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Ruth Guimarães

ÁGUA FUNDA
Romance

Prefácio de Antonio Cândido


ÁGUA FUNDA

Prefacio: Antonio Cândido....................................... 7

Água Funda............ ............................................ ..........11

Apêndices
Excertos da crítica e uma entrevista (1946-47) ..........183
Fortuna crítica de Água funda......................................193

Sobre a autora...............................................................197
PREFÁCIO

Antonio Cândido

Este livro exprime bem o equipamento cultural e a visão


de mundo de Ruth Guimarães, prosadora de qualidade e
conhecedora profunda da cultura popular brasileira. É um
romance, mas escrito como se fosse prosa fiada, como se
fosse narrativa caprichosa que vai indo e vindo ao sabor da
memória, ao jeito dos contadores de casos. Esta primeira
impressão é justa, mas não deve esconder do leitor o que há
neste livro de composição deliberada, de técnica bastante
complexa, rica em elipses, em saltos temporais, em
subentendidos. O que à primeira vista pode parecer meio
solto vai se revelando bem travejado, regido por um intuito
fabulativo que dá ao todo a necessária coerência, sem a qual
não se instaura a verossimilhança.
Isso, quanto ao modo de contar. Quanto à linguagem, a
construção talvez seja ainda mais elaborada, porque Ruth
Guimarães consegue produzir um discurso de tonalidade es-
pontânea, mas de fato carregado de estilizações bem con-
duzidas. Aqui não há o desagradável cacoete de muitos re-
gionalistas: o de querer imitar com ânimo de exotismo pito-
resco os modismos caipiras foneticamente sugeridos, do tipo
“bamo ino” por “vamos indo” ou “entonce num havera de
sê?”. Nada disso em Água funda, caracterizado pela elabo-
ração arte-ficial de uma linguagem que obedece à disciplina
da gramática e, ao mesmo tempo, parece sair da boca do
povo rústico. Isso se chama literatura e consiste em inventar
uma linguagem suspensa entre o popular e o erudito, fazendo

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do livro obra que tem o timbre das realizações cheias de
personalidade.
A interpenetração popular-erudito existe na própria con-
cepção do livro, que é a história de um pequeno grupo rural de
onde emergem certos personagens selecionados, sobretudo o
par Joca e Curiango, sendo, ao mesmo tempo, uma espécie de
afloramento do estrato mágico e lendário. De tal maneira, que a
história do par central pode ser lida tanto como consequência
das vicissitudes comuns da vida, quanto como produto de forças
misteriosas encarnadas nos mitos intemporais. Há
superposição, da qual resulta uma dupla leitura, cuja última
instância seriam figuras como a Mãe de Ouro, entidade perigosa
do tipo das Iaras, que pode assumir formas diversas no
populário e aparece aqui sob o aspecto sideral de luminosidade
fatídica.
Essa comunicação das esferas, do real ao fantástico, en-
riquece o texto e está ligada ao próprio teor do discurso. De fato,
o livro é narrado por alguém que não se identifica, dotado de
perspectiva onisciente e, parecendo membro do grupo descrito,
é capaz por isso mesmo de assumir uma taxa de credulidade que
justifica as discretas invasões do pensamento mágico. Esta voz
penetra todos os refolhos das pessoas e do mundo e, ao deixar
suspensa a possibilidade do fantástico explicar o real, assegura,
ao mesmo tempo, a integridade deste. E nós podemos sentir,
assim, a realidade viva de uma região, com a sua natureza, os
seus costumes, os seus tipos humanos e também a magia
insinuante dos mistérios que a mitologia popular exprime.
Por isso, talvez sejam felizes entre todos os momentos em
que o narrador fala diretamente, porque então sentimos a fusão
da escritora culta e da voz que ela inventou para animar o relato.
É o caso do começo do livro, por exemplo, e também de muitos
outros trechos, como a descrição da missa campal.

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O que estou procurando sugerir é a complexidade dessa
narrativa despretensiosa, que sabe fundir os planos e passa
com tanta maestria do individual ao coletivo, do natural ao
social, do real ao mágico. Voltando ao começo, é bom insistir
no fato de Ruth Guimarães ser não apenas uma escritora
dotada para a ficção, mas uma autoridade nos estudos da
cultura popular, cultura que em Água funda constitui ver-
dadeira rede de sustentação. Livros da autora como Os filhos
do medo, como os contos que compendiou, como o belo
estudo infelizmente ainda inédito sobre o ciclo de Pedro
Malazarte, Calidoscópio, mostram grande saber folclórico
servido por uma expressão clara e elegante, própria dos bons
escritores. O leitor verá, neste livro, que a fluência da
narrativa, a felicidade dos achados estilísticos e a densidade
humana do todo fazem da leitura uma experiência válida e
um grande prazer.
****

Nota final: Água funda foi publicado em 1946 pela Edi-


tora Globo, de Porto Alegre. Esta reedição merece aplauso,
porque põe de novo em circulação um texto que vale a pena
conhecer.1 Para mim (se me permitem o toque pessoal), o in-
teressante é que naquela ocasião, sendo eu crítico titular, co-
mo se dizia, do Diário de S. Paulo, escrevi sobre ele um ro-
dapé que infelizmente perdi e, portanto, não posso agora reler
para comparar com este prefácio.2 O que terei dito? Fiz res-
trições? Fiz elogios? A vaga lembrança diz que a resenha era
positiva, porque ficou em mim depois tantos anos a impres-

1
Este prefácio foi escrito para a 2a edição de Agua funda, publicada
pela editora Nova Fronteira, do Rio de Janeiro, em 2003.
2
Trechos do rodapé mencionado estão reproduzidos ao final deste
volume.

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são de uma obra de valor, que me impressionou bem e definiu
uma autora que passei a admirar.
Com isso, pude ter essa alegria rara que é ler de novo um
bom livro como se nunca o tivesse lido e, portanto, ter uma
experiência praticamente inédita. Ruth Guimarães nos prende
porque tem a capacidade de representar a vida por meio da
ilusão literária, graças à insinuante voz narrativa que inventou
e desperta a credibilidade do leitor, introduzindo-o no mundo
dos Olhos D’Água, com a sua história de fazendeiros,
empresários, trabalhadores, ao longo das gerações, segundo
o ritmo eterno de prosperidade e decadência, alegria e
tristeza, guiados pela mão cega de um destino que regula o
jogo de todos nós entre o bem e o mal.

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ÁGUA FUNDA
Estas coisas aconteceram em qualquer tempo e em qual-
quer parte. O certo é que aconteceram. E, como sempre se dá,
ninguém apreendeu nada do seu misterioso sentido.
I

Se era boa? Tão boa como mel de jati. É que a Mãe de


Ouro tinha enfeitiçado o homem. A Mãe de Ouro mora do
outro lado da serra. Pra lá fica Juruna, no Itaparica, e é um
estirão de mais de cem vezes a distância de Nossa Senhora dos
Olhos D’Água a Maria da Fé. Pois ele bateu a pé, moço, bateu
a pé, com o sapicuá de farinha nas costas. Água não era
preciso. Água dá à toa por aí, brota do chão, e nenhum filho
de Deus nega água a quem tem sede.
Mas é melhor contar do começo.
Antigamente isto aqui não era assim. Quero dizer, era e
não era. O engenho está no mesmo lugar e trabalha como
antes. As árvores são as mesmas — eucaliptos subindo a la-
deira que vai até a casa do administrador. Na refinação é
aquele barulho de sempre: maquinaria rodando, correame
dando chicotadas no ar e engrenagens se entrosando. O mes-
mo caminho sobe torcido, corcunda de nascença, varando a
serra desde os começos, embaixo, na fazenda, volteia o cabeço
e vai dar, no outro lado, em terras de Maria da Fé. E os burros
descem, como sempre desceram por ele, carregados de cana
caiana e cana-rosa. Pode ser que sejam os mesmos burros. A
madrinha bem se vê que não é a besta ruana, dengosa que era
um gosto, de malha no meio da testa, que vinha bamboleando
a cabeça, num delém-delém de campainha tinindo, mal
comparando, como sino de capela. Não é aí que está a
diferença. Isso tinha que acabar e acabou. O que já não

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existe é outra coisa. Coisa que a gente vê menos, mas de que
sente mais a falta. É o ar que não é mais o mesmo. Os antigos
dizem que foi a praga. É ver que foi, pois aquilo não era coisa
que se fizesse para um cristão.
O engenho é do tempo da escravatura. Seu Pedro Gomes,
o morador mais antigo do lugar, ainda se lembra quando o
paiol, perto da casa-grande, era senzala. Antes disso, era só um
rancho de tropa, na baixada, e mato virgem subindo o morro.
A casa-grande pode-se dizer que é de ontem. Tem pouco mais
de cem anos e ainda dura outros cem. A parte de lá, a primeira
que fizeram, é toda de taipa e as paredes são escoradas com
cada vigote, que um homem sozinho não abarca. As salas,
como se vê, são grandes e têm um mundo de janelas. Olhando
por elas, descobre-se lá fora o canavial, cortando o vento com
navalhas verdes. E o sol entra aqui, sem cerimônia, como gente
de casa. Não adianta. Alguma coisa continua triste. Não há sol
que espante os pensamentos da gente, num lugar vazio assim.
Dizem que esta casa é assombrada por causa do terreirão, onde
os negros morriam debaixo de açoite. Muitos não acreditam.
São abusantes. Pode ser e pode não ser. Aquele listão verde,
enfeitado de rosas, foi a última dona quem mandou pintar.
Essa era bonita. Na outra sala há um retrato dela, no meio de
outro listão verde, com rosas. Maria Carolina, está escrito por
baixo. Parece que ela segue com os olhos quem perturba o
silêncio destas salas.
Que frio! Sentiu? É a morte. Passe, morte, que estou bem
forte. Ou então é a alma de Maria Carolina, que Deus guarde,
que veio tomar conta do que foi dela. Quem havia de dizer que
a dona deste fazendão ia acabar, como acabou, pobre e
sozinha, numa casa que a Companhia lhe cedeu, por esmola?
Sinhazinha Carolina era de uma lindeza de encher os
olhos. Botava num chinelo todas as moças desta redondeza.
Era muito soberba, mas bem se diz que não há beleza sem
senão. Para compensar, alegre como um arrozal depois da

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chuva. E sadia, bem como a mãe dela, que costumava dizer:
“Doença que eu tive, foram esses três filhos” — Sinhá Maria
Isabel, que já estava casada; o Miro e Sinhazinha Carolina. O
casamento da caçula foi uma festa que deu o que falar. Ê festa!
Durou uma semana. Comida e bebida, um farturão, e do
melhor que havia. O fazendeiro velho chegou a mandar matar
quarenta bois. De leitão e cabrito, até perderam a conta.
Doceiras de fama, do Alegre e de Pedra Branca, fizeram doces
desde um mês antes. O fandango principiava de tarde e só
acabava no outro dia, às oito, nove horas, com o sol rebentando
mamona. Gente, assim, nos quartos, nas salas, no terreirão e
até no mangueiro. Só dançando e comendo. Uma festança de
arromba. Sei dizer que o casamento foi numa quinta-feira e na
outra quarta-feira ainda estavam festando. No último dia,
mandaram vir fogueteiros de fora e fizeram figuras com fogos,
na beira do ribeirão dos Mota. Não é mentira. Está aí Seu Pedro
Gomes, vivo e são, de prova. Só de violeiros, vieram oito. Seu
Pereira, cunhado da outra irmã, trouxe música da cidade.
Dançaram no salão, com orquestra, e fora, no terreiro, com
viola e sanfona. O enxoval foi uma beleza, isso dito por gente
acostumada a lidar com coisas finas: a roupa de cama toda de
cambraia e linho português, encorpado, e a roupa de uso de um
linho bom que chamavam holanda.
É ditado dos antigos: casamento que começa com fogue-
te, acaba com porrete. Esse não acabou com porrete, mas foi
muito pior. Também já tinha sido mal-agourado. No dia do
casamento, um guainumbi de papo branco entrou voando no
quarto. No começo tudo são flores. Não é só em casamento.
Os dois pombinhos, assim que vieram morar nesta casa, se
davam como Deus com os anjos. Depois o Sinhô começou a se
atirar em tudo quanto era farra, junto com Seu Pereira. Se é
verdade que a porca de sete leitões aparece perto do angico,
para marido tresnoitador, Sinhô foi um que se encontrou

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com ela muitas vezes. Mulher, para ele, qualquer uma servia.
Andava atrás de quanta saia aparecia por aí. E até disseram
que a mucama, que veio com Sinhá, tinha tido um filho dele.
Deus que não me castigue, se não é verdade, que eu não vi.
Soube por boca do povo.
Sinhá não brigava com ele. Tinha se casado contra a
vontade dos pais e aguentava tudo sem se queixar. Ou então,
se brigava, era tão escondido, que nem o pessoal de cozinha,
que vivia com o ouvido afiado para pegar alguma coisa, sabia
de nada. Nunca disse: “Esta boca é minha”. Nunca.
A soberba ajudou Sinhá a sofrer calada.

Desça a escada e olhe. O alicerce desta casa é todo de


pedra, e, fora da terra, é tudo pedra uns dois metros acima do
chão. Fincado na barra está o argolão de ferro, onde, dizem,
Sinhá mandava amarrar escravo fujão, até morrer de fome.
Falatório só. O povo fala demais. O que sempre se via ali eram
os cavalos de passeio: um tordilho e um baio lustroso,
mangalarga, com manchas brancas nos quatro machinhos.
Sinhá luxava, nesse tempo. Punha saia rodada de meri-
nó, paletó quartinho de nobreza, anáguas de linho, com uma
barra de palmo de crochê aparecendo. Tudo do bom e do
melhor. Mandava atrelar na aranha o tordilho e o baio e tocava
para a cidade; às vezes passava semanas em casa de Sinhá
Maria Isabel, que morava em Pedra Branca. Andavam assim:
ela para um lado, o marido para outro. De vez em quando ele
vinha, amargo e cansado, e chorava, com a cabeça no colo de
Sinhá.
— Tenho uma santa em casa — dizia.
Ou então:
— Eu não mereço a mulher que tenho.
Sinhá acreditava no arrependimento dele e perdoava.
Não levava muito tempo, fazia pior. Isso já vinha muito de

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trás. O pai era assim, e o avô também, e o que é de raça corre
caça. Da primeira vez, Sinhá quis ir embora para casa dos pais,
mas ele tanto pediu, tanto fez, tanto prometeu, que ela ficou.
Mulher, pelo coração, a gente leva para onde quer.
As coisas mudaram, mais tarde, quando já não adiantava
nada mudar. Dava na mesma, se continuassem como antes.
Quando Sinhá teve Sinhazinha Gertrudes, que Deus haja,
ficou à morte. Então o Sinhô, fosse remorso, ou fosse promessa,
ou fosse que já estava enjoado de bater cabeça, mudou da água
pro vinho. Bom ele sempre foi. Era um pouco voado, só. Muitos
criam juízo cedo. Ele demorou mais e a culpa não era dele.
Estava na massa do sangue. Ainda por cima, tinha se casado
cedo, sem tempo para o juízo assentar. Quando endireitou o mal
estava feito. Tinha se endurecido o coração de Sinhá.

Quando aconteceu o que aconteceu, o povo que está só


dando com a língua nos dentes, começou num diz que diz que,
que a Joana dos Anjos é que tinha arrumado coisa-feita com um
mundrungueiro do Alegre. A Joana não mata nem galinha, mas
tinham lá seu motivo de falar, que não há fumaça sem fogo. Foi
assim: Sinhá queria uma cozinheira e mandou o capataz
arranjar uma que prestasse. Veio uma preta bonita, com uma
pele lisa e uns olhos graúdos, brilhantes, leito jabuticaba bem
madura. O marido, um angola reforçado, tinha ficado na outra
fazenda.
— Não é melhor comprar o marido dela, Sinhá?
— Não. Não preciso de mais ninguém.
— Na roça sempre há lugar e... e...
— E quê, homem? Desembuche de uma vez.
— Eu... pois é, eu pensei, não é? Caso a Sinhá queira... , a
negra fica mais contente...

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— Ora, Seu Joaquim Dias! O senhor, um homem acos-
tumado a lidar com escravo, com esses dengues?... Vai ver que
foi ela que andou chorando prele vir. Descanse, homem. Aqui
não há de faltar macho pra ela.
O capataz não disse mais nada. Ficou bobo com a bru-
talidade de Sinhá.
Só uma vez, nessa semana, Sinhá falou com a negra:
— Como é mesmo o seu nome, você aí?
— Joana Maria dos Anjos, Sinhá... — e já ia pedindo, mais
animada: — Sinhá...
Ela virou as costas, sem prestar atenção, arrepanhou a saia
de seis panos e lá se foi.
— Sum Cristo!... — falou Joana engolindo o choro. Maria
Carolina respondeu de longe, já se enfiando pelo corredor:
— Para sempre seja louvado!
Sinhazinha ainda pediu:
— Coitada, mamãe! Que é que custa...
— Chega, menina! Quando você mandar nisto aqui, faz o
que entender! Agora quem manda sou eu.
Ninguém mais teve coragem de falar nisso. E daí, quando
aconteceu o desastre, não faltou quem dissesse que a culpada
foi a Joana dos Anjos, de parceria com o cabinda que fazia
feitiço no Alegre.
Pesando bem as coisas, Sinhá não tinha culpa. Era bruta e
ruim, mas não estava nela e os tempos eram assim. O que
aconteceu depois, para uns foi castigo, para outros não foi. E
não foi mesmo. Foi só ensino. Quem nunca passou miséria não
sabe quanto doem certas coisas, e só aprende quando fica com
o sinal na carne. O garrote mais bem marcado é aquele que
levou ferro mais quente e mais fundo no couro.

Sinhô tinha saído cedo, a cavalo.


— Carolina!

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Apareceu montado e ficou por baixo da janela do quarto.
Aquela. Olhe daqui. A paineira já existia e devia estar florida.
As andorinhas que vêm voltando não se sabe de onde para estes
beirais encardidos, vinham voltando também. Antes disso, a
paineira florescia e as andorinhas iam e vinham todos os anos.
Depois disso, a paineira floresce e as andorinhas vão e voltam.
Engraçado! As coisas mais bonitas são as mais repetidas e a
gente nem percebe. Deus, mal comparando, é como o Zé da
Lucinda com a violinha dele. O Zé toca tudo o que aparece. Mas
do que ele gosta mesmo é de uma tonnadinha só, repenicada no
machete, uma coisinha à toa, sem mudança, sem floreado,
cantiga mole e gostosa pra noite de lua. Deus é assim. História
como a de Sinhá Carolina, só uma vez. Somente a dela. História
como dessas plantas, dessas flores, dessas andorinhas, tantos
milhões por este mundo.
Sinhô apareceu e chamou:
— Carolina!
— Uai! Mecê já está de saída?
Ficou um pouco na janela, olhando o céu. O céu, por estas
bandas, sempre é limpo. Não tem nem nuvem, nem fumaça de
queimada. Tudo sereno que é uma beleza. Fora junho, quando
as noites são limpas, também, e o céu fica azul-oscuro, outubro
é o mês mais bonito do ano. Como ia dizendo, Sinhá ficou um
pouco na janela e falou:
— Fosse coisa que pudesse, eu queria que essa viagem
ficasse para amanhã. A mo’que meu coração não pede que mecê
vá.
— Por que isso, agora?
— Não sei. Sonhei umas coisas e...
— Ora! Que bobagem! Não vai me acontecer nada.
— Assim Deus seja servido.
Sinhô, Deus lhe tenha a alma em bom lugar, estava
acostumado a contrariar os repentes de Sinhá.
— Só, só por causa do sonho, mecê não quer que eu vá?

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— Só.
— Então eu vou. Sonho dá o contrário.
Saiu, podia ser umas oito horas, já com sol nado. De
tardezinha o baio apareceu sem cavaleiro. Foram dar com o
Sinhô jogado numa perambeira, com o pescoço quebrado.
Aquele morreu sem ter tempo de gritar ai! Jesus! Aí pegaram a
falar que foi mandinga. Que mandinga o quê! Aquilo foi o
cavalo que passarinhou, porque viu alguma cobra no caminho.
Sinhá se cobriu de luto, fechou a casa e não recebia visita.
Mas ninguém viu Sinhá chorar. Quem pode saber se ela sentiu
ou não?
— Bem meu coração dizia...
Foi só o que falou.
Um dia reparou Joana chorando pelos cantos.
— Eu, que sou eu, fiquei sem marido, o que é que tem essa
negra que não pode ficar?
Não. Não era ruindade. Era feitio dela. Pensava que toda a
gente podia ter a sua dureza de ferro bem temperado.
Era uma coisa que ela podia remediar. Isso era. Mas tinha
falado não, uma vez, e era ponto de honra ficar falando não,
sempre.
Ruindade, às vezes, é só falta de imaginar a tristeza dos
outros. Imaginar mesmo bem pouco adianta. Ter dor de barriga
é uma coisa. Pensar na dor de barriga alheia é outra coisa muito
diferente. Sempre parece que a dos outros dói menos.
A primeira coisa que fez, quando pegou a cuidar dos ar-
ranjos da fazenda, foi mandar matar o baio. Podia ter vendido;
podia ter mandado para longe; podia ter feito presente dele a
algum agregado. Não. Mandou matar. É pra ver como Sinhá
era.

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Agora não se ouve mais o pim-pão do monjolo, batendo
de noite e de dia, chuáááá-pam, com o impulso da água. A
Companhia mandou represar o ribeirão dos Mota, tirou o
monjolo e botou um moinho no lugar dele. Fica na direção desta
janela. Por ali veio a desgraça de Sinhá.
Não é dizer que veio de uma vez. O que chegou foi o
arremate, pois, dês que nasceu, ela já começou a cumprir o seu
destino. A vida de toda gente tem altos e baixos. A de Sinhá,
não. Tomou uma direção só. Foi uma ladeira que só tinha
descida. E Sinhá desceu firme, de cabeça em pé. Tudo o que fez
foi seguir, sem querer, o mesmo rumo. Tudo o que aconteceu
foi a favor do tombo. Tal qual, na estrada nova, que a turma de
engenheiros está abrindo, direito daqui até a várzea, e que vai
removendo tudo o que atrapalha o andamento do serviço, os
acontecimentos foram na frente dela, de batedores, como varas
de caititus, derrubando o que podia servir de estorvo, adiante,
na trilha. Para não chegar a esse fim, podia se apegar ao marido,
o marido morreu. A filha era um estorvo, e saiu por si mesma
do caminho. O dinheiro também era um estorvo, mas Sinhá
tinha que se perder e se perdeu. As coisas, quando têm que ser,
Deus não revoga.

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II

O mais bonito de todos os caminhos de Olhos D’Água é a


estrada do Limoeiro. Essa que começa para lá do ribeirão dos
Mota.
À noite, dá medo, porque a alma de Sinhazinha Gertrudes
anda por ela. Anda, sim, embora muitos digam que é o reflexo
das folhas de embaúva, quando bate o luar. Foi aqui que ela teve
a sua querência. De dia é diferente. É muito mais alegre. A
estrada desce e se envereda pela várzea, igual a uma fita
comprida que alguém tivesse largado à toa, estendida no chão.
Quando há sol a gente vê crivos de luz e sombra na poeira. Luz
do sol e sombra do bambual e de eucaliptos, que marginam a
estrada. Dos dois lados, daqui até a curva, lá embaixo, onde o
caminho corta outra vez o ribeirão, e onde começa a invernada,
só se veem os canaviais, bracejando quando dá o vento.
Sinhazinha Gertrudes tinha saído do colégio naquele ve-
rão. Era a mãe em ponto mais miúdo, e vestida à moda da
cidade. A diferença de roupa, mesmo, não vogava muito porque
Sinhazinha gostava de correr por aí, pela estrada do Limoeiro
de calças de homem e chapéu grande, de palha, a cavalo; ou
então a pé, de cestinha a tiracolo, procurando frutas do mato.
Quem não conheceu Sinhá, moça, era olhar Sinhazinha. Até de
gênio eram iguais. Sinhá ia ver.
Era tempo de manga e de pêssego, e jabuticaba temporã
estava pretejando no galho. Guabiroba e maria-pretinha havia

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de colher jaca. Pra mim é por causa do cheiro da fruta madura.
O amor está de emboscada à beira destes caminhos. Está
no cheiro do mato verde, pisado, ou molhado de chuva. Está no
itê das frutas. Está na quentura do sol e no verde destas
paragens. É que nem fojo de caçador, em carreiro de anta, ou
então que nem armadilha de pegar passarinho cantador.
Sinhazinha veio desprevenida e caiu no laço.

Quando chega o tempo, as coisas acontecem. Antes, vem


o aviso. Viu os pessegueiros como estão? Carregados de flor,
como coisa que um enxame de abelhas cor-de-rosa grudou nos
galhos. Daqui a nada, o mês que vem, o mais tardar, está tudo
assim de pêssego, crescendo.
Ninguém repara, mas tudo se enfeita quando o amor está
para chegar. O cafezal se enfolha tanto, na florada, e fica tão
bonito, enfeitado de branco, que dá pena pensar que é por pouco
tempo. Flor fica mais cheirosa quando está para virar fruta. Até
passarinho muda a pena para se acasalar. Formiga, que é
formiga, cria asa e anda tonta no céu, amando com sol quente.
É verdade que cria asa para se perder, mas t em que ser assim.
Para achar tudo isso bonito é só olhar sem malícia e de
coração limpo.
Sinhazinha estava de vez e floresceu, assim como os pes-
segueiros florescem antes de dar fruta. Ficou linda, linda, que
era ver, mal comparando, uma santa. Somente que, em vez de
trazer o resplendor em volta da cabeça, trazia dentro dos olhos.
Quando deram de reparar, estava de namoro ferrado com
o filho do capataz.

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Era tudo uma boca só a dizer que foi o Inácio Bugre quem
ajudou. Saber, com certeza, ninguém sabia, mas era o mesmo
que ter visto. O Bugre, não se sabia por que, era todo dengues
com a menina. Batia no portão da casa-grande e perguntava:
— A doninha tá’í?
— Ela já vem.
Sinhazinha descia correndo, espaventada, a escada de
pedra.
— O que c’o senhor trouxe, Seu Inácio?
— Joá.
Despejava o uru de palha trançada no aventalzinho dela.
Joás vermelhos rolavam, uns por cima dos outros, como coisa
viva se atropelando. Trazia balaio de jabuticabas. Trazia galos
da serra em gaiolas de taquara e arame fino. Trazia latinhas com
lambaris de rabo prateado. E cada cesta de pêssego maduro!
Cada espiga de milho verde! Cada melancia!... Sinhá não se
amofinava de ciúme dos desvelos dele, nem com o benquerer
de Sinhazinha pelo homem estranho.
— Gertrudinha está ficando perdida de tanto mimo. Está
luxenta. Também, qualquer dia pede a lua e mecê traz.
— É, dona. Se não estivesse tão alto...
E um dia que Sinhazinha, por causa de reinação, caiu no
rio, e quase se afogou, ele veio com ela sem sentidos nos braços,
desesperado da vida.
Ela voltou do desmaio com um febrão que queimava, por
causa da friagem da água, ou do susto, não sei. Inácio não
arredou pé de perto da cama, dois dias e duas noites.
— Venha comer alguma coisa, Seu Inácio.
Ele quieto.
— Seu Inácio, o senhor aceita um café?
Ele nem se mexia. No fim, não falavam mais com ele.
Ficou ali aquele tempão. Quando o médico disse que Sinha-
zinha estava fora de perigo, despejou no choro. Eram só lá-

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grimas que desciam. Ele não enxugava, não soluçava, não
falava, nada. Sinhá botou a mão no ombro dele:
— Que é isso, Seu Inácio? Agora que mecê chora? Agora
não há mais perigo. Passou. Que é isso, homem?
Ele tirou a mão dela:
— Não se incomode, não, dona. Me deixe.
E fechou outra vez a cara.
Dali a uns dias, trançou chinelos para Sinhazinha; trancou
uma esteira de muitas cores; trançou um cestinho de costura.
Veio trazer.
— A doninha tá’í?
— ’Tá, sim senhor. Ela já vem.
E quando Sinhazinha desceu correndo a escada, olhou pra
ela. Olhou bem e riu. Enlevado. Contente da vida. Mostrou
todos os dentes, grau dos e brancos como dentadura de cachorro
novo. Era a primeira vez que viam o homem rir.
— O quê...
Nem deixou Sinhazinha acabar de perguntar. Atirou tudo
no chão.
— Levei três dias tecendo, doninha. ’Tá’í! Pegue! Depois
vá cair no rio, outra vez. Esse é o pago que a doninha dá pro seu
bugre.
E foi-se embora.
Bem dizem que mais vale cair em graça do que ser
engraçado. Sinhazinha, aquela barulhenta doninha amiga de
rebuliço, tinha caído nas boas graças do bugre quieto.
Volta e meia ela ia com ele passear de canoa. Não faltava
quem, pr’amor desses passeios, fosse encher os ouvidos de
Sinhá:
— É bom não deixar Sinhazinha andar com esse homem.
Ele pode ter má intenção. O Inácio é que nem bicho do mato...
Mas Sinhá não era dessas de se emprenhar pelos ouvi-
dos, justiça lhe seja feita. Ela estava bem vendo a simpleza

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daquele “bicho do mato”, como diziam. Inácio Bugre morava
da banda das vertentes. Foram elas que deram nome à fazenda:
Olhos D’Água. É um borbulhar de nascentes de água boa, lá
para o lado de onde desce o ribeirão. Os mais velhos dizem que
são as lágrimas que a mãe-d’água tem chorado.
Inácio vivia de tecer esteiras com taboa tirada do brejo.
Abicava, ribeirão acima, amarrava a canoa num porto qualquer
de beira-rio, e se atolava no brejal da margem. Às vezes
acontecia ser mordido de cobra. Pensavam que ele ia morrer.
Inácio Bugre? Ché! Não era aquele que havia de morrer de
picada de cobra. Foi mordido até de cascavel e não adiantou.
Alguns diziam que ele tinha oração de fechar o corpo. O que ele
tinha era sangue forte, e fumo do bom para botar na ferida.
Eta, Inácio! Andava de pé no chão, no meio do carrascal e
nada era nada para ele. Arranha-gato arranhava a roupa e não
arranhava a pele do bruto. Espinho, no chão, ele pisava com o
dedão chato, bem na ponta, amassava o espinho e nem via.
Caboclo de pouca fala e de pouco riso.
— Mecê não tem medo, Sô Inácio, de andar por essas
furnas assombradas de beira-rio?
— Nhô não.
— Ó que um dia mecê topa alguma pela frente.
— Medo não mora comigo, moço.
Tocava o canoão, escavado num tronco só, rio acima. Em
qualquer volta, saltava e se embrenhava no mato.
— É chamamento do sangue. Não vê que ele é bugre? —
diziam.
— Cobra que for boba de morder esse homem, morre.
Só falavam. Ninguém tinha peito para se meter com aquele
homem cor de cuia, de pouco riso e de pouca fala, rijo que nem
sucuriju.

30
O que Sinhá devia fazer era chamar Sinhazinha e falar
direito com ela. Isso, caso tivesse alguma razão para não con-
sentir no casamento, melhor do que por ser o moço filho de
capataz. Devia fazer. Mas fez? Que esperança! Sinhá tinha
queixo duro que nem mula velha. De qualquer jeito, não
adiantava, porque ninguém ia passar, em seu lugar, o que lhe
estava destinado. E Sinhazinha era dessas que quebram mas não
vergam. Tinha a mesma dureza de Sinhá Carolina, coisa que
Sinhá nem desconfiava, mas ia ficar sabendo à sua custa.
Já que as coisas estavam tomando um rumo torto, o melhor
era deixar, de uma vez. Fazer como fez o Sinhô velho:
— Não é do meu gosto, Carolina. Agora, se você quer
casar, case. Quer ser desgraçada, seja por sua conta. Depois não
venha me dizer que eu não avisei. Sua alma, sua palma.
Falou só isso, com seu vozeirão de sino grande, parando
de vez em quando para tossir. Apesar de tudo fez um festão no
casamento dela. Não durou muito tempo, depois. Andava pelos
caminhos, tossindo, asmático, encarangado de reumatismo,
querrêin-querrêin, aquela tossinha raspando a garganta.
— Como vai, Seu Jovino?
— Vai-se indo, vai-se indo.
— Melhorou da tosse?
— Melhorar não melhorei, mas já me acostumei com ela.
E as comadres, quando se ajuntavam na casa-grande, só
falavam de doença.
— Seu Jovino é que não está muito bom. Já fez xarope de
limão prele, Siá Maria?
— Já.
— De guaco com agrião?
— Também.
— De...
— Também.

