Fernando Stradolini e Ucelli de Caserta e María Gertrudis della
Rovere e Ucelli de Caserta são belos, mas geram má prole. Estão
rodeados pelos seus filhinhos cabeçudos.
Podia passar o dia inteiro a investigar os exteriores e as
muralhas. Resguardado num nicho está o brasão familiar: um
dragãozinho emoldura o retrato de Fernando. Na insígnia estão
impressas a flor de lis azul aureolada de branco e o estandarte de
São Dinis. Todas as fontes e os bebedouros estão orlados com a
língua flamejante do dragão.
Descubro a escadinha em caracol que sobe para o terraço.
Subo e vejo as montanhas, os cortili embutidos na pedra, os
fumos de enxofre e as fumarolas das cozinhas que empenacham a
tarde com bandeiras que cheiram a fritos.
— Menina, em Rendazzo há castellos tão grandes como a casa
de Deus, em Taormina há um com escadas de ouro.
— Quem é o senhor?
— Ninguém, menina; chamo-me Truppi Cagliero, de Borgo di
Pagliari.
— Porque diz «ninguém»? O senhor é Truppi Cagliero.
— A menina tem ar de comunista.
Esclareço que não sou comunista e lembro-me do assunto
«Sara»; não posso, de modo nenhum, ficar surpreendida com isto.
Aproveito a ocasião e pergunto:
— Como é a senhora Angelina?
— É uma senhora.
Cem guerras não mudariam os sicilianos.
Ah, sim… algo cheira mal. Seremos nós, os reacionários, que
nos estamos a desfazer? Apoiada no torreão do terraço, sentia a
pele musical de uma flauta de Pã, a pele do balido do rebanho, a
epiderme sonora de um bandolim, tudo isto tingido pelo amarelo-
enxofre dos fumos.
[6]
Está frio, não está? (N. do T.)
Os antepassados

Como se estivesse a vê-lo aqui mesmo, a neblina cobriu e


apagou o cabo Faro, um tule que envolve o Aspromonte, onde
cintilam fogos de artifício.
Num canteiro rebentam brotos do pessegueiro, e quando
chegar o primeiro verão, a seiva aquecerá o fuste e o ribeiro
descongelar-se-á. Na minha planície bonaerense, o inverno não
silencia a natureza. Aqui a vida emudece e apenas o pastor acorda
as suas ovelhas e cabras, os poucos animais que possui, e estes
vagueiam enquanto mascam plantinhas e despertam a solitária
fragrância do tomilho, que é como um espinho que fere o ar e
magoa.
— Menina, quer aprumar-se um pouco para ver a senhora
Angelina? — A mulher apresenta-se, porque é alguém: — Sou
Truppi Carmela, criada de dentro.
É a filha do velho de Borgo di Pagliari.
— O que é que significam ou representam as estátuas no
campo ralo?
— São engraçadas… sim.
— A minha tia-avó está a dormir?
— Não sei, menina.
— Mas a senhora é uma criada de dentro.
— A única que sabe é a Imperatore Ágata, a camareira.
O duche, a espaços muito frio, acorda-me. Asseada, entro no
grande salão.
As paredes estão revestidas de madeira, que de trecho em
trecho formam ovais que emolduram retratos pintados de noventa
e sete antepassados. Vejo um enorme par de seios, e aparece a
Imperatore Ágata:
— Querida menina, como está? A senhora Angelina chega daqui
a pouco.
Sentamo-nos à volta de uma mesa com patas de leão cujas
garras envolvem globos. Há uma parecida no Prado, num retrato.
É Carlos II que deposita na mesa o seu chapelão emplumado. Há
um retrato do filho de Filipe IV e de dona Mariana da Áustria; a
criança parece doente, de tão mirrada, e talvez seja subdotada;
há um Antonello autêntico: a assinatura do pintor de 1400 é muito
nítida. Fiquei a saber que a tia salvou a tela para o seu Borgo,
triunfando sobre saques e museus. Há um retrato do Duque
Uccelli de Caserta.
Quanto ao retrato de Antonello de Messina, a minha tia-avó
contar-me-ia mais tarde a sua luta para o obter, sobretudo porque
um Della Rovere (ramo familiar de Urbino) visitava a esposa do pai
do pintor, encarregando-se mais tarde dos estudos do rapaz, que
foi discípulo de Colantonio.
Investigadora e bisbilhoteira sobre tudo o que se pudesse
relacionar com a família, a Angelina soube que Antonello, em
adolescente, cavalgou com Della Rovere Uccelli, na Flandres, em
Roma e em Reggio Calabria.
Ela acredita que Antonello de Messina é nosso parente. Existe
um outro autorretrato de Antonello no Museu de Londres.
Recordação por recordação, troquei um pelo outro, substituindo
na tela o rosto do artista siciliano por aquele que vi libertado do
sepulcro entre os ombros da sua salvadora.
De divisão em divisão, o bicho imundo em que me transformei
sente frio e remexe a lenha na lareira de ferro, e ao mesmo tempo
aviva o lume da salamandra do Borgo.
Línguas ardentes de fogo aquecem o espaço, tingindo de
vermelho a escuridão da sala, semelhante à que surge pintada em
torno da silhueta emplumada de Carlos II, sendo esta a magia
abissal da Sala dos Espelhos do Bom Retiro. Existe aqui um
pedaço de mural com anjos músicos; o pedaço que falta está no
Palácio Bellomo de Siracusa.
Na parede central, o Condestável de Caserta, equestre, sem a
sua família, enverga uma armadura cruzada por uma faixa e
empunha a insígnia da sua patente. Noutra parede, um cavaleiro
de armadura completa desembainha a espada, porque combate
em plena paisagem de árvores devastadas cujas folhas são
arrastadas por um vento que obriga os pássaros a fugir para sul.
Ao longe, vê-se um castello com torres com ameias e um
escudeiro com lança. Um arminho fareja a perna do cavaleiro, que
é o duque Francesco María della Rovere.
Sobre uma mesinha dourada há um medalhão de estuque,
retrato de María Antonia das Duas Sicílias, filha de Francisco I e
parente de Carlos IV de Espanha.
Há duas cristaleiras com relógios e sinos, amores empoleirados
num púcaro napolitano, um alaúde em forma de pera com cordas;
sob um xaile de Manila, uma harpa gémea da que está no meu
sótão.
Em cima da mesa, bem apoiados e confortáveis, estão os seios
da Imperatore Ágata que, adormecida, os protege sob um manto
de renda. De vez em quando, cabeceia e vigia a porta.
No meu bolso enorme, a Bertha come alface ao lado da
pequena escultura do achado; perguntarei à Angelina sobre os
cabeçudos no campo. A longa espera não me incomoda.
Observo uma cristaleira estilizada que guarda coroas e espadas
do século XVIII; pedras preciosas e duras, e uma Última Ceia em
marfim. Aconteceu qualquer coisa nas minhas costas, porque a
Ágata juntou-se a mim. Viro-me e não vejo ninguém.
Mas ela está lá.
Descubro-a e digo para mim própria: «Já vi isto.» Foi durante
uma excursão a Mântua, no Palácio Ducal e naquela pintura que
estava na capela Overtari, representando uma reunião da corte de
Juan Francisco Gonzaga, protetor de Andrea Mantegna,
responsável por decorar o quarto do casal.
Cumprimento a minha tia-avó, mas continuo os meus
pensamentos… um homem vestido de escarlate entrega uma carta
a Francisco; debaixo do cadeirão do futuro cardeal há um belo
cão; damas e cavalheiros rodeiam os que conversam. À volta de
Isabel… os anões; vi a liliputiana protegida sob o manto de Isabel
d’Este. E a pequenina declara que está feliz por eu estar ali, diz
muitas palavras de boas-vindas, enquanto a Ágata põe a mesa
para o ágape. Há um cheiro agradável de baús que bocejam,
despertando maçãs e mirtilos; a Ágata traz um álbum e a Angelina
entrega-me a fotografia de uma menina vestida de organdi;
irrompe o dia infernal, aquele em que a minha mãe morreu na
minha alma.
— Esta menina é filha do meu sobrinho Stradolini, da Argentina.
— Per Dio… — exclama a Ágata, como se fosse algo de
extraordinário.
A única coisa extraordinária é a Angelina, que, para chegar à
mesa como qualquer outro comensal, tem de subir uma escada de
sete degraus e depois sentar-se numa cadeirinha alta de bebé.
Tem boa boca e a sua forte mandíbula siciliana mastiga sem
trégua. A voz é rouca, de envelhecida castidade. Ri-se com
satisfação, levantando ao mesmo tempo as sobrancelhas grossas
sobre as grossas arcadas supraciliares.
— Poverella…
Acaricia-me a bochecha, não sei se tem pena de mim ou se me
protege. Agora pede desculpa: «Desculpa, Chela», porque pôs de
lado os talheres e agarra as presas com a mão, mergulha o pão
no molho do prato, bebe vinho como um jogador trapaceiro,
devora duas vezes as sobremesas e arranha a torrezinha melosa
da compoteira como uma infanta caprichosa.
Sim. Comemos peru como daquela vez na quinta.
Por fim, sopra um cachimbo de espuma do mar que,
semiapagado, dormitava; acende um olhito vermelho e trémulo.
Os pratos vazios revelam um dragãozinho, a nossa heráldica; nos
copos, um vinho de sobremesa vai-se manchando de amarelo-
enxofre.
A Angelina, satisfeita, fuma e pergunta:
— A tua irmã entrou em clausura definitiva?
— Sim, nas Carmelitas.
— É bonita?
— Muito bonita e muito loira.
— Sai a nós…
— O meu irmãozinho morreu.
— Eu sei; nós somos as únicas Stradolini do mundo.
Em família