31
— Mecê não deixou eu acabar.
Siá Maria se desculpava, sem jeito:
— É que eu já fiz tudo o que me ensinaram...
— Já deu chá de folha de laranja, com bastante açúcar?
— Já dei. Mas mecê sabe como o velho é. Madrugadinha,
já anda andando por aí. Diz que sufoca de ficar de dia em casa.
— Homem é assim mesmo.
— É.
— Um dia morre, aí sossega.
— Nem morto.
— Eu tenho uma raiva desse velho, Saninha! Não aguenta
uma gata pelo rabo e anda nesse caminho molhado, pra lá, pra
cá. Não sei o que perdeu. Eu já falei. Morra pra’í. Só quero que
não me amole.
Seu Jovino ria. Ele já foi há muito tempo para a cidade-do-
pé-junto. Pois não sossegou. Ainda um dia deste, o Zé da
Lucinda, que é medroso como ele só, ia andando pela estrada
nova — agora chamam de avenida, por causa do correr de casas
com jardim que a Companhia mandou fazer — e viu um
velhinho perrengue com jeito de alma. Veio correndo tanto, que
chegou sem fôlego em casa do Juca Pereira, onde ele e mais uns
outros estavam fazendo serão: tirando fumo do jirau, para
acochar.
— Que é isso, rapaz? O que foi?
— Dá água pr’ele. Pisou em cobra? Viu fantasma?
— Andaram tocaiando o rapaz. Onde foi o tiro? O Zé
estava até gemendo de tanto susto.
— Ai! Uma assombração iá na estrada.
— Que assombração, que nada! Pois ainda não é meia-
noite.
— Era a sua sombra.
— Não era. Eu vi, por esta luz que me alumia, um velhinho
perrengue com jeito de alma.

32
Ficou tudo quieto, de repente. Foi a mesma coisa que ter
jogado água fria neles.
— O que é?
O Zé da Lucinda olhava espantado para todos. Aí Seu Juca
Pereira falou:
— Só um velhinho fez mecê correr desse jeito? Já sei
quem é. É Seu Jovino.
Espichou o beiço com pouco caso.
— ... esse bobo correndo do Seu Jovino...
— Quem é esse que não conheço?
Aí começaram as risadas. Cada qual dava um aparte.
— Deveras? Nunca ouviu falar do Seu Jovino?
— Não.
Riam-se às gargalhadas.
— Gente! Ele nunca ouviu falar do Seu Jovino!...
— Não mesmo. O que é que tem isso?
— Que é que tem? Quiá, quiá, quiá, quiá.
— Mas quem é?
— Aí! Ainda pergunta quem é...
O Zé estava começando a enfezar.
— Falem de uma vez...
E o Juca Pereira, sério, enquanto o pessoal, acochando
fumo, se torcia de rir:
— Pois é o falecido Sinhô velho desta fazenda.
Viu que diabo de velhinho andejo? Com o casamento de
Carolina os velhos tinham-se mudado para a casa de portas
verdes, onde hoje é armazém, no começo da estrada que vai
para a vila. Depois que o velho morreu, Siá Maria, logo de
manhãzinha, sentava-se à porta, o saião cobrindo os pés, e
fumando num pito com canudo de palmo e meio. Iam passando
os conhecidos:
— Bom dia, Siá Maria.
— ’m dia.
Paravam para dar uma prosinha:

33
— Como vai, Siá Maria?
— Vai-se vivendo.
E falavam então do tempo, da colheita, da usina, da al-
forria, dos filhos dela, do Miro, principalmente, que, apesar de
ser meio louco, ou com certeza por isso mesmo, era o predileto
da Sinhá velha.
— Por onde anda o Miro?
— Nem sei — suspirava de cortar o coração. — É o único
que me dá desgosto. Agora vendeu a parte dele na herança do
pai e pôs uma linha de carros daqui para Pedrão. Deus ajude
que dê certo.
— Dá sim, Siá Maria.
E, longe dela, comentavam:
— Vai dar com os burros n’água outra vez. É um
descabeçado. Nunca fez coisa que prestasse.
Dona Eugênia passava, roliça, sacudindo as banhas.
Conversava um pouco:
— Bom, ’té logo. Apareça lá em casa.
— Ché! Não saio mais. Ando com umas tonturas que até
me dão medo de sair. Inda outro dia, fiquei com a vista tão turva
que quase caí no quintal.
— Vá morar com uma das filhas, é melhor.
— Qual! Não é... O melhor é ficar no meu cantinho até
quando Deus quiser.
Então aparecia Sinhazinha.
Siá Maria tinha um gato. Tinha um cachorrinho cotó. Um
cabecinha-de-fogo na gaiola. Um mico com uma correntinha
amarrada na cintura. Umas galinhas de pescoço pelado e um
galo velho chamado Jacó.
A vinda de Sinhazinha era uma festa, todos os dias. Festa
para o coração de Siá Maria, para o gato Romão, para o Tigre,
para o canarinho, para o mico com cara de velho e até para as
galinhas. Mal chegava, pegava a cuia cheia de milho e
chamava: quit, quit, quit, quit, quit, prrrrrrrrrrrrrrr. E a ga-

34
linhada vinha num alvoroço. Mas Sinhazinha não se demorava.
— Bom, vovó, já vou. Se mamãe aparecer, eu tenho pas-
sado o dia aqui.
— Qu’é que você anda aprontando?
— Não é nada, não, vovó. Não vou em lugar ruim, a
senhora sabe.
— Sei sim, sonsinha.
Ficava olhando a neta com os seus pobres olhos cansados.
Às vezes Sinhazinha contava alguma coisa dos passeios:
— Sabe, vovó? Eu fui ontem, com o Bugre, até para cima
do remanso...
— Só com o Bugre?
— Não, vovó. A senhora já não sabe que não? Cada pia-
ba assim, rabeando n’água. O ribeirão estava limpo, que até
nem tinha fundo.
— Como é que não?
— Tinha. Mas a gente não via. Enxergava só céu, lá em-
baixo.
O céu que Sinhazinha saiu para procurar, depois, podia ser
que fosse um céu de fundo d’água. O que é e o que não é, não
se pode saber antes do tempo. Tudo que a gente pensa que é
céu, é céu mesmo. Até o dia em que pensa que é lodo do ribeirão
e mais nada.

Na casa-grande tudo ia correndo do mesmo jeito. Sinhá


pouco falava. E Sinhazinha também só dizia, de manhã, sem
olhar para ela, enquanto amarrava as fitas do chapéu de palha
embaixo do queixo:
— Vou passar o dia com vovó.
— Vá. Não espere anoitecer para voltar.

35
Toda a gente estava do lado de Sinhazinha. O Bugre só
achou ruim no primeiro dia. Assim que chegaram ele estranhou:
— Quem é, doninha?
— Não é ninguém, não. Quero dizer, é gente daqui mesmo.
É o filho do Seu Joaquim Dias. Veio da cidade. Estava num
colégio lá.
Entrou rindo na canoa, de um pulo.
— Tenha modos, Gertrudes. Você vira a canoa.
— Não vira, não, mocinho. Ela sempre andou comigo e
nunca virou canoa nenhuma.
Foram, ribeirão fora, até achar um remanso para a pescaria.
E o Bugre de cara amarrada. Afinal uma coisa à toa pôs o índio
do lado do moço: o moço quase caiu, só para encher o chapéu
de Sinhazinha de umas flores silvestres que ela achou bonitas.
Havia a tia Maria Isabel, mas Sinhá Carolina já tinha
emperreado, contra, e a tia não pôde fazer nada. Chegou até a
brigar com Sinhá. Foi quando Sinhá queria mandar Gertrudes
para a cidade, para esquecer aquela bobagem.
— Ela já está moça feita e não é dessas que mudam.
— Qual, mana, esquece sim.
— Você vai ver.
— O que eu vou ver é isso acabado.
— Ela tem o direito de escolher, Carolina. Você já pensou
nisso?
— Pensei no meu direito de dispor do que é meu. Não
quero que ela vá atrás desse pé-rapado.
— Não é pé-rapado. O rapaz é bem-educado, será ad-
vogado no ano que vem e tem um bonito futuro.
— Muito bonito, com efeito! Muito! Filho de capataz...
— Isso não quer dizer nada.
— ... e não tem um tostão.
— Não é só dinheiro que vale.

36
— Sabe que mais? Eu não quero e acabou. Quem manda
nela sou eu.
— Sua filha não é qualquer coisa, qualquer negra fugida,
ou cabeça de gado para você mandar para onde quiser. Ela tem
gênio, Carolina. Deixe, enquanto é tempo. Porque depois você
torce a orelha e não sai sangue.
— Gertrudinha está acostumada a me obedecer.
— Você que é mãe, o que devia era pensar mais na feli-
cidade dela.
— E não é para a felicidade dela que estou trabalhando?
Casamento por amor nunca dá certo.
— Não seja amarga. O seu não deu. Outros darão. Só o que
eu digo é que se acontecer alguma coisa, não se queixe.
— Eu sei o que convém à Gertrudinha.
— Sabe... Você sabe!... — zombou Sinhá Maria Isabel. —
Sabe tanto como sabia quando chegou a sua vez! Fez um
casamento errado por ser teimosa e quer desfazer um certo, por
causa de teima.
— Está bem, Bela. Já percebi onde você quer chegar. Você
não quer Gertrudinha na sua casa. Pois não vai, pronto.
— Não é isso, Carolina. Compreenda as coisas! Ela vai se
quiser. E lá, se o rapaz for falar com ela, eu não vou impedir.
— Então não vai. Eu me arrumo sozinha.
Discutiram, e Sinhá Maria Isabel saiu da fazenda para
nunca mais voltar.
Seu Joaquim Dias fazia vista grossa, mas Sinhá vivia
batendo na cangalha para o burro entender.

Nesse meio-tempo morreu a velha Siá Maria. Foi se juntar


com seu velho.
O cemitério fica na entrada de Pedra Branca. É pequeno,
muito limpo, com túmulos caiados de branco e covas rasas
onde plantam bom-dia e sangue-de-adão. O Sinhô está lá

37
na segunda quadra à direita de quem entra. Siá Maria também.
Vai ver que Siá Maria, quando acorda de noite, vê a sepultura
vazia e o velho na janela.
— Qu’é isso, Seu Jovino?
Ela sempre chamou o marido de Seu Jovino.
— Estou que não posso mais de falta de ar.
— Será possível que mecê ainda não sarou? Querrêin-
querrêin — aquela tossinha dele como barulho de serrote.
— Asma não sara assim com dois arrancos.
— Apanhe sereno! Vá passear na estrada! Eu não faço
mais remédio. Amole-se!
Deus que não me castigue, que não presta brincar com
defunto.

Sinhazinha queria um bem à avó, que só vendo! Quando


Nosso Senhor levou a pobre da velha, ficou sem ninguém para
pedir um conselho. E aí resolveu por si mesma e resolveu mal.
Ou resolveu bem, quem sabe? Deus escreve direito por linhas
tortas.
Cada vez que se desesperava corria para a choça do Bugre.
Só as coisas muito diferentes combinam mesmo de verdade. Já
viu no mato como é? Os troncos mais velhos, mais feios, mais
carcomidos, ficam assim de parasita em flor.
A culpa foi de Sinhá, porque Sinhá, essa foi como água
que parou. De boa que era virou igapó. Já viu igapó? Enquanto
está quieto, muito bem. É verde e podre, mas não faz mal a
quem passa. Mas se alguém mexe com ele, aí...

Aí tudo foi piorando, até que um dia Sinhazinha bateu


asas. Que o moço acabava tirando Sinhazinha de casa, aca-
bava mesmo. Mulher proibida é como fruta de quintal alheio.
Quanto mais alto é o muro, mais gostosa e mais doce a fruta.

38
Pois foi tudo uma boca só a falar que foi o Inácio que
ajudou. Para enfrentar aquele bugre brabo, só mesmo Sinhá.
Mandou dizer que precisava falar com ele e ele veio.
Quieto, carão fechado. Chegou de chapéu na mão, um jeito de
quem estava desafiando meio mundo, que, só o jeito, já era um
desaforo. Sinhá começou errado:
— Com efeito, Seu Inácio...
— Qu’é que tem eu, dona?
— Nunca pensei que mecê se prestasse pra alcoviteirar
filha dos outros...
— Nhá não.
— Andou alcoviteirando sim, que eu soube de fonte limpa
e...
O Bugre cortou, bruto:
— Se soube, por que mandou me chamar?
— Para saber deles.
— Eu sei?
— Prouvera a Deus, Sô Inácio...
— Não bote Deus no meio desse negócio, dona.
— Se fosse sua filha...
— Se fosse, ela não precisava fugir, nhá não.
Sinhá engoliu em seco e fez um esforço para falar.
— ’Tá certo, Seu Inácio. Eu sei que fui muito dura de
coração. Se eu soubesse...
— E, dona. Se meu pai não tivesse morrido, ainda ’tava
vivo.
— Fale, Seu Inácio. Juro por tudo quanto é mais sagrado,
que eu estou arrependida...
Imagine, moço, a dona orgulhosa do fazendão, ali de pé,
dando satisfação ao Inácio Bugre!
— Quando é que pensei que isso podia acontecer? Quan-
do? Só mecê pode me ajudar.
— Que jeito?

39
— Diga para onde eles foram.
— Mecê já está de espírito prevenido...
— Fale, eu acredito.
— Não preciso que ninguém me acredite.
— Mas, Seu Inácio, eu quero mandar gente atrás deles...
— Qu’é que adianta, dona?
Levantou, rodando o chapéu na mão, e antes de virar as
costas ainda falou:
— O que está feito, não está por fazer.
E saiu pisando duro, com aqueles pés esparramados, que
nunca viram sapato na vida.

Aquilo foi tentação do diabo. Foi. Para Sinhazinha fugir,


bastava só ir contra ela. Foi o que Sinhá fez. Não há nada como
uma cerca para tornar uma coisa mais desejada. Ninguém quer
o que está largado. Quer o que não pode, ou o que já tem dono.
Depois que Sinhazinha Gertrudes deu aquele passo, Sinhá
ficou sozinha, sozinha, neste fim de mundo. Ninguém
comentou. Ninguém foi consolar Sinhá. Nada. Foi como se
tivessem levantado um paredão em frente à casa-grande. Não
se via, mas era a mesma coisa. O paredão estava aí.
À dona da casa-grande ninguém mais se achegou.

Seu Joaquim Dias era estimado aqui. “Não se vá, deixe de


bobagem! Mecê não teve culpa...” “Nós vamos sentir muito a
sua falta.” “Ora, Seu Joaquim! A filha não é sua, o filho é que
é. Em homens não pega nada...” Foi à toa falar. Seu Joaquim
era homem de vergonha. Arrumou os trastes, chamou o homem
do carro de boi, ajeitou tudo e foi falar com Sinhá Carolina:
— Sinhá, eu... agora... eu... eu não acho bom continuar
aqui.

40
— Como queira, Seu Joaquim Dias.
— Então, dona...
— Té mais ver.
— Té mais ver. Caso precise de mim, eu...
— Não preciso, não. Descanse.
— Eu sei que não precisa. Mas se precisar, se acontecer...
estou pronto para ajudar.
— Tá bem. Tá bem. É só, Seu Joaquim Dias?
— É só, dona. Então até mais ver.
Sinhá não respondeu e ele saiu tropeçando. Quando já
estava na porta, Sinhá chamou: “Seu Joaquim!”. Ele se virou
depressa. (Eu pensando mal dela, coitada! Ela é tão gente como
as outras. Endureceu de sofrer. E a dureza mesmo é só por fora.)
— Quem sabe se ia pedir para ele ficar? (Ficar eu não fico,
Sinhá; minha presença pode le lembrar coisa que é melhor
esquecer. Mas eu aprecio muito o seu oferecimento e isso tira
um peso do meu coração. Nossos filhos hão de ser felizes.
Conheço meu filho. Saiu, saiu para casar. Não, que ele é homem
sério. Criei ele no respeito e na religião. Fique descansada,
Sinhá, que Sinhazinha, que eu quero bem, de coração, está em
boas mãos. Um dia, quem sabe?, eu ainda volto e eles vêm
morar aqui.)
— Ia me esquecendo... O senhor espere um pouco aí.
Foi para dentro. Seu Joaquim Dias, homem de boa-fé,
ficou pensando no que ela ia dizer (Se por acaso vier a saber
deles, dê isto a Gertrudinha. “Que correntinha bonita! Que santo
é?” “Nossa Senhora Aparecida. Diga que eu já perdoei.” “Tá
bom, dona, eu ainda não sei deles, mas meu filho não há de ficar
muito tempo sem me dar notícias.”) Sinhá voltou com dinheiro
na mão. Não tentou disfarçar a dureza do que ia dizer:
— Já estava contado. Eu sabia que mecê, mais hoje, mais
amanhã, ia pedir as suas contas.
Pagou:

41
— Desde o dia... desde aquele dia, até agora, são oito dias;
a 2$500 — 20$000 — Vinte mil réis. ’Tá’í. Pegue! — E virou
as costas.
Seu Joaquim saiu que nem enxergava direito, de tão
atarantado. Ué! 2$500 por dia, e então? Naquele tempo, 75$000
por mês representava mais de 800, hoje.
Depois disso foi um tal de mudar de capataz! Veio um
espigadinho, que gostava de aparecer no serviço com sol ar-
rebentando mamona. Camarada só respeita feitor e capataz
madrugador. Que é capaz de puxar enxada com ele, no eito. Ou
então não é homem. Esse foi embora. Veio um morenão alto e
forte, que vivia comprando briga. Lanhou com ponta de faca
um camarada e fugiu. Veio um caboclo da pá virada, mau como
cobra. Tocaiaram esse numa volta do caminho e liquidaram
com ele. Também, deu até de chicote em caboclo sarado, daqui,
que nunca dormiu com desaforo.
— Seu delegado — o homem nem falava, rugia. — Seu
delegado. Tempo de escravo já passou. Eu matei só. Mas o que
eu queria era beber o sangue desse desgraçado.
Veio um capenga, nortista, cabra estradeiro, de carranca
fechada e cheio de exigências. Esse foi embora de um jeito
engraçado. Deram um carreirão tão grande nele, que capenga
mesmo, foi parar na vila, correndo.
Veio um alemão com cabelo feito cabelo de milho, ver-
melho e espetado. Desse também ninguém gostava. Olhava
enviesado e falava de cima, soberbo:
— Fossês, brrasileirras, non serrfem parra trrabalharrr.
— Quem é que serve, alemão dos quintos?

42
III

Sinhá ainda nem sonhava com o que estava para acon-


tecer, quando o dono da fazenda Limoeiro botou o filho mais
velho fora de casa:
— Nunca mais me apareça! Não quero nem ouvir seu
nome e não quero ver você mais. Nem vivo, nem morto.
E ele que não aparecesse. O velho era muito capaz de
tocar ou matar o filho, como um cachorro danado. Era desses
de uma palavra só, duro como poucos. Desses não há mais.

O cavaleiro vinha que vinha, pacatá, pacatá, levantando


um poeirão na estrada. Quem será, quem não será, o pessoal
da capina largou de mão o guatambu e ficou olhando. O sol
doía na vista, tão claro, tão quente! Seu Pedro Gomes é quem
conta: “Então nós ficamos esperando o homem chegar. Veio
vindo numa nuvem de pó, e o chão estremecia com o tropel
do cavalo. Quando estava mais perto gritou: ‘Bom dia, mo-
çada!’. ‘’m dia!’ ‘Podem me dizer onde é a casa do dono da
fazenda?’ ‘Não é dono, nhor não, é dona.’ E um apontou —
‘Virando aquele caminho ali e depois subindo a rampa que
começa no monjolo, logo em cima é a casa da Sinhá.’ ‘Deus
le guarde, té mais, moçada.’ ‘Vá com Deus: ’té mais.’ Que era
um moço bem parecido, isso era. Ninguém pode negar. Botou
o cavalo a trote e subiu a rampa onde hoje é o moinho. Nós
ficamos olhando. Moço! Arreio com debrum de prata,

43
espora de prata, um poncho que era uma riqueza. Tinha até
estrelas de prata na fita do chapelão de couro. Os camaradas
olharam uns para os outros. ‘Rico, hem?’ ‘É.’ ‘Quem será?’ ‘Pra
mim é o filho do dono da fazenda do Limoeiro.’ ‘An!!! Vá ver
que quer comprar esta fazenda também. Não chega uma...’ ‘Vá
ver...’ ‘Se ele quiser, Sinhá vende. Anda tão sozinha!’ ‘Qual o
quê! Vende nada!’ ‘Aquela não sai daqui.’ ‘Se está sozinha, está
porque quer.’ ‘Quem semeia vento...’ Ainda olhamos bem o
cavalo alazão, bonito que era um gosto ver-se. Mas, por mais
que a gente olhasse, não viu a desgraça na garupa do moço. Só
o meu Tonho, que era uma isca de gente, correu para dentro,
com medo. E o Biguá, ura fuça-fuça de marca maior, que lambia
lampeiro tudo quanto chegasse aqui, pegou a latir, a latir, que
foi um despropósito. ‘Quieto, Biguá! Quieto!’ E ele latindo.
‘Passa fora, cachorro ordinário. Que barulheira é essa, fora de
tempo?’ ‘Passa!’ Biguá ainda saiu na carreira, atrás do cavalo,
latindo. Nenhum de nós desconfiou daquela ojeriza. O Tonho e
o Biguá estavam pressentindo ou vendo coisas. Os olhos deles
tinham outro poder, que os de nós, pecadores, não tinham. Viam
mais. Criança e cachorro nunca se enganam.

O moço chegou e bateu no portão. “Ó de casa!” “Ó de fora!


Apeie e entre!” Entrou. Contou a história da moda dele:
— Sei dizer que o prejudicado fui eu. Mas eu disse pro
velho: “O senhor fique com a sua fazenda, que eu vou por aí.
Vou trabalhar. Vou fazer qualquer coisa. Não preciso de muleta.
Já sei andar sozinho, graças a Deus. Se alguma coisa fico lhe
devendo, não se incomode, que eu mando alguém trazer o
dinheiro. Aqui não piso mais”. Ah! Falei. É meu pai, mas a
gente vai tendo paciência até um dia. Não é, dona?
— É.

44
— E não quero mesmo mais saber. Se mecê tem serviço
aqui pra mim, muito que bem. Se não tem eu toco pra diante.
— Mecê está acostumado a lidar com camarada?
— ’Tô sim. Eu fazia esse serviço mesmo, lá. Nunca fiquei
de graça, às custas do velho. Não, dona. Eu trabalhava para
pagar o feijão chorado que eu comia...
— Mas pr’amor de que seu velho ficou assim contra
mecê?
— Eu sei lá, dona! Besteira. Enchimento de cabeça. Sinhá
se agradou dele.
Olhando assim de repente, era até bonito. Depois, com a
continuação de olhar, dava uma coisa esquisita na gente. Um
embrulhamento de estômago. Uma vontade de ir embora, sem
olhar para trás. Eram os olhos: miúdos, meio fechados, como
olhos de cobra. Só uma frincha e um risquinho preto espiando.
A mo’que dizia: “Eu olho vocês, mas aqui dentro, ninguém
olha”. Era a boca também. Ria sem mostrar os dentes. A bem
dizer, nem boca ele tinha. Era só uma risca que nem os olhos.
E ainda apertava mais quando se infernizava. Homem! Como
não faço fé em gente sem boca! O diabo é que quando queria,
era agradável, jeitoso, como o quê! Cativava a gente com boas
falas:
— Como vai sua plantação, João Rosa?
— Vai bem, sim senhor.
— Já colheu o feijão?
— Vou colher pra somana.
— Olhe! Se precisar de meio dia, peça. Não faça luxo,
viu?
— Deus lhe pague, sô.
No fim do mês descontava o meio dia, e o caboclo ainda
dizia:
— Eta homem bom!

45
Nessa noite bateu um temporal como nunca se tinha visto.
Frio de gelar os ossos. A chuva barulhava tanto e era um riscar
de coriscos, uma trovoada, um despejar de água, que parecia um
fim de mundo. “Oh, dilúvio!” “Se o mundo não acabar desta
vez, não acaba mais em água.” Sinhá queimou palha benta, e
defumou a casa. Aos poucos, a chuva foi amainando. Só ficou
um vento assim como uivo de alma penada: zzzzzz. E dava
aquelas guascadas no canavial: lept. Porteira batia sem ninguém
pôr a mão. Aaaaaaai! Pam! Cada gemido feio de deixar o cabelo
da gente em pé.
Mas Sinhá não entendeu o aviso e o moço ficou.

Ninguém soube direito o que conversaram. Sinhá chamou


o alemão e falou: “O senhor tem desempenhado bem o seu
encargo, e eu não tenho razão de queixa. Mas os camaradas, já
notei, não simpatizam com o senhor. Questão de raça, acho.
Não gostam de obedecer a um estrangeiro. Se o senhor quiser,
dou-lhe uma boa carta de recomendação”.
— Prrigada, senhorrra. Comprrrente bem. Eu fou...
E o moço ficou sendo capataz.

A notícia correu como um rastilho de fogo em mato seco.


E era tudo uma admiração só.
— Não me diga?! Vai mesmo casar...?!
— Vai, se já não se casou.
— Com o capataz?!
— Com o capataz.
— Ora veja! Quem havia de dizer. Com o capataz!...
— Pois é...
— Boca falou, corpo pagou. Tamanho arreganho com a
filha, que até foi preciso a coitadinha fugir...
— Ninguém diga: desta água não beberei...
— Pagou...

46
— Ainda não. Deus queira que eu me engane, mas isso
ainda vai dar pano para manga.
Boca que tal disseste!
Assim contado parece mentira. Acontecem certas coisas,
neste mundo, mais difíceis de acreditar do que história de livro.
Daquele tempo ainda estão vivos: Seu Pedro Gomes, Seu
Candinho Carapina e Saninha. Pode perguntar a qualquer um
deles:
— Que foi feito de Sinhá Carolina?
“Sinhazinha Carolina foi a moça mais bonita destas re-
dondezas. E foi a mulher mais respeitada, apesar de ser dura de
coração, até o dia em que o coração dela amoleceu...”
Era uma mulher dos seus trinta e muitos anos e o moço do
Limoeiro estava na casa dos vinte.
Já viu seriema, no brejo, em dia calmo? Fica horas apoiada
num pé. A gente olha, parece estatueta. Não se mexe. Não se
cansa. Não espia pra lá e pra cá. A água parada, embaixo, e o
céu, em cima, é tudo um céu. E ela fica, fica, fica... Esqueceu
da vida só de ver aquela beleza de verde e de azul e alguma flor
pintando brejo. A gente não é assim, não. Se está bem, procura
jeito de ficar melhor. Não é da natureza humana ficar parada,
olhando coisas paradas.
Sinhá parou à beira da água corrente. Virou igapó. E,
quando ninguém esperava mais nada dela, um dia, por seu mal,
se atirou na correnteza.

Outra notícia começava a correr: Sinhá ia vender a fa-


zenda. Olhos D’Água inteira se alvoroçou como vespeiro onde
atiram pedra. Era um diz que diz que, que não tinha mais fim.
— Nascida e criada aqui. Quem havia de dizer?
— Tudo por causa de um qualquer, de um poncho rico e
esporas de prata.

47
E os velhos abanavam a cabeça, como quem diz: “Eta, falta
de juízo...”.
— Falou bonito, deu presente, pronto. ’Tá ela cativa dele.
A defunta avó da Saninha, velha, velha, com o queixo
enterrando no peito, porque já estava arcando e que tinha vivido
bastante para aprender muitas coisas, falou:
— Mulher se enleva com pouca coisa.

Depois começaram a falar demais, cada qual mais assa-


nhado que os outros.
Que Sinhá ia comprar outra fazenda em Santa Rita do
Sapucaí. Que ia montar negócio na cidade. Que estava com
vergonha de continuar aqui, por causa do casamento desigual e
por isso ia embora. Que ia se encontrar com a filha. Que já tinha
conversado com o genro em Pedra Branca, em casa de Sinhá
Maria Isabel.
— Mas Sinhá Maria Isabel e Sinhá Carolina estão mal uma
com a outra há muito tempo.
— Estavam. Agora estão bem. Quando há interesse, aca-
bam as desavenças...
— Ou começam.
— Ou começam. Por enquanto não começaram. Ficam
para mais tarde. Rico não tem certos melindres. Vergonha é
luxo de pobre.
Era tudo mentira. Sinhá Maria Isabel, se soube, não deu
sinal. De Sinhazinha só quem sabia era o Bugre, que estava na
Estiva. E esse não falava. O Miro, que tinha feito boca doce na
herança e com o casamento ia ficar no ora-veja, veio depressa,
com parte de quem não quer nada, dar uns conselhos à irmã.
— Mana! Escute o que eu digo: você ainda é conservada e
até bonita. Mas esse moço o que quer é o seu dinheiro. Veio
com muito agrado, com muita cortesia, já veio tocado de
onde veio, agora quer entrar na riqueza outra vez, à sua custa.

48
Pense bem no que vai fazer. Eu não tenho nada com a sua vida.
Você é livre. Quer casar, case. Permita Deus que ele ainda não
vá lhe dar um pontapé, quando se pilhar servido.
— Eu sei com quem lido, Miro.
— ’Tá certo. Você é quem sabe o que está bem e o que não
está. Faça uma coisa, então, só para prevenir: case com
separação de bens. Se ele for bom e correto mesmo, não fica
prejudicado com isso. E se não for, não vai ter jeito de botar
fora o que é seu.
O Miro era meio louco, mas, quando o caso era de di-
nheiro, tinha mais juízo do que os outros.
O que ele dizia era, mais ou menos, o que toda a gente
dizia. Porque o falatório continuava:
— Velha descabeçada! Não está vendo que pode ser mãe
do moço? Isso é até falta de respeito.
— Sinhá vai dar um pulo no escuro. O moço está é com
olho grande no dinheiro dela. Vai sofrer.
— Tomara que não. Mas uma coisa eu digo: ele pode ser
muito agradável no trato, mas por bom não foi que o pai dele
botou ele pra fora.

Podiam remover céu e terra que era à toa. Sinhá tinha


assentado de pedra e cal aquela bobagem e era tão turrona que
nem morta desistiria. A alma dela ainda era capaz de voltar para
acabar o que estava começando. Tinham a quem sair. Seu
Jovino, pai dela, escapou de morrer no meio da estrada, sem
vela e sem reza, que nem animal do campo; tudo pr’amor de
teima.
— Não saia, Seu Jovino! Olhe que o tempo não está para
isso.
— Não me faz mal... querrêin... — Tinha uma tossinha que
nem serrote e uma ronqueira feia no peito.
— Não deixe ele sair, Siá Maria. É perigoso.

49
— Eu não digo mais nada. Quer ir, vá. Sua alma, sua
palma.
E o velho saía.
Até que um dia trouxeram Seu Jovino carregado.
— ‘Tava lá na estrada, caído. Então peguemos ele e trou-
xemos.
Siá Maria correu.
— Meu Deus do céu. Meu Deus! — E ficou zanzando,
tonta, sem saber o que havia de fazer. Num choro! Num choro
de cortar o coração. Vieram as vizinhas. Arrumaram tudo.
Depois pegaram a cochichar: “Chamem a Siá Maria. A Siá
Maria”.
— Que foi, gente? Está voltando?
Quando compreendeu, ajoelhou-se aos pés da cama. O
velho mal olhou do lado dela com os olhos vidrados. Não
conhecia mais ninguém.
— ’Tô aqui, Seu Jovino. Eu não falei que não era bom sair?
Não falei? Mecê não faz conta do que a gente diz... — E pegou
a chorar num choro sentido, baixinho, falando cada bobagem!
— Quando começava de noite com aquela chiadeira no
peito, ia até o primeiro cantar dos galos. Aí passava por um
soninho. Madorna, só. Eu bem que avisava. Mas adiantar
mesmo. Quê? Velho turrão! Agora foi! ’Tô aqui sozinha. Eu
falei que pra casa da Bela não ia. Não se dô com vida de cidade.
Deixem a velha aqui no canto. Aqui tenho sossego e o velho tá
aqui. Estava. Cortaram a mortalha roxa. Tanto que ele pediu que
não queria ir de roxo! Eu queria ir também. Mas agora faz tanto
frio. Lá no fundo é gelado...
A velha se encolhia. Chorava fininho um pouco e come-
çava outra vez:
— Dei chá de guaco com agrião. Fiz xarope de limão
bravo. Mas ele não se resguarda. Fazer remédio pr’esse velho

50
turrão é chover no molhado. No mais, um santo. E me deixou.
Pra casa da Bela eu falei que não ia...
E foi assim a noite inteirinha.
Chorando e falando sem parar.
Não quis ficar em casa de Sinhá Maria Isabel: tinha
criança. Não estava mais acostumada com choro de criança.
Não queria morar na cidade. Não gostava de barulho. “Me deixe
no meu cantinho, gente. Me deixe.” Não foi.
Não quis morar com Sinhá Maria Carolina. “Ela é muito
boa, mas não tem paciência. Gente que é velha é que nem
criança. Tudo amola. Não sei porque não me deixam no meu
cantinho. Me deixem.” Ficou morando sozinha na casa de
portas verdes onde hoje é o armazém.