Dirigindo-se à Ágata, a Angelina diz: «A Chela tem qualquer


coisa dos Stradolini, mas fisicamente deve ser parecida com a
mãe.»
Não está enganada, sou parecida com a minha mãe, mas não o
digo. A Angelina adormece como uma ogra. Sinto que gosto dela.
Instalei-me na torre do Borgo; a Angelina trepava a escadinha
em caracol. Éramos os despojos de uma elite agonizante. Fomo-
nos conhecendo. Apaixonámo-nos.
Ela é muito inteligente; estudou num colégio para filhos da
nobreza, e mesmo tendo de se defender das alfinetadas das suas
companheiras, que a apelidavam de testone ostinata, era uma
aluna notável. A sua agressividade valeu-lhe a expulsão, e
regressou à casa das gentes. Os seus pais e os quatro irmãos
varões não podiam sequer vê-la, pois tal insignificância
desvalorizava o conjunto.
As guerras aniquilaram os seus, e ela subiu para o sótão.
— Vou viúva e virgem.
Insistia em contar-me as suas intimidades. Foi assim que soube
que o pai lhe arranjou um casamento com um primo, Francesco
Salina de Caserta, que quando a conheceu, embora tenha
cumprido a palavra dada, fugiu e morreu na guerra. A Angelina
apaixonou-se.
E ainda beijava um retrato que guardava num relicário oval. Ao
observar de perto a miniatura, reparei que ele era parecido com
Marcello Mastroianni.
Ela falava do Partido Nacional Fascista e da guerra: «Tinha mais
medo dos fascistas do que dos bombardeamentos; penso que a
desgraça começou com os garibaldinos e continuou com os
mussolinos, e refiro-me à desgraça que assolou as grandes
famílias, e que para mim foi planeada pelos nossos, porque os
porcos contadinos nunca teriam iniciado nada por si mesmos,
devido à sua natureza imbecil e incapaz. E também porque no seu
íntimo eles admiram-nos e sonham partilhar as nossas torres. Eu
culpo a classe alta, os ideólogos que ela concebe; os contadinos
são arrivistas e querem ser aristocratas quando chegam ao poder,
mas nós, aristocratas, nascemos com pulsos e canelas finas, pois
ninguém do nosso clã alguma vez se dedicou a trabalhos manuais
ou à faina pesada.»
Parecia uma mulher política em tempos de eleições. Dedicava-
nos a mim e à Bertha longos sermões e discursos: «Os contadinos
regressaram à lama de onde saíram, porque tudo regressa ao seu
lugar e nível natural e ancestral.»
A partir de 1860, a casa sofreu ataques comunistas e
socialistas. A Angelina escreveu muito sobre isso e, durante o
fascismo, publicou artigos com o pseudónimo Diana Luppi. Dizia-
nos, a mim e à Bertha: «Se as pernas me tivessem servido, teria
pontapeado a cabeça do Duce em Dongo.»
Nunca me esquecerei dos interiores castelãos por nós
percorridos longas horas, aqueles frios salões em que o único
calor ali sentido descia e emanava das tapeçarias e das madeiras,
naquela cidadela enevoada e fortificada por cujos corredores eu
perseguia velhas pegadas, os quartos de dormir em que os leitos
vazios, no dossel, reproduziam o brasão, e em particular o odor da
ilha que parece incenso sem o ser, almíscar sem o ser, não é
vegetal nem animal, e anda por todo o lado como um velho
duende.
E comecei a amar a castelã. A minha tia-avó tinha um pé na
terra e outro na árvore genealógica. Ainda que nunca saísse do
Borgo, tratava dos seus negócios através de sátrapas bem
instruídos. Um deles, o Vittorio, encarregava-se de vigiar o
trabalho nas minas de enxofre e nos olivais; a Ágata, além de ser
camareira, tratava do negócio das lojas, do cinema e de outro
qualquer interesse, perdido algures.
O Vittorio filiou-se no Partido Fascista para defender o Borgo da
expropriação, e chegou a ser capo do movimento. Ele, a Asunta e
a Ágata esconderam a minha tia-avó durante esse período
bastante longo. Soube depois onde a escondiam, não sem sentir
estranheza…
A minha permanência no Borgo permitiu-me meditar e
escrever; eu e a Angelina escrevemos para um jornal de Nápoles,
e o Vittorio ia cobrar o nosso pagamento no final de cada mês. Ela
mudou-se definitivamente para o meu sótão, e esquecemo-nos do
mundo, ignorando o dia e a noite, iluminando-nos sempre com
velas de sebo e do amor que professávamos uma pela outra. Ela
chamava-me Francesco, eu chamava-lhe Luis. E assim nos
proporcionávamos insuspeitas e inconfessáveis alegrias, que hoje
me inquietam e marcam como ao gado o ferro em brasa.
Aquelas infâmias aconteciam num clima de complacência
infantil, e ela, o dragãozinho mínimo, deu-me o amor que todos
me negaram. Concentrando-me nela, eu possuía tudo aquilo que
quis e não me foi dado; assim, cumpríamos uma pela outra a
missão de amor e de amar apaixonando-nos pelos nossos sonhos,
vigílias, fracassos e solidões, e exercitando, como dois espíritos
desgraçados, o soberano ato de dar e receber num esforço já
desesperançado.
Nada nos interessava além do ato amoroso.
Se eu estivesse no meu país, a Sara ter-me-ia gritado: «Suas
sujas, porque não se lavam?»
A Ágata, por outro lado, sussurrava: «A manhã está tão
escaldante que seria bom ir nadar na charca.»
Descemos, e eu nadava como um peixe; ela pestanejava,
incomodada, debaixo do guarda-sol.
Eu tinha trinta anos que pareciam vinte e dois, despidos sobre
os seixos. Ela acariciava a minha pele colada ao esqueleto como
cota de malha, e um gosto ambíguo de amor eriçava-nos.
— És moreninha… porquê? Nós, os Stradolini, somos loiros.
A María Salomé, a Lula, era loira; já eu herdei a cor da minha
mãe, marfim ténue como opalina queimada.
— Terias gostado mais da Lula?
— Nunca amei ninguém como te amo a ti.
E uníamo-nos no proibido como dois galhos da árvore
apodrecida. Órfãs, livres e caídas num lodo brando e terno que
nos envolvia, afundando-nos, como um sexo viscoso e adorável,
como um poço turvo de enguias penetrantes e sagazes no ato de
saciar os nossos espantosos apetites contidos.
Disse-me:
— Pareces a Maja, de Goya.
A Ágata servia-nos um refrigerante na pequena praia estreita,
em cujo ambiente as escarpas acentuavam na areia sombrias
bordaduras e, das grutas, morada dos monstros, escorria uma
água azul-lilás. Com olhos, os balestreiros do Borgo vigiavam
desde o monte as esculturas dispersas como criaturas de um
sonho ingrato.
A Ágata trazia uma bandeja de prata sobre a qual tremia uma
torre de gelatina, vermelha por causa do morango, da canela
fragrante, e um pouco de vinho da Sicília como gostam os
insulares, mas ao ver-me despida, recuou, porque a sua alma
campesina nunca compreenderia.
De regresso ao sótão, reparei que a Angelina tinha os olhos
irritados e no pescoço uma nódoa negra raivosa a sangrar; eu
também ostentava a minhas feridas de batalha.
Anjo, Angelina