Diz-se que havia uma mulher, que todo o santo dia cla-
mava: “Sou uma desgraçada. A desgraça não sai desta casa...”.
E um dia, quando ia acender o fogo, de manhã, encontrou uma
velha pelada, trepada no fogão.
— O que é que a senhora está fazendo aí?
— Eu sou a desgraça. Estou aqui porque me chamaram.

Ninguém faça que não pague. Esta é a primeira lei da vida.


A gente só colhe o que semeia. Às vezes, no meio das plantas,
vem o mato. Mas quem joga semente de capim catingueiro no
chão, não espere achar mais do que capim catingueiro.
Os antigos falaram que a ruindade de Sinhá tinha chamado
a desgraça.

Não foi a ruindade. Foi a boa-fé. Casou, vendeu a fazenda


e foi embora. Não pisou mais aqui. Muita gente diz que ela
voltou. Não foi ela. Sinhá Carolina, escute o que eu estou

51
dizendo, Sinhá Carolina, essa não voltou a Olhos D’Água nunca
mais.

Quando alguém dá tudo à gente, o demônio tenta e a gente


toma tudo mesmo. Por isso é que todos esses doidos de coração
grande acabam mal. Sinhá não pediu garantia. Não quis
separação de bens. Entregou-se com toda a confiança. Não
guardou nada. Não pensou em dias maus que podiam vir.
Ofereceu o que tinha: corpo, alma, dinheiro, tudo. Esbanjou,
atirou fora, foi mão-aberta: “Toma! É tudo seu. É seu este
tesouro que estava guardado e ninguém soube descobrir”. E foi
essa largueza, esse abandono, essa confiança, que levaram
Sinhá à perdição. Boba? Não era. A prova é que dirigiu como
ninguém esta fazenda, mais de dez anos. Louca por causa de
homem? Ficou viúva com menos de trinta anos, bonita e rica.
Não se casou antes porque não quis. É verdade que naquele
tempo não estava sozinha. Tinha a filha. Tinha os pais. Tinha
um pouco de amizade desta gente aqui, que, depois, foi toda
contra ela. Para mim, foi medo de continuar sozinha. Foi amor
pelo homem que se achegou, com carinho, quando todos se
arredaram. Foi o destino. Ou não foi nada disso. Sei lá. Só quem
é feio e tem fome de amor, ou só mulher que foi bonita e se
acabou antes do tempo, pode entender esse engano.
Vendeu tudo, aprontou as malas e foi embora. Não tinha
nada que a prendesse, que a impedisse de ir. E que tivesse!
Sinhá era mulher para passar por cima do que se atravessasse
no seu caminho.
Quando fechou a mala, foi o mesmo que ter fechado a vida
naquele ponto para começar de novo, de um jeito diferente.
Ninguém mais falou com ela. Quero dizer, ninguém mais falou
com Sinhá Carolina. Sinhá perdeu tanto, tanto, que até o nome
haviam de lhe tirar.

52
Tudo ficou como dantes. Foi o mesmo que Sinhá nunca
tivesse existido. A gente passa nesta vida, como canoa em água
funda. Passa. A água bole um pouco. E depois não fica mais
nada.

E quando alguém mexe com varejão no lodo e turva a


correnteza, isso também não tem importância.
Água vem, água vai, fica tudo no mesmo outra vez.

53
IV

Nem bem soube da saída de Sinhá, o Bugre, que tinha se


arranchado na Estiva, madrugou no pé.
Sinhá saiu quando os galos pegaram a amiudar. Ia até
Itajubá fazer umas compras e, de lá, no primeiro trem da Rede,
para Cruzeiro. Diziam que ia para o Rio. Certo, mesmo,
ninguém sabia.
Pois foi passar o Lourenço Velho para o lado de Itajubá e
o Bugre passar a ponte do ribeirão dos Mota para Olhos
D’Água. Foi para a banda de riba, andando escoteiro, até quase
as vertentes. Abriu a porta do ranchinho. Estava tal qual tinha
deixado: um catre de pau, forrado com esteiras de taboa, no
canto. Um pote de barro, tampado com um prato de folha e, em
cima do prato, a cuia de beber água. Um banco. A foice. Um
monte de varas. No fogão de taipa, duas panelas. Uns pratos e
colheres, na prateleira. Dois remos e um gancho com redes de
pescar, atrás da porta.
Agarrou a esteira começada e pegou a trançar, sentado na
porta. O Tonho Piraquara, que ia passando, gritou:
— Ora viva! Quem está aí! Bons olhos o vejam, Sô Inácio!
— Viva!
— Por onde tem andado, ainda que mal pergunte?
— Por aí. Na Estiva.
— Quem é vivo sempre aparece.

54
— É.
— ’Té mais, Sô Inácio.
No outro dia, Olhos D’Água inteira sabia que o Bugre
tinha voltado.
— Ele tinha que voltar. O Bugre é nativo destas paragens.
É cria daqui mesmo...

O resto da história é de agora. A Companhia mandou um


homem tomar conta disto tudo. Foi uma festa. O homem tomou
posse num dia bonito de fim de ano. Dezembro, se não me
engano. Houve pipocar de foguetes e estouro de champanha na
casa-grande. Cada camarada recebeu um mês de ordenado a
mais. À noite, os acionistas se reuniram e, da varanda toda
iluminada, apresentaram o administrador. O chefão falou:
“Meus amigos.” — Veja, moço, o chefão, o dono, o
mandachuva de tudo, chamando essa bugrada de amigos. —
“Meus amigos: estamos aqui para lutar lado a lado, ombro a
ombro, como iguais. Eu sei que todos aqui são homens de bem.
Vamos, juntos, fazer grandes coisas. Vamos, juntos, tocar para
a frente, com vontade. Eu espero muito de vós. Eu darei, de
minha parte, tudo o que puder. Moçada! Isto se chama
cooperação.” — Bateu a mão aberta na gradinha da varanda. —
“COOPERAÇÃO. Todos trabalhando para o bem-estar de cada
um. Vamos fazer isto aqui, nesta Fazenda. Graças a nós, Olhos
D’Água ainda vai dar muito o que falar. E não quero ganhar
sozinho. Quero que todos ganhem. Estou orgulhoso de possuir
esta fazenda. É uma beleza!”
Verdade seja dita, muito se devia à antiga dona. A fazenda
estava embelezada e viçosa, como planta depois da chuva.
Sinhá foi a chuva. Mas por mais que a chuva faça, quem é que
gosta dela? Basta que seja fria, para não ser estimada. E o chefe
falando da varandinha:

55
“Quem fez, disto, isto que se vê, pode muito. Preciso de
alguns conselhos para trabalhar. Quero que me ensinem a
trabalhar como trabalharam, para tornar ainda mais bonita a
nossa Fazenda. Que é que podemos fazer, de melhoria, para
começar? Quem quiser falar, pode subir aqui.”
Nunca ninguém tinha dado essa confiança à caboclada
xucra. Nunca tinham perguntado o que era bom fazer. Só
mandavam fazer o que pensavam que era bom. Se prejudi-
casse os camaradas, paciência! Alguém tinha que sofrer. E, se
alguém tinha que sofrer, que fossem esses caboclos rudes, que
nunca tinham feito outra coisa mesmo e já estavam acos-
tumados.
Agora ia ser diferente. Cada um era interessado. Cada
um tinha direito de ter uma opinião e podia dar opinião. O
chefe tinha chamado os camaradas de amigos. E cada cama-
rada ia mostrar como sabia ser amigo.
Então tudo floresceu, como floresce a baixada, quando
chega setembro.
Porque — guarde isto! — porque o homem, por mais
ignorante que seja, por mais cego, por mais bruto, gosta de
ser tratado como gente.

O curral que era feito de arame farpado ficou cercado de


muro de tijolos, com dois metros de altura. Lá dentro fizeram
um galpão coberto de telha vã para guardar as bruacas e os
jacás.
O Velho experimentou plantar cana-bambu no morro,
para resistir à geada. Deu certo. Mudou a invernada para o
lado de lá, depois da segunda curva da estrada do Limoeiro, e
começou a fazer cruzamentos com gado de raça, para con-
seguir mais leite. Ali onde é o chiqueirão, mandou cimentar o
chão, deixando um caminho de cimento, também, que ia
dar no ribeirão. Cercou tudo e mandou cobrir de tábua. Pas-

56
sando a baixada, era a plantação de milho e fumo, só para o
gasto. Comprou máquina de debulhar e descaroçar. Trouxe
porcos Duroc-Jersey e Carunchinho para criação. Mandou
cultivar inhame do Japão para dar à porcada. Não parava.
E por último, quando pensavam que ia descansar, man-
dou roçar o mato, por trás do terreirão da casa-grande, e fazer
um campo de sementes. Um dia, já com tudo cercado,
apareceu uma tabuleta no barracão: “HORTO FLORESTAL
DE OLHOS D’ÁGUA”. Ali se plantou de tudo: maçãs da
Califórnia, laranja-pera do Rio, castanha do Pará, ameixa do
Japão, seringueiras do Amazonas, peras da Argentina, fram-
boesas nem sei de onde, rosas da Holanda, tinhorões e aven-
cas colhidas em faces noruegas. Técnicos da cidade trabalha-
vam nas experiências. Uma parte do pessoal da plantação
passou para o campo de sementes. De manhãzinha, às seis
horas, dia velho já, para quem estava acostumado a pegar às
quatro, tocavam um sininho. Tinha um ar de festa aquela la-
buta. Cedo, na hora do almoço e à tarde, às quatro, o dem-
-dem, do sininho, parecia repique de sino de igreja, em pro-
cissão de aleluia.

Faz bem cinquenta anos que a Companhia ficou com a


Fazenda. Nesse espaço de tempo, quanta mudança! Quanta!

Veio um moço da cidade e, nas terras abandonadas, terra


safada, que não servia mais para cultivo, mandou plantar
eucaliptos. Distância de dois metros um do outro. Pegou toda
essa zona sem plantio. Aqui mesmo, no centro, em ruas largas
que abriram, havia eucaliptos dos dois lados. E uma avenida
de eucaliptos subia a ladeira e ia acabar no sobradinho de
telha francesa onde era a casa do administrador. Pegado ao
engenho velho, construíram um prédio enorme, com
dependências grandes, salões de 30 x 30, para a usina nova.

57
Mais em cima, passando a porteira do curral para o lado de cá,
um outro prédio, onde instalaram as refinações de açúcar.
Construíram mais um prédio para escritório e outro para
depósito.
O pessoal daqui trabalhava num entusiasmo louco. Os
camaradas queriam tanto bem ao chefão que nem chamavam o
homem pelo nome. Era o Velho.
— Sabe? O Velho esteve aqui na plantação.
— Eu vi. Eta homem de tutano! Não respeita chuva.
Mandou vir mudas de cana de uma horticultura e começou a
experimentar qual dava mais certo. Dividiu as terras de
plantação em zonas. Vistas do alto da serra, pareciam um ta-
buleiro todo eriçado de pontas verdes.
— Seu Alexandre! — Seu Alexandre era o chefe de es-
critório. — Faça um pedido ao Campo Experimental: mil e
quinhentas mudas de cana de Java.
— Sim, senhor.
O Velho ia em pessoa ver como estavam plantando. Ar-
ranjava um chapéu de palha, arregaçava as calças de casimira,
tirava o paletó, e lá ia.
— Vamos, moçada! Pra frente com isso!
Comia de colher com os camaradas. Sabe como é a comida
aqui: às quatro horas da manhã, antes de pegar no serviço, café
preto com farofa de ovo. Às nove o almoço. Quem começa cedo
tem fome cedo. A comida é de sustância: virado de feijão com
torresmo e couve. Paçoca de carne-seca. Outras vezes, arroz
com palmito, orelha de porco no feijão. Abóbora, angu, inhame,
cará de árvore, mangarito... Gente da cidade não gosta disso.
Mas quem é que aguenta, dos da cidade, puxar guatambu no
eito, das quatro às quatro?
O Velho gostava. Ia cedo. Ainda o céu estava estrelado e
os galos não tinham parado de cantar, ele chegava.
— Bom dia, moçada!
— ’m dia!

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E o serviço começava. Só se escutava o barulho das en-
xadas batendo no chão. Na hora do almoço, quando todos
largavam e sentavam no chão, para abrir a matula, ninguém se
avexava de conversar, de rir, de contar história, perto do Velho.
O Velho era um de nós. Estava ali, estava trabalhando.

59
V

Veja daqui a estrada onde passa a jardineira! Hoje cha-


mamos jardineiras esses ônibus abertos do Zé Luiz e são muito
diferentes do que era a condução de antes. Naquele tempo era
uma caranguejola puxada a burro. O pessoal preferia ir a pé até
o Pedrão, carregando as botinas, com um chapéu grande
protegendo do sol, ou então a cavalo. Ninguém se arriscava a
embarcar na traquitana do Miro. De modo que ele só tinha
freguês do Pedrão para cá, quando tinha. Quem chegava
empoeirado e cansado da viagem, dava graças a Deus de
encontrar condução, nem que fosse lombo de burro, ou aquela
caixa de solavancos. Logo que o Miro inventou o que ele
chamava de “Linha Regular de Transportes” — era cheio de
coisas aquele Miro! — começaram a caçoar. Apelidaram o carro
dele de “caçamba”, mas ele não ligava pra isso. Ia todo santo
dia, com sol e com chuva, esperar o trem da Rede, em Pedrão.
Depois, com o tempo, e mais tarde, quando a Companhia tomou
conta de tudo, acostumaram-se com a caçamba e não passavam
mais sem ela. Miro arranjou mais uma que ia daqui a Pedra
Branca. Essa foi um sucesso. Aos domingos, então, que festa!
Embarcavam quantos coubessem e eram quatro, cinco, dez
viagens por domingo. Nos dias de semana, até compras iam
fazer na Vila — é a cidadezinha de Pedra Branca que nós
chamamos de Vila — até compras iam fazer, embarcados na
caçamba nova.
O Miro era homem que sabia viver.

60
Já morreu e isso não teve importância. Quem morre não
faz falta, porque quem fica se arranja. A invenção dele con-
tinuou. A família também. Anda uma neta dele aí, filha do filho
mais velho e de uma curiboca.
É moça, bonita, viva. Não sabe metade das coisas que
aconteceram com os dela, como nenhum de nós sabe o que
aconteceu com os da gente. E quando ergue a cabeça, com
aquele aprumo, não sabe de onde lhe veio o ar de rainha.
É cantadeira como um canário da terra! Daqui não se vê a
casa dela, por causa dos eucaliptos que cresceram muito. Antes
se via o teto, todo vermelho, e, ainda muito antes, a casa toda,
branquinha, com um jardim na frente.
Curiango nasceu lá.
Não estranhe o nome. A gente, nestes cafundós, com tanto
céu em cima e tanto mato em volta, tem dessas coisas. A filha
do Quinzote, por exemplo, tem apelido de Rola, porque é
sossegada e boa e também porque é gordinha e morena, com
umas redondezas de juriti bem tratada.
E Curiango? É Curiango por que canta quando todos os
passarinhos estão calados? Por que mora em beira de estrada,
entre árvores, numa casa que é ver um ninho? Por que levanta
de madrugadinha, cantando?
Curiango...
Sabei-me lá porque essa gente inventa certos apelidos...
Era deste tamanhinho assim e já era uma galanteza. Depois
de moça, então... Não é dizer que seja bonita de admirar. Nem
é bem boniteza. É uma coisa que puxa os olhos da gente, que
arrepia, que enleia, que aquece, e que umas mulheres têm e
outras não têm.
Não está nos olhos, não está nas curvas, não está nela e
não está em nós. É como o calor, mas um calor que vem dela e
ela não sente, e toma conta do sentido de quem olha e de quem
está perto. Já teve sangue novo? Isto de que estou falando é
como sangue novo.

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Pegue uns galhos de manjericão bem verde e misture com
rosas brancas folhudas. E lá no meio, como quem não quer,
esqueça uma rosinha vermelha, todo-ano, dessa rosinha
vagabunda, que dá em qualquer chão e trepa em qualquer cerca.
Depois repare: qual é a mais alegre, a mais vistosa, a mais
simples, a mais pobre, ao mesmo tempo a mais bonita das rosas?
Qual a que combina mais com o manjericão? Qual a que se olha
primeiro? Qual é a de que gosta mais? Qual é?
Curiango era uma rosinha todo-ano.
O Joca pegou a gostar dela e, no comecinho, quando ainda
nem sabia que estava gostando, falava que Curiango tinha
candonga. Tinha candonga na fala. Tinha candonga “naquele
corpo com jeito de água corrente, virando curva em remanso
sereno, ou de cobra que se balanceia para dar bote...”.

Seu Pedro Gomes, uma feita, entrou numa briga e levou


uma facada no vazio. Bem aqui assim, lá nele. A briga começou
na venda do português. Seu Pedro estava na venda, quieto,
sentado em cima de um saco de farelo. Foi chegando gente, foi
chegando gente, foi chegando gente... Um desordeiro meio
tocado deu um esbarrão em outro, e a coisa começou com bate-
boca:
— Não enxerga, siô?
— Não enxergo, não. Não estou vendo ninguém na minha
frente.
— Pois eu estou aqui e sou muito homem para quebrar as
suas fuças!
— Então venha, guampudo!
Seu Pedro falou, com jeito, apaziguando:
— Calma, gente!
— O baralho não chegou aí, moço!
Ah! Seu Pedro não conversou. Pulou de cima do saco de
farelo (que ele não é homem de levar desaforo pra casa...):

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— Repita! Repita! Bruto! Sem. educação! Eu querendo
fazer bem a esse animal, a esse burro, e ele vem dando coice!...
Burro!
E a coisa foi esquentando, e foi subindo, foram falando
cada palavrão, saiu soco, saiu canivetada, saiu rolo...
E o Seu Pedro gritando, de facão na mão:
— Eu ainda meto a lapiana na barriga dum!...
Quem acabou com a lapiana na barriga foi ele. Caiu
estrebuchando.
“Nossa Senhora! Morreu!”
E aquela sangueira no chão. Foi uma gritaria e uma
correria que não tinham jeito. Pensavam que ele ia morrer.
Pois sarou. Carnadura rija como a desse velho ainda estou para
ver.
De vez em quando ele aparece ali no largo do Escritório,
manquitolando.
— Que foi isso, Seu Pedro?
— Estou sentindo uma dor aqui, bem onde levei a facada.
Vai chover...
Olham para cima:
— Qual! Não chove. O céu está limpo...
— Chove! Quando sinto esta dor, é chuva na certa. E
chove mesmo.
Alguma coisa no ar faz doer as feridas antigas e os calos;
dá loucura nos animais; obriga criança a fazer reinação em
cima de reinação; gente grande mesmo fica inquieta. É o ar
que está carregado. Animal adivinha chuva. Como? Sabe-se
lá! Há tanto mistério neste mundo!...
O luar também faz doer feridas antigas. As mágoas ve-
lhas, que a gente guardou, voltam e pegam a latejar de novo,
nessas noites meio claras, meio escuras, de céu limpo. Na lua
nova, então, não sei que doçura entra devagarinho no peito da
gente. Uma doçura gostosa de mel de pau tirado em fim
de maio. Muitos dizem que esse negócio de lua é bobagem.

63
Bobagem? Sapé cortado na minguante não floresce. Para
plantar, é na minguante; para colher, é na minguante. Para curar
doença da vista, não há nada como arruda dormida no sereno,
em noite de lua. Quando serena em ocasião de lua cheia, é
chuva.
Ninguém daqui conhece o mar, fora o Vicente Rosa.
“Eu mesmo vi o mar só uma vez. Foi quando me botei atrás
de tropa, correndo mundo. Atravessei essas serras brutas e fui
dar em Campos Novos de Cunha. Na volta, passei em
Caraguatatuba e vi o mar. Achei tão bonito, tão grande, tão...
— como é que eu digo, meu Deus? — ... tão diferente e tão
maior do que tudo quanto já vi, que penso: morrer, ir para o céu,
olhar para Deus, é a mesma coisa. Senti como se tivessem
chegado perto de mim e apagado, com um pano molhado, tudo
quanto sei e quanto sou...”
Pois o mar, que é o mar, tem maré, por causa da lua! Foi o
Dr. Amadeu quem disse. Como é que a lua, tão fria, e tão longe,
tão de longe, puxa o mar?

Curiango é também como o tempo, quando está para


chover, e é como a lua.

Em pé de laranja azeda, um galho enxertado dá laranja


doce.
Até no mesmo galho, uma fruta não é igualzinha à outra.
Essas coisas são assim e não se vai adivinhar por quê. Quem
pode lá saber por que Curiango é tão igual às outras e tão
diferente ao mesmo tempo?
Nasceu doce e bonita. Uma boniteza de rosa todo-ano e
uma doçura picante de caju bem maduro.

64
VI

Era preciso fazer o roçado, arar e semear, antes da última


lua de maio. Mataram a cabrita preta e as duas crias; mataram
dois leitões carunchinhos; mataram uma redada inteira de
frangos. Era numa quinta-feira e o mutirão ficou marcado para
o fim da semana: sexta e sábado.
Os Neto têm umas terras vizinhando com os tabuleiros de
cana caiana da várzea. Era lá. Toda gente conhece os Neto: Zé
Neto, João Neto, Joaquim Neto, moçada de cabelo e bigode
brancos e olhos raiados de sangue, como coelhos. Tudo asso. A
primeira vez em que o Joca reparou em Curiango foi no mutirão
da coelhada:
— Você vai ao mutirão, Joca?
— Vou sim. Então não havia de ir?
Foi. Estava assim de gente lá. Os homens no roçado, tra-
balhando e cantando. A mulherada em casa preparando as
comezainas. A mulher do Joaquim Martins com as três filhas,
uma solteira e duas casadas; a mulher do Santana com uma
enteada e um filho pequeno; a Bebiana com quatro filhos, uma
miuçalha arteira que não dava sossego (o maiorzinho tinha ido
com o pai ajudar na capina); Curiango e Cecília, primas uma
da outra e netas, por parte de mãe, do Seu Candinho Carapina.
A Saninha do Seu Candinho e mais gente que nem lembro.
Dois que não fazem falta em festa nenhuma estavam lá
também: a Choquinha e o Zé Pedro. O Zé Pedro, logo de
começo, bebeu que não foi vida. E pegou a cantar, zanzando
no meio das mesas:

65
Zé Pedro do Pedrão
Caboco bão
Pra comer feijão...

A Choquinha, então, queria ajudar, mas a pobre não fazia


nada direito. Foi carregar um balde cheio d’água, derramou
tudo no chão e fez uma lameira; foi buscar lenha, veio com o
feixinho esbarrando nos outros. Uma ponta do pau pegou a alça
da caçarola de arroz, e adeus caçarola! Foi preciso pôr outro
arroz no fogo. Depois não encontrou mais nada para fazer e
ficou andando de cá para lá, de lá para cá, feito uma pata tonta.
Aquilo era só:
— Sai daí, Choquinha! Que velha mais atrapalhadeira!...
— Vai embora daqui, Choquinha!
— Você já ajudou bastante. Não precisa mais. Vá ficar
naquele canto!
Então, coitada! foi ficar quieta num canto, de cócoras. É
por causa de andar sempre de cócoras mesmo, que chamam a
velhinha de Choca. Com o correr do dia, o sol foi virando, foi
virando, até que chegou ao cantinho dela.
— Venha cá, Choquinha. Saia do sol!
— Eu fico aqui mesmo. Aqui não atrapalho.
— Ora, Choquinha! Você não atrapalha em lugar nenhum.
Venha!
Choquinha ficou se rindo com aquela cara de boba alegre.
E não saiu. Continuou torrando no sol.

Na hora do almoço, que foi levado em cestas aos cama-


radas, na roça, Joca, mal viu as moças, cutucou Vicente Rosa
com o cotovelo.
— Botou reparo naquela moça?
— Qual delas?
— Aquela de lenço de pintinha.
— Qu’é que tem ela?

66
— Nada.
— Se é para reparar, alguma coisa tem que ter.
— É o jeito. Ela se mexe com um jeito macio de guaxima
quando dá o vento.

Foi bem de tardezinha, depois da labuta, que começou a


festa. Havia três mesas arrumadas. Cada coisa gostosa de
ajuntar água na boca. Os assados cheiravam longe. Quartos de
cabrito, quartos de leitoa, tudo com cebola e salsa enfeitando.
Frangos cheios. Arroz de forno. Um dourado e dois surubis
grandes, que o Tonho Piraquara pescou. Estavam lá amarelos,
cheios de farofa e azeitona. Os Neto podem ser o que forem,
mas fartura é na casa deles. Não são como o tranca do Chico do
Aterro, que fez mutirão e quase matou os camaradas de fome.
Na mesa, de tarde, só apresentou um porquinho magro.
Também acabou. Aqui, ninguém mais quer dar uma demão
pr’ele. Ainda se fosse por não poder, vá lá. Mas ele tem seu pé-
de-meia. É tão miserável — o povo é quem diz — que o
cachorro dele, quando tem fome, trepa nas jabuticabeiras. Ué!
Para chupar jabuticaba. Pra que mais havia de ser?
Noite fechada, em casa dos Neto, inventaram de fazer uma
roda de cana verde.
— Vamos fazer roda, moçada!
Os violeiros estavam por aí pontilhando à toa.
— Vamos.
— Bate no bordão, aí, Tonho, que eu quero afinar minha
viola.
O Vicente Rosa cochichou ao ouvido do Joca:
— Não olhe agora! A sua “guaxima” está daquele lado.
Perto da Saninha.
— Como é o nome dela?
— Não sei. Tratam de Curiango.

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— Que apelido!
— E tem pai brabo.
Riram-se os dois e continuaram a dedilhar na viola. Do
quintal vinha a toada dos violeiros:
Ai, moreninha,
Moreninha, meu amor!
Na roda do seu cabelo
Corre água e nasce flor.
Ai, moreninha,
Moreninha, meu amor!

Joca ainda pegou o finzinho da trova e cantou, com os


olhos grudados em Curiango:
Na roda do seu cabelo
Corre água e nasce flor.

A rapaziada estava dançando cana verde, no terreiro


limpo, branco de luar.

Joca tinha arranjado um boi maringá e atrelado a um carro,


para tirar areia no ribeirão dos Mota.
Na outra semana, quando passou de carro, deu com o
Vicente Rosa ocupado em estacar feijão.
— Como é? Quedê a “guaxima”?
— Não sei, Vicente. Você sabe que nunca cuidei disso.
— Uma vez será a primeira.
— Qual!
— Olhe que quando a gente menos espera...
— Pode ser, não digo que não... Mas não é pra já.
— Chegue um pouco.
— Não posso. Ainda tenho cinco carradas para hoje.

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Tocou o boizinho:
— Eia! Eia! Tu é boi ou é lesma? Eia!

Quando é chegado o tempo, a semente nasce até em cima


da pedra. Tinha chegado o tempo do Joca e ele nem desconfiou
disso. Guardou a semente no coração sem saber; e esperou, sem
saber, que ela brotasse.

Na festa do casamento de Cecília, Joca levou o maior


choque da sua vida. No meio da catira, à noite, viu aquela
mulher, a mesma do mutirão dos Neto. Quando olhou para ela,
lá no mutirão, ficou sem saber direito se era bonita ou se não
era. Depois, tinha visto Curiango de passagem, virando algum
caminho, ou de longe, lenço na cabeça, batendo roupa à beira
do córrego. Mas agora, de vestido cor-de-rosa enfeitado de
miçangas e o cabelo preto caindo em ondas!... Alguma coisa
segurava os olhos dele. Que mulher!...
— Você também se encantou, Joca?
— O quê? — Deu tamanho pulo, que parecia ter pisado
em cobra. — Ah! — suspirou aliviado. — É convidada de
quem, hein, Zé?
— Ué! Então você não sabe? É prima da noiva.
— An!...
Olhou outra vez. Olhou mais, até ficar enleado. “Tinha um
corpo com jeito de água corrente, virando curva em remanso
sereno, ou de cobra que se balanceia para dar o bote. E tinha
candonga na fala.”
— Quer dançar comigo, moça?
— Como não?
Segurou sem jeito a cintura da moça. (“... parecia curva do
ribeirão.”)
— Eu ’tava com medo de le tirar, moça.
— Com medo? — Riu com gosto. — Gente! Que é isso,
agora? Eu não sou bicho...

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— Não é por isso. Podia não querer sair comigo.
— Gente! Por que não havera de querer?
E olhou bem direito nos olhos dele.

No outro dia, deram com ele caído numa tranqueira de pau


seco, no fundo de uma perambeira medonha. Não se lembrava
como tinha caído. Só se lembrava que tinha corrido, cego, no
meio da escuridão, e que Curiango vinha correndo atrás com
aqueles olhos de jaguatirica esfomeada. Foi milagre não ter
morrido com o pescoço quebrado.
— Mas, Joca! Curiango não saiu daqui enquanto não
acabou o baile. E foi direito para casa com o pai dela...
— Não sei. Então foi mau-olhado. Ela tem algum poder do
diabo naqueles olhos.
Foi à casa da Mariquinha Machado para se benzer.
— Aquela peste me botou mau-olhado. O que corre aqui
não é sangue, não. — Arregaçou as mangas. — Aqui corre fogo.

Mariquinha Machado é quatro paus num benzimento.


Ainda me lembro quando pesteou o gado dos rancheiros da
Estiva. Ela pegou três facas virgens cruzadas e benzeu o pasto.
O gado sarou e ficou bonito e gordo. Hoje ninguém mais
acredita nisso. Aqui mesmo, na fazenda, quando deu a peste,
vieram uns homens da cidade e ensinaram a caipirada a fazer
cada coisa que até parece feitiço. Pegam as vacas mortas,
queimam e enterram a cinza. E ainda fazem uma cerquinha em
volta do lugar onde morreram. Ninguém tem licença de passar
por ali. E ainda por cima espalham um pozinho pelos campos.
Só não rezam. Mas esses também sabem fazer as coisas: a gente
não precisa ter fé, para o remédio acertar.

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Sá Mariquinha benzeu Joca em cruz, três vezes, com um
galho de arruda. Depois fez um patuá com a oração de São
Jorge, para ele. É assim a oração:
“Deus adiante, paz na guia, me encomendo a Deus e à
Virgem Maria, minha mãe, e aos doze apóstolos, meus irmãos.
Andarei, dia e noite, cercado com as armas de São Jorge. Não
serei preso, nem meu sangue será derramado. Andarei livre,
como andou Jesus Cristo, nove meses, no ventre da Virgem
Maria. Meus inimigos terão olhos, não me verão; terão boca,
não me falarão; terão braços, não me pegarão; terão pernas, não
me alcançarão. Serei eu, João José (o Joca se chama João José),
livre e guardado com as armas de São Jorge de todo o mal.
Amém.”
Joca andou com a oração. Andou com galhos de arruda
enfiados no chapéu de palha, mais de mês. Não houve jeito.
— Deixe de bobagem, homem! Você está é caído pela
moça. Que mau-olhado, que nada!
— É mau-olhado! — teimava. — Curiango vai ser a minha
perdição.

Via, por entre as touceiras de barba-de-bode e das moitas


floridas de rosinha maldita, as idas e vindas de Curiango. Ela ia
às vertentes, todos os dias, por voltas das três. Voltava com o
sol descambando e passava devagar por ele, naquele balanceio
do costume (“... como água que nunca tem pressa...”). Joca
resmungava: “... aquela diaba que me botou feitiço...”. E ficava
espiando. Acabou se convencendo, por fim, de que não tinha
sido feitiço.
— Não foi. Ela nem olha do meu lado...
Pensou em falar com ela, puxar prosa, com parte de quem
não quer nada. E, depois, contar que estava arrependido de ter
espalhado aquela história do feitiço. Não acreditava mais.

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— Não acredito, não, dona. Por essa luz que me
alumia...
Então ela haveria de dizer:
— Eu não liguei. Eu sabia que era variação sua.
— Então estou perdoado?
— Gente! Então não havera de estar?
E ficaria enleada arrepanhando o vestido. E ele olhando o
sol brilhar no seu cabelo — se não viesse com a porquera
daquele lenço na cabeça...
— Não acha melhor a gente ir andando?
— Melhor, sim.
E haveriam de andar, felizes, com o sol glorioso por cima
das cabeças; e algum sol bem quente aquecendo o coração.
— Foi a primeira vez que le vi, que me deu aquilo. Mas
não foi feitiço, não, eu sei. Foi alguma brabeza de dentro, que
arrebentou com o calor novo que acendeu meu sangue.
Pensava, pensava, os olhos fincados no ar. Mas quando
Curiango aparecia, perdia a coragem. Ficava com um jeito
orgulhoso e distante. Fingia que não via.
— Não seja bobo, Joca! Vai!
Não ia. O boi é que pagava.
— Vamos, boi desgraçado! Boi do meio do inferno! Tu
anda, ou não anda, condenado?
O carro, no meio da estrada, levantava uma poeirama.

Maio aqui é quase como setembro. Fica tudo florescido e


cheiroso. Flores de maio branqueiam os campos. E as flores de
quaresma aparecem, roxas que é ver o manto do Senhor dos
Passos e da Senhora das Dores, quando, na Semana Santa, saem
no andor, para a procissão do encontro. Já era quase fim de
junho e o campo continuava florescido.
Joca ia descendo o carreirinho, pitando o cigarro de palha,
quando viu Curiango. Cortou o caminho e apareceu, de
repente, na frente dela. Curiango estacou assombrada. Olhou

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bem para ele, olhou (o vestido de chita subia e descia na altura
do peito, de tanto susto), olhou e:
— Nossa Senhora!
Correu pelo carreirinho, ligeira como lebre espantada.
— Moça!
Que moça, que nada! Curiango já estava para lá das moitas
de barba-de-bode. Joca falou entre dentes:
— Não é à toa que é Curiango. Precisava correr desse
jeito?
Encolheu os ombros.
— Que m’importa? Mulher há muita...
Mas o coração doeu, doeu, doeu...

Depois disso, deu de fingir que não ligava mais: “Amor é


um vento; vai um, vem um cento”. Mas não podia passar por
ela. Ficava nervoso.
— Não sei o que tem essa mulher, que mexe com o meu
sangue.
Largava cada pancada, com o ferrão deitado, no lombo do
boi!... E resmungava, louco da vida:
— Condenado!
E o Vicente (o raio não tem outro assunto...) vivia me-
xendo com ele:
— E o feitiço?
— Que feitiço, que nada! Não vou nessa. Depois, ela nem
me quer...
Um sará gritava (até o sará), caçoando dele, na lagoa:
— ... quer?...
Ia haver uma festa de São João na Fazenda da Estiva:
— Vamo, Joca? Curiango vai...
— E que não vá. Pra mim tanto faz.
— Está fazendo ano do feitiço...
— Cala essa boca!

73
Joca tinha o olhar enluarado por natureza. É que a mãe dele
ajudou a vestir anjinho quando ele estava para nascer. Andou
com um jeito mais morto ainda, por uns tempos.
— Você está doente?
— Canseira. Qualquer dia largo um pouco de carrear e
saro.
Não demorou, veio a reação. Meio de repente, num dia
claro de calor. Foi como planta que, da noite para o dia, ar-
rebenta em flor e, afinal, engana como flor que dura pouco. Joca
tinha topado com umas fruteiras carregadas, beijando o córrego.
Passarinhou tronco acima e se empoleirou num galho, firmando
o pé noutro galho. Chupou uma porção de frutas (se estavam
pintando de maduras!...), chupou guloso, lambuzando os dedos,
sujando os cantos da boca. Gostosura! Atirava as cascas no
córrego. As cascas custavam a chegar. Depois batiam na água
uma batidinha de coisa leve: paf. Volteavam e desciam devagar,
com a correnteza. — Dali a pouco o riozinho estava pintadinho
de preto. Foi nessa hora que ele viu a Mariana passar. Assim
mesmo, viu porque ela chamou.
— Joca!
— Hum!
Mordeu uma jabuticaba preta como carvão: toc.
— Peste! Arrebentou do lado errado!
— Joca!
— Vá dizendo!
— Joga uma pra mim!
— Eu não. Suba aqui, se quiser.
— Aaaah! Joga!
Falava com moleza. Fazendo beiço (boca bonita a demônia
tinha) e quase parando no meio das palavras:
— Joooga! Não seja ruiiim. Uma só. Jooooga!
— Não jogo, porque batem no chão e arrebentam.
— Eu aparo no vestido. Juntou o vestido, era todo largo

74
assim, franzido aqui e aqui abrindo roda. Quando ela foi em-
bora, Joca olhou-a por detrás, pensativo:
— Bem bonita! Pena. Tão nova, e já fazendo a vida!
Continuou a chupar as frutinhas, e a atirar as cascas na
água: paf! paf!
— Hum! Epa! Esta está doce mesmo. Eta melado!... mas
é bem bonita!...
Mariana tinha crescido e amadurecido depressa, como
jabuticaba temporã, de beira-rio, que preteja no galho depois de
uma chuvinha. Fruta aqui amadurece depressa. Mulher
também. É por causa do sol. Mulher e fruta temporã em beira
de caminho... Já reparou que fruta fora de tempo é que dá gosto
provar?
Jogou a última casca no chão. Desceu. Limpou as mãos
nas calças. Limpou a boca na manga da camisa. Nem bem
pegou a estrada, encontrou a Choquinha.
— Uma esmolinha, pelo amor de Deus?
— Que esmolinha, velha? Você cada vez que me encontra
pede esmola. Só se for uma carona. Vamos de carro. Vem cá.
Sobe aqui!
Não estava se lembrando mais de Curiango, nem de Ma-
riana, nem de mulher nenhuma. De dentro dele subia uma
alegria, um bem-estar, uma coisa gostosa, que não sabia o que
era. Era o sol? Não. Estava tão acostumado com o sol quente,
batendo no cangote! Era o estômago farto? Ora! Tinha tomado
tanta barrigada de jabuticaba e nunca tinha ficado assim. Ou
será que jabuticaba e sol embebedam? Ou seria pressentimento
de alguma alegria? Não. Aquilo não era pressentimento de
alegria. Era alegria. Alegria. Era do tempo? Com certeza. Era
tempo das flores se abrirem; era tempo do calor ter outra
quentura; da água ser mais fresca; do céu ter uma cor mais forte;
do sol ter um brilho de doer na vista:
— É o tempo...

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Pensou em claridades e em cores novas. Sentiu-se tão leve
como..., assim como se estivesse flutuando no ribeirão, nu em
pelo, de barriga para cima, deixando a água levar o corpo
abandonado. Tão bom!...
— Também pode ser porque não me incomodo mais com
aquela bruaca...
Choquinha riu, escancarando a boca banguela. Ele riu
também, sem motivo. Riu, como os passarinhos cantam.
Porque o sol estava quente e claro. Porque queria apro-
veitar essa alegria que vinha não sabia de onde e tomava conta
dele. Porque era moço e os moços, por muito que sofram, não
sofrem por muito tempo. A natureza deles é mais forte.
— Estou curado daquela besteira, Choquinha. Curado!
— Foi o Dr. Amadeu?
— Não é nada disso, boba. É outra coisa. Viva!
Abriu os braços e ficou ali todo iluminado, com o sol
batendo de cheio no rosto vermelho de calor. Voltou de repente
da loucura.
— Com’é, Choca? Ainda não subiu? Vamos! Deixe de
lerdeza! Depressa! Vamos! Depressa!
Ficou atarantando a Choca, feliz, com o sangue alvoro-
çado.
— (É sangue novo, vai ver.) Sobe, boba!
Naquela hora, tão bobo era um quanto outra.
Tocou o carro.
— Eia! Vamos, boizinho! Mexe esses cascos! Eia! Eia!
Passou pela casa do Vicente, como ventania em dia de São
Bartolomeu.
— Ei! Onde vai com tanta pressa?
— Viva eu, Vicente!
— Viu passarinho verde?
— Vi.
Já ia longe, e só o eco trouxe um resto de risada.

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O amor, quando pega um coração virgem, é como peão
aguentando corcovos de potro xucro. O peão pode cair e se
machucar. Pode parecer que desiste. Pode se valer de manha,
de agrado, de brutalidade. Mas, se for bom mesmo, no fim,
quem perde é o potro.

O coração de Joca era um potro xucro dando pinote.

A noite estava quente e abafada, por causa do mormaço,


que descia pesado, como cobertor grosso. Joca virou-se na
cama. A madorna por que tinha passado só serviu para deixar
mais calor no corpo dele. Abriu e fechou as mãos suadas.
Passou os dedos pela garganta, puxou bem a roupa no peito e
ficou de costas, ansiado. Fechou os olhos, que arderam de
sono. Virou-se para o canto. Virou-se para a beirada. Os
pernilongos cantaram: fiiiiiin... Cobriu a cabeça com o lençol.
Sufocava. Descobriu a cabeça e tornou a virar-se. Aí espertou
de uma vez e sentou-se na cama. Escutou a serenata dos sapos
na lagoa: — Oi! — passava um pouquinho e cantavam mais
baixo: — Ao! Oi! Ao! Oi! Ao! E as pererecas tocaram reco-
reco, escondidas em baixo do iguapé: rac, rac, rac, raaaac; rac,
rac, rac, raaac... Joca arfou mais ansiado ainda. Agora não era
o calor. Era...
— Eu sei. É falta de apanhar sereno na cabeça.
Saiu e foi pior. Ficou zonzo com o cheiro do mato pisado
e com o cheiro ácido e quente das flores da noite. Inquieto
cheirou o ar, como cachorro que fareja caça, ou como ga-
ranhão que encontra égua no cio. Andou por ali, tonto, pi-
sando no ar, um formigamento esquisito no sangue. Quando
deu conta de si, estava rondando a casa da Mariana, a filha
extraviada do Quinzote.

77
VII

Joca ajuntou-se com os tropeiros (“É só para fazer esta


viagem” — explicou. “Tenho um negócio em Maria da Fé, que
eu mesmo preciso resolver”) e subiu a serra tocando tropa por
essas grimpas empinadas. Saíram de madrugada, quando os
galos pegaram a amiudar. Dito Messias apinhou os beiços,
chamando a burrada: Quiô! Quiô! Quiô! ’m cá! ’m cá! Arrumou
ligeiro, passou o cincerro no pescoço da madrinha, e:
— Vamos, nega! Filha da mãi! — Desandou a dizer um
chorrilho de nomes feios. “É pra não perder o costume”, ex-
plica, quando a gente pergunta se está xingando tanto porque
está zangado. Joca, arreando o último burro, gritou:
— Pare com isso!!
— Ué! Parar por quê? Não é nada com você. É aqui com
a minha nega. Vamos, nega!
A madrinha sacudiu a cabeça e, com o movimento, as
campainhas tilintaram. Estava no ar um cheiro forte de ali-
mária e de capim molhado. Puseram os burros em fileira e
foram tocando, serra acima. Amanheceu. Uma claridade cor-
de-rosa tingiu o lado de lá. Estava tudo tão fresco e tão cheiroso,
e tão quieto e tão alegre, e tão orvalhado e tão bonito, que o
Dito pegou a cantar.
— Não começa a chamar chuva, siô!
Dito riu alto:
— Os passarinhos também não estão cantando?
— Quer se comparar com os passarinhos!... Sai azar!

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Risadas explodindo de tantas bocas, ao mesmo tempo,
espantaram as andorinhas que se equilibravam no fio do te-
légrafo. Quando se calaram, só ficou a voz de fundo do peito do
Dito, cantando:
Cada vez que o galo canta, ai, ai,
Eu também quero cantar, ai, ai,
Galo canta de alegria, ai, ai,
Eu canto pra não chorar, ai, ai.
Na hora que o galo canta, ai, ai,
Lá pras bandas de onde eu moro, ai, ai,
Quando me aperta a saudade, ai, ai,
Saio no terreiro e choro, ai, ai.

A toada era triste, mas ele não estava triste. A toada pouco
importa. O que importa é o sentimento que vem do coração
junto com ela.
Depois, todas as vozes se juntaram à voz grossa do Dito.
A madrugada estava bonita demais, para viajar em silêncio. A
burrada ia batendo o compasso com os cascos no chão pedrento:
toc, toc, toc...

Todos mostraram o que tinham comprado. O Antônio


Olímpio: um par de sapatos brancos “para a Cecília! O Dito:
umas coisinhas para as crianças. Outro comprou biscoitos para
comer no caminho.
— E você, Joca?
— Não comprei nada. Vim só resolver um negócio.
— Ué! Resolver negócio não impede de comprar coisas.
Joca disfarçou e sorriu.
Dito marcou: dentro do jacá da besta gateada... Eu vi
quando ele jogou o embrulho lá. Que mistério é este agora?
Estavam no meio do caminho áspero e pedrento, tocando a

79
burrada, na toadinha de sempre. Dito tocou o lote dele mais
depressa, passou perto da besta gateada e deu uma olhada de
esguelha. Estava lá. “No rancho eu vejo”, resolveu.

Desencilharam e soltaram os burros, um pouco antes de


anoitecer de todo. Depois recolheram a burrada e amarraram
nas traves do rancho. Joca, que tinha saído para catar gravetos,
voltou com um feixe, acendeu o fogo, amarrou três pauzinhos
roliços e suspendeu neles o panelão de ferro, para ferver o
cozido. O vento pegou a bater porteira.
— Não sei por que este malvado rancho é bem perto de
porteira.
Dito Messias estava agachado, mexendo o cozido e, no
lusco-fusco da hora, que não era mais dia e ainda não era noite,
só se viam os olhos dele, luzindo feito olhos de gato-do-mato.
A noite veio, escura como breu.
— Diz que quando bate porteira — comentou — a alma
que está pagando o pecado, encostada no mourão, geme.
— Iiiiiiiih! Eu vi uma santa cruz e não foi longe daqui.
— Algum coitado que morreu matado.
— Então é esse que está aí na porteira, gemendo.
— A’ Maria! Cruz, credo!
— Em nome do Padre, do Filho, e do Espírito Santo —
benzeu-se o Antônio Olímpio. — Deus que o leve para bom
lugar.
— Amém!
Dito Messias, do seu canto, perto da panela, falou:
— Nunca ouvi dizer que este lugar, aqui, é assombrado.
O areião de Queluz, perto do Paraíba, das bandas onde eu
morava de primeiro, sim. Lá aconteciam coisas de arrepiar
os cabelos. Eu tinha um compadre que andava de baixo pra
riba todo o santo dia. “Compadre! Não presta andar fora de
hora, sem precisão.” — “Não acontece nada.” — “Não
acontece? Inda mais atravessando esse areião mal assombra-

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do...” — “Não acontece nada.” — “Olhe, compadre...” — “Não
acontece.” — Mostrava o porrete. — “Olhe aqui, um remédio
bom pra alma do outro mundo.” Teimoso como o quê o meu
compadre! Não vê que um dia ele encontrou um pau roliço e
como estava mesmo precisando de um, para mourão de cerca,
botou o pau nas costas e foi indo pra casa. Quando pegou o
atalho que ia dar na Fazenda, o pau falou, lá atrás das costas
dele: “Não me leve pra fazenda, que pra lá eu não quero ir”.
— Credo!
— E isso foi verdade. Meu compadre não era homem que
costumasse mentir.
— Abusar não presta.
— Não presta, mesmo. Comigo também se deu um caso.
— Antônio Olímpio pegou um prato de folha e se aheirou da
panela. —Já está pronto esse grude? Estou com fome.
— Já. Pode ir comendo.
Joca atirou mais gravetos no fogo.
— Pra que tanto fogo agora, que está tudo pronto?
— Pra alumiar.
Subiram labaredas. O rancho inteiro avermelhou. Num
canto, as sombras deles dançaram na parede.
— Como eu ia contando... — recomeçou o Antônio —
comigo também se deu um caso. Foi assim: houve uma festa da
banda dos Pilões. Voltamos mais cedo, por volta da meia-noite,
pr’amor de uma briga que saiu lá não sei por quê. Só sei que a
festança ficou pela metade. Se fossem uns dois ou três que
tivessem visto o que vimos, iam dizer que foi bebedeira, ou
medo. Mas todos viram.
— O quê?
— Eu chego lá. Pra cá da capoeira, passando o angico,
veio, de repente, uma luz, não sei de onde.
— Foi a lua que apareceu nessa hora.
— Não foi, porque a lua já tinha aparecido. Fazia um

81
luar, uma beleza. A noite estava clara que era ver um dia.
Aquela luz mais forte apareceu e não sei explicar de onde veio.
Parecia um farol que viesse do alto, um farol de automóvel, bem
claro, de doer na vista. Passou por nós pelas árvores, pelo
campo, e parou num ponto. Ficou como um disco grande,
parado. Nós, olhando... Nessa hora, uma rede de carregar
defunto, conduzida por dois homens, passou pelo espaço branco
de luar e branco daquela luz, que ninguém soube se era do céu
ou se era do inferno.
— Vai ver que era algum enterro mesmo.
— No ar?
— Era no ar?
— Então!? Caímos ajoelhados, rezando o credo. Quando
olhamos, outra vez, tinha sumido tudo. A luz, a rede, os dois
homens, tudo!
— Ave, Maria!
Olímpio passou pelo Dito e perguntou baixinho, apon-
tando com o queixo do lado do Joca:
— Que negócio é, Dito?
— Sei lá?! Não me interessa a vida dele.
E acabou, lá consigo: “Mais tarde, eu fico sabendo”.
Olímpio ainda disse mais coisas: “Não contou nem pra mim,
que sou amigo. Como coisa que não estou suando de saber da
vida dele. Pensa que eu não sei que a Mariana ou é, ou está pra
ser moça dele...”.
— Quem?!
— A Mariana do Quinzote.
— Bem com quem ele foi se meter...
Quando prestou atenção à conversa dos outros, estavam
contando outra história:
— “... então ele pegou o tatu...”
Dito intrometeu-se:
— Que tatu?
— O tatu que ele tinha caçado.

82
— Quem tinha caçado?
— O homem. Não estou falando do homem?
— Que homem? Conta outra vez, do começo, que eu não
escutei.
— Não mandei você não prestar atenção.
— Conte! Camaradagem, que diabo!
— Era um homem tão ruim que quando morreu não pôde
entrar no céu. São Pedro espiou pela janela e falou: “Você aqui
não entra”. Mas Deus ficou com dó e concedeu: “Pode voltar ao
mundo. Quando alguém lhe disser um ‘Deus lhe pague!’,
apareça”. O homem veio. Ajudou os outros. Deu esmolas. Fez
todo o bem que pôde. Nada. Quando muito, agradeciam com
um “muito obrigado”. Um dia, ia andando por uma estrada e viu
um tatu. Caçou-o e seguiu o seu caminho. Mais adiante
encontrou um outro homem e o outro falou: “Bonito tatu”.
“Bonito, sim. Quer para o senhor?” — “Quero.” Deu o tatu ao
homem que, com a surpresa, esqueceu-se de agradecer. Então
ele, querendo forçar o agradecimento, pegou a conversar: “Bem
grande esse tatu, não é?”. “É.” “Dá um prato e tanto...” “Dá
sim.” “Não foi muito difícil de matar...” “Não?” “Não foi. Ele
vinha vindo do campo e entrou no caminho limpo. Eu, então,
corri atrás dele e matei ele com este cacete.” “An!” “O senhor
gosta de tatu?” “Gosto.” “Com a casca o senhor pode fazer uma
cesta...” O outro encarou com ele, desconfiado: “A modos que
o senhor está arrependido de ter me dado o tatu...”. “Não senhor,
não estou. Até dei de todo o coração.” “An!” Abriu-se num sor-
riso franco: “É verdade! Agora é que me lembrei que ainda não
agradeci. Deus lhe pague!”. O sorriso dele virou careta de
espanto. Parecia que o homem estava se diluindo. Pelo meio do
corpo dele, via o morro, o céu, a estrada. Depois, até o contorno
do corpo se apagou. Olhou bem. Esfregou os olhos. “É do
calor.” Olhou outra vez. Não ouvia nada e não viu mais
ninguém. Atirou o tatu ao chão e chamou na sola.

83
— Que susto, não?
— Nem fale!
— Fosse comigo...
Ficaram contando histórias, até tarde.

Dito Messias firmou-se nos cotovelos e escutou. Ouviu o


ressonar forte dos companheiros. Fora isso, nem um baru-
lhinho. Levantou-se e foi, agachado por entre as cangalhas
empilhadas. Umas bruacas rodaram. Um virou-se na esteira,
dando um suspiro. Se o Joca acordasse... Prendeu a respiração
e esperou. Se o Joca acordasse... E ele ali, bem exposto, duro
de susto, recortado contra o luar. “Ele me vê aqui e não sei
não...” Via-se dando uma desculpa:
— Eu ia sair para tomar um pouco de ar...
Ou então:
— Estou com uma dor de barriga!...
Não foi preciso nada disso. Joca estava dormindo, dor-
mindo ficou. A esteira dele estava longe. Meu Deus! Até chegar
lá andou pé ante pé, com medo. “Melhor eu voltar...” Não
voltou. Quando pegou o pacote, ouviu um barulhinho. Virou-se
rijo de medo. Se fosse o Joca... meu Deus! Já sabia qual seria a
reação dele: “Que é que tá fuçando aí, tição? O que perdeu?”.
De repente, lembrou-se, não sabia por que, das histórias de
assombração que tinham contado. Relanceou os olhos para fora.
“Virgem Maria! É algum rato. São os burros que estão se
mexendo.” As mãos tremiam. Começou a desembrulhar o
pacote, com cuidado. O papel fazia um barulho!... Raio!
Resmungou de desapontado, quando viu o que era:
— Porcaria! Oooooooooô porcaria!
Era só (o Joca com tanto cuidado e tanto segredo com essa
porcaria), só um corte de seda ramada.

84
VIII

Malvado truco! Todas as noites ia uma rapaziada à casa da


Julinha, jogar. Jogavam a dinheiro. E, ainda por cima, a dona
da casa, que é mulher de má vida, cobrava o barato. A primeira
vez, Joca chegou sem jeito, junto com a Mariana.
— Topa uma queda, companheiro?
— ... não vê que eu não jogo muito bem...
— Ora! Venha! Ninguém joga bem, aqui.
Joca atirou o chapéu num monte de lenha, a um canto,
abancou-se e pegou a jogar. Largou de olhar em roda. Só via as
cartas.
— Quem dá carta?
— Eu.
— Você nada. Seu parceiro agora mesmo jogou de pé.
— De pé ou sentado?
Riam-se.
— O baralho é do Zé. Tó as cartas, homem. Está dor-
mindo? Não vê que estão fazendo ponte por cima de você?
Zé da Lucinda pegou as cartas e baralhou.
— Corte! De gaveta, vai por baixo. Segure esse veneno aí!
— Não quero. Queima estas três.
— Queimou a sorte, olhe! — virou três cartas: uma figura,
espadilha e sete de ouros.
Naquela rodada, saíram: zape, sete de copas e todos os três.

85
— Essa mão estava arrumada. É maço.
— Que maço o quê, siô! Dei carta em cima da mesa.
Joca encolheu os ombros:
— O primeiro milho é dos pintos. — Falou com pouco
caso. — Pode puxar os tentos.
— O jogo é jogado.
— Larga de ser garganta!
Na outra mão, o Zé saiu de zape seco. Deixou passar a
primeira, fez a segunda e empatou a terceira com três. Joca
avisou:
— Quando a gente sai com o zape seco, garante a primeira.
A primeira vale um carro.
O Zé e o Joca — estavam jogando de parceirada — saíram
de casal e meio na mão de manda. O Zé, satisfeito, virou as
cartas na mesa:
— Entregue o jogo, pessoal! Entregue! Esta queda está no
papo. Pena que a gente não pode trucar.
Não puderam trucar na segunda mão de manda, mas
puderam dali a pouco. De repente o jogo esquentou. O Luís do
João Rosa fez a primeira de sete de ouros e trucou.
— É de falso.
— É de falso? Então manda, pixotada! Truco! Diga por
que não quer!
Carrapato é bicho feio,
Tem cabelo até no joêio!
Mosquito não leva freio!
Truco na vasa do meio!
Diga porque não quer!
Truco, pixote!
Truco!
— Não provoque!
— Truco, pixote!
(cada berro de ensurdecer a caboclada)

86
O Joca subiu na cadeira e berrou:
— Quem não morre não vê Deus! Toma seis!
— Nove!
— Joga aí que eu quero ver a troco do que é esse barulho.
— A primeira é nossa!
— Jogue aí. Tá com medo?
Luís bateu o sete de copas, com rompância, na mesa. Joca
matou de zape e descartou na última.
— Toma um rei, pra fechar até a porta da rua.
Recostou-se na cadeira, resmungando, com pouco caso:
— Hum! Tanto barulho com sete de ouros e sete de copas
na mão. Isso não é jogo.
— A primeira é nossa. Um empate já chega para garantir
a jogada.
— Eu não jogo sozinho. E o parceiro lá não vale nada?
A roda correu empatada com dois e o Zé desempatou de
três.
— Eta, lá em casa! — Joca puxou uma fava de Santo
Inácio, para marcar o jogo. — Eta, lá em casa! Um jogo de uma
vezada só!
Luís pegou o baralho e resmungou:
— Ainda estamos ganhando. Duas quedas e jogo na frente.
Mariana entrou, arrumando o xale.
— Vamos, Joca. É tarde!
— Espere um pouco.

Jogaram mais de hora, ainda. Júlia trouxe café com tor-


rada.
— Quem está ganhando?
Luís contou prosa:
— Eu, Dona Júlia. Eu sou um bichão, a senhora não sabe?
— Que horas são?

87
— Meia-noite e pouco.
— Então vamos mais uma.
Mariana puxou o braço do Joca.
— Vamos.
— Agora não. Eu não largo o jogo quando estou perdendo.
— É tarde...
— Não!
Puxou o braço e ficou. Jogaram até duas e meia.
— Vamos, Joca!
Joca encarou Luís Rosa:
— Você que está perdendo... Quer apanhar mais, ou já
chega?
— Chega.
— Está bem.
Levantou, atirou o baralho em cima da mesa, apanhou o
chapéu e falou, da porta:
— Eu não disse que o primeiro milho é dos pintos?

E foi quando chegou o homem, com parte de levar tra-


balhador para o sertão. Chegou como quem não quer nada e se
arranchou por aí nem sei onde. Depois das quatro, aparecia no
largo do escritório.
— Estou aqui só por uns tempos. Assim que começarem a
abrir a estrada nova, no sertão, vou pra lá. São trinta mangos
por dia... Vê lá se vou perder uma ocasião dessas!...
— Trinta mirréis?
— E então?
Ajuntava caboclo em volta dele, com os olhos acesos de
cobiça.
— Trinta?!
— E livre de despesas. Quero dizer, não é bem livre de
despesas. É assim: todos os gastos correm por conta dos enge-

88
nheiros. É uma companhia grande. Depois o empregado paga
aos poucos. Quando a gente entra, assina um contrato...
— Assim é bom. Mas a Companhia tem de tudo?
— Tem. Armazém, loja e farmácia, além de alojamento
para o pessoal.
— Tudo isso e os trinta por dia correndo...
— Trinta!
A turma arregalava os olhos. Não era para menos, moço.
Caboclada que nunca viu uma pelega de duzentos na mão, ir
ganhar trinta mil réis por dia...
— Quando é que nós podemos ir?
— Nós, quem?
— O senhor não pode arranjar pra gente ir?
— Posso, sim. É só falar com o engenheiro.
— Mas quando é que nós podemos ir?
— Daqui a uns vinte dias. Estão abrindo picada na frente,
com facão de mato. Daqui a uns vinte dias podemos ir, para
começar a estrada. Vai uma turma de engenheiros. E carros de
boi com mantimentos, bagagens, ferramenta...
Os caboclos, sonhando com tanto dinheiro, ficavam as-
sanhados, comentando a novidade.
— Vamos dar um tombo no careca.
— É mesmo. Aquele explorador.
— Que o negócio dá é certo. Veja o homem aí. Camisa de
palha de seda, parece chefe. De palha de seda da boa...

Quando chove chuva forte, a água fica suja. Fica por pouco
tempo. A água barrenta passa. O lodo volta ao fundo de onde
veio. E, mais dia, menos dia, corre água limpa outra vez.

Ainda se não fosse o vestido de seda ramada...

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A missa campal no morro foi uma beleza! O padre pa-
ramentado, lá em cima, aos pés do cruzeiro, abençoando o
povo. Gente, assim, desde o sopé até o cume, roupas de todas
as cores, gente de todo o jeito, parecia bem cupim micuim.
Quando eles apareceram, correu um zum-zum de ponta a ponta
do morro. Apareceram: Joca de terno novo de brim, claro;
Mariana, chibante, de vestido de seda ramada.
— Que descaramento! Aparecer aqui, em festa de igreja,
com aquela mulher.
— Hum! Hum! Vestido de seda!
Eram só cochichos:
—... de seda...
—... viu?
— ... com a Mariana do Quinzote.
— ... decerto foi ele que deu...
— ... de seda...
Nessa hora, o cálice brilhou como um sol, lá em cima. Era
a elevação. Como se não pudesse suportar o brilho e o peso
daquela hora sagrada, o povo abaixou a cabeça. Já viu quando
o vento passa e abaixa o capim alto, florescido? Ficou tudo
quieto na manhã milagrosa. A campainha tiniu, um som claro
de ouro. Dali a pouco o quadro se desmanchou de repente. Sabe
quando a gente atira uma pedra na água parada e a paisagem do
fundo se desfaz e se mistura e treme e confunde tudo, num
movimento ligeiro? O povo começou a levantar-se e a descer.
Tinha acabado. Curiango ia descendo naquele balanceado
sereno, quando deu com o casal. Parou. Parou e olhou,
fascinada, feito passarinho perto de cobra. Mariana devolveu o
olhar, meio de lado, mediu bem, e:
— Nunca me viu, moça?
O sol mosqueou de luz o cabelo preto de Curiango.
Manchas luminosas mudaram de lugar, quando ela sacudiu
o cabelo, sem deixar de olhar, “tal qual jaguatirica raivosa,

90
armando o pulo...” o Joca contou mais tarde. Avermelhou, mas
não disse nada. Ficou olhando, firme, de cima, soberba. Não
deu confiança. De cabeça alta e lábios apertados, ficou com um
riso, que não era riso, fechado, na boca cerrada, e, naquele jeito
alevantado, um pouco caso de deixar a outra de rastros. Dava
gosto olhar para ela. Parecia que estava dizendo: “Veja bem que
eu não sou da sua igualha. Veja. Não preciso falar. Você é
atrevida e malcriada. Eu não sou. Não se enxerga? Você está
muito por baixo. Olhe mais!...”.
E foi Mariana quem abaixou a cabeça primeiro.
Toda a gente viu a desfeita, e leu a resposta na cara de
Curiango.
— Eu ia passando sem ver. O que me chamou a atenção
foi o vestido de seda ramada. Olhei. O que é que tem? Pois não
é tão bonito? — explicou, falando com a Chiquinha, mas o Joca
escutou. Pegou o braço de Mariana, com raiva.
— Vamos.
— Agora eu fico até o fim.
— Vamos!
Viu na cara dele qualquer coisa que estava avisando: “É
melhor obedecer”. Foram. O que o Joca fez ou disse, ninguém
soube. Mariana pegou o vestido novo e atirou pela janela.
Joca se achegou ao homem e antes de cumprimentar foi
logo perguntando:
— O senhor ainda está pegando gente para ir trabalhar no
sertão?
— Quer ir também, moço?
— Se estou perguntando é porque quero.
— Já sabe as condições, não? O senhor assina um contrato,
e o resto corre por conta da Companhia. São trinta...
Joca cortou a lenga-lenga.
— Já sei tudo. Já sei. Aceito.
O pensamento dele estava num vestido jogado no chão.