Ela lia todos os jornais. Enviavam-lhos do continente. Informou-


me: «O governo de Perón está nas últimas.»
A notícia alegrou-me pela possível devolução das minhas terras.
A Angelina prosseguiu: «Os negros terão de apertar o cinto, como
fizeram aqui os contadinos depois da mussolinada.»
Com a Angelina aprendi a encadernar. Ela salvava as suas
coleções expurgando-as de carunchos e traças, e guardava
incunábulos em arcas. As suas mãozinhas dobravam, cortavam,
torciam e colavam, e um arsenal de papel, cola e outros materiais
que importava de Barcelona procuravam textos como joias
reluzentes em prateleiras de acácia e carvalho. Encadernava os
contemporâneos em couro; os franceses, em pele de alce; os
italianos, em especial os poetas, em camurça; dispôs Kafka e
Joyce em contracapas de papel metálico, de zinco, como se
quisesse preservá-los de uma saraivada de balas, e a inclusão de
ambos intrigou-me, mas depois soube por que razão o fez.
Era extremamente habilidosa a manusear o material para
embelezar os sonhos, e muitas vezes, com impaciência,
arrancava-me da mão um trabalho que esbarrava na minha
natural falta de jeito para as artes manuais. No reino das belas-
letras, a Angelina incluía com arte e elegância o vegetal dos
tecidos, o animal das peles e o mineral das pedras. Num pequeno
móvel neoclássico havia incunábulos protegidos com fios de seda
tecidos e livros minúsculos de aforismos antigos cujas capas
brilhavam por via das ágatas incrustadas, a sua pedra preferida,
com gradiente de cores do vermelho ao castanho-chocolate.
Encadernou textos de análises das religiões, das origens da
natureza humana, e uma tradução francesa do século XIX com
uma capa que era uma rosa de granate, em cujos capítulos é
possível acompanhar os ciclos dos sexos até à sua definição.
Copiei este parágrafo: «NÓS éramos TUDO num SÓ, mas, por causa
dos nossos pecados, fomos divididos em homem e mulher,
desintegrando a suprema harmonia do andrógino.»
Nesse livro li sobre a verdadeira existência dos monstros
homéricos; o seu autor, um grego que viveu na Babilónia,
asseverava que tais monstros repousam dentro de cada um de
nós, que somos os seus agentes portadores, à espera do
momento da redefinição da forma. Então, o humano mostrar-se-á
tal como é. Assim, os santos serão pombas; os assassinos,
minotauros; os seres deformados, híbridos.
Quero escrever um pouco mais sobre o conteúdo do pequeno
móvel neoclássico: numa das prateleiras internas havia um
abraxas com cabeça de serpente; os Sete Selos do Apocalipse de
São João; esferas de cristal para exercitar a cristalomancia; uma
varinha mágica e um trípode para adivinhar o futuro; uma taça
grande em forma de cálice para praticar lecanomancia: e três
ladrilhos empilhados ao lado de um volume de Diodoro de Sicília,
com grafias sargónicas.
Conversávamos na torre, sentadas no centro do coração da
penumbra azul-lilás.
— Pretendias saber por que motivo não extirpei Kafka e Joyce
da biblioteca? Não quis extirpar a metamorfose nem a estranheza,
porque durante o fascismo eu fui um bicho oculto. O Vittorio filiou-
se e jurou pela sua honra que eu tinha fugido para Londres. Mas
eu estava ali.
Olhei para o «ali» e pareceu-me um relógio de cuco; aproximei-
me do ponto indicado e verifiquei que era uma reprodução do
quadro de Antonello, São Jerónimo na sua cela.
— Aquela foi a minha cela naqueles anos, e a partir daquele
dintel, em cima daquela sanefa, ouvi-os cantar e jogar às cartas;
durante anos, espiei-os pela fresta do pequeno retábulo.
O Vittorio enfiava-a «ali» como se fosse uma boneca, e ela
entrava pelo corredor do gabinete do santo e fechava atrás de si a
portinha vermelha. Corria descalça pelo diminuto piso de cerâmica
de losangos e quadriláteros num tom verde-musgo e apoiava os
cotovelos na varandinha da ogiva. Aproveitava o interior
monástico, ia à cátedra do apologista, vislumbrando o momento
em que assina a Vulgata. Já não ouvia os gritos nem os risos
daqueles homens rudes, apenas o rumor da erudita pluma do
tradutor e das folhas no atril.
— Não sufocavas dentro do retábulo?
— Não. Entretinha-me a acariciar a suavidade de uns vidros,
que não consegues ver porque estão lá dentro, e o conteúdo de
umas retortas e garrafinhas em que se matura um licor que os
sete filhos dos condestáveis bebiam, todos eles anões; além disso,
quando se bebe, tudo se esquece, exceto aquilo que desejamos
lembrar ou descobrir.
Mostrei-lhe a escultura da descoberta no buraco no pátio de
cavaleiros, datada de 1848. Os cabeçudos da ilha são
descendentes da escultura matriz. Pediu-me que a pusesse no
pequeno retábulo, como antes fizera o Vittorio. Pouco depois,
pediu-me que a descesse «dali».
Trazia dois dedais de licor, muito para ela, pouco para mim.
Bebi a maturada relíquia, canela em rama sem ser vegetal,
almíscar silvestre sem ser animal, amarelo-topázio sem ser
mineral, e passeámos pelo palácio que carece de portas e janelas.
Palácio do êxtase por onde os Caserta apareceram em toda a
sua grandeza e horror: príncipes emparelhados com anãs,
princesas com cabeçudos, e assim soubemos que o nosso clã
nasceu sem flor.
Estávamos nisto quando desceu Jerónimo em pessoa e nos
revelou a fórmula do elixir que um bruxo lhe oferecera e que ele
divulgou entre os clérigos para se apropriar da magia branca e a
exercer; para conhecer a magia vermelha; comprovar a magia
verde: e exorcizar a magia negra. Contou-nos que Silvestre II se
excedeu na bebida do maturado elixir e soube demais; que as
fórmulas alquímicas e as bruxarias são perigosas se não se é, de
certo modo, preconceituoso.
Ulisses

Não sei quanto tempo durou a viagem. Quando regressei, tinha


novas rugas no rosto e mãos de oitentona. Uma espantosa velhice
castigou-me a alma e o corpo, e a partir desse tempo ganhei um
caminhar de lagarta. Incinerei-me em vida. Sinto que desde então
alguém ou algo me traz agarrada pelo cabelo.
Disse a Angelina:
— Sabes tudo e mais alguma coisa.
Precisava de descansar. A Angelina ofereceu-me um barco que
estava ancorado nos seixos. Ela ficaria no Borgo e eu percorreria o
mar como Ulisses.
Em agosto de 1955 comecei a minha aventura marítima. De
início não me afastava da ilha, não ganhava coragem para entrar
nas grutas dos noctilucas. Iates de turistas faziam o mesmo
périplo: desencalhava o meu barco no estreito de Messina, virava
rumo ao Tirreno passando junto à costa de Palermo e Trapani; ou
dirigia-me ao Mediterrâneo, aproximando-me de Siracusa e
Catânia.
Garrafa ao mar

Fiz amizade com uma família de marinheiros chamada


Campobaso, que enriquecera a vender arame no continente;
nunca contaria à Angelina as minhas relações com tais piolhos. O
meu barco, o Barracuda, precisava de alguém que o limpasse, e
eu precisava de alguém para cozinhar, por isso convidei os
Campobaso para navegarem comigo. Eles fariam essas tarefas.
Carmelo, o pai, sabia mergulhar. Do Barracuda avistava-se a
costa siciliana. Quando decidimos navegar até a perdermos de
vista, contratámos um timoneiro de Siracusa. Certa manhã,
Carmelo gritou quando regressou do fundo: «Um navio, está ali
um navio afundado.»
Dirigimo-nos à Câmara Municipal de Palermo para comunicar a
descoberta e prometeram-nos que viriam sem falta à tarde, e com
isso deixaram-nos à espera durante uma semana. Por fim,
apareceram com pessoal especializado, redes, gruas e um bom
arsenal de equipamento de mergulho.
Foram subindo os objetos em cestinhas: uma estatueta de
cerâmica preta e vermelha, uma górgona alada com a testa
serpenteada, cujos pés pareciam ganhar impulso, como se fosse
voar, os braços como remos para navegar e o rosto feio de deus
assírio; um monte de objetos de metal, entre os quais duas
argolas de ouro que representavam um sol com raios rematados
em pérolas de bom nácar; um brinco parecido com um ramo de
oliveira, pelo qual trepava um querubim; várias fontes de bronze e
espelhos de prata; um candeeiro de prata esculpido com motivos
etruscos: e o sino do navio com o nome gravado: Lucania.
Para o desencalhar e reerguer solicitou-se a colaboração de
pessoal técnico de origem ianque. E vimos o trirreme, cujo diário
de bordo, conservado num cofre e sem vestígios de humidade,
nos informava que o Lucania navegava pelos mares da Gália até à
Magna Grécia.
Perguntámo-nos o que estariam por ali a fazer, se se trataria de
uma missão de troca de mercadorias ou se seriam soberanos
etruscos de manto púrpura e selas de marfim. Dentro do trirreme,
um homem, que evidentemente seria fundidor, escravo e da Ática,
copiava intraduzíveis grafias etruscas e juntou-as à da sua pátria,
ignorando, esse pária do mar, que assim iniciou o Renascimento
florentino, anterior ao Pártenon. Este artífice falsificava os vasos
coríntios, porque nas clássicas guardas gregas, de súbito, caudas
nervosas e agitadas corroíam a serenidade egeia e o
temperamental italiano ardia na guarda ateniense.
Aquele diário de bordo indicava uma rota, em grego: «Síbaris,
cortar caminho pelo porto, regressar ao Peloponeso, seguir a rota
da água; parar em Cartago.» Uma página escrita no mesmo
idioma narrava a saudade do marinheiro pela sua terra natal, de
graciosa arquitetura: o átrio, as lajes decoradas com pássaros e
peixes, os sepulcros dos seus manes e os filhos que talvez nunca
mais veria. Afundou-se o Lucania por ordem do seu capitão para
não revelar a rota aos bucaneiros.
E vimos a porta de ferro que levava ao estômago do trirreme,
os ianques puxaram a argola, ela cedeu, e um «ai» soltou o ar
viciado. Até os ianques se assustaram. A mulher dormia envolta
num grito de horror que acabara de ser libertado, horror de
séculos.
Não havia nenhuma referência a esta mulher no diário de
bordo, e procurámos na página que listava a tripulação: «Um
capitão, um timoneiro, um ajudante de timoneiro, oito fogueiros,
um escrivão, oito proeiros, trinta besteiros, cento e cinquenta e
seis remadores.» Nada sobre a mulher que agora era um
esqueleto sentado, completo e sombrio, delicado como um pedaço
de coral negro.
Permaneceu séculos na sua cadeira curul, salpicada de
decomposição; pensei que se Afrodite tivesse esqueleto, seria
como este. Os especialistas tiraram-lhe as medidas: «Calota
pequena, maxilares suaves, testa olímpica», e decidiram que não
seria etrusca, de modo nenhum, como provavam os seus ossos
largos e a sua estatura de um metro e setenta. No anelar da mão
esquerda tinha um anel que um ianque tirou e me ofereceu.
Coube-me perfeitamente no anelar, e senti uma carícia longínqua.
Observei a joia e notei, sob a camada de esmalte, uma base de
ouro e, no lugar da pedra, um brasãozinho esfumado.
Ela não podia ser etrusca, os objetos do seu toucador
denunciavam outra origem: os copos e púcaros de vidro e
marmorite — não de cerâmica de bucchero nero —, os estojos
com gargantilhas de ouro, as tiaras de prata, os camafeus de
Minerva Paternos sugeriam que a dama era grega. Por outro lado,
a pequena joia do capitão continha selos divinatórios da Etrúria
em forma de corvo, falcão, garça, coruja, doninha, gafanhoto, e
embora o capitão se guiasse pelos Selos Mágicos, a dama fazia-o
pelo rhombus. Descobrimos isto quando resvalou da sua cadeira
curul, pois em vida tê-lo-ia pendurado ao pescoço.
«Bullroarer», disse um ianque, e impulsionando o rhombus, fê-
lo girar, e ouvimos «Bullroraer-Bull-roarer…», música ritual dos
mistérios dionisíacos. Pratiquei durante alguns minutos e escutei
as duas palavras de Juan Sebastián.
Pouco depois tive um ataque de paludismo, deram-me quinina
e melhorei. Os ianques ofereceram-me alguns objetos e levaram
muitos outros; o Lucania ficaria no Museu de Navios de Palermo: e
o belo esqueleto acabaria num museu de raridades.
Escorpião