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Um vestido de ramos vermelhos. E também na pergunta de
Curiango: “Pois não era tão bonito? Olhei. O que é que tem?”.
“Minha jaguatirica bravia! Minha jaguatirica soberba! Você
tem razão de me fugir. Eu não mereço você, não. Eu sou um
perdido, metido com gente rampeira.”
Viu, outra vez, o morro lavado de sol. Curiango descen-
do... Ficou tão enlevado que tudo sumiu em volta e só ela ficou.
E a Mariana? “Nunca me viu, moça?” O rosto dele queimou,
outra vez, de lembrar.
“Jaguatirica! Pra você descer até onde estou, só mesmo em
sonho ou na festa do morro.”
E assinou o contrato de uma penada.

Nessa noite, esquentou tanto a roda de truco, que saiu


sururu feio. Começou por causa de uma bobagem. O Zé da
Lucinda estava distraído, pr’amor de quê? Não sabiam. Deu
carta e jogou de mão. Trucou um desempate, sem carta. E uma
hora:
— O culpado foi você!
— Você deu sinal de zape, seu besta!
— Eu?!
— Você! VOCÊ! Quem mais havia de ser?
Joca estava furioso e vermelho de gritar.
— Eu não. Só cocei a orelha. Não foi sinal de zape ne-
nhum.
Riram à custa deles, a mais não poder.
Luís Rosa pegou a trucar de falso:
— Ei, eu! É só trucar de falso e essa pixotada corre.
— É que uma mal mandada põe a jogada a perder.
Havia qualquer coisa no ar, naquela noite. O Santana
estava peruando o jogo e deu um aparte. Olímpio retrucou:
— Sapo de fora não chia, seu!

92
— Não seja sem educação!
— Sem educação eu mostro lá fora.
Apaziguaram os dois. Em outra hora o Zé perguntou ao
Joca:
— Você, que é pé, garante?
Luís Rosa aparteou:
— O jogo é jogado, não é falado.
E o Joca, em troca, quando o Luís folheou o resto do
baralho, avisou, áspero:
— Para ler o baralho, paga dois tentos.
Luís Rosa ganhou, em seguida, duas quedas. Era só:
— Passe as favas.
— Dois tentos pra cá.
— Como é? Os tentos? Tento é que ganha jogo.
E foi indo, até que:
— Que tento? Quantas vezes? Assim não é admiração
ganhar. Puxando tento dobrado...
— Mas eu não puxei ainda, seu!
— Puxou, que eu vi. Se é pra fazer batota, acabo com esta
bagunça!
— Já sei. Está enfezado porque está perdendo.
— Decerto que hei de perder. Jogando com parceiro burro
e contrário ladrão.
Zé da Lucinda levantou esquentado. Varreu a mesa com
as mãos.
— Ninguém chamou...
Nem teve tempo de gritar o resto. Luís Rosa, vermelho até
a raiz dos cabelos, afastou a cadeira com um pontapé.
— Ladrão é tu, desgraçado!

... e foram parar na cadeia. Passaram dois dias lá.

93
Olhos D’Água inteira falou deles. Uma pessoa só não é
má. Duas também não. Mas um ajuntamento é. Muita gente, é
muito maldosa. O povo daqui, que era muita gente, comentou:
“Não deviam ter saído da cadeia. É lá que é lugar deles.
São uma cambada ruim...”

94
IX

Neste mundo a verdade sempre aparece. O Mané Pão


Doce, que tinha sumido daqui, há tempos, apareceu num estado
que dava dó. Coitado! Só pele e osso. Só, não. Pele, osso e
pereba. Tinha pereba até na cabeça. Mané Pão Doce morou dos
lados do Limoeiro: entre o Limoeiro e Olhos D’Água. Ia de
manhã à vila, na caçamba, e voltava de lá para as dez horas,
com duas cestas de pão. O pessoal daqui era todo freguês dele.
Pois não é que, um dia, o Mané tomou um chá de sumiço? “O
que será que foi feito dele?” “Onde andará?” “Vão ver que foi
para a casa da Lica. Ela mora com o marido lá para as bandas
da Estiva. Mané está lá.” Zé da Lucinda pegou o lugar de
padeiro e ninguém mais falou nisso. Pois o Mané voltou,
contando cada coisa, que só de lembrar dá arrepio. Quando
soube que estava um homem querendo levar gente daqui para o
sertão, até sapateou de raiva.
— Foi um maldito desses que me desgraçou. Eu quero tirar
um lanho do couro dele, que é pra ensinar esse tipo a desgraçar
os outros.
— Mas o que foi?
E ele contou:
— Pois não vê que eu ia indo bem no meu ranchinho, do
lado do Limoeiro...
— É mesmo: depois sumiu, não? E nós sem saber para
onde.
— Sumi. Pois é. Apareceu um amaldiçoado, de que in

95
ferno não sei, e pegou a enfiar na minha cabeça que estavam
abrindo estrada no sertão...
— A mesma coisa que esse um está falando...
— ... e que estavam precisando de gente. Que pagavam
bem, que a Companhia garantia tudo; que não era preciso levar
nem esteira; e tantas falou e tanto fez, que eu pensei: “A minha
Lica já está amparada, o marido é muito bom para ela, e eu,
depois que a minha velha morreu, não conto muito com a vida...
arre, que leve o diabo! Eu vou”. Falei pr’ele: Eu vou, moço.
Fomos. Ah! Pra quê? Eu não contava muito com a vida e me
contento com pouca coisa. Mas aquilo lá não é vida, é morte. E
até pior do que a morte. É um ermo que espanta. Mato fechado,
tudo, tanto que é preciso abrir picada com facão e foice.
Arranchamos num claro e ficamos trabalhando. Mosquito,
febre, calor, isso nem conto. Em qualquer lugar há isso. O
pessoal é que não prestava. O patrão tinha uma ganância! figa,
canhoto! nem eu que não tenho nada. Ficava no serviço,
vigiando. Não dormia, ninguém via o homem comer. Tinha
partes com o diabo, eu acho. E, quando a gente parava um
pouco, para limpar o suor, ou beber um gole d’água, lá vinha
ele: “Tenho um contrato assinado por vocês. Quem não quiser
trabalhar, vai para a cadeia, como vagabundo”. Aquilo doía na
alma. Trabalhar até não poder mais, e vir um lá gritar na cara
da gente: “Vocês são uns vagabundos! Cambada de
vagabundos! Não querem trabalhar, vão para a cadeia, seus
vagabundos!”. E era assim, dia e noite. As compras eram feitas
num armazém, na cidade, a légua e meia de distância. Lá, o
arroz quirera era vendido a 3$500 o litro; o feijão a 2$000;
toicinho a 6$000; riscado à toa ordinário, só goma, pela hora da
morte. Não havia mistura. Estava dando maleita no pessoal.
Mas pior do que a maleita era ter que comprar no armazém.
— Por que não compravam em outro lugar?
— Com que dinheiro?

96
— Eles não pagam empregados?
— Pagam em vales. E os vales são aceitos só no armazém
lá deles. Uma tramoia desgraçada. O que eles querem é
trabalhador para trabalhar de graça. No frigir dos ovos é que a
gente vê a gordura que fica. Lá não fica nada. A gente gasta o
que tem e o que não tem e ainda fica devendo.
— Por que não veio embora antes?
— Porque não pude. Como eu ia dizendo, aquilo era um
inferno e eu não via hora de vencer meu mês, para dar o fora.
Nem bem chegou dia 30, pedi para falar com o chefão.
“— O que é? — perguntou de mau modo. — Ele bem sabia
o que eu estava querendo.
“— Vim pedir as minhas contas.
“— Um momento.
“Chamou o guarda-livros e pegaram a fazer contas. Pu-
seram o preço da viagem, a esteira em que eu dormia, lavagem
de roupa, conta do armazém, alojamento, e até um san-
duichinho de mortadela que comi no caminho. Contando com
tudo, ia meu ordenado e eu ainda ficava devendo uns dois meses
de serviço.
“— Mas eu não gastei tudo isso!
“— Como é que não? Está aqui.
“Olhei e vi meus vales assinados. O que é que eu podia
fazer? Nada.
“— Querendo ir, é só pagar o que está devendo. Do con-
trário, somos obrigados a mandar prender o senhor, como
ladrão, se tentar sair daqui.
“Eu nem vi mais nada. Tudo rodou em volta de mim.
Fiquei louco de raiva. ‘Ladrão! Ladrão é o senhor. Tudo isso é
uma ladroeira. Desgraçada gente!...’ Estava fora de mim e nem
via mais nada. Isto é, via tudo turvo. Sei que me puseram para
fora a pontapés. Acordei, altas horas, com tudo quieto. Mas,
quando me mexi, vi o guarda, andando na minha direção.

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“— Vá dormir na sua barraca. O patrão não quer saber de
pau-d’água aqui.
“— Pau-d’água é a mãe dele.
“Desde essa hora, fiquei vigiado. Um passo que dava para
qualquer direção, era controlado. Quando falava com algum
companheiro, vinha o mestre, ou um engenheiro:
“— Não é hora de falar. É hora de trabalhar.
“Cheguei a chorar de tanta humilhação e de tanta raiva.
Falava sozinho, resmungando, feito negro velho: ‘Mané! Você
é bananeira que já deu cacho. Se você ainda prestasse, metia
uma jabuticaba no meio dos olhos desses tipos...’. E tocava a
picareta no chão. Pudesse eu bater com a picareta na cabeça
deles! De noite, rolando na esteira, sem poder dormir, mordia o
lençol, mordia a taboa da esteira, mordia meus braços, eu me
mordia, que nem cachorro danado. Morresse naquela hora e
acho que meu lugar era no inferno, de tanta ira que sentia no
coração. Mas Deus é grande e me ajudou a fugir. Começaram a
aparecer mais descontentes. Uns queriam matar o patrão à
foiçada, qualquer dia, no serviço mesmo.
“— Não vale a pena. A gente mata, depois tem que ficar
na cadeia, por causa de um desgraçado que não vale nada.
“Afinal, um mais esquentado do que os outros, de tanta
ojeriza, um dia no serviço, lascou a foice no chefe da turma. Foi
um corre-corre, um estrupício, que só vendo. Levaram o
homem preso. No dia do júri, ficou pouca gente no destaca-
mento. Eles chamavam destacamento aquele grupo de gente,
acampado para trabalhar. Então resolvemos fugir. Quando já
estava tudo sossegado, noite alta, pegamos a cochichar,
andando de gatinhas, de uma esteira para outra.
“— O João e o Martins pegaram o grandalhão, que ficou
naquele canto.
“— Hum! (Só um resmungo em resposta.)
“— O Tião sozinho dá conta do polaco.
“Outro resmungo veio da esteira do Tião.

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“— Sem barulho.
“— Decerto.
“Saímos como sombras. O coração da gente dava cada
pinote! Os guardas eram só dois, é verdade. Os outros estavam
na cidade por causa do júri. Mas, qualquer barulho, vinham os
engenheiros e os ajudantes, com armas de fogo. E que eles
atiravam, sem dó, qualquer um sabia. Já tinha acontecido uma
turma querer fugir, eles balearam uns quatro e ainda mandaram
prender os outros. — Fomos atacados — declararam na polícia.
— Tivemos que atirar em defesa. — E os coitados que foram
presos, presos ficaram. E nós agachados esperando uma
oportunidade. O vigia que tocava ao João e ao Martins, sentou
numa pedra e acendeu o cigarro. A brasinha guiou os dois.
Foram devagarinho, com andar macio de onça, pelo mato. Na
última hora, o vigia percebeu qualquer coisa. Levantou
alarmado. Antes de puxar o revólver, antes de ficar de pé, tinha
levado uma cacetada no alto da cabeça. Caiu sem nem gemer.
Quando olhei (aquilo nunca mais me sai da lembrança,
enquanto eu viver), os homens engalfinhados pareciam sombras
vivas. Não havia nem grito, nem praga, nem xingo, nem barulho
de jeito nenhum, nada. Só gente lutando, como feras. E era uma
luta de vida ou de morte. Daí a pouco ouvi alguma coisa e
respirei: pegaram a resfolegar como foles, de cansados. Mas os
vigias estavam amordaçados e seguros por vinte braços, no
chão. Corri para fazer a minha parte. Levei cipó e arame fino e
amarramos os vigias, com tanta força que a carne ficou
marcada. Não tínhamos outro remédio. Fugimos.
“No mato, a turma se dispersou. Cada um tomou uma
direção. Assim, se dessem com algum rastro, pegariam um ou
dois, quando muito. Fiquei devendo os cabelos à Companhia.
Se eles me pegassem, a estas horas, o’eu na cadeia, ou morto,
por causa de dívida.
“— Que venham! Nós liquidamos com os que vierem.

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“— Aqui eles não vêm. Não vê que eles são bobos! Então
não hão de calcular que, se vim para cá, já dei o alarme?
Mostrou os braços e as pernas:
— Olhem como estou. Só pereba. Comprar remédio na
farmácia deles, era me enterrar mais. Vim por aí, escondido
pelos matos. Roupa não tenho. Comida não trouxe. Comi mel,
orelha de pau, raiz e fruta, pelo caminho. Do dinheirão que
ganhei, nem sombra.
Suspirou.
— Há bem tempo que não sei o que é “destão” para
comprar uma pinga. Isso é vida? Vocês não sejam bobos de
acompanhar o terço desse homem! Não vão atrás de conver-
sa!... Não vão...
Diabo de alarido, logo de manhã cedo!
— Lugar de sapo é no brejo!
— Bicho sujo, querendo enganar a gente!
— Tu vai ver o que é bom...
... e o Biguá latindo atrás...
No larguinho, o homem (que cuidava de juntar gente para
viajar para o sertão) parou e sentou-se no chão. Bateram nele.
Empurraram. Arrastaram. Não tiveram contemplação. O Zé da
Lucinda falou, muito cheio de si:
“— Não vê que eu nunca fui muito com a cara dele. (Não
foi, uma conversa! Foi o primeiro a querer ir para o sertão, abrir
estrada.) Não vê que ele tem uma cara de sapo que amanheceu
debaixo do baldrame e eu, pela cara, já sabia que o sujeito não
prestava.
Vicente Rosa deu seu aparte:
— O administrador vai mandar gente acabar com essa
folia.
— Vai nada. Foi ele quem mandou.
— Foi?!
— Então?! Quando pegaram o homem, o Pais foi per-
guntar o que faziam com ele. O careca olhou por cima dos

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óculos: “É escorraçar ele daqui!”. O Pais ia saindo, ele chamou.
“Espere! Arrumem um jeito de dar um banho nele, no banheiro
do gado.” E ainda avisou: “Sem afogar”. Pais abriu a boca, mas
nem teve tempo de dizer nada. “Não há perigo nenhum. Morrer
ele não morre. Pode ficar com o couro ardendo, mas é bom
exemplar. Outra ele não faz. Pode ir.”
Ajuntou gente para ver.
— O que é isso?
— Vão dar um susto no homem que estava induzindo o
pessoal daqui a ir para o sertão.
Seu Pedro Gomes, que também estava espiando, abanou a
cabeça.
— Logo vi que essa cambada ruim estava metida nisso. A
cambada ruim era: o Pais, o Antônio Olímpio, o Joca, o Luís
Rosa e o Santana; e mais o Mané Pão Doce que estava puxando
a corda.
E o sem-vergonha do Biguá, ajudando a aumentar o ala-
rido.
O Bebiano, que nunca valeu nada, deu uma rasteira no
homem, quando ele passou.
E riu, de ver o coitado se estender na poeira.

Pensavam que queriam só dar um susto no homem. Qual o


quê! Amarraram o coitado numa corda, como animal, e foram
arrastando. Ele pedia:
— Me deixem! Pelo amor de Deus! Não faço mais! Juro
por Deus! Sumo daqui pra nunca mais voltar! Pelo amor de
Deus! Não me desgracem, pelo amor de Deus! Pelo amor de
Deus! Pelo amor de Deus...
Pois não teve perdão. Foi jogado no banheiro, cheio de
remédio de matar carrapato.

101
O homem estava com o corpo todo lanhado, queimado, já
se abrindo em fendas, brotando sangue e escorrendo água suja.
Ajoelhou no chão de cascalho e terra vermelha, forrado de
gravetos, gretado por causa da seca, esburacado de casco de
burro, com folhas e pontas de cana espalhadas. Com o esforço,
o sangue escorreu dos joelhos. Lágrimas corriam dos olhos
dele, como água das nascidas. Ajoelhou, e clamou, rilhando os
dentes:
— Maldita gente! Maldita a hora em que pus os pés neste
lugar excomungado! Malditos! Que o meu sofrimento caia na
cabeça desses desgraçados! Que morram de morte feia, sem ter
ninguém que acuda! Que passem fome e sede e não achem
quem tenha compaixão deles! Malditos!
Chegou a espumar de ódio.
— Que desça o atraso aqui e nada mais vá por diante!
No fim, nem falar mais podia. Só uivava. Uivava que nem
cachorro louco, com a boca cheia de espuma e de terra.
Pensaram que tinha ficado louco.
— Levante! Vá-se embora!
— Eu vou. Fiquem com a sua terra maldita! Desgraçados!
— Ande! Vá-se embora!
Deram um empurrão nele. O homem caiu de uma vez,
levantou cambaleando como um bêbado e tornou a cair.
— Gente amaldiçoada! Amaldiçoados! Cadelada de sa-
tanás!...
Os que tiveram dó, no começo, perderam a paciência.
Começaram também a bater com as mãos duras de calo, áspe-
ras, mãos que pareciam solas, nas costas lanhadas do homem.
— Vá-se embora, boca suja!
— Saia daqui, mardiço!
— Saia daqui, praguento! Saia! Saia!
O Bugre, que é um homem às direitas, afastou o pessoal e
achegou-se.

102
— Levante.
Pegou no braço dele, sem dizer mais nada, e foram an-
dando. Lá em cima, quase na virada da serra, o Bugre, carão
fechado, como sempre, apontou para baixo:
— O caminho é esse. Vá direito, que vai dar em Maria da
Fé. Suma!
Então o homem encarou bem nele e gritou:
— Tu hás de ser o primeiro, bugre do inferno!

Mas o Bugre não foi o primeiro.

Quando estava tudo florescido e as coisas tinham um jeito


de festa do Divino, de tanta cor que havia; e a fazenda era que
nem oratório, ou presepe (presepe parecia mais), com aquelas
filas de casinhas; e as plantações como tabuleiros verdes; e o
horto viçoso; e os eucaliptos verdejando; e a usina moendo; e a
refinação com aquela barulheira de correame e maquinaria; e
era tudo um formigueiro de gente atarefada; quando estava tão
bonito, as coisas pegaram a desandar.
Foi a praga. Pois ia tudo correndo tão bem!

Que dessem uma sova naquele desgraçado, vá. Que des-


sem um tiro, já digo. Ele veio aqui perturbar, tinha que levar o
dele. Mas jogar o homem no banheiro de gado, como boi
bichento!...
Não. Isso não é coisa que se faça para um cristão.

103
X

O pessoal mais avisado pegou a falar:


— Não sei como é que um moço direito como o Joca se
relaxou dessa maneira. Primeiro foi o rabicho com a Mariana.
Depois o jogo. Qualquer dia é a pinga.
Meu dito meu feito.

— Bota uma roda de canguara aí. Eu pago...


Joca bateu no balcão da venda do português, com a mão
espalmada. Depois fez um gesto largo, abrangendo a todos:
— Depressa! Eu pago... Eu pago.
Vicente Rosa, que tinha entrado naquela hora, segurou o
braço dele:
— Vamos para casa, Joca! Você não está muito bom...
— Não quero ir.
Estava mole e cambaleando.
— Vamos. É melhor. Eu vou com você. Vamos!
Na porta da venda, Joca parou.
— Não vou. Eu falei que pagava uma roda de canguara...
— Você já pagou.
— Já paguei?
— Já. Vamos embora.
— Você está me enganando.
— Não estou.
— Você é meu amigo...

104
— Sou, sim. Vamos!
— Eu falei que pagava...
— Mas já pagou.
— Já? Você é meu amigo?
— Sou.
— Eu sei que você é meu amigo... meu amigo...
— Vamos!

E daí a uns dias, quando o Vicente tocou por alto no as-


sunto, Joca cortou o sermão:
— Não precisa falar. Eu sou jogador. Estive na cadeia.
Vivo metido com mulher à toa e gente rampeira. Não fale nada.
Gente direita não me quer. Deixe! Estou sujo. Estou enterrado
na sujeira até aqui. — Passou o dedo pelo pescoço. — Agora
não me incomodo mais. Não tenho mesmo o que perder.
— E a “guaxima”?
— Ela? —Joca encolheu os ombros, com amargura. —
Não me quer. E agora já me viu na festa com a Mariana.
— Quem sabe? Com mulher, a gente nunca sabe direito a
quantas anda.
— Com ela eu sei.
— Ninguém sabe — teimou o Vicente.
— Tomara fosse verdade o que você pensa.
Vicente cantarolou, malicioso:
— Não deixe do amor velho,
Pelo novo que há de vir,
Que o novo vai-se embora
E o velho vem a servir.
— Não fui eu que deixei dela, Vicente. Cale essa boca!

105
— Viu só, Choquinha?
— O quê?
— Curiango tinha feito ninho aqui — bateu no peito
largo — e eu não sabia.
Choquinha olhou para ele e riu.
— É?! Eu não vi...
— Boba!
Ela desceu ligeira o carreirinho e bateu na porta da casa
da Mariquinha Machado.
— Que é que você quer, Choquinha?
— Uma esmola, pelo amor de Deus.
— Pede em verso, que eu dou.
— Me dá um pão de sabão.
Vou lavar minha roupinha
Pra acompanhar a procissão.
— Sabão não tenho. Comida serve?
— Serve.
Comeu raspando bem o prato de folha e fazendo barulho,
que nem criança. Joca estava tirando areia. Parou. Descansou,
encostado na pá. Limpou o suor na manga da camisa e olhou o
vulto mirrado da Choquinha (“... raspando o prato, naquele sol
quente, sentada na porta da casa da Mariquinha Machado...”).
— Coitada!
Escutou quando ela agradeceu:
— Deus lhe pague!
— Fale em verso, Choquinha!
— Deus lhe pague,
Deus lhe ajude!
Deus lhe dê
Vida e saúde.

106
Desceu ligeirinha o caminho. Nhambu chororó, de papo
cheio, piou rasteiro no capim melado.
O dia estava tão bonito!

Setembro tinha chegado e a baixada floresceu.


Joca foi pelo mato, abaixado, escondido. Só pra ver aquela
diaba passar, quase que não paga a pena. Não pagava a pena,
mas foi. Ficou de quatro, atrás das primeiras touceiras de barba-
de-bode.
A mina onde iam buscar água para beber era uma lindeza.
Limpa, limpa, vertendo sem parar. A mo’que aquele olho-
d’água brotou de propósito na beira da estrada, mais para dentro
um pouco, para matar a sede de quanto andante passasse.
Joca se enfiou nas touceiras e ficou esperando. O sol já
estava alto e nada. Esperou. Algum passarinho gritava, ardido,
pinicando os dedos de embaúva. Esperou. Gavião passava, lá
em cima, pinhé, pinhé. (Algum pinto já está no papo.) Esperou.
Esperou. Quando já estava cansado de olhar o caminho,
amarelo, areiento, e o céu, um azulão de doer na vista. (Ainda
vou ficar com dordolhos) — quando já estava cansado, escutou
um barulho de passos.
— E vem!
Fixou os olhos na curva do carreirinho. Ché! Era o Bugre
que vinha vindo, sossegado, podão na mão, dedão esparramado
na poeira, pléque, pléque...
Joca até amarelou de raiva.
— Esse desgraçado não tinha outra hora para passar? O
que que já vai cheirar no Alegre? Bugre dos quintos!
O Bugre passou, ele ficou esperando outra vez.
— Vá ver que nem passa hoje...
Botou uns olhos compridos no caminho. O sol doendo
na vista e esquentando sem dó as costas dele. (Que calor! Vou

107
mas é embora.) Não foi. Ficou na touceira. (Isso vai me dar um
juçá desgraçado...) Ansiado, esperando...
Estava tudo quieto. Não bulia uma folha. Mas o Joca
soube, antes de ver, que vinha vindo gente de novo. Escutou, de
repente, um rumor de folha mexida no alto. Olhou para cima e
viu quando o serelepe pulou do pé de pinhão bravo. Aquietou-
se agachado. Daí a um minuto, Curiango passou, com uma
rodilha de pano na cabeça e um pote de barro em cima da
rodilha. Passou, devagar, equilibrando o pote sem pôr as mãos,
num balanceio macio de curva d’água sem corredeira. Joca
segurou a respiração e apertou com força o peito, porque o
coração pegou a bater, de carreira, feito juriti assustada. (Não
fosse Curiango perceber que havia gente espiando, no meio das
touceiras de mato... Não fosse Curiango não voltar mais por
aquele caminho...)
— Essa diaba arisca! — resmungou.
Mudou de posição porque os joelhos já estavam doendo,
as costas já estavam doendo, e os gravetos do chão tinham
entrado na palma das mãos deixando vergões vermelhos.
Dali a pouco ela voltou com o pote cheio, respingando
água. Umas gotas brilharam um instantinho ao sol e foram ao
chão. Outras molharam o vestido dela e se encompridaram,
provocando arrepios na carne moça e rija. E outras que
despencaram nos cabelos, ficaram brilhando naquele negrume
de noite fechada, ficaram brilhando feito pingos de sol. Joca viu,
quando, antes de chegar à curva, com o vento que deu, a
paineira choveu flor em cima dela.
Levantou, esfregou os joelhos — as calças tinham ficado
com joelheiras e estavam sujas de terra —, limpou as mãos, uma
na outra, e desceu o carreirinho. Não viu. Mas, pelo bulir das
folhas, ficou sabendo que o serelepe — raio de serelepe! —
tinha pulado outra vez para o pé de pinhão bravo.

108
Com a história de se postar atrás das moitas de barba-de-
bode, para espiar Curiango, Joca ficou sabendo de uma coisa
que não precisava saber.
O Quim, filho do Tonho Piraquara, passou escondido,
meio abaixado. Joca viu só o chapéu dele, do outro lado do
caminho. Sumiu. Apareceu outra vez. Tornou a sumir. Parecia
um passarinho louco voando em zigue-zague, pra cima e pra
baixo. Dali a pouco, apareceu o rosto dele, corado, com um jeito
tão ressabiado, que deu o que pensar. “Ué! O que será que deu
nele? Que jeito é esse de siri sem unha?” Olhou, de testa
franzida, pensando. “Ora! Eu sou mesmo bobo! É alguma
namorada, vai ver. Quem será?” Passou a Pina. Passou a Rola.
Passou a Mariquinha. O Quinzinho, quieto. Não era nenhuma
delas. Sabia direitinho onde ele estava: bem atrás da moita de
chique-chique. Passou o Bugre. “Esse raio desse Bugre, todo o
santo dia, tem que passar por aqui.” Não era a Rosa, não era a...
Nossa mãe! E se fosse Curiango? Mexeu-se, desassossegado. E
se fosse? O sol ficou de uma quentura nova. O capim barba-de-
bode pareceu que tinha espinho. E se fosse? E o sará não parava
de gritar na lagoa. Concentrou, de repente, toda a atenção no
carreirinho. Era a Chiquinha. Bonita, aquela diaba! Com certeza
era ela que o Quim andava espiando. Esperou, esperou, e não
viu o piraquara sair de trás da moita. Suspirou, desapontado.
Não era ela também. Bem-te-vi gritou alto do meio de alguma
árvore: — Bem-te-vi! Bem-te-vi! Te vi... Viiii! “Que passarinho
excomungado! Eu, que sou eu, não vi nada!” Viu, sim. Curiango
subiu devagar o carreirinho. Então, ele se esqueceu da vida,
olhando... Esqueceu o Quim. A ansiedade que lhe puxava os
olhos e fazia o coração disparar, feito um passarinho assustado,
se dissolveu. E, em lugar dela, uma sensação de felicidade
espalhou-se no seu corpo como o calor. Já ia embora,
quando viu a moita de chique-chique se mexer e abrir-se. A
cara vermelha do Quim apareceu, espiou para baixo, para

109
cima, e escondeu-se de novo. “Tinha me esquecido desse sa-
gui...” Deitou-se de bruços, atrás das touceiras de barba-de-
bode, com as mãos no queixo e os cotovelos no chão, mas-
tigando pontas de capim, disposto a esperar. “Meu Deus! E se
ele estiver de tocaia, para liquidar alguém!” Sobressaltou-se e,
com o movimento, anuns assustados voaram rasteiros, piando.
A cara do Quim apareceu outra vez no vão das folhas de chique-
chique. “Mas o que será que esse engana-tico está esperando?”
Joca soube dali a pouco e antes não tivesse visto. Viu e não
queria acreditar: Cecília chegou, com o mesmo jeito
desconfiado. Espiou dos lados. Joca adivinhou que era ela,
antes de Quim saltar da moita. Agarrou-se à touceira e puxou o
capim, ferindo as mãos: “Cambada! Com esse sol quente! E o
coitado do Antônio Olímpio? Meu Deus! E o Antônio
Olímpio?”.

“E o Antônio Olímpio?...”
Tinha trazido um par de sapatos brancos para a Cecília.
Cada vez que ia a Maria da Fé, não se esquecia da mulherzi-
nha. Tanto marido ruim, e a mulher uma santa... E aquele que
estimava a sua, mais do que tudo no mundo (este mundo é
malfeito), com ele acontecia isso: — Vê se não é o coisa-ruim
que tenta?
Por fim, ergueu os ombros. “Que bem m’importa? São
brancos, por lá se entendam.” Saiu quietinho, renteando as
touceiras da beira do caminho. Deu graças a Deus, quando se
viu na estrada limpa.
— Eia! Eia! Vamos! — tocou o maringá estrada afora.
O caso ficou verrumando a cabeça dele uma porção de
tempo. Conto? Não conto? Que é que eu tenho com isso?
Antônio Olímpio é meu amigo, não posso deixar o pobre bancar
o palhaço... Não. Não conto. A impressão dele é que tinha duas
pessoas, por dentro, discutindo.
— Você não tem nada com isso. Não se meta!

110
— O Antônio é meu amigo. — Algum dia ele vai saber
mesmo. Não precisa ser por mim.
— Mas o Antônio...
— Contar é fazer mais mal do que bem. Ele é esquentado.
Ainda prega uma bala nela.
— Coitado! Bancando o bobo!
— Não é nada comigo. Não vou me meter.
— O diabo tem uma capa que cobre e outra com que
descobre tudo. Qualquer um, um dia, conta.
Resolvia: “Não conto”. Fingia que não estava mais li-
gando. Não adiantava. Pensava na Cecília, no Quim, no An-
tônio. No casamento da Cecília. Tão linda, de branco! Foi nesse
baile, no baile do casamento dela, que encontrei Curiango.
Curiango ainda estava mais bonita do que a noiva. De vestido
cor-de-rosa, enfeitado de miçanga, e o cabelo preto caindo nas
costas. Vamos dançar, moça? Não, foi assim: Quer dançar
comigo, moça? Como não! Tinha um corpo com jeito de água
corrente, virando curva em remanso sereno... Antônio Olímpio
tinha ido morar com a mulher numa casinha branca, perto da
oficina de Seu Candinho Carapina. Vaca sem-vergonha! O
coitado aí, feito bobo... Vou contar e acabo com isso. Vinham
outros pensamentos: Ele não acredita. Cecília passou melado na
boca dele. Ora! São brancos...

Ideia, quando começa a amolar, é como caruncho. A gente


pode fingir que não vê o caruncho. Mas não é por isso que ele
vai deixar de estar na madeira, comendo, comendo...
Que bom, se a gente pudesse pegar numa vassoura e varrer
os maus pensamentos!