Quando regressei ao Borgo, a Angelina estava doente por ter


esperado por mim semanas a fio na praia, de rosto ao sol, o que a
magoou: no leito, tinha a sua grande cabeça mergulhada no
almofadão de penas e olhou para mim com a expressão trágica da
carranca etrusca. A Bertha estava na sua mesa de cabeceira.
O remorso picou-me como um escorpião, pois esquecera-me de
ambas enquanto me dedicava às aventuras de bucaneira e pirata.
Disse a Ágata:
— O sol magoou-a tanto como quando esperava pelo marido.
A Angelina ganhou ânimo:
— Aqui estão os jornais do teu país; o Perón está nas últimas.
Uma fotografia do La Nación reproduzia os incêndios; as igrejas
de Santo Domingo e de San Nicolás ardiam. Outras igrejas eram já
cinzas e escombros. Jurei fazer a minha própria fogueira mal
regressasse.
A Angelina melhorou depressa, devido ao interesse que a
descoberta do trirreme despertou nela. Voltámos para o sótão.
Pediu-me o anel para ver se descobria alguma data ou nome;
submergiu a joia num líquido do qual ascendeu uma fumarola
vermelha. O anel nadava no fundo do púcaro, e já se adivinhavam
datas, algarismos e letras. Ela pegou numa lupa e concluiu, após
analisar:
— Não é uma data, é um signo.
Sob a pátina de verdete, lemos: «IL VIRI S.F.», e a minha tia-avó
disse que era a abreviatura dos nomes dos altos Iniciados,
guardiães dos Livros Sibilinos.
Continuámos a leitura: «DUUMVIRI FACIUNDIS». A malandra meteu-
se quase de corpo inteiro no pequeno móvel neoclássico e puxou
um tomo hermético, abriu a fechadura com a sua chavezinha,
procurou um capítulo e mergulhou nele.
— Esta senhora, a dama da descoberta, foi sibila cretense, e
porque Creta era o centro do Mediterrâneo, tal equidistância
conferiu à ilha a categoria de capital aquática, pois os seus navios
viajavam pela bacia do Mediterrâneo, chegando ao mar Jónico e
ao mar Egeu, arriscando-se até no Tirreno e no Adriático.
Perguntei:
— Teria sido contratada pelos italiotas para exercer os seus
poderes?
— Foi expatriada de Creta no tempo do reinado romano, em
cujo seio os etruscos tiveram um relevante papel; o material que o
seu cofre guardava corresponde à última fase do reinado, época
de Tarquínio Soberbo.
Trabalhámos sete dias e noites no sótão, e o anel continuava a
soltar óxido. A Angelina remexia o conteúdo do púcaro com uma
varinha com ponta de minúscula estrela giratória, como a dos
contos de fadas, de aparência inocente, mas as raízes desta
operação nutrem-se da ciência que os ingénuos qualificam de
fraude: o ocultismo.
Para a tarefa, a minha tia-avó vestia uma túnica até ao
tornozelo, barrete e manoplas, murmurava conjuros para mim
ininteligíveis, enquanto, de quando em vez, aspergia uns bálsamos
com bulas antigualhas que ferviam mesmo sem serem expostos
ao fogo. Examinava o material que os ianques me deram, e em
algumas pedras cobertas de bolor surgiam relevos, lindos perfis
como o de La Parisienne, de Cnossos.
E os frascos de óleos e perfumes emanavam essências usadas
por mulheres de uma talassocracia morta, quando a árvore do
Ocidente era apenas um rebento.
Num carimbo que a dama usou para assinar documentos e
como selo pessoal encontrámos o seu nome: «Elida de Zancle de
Caserta». Sim, senti que a nossa arcaica antepassada me
chamava do interior do estômago do trirreme, e de súbito fomos
invadidas por compaixão familiar pelo destino das suas ossadas.
A Angelina disse:
— Encontrarei forma de a sepultar na necrópole Stradolini-
Uccelli de Caserta.
As influências da Angelina superaram todas as dificuldades e,
no sétimo dia, o Vittorio transportava Elida de Zancle numa
comprida caixa, das destinadas para as peças de seda das lojas do
Borgo. O Vittorio vinha muito sério e amargurado, porque não
gostava de lidar com os mortos. Começámos a trabalhar nas
bonitas ossadas. Unimos os ossos pequenos com arame de cobre
e os grandes com arame grosso, que retorcíamos com pinças.
Após sete dias, número divino, ela sorria sentada na sua
cadeira curul como se posasse na câmara escura de um fotógrafo;
um esqueleto tão belo conferia distinção a qualquer ambiente
culto, e dava pena enterrá-lo. Pendurei o rhombus nas vértebras
do pescoço e girou, girou como um dervixe. A Angelina propôs:
— Vesti-la-emos com capa espanhola e monástica, capuz e
abotoadura, porque ela nasceu em Zancle, estudou em Creta e
casou-se com um condestável italiano.
Embora Elida pertencesse ao mais ortodoxo paganismo,
descansaria num lugar cristão. A capela era anterior ao castelo do
Borgo e, devido à sua simplicidade, parecia um campo fortificado
em estilo romano, com a torre de madeira de planta quadrada,
saliente entre o cascalho, a paliçada de troncos e a anteporta
como passadiço. Na capela repousavam outras ossadas, como era
habitual na época, sobre loiças perpétuas, e os restos mortais
embranqueciam entre ninharias, elmos e armaduras. Em algumas,
pude comprovar o estigma da nossa degradada condição.
À procura de um lugar de descanso para Elida de Zancle de
Caserta, subimos por uma escadinha em caracol até à fortaleza,
onde uma pequena janela em olho de boi revelava o agressivo
contexto castelão, o fosso aberto em V, sem ponte, e um pátio de
ladrilhos vermelhos como o da quinta.
Ali morava um capelão de Messina, que se recusava a abençoar
as ossadas; a Angelina ouviu os motivos do padre e aconselhou:
«É importante tratar da bênção, porque a Elida pode trazer velhos
demónios para o mausoléu.»
O padre aceitou e abençoou.
Na fortaleza viveram os fundadores do Borgo, e a Angelina
pensou, de imediato, que era um desperdício de fortaleza como
habitáculo do ancião sacerdote, que podia muito bem mudar-se
para o Borgo, e desse modo o local serviria para o eterno e digno
descanso de Elida.
O padre voltou a aceitar.
Inspecionámos minuciosamente a fortaleza, e verifiquei que
tinha três andares e uma plataforma elevada, pelo que Elida seria
castelã na sua torre com ameias, heráldica e música, porque a
Angelina destinou-lhe um baú espanhol musical repleto de baladas
para infantas defuntas, que um cilindro com mecanismo de
relojoaria faria tocar, girando.
Erguemos Elida: segurei-a pelas axilas, a Angelina pelos pés, e
deitámo-la no seu caixão régio, mas ela arranhou-me com um
osso no dedo anelar da mão esquerda, onde estava o seu anel, e,
apesar da dor, não a soltei; vi uma gota de sangue manchar-lhe as
vestes, e o horror da cadaverina deixou-me aflita. Lembrei-me do
meu querido professor Cristofredo Jacob. Eu não teria coragem de
amputar o dedo.
A Angelina opinou:
— Não te assustes, Chela, ela já tem vários séculos e a
cadaverina é ptomaína de organismos pútridos.
As suas palavras não me convenceram e fui com o Vittorio, de
automóvel, à procura de um cirurgião, que achou apropriado
cortar ao nível do osso. Com um aparelho, sugava o sangue
enquanto operava, e pude apreciar a minha falange, delicada
como a de Elida. Com o braço enfaixado e preso ao ombro, entrei
no sótão da fortaleza. A Angelina opinou que o cirurgião era
ignorante e tinha cortado o dedo com crueldade; nesse preciso
momento, ela dispunha ao lado da dama os seus pertences e
aproveitei para devolver o anel; foi então que percebi que a gota
de sangue caíra no lugar onde em vida pulsara o coração, pelo
que, como expiação, ela guardaria algo meu, enquanto eu nada
herdaria dela.
Ao fechar o caixão, as badaladas cessaram. Agora devíamos
subir a urna até ao ponto mais alto da fortaleza. Antes,
brindaríamos pelo prodígio, a descoberta e o encontro com a
nossa parente, com licor jerónimo do relicário dos Caserta,
vestindo trajes espanhóis.
Erguer o caixão era um enorme sacrifício para a minha tia-avó,
por ser anã, e para mim por causa da recente intervenção
cirúrgica, de modo que, com as nossas forças limitadas ao
máximo, temíamos que a preciosa carga caísse e se desfizesse.
Logo depois de termos bebido o elixir — confesso que nos
excedemos —, vimos que nos oito ciprestes do carreiro
germinaram braços e pernas e capacidade oral para entoar
salmos, e eles vieram em nosso auxílio para carregarmos a
falecida no seu relicário; oh, sim… eram os capuchinhos da
fortaleza do século XVII, cantando louvores a Nossa Senhora. Eu
tremelicava num crepúsculo interno mais horrendo que a longa
noite e as suas circunstâncias, e aqueles oito, em marcha tensa e
sem tropeçar, carregavam a caixa com o seu amado e atroz
conteúdo.
Assim viajava Elida de Zancle-Uccelli de Caserta, adornada à
moda grega e etrusca e, por via das dúvidas, com traje espanhol.
Pobre de mim que, por um minuto, pensei: «Isto são os efeitos
dos duendes do retábulo de São Jerónimo», e as minhas costas
estalaram debaixo da extraordinária capa, senti uma dor horrível
de vértebras deslocadas, talvez partidas, e em defesa própria
mergulhei novamente no sonho para ver os oito ajudantes; os dois
da frente com as caras viradas para o solo, e os restantes bem
erguidos.
A quem oferecia aquele delírio? Quem devia amaldiçoar ou a
quem devia agradecer? A que deus, a que demónio me
consagrava? Que estado espiritual era o meu para que tão
descomunal carga não me derrubasse?
Subimos uma escadinha em caracol, caminhando pelo lajeado
verde com minúsculos losangos decorados em direção à fortaleza
e ao seu limite extremo, já no campo, já na ponte, já na cave da
capela, e uma certa bruma feria-nos enquanto questionava quem
transportava quem, e eu não ousava voltar a pensar sobre uma
alucinação do meu sangue azul, antiguidade devorada por um
pouco de ar e um pouco de bruma.
Que incestuoso cortejo para o Bosch do Escorial em vida de
Felipe II, ou para o orgulhoso Philippe Pot, que os encapuçados
transportam na rotunda do Louvre, num chão de cerâmica aos
losangos.
Lembrei-me dos meus amigos de Paris na noite do batismo para
corujas, sob a chuva que as gárgulas de Nossa Senhora
gorgolejavam, e revivi o assombro do país dos Carnutes.
Depois da viagem encantada, a relíquia descansou no seu catre.
Hoje digo que seria melhor morrer do que repetir aquelas
experiências, e penso que talvez existam comunidades
subterrâneas de cujos fios estejamos suspensos como marionetas.
Regressar uma e outra vez