Então ele contou. Contou direitinho como foi:


“Neste mundo só as pedras não se encontram. Não es-
tava ninguém vendo. Chovia uma chuvinha miúda, criadeira,

111
e, nem bem passou a chuva, eu virei o condenado do meu
maringá para o lado da casa do Fausto, que tinha encomendado
quatro carradas de areia. Foi por causa do pote d’água. Bendito
pote d’água. E foi por causa da malícia de Curiango que, agora
percebo, já tinha adivinhado onde eu andava com o sentido. O
maringá estava tão lerdo que, de tanta raiva, a vontade que eu
tinha era descer e puxar o carro no lugar dele.
“— Não sei por que não dou um tiro neste condenado!
“Bem que vi Curiango subindo devagar a rampa. Vi, mas
não dei demonstração. Quando já estava subindo também e
tinha passado na frente dela, ela gritou:
“— Moço!
“Não lhe digo nada. Meu coração, tuc, tuc, disparou como
o coração de rola que cai em arapuca.
“— Oa! Para aí, condenado!
“O maringá — era isso mesmo que ele queria — parou no
mesmo instante, bem contra a minha vontade. Eu estava fazendo
até promessa para dar uma loucura nele e ele desembestar por
ali afora, e parar bem longe do alcance da voz de Curiango. Mas,
o que é o coração da gente! Fiquei alegre porque ele parou.
“— Chamou, dona?
“— Chamei, sim. Eu...
“Parou e olhou, rindo, para mim. Eu não acertava nem
falar, quanto mais rir. Fiquei esperando.
“— O pote está muito pesado e, caso não incomode o
senhor, eu ponho aí no meio da areia e lá em cima eu tiro. É só
para subir a rampa.
“— ’Tá bom.
“Ela fez um jeito de quem ia subir também.
“— O carro está molhado, dona! Melhor pôr só o pote.
“— Não faz mal, não. Eu vou andando atrás.
“Mecê foi andando atrás? Nem ela. Desenleou o pano

112
da rodilha, forrou a traseira do carro e sentou. Fomos subindo.
O carro chiava, pesado de areia molhada, as rodas se enterrando
na estrada lisa feito visgo de pegar passarinho. O boizinho foi
andando como quis. Curiango estava sentada no carro, de costas
para mim, com as pernas para fora, balançando. Meu sangue
subiu, ficou latejando aqui, bem aqui, nas fontes. Eu tocava o
boi sem enxergar nada. Fiquei com medo que ela me achasse
muito quieto. Que pensasse que era demais no meu carro e fosse
embora. Que eu nunca mais tivesse jeito de falar o que queria
falar. E tinha medo também que ela olhasse para o meu lado e
eu me desgovernasse de uma vez. Minhas orelhas estavam
pegando fogo. Sentia um calorão na cabeça, uma tontura... ‘É o
sol. Estou ficando louco...’ — era só o que pensava. Cutuquei a
anca do maringá com o ferrão e gritei:
“— Vê se não vai parar agora, condenado!
“Antes não tivesse xingado. Curiango se virou e falou (a
voz de Curiango amolece a gente, que nem mormaço):
“— O seu boi chama Condenado?
“— Não, dona. (Que calor no rosto! Que coisa!... Raio de
mau costume de chamar o boi de condenado!) Condenado sou
eu.
“Aí falei tudo. Onde fui buscar coragem não sei. Falei que
a mulher que eu gostava não me gostava.
“— Não gosta?
“— Não, dona. Tem até medo de mim. Então não era
condenado a viver sem ela? Era. E eu, dona, eu gosto dela, como
gosto de mergulhar os pés na água fresca em dia calorento;
como gosto de sol no cangote em manhã fria; como gosto de
cheiro de terra molhada; como gosto de beber água de nascida,
em folha de taiova; como gosto de ouvir o órgão tocando, na
missa da ressurreição; como gosto de pitar fumo forte, tragando
a fumaça; como gosto de fruta sumarenta; gosto, como gosto de
tudo isso e ainda muito mais.

113
“Falei tudo sem olhar, porque se olhasse, adeus coragem.
“Mulher é como cicatriz antiga, quando pega a doer
anunciando chuva. Sabe as coisas sem ver e sem precisar nin-
guém falar. Quando olhei, Curiango estava virada do meu lado,
em pé, segurando o fueiro do lado do carro.
“— Curiango!
“Não precisei dizer mais nada. Ela avermelhou. Ficou
como pitanga madura. Como pitanga, não. Como jambo-rosa
passado. Eu vi que ela já sabia.
“Homem! Nem sei desde quando ela sabia.”

Acabou o medão que ele tinha do feitiço e viu que Cu-


riango era boa e doce como mel de jati.
“Perto dela, não me sinto nem pobre, nem triste, nem
cansado, nem doente.”

Mas, depois, por causa da Mãe de Ouro, Joca esqueceu


Curiango. Antes de sair, com o sapicuá de farinha nas costas,
falou:
— Eu estava vendo que Curiango perdia. A Mãe de Ouro
é mais forte.

114
XI

Onde mora? Mora no fundo da terra. Onde ela está o ouro


brota do chão, que nem mato. O fundo do rio onde se açoita é
dourado e brilhante que é ver um céu. A areia se estrela de
escamas, tudo ouro. Quando vai mudar de lugar, vira uma bola
de ouro, tão bonita, que parece fogo, riscando o céu. A gente
enxerga um minuto só aquilo, avermelhado no ar. Depois some.
Eu já vi. Vi com estes olhos que a terra há de comer, a Mãe de
Ouro se mudando de Olhos D’Água.
Quase na madrugada, em junho. Tudo escuro como breu.
Só o céu estava claro, estrelado que era uma boniteza. Nessa
hora uma coisa, feito uma estrela grande, despencou e foi
caindo, até sumir do outro lado da terra. O João Rosa falou
baixinho, meio com medo:
— A Mãe de Ouro...
— Louvado seja Deus! Sempre vi, na minha vida, essa
Mãe de Ouro tão falada.
Aí, o Joca entrou no meio da conversa:
— Mãe de Ouro... Hum... — espichou o beiço com pouco
caso. — Mãe de Ouro... Mãe de bosta, com perdão da má
palavra. Aquilo é uma estrela que mudou de lugar.
— Ela escuta, Joca!
— Que escute!
— Se não acredita, não abuse...
Ele agravou a Mãe de Ouro, porque era abusante como ele
só. Mas pagou. Ela escutou a praga e veio. Porque, se não fosse
a praga, podia bem ser que ele escapasse.

115
“A primeira vez que me deu aquilo foi depois do casa-
mento da Cecília. Antes eu não acreditava em nada. Nem em
boitatá (Boitatá? Bobagem. Aquele foguinho azul sai da os-
sada de animal, atirado no campo). Não acreditava em Curu-
pira. (Eu só quero ver a cara do Curupira, quando eu meter um
paula-souza no nariz dele...) Não acreditava em saci. Não
acreditava em mãe-d’água. Quem anda com Deus e a Virgem
e tem oração, está livre de ver essas coisas. Mas o mal era ter
abusado. A gente neste mundo não é nada e não pode saber de
todas as coisas que Deus fez. Agora, vendo com os meus
olhos... Juro por esta luz que me alumia que vi, não tenho
necessidade de mentir. Vendo, como eu estava, não haveria de
acreditar? É verdade que da primeira vez não vi nada. Quero
dizer, vi Curiango. Mas da segunda vez, foi a Mãe de Ouro que
eu vi, e compreendi o meu engano.
“Eu estava noivo de Curiango, já nos dias de casar. Minha
alegria era tanta, que não cabia em mim. Transbordava dos
olhos. Transbordava da boca e eu ria, ria. Tinha me esquecido
daquele caso. Tinha me esquecido da Mãe de Ouro.
“— O Joca viu passarinho verde — diziam.
“E o Zé da Lucinda, um dia, falou brincando:
“— Qu’é isso, rapaz? Você até parece que nunca se ca-
sou.
“Íamos descendo o caminho da casinha que depois foi
nossa. Percebi que eu estava ficando diferente.
“Os olhos de Curiango se agrandaram e ficaram luzindo,
com aquele jeito de olhar de onça esfomeada. (Meu Deus do
céu, não permiti que me dê aquilo outra vez, não permiti!...
Meu Deus do céu!) Não era feitiço de Curiango, não. Era a
Mãe de Ouro que estava me perseguindo. Eu estava vendo
(meu Deus) que tinha de largar tudo o que gostava, que
tinha de deixar Curiango e atender o chamado dela. Agora
eu sabia! ‘Aquilo’ estava no meu sangue. A Mãe de Ouro
tinha vertido veneno no meu sangue. (Meu Deus, livrai-me

116
disso, meu Deus do céu, meu Deus do céu...) Nunca que atinei
com o fim do que estava rezando. Naquela hora eu vi, juro por
esta luz que me alumia, vi a Mãe de Ouro atrás de Curiango.
Vinha vindo, vinha vindo... Percebi que estava perdido e gritei:
“— Não deixe ela chegar, Curiango! Não deixe! Meu
Deus!...
“E saí correndo, desesperado, pelo carrascal. Se me ma-
chuquei durante a corrida, ou se foi depois, quando não dei mais
conta de mim, não sei. Quando acordei, à noitinha, escorrendo
sangue de arranhões, nos braços, nas pernas, as roupas em
frangalhos, o rosto num estado desgraçado — eu não podia ver,
naturalmente, mas passei os dedos e senti as arranhaduras —
ardendo, é ver que tinham despejado brasa viva nele, quando
acordei, estava deitado numa touceira brava de rosa maldita.
“Na hora de deitar, bebi um trago bom de cachaça com
umburana. Bebi por beber. Eu bem sabia que não adiantava.
“Mas Curiango era uma santa e me quis assim mesmo.”

Antes não tivesse querido.

De tanto pensar no caso da Cecília, e do Antônio, teve um


sonho esquisito. A falar bem a verdade, o sonho foi o começo
do que estava para acontecer.
Sonhou que estava com um sapicuá cheio de farinha nas
costas, correndo no meio da escuridão. Tudo subia e descia e
rodava. E ele, cansado, não podia parar de correr. Uma coisa
perguntou, de longe: “Onde vai?”. “Vou matar Curiango. Ela
não presta, eu mato, eu mato, eu mato...” Sentou na cama,
sufocado, suando frio e olhou em volta. Tudo quieto. Abriu a
janela. Lá fora, tudo quieto, também. Na lagoa os sapos
repetiam: ai! oi! ao! ai! oi! ao! Siá Maria veio com uma
lamparina acesa na mão:

117
— Que foi, meu filho?
— Ela. A senhora viu?
— Não vi. O que foi?
— Eu mato. — Riu, olhando para ela e repetiu: — Eu
mato.
— Que é isso, meu filho?
Então reparou nos olhos dele. Estavam abertos, mas pa-
recia que não enxergava. “Está dormindo.”
— Deite! — falou.
— Já vou.
Joca foi para a cama, obediente como criança. Siá Maria
chegou-se à beira da cama. Ele estava ressonando.
— Joca! — chamou. —Joca!
Botou a mão no ombro dele e ainda chamou:
— Joca! — (Que sono pesado!)
Quando voltou daquele sono de pedra, no outro dia, vestiu-
se e foi encontrar Curiango.
— Eu corri atrás de você — contou — e...
— Quando?
— De noite.
— Eu não saí, de noite.
— Eu vi. Nesse caminho aí em cima. Acho que estava
variando um pouco.
— Mas eu não saí...
— Eu tinha dormido...
— Ah! Você sonhou. E depois?
— Depois... — franziu a testa, querendo lembrar. — Não
sei mais. Ah! sei. Você chegou com uma lamparina na mão e
falou comigo. E eu não matei.
— Não matou o quê? Você não fala coisa com coisa.
— Não contei? Eu queria... Não sei. Alguma coisa está me
fugindo da cabeça.
— Que coisa?
— Não me lembro.

118
Abaixou a voz e avisou sério, cochichando:
— Qualquer dia, eu mato você.
— O quê?!
Curiango sobressaltou-se, mas, olhando para ele, viu que
estava risonho, olhando a água que passava.
— Que brinquedo sem graça, Joca!
Houve um silêncio pontilhado de pios de pássaros.
— Curiango!
— Que é?
— Nada.
Ficou olhando a água que passava.

A gente nasce, cresce, e morre. Não sai disso. Mas, en-


quanto cresce e enquanto vive, quantas coisas acontecem! Esta
fazenda teve uma vida, como vida de gente.
Antes a cana era trazida da baixada em tropas de boi e, do
morro, em jacá, no lombo da tropa. A Companhia mudou isso.
Andava muito devagar. Então a cana do vale pegou a ser
carregada em caminhões. Para isso, alargaram as estradas. O
Pais vinha com o caminhão pela estrada do Limoeiro. Aquele
português é malcriado a conta inteirada. E foi bem com ele que
inventaram de fazer uma brincadeira.
Na quaresma, isto aqui fica morto. Pegam as violas e
guardam num saco, pendurando na parede. Cobrem os quadros
e os espelhos. Não saem nas noites de sexta-feira. Não saem
para passear, bem entendido. Às sete horas da noite, reúne-se
uma turma de homens, que rezam, enrolados em lençóis, de
porta em porta. Onde param, traçam uma cruz. E rezam alto,
cantado, o ofício dos mortos e a Excelência, que é uma reza tão
forte, e de tanto respeito, que só se pode escutar em pé, ou de
joelhos. É a recomenda das almas.

119
Tinham se casado em janeiro, numa tarde clara de sol.
Ficavam horas inteiras, como duas crianças, conversando bo-
bagens:
— Eu gosto de beber água de moringa nova — dizia
Curiango.
— E eu de beber em caneca de barro.
— Eu também. Gosto de beber água da chuva, que cai do
telhado.
— Que mais?
— Gosto de cheiro de terra molhada, quando começa a
chover...
— Que mais?
—... de cheiro de fósforo, na hora que queima. De cheiro
de gasolina...
— Que mais?
— Espere um pouco! De... Ora! De tanta coisa!...
— De mim?
— De você...

No sábado de Aleluia, fizeram um Judas. Curiango ajudou


a costurar. Zé da Lucinda trouxe serragem da casa do Seu
Candinho. Antônio Olímpio deu um paletó velho. Arranjaram
colete, calças pretas, um chapéu. João Neto, que tem jeito para
a coisa, desenhou uma cara. Depois de tudo pronto, pegaram o
calunga, botaram estendido na estrada do Limoeiro, bem depois
da curva, com o chapéu caído no chão, as pernas espichadas e
um guarda-chuva velho, aberto, tapando a cabeça.
O Pais veio com o caminhão cheio de cana. Virou a curva
e, quando deu, de repente, com aquele homem estendido, tentou
frear o caminhão carregado, não pôde, torceu a direção, com
força, e o para-lama foi se achatar contra o barranco. Saltou do
carro e olhou o calunga:

120
— Bêbado! — gritou nervoso. — Maldito bêbado! Por que
não foste cozinhar a camoeca no meio do inferno?
Mas, quando viu que era um judas, aí foi um destempero.
Gritou palavrões descabelados, cada qual pior que o outro, até
ficar rouco.
E depois:
— Se deito as mãos ao filho de uma cadela que fez isso,
meto-lhe seis balas no bucho...
Puxou o revólver e: pam, pam... descarregou todos os tiros
no barranco. Os homens que estavam lá em cima, esperando a
hora de dar risada, foram saindo um atrás do outro,
agachadinhos, pelo meio do mato; deixaram o português ber-
rando nome feio, sozinho na estrada.

Parece que essas coisas não têm nada que ver com o caso.
Têm sim. Servem para mostrar como o Joca ficou diferente,
depois.
Quando os ataques pegaram a amiudar, deu de ficar ca-
lado, horas e horas. Não conversava mais, no larguinho do
escritório, ele que, de primeiro, não saía de lá, depois da tarefa,
contando uma prosa danada. Em casa também deixou de falar.
Ficava perto da janela, olhando para longe.
Daquele lado fica Juruna, no Itaparica, e, daqui lá, é mais
de cem vezes a distância de Olhos D’Água a Maria da Fé.

Quando São João chegou, e houve festa na Estiva, Joca


tinha quase esquecido o caso da Cecília. A lembrança vinha de
vez em quando, como acesso de febre intermitente. “Eu sou
água quieta do ribeirão. Às vezes, vem esta lembrança, como
pito de saci, e bate na água.”
Acenderam um fogueirão! Cada toro assim! E ajuntou de
caipira, contando história, em volta. No terreiro de cimento,
onde malhavam feijão, fizeram a roda de cana verde. E...

121
Mas, contar a festa para quê, moço? Toda a gente está suando
de saber como são as festas de São João por aqui. Antes do
desafio, Quinzinho chegou, de machete enfeitado, embaixo do
braço. “B’as noites, minha gente!” Sentou-se numa pilha de
lenha e pegou a dedilhar à toa, na violinha:
Eu plantei o roxo n’água
E o azul na beiradinha.
Quem quiser fique com o roxo,
Que o azul é planta minha.
Sem-vergonha! Aquilo era com a Cecília. Joca olhou bem
— primeiro para ele, depois para ela. Cecília estava rindo, com
as amigas, nem olhou do lado do violeiro. Quinzinho olhava o
chão e nem parecia saber da existência dela. Cachorrada! Joca
se remordia de raiva. Tinha a impressão de ser cúmplice deles,
porque estava ajudando a esconder aquilo. “Eu ainda conto e
acabo com isso...” Curiango veio, contente:
— Venha cá, Joca! Vão subir no pau de sebo! Venha!
Venha ver!
Deixou-se arrastar. (Não tenho nada com o peixe. Sebo pra
eles! Não vou me meter em embrulho...) O pessoal ria e gritava:
— Aí! Chico! Aí! Mais um pouco...
Chico foi com dificuldade até o meio e escorregou.
— Caiu, porquera! Agora o João! Aí, João! Segura, ho-
mem!
João veio ao chão, embaixo de vaia.
— Zé! Venha o Zé da Lucinda! É uma pelega de 10. Tire
o chapéu! Leve areia nos bolsos!
Zé subiu um pouco mais do que os outros.
— Aí, batuta!...
Ele escorregou com tanta força e tanta pressa, que em vez
de cair em pé, caiu sentado. Chegaram a chorar de rir.

122
Joca mediu as distâncias. Cada um que subia, subia um
pouquinho mais. (Os primeiros vão carregando o sebo na roupa)
— É... essa vida... — resmungou — engana mais a gente
do que pau de sebo...
Estava com o sentido no beijo que a Cecília deu no Quim,
lá nas vertentes. Virou-se para o João Rosa, que também tinha
ficado de nariz para o ar:
— A questão é saber esperar. Depois que não tiver mais
sebo, qualquer um sobe.
— É... Vamos beber um gole de quentão?

Da fogueira de São João tinha ficado só um brasido, ver-


melhando dentro da noite preta, feito goela de onça.

Na véspera, o Joca tinha ido ao mutirão do Zeca Duarte,


na Estiva, e ficou lá na função. Veja como são as coisas. Tantos
dias para acontecer de Curiango fazer a festa, e no fim foi bem
na noite que o marido não estava em casa!
Tarde da noite. Saninha veio às carreiras, com o xale
preto enrolado na cabeça. Desceu o caminho, correndo, o mais
que podia, sem olhar para o lado da Santa Cruz. Creio em
Deus padre, todo poderoso, criador do céu e da terra... Ave,
Maria! Cruz credo! Não vá me aparecer alguma assombração.
Como coisa que assombração aparece para quem sai de casa,
altas horas, por necessidade!... e em Jesus Cristo!... (Um
corujão passou voando rente com o rosto dela.) Nossa Senhora!
Diacho de coruja! (Foi tremendo de medo até a casa de
Nhá Chica Salvador.) O dianho da velha não tinha um
lugar mais longe para morar?... sob o poder de Pôncio
Pilatos... Que frio! (Agasalhou bem o xale em volta do pes-
coço e da cabeça.) Não é à toa que a gente fica com reumatismo
nest e tempo — ... desceu ao inferno, ao terceiro dia, ressur-

123
giu dos mortos, subiu aos céus, está sentado à mão direita de
Deus Padre... Nhá Chica! Nhá Chica!... de onde há de vir... Nhá
Chica!... a julgar os vivos e os mortos... (Bateu com força na
porta da casa.) NHÁ CHICA!

Não havia jeito. Nhá Chica veio até a cozinha.


— Acho que não é pra já.
Curiango estava gemendo no quarto. Saninha pegou a
rezar pra Nossa Senhora do Parto. Atiçou o fogo, sem parar de
rezar. Ajeitou as coisas. Mais de hora. Isso não tem propósito.
Não aguentou esperar. Foi de mansinho à porta do quarto e
perguntou:
— Nhá Chica?
— Ainda não.
A voz da velha parecia cansada, triste. Desanimada tam-
bém.
— Posso ajudar?
— Não adianta.
De repente tudo ficou escuro e distante. E dentro da es-
curidão havia ameaças que ela não entendeu. Que ela não
morra, Nossa Senhora. Vou levar uma fita, com a medida dela,
e deixo nos pés do santo cruzeiro. Nhá Chica chamou:
— Saninha!
— Pronto?
— Não. Tem uma roupa do Joca, aí, à mão?
— Já vou ver.
Fizeram Curiango se ajoelhar na cama. Estava que não
podia consigo. Puseram um paletó e um chapéu do Joca, na
cabeça e nas costas dela. É simpatia. E então ela rezou:
Valei-me, minha Santa Margarida!
Não estou prenha, nem parida.

124
Nhá Chica saiu, pé ante pé, dali a pouco, e deu com Sa-
ninha, parada, espiando, sem ver, para a porta. Botou a mão no
ombro dela, fez pressão e cochichou:
— Nossa Senhora deu volta.
Quando Joca pôs a mão no portãozinho verde, já escutou
um chorinho de criança. Alcançou a porta em dois pulos e
bateu, ansiado.
— Abre aqui, Saninha! Abre depressa!
Lá dentro veio a voz estremunhada da Saninha:
— Vai tirar o pai da forca? Vai?
“Eta velha de pachorra!”
— Abre, Saninha!
Entrou como ventania no quarto.
— Curiango!
Curiango, muito pálida, sorriu. Joca olhou enlevado a
isquinha de gente, toda embrulhada. Olhou a mulher. Olhou a
criança outra vez.
— Curiango...
E não acertou falar mais nada.
Saninha, que estava atrás dele, consentiu, meio rabugenta,
meio risonha:
— Quer pegar no filho, pegue.
— Posso?
— Uai, pode! Por que não há de poder?
Pegou a trouxinha e botou nos braços dele:
— Pegue aí, bocó! Ficou bobo com pouca coisa...

Muito, muito certo, ele nunca foi. Tinha comprado o


boizinho e o carro, com tanto sacrifício, e ia indo tão bem,
tocando a vida naquela toadinha de tirar areia e vender! Pois
não é que, no dia do batizado da filha, pegou o boizinho ma-
ringá e comeu? Comeu, com a mesma súcia do jogo de truco.
Fizeram uma farra louca. Primeiro o churrasco do boizinho,

125
malhado de preto e branco, tão bonito! acompanhado de ca-
chaça. Depois, uma mesa de doce de encher a boca d’água. No
outro dia foi pedir emprego na usina.
Nos começos era foguista, mas não se dava com aquilo
de ficar fechado o dia inteiro. Então trocou de lugar com o
Bebiano. Antes o Bebiano não tivesse trocado.

A morte não é castigo, e Deus que poupou o Joca, à toa


não foi. Alguma coisa ele tem para pagar, já que a praga caiu
mais nele do que nos outros.
Mas é melhor contar as coisas direito, sem pular para a
frente, senão não se entende.
O Joca foi ser tropeiro. É ver que andar na estrada, com
sol e com chuva, vencendo caminho bravo, tinha pegado nele
doença de andar. Ou não foi de andar na estrada. Isso de ser
andarengo já estava na massa do sangue. Na família dele tudo
é tropeiro.

E bem mais tarde, com o enfeitiçamento da Mãe de Ouro,


Joca pegou a andar, feito judeu errante.

Nesse ano fez frio, como nunca tinha feito antes. A geada
queimou o canavial e as usinas pararam. A Companhia fez de
tudo para remediar o desastre. Mandou replantar cana-rosa
no vale e cana-bambu no morro, para resistir à geada.
Não adiantou. A cana-bambu levou mais de ano para ficar
no ponto e dava pouco açúcar. É verdade que deu açúcar
mais doce, mas rendia pouco. Então cortavam as touceiras
para dar ao gado, que estava emagrecendo e parecia mais
poleiros de corvo, na invernada. Nas redondezas não ficou
canavial de pé. Nem bananeiras. Nem plantação de jeito
nenhum. No começo do frio, deram um impulso grande à fá-
brica de queijo, para compensar por esse lado os prejuízos.

126
As vacas davam pouco leite e, num dia só, a vaca mocha e duas
holandesas pariram crias mortas.
E começaram a acontecer coisas!... A mo’que um espírito
mau andava solto por aí.
Credo!

O primeiro foi o Santana. Caiu varado de bala, numa briga


feia que tiveram, pr’amor de gado que invadiu roça alheia. O
pessoal andava questionando por nada. Não vê que a pendenga
começou, já fazia tempinho, quando a vaca malhada do coronel
Carneiro varou a cerca de arame e andou comendo uns brotos
de cana do lado de cá, no canavial que está aparelhado com a
invernada. Espantaram a vaca com um galho seco e a encrenca
começou. O coronel gritou, para quem quisesse escutar, que
não admitia que ninguém maltratasse animal dele. O
administrador mandou falar que a primeira vaca que passasse
para cá ia para o corte. O coronel disse que podia até comer
com farinha. Que ficava de esmola para o dono da fazenda, que
“não havera de demorar a pedir de porta em porta”. O coronel
tem um topete em pé que não há o que abaixe, e foi um dia,
tirou os paus da cancela e deixou o gado entrar no canavial. E
falou, ainda por cima, que o primeiro que tocasse num animal
haveria de comer fogo. Não lhe digo nada. Os vaqueiros daqui
foram lá e tocaram o gado para a invernada desta fazenda. O
gado ficou preso mais de mês — o dono esbravejando, fulo de
ódio, do outro lado — e o administrador chegou a vender vaca
com a marca do coronel, só de ruim, para fazer desaforo. E foi
indo, foi indo, até que o velho amansou e mandou pedir as
vacas. Avisou que ia consertar a cancela; que ia mudar o gado
para outro pasto, para não ter mais dor de cabeça. Vai o
cabeçudo do administrador e disse que as vacas, onde esta-
vam, estavam bem. Que o coronel era o interessado e, se qui-

127
sesse, que aparecesse em pessoa para reclamar. Que nesta fa-
zenda de Olhos D’Água, com a graça de Deus, não havia ta-
refeiro, nem vaqueiro, nem agregado de nenhum filho da mãe
de coronel, pra tocar vaca que ele soltou em pasto alheio porque
quis. Foi o mesmo que atiçar fogo em paiol de pólvora. O velho
embrabeceu outra vez. A peonada do lado de lá se assanhou
feito formigueiro de formiga ruiva, mexido, e veio acesa de
raiva, a cavalo, levantando poeira no estradão. O negócio
pretejou. Falaram ao administrador que o melhor era abrir a
porteira e deixar o gado ir-se embora, antes que eles chegassem,
porque era capaz de acontecer alguma coisa. Ele não se abalou.
Olhou com aqueles óculos fuzilando e teimou: “Não deixo. Ele
que venha buscar o que é dele. E que venha com bons modos,
senão...”. Quem é que não estava vendo que tudo isso daria em
água de barrela? Pra mim aquela teima já era mandada. A praga
estava começando a cair.
Moço! Foi um bate-boca desgraçado. O administrador
teimava: “Não entrego, não tem perigo. Eu só entrego para o
coronel. Assim como ele teve mão para abrir a cancela, tivesse
mão para arranjar um laço e vir aqui. Não fui buscar o gado
dele. Fez o que fez por livre vontade, agora aguente. Entrego só
para ele. Que venha aqui, para encontrar homem pela frente”.
Os vaqueiros gritavam. Vieram os empregados e gritavam.
Fizeram rolo. Os cavalos corcovearam. E, de repente, sem mais
nem menos, os vaqueiros do coronel pegaram a dar tiro. Então
o Santana, que ainda não sabia do caso, apareceu com uma
alavanca na mão.
Eu vi, quando a morte chegou. Vi na cara do Santana.
Tinha escutado os tiros, tinha visto facão luzindo, tinha sen-
tido a raiva que agarrou aquela gente, feito uma tentação do
demo. Mas nada disso era a morte. A magra eu vi na cara do
Santana. Quando ele se ajoelhou, ela estava chegando. Ele
foi largando o ferro, a mo’que alguém estivesse abrindo de-

128
vagarinho os dedos dele. Quando bateu os joelhos no chão, a
alavanca escapuliu de uma vez e fez um barulho seco no chão:
téc. Estava em mangas de camisa e um pontinho vermelho foi
crescendo, peito abaixo. Então o olhar se apagou e vidrou,
fincado na briga.
Contando não se acredita. Não levou três meses e o co-
ronel já estava de cama e mesa com o administrador. Era visita
pra lá e presente pra cá. Essa gente o que não tem é vergonha
na cara.

129
XII

— Que é que você tem, Joca?


— Nada.
Vicente Rosa olhou com atenção o rosto sério do amigo.
— O que é?
— Nada. Não é nada. Não tenho nada. Não me atormente.
— Nem pra mim, que sou seu amigo? Com efeito!
Então Joca se abriu:
— Não é nada do que você pensa. O mal que eu sinto está
aqui. Aqui e aqui — bateu no peito e na cabeça. — E no corpo
inteiro, misturado com o sangue. O mal é um desapego. Não
posso mais sentir nem pensar. Tudo se desmancha dentro de
mim, e eu não sinto; feito mardelazento, que perde os dedos, e
está apodrecendo em vida e não sente nada. Aqui dentro, está
vendo? Aqui dentro. Eu quero sentir tudo o que sentia: raiva,
ciúme, desespero, ter vontade de brigar, como antigamente, e
não tenho nada. Curiango vai e vem e não me importo. Só às
vezes, sou um pouco do que era. Quando estou falando, meu
sentido foge. Ela está me chamando, e qualquer dia, vou atrás
dela por aí.
— De quem?
— Da Mãe de Ouro.
No começo, Vicente pensou que era resto de bebedeira.
Mas o homem estava são do juízo e repetia:
— Eu vi. Eu olhei bem, com estes olhos que a terra há

130
de comer. Vi, por tudo quanto é mais sagrado, a Mãe de Ouro.
— Que jeito ela é?
— É alta, com jeito de santa, vestida de amarelo e com os
olhos fuzilando. Tem uma coisa na mão.
— Que coisa?
— Não sei. Parece uma vela, mas é mais larga em cima.

Curiango soube logo depois, numa noite medonha de


chuvarada e vento forte. Estavam sozinhos na casinha da ave-
nida. A chuva barulhando, o vento sacudindo as árvores, e o
calor sufocante, tudo aquilo buliu com ele.
— Quem é que está assobiando?
— Ninguém.
— Quem é?
— É o vento.
— É o vento?
— É.
— Estão batendo. (Prestou atenção, com os olhos acesos
fincados na porta.)
— É a chuva.
— Vá ver!
— É a chuva.
— Vá ver! VÁ VER!
— Eu vou.
Curiango engoliu em seco e foi espiar pela porta. A noite
estava danada de feia. Uma escuridão! um riscar de coriscos!
uma ventania! e a chuva, chuááá... Espiou um minuto. “Será
que ele está louco, meu Deus? Será...”
— Curiango!
— Já vou.
— Quem é?
— Ninguém.

131
— Eu vou ver com quem você está falando. Estão que-
rendo me matar? Estão? Você e esse outro aí. Você e a maldita
de sua prima são de uma laia só.
— Não é ninguém...
Relanceou os olhos para fora, antes de voltar, mas perdeu
a coragem de sair. Voltou devagar.
— Era a chuva...
A exaltação de Joca tinha passado e ele estava triste e
inquieto, como um cachorro doente.
— Sente aqui perto de mim. Tenho medo. É o temporal
que está bulindo comigo. Venha. Onde você está?
— Aqui, Joca. Estou perto de você.
As mãos dele se bateram no ar, às tontas, como corujas
voando de dia. Esbarraram no rosto dela e desceram para as
mãos.
— Curiango!
Chamou baixinho. Mas havia desespero na voz dele, um
desespero concentrado, fundo, tão grande, como de quem está
se afundando e agarra a primeira coisa que aparece. Estava
pedindo socorro, sem saber.
— Curiango!
Curiango, com um nó na garganta, não respondeu. Pren-
deu com força as mãos dele.
— Estou aqui, Joca — falou dali a pouco.
— Não deixe ela entrar!
— Ela quem?
— Não deixe ela entrar...
— Não deixo. Fique quieto.
“Os olhos dele estavam tão esquisitos que tive vontade de
chorar. Como olhos de defunto. Tinham alguma coisa que
obrigava a gente a lembrar que eram vivos. Como olhos de
cego, desses cegos de gota serena. Limpos, escuros, fundos,
mas vazios, vazios, vazios...”
Demorou a sair do estupor. E quando voltou, foi como

132
quem volta da morte: com jeito de quem vem de longe e não
conhece o lugar aonde chegou. Suspirou. Olhou dos lados.
— Faz tempo que você está aí?
Curiango engoliu e respondeu:
— Não. Cheguei agorinha mesmo.
A chuva estava passando...

O pior é que foi sem motivo. Ou foi do calor. O fogo subia


em labaredas, avermelhando tudo. Os homens, sem camisa e
com as calças arregaçadas, suavam em bica. Nas paredes,
dançava a sombra deles. O barulho das máquinas e o ronco do
vapor não deixavam ouvir nada. Joca abriu a boca, como quem
estava gritando. Luís Rosa, do outro lado das turbinas, puxando
alavancas pesadas, riu para ele e acenou.
— Quente, não?
Joca armou um pulo, de onde estava, um pulo grande e ágil
de onça raivosa. Pegou uma acha de lenha, meio queimada, da
fornalha e avançou. Luís Rosa gritou por socorro, mas ninguém
ouvia. Só se ouvia o barulho da maquinaria rodando e das
caldeiras de vapor, com ronco surdo de bicho do mato,
enraivecido. Joca malhou com vontade. Fez o Luís Rosa dançar
miudinho, com o pau de lenha espirrando faísca. Quando deram
pela coisa e correram para onde estavam, deixou Luís estendido
no chão, desacordado, e correu em zigue-zague, por trás das
máquinas. Umas dez vezes, escapou de ser laçado pelas
correias. Por outras tantas, escapou de cair nas turbinas em
movimento, e nos tachos de melado fervendo. Por fim, alcançou
a escada, deu uns pulos, escancarou a porta e viu-se ao ar livre.
O céu ainda estava escuro. Olhou estonteado de um lado e de
outro e enveredou, ao acaso, por um caminho. Quando os outros
saíram, logo atrás, já não viram mais nada.
— E agora?

133
— Cada um vai por um lado.
Saíram agachados, pelo mato. A qualquer barulhinho,
paravam, atentos, como cachorro que fareja caça arisca. Seu
Juca Pereira foi pela estrada velha; Vicente Rosa e mais dois,
pela estrada nova da Vila. Os outros se espalharam, à toa, pelo
mato. Vicente encontrou com o Zé da Lucinda, que voltava de
algum fandango, pontilhando a viola:
Sexta-feira faz um ano,
Pois é
Que meu coração fechou,
Pois é
Quem morava dentro dele,
Pois é
Tirou a chave e carregou.
Assim que é.
— Você não viu o Joca passar por aqui?
— Vi.
— Pra que lado?
— Pra lá. Como quem vai pra Vila.
— Faz tempo?
— Tempinho já.
— Por que você não segurou ele aqui?
— Eu?! Vocês são loucos. O homem estava com um pau
de lenha cheio de fogo, deste tamanho, na mão. Nem falei com
ele. E ia correndo. O que aconteceu?
Não responderam. Vicente Rosa já tinha ido pela estrada e
sumido na escuridão.
— Ê! O que foi?
O eco respondeu, lá adiante:
— Êeeeeeeeeê oi?...

134
Só no outro dia encontraram o Joca, sem sentido, no ca-
tingueiro que começa ali, ao pé do morro do Sabão.

Vicente Rosa andou num corre-corre, pra baixo e pra cima.


Falou com Seu Juca Pereira, chefe das máquinas.
— Eu não posso fazer nada. Aqui dentro, sou empregado,
como você, e como outro qualquer.
Falou com o chefe da seção. Falou com o gerente. Falou
com o administrador.
— O homem é doente. Ele não estava em si quando fez o
que fez.
— Está bem. Nós não daremos queixa dele na polícia.
Mais não podemos fazer. Na usina não pode ficar.
— Então vai ser despedido por uma coisa de que não tem
culpa? Por que é que o Dr. Amadeu não pode ir ver como ele
está? Ele está na cama. Está que nem um defunto... O Dr.
Amadeu não pode ir?
Aconselharam o Vicente:
— Largue mão disso. Você acaba se malquerendo com os
homens, aqui dentro, por causa de um estranho.
Zé da Lucinda se intrometeu:
— Eu me admiro muito: você, sendo parente do Luís, ir do
lado do Joca...
— Ninguém tem nada com isso. Parentes são os dentes...
Assim mesmo ainda se estragam.
E foi falar outra vez com os homens.

Mas quando conseguiu ordem do gerente, não encontrou o


Dr. Amadeu. E quando encontrou o Dr. Amadeu e foram juntos
à casa do Joca, ele já tinha voltado do ataque. Estava picando
fumo, sentando num banco, no quintal.
— Ora viva! Então o nosso doente já está de pé? Sarou?
— Não era nada. Partes do Vicente.

135
— Foi um ataque que ele teve, doutor.
— Ah! Foi? Ataque, você disse?
— Não foi nada. Já passou.
— Foi sim, doutor. Ele não gosta que fale, mas foi.
— Está bem. Vá ao consultório, amanhã, às duas horas.
Estarei desocupado. Não falte! É para fazer o meu relatório para
a usina.

— Então foi um ataque?


— Eu...
— Foi? Pode falar. Não tenha medo. Isso não é nada. Com
o tempo sara. Já teve muitas vezes?
— Algumas.
— Quantas?
— Umas cinco ou seis.
— Dorme bem?
— Às vezes, durmo. Às vezes, acordo no meio da noite,
sufocado.
— Ninguém mais tem esses ataques na sua família?
— Ninguém.
O medo apareceu nos olhos dele.
— Não é nada. Isto que eu estou perguntando é só para
escrever aqui na ficha.
Sacudiu a cinza do cigarro e continuou escrevendo.
— Ainda tem pais? Só mãe? De que morreu seu pai? De
repente? Não sabe do que foi? Sabe se bebia? Um pouco? Era
doente? Tem irmãos? Quantos vivos? Quantos mortos? De que
morreram? Sua mãe é sadia? Teve abortos? Dois? Sabe por
quê? Não sabe? Você esteve doente, antes dos ataques?
Quando? O que teve? Tem sífilis? Não sabe? Dor de cabeça?
Alguma coisa na vista? Fica nervoso à toa? Tem filhos? Vivos?
Sadios? O que come? Quanto ganha? Quantos anos tem? Bebe?

136
— Ah! Bebe!
O Dr. Amadeu largou a caneta e falou sério com ele:
— Não pode beber mais, se quiser sarar. Nem uma gota.
— Mas eu não sou viciado, doutor. Bebo só em festa, e lá
num sábado ou outro.
— Não pode beber. Nem uma gota. Senão não sara. Fuma?
É melhor não fumar muito. Fumo de rolo é forte. Faz mal. Por
esse lado, nada.
Riscou a ficha em cruz e tornou a perguntar:
— Nunca levou tombo grande, de machucar? Nunca levou
batida forte na cabeça? Pedrada? Cacetada? Nenhuma pancada
de fazer perder o sentido? Nunca? Nunca mesmo? Faça um
esforço para se lembrar. Nunca?
Ficou pensativo, mordendo a ponta da caneta. O Joca
olhou para ele e:
— Doutor, será que não há perigo, será que... será que...
— Que é?
Joca falou tudo de uma vez:
— Tenho medo de ficar louco. Eu ainda fico louco...
— Louco, por quê? — O Dr. Amadeu virou-se na cadeira,
interessado.
— É que... É o meu sentido que não anda bom. Faço as
coisas, sem saber o que estou fazendo. E depois esqueço...
— Hum!
Joca lembrou-se de repente:
— É verdade! Estava esquecendo de contar: eu sempre sei
quando vai me dar ataque.
— Como sabe?
— A Mãe de Ouro me aparece e eu sei.
— A Mãe de Ouro?!
— Então? Não vê que a Mãe de Ouro me persegue há
muito tempo, não é? Foi desde uma vez que abusei do poder
dela, madrugadinha na capina. Eu trabalhava na plantação e
pegava tarefa às quatro horas, isso muito tempo antes de

137
comprar o maringá. Maringá era o meu boizinho de carrear. A
primeira vez que me deu aquilo foi na festa do casamento da
Cecília, com o Antônio Olímpio, tropeiro. O senhor não
conhece. Como ia dizendo, a primeira vez...
O Dr. Amadeu foi escutando com atenção:
— Interessante!

... quando voltei a mim, à noitinha, escorrendo sangue de


arranhões, nos braços, nas pernas, as roupas em frangalhos, o
rosto num estado desgraçado, — eu não podia ver, na-
turalmente, mas passei os dedos e senti as arranhaduras —
ardendo, é ver que tinham despejado brasa viva nele, quando
voltei a mim, estava caído numa touceira brava de rosa maldita.
Na hora de deitar, tomei um trago bom de cachaça com
umburana. Bebi por beber. Eu bem sabia que não adiantava...
Daí pra cá...
— Que é que você tinha começado a falar: que esquece as
coisas...?
— Não é bem isso. É o meu sentido que, em certa hora,
foge. E estou ficando...
— Perturbado?
— É isso. Meio perturbado. E...
— Pode falar.
— Acho que não tem importância.
— Fale. Tudo tem importância.
— Eu não me incomodo mais com as coisas. Nem com
Curiango.
— Com quem?
— Com a minha mulher, doutor. Curiango é o apelido
dela. E tem outra coisa que eu queria falar.
— Fale.
Joca abaixou a voz e olhou dos lados.
— Eu...
— Não tenha medo!

138
— Eu...
O medo reapareceu nos olhos dele, um pavor de morte do
que estava acontecendo.
— Doutor, eu não sabia que tinha batido no Luís Rosa.

Chapéu atirado para trás, as mãos nos bolsos, naquele jeito


folgado de sempre, o Dr. Amadeu entrou no escritório da usina,
para entregar o relatório.
— Está aí. Este homem não serve para boca de fogo. Já
estou fazendo o tratamento dele. Precisa de serviço ao ar livre.
— Não há lugar na apanha, nem na tropa.
— Eu disse que ele não serve para boca de fogo. Não
aguenta.
E falou mais uma coisa que eu nunca soube o que fosse:
que o Joca era um fronteiriço. Que se fosse mandado embora
era um caso perdido.
— É impossível fazê-lo passar por qualquer espécie que
seja de trauma. Ele já sabe o que fez, mas não tem culpa. Vocês
resolvam.
— Mas tem que ser despedido.
— Não respondo por ele, se for despedido. Ele não teve
culpa.
— Há perigo de outra crise?
— Há, se ficar aqui dentro.
— Mas...
— Estou avisando. Não assumo responsabilidades. O
homem tem que ficar empregado e não pode — estão ouvindo?
— não pode ficar na boca do fogo. Não aguenta boca de fogo.
Estão avisados.
— E o que vamos fazer?
— Não sei. Isso não é da minha conta. O que é da minha
conta é o tratamento.

139
Mastigou a ponta do cigarro:
— Até logo.
— Mas, doutor...
— Não é da minha conta, já falei. Vocês querem matar o
homem, matem. Não é comigo.
E saiu.

Mariquinha Machado pegou a taramelar:


— Vá ver que ele não contou do coice de mula que levou
na cabeça.
— Ué! Ele levou um coice de mula?
— Então? Era assinzinho e tinha ido brincar no campo,
para lá da cerca de arame farpado.
Melhor é não dar crédito ao que ela contou. Como é que
saiu com isso depois que o Dr. Amadeu perguntou aquelas
coisas?
Mariquinha Machado é uma velha faladeira.
Não gostava do Joca, quando era pequeno, e tinha razão.
Olhe que ele foi um moleque da pá virada. Quando tinha seus
dez anos e ainda não servia para serviço nenhum, pegava um
estilingue e ficava matando passarinho aí pelo mato. Um dia
varou a cerca da casa de Siá Mariquinha e estava roubando
laranja. A velha viu e saiu feito uma caninana, atrás dele:
— Eu conto pra teu pai, seu gatuninho!
— Conte.
— Quero ver ele te dar uma sova de precisar salmoura.
— Pode contar. Meu pai me bate mas não me come. Fei-
ticeira!
— Já dei de mamar pra tu, seu coisiquinha sem-vergonha.
— Por isso não presto. Mamei ruindade no seu leite.
— Me respeite, ’tá ’uvindo?

140
E tudo acabou bem. Até o Luís Rosa perdoou. Mas olhe
que foi um custo. Estava na cama, queimado e machucado e
gemia que dava dó. Mesmo assim, se falava alguma coisa, era:
— Já está fazendo semana que estou no fundo desta cama,
mas aquele desgraçado não perde por esperar. De’estar. Ele me
paga.
Quininha perguntava:
— Quer um caldinho, Luís?
— Quero.
Levantava-se, firmando-se nos cotovelos. Gemia:
— Desgraçado! De’estar. Ele me paga.
Outras vezes ficava quieto um tempão, olhando para cima.
De repente, chamava:
— Quininha!
— Que é?
— Dê um pulinho à casa de Seu Pedro e traga meu tira-
prosa que deixei lá.
— Mas...
— Não tem mais, nem menos. Vá buscar — gemia. —
Desgraçado!
— Esqueça isso, Luís!
— Esqueço é uma bala no pelego dele. Desgraçado!
— Luís...
— Não se intrometa. Isso não é coisa para mulher.
— Minha Virgem Maria!

Vicente Rosa chegou à noite:


— B’as noites, pessoal.
— B’as noites lhe dê Deus.
— Como vai, Quininha?
— Assim, assim...
Fez um movimento com as mãos.
— O Luís?
— Vai indo.

141
Vicente entrou no quarto e encostou a porta:
— Não repare, Quininha.
— Podem estar à vontade.
Curiosa, passou para lá e para cá, procurando pretexto para
ficar ali por perto. As vozes lá dentro eram só um zum-zum,
feito conversa de negro velho. Não se entendia nada. Escutou
quando o marido gritou: “Eu sei que ele não sabia... Eu sei... Eu
sei! Está se fazendo de besta, para comer em bornal cheio”.
Tinha a voz irônica e áspera dos maus dias. Voltou a sussurrar.
Não demorou, perdeu a calma, de novo: “Ai, ai, ai, as minhas
encomendas! Isso eu não faço!”. Ouviu a voz grossa do Vicente,
mas tão baixo, tão baixo, que não conseguia entender o que era.
Dali a pouco, Vicente abriu a porta do quarto e gritou
alegremente:
— Quininha! Como é!? Não sai um café, aí?
— Sai. A água já está fervendo.
Bateu na mão do Luís.
— Esqueça a quezila velha. Assim Deus o livre do mal que
pegou o coitado!
— O que dói na alma é não poder quebrar a cara dele. Vão
pensar que é medo.
— Que nada! Toda a gente sabe que você é valente. Deixe
disso!
— Eu deixo... eu deixo... — virou-se para o canto.
Vicente prometeu:
— Eu apareço qualquer noite dessas.
— Apareça — a voz dele estava embargada e Vicente
notou.
— Não fique assim, Luís.
Não respondeu. Ficou de cara virada, até o Vicente ir-se
embora. Não afirmo que chorou, porque não vi. Estava com
o rosto do lado da parede e a casa não era bem iluminada:
havia uma lâmpada de 25 velas no quarto e uma ainda mais
fraca na cozinha. Não vi. Mas, pra mim, ele estava choran-

142
do. Não, que é duro, para um homem de vergonha, apanhar e
ficar quieto.

E, quando ele sarou, pegaram a falar coisas. Que foi briga.


— Nós não brigamos — Luís Rosa ficava carrancudo. —
Não brigamos. Até estávamos amigos. Não sei o que foi.
Alguma loucura que deu nele...
Em conversa com o Joca, insinuavam:
— Você já não gostava mesmo do Luís Rosa...
— Não é que eu não gostasse, nem que deixasse de gostar.
A questão é que eu não queria bater nele. Não tinha motivo pra
isso, tá’í — declarava com sinceridade.
Pensava um pouco antes de acabar:
— Foi um acesso que eu tive.
Sem se importar com o que eles diziam, o pessoal co-
mentava que a briga tinha sido feia:
— Eles tinham rixa velha, por causa do malvado truco.
— O Luís anda muito quieto, nem parte na polícia quis
dar... Anda armando alguma... Na certa tocaia o Joca e liquida
com ele qualquer dia.

Quem é que pode com a língua do povo?

Os maiorais da Companhia, não sei o que deu neles, re-


solveram fazer o que o Dr. Amadeu falou. Quando é destino,
ninguém pode fugir. O Joca podia ficar na usina e também
podia ir para a rua. Aconteceu o que tinha que acontecer. O
que estava marcado para o Bebiano, ninguém ia passar no
seu lugar. E foi então o encarregado das máquinas e chamou o
Bebiano e falou com ele: que o Joca, pr’amor da doença
esquisita que tinha, não podia trabalhar no calor do fogo; e

143
não era só o calor do fogo, era ficar fechado ali, com o baru-
lhão das máquinas, buzinando nos ouvidos. Enfim, se não fosse
prejuízo pra ele, Bebiano, podiam fazer uma troca. O Joca ia
para a tropa, conduzir burrada na serra e o Bebiano ficava
trabalhando de foguista, nas máquinas da usina. De’ estar que é
um serviço duro, pior do que o da fornalha, carregar e
descarregar jacá; a gente apanha chuva, apanha sol e daqui lá
no canavial da serra é uma lonjura desgraçada, para fazer a pé,
quatro, cinco viagens no dia, com a tropa. O senhor pense bem,
e, de tarde, passe por aqui pelo escritório, para me dar a
resposta. Até logo.
O Bebiano assuntou, assuntou. Na hora do almoço, falou
com a mulher. A Maria, nem bem chegou, com a marmita de
comida, percebeu que havia coisa.
— Que foi?
Ele contou a história inteira, sentado nos dormentes, do
lado de fora da usina, comendo com a colher o feijão mula-
tinho, amassado com angu, quirerinha cozida, carne de porco e
couve picada.
— O que qu’eu faço, Maria?
— Eu é que sei?
— Dê um palpite.
— Você é quem sabe. Não digo nada. De repente não dá
certo e você vem com parte. Que se não fosse escutar conversa
de mulher... Não. Eu lavo as minhas mãos. Já chega o negócio
do Zé da Lucinda. Você é quem sabe.
Tapou a marmita e levantou-se do dormente. Bebiano
reparou, por reparar, olhando a sombra:
— Quase meio-dia.
Depois falou:
— Já ando enjoado de carne de porco e de couve. Falou à
toa. O pensamento dele estava longe...
Bebiano calculou as vantagens da proposta, pensou, re-
pensou, e acabou achando que pra ele era melhor. Sem con-

144
tar que ia ajudar um amigo. E o gerente havia de ficar satisfeito
com o acordo. Esta ideia pesou mais do que as outras e ele
resolveu de uma vez. Troco, pronto, e está acabado. Se não
gostar, dou um jeito. Assim como assim, até é bom pra variar.
Passou, de tarde, pelo escritório, e assinou, sem saber, a
sentença dele.

145
XIII

Vicente passou pela casinha e falou, enfiando a cabeça


para dentro da porta:
— Quer tomar café, vá lá em casa, Choquinha.
— Deus lhe pague.
— Amém.
Espiou, meio curioso, para o lugar de onde ela respondeu.
— Tudo isso é frio?
Choquinha estava sentada na taipa. O fogão de lá tem uma
taipa dessa idade. Largou a caneca de folha em cima da chapa.
— Eu não vou lá, não senhor. Saninha me deu café.
Vicente voltou para a estrada.
— Coitada!
— Coitada?! Tomou ensino. Noutra ela não torna.
— Não diga isso, Seu Juca, que até é pecado.
Tomou ensino... Besteira maior do que essa não pode
haver. Sinhá nunca mais voltará ao que era antes. Como é que
ela há de fazer o que fazia, se as coisas só acontecem uma vez?

O que foi feito dele, quem? Do moço do Limoeiro? Dele


nunca mais ninguém soube. Ninguém! Que não teve bom
fim, não teve. Choro de gente enganada, gente de boa-fé, que
caiu no logro, chama atraso. O que a água deu, a água leva.

146
Não pode ser que não lhe tenha acontecido nada. O inferno é
aqui mesmo, moço. Quem faz a Deus, paga ao Diabo. Quem
rouba é roubado. Quem fica devendo, sofre calote de outro.
Ninguém faça que não pague.
Essa é a lei.
E quanto não chorou essa pobre, antes de ser o trapo de
gente que é...

Choquinha é Sinhá? Não é. Sinhá era a outra. Choquinha


FOI Sinhá.

Já viu como lagarta vira borboleta? Elas são a mesma


coisa, e ao mesmo tempo não são. Cada uma é uma.
Sinhá andou o caminho de diante para trás. Foi a borboleta
que virou lagarta. É por isso que eu digo: ela não veio mais a
Olhos D’Água, nem em corpo, nem em espírito, nem em
pensamento. O corpo não é o dela. É duma pobre velha
pedideira de esmola. Ela era bonitona, inteligente, orgulhosa.
Quebrava, mas não vergava. A Choca já é vergada e não en-
direita mais. Pode o povo dizer que as duas são uma pessoa só.
São mesmo. Mas esta Choquinha não é aquela Sinhá.
Uma coisa se pode escrever: se ela tivesse uma isca assim
de juízo, se se lembrasse isto que fosse do tempo dela aqui, se
ainda fosse uma ponta de unha da mulher que era, não voltaria
mais. Mas a Choca ficou abobada de uma vez e não se lembra.
Nem era para menos. Cair muito de riba, machuca. Quanto mais
alto é o pau, mais bonito é o tombo.
Não sei por que veio. Com certeza porque aqui é a que-
rência dela e isso não se esquece. Mais cedo, ou mais tarde,
procura-se o caminho da querência antiga.

147
Seu Pedro Gomes tinha um cachorro chamado Biguá.
Biguá a mo’que tinha alma. Entendia as coisas. Sentia. Era até
sem-vergonha, como certa gente. Se fazia alguma, vinha sem
jeito, de cabeça baixa, fazendo festinhas, lambendo, adulando.
Quando ia com Seu Pires às caçadas — havia caçadas de
arromba por aqui, antigamente. Mato tudo em volta, assim de
bicho de pelo: anta, capivara, veado, varas de caititus,
barulhando... quando ia com Seu Pires às caçadas, Seu Pedro
levava só o Biguá. E chegava. O Biguá acuava, o Biguá to-
caiava, o Biguá ficava na espera; sabia ir buscar a caça no meio
do mato, depois de morta, e vir com ela na boca, sem estragar e
sem morder. Ficava quieto, quando era preciso. Quando era
preciso, fazia um alarido dos diabos. Rastreava. Perseguia.
Cercava. Eta, cachorro bom! Só faltava falar e atirar.
Numa das caçadas, vararam o chapadão e andaram de
ponta a ponta todos os cerros que a gente vê azulando lá adiante.
Seu Pires foi com a cachorrada mateira. Seu Pedro só com o
Biguá. Levaram dias e dias passando cada pedaço de mato mal-
assombrado! Dormindo em cada furna! Vadeando cada
corredeira! Figa, rabudo! Eu não me meto nisso, nem que me
paguem.
Para encurtar o caso, na volta, quando já estavam a um dia
de viagem daqui, bateu uma tempestade, mas tempestade
daquelas de desnortear até bicho do mato. Perderam-se um do
outro, com a escuridão e com a chuva. Seu Pires chegou com a
cachorrada à fazenda, no outro dia. Seu Pedro Gomes, daí a dois
dias. E o Biguá? Ah! O Biguá não atinou com o caminho.
— Está morto. Impossível ele não encontrar o caminho!
Impossível! Um cachorro tão esperto!
Seu Pedro não se conformava de ficar sem ele. Saiu so-
zinho, mato adentro, seguindo, mais ou menos, a mesma
trilha. Bateu mato. Não adiantou. Nem sombra do Biguá.

148
Voltou triste, triste. Até parecia que tinha perdido um pa-
rente.
— Não se amofine, Seu Pedro! Cachorros há muitos...
— Como aquele? Ché!... Nem de encomenda!
— Arranja-se outro.
— Não quero outro. Coitado do Biguá!
— Vá ver que nem aconteceu nada. Qualquer hora apa-
rece. Na certa anda atrás de alguma caça.
— Qual! É capaz que esteja machucado! Se estivesse são,
vinha no meu rastro.
E veio. Não levou três dias, o Biguá apareceu, cego de
espinho de ouriço e arrastando um quarto. Estava descadeirado
de mordida de onça, ou de caititu, nem sei o que foi que avançou
nele, lá por onde andou. Nem sei como escapuliu. Sei que veio
de passinho, com os olhos remelando, a língua de fora. Veio
vindo, veio vindo... Nos fundos do quintal do dono, uivou e se
estendeu a fio comprido no chão. Seu Pedro voltou da tarefa
depois das quatro, sossegado, enrolando devagar o cigarrão
de palha, ida-e-volta. Chegou e entrou pelos fundos, como
é o costume dele. Nem bem passou a cerca de arame, já
enxergou o cachorro estendido. Ficou tão passado, que só pôde
gritar:
— Biguá!
Correu. Arranjou remédio. Nada adiantou. O Biguá já
estava morrendo. O homem ficou desesperado. Dava dó ver
aquele marmanjo, de barba na cara, chorando que nem
criança.
— Qu’é isso, Seu Pedro? Deixe disso! Não faça esse pe-
cado de chorar por causa de criação. Morreu, enterra.
E Seu Pedro, enxugando os olhos na manga da camisa:
— Eu sabia que, se ele estivesse vivo, vinha no meu rastro.

149
Por que o cachorro machucado, já cego de espinho de
ouriço, procurou o caminho de casa e foi morrer no terreiro? E
como é que achou o caminho?
A mesma coisa é o Zé Pedro. Conhece? O pessoal mais
velho daqui conhece o Zé Pedro desde assinzinho. Agora é um
trapo. Bebe de cair. Mas assim mesmo, bêbado, quando já não
enxerga, e já não sabe o que faz, nem onde está, vem direito
para casa. Só não chega quando as pernas não aguentam, não
porque se perca pelos atalhos. Muitos dizem que é o costume.
Que costume tinha Sinhá de fazer esses caminhos para vir
dar aqui?

Alguma coisa mostrou o caminho ao Biguá, cego. Alguma


coisa guia os perdidos para o caminho de casa. Assim como as
águas correm para baixo, a gente segue o caminho que tem que
seguir...

150
XIV

Vejam o que foi feito de Sinhá! Eu vou contar:

Esta história não é comprida nem bonita. Pelo contrário,


é a história mais feia que já ouvi falar na minha vida. Não vê
que eles — estou falando de Sinhá e do moço do Limoeiro
— pegaram o trem da Rede, esse que sai de Itajubá para
Cruzeiro às duas e vinte. Quase no meio certo do caminho,
pela Rede Mineira, fica Soledade. Conhece? Quem viaja por
esta linha tem que parar lá para fazer baldeação. Sinhá e o
moço chegaram dia velho em Soledade. Ele deixou Sinhá
sentada no banco da estação e foi tirar as passagens. Isso foi
o que disse. Que ia tirar as passagens. Pois não é que o exco-
mungado teve coragem de fazer o que fez? Não sei, não, mo-
ço, como certa gente tem coração para essas coisas. Sinhá fi-
cou esperando com paciência. Passou meia hora, uma hora,
hora e meia, e nada do malvado aparecer. Sinhá ficou aflita e
pegou a perguntar por ele. “Com certeza foi embora”, diziam.
“Todos os trens já partiram.” E ela protestava: “Não é capaz.
Ele não ia sem me levar. Ele me deixou aqui sentada e falou
que ia comprar passagem. ‘Você espere um pouco, Carolina,
que eu já venho.’ Quem sabe se aconteceu alguma coisa?”.
“Não, dona. Aqui não aconteceu nada. A estação não é
tão grande, qualquer coisa a gente já sabia.” O moço dos
bilhetes veio também. “Não é um moço alto, de chapéu
grande e roupa clara?” “É assim mesmo.” Sinhá que já esta-

151
va chorando olhou esperançada para ele. “Não tenho certeza,
mas eu vendi um bilhete só pr’esse homem.” Um outro
empregado, que andava por ali, à toa, entrou na conversa. “Já
sei. Um alto, de chapéu claro? Com duas malas grandes?” Sinhá
prendeu a respiração para escutar bem. “Ché! Esse um já foi que
zano. Eu vi quando ele embarcou.” “Para onde?” “Embarcou no
trem de Cruzeiro.” Um carregador falou: “Eu levei duas malas,
de um moço bem parecido, assim como esse que estão
procurando. E até ainda me lembro bem, porque ele ia com
pressa, desconfiado, olhando dos lados, a mo’que ia com medo.
Tinha outra maleta, que ele mesmo levou. Lá do trem, me deu
uma pelega de cinco. Pelo jeito, vi logo que não era boa peça.
Logo vi. Logo vi”. Não havia mais dúvidas. O moço do
Limoeiro tinha fugido. Levou todas as malas. Levou todo o
dinheiro. Deixou Sinhá com a triste roupa do corpo, sem ter para
onde ir, sem ter no que pegar. Sinhá chorou, chorou. O
conferente da estação teve dó dela. “Dona! Quer ir para a minha
casa?” Sinhá não dizia nada. Chorava, chorava. Ficou na
estação até noite fechada, com os olhos grudados na porta,
esperando. E, quando entrou bem no entendimento dela a
cachorrice do moço do Limoeiro, então ficou feito estuporada,
quieta, com os olhos arregalados de gente louca. O conferente
voltou. “De onde a senhora é? Nós arranjamos dinheiro para a
senhora voltar para a casa de algum parente.” “Não tenho
parentes. Não tenho ninguém. Só tinha ele. Não tenho para onde
ir.” “De onde a senhora veio?” Subiu um calor no rosto dela e
ela ficou quieta. “Ao menos conhecido a senhora deve ter no
lugar de onde veio.” “Não adianta. Não quero voltar.” Parou um
pouco e falou: “Tenho vergonha de voltar, depois do que
aconteceu. Prefiro trabalhar em terra estranha”. “Então vamos
para a minha casa, dona. A senhora descansa. Minha mulher
está sempre sozinha, mesmo; não temos criança. A senhora fica
lá até arranjar um jeito. Vamos!” Sinhá não respondeu nada.

152
Pegou o casaco e foi andando atrás dele. Sei dizer que não
adiantou cuidado com ela e não era para menos. Não comia. Não
dormia. Só chorava. Caiu doente e mandaram a coitadinha para
a Santa Casa. Quando saiu, saiu do jeito que está — meio
abobada. Andou por Soledade, uns tempos. A molecada, que
sabia do caso, gritava na rua, quando ela passava: Nhá
Baldeação! Nhá Baldeação não fazia conta e não xingava nome
feio, como o Peru, outro bobo, que andava por lá, e então,
largaram de mexer com ela. Andava de cá para lá. Ria à toa. De
vez em quando aparecia limpa e com roupa melhorzinha.
Alguém de bom coração, que cuidava dela. E foi indo, foi indo,
um dia sumiu. Ninguém soube para onde foi.
Não faz muito tempo, vieram uns parentes do Vicente
Rosa passear na casa dele, e trouxeram as crianças. Nem bem
saíram de casa, os moleques descobriram a Choca e vieram
contando, num alvoroço: “Sabe quem está aqui na fazenda?
Sabe, pai? A Nhá Baldeação. Está aqui”. E foi então que con-
taram a história do abandono dela, em Soledade. Vicente ficou
quieto; de dó, não contou a ninguém, só pra mim. Eu, ele e Deus
sabíamos, aqui em Olhos D’Agua, que a Choca é Sinhá. Mas os
parentes dele espalharam o caso e agora toda a gente sabe.
Notícia ruim tem asa.
Que é que ficou daquela Sinhá de cabeça em pé, que
mandou matar o baio, de raiva, e se indispôs com a filha, pra
amor do namoro com o filho do capataz?

Na semana passada, a Choca passou um dia inteiro sem


aparecer. Vicente Rosa, que tem muito dó dela, passou por
lá e deu com ela perto do fogão apagado, entanguida de frio.
Foi correndo chamar a Maria. Deitaram a pobre no catre
duro. Estenderam coberta. Trouxeram um travesseiro mais ma-

153
cio. Fizeram chá. A Choquinha não dava conta de nada. Vicente
saiu de carreira e foi procurar o Dr. Amadeu. Aquele Dr.
Amadeu, depois de velho ficou pachorrento, que não há nada
que o abale. “Aquilo é velhice”, falou. “Deixem a velha morrer
em paz.” E levou a vida enrolando o cigarro de palha, antes de
se mexer. Quando veio, foi só para dizer que o melhor era ir
aprontando a rede, que daquela a Choca não escapava.
Não sei se já morreu, moço. Não sei. Mas, quando olhei no
retrato de Sinhá Maria Carolina, ainda agorinha, aquele que está
pintado na parede, no meio do listrão com rosas, o meu corpo
inteiro se arrepiou.
Foi aviso.