Regressei à quinta num dia de outubro de 1955, cansada, com


um dedo semiamputado, e uma ligeira corcunda, consequência
daquele terrível esforço.
Voltei ao meu reduto, à minha ilha de relva, à minha planície
bonaerense, e ninguém me fez frente como Odisseu em Ítaca; só
me atacou o ar rarefeito das divisões, o mofo, o silêncio, a
humidade, porque tudo o que era meu permaneceu encerrado,
pois o padre Ariel cumpriu as minhas ordens.
Subi com a Bertha até ao sótão, olhei pela janelinha e percebi
que o casebre do jardim estava ocupado. Entretanto, ouviu-se o
frouxo sino do asilo de idosos e a atrabílis que existia em mim
gemeu com fúria, pensando no regime peronista já derrotado.
Continuei atenta e vi um homem que desmontou e amarrou o
cavalo ao poste, desaparecendo no interior do casebre, e pensei
ter-me recordado de alguém dos tempos do Bertoldo ou do Juan
Sebastián, sim, alguém que envelhecera tanto que o rosto parecia
o de um morto, e o cabelo ficara encanecido num período mais ou
menos breve.
Com a Bertha no bolso, desci evitando a capela e dirigi-me a
um terreno, um antigo campo-santo onde agora enterravam os
velhos que morriam. Encontrei o Narciso a podar uns arbustos
floridos:
— Menina, são os túmulos dos idosos… quando Deus os chama,
enterram-se aqui.
— Na capela também?
— Não, menina, ali não puseram ninguém.
Arranhei um pouco de musgo da lápide de um velho que
apodrecia na minha propriedade, como se me propusesse raspar
musgo, lápide e cova.
— Leve-me a La Plata, quero falar com o fiscal.
— Ele vai mandar tirá-los, menina… coitados… são de carne e
osso como nós.
O Narciso chorava e secava as lágrimas com a boina; contou-
me que os enterros foram determinados pelo intendente deposto.
— Comece a desenterrar agora mesmo.
Jurou que não o faria, porque os coitadinhos repousavam em
«odor de santidade». Gritei:
— Em odor de merda…
O padre Ariel apareceu a correr, como era seu hábito:
— Pelo amor de Deus, Chela…
Atirei:
— Quem está a viver no meu casebre?
— Vá lá ver.
Subi ao sótão e dormi o resto do dia; depois iria ver o
intendente responsável para que me providenciasse uma equipa
de limpeza. O padre Ariel enviou-me uma rapariga caso eu
precisasse de serviço doméstico, e considerei o seu nome
engraçado: Dulce.
Pouco depois, a Dulce avisou-me que o doutor aguardava por
mim no jardim. Espiei como sempre e vi o homem grisalho com
cara de morto que, trajado como um campesino, chicoteava a sua
bota. Reconheci-o por conta daquele gesto, e até ouvi: «Olá,
loucooos.»
Arnaldo…
Mandei-o entrar no salão, que era o mesmo dos abusos infantis
e não tão infantis, do festim da mãe com o senhor Roux. Ele
aguardava de pé e sem esperança.
— O que queres? Ou vieste admirar-me?
— Chela, quero salvar a minha mulher, que está grávida, e
salvar-me…
— Queres salvar-te? Como?
— Estou escondido no casebre porque me consideram traidor
da pátria.
— Vai-te embora agora mesmo ou denuncio-te à polícia.
Foi-se embora com a mulher no automóvel do Narciso.
Instalei a Bertha no seu novo terrário e desci com uma barrica
cheia de querosene para regar o casebre e ateá-lo. Eu sabia que o
padre Ariel estava a fazer diligências em La Plata em prol da
defesa do asilo e do campo-santo junto das autoridades
competentes. Estava tudo contra mim.
Recebi uma carta de Messina cujo sobrescrito cruzado por uma
fita preta pressagiava o meu luto; a minha prima em segundo
grau, Diana Cerveteri de Caserta, comunicava-me o falecimento
da Angelina, e naquela mesma noite, como se a desgraça fosse
pouca, fui acordada por um gemido, subtil como se um
mecanismo mínimo se tivesse desmontado, e que vinha do
terrário. A Bertha estava de barriguinha para cima, com um
pedacito de alface na boca. Chorei: «Bertha, porque me
abandonas?»
Consegui permissão para que viesse uma equipa de limpeza e,
em meados de novembro, as carretas entraram no campo-santo.
Desfrutaria da cena espreitando da minha pequena janela. Assim
se foram os velhos desenterrados, cobertos com sacos, em três
carretas lotadas. Era possível ver-lhes as pernas e os braços,
porque as serapilheiras cobriam e descobriam os tesos
espantalhos cujas mãos em pinça apertavam o ar da quinta, em
forma de chave-inglesa.
O que vi depois deve ter sido efeito dos medicamentos aos
quais eu recorria com prazer, destampando a garrafinha azul e
engolindo quatro de uma vez e sem água. Um dos defuntos, que
não coube nas carretas, ia nos braços de oito encapuçados, e ao
redor do grupo pairava uma penumbra lilás, e no campo, entre a
relva e os pastos crescidos, floresceram pétalas que formavam
losangos.
Não pude negar a semelhança com outra cerimónia. O cheiro
asqueroso dissipou-me a quimera. Senti a urgência de desinfetar,
de purificar.
Eu tinha aprendido a fabricar bombas caseiras para gerar os
meus próprios incêndios, e atirei uma, com excelente pontaria,
para cima do telhado do asilo de idosos que não me permitiam
desalojar. Formou-se um diadema serpenteante, um leque
esplendoroso cujas flamas atiçadas se espalharam por todo o
edifício.
Oh, sim… subi ao sótão para olhar a meu bel-prazer, com
metade do corpo pendurada para fora da janelinha, e consegui
distinguir os espantalhos de roupas largas, os espantalhos quase
despidos, nus, de camisas mijadas; fachos a rebolar nos meus
campos recuperados, e senti uma rara felicidade de lixo. Alguns
funcionários públicos aborreceram-me com interrogatórios que
não chegaram a lugar nenhum e em pouco tempo deixaram-me
em paz.
Contratei outra equipa para que raspassem o cimento, e
apareceu o pátio vermelho da antiga La Angelina com o buraco do
achado. Tinha recuperado os meus fantasmas.
Sentei-me no degrau desgastado. Ratazanas gordas farejavam
latas vazias e chamuscadas, alisando de vez em quando os seus
bigodes com patinhas aristocráticas, esgaravatando, como eu, um
universo submergido.
Os objetos tremiam como se estivessem sobre um lago de
geleia azul-lilás, a mesma cor de sempre, quando percebi que um
monte de panos se mexia e, embora quisesse fugir, não consegui,
e os panos lentamente se humanizaram, se dividiram por meio de
cariocinese, como uma célula, em oito silhuetas encapuçadas, que
ergueram numa maca um velho jacente, caminhando na minha
direção. Inspirei uma fragrância doce de magnólias maceradas,
palpei ossos sobre o meu próprio corpo, como se o meu
esqueleto, libertado, se tivesse sobreposto a mim. Quis fugir e só
pude rastejar, branda e miserável.
Rastejei na escadinha em caracol rumo ao exílio. A Dulce subiu
para me dizer que um senhor queria falar comigo, desci e lá
estava o velhote chamuscado, a cabeça quase a desprender-se do
pescoço, sacudindo-se num rumor de castanholas ou astrágalos.
Senti a urina escorrer pelas minhas pernas, como quando o
meu pai me chamava ao seu escritório. De repente, o velho
desfez-se em múltiplos ossos, que estalaram com o barulho do
jogo de astrágalos ou de dança cigana. Subi ao meu posto tão
depressa quanto pude; já não rastejei.
A Dulce apareceu com uma bandeja com comida e um refresco.
— Menina, falou com o velho?
— Não estava ninguém à porta.
A rapariga protestou e espreitou pela janela em olho de boi:
— Veja, senhora, ali vai ele.
Desceu, diligente, e apanhou-o no carreiro, o velho voltou-se
para mim e cumprimentou-me com a mão em forma de chave-
inglesa.
— Menina, é um velho louco que diz que a senhora já sabe.
Vivi um ano na quinta durante o qual até o padre Ariel me
evitava. Preparei outra viagem. Investigaria heráldicas, visitando
castelos e entrando em mansardas medievais, mudaria de século.
A minha meta: Paris, como sempre.
Desta vez, instalei-me num pequeno ateliê de onde podia ouvir
as badaladas do Sacré Cœur, umas águas-furtadas por cima de
uma loja de imagens votivas.
De calças sujas e blusa puída, duas trancinhas a cair sobre a
corcunda, de chinelos e levando comigo a bolsa de pano, parecia
uma mendiga.
Ia às igrejas perdidas no campo, à procura de iconografias e
brasões; conseguia que me arranjassem uma escadinha para subir
às torres, parava onde me surpreendesse a noite.
E voltei a ser a criatura ronhosa de antes, a que não
interessava a ninguém; alguns pensavam que seria louca, outros,
que era mendiga, e pedi esmola para ver como se sentem os que
vivem da caridade pública. Após semanas de vagabundagem, a
urgência de um banho devolveu-me ao sótão sobre a loja de
imagens. Por vezes receava encontrar-me com o Jules. Nunca
aconteceu.
Flutuei como poeira atmosférica: de Paris até Finis Terrae, pela
Provença, Auvérnia, Périgord, Poitou, Normandia e Borgonha, e
em Amiens vi o velho da quinta, fugi a toda a velocidade, sem
rastejar, e para me consolar pensei comigo mesma que todos os
idosos são parecidos, mas num alto-relevo de Lisieux vi-o
abrasado em chamas, quando eu estava numa escadinha a
analisar uma heráldica, e o velho estendeu um pseudópode e
empurrou-me. Caí de uma altura considerável, magoei o dedo da
cirurgia e percebi que a ferida estava a formar pus.
Reabri-a com uma faquinha e vi que latejava, porque umas
coisinhas se mexiam lá dentro, com a ajuda de uma lupa
investiguei e vi que as coisinhas comiam e defecavam, comiam e
defecavam na minha chaga, e o aspeto de tubinhos com aberturas
em cada extremidade enojou-me, meti a mão numa bacia com
água e sal, apertei e um cheiro a fezes invadiu o quarto.
No hospital amputaram-me o anelar, o mindinho e o dedo do
meio; o indicador e o polegar, inúteis, formaram uma espécie de
chave inglesa. Lembrava a mão de Cristofredo Jacob. Internada,
não conseguia dormir e recitava como se fosse uma canção de
embalar:

Ouro, prata, sinople, sable púrpura e


sable negro, alaranjado, escudo francês e
escudo italiano, forros de arminho,
contra-arminho, veiros e contra-veiros,
veiros de ponto angulares e
antigos, gironado, terciado
em pala, cortinado, franchado,
terciado em mantel…

Por alguma razão me especializei em Ciência Heráldica. Até


meio morta perseguia requintes de armaria, mas a insónia
triunfava e eu mergulhava em mim à procura de outras imagens.

Águia, águia bicéfala,


hidra, sereia, harpia,
fénix, unicórnio, esfinge,
centauro, lagarto, dragão
de cauda preênsil.

Tudo era inútil. Já convalescente, sentava-me numa cadeira de


baloiço e lia os jornais do meu país, como fazia a Angelina, e fui
percebendo que o dinheiro argentino se desvalorizava no mercado
de câmbio; a agroindústria e a pecuária enfraqueciam, até que os
jornais argentinos deixaram de chegar e li numa publicação
francesa o seguinte título: «O que fizeram os argentinos ao país
mais rico do mundo?»
Mais desamparada do que uma oitentona, deixei o hospital e,
ao atravessar a rua, uma motoneta atropelou-me.
Acreditei que a culpa fora minha por ter ingerido droga e não
parar no passeio. Deitada no meio da rua, chorei como uma
rapariguinha de quatro anos. Como se os observasse numa fita
prateada de cinematógrafo, desfilaram as minhas batalhas, os
meus terramotos, desastres, incêndios… especialmente os meus
incêndios. E senti-me o bebé de uma cena do filme O Couraçado
Potemkin, a rebolar escadaria abaixo no meu carrinho. E pela
primeira, única e última vez, gritei: «MÃE.» Prossegui, a coxear, e
comprei um jornal; com o corpo transformado num saco de dor,
entrei num snack-bar para beber café.
Dobrei o jornal, que leria mais tarde. Ingeri dois comprimidos
com o café. Como por milagre, soaram os compassos de «La
violetera», incitando as minhas pernas compridas a bailar uma
dança trôpega que, se fosse em público, teria matado meio
mundo à gargalhada, porque as minhas pernas eram a única coisa
normal da minha pessoa, e sobre elas empoleirava-se o meu
corpo, não mais que um montículo, a corcunda adquirida naquela
nobre batalha do Borgo.
E a minha mão.
Agora, hoje mesmo, sou um pouquinho mais alta do que foram
o Juan Sebastián e a minha tia-avó, a amada Angelina. Com o
jornal debaixo do braço, subi ao meu sótão; desdobrei o jornal e
numa página encontrei o obituário do Luis, que falecera uma
semana antes, no mesmo dia do meu acidente; um extenso
curriculum vitae, junto à fotografia, informava entre outras coisas
que o choravam a sua viúva, dois filhos do primeiro casamento e
dois do segundo; netos e outros parentes. E foi por este homem
banal que desperdicei todos e cada um dos momentos da minha
longa e infeliz existência?
E apesar de no fundo o saber, evoquei-o com os conjuros do
meu conhecimento do oculto aprendido com a minha tia-avó de
Messina, mas ele não apareceu, porque nunca me tinha amado.
Precisava de me isolar ainda mais, e percorri antiquários para
comprar um diminuto retábulo como o da Angelina, mas nunca o
encontrei.
Regressei ao meu país e desde então o padre Ariel tem cuidado
de mim, e a sua compaixão levou-o ao ateliê de um ebanista que
fez sob encomenda um pequeno retábulo para eu usar,
reprodução do que guarda, em Messina, o tradutor da Vulgata e
que, durante o período fascista, refugiara a minha parente castelã.
O padre Ariel pôs-me no meu último reduto, sem fazer barulho.
Dentro do retábulo guardo garrafinhas de ácido lisérgico,
porque não consegui arranjar uma única gota do elixir de São
Jerónimo; guardo estojos preciosos com drageias e comprimidos
que, ao se dissolverem dentro de mim, explodem em viagens
verdadeiramente maravilhosas, e assim compreendo que nunca
viajei tanto. A vida rasgou-me, partiu-me e mutilou-me como a
todos os Caserta. Mas não me queixo porque eu também fiz das
minhas. Julguei que nada me atormentaria, flecharia nem
queimaria, tal como a Ariadne do Museu do Prado, até que me
encontrei com a segunda esposa do Luis naquela clínica platense.
Embora talvez tudo se deva ao sangue repetido e sem alma.
SOBRE ESTE LIVRO

A história de uma família mergulhada na


infâmia, narrada por uma rapariga
sobredotada, com problemas emocionais:
ingredientes para um romance de alta
voltagem.

«De um só golpe, destruí a segunda juventude da minha mãe, talvez


a única.» Assim conhecemos María Micaela Stradolini, ou Chela,
protagonista inolvidável deste romance, ambientado na alta
burguesia argentina dos anos 1920.
A irrequieta e antissocial Chela mergulha num baú de papéis e
fotografias, tesouros perdidos da sua biografia e da sua família. Ela,
que nunca foi nada para ninguém e que é incapaz de se comover,
até com a morte do que foi o seu grande amor, vai usar estes
objetos para regressar a uma infância de menina rica e talentosa,
magra demais e morena demais para o gosto da época. O retrato do
que a rodeia é sombrio: a mãe, uma pianista fracassada, adora
apenas Lula, a filha do meio; o pai é frio e psicologicamente
violento; Lula insulta constantemente a irmã; Juan Sebastián nasce
com uma deficiência profunda.

A ânsia maior de Chela é por libertação e liberdade — encontrará


ambas nas viagens que faz como adulta, em busca do seu passado e
do seu futuro, incluindo uma viagem à Sicília, onde encontrará, por
fim, as raízes da sua singularidade.

Aurora Venturini, celebrizada pelo romance As primas, volta a


mostrar-se, com um exímio equilíbrio entre sombra e luz, ironia e
profundidade, como uma cronista mordaz da natureza humana. A
família Caserta é mais uma brilhante exibição da verve narrativa de
uma escritora que se adiantou ao seu próprio tempo.

«A família Caserta revela a convicção de que a literatura é o


lugar para aprofundar o mal, sob todas as formas; não o mal
monótono e previsível dos puritanos, mas aquelas
dimensões imaginárias do mal que têm poder estético e que
redimem. […] Neste romance, é possível encontrar um raro
êxtase de felicidade verbal […], numa prosa que expressa
um desenraizamento total e horrendo.»

La Nación
SOBRE AURORA VENTURINI

Aurora Venturini nasceu em La Plata, Argentina, em 1921. Foi


escritora, tradutora e professora. Licenciou-se em Filosofia e Ciências
da Educação. Trabalhou no Instituto de Psicología y Reeducación del
Menor, onde se tornou amiga íntima de Eva Perón. Em 1948,
recebeu das mãos de Jorge Luis Borges o Premio Iniciación, pelo
livro de poesia El solitario. Exilou-se em Paris após o golpe de Estado
de 1955, e viveu nesta cidade cerca de vinte e cinco anos, privando
com figuras como Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Eugène
Ionesco, Juliette Gréco e Albert Camus.

Traduziu e escreveu sobre poetas franceses como Lautréamont e


Rimbaud. Garantia não saber estrelar um ovo nem limpar a casa,
mas escrevia diariamente, sempre à máquina ou à mão, pois
desconfiava de computadores.

É autora de mais de trinta livros, embora só no final da vida lhe


tenha sido reconhecido um incontornável talento literário. Morreu
em Buenos Aires em 2015. Na Alfaguara, está também publicado o
romance As primas, distinguido com o Premio Nueva Novela
(Argentina) e o Premio Otras Voces, Otros Ámbitos (Espanha).

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