Seu Pedro Gomes teima que foi coisa feita.


— Foi coisa feita, ninguém me tira. Pois cobra mordeu o
homem tanta vez e não aconteceu nada, como é que daquela ele
foi?
Bobagem do Seu Pedro. O Bugre foi porque chegou a hora,
e quando chega a hora, vem a vez que é de vez.

As coisas, quando têm que acontecer, têm muita força. O


Bugre não saía sem levar fumo: naquele dia, não tinha fumo
consigo. Não largava o podão; aconteceu que o podão bateu
numa pedra, na antevéspera, e ele não tinha arranjado outro
ainda. Acharam o podãozinho quebrado, atrás da porta do
rancho. Não se sabia o que ele ia fazer no Alegre. Mas, se ele
não falava, quem podia adivinhar o que andava procurando, pra
lá e pra cá, de Olhos D’Água para o Alegre e do Alegre para
Olhos D’Água?
Nasceu Bugre e acabou como um bugre. Morreu de um
jeito feio, que só de lembrar dá arrepio.
Acharam o corpo dele embaixo de uma árvore, escuro

154
e inchado, no caminho do Alegre e, perto, a cobra estraçalhada.
Não é dizer que estivesse em pedaços. Estava era toda aberta,
com a barriga arrebentada, desde dois palmos acima do rabo,
até a cabeça. Pelo meio do corpo se via o sinal fundo dos dedos
do Bugre na carne amassada. Enfiados nas unhas e na boca, o
homem ainda tinha lanhos de carne da malvada peçonhenta. Era
um urutu, preto feito um pecado, com a malha estrelando a
testa.
Se foi brabeza? O Bugre era mau de gênio, mas não es-
pedaçou a cobra de maueza, não, moço. Quem é mordido desse
bicho não tem raiva, o que tem é medo. Tem um medo danado.
O que quer é fugir da magra, de qualquer maneira. E, depois,
que coisa medonha! um cristão enraivecer bem na hora da
morte e se apresentar brabo desse jeito na frente de Deus. Creio
em Deus Padre!
Os da cidade não sabem, mas o povo aqui todo acredita:
diz que não há, para mordida de cobra, como arrancar e comer
na hora, o coração dela. Não digo que é certo, nem que não é.
Abusar não presta. É ver que o Bugre fez a simpatia e, pra ele,
não adiantou, ou não deu tempo.
Para falar bem a verdade, a gente diz uma coisa, diz outra,
saber mesmo ninguém sabe direito como foi. Mas é fácil
imaginar o que seria a morte do Bugre, morrendo calado, e
enquanto morria, ir matando e apertando e abrindo a cobra com
os dedos torcidos e com os dentes. E o sentido fugindo e a vista
turvando. E os dedos se relaxando contra a vontade dele, porque
a força ia fugindo com a vida... E que agonia desgraçada, lá no
meio do mato, sozinho, cego, louco, com a cobra nas mãos,
rabeando, rabeando...

O segundo foi o Antônio Olímpio. Só mesmo indo al-


guém contar, porque o homem andava tão embeiçado, que
não havia de desconfiar, por nada. Saiu com a tropa, madru-

155
gadinha, como de costume. Mais ou menos na virada da serra,
a meia hora daqui, arrepiou caminho. Parou para arrumar a
cangalha de um burro e falou: “Vocês vão andando, que eu
alcanço”. Bem que botaram reparo no jeitão sacudido com que
ele avisou. A mo’que estava embrabecido. Mas ninguém fez
conta, não, porque podia bem ser raiva de ter que parar para
arrumar correia arrebentada. Ele não pediu ajuda é porque não
queria que ninguém metesse o bico. Esse pessoalzinho
acostumado a viajar seguido, junto, não briga pr’amor disso
mesmo. Não se metem na vida dos outros. Cada um sabe de si
e Deus de todos. E foi o Antônio Olímpio, foi inzonando, foi
inzonando e, nem bem percebeu que a tropa estava fora de
alcance, virou no pé serra abaixo. Cedinho, antes do café, estava
aqui embaixo outra vez. O resto saiu, contado direito, com todas
as vírgulas, quando foi o júri dele. Contou lá na frente do juiz
que um amigo — não quis dizer o nome — tinha avisado, por
alto, que ele abrisse os olhos; que, às vezes, a gente pensa que é
uma coisa e é outra; que mulher de tropeiro fica muito sozinha;
que a gente precisa ficar de olho, principalmente com os
amigos. Ele já se esquentou. “Você não está jogando indiretas
pra mim, não?” E foi o outro e falou: “Estou falando como
amigo. Não sei de nada, não vi nada. O povo é que fala e eu não
acredito que fale certo. Mas não custa tomar cautela”. Que ele
teve coragem, teve, que o Antônio Olímpio é homem
esquentado. Pra mais, botava aquela mulher nas nuvens. Era
Deus no céu e ela na terra pra ele. Falar nesse assunto, era
arriscar tomar uma facada e se estrebuchar no chão, antes que
pudesse acabar de falar tudo. É ver que foi algum mais velho,
algum de toda a confiança, para o homem dar ouvido. Que foi
de tutano, isso foi. E então o Antônio Olímpio se escondeu nos
fundos da casa, por trás de um carrascal de arranha-gato e
dormideira. Cecília, desprevenida, passou o café, deixou as
crianças brincando no terreiro e saiu. A Cecília gostava de

156
casa dos outros que só ela. Foi dar uma prosa, antes de começar
o almoço. O pai entrou pela porta da cozinha, com uma cara de
réu, de tão feia. Agarrou o mais velho dos molequinhos e
começou a espicular as coisas. Deus me perdoe, mas aquele
moleque parece pito de saci. É assinzinho, de olhos grandes e
pernas finas e tem um jeito espantado de cachorro que latiu na
porta da igreja. E o pai tanto perguntou que, no fim, acabou
sabendo que, na véspera, lá para as três horas, Cecília tinha
conversado com um homem na porta da cozinha. “Quem era?”
“Não sei.” “Você conhecia?” “Nunca tinha visto ele, pai.” “Era
moço?” “Não sei, pai.” “Demorou aqui?” “Não, senhor.
Chegou, falou com a mãe, ficou na cozinha um pouco e foi
embora.” Pra ele, que já estava com a morte na alma, aquilo foi
o mundo e mais o fundo. Deu um safanão no rapazinho, que
caiu sentado no chão, chorando.
Quando a Cecília chegou, alegre feito um passarinho, tão
longe de tudo, que estava até cantando, ele apareceu feito um
louco e enterrou a faca na garganta dela. Moço! Nem lhe conto
o horror que foi aquilo.
Cecília foi acabar de morrer na estrada. E o Antônio
Olímpio gramou a pé para a vila, com o facão sujo na mão e foi
se apresentar na delegacia de polícia. Acharam o menino
chorando feito um desesperado, aos gritos, perto da mãe. E o
mais triste é que, quando foram apurar bem as coisas, o homem
que tinha estado na cozinha nem tinha sido conhecido nenhum.
Foi um andante, que pediu fogo e deu a volta para acender o
pito no fogão. Está vendo? A Cecília fez tanto sem acontecer
nada, no fim pagou pelo que não fez.
Andou correndo um zum-zum que o Olímpio amanhe-
ceu morto na cadeia. Este povo é linguarudo, que não tem
jeito. Já disseram que ele se enforcou com a ceroula. Também
disseram que morreu de uma sova de borracha que deram
nele. Não foi nada disso. Nem morreu. Ficou foi doente, da
friagem da cadeia — lá é cimento — ou de tristeza, ou de re-

157
morso, ou de pensar nos filhos. Sabe-se lá. Essas coisas liqui-
dam um homem. Pra mim foi a praga.

Acabou o malvado frio. Deu cana que não foi vida. E até,
engraçado! pegou a crescer uma cana java, lá embaixo, no
canavial do lado do Limoeiro, a crescer, a crescer, até pra mais
de cinco metros. Grossa, que só vendo! Um tolete assim.
Cortaram aquela mãe das canas e mandaram para a Exposição
Agrícola, em Belo Horizonte.
A safra desse ano foi uma coisa nunca vista. Dias e dias,
era assim de camaradas retouçando o canavial. E houve uma
trégua bonita. Quase dois anos sem acontecer nada. Cana era
um disparate, se amontoando ali na frente da moagem.

Parecia que tudo tinha se arrumado. Que os prejuízos


pararam. Que a praga tinha sido revogada. Qual o quê! Foi a
visita da saúde.
Depois aconteceu aquilo na Usina.

Aconteceu de madrugada, por volta das três. As máquinas


não param em época de safra. Foi depois da troca, e muito
depois da geada. E, quando o sol veio vindo, devagar, como
quem não quer aparecer, já estava assim de gente no portão da
usina. Não sei como começou a correr a notícia de boca em
boca. De fora, ninguém tinha visto; ninguém tinha saído, dos
que estavam na usina, e já todos sabiam.
— Foi o foguista.
— O Joca?
— Não, o Bebiano. Aquele baixinho, casado com a Maria
da Sá Emília.
— Aquele?!
— Coitado!

158
— Tão novo!
— Quem foi mesmo? — Era algum que não tinha escutado
o começo da conversa.
— O Bebiano.
— Não conheço.
— Conhece. É um que trabalhava na tropa e depois trocou
de lugar com o Joca.
— Ah! Eu sei, sim.
— Que sorte do Joca!
— Sorte? Bicho ruim não morre. Garanto que se ele es-
tivesse trabalhando de foguista não acontecia nada nas má-
quinas...
— O que tem de ser...
Curiango, que estava ouvindo, saiu, disfarçando, verme-
lha, já em ponto de chorar. Quando repararam nela, mudaram
de assunto, sem jeito:
— Será que os engenheiros demoram?
— Quero ver só que desculpa vão dar agora. Seu Juca
Pereira bem que avisou.
E um cochichou:
— Curiango... Viu? Escutou tudo.
Então responderam com maldade:
— Aquela também é uma boa bisca.
Curiango arregalou os olhos. “Bisca por quê? O que foi
que eu fiz?” O sujeito que tinha falado reparou e redobrou de
brutalidade, para não parecer embaraçado:
— Comigo é assim. Quando tenho que falar as coisas, falo.
Não tenho papas na língua... É isso mesmo. Quem devia ter
morrido está bem aí. O coitado do Bebiano, esse foi indo.
Falavam alto do “coitado do Bebiano”, e “desse vaso
ruim que não quebra”. “Vaso ruim não quebra.” E não é
porque gostassem muito da Maria Bebiana. Ninguém pode
gostar dela. Maria Bebiana é que nem água parada. Insossa,

159
mole; a mim não me cheira e nem me fede. Mulher mole,
aquela. Vá a gente saber por que, de repente, o povo vira a
simpatia que tem, como o vento vira os cata-ventos.
Curiango pegou a chorar, baixinho. “Eu não tenho culpa,
se o Bebiano não teve sorte”, soluçou. “Eu não tive culpa.”

Seu Juca Pereira, chefe das máquinas, tinha avisado que a


caldeira não aguentava mais muita pressão. “Eu avisei. Avisei
bem em tempo.”
Não quiseram escutar. O engenheiro veio com parte de
muito sabido e disse que não era sangria desatada, que tinha
tempo, que arrebentava mesmo, mas que não era tão já, e até o
fim do ano ainda dava. Estão vendo como deu?
De mais a mais, a Companhia tem dinheiro e uma caldeira
não custa uma fortuna. O que é um boi para quem tem sete
fazendas?
De qualquer jeito, agora eles têm que comprar outra
mesmo.
Pois é.
E Seu Juca contou:
— Pois é. Os dois foguistas estavam atiçando o fogo. A
gente já está acostumado com o ronco das máquinas, baixo e
feio que é ver ronco de bicho do mato embrabecido. Mas
ontem a mo’que estava diferente. O teto tinha uma viga es-
talando e aquilo dava um nó na gente, feito pressentimento.
Cada estalo que dava, o pessoal olhava desconfiado para cima.
O Zé, o outro foguista, estava meio nervoso pra amor de uma
questão aí com o pessoal. Pra falar a verdade, nem sei bem
o que foi. Sei que ele largou um pouco o serviço e foi
sentar na escada, pra lá um pouco das turbinas. Foi nessa hora.
O ronco foi crescendo, crescendo, feito estrondo de rio
grande em tempo de bomba d’água. De repente pareceu que

160
o teto tinha despencado. Escureceu tudo de fumaça. O barulho
deixou a gente tonta. Foi um estouro só, mas pareceu de mais
de mil trovoadas. O engenheiro falou que foi percussão, nem
sei o que é isso. Uma coisa feito mão de gente empurrou quem
estava mais perto para trás. Cruz, credo! Subiu uma língua
vermelha de fogo até o teto. Então corri feito um desesperado e
desliguei a chave das máquinas. Nem sei como aguentei e nem
sei que santo me mandou fazer aquilo.
Pensou um pouco e continuou:
— Quando tudo ficou quieto, aí me deu medo. Os homens
foram se achegando e, antes de ver, a gente já sabia que alguém
tinha ido. A caldeira fica quase por cima da fornalha. Só tinha
que ser foguista. Um só? Quem podia saber, naquela confusão
de cinza e fogo e pedaços de metal? Não foi preciso muito
tempo para saber. O Zé estava sentado na escada, vivo e são,
mas sem fala, de tanto susto. Imagine que a caldeira arrebentou
do lado da fornalha e escorreu água fervendo no fogo. O vapor
matou quem estava na frente. Foi uma coisa medonha, mas
durou um minuto. Um só. A bem dizer, foi como um raio. Caiu.
Matou o que tinha de matar e deixou o rastro de queimado.
A fornalha fica no porão, logo abaixo da caldeira. Na parte
de trás fizeram uma espécie de comporta. Quando a fornalha
enche demais de cinza a comporta abre e despeja para um
quadrado de cimento. Dali, depois de fria, é fácil, com a pá,
jogar no pátio a cinza e as porcarias que vão junto. Com a lenha
vem tábua cheia de prego, material de construção usado, arame,
pedaço de lata.
Acharam o corpo bem mais tarde, no meio da cinza, en-
colhido e preto. Desse tamanhinho assim, feito criança de dez
anos. Como foi parar no meio da cinza, não sei. Foi o medo,
o desespero, a dor, sei lá, o que fez o homem naquele segun-
do achar tempo de correr e tentar pular por cima da quadra
de entulho. Nem roupa puderam vestir nele. Foi para a chá-

161
cara de São Pedro enrolado num triste lençol, como Nosso
Senhor Jesus Cristo, mal comparando.
Não foi a caldeira que matou Bebiano. Foi a praga. Como
é que aconteceu do Zé sair de lá bem na hora?

O engenheiro foi de rota batida pra fora, antes que algum


esquentado pregasse um tiro nele.
Esta gente daqui é braba feito jequitaia.

162
XV

Curiango pegou a reparar no modo estranho que o marido


tinha de dizer o nome dela. O mesmo tom desesperado com que
as crianças gritam “Mamãe!” e como os crentes aflitos chamam
“Nossa Senhora!”, como se tropeçasse de repente e, caindo, se
agarrasse ao nome: “Curiango!”. Curiango se assustava:
— Que aconteceu, Joca?
— Nada. É pra não esquecer.
Ria-se, mas Curiango bem via como os olhos dele estavam
ansiosos.
— Você tem alguma coisa...
— Não é nada.
— É por causa dos ataques?
— Não.
Curiango via dentro dos olhos dele aquela ânsia. Parecia
animal preso, encurralado.
— Você cem alguma coisa...
— Não.
— Tem. Eu estou vendo. Eu...
— Curiango!
Calavam-se. A tempestade estava se formando, sentiam o
mormaço, viam as nuvens, e não sabiam para onde fugir. Até
que um dia ele contou:
— É ela outra vez, Curiango.
— Mariana?!

163
— Antes fosse!
— Você quer ir embora, vai. A porta da rua é serventia da
casa. Eu não seguro. Já que você tem outra...
Olhou soberba, sem acabar. “Tal qual jaguatirica armando
o pulo...”
— Não é, Curiango. (“... minha jaguatirica bravia...”)
Não é.
Abanou a cabeça.
— É ela. A Mãe de Ouro.
— Ah!
Curiango arriou os braços, aniquilada, mas depois reagiu
contra o desespero. Agarrou o braço de Joca e, tremendo,
chamou:
— Joca! Olhe pra mim! É isso, Joca? É isso? É isso?
Não precisou resposta. Lá dentro dos olhos dele, viu o
medo. O medo selvagem de bicho do mato que cai no mun-
déu.

Como o homem que caiu no atoleiro, de uma banda das


vertentes, na várzea que renteia o ribeirão, assim foi o Joca. Não
passasse o Bugre no capão, e não lhe atirasse uma corda de cipó
trançado, o homem morreria lá. Bem que forcejava para sair,
“Me acuda! Me acuda!”, não se via viva alma. Quanto mais
esperneava, mais se enterrava no lodo. Até que o Bugre passou.
Joca lidou para se livrar do atoleiro. Curiango ajudou, com
aquela doçura e aquela paciência que só ela é quem tinha.
— Bebe chá de pacová. Quem sabe não dá mais? Vamos
fazer uma promessa a Santa Rita dos Impossíveis.

“Valei-me, Santa Rita dos Impossíveis. Valei-me nesta


aflição!” Curiango ajoelhou-se na igrejinha quieta, sombria

164
e fresca como um pedaço de mato. Igrejinha!... Quando muito,
uma capela. No altar-mor, Nossa Senhora das Graças, de azul,
com luzes de ouro escorrendo das mãos abertas. Dos lados, uma
imagem de São Vicente de Paulo e uma de São Geraldo. Perto
da entrada, o altar de Santa Rita de Cássia. “Sancta Rita
Dicatum.” O que quererá dizer isto? Curiango franziu a testa
pensando. A ansiedade dela tinha se dissipado, como nevoeiro,
em manhã fria, quando sai o sol. “Valei-me Santa Rita! Valei-
me!” Juntou os dedos e ficou quieta, gozando a frescura da
capelinha, depois da caminhada. Tinha andado bastante, então
não? Oito quilômetros, de Olhos D’Água até a Vila, sem uma
parada. Saiu, mal principiaram as estrelas a desmaiar no céu.
Abriu a porta, olhou e calculou: quatro horas. E enfiou o pé no
caminho. Ela e Deus, naquele estirão de estrada, cortando o
mato. De vivente, só passarinho, assim, cantando na rama, e
algum caxinguelê, barulhando, por trás dos pés de pente de
macaco. Teve que esperar o zelador abrir a capela, às seis e
pouco.
— Promessa, dona?
— É, sim, senhor.
Relanceou os olhos pela capelinha, de joelhos mesmo,
com o terço de contas de capim passando e repassando entre os
dedos.
E o medo veio. Olhou, banco por banco, canto a canto,
a capela silenciosa. Estremeceu de medo. Ou era frio? Estava
tão fresca a igrejinha! Ou era a Mãe de Ouro? “Valei-me,
Santa Rita! Minha Santa Rita! Atendei-me! Em nome das
cinco chagas, atendei-me! Atendei-me!” Ficou repetindo tei-
mosa: atendei-me, atendei-me, sem pedir nada, e sem saber
direito o que estava falando. “Eu...”, pensou ligeiro uma coisa
difícil de fazer. “Passo um ano sem ir ao circo, na Vila...
acompanho a procissão de Nossa Senhora, amortalhada...
Não. Isso não. Tenho vergonha.” Levantou a cabeça e deu
com a imagem de Santa Rita, de manto vermelho e palma nas

165
mãos, olhando com firmeza e doçura para ela. “Minha filha”,
ouviu, “minha filha! Isso é soberba, filha!” A voz era do mis-
sionário que esteve em Olhos D’Água, pregando, na Semana
Santa. Ou era pensamento dela? Tenho fé que minha vida vai
mudar. Tenho fé. Perdoai-me, Santa Rita. Eu espero o milagre.
Acompanho a procissão, amortalhada, sim... descalça... com
uma pedra na cabeça... Que é que eu sou, Santa Rita? Curvou
ainda mais a cabeça e fechou os olhos... Já estava vendo o Joca,
brincando com a menina, no banco de pau. São. Sem aquele
medo ensombrando os olhos. Fez o pelo sinal e saiu. Era dia
velho. Estava com fome. Foi à casa da comadre Maria do
Taquari e almoçou lá.

Voltou tarde, o sol já descambando. Achou o céu tão


brilhante, que teve um pensamento engraçado: parecia a ca-
çarola de alumínio, quando estava bem areada. Agora as coisas
hão de melhorar. Tenho fé em Santa Rita. E lembrou-se de outra
coisa (não sei como a gente guarda certas coisas na cabeça e só
se recorda quando não precisa). Lembrou-se do Joca, chegando
cedo da usina e gritando: “Acorda, Rita! O fogo apaga e nóis
não pita!”. Que pecado! Misturar Santa Rita com aquelas
besteiras do Joca! Credo em cruz! Ave, Maria! Perdoai-me,
Santa Rita! Suspirou de cansaço e de desânimo. Quando
reparou, ia passando pelo angico, esse que dizem que é mal-
assombrado. Correu um pouco, coração aos pulos, olhando para
trás, a cada barulhinho. Ave, Maria, cheia de graça, meu Deus
do céu, livrai-me de assombração, Santa Catarina, protegei-me,
meu anjo da guarda... Embrulhou as rezas e pegou a fazer o sinal
da cruz: em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, minha
Santa Catarina, em nome do Padre do Filho e do Espírito
Santo... Em nome do Padre... e foi assim, até passar o angico
assombrado.

166
— Compadre! Compadre Vicente! Compadre Vicente!
Vicente Rosa remexeu-se na cama e resmungou, sem
acordar.
“Como é que eu vim parar aqui?” Vicente estava na várzea
e, pelo jeito, tinha chovido muito, à noite. Tudo barrento. Da
criação da invernada, nem sombra. Só a vaca malhada mugiu
quando ele passou. Que é, velha? A malhada sacudiu a cabeça.
Ouviu Curiango gritar. O que será, meu Deus? Espere! Eu...
perdeu a fala de susto. Fez um esforço e gritou: “Comadre!”.
Viu quando ela se sumiu no atoleiro. Achou-se, não soube
como, com um pau nas mãos e pegou a remar no lodo, a modos
de quem navega com varejão. Até eu chegar lá, ela já morreu...
Depressa! Segure essa ponta!
— Vicente! Vicente! — ouviu a voz baixa, insistente,
chamando: —Vicente! Vicente!
Virou-se. Maria estava sacudindo o braço dele.
— Vicente! Acorda! É a comadre Curiango...
Então ele despertou de uma vez.
— O que é? Quem é? O que foi? Tive um sonho feio.
Sonhei que a comadre...
— Pois é ela. Está aí... — interrompeu-se e gritou: — Ele
já vai, comadre!
A voz de Curiango se encompridou, num lamento que era
meio uivo, meio soluço, e, depois que se calou, houve um
silêncio feio como um pressentimento de desgraça.

Contou:
— Eu bem que desconfiei que a Mãe de Ouro tinha vol-
tado. Ainda no sábado atrasado, à noite...
Passou as mãos diante dos olhos dele e eles continuaram a
olhar para a frente, firmes e parados. Nem piscou.
— Eu bem desconfiei. Meu Deus!
Agarrou as mãos dele e falou baixinho, como a gente faz
para agradar criança doente.

167
— Estou aqui, Joca. Está vendo?
— Estou.
Curiango sentiu um nó na garganta, com aquela mentira.
Queria esconder o estado em que estava.
— Estou aqui e você está bem. Não está sentindo mais
nada. Estou vendo em seu rosto. Você está até corado. É quase
dia. Quando amanhecer, vamos dar uma volta. Vamos até o rio,
pescar. Há de haver sol e o dia há de estar muito bonito.
Passamos em casa do compadre Vicente, para dar uma prosa
com ele. O compadre...
Por fim, não sabia mais o que estava falando. A alucinação
dele tinha passado para ela. Ou era sono...
— Estou com sono. Que bom ir para a cama agora!
Amanhã o capim verde vai ficar todo amassado... o rio corre
mais limpo, agora que não é tempo de enchentes... ele per-
guntou... perguntou porque nós não aparecemos mais lá... eu
não quis dizer... o pessoal da usina é que... o pessoal da usina...
já faz tempo e parece que foi ontem... que sono!...
Endireitou-se, e teve consciência de ter estado falando...
falando, mas o quê?
— Meu Deus!
Joca tinha rolado para o chão e estava dormindo, no tijolo
frio, aquele sono de morte.

A vizinha disse que era encosto que ele tinha. Mas Cu-
riango não podia acreditar numa coisa dessas. Não podia ser.
“Não pode ser. Quando tem ataque, ele não se bate, não grita.
Nada. Antes? Antes fica meio esquisito. Passa um tempão
quieto, olhando para o lado de Juruna. Às vezes não enxerga
mais, coisa de três, quatro horas antes. No lugar onde cai, fica.
Fica horas e horas. A gente olha bem nele, parece que está
dormindo. Acorda é como coisa que não aconteceu nada.
E, quando tem algum acesso mais feio, como aquele da usi-

168
na, não se lembra do que fez. Fora disso, é um santo. É tão bom
que, no juízo perfeito, não faz mal a uma mosca. Encosto? Não
pode ser. A Mãe de Ouro é que está transtornando o juízo dele,
pr’amor de abusão, isso sim. Mas isso passa. Fiz uma promessa
a Santa Rita dos Impossíveis e ela curou ele. Esteve sadio uma
temporada boa. Agora está meio assim, outra vez, mas, se Deus
quiser, não há de ser nada. Encosto... An! An! O padre disse que
esse negócio de espiritismo é coisa do diabo. Que a gente,
quando morre, não volta para infernizar o juízo dos outros. Que
é o maligno... que... Encosto? Ele é tão bom! Não faz mal a uma
mosca. Não tem inimigo nem vivo, quanto mais morto. Quem
iria lembrar de se encostar nele, agora? Homem, para fazer mal,
não falta quem faça. Mesmo assim, eu não acredito. Não pode
ser. Que...? O que não posso entender é como ele faz as coisas
e não se lembra. A modos que outra pessoa faz as maldades por
ele. Encosto, a senhora disse? Acontecem tantas coisas neste
mundo que não se podem explicar... Quem sabe? Será que eles
curam o meu Joca? O melhor é não abusar. Por causa de abusão
mesmo, ele está desse jeito. Eles parecem gente séria. Assim
como pode ser tapeação, pode não ser. Encosto... Será?
— É sim. Algum espírito sem luz, que se achegou a ele. —
Que Deus o livre, coitado!
— A senhora não se arrependa, depois, de não acreditar.
— Encosto... Será?
— É. Estou lhe dizendo que é. O Quinzinho teve e ficou
bom, só de frequentar o centro. Vamos lá! Não custa. Se não
fizer bem, mal não faz. Eles...
— Não é coisa do tinhoso, não?
— Tinhoso? Abrenúncio! Não fale bobagem! Eles não
tiram o nome de Deus da boca. Vamos! Muitos católicos vão lá.
— Não posso. Joca não vai. Não me deixa ir. Não acredita
nisso.

169
— Convença ele, dona!
Curiango sacudiu a cabeça devagarinho, os olhos cheios
d’água:
— Ché!...
Joca ficou danado, quando soube:
— Encosto é a mãe dela que tem. Encosto...
Uma porção de dias depois, ainda, Curiango escutou
quando ele resmungou, no canto da casa, picando fumo para o
cigarro:
— ... encosto...
Mas acabou indo assistir a uma sessão e deixou que fi-
zessem passes nele, de tanto desespero.
Ê mundo!

— Vou falar com o Dr. Amadeu.


— Bobagem.
— Vou sim.
— Vá. — Joca encolheu os ombros, com pouco caso e
desânimo. — Como coisa que adianta...
— Adianta, sim. Você não viu da outra vez? Abaixo de
Deus e de Santa Rita, foi o Dr. Amadeu...
— Pois vá. Já não falei que vá?
— Você me conta direitinho o que está sentindo... eu...
— Não posso, Curiango. Eu mesmo não sei bem. A modos
que está anoitecendo dentro da minha cabeça... Curiango!
Curiango olhou para ele e viu que estava sério como nunca
tinha estado na vida. E viu que tinha medo, horror, desespero,
que estava ansiado e espavorido, como nunca pensou que uma
pessoa pudesse estar algum dia.
— Curiango! Vá! Vá! Pelo amor de Deus! Vá! Vá, Cu-
riango! — E acabou tão baixinho, que ela mal ouviu: — ... eu
tenho medo da escuridão.

170
O Dr. Amadeu disse... bem... ele não disse bem claro,
assim como estou falando com o senhor, que o caso do Joca era
um caso perdido. Disse que...
Bateu de leve no ombro de Curiango:
— Vá para casa e cuide dele...
— Doutor!
— Não se preocupe. Estou fazendo o possível. A senhora
vai me ajudar, animando o seu marido. Não chore. Não fique
assim. Não vá desanimar o rapaz.
— Mas... mas... Ele tem cura, doutor?
— Deus é quem sabe, minha filha. Vamos! Coragem! Não
fique assim. Enquanto há vida, há esperança. Vá para casa.
Cuide dele. Cuide bem dele.

O Alegre é um ninho de feitiço. Desconfio que o Bugre ia


lá vender ervas que catava por aí, pelo mato. Agora me lembra:
quando morreu, acharam um saco de ervas, perto dele. “Que
diacho de coisa é essa?”, perguntaram. “Feitiço, vai ver.”
Ninguém atinou com o que era. Ele conhecia essa remediada:
chapéu-de-couro, língua-de-vaca, sete-sangrias, congonha-de-
bugre, carobinha, amor-do-campo, sangue-de-andrade...

Curiango foi a um feiticeiro do Alegre.

Fez tudo o que pôde e nada foi nada. Até que, naquela
noite, Joca pegou o sapicuá, encheu de farinha e falou:
— Já vou, Curiango.
— Pra onde?
— Praquele lado — apontou do lado de Itaparica. — Pra
lá. Ela está me chamando.
Curiango pediu, chorou:
— Pela nossa filhinha, por mim. Não vá por esses cami-

171
nhos mal-assombrados. Pelo amor de Deus. Tenho medo de
ficar sozinha. Tenho medo que aconteça alguma coisa pra você.
Não vá. Deixe dessa bobagem de Mãe de Ouro. Ela não quer
nada com você. Não. Não. Não.
Desesperou.
Joca botou o sapicuá nas costas. Na porta chamou:
— Vamos também, Curiango. Sem você não sou ninguém.
E foi a última coisa certa que disse. Depois pegou a falar
uma coisa incompreensível, resmungada, a modo que era
oração. Falou, falou e saiu, fazendo gestos. Chuva que Deus
dava! Curiango não quis ir. Tinha dado à luz, naqueles dias, e
ficou com medo. Diz que apanhar chuva no resguardo des-
mancha o sangue. Levar a mulher de rancho em rancho, por esse
mundão de Cristo, só mesmo ideia de louco. E ainda é muito
bom quando se encontra um rancho. Quando não se encontra,
pousa-se em Santa Cruz, pelas estradas. E quando nem Santa
Cruz se encontra, muita vez, em noite fria de trespassar os
ossos, a dormida é no sereno, embaixo de alguma árvore, ou
mesmo em descampado, só céu por cima.
Curiango esperou a chuva passar e veio chamar o com-
padre.
— Pelo amor de Deus, compadre! Vê se traz o meu Joca
pra casa. Pelo amor de Deus!...
Vicente Rosa não disse nada. Jogou o chinelo a um canto
e calçou a ringideira. Ajustou o cinturão. Enfiou a lapiana na
bainha de couro. Agarrou o saco da matula de caça. Botou o
chapelão na cabeça.
— Se Deus me ajudar, estou de volta no meio do dia. —
Falou com um jeito sério e concentrado. E raivoso também.
Como nos dias em que pisava rastro de onça comedeira de
criança e de bezerro.
— Será que o senhor encontra ele, compadre?
— Encontro.

172
Vicente era homem de uma palavra só. “Encontro.” E
encontrou. “Trago o Joca, nem que seja morto.” E trouxe. Ele
estava acostumado a rastrear suçuarana, com o facão de mato e
o podão, abrindo caminho. Saiu para a escuridão.

Vicente olhou rapidamente para Maria, mas Curiango


apanhou no ar a mensagem.
— O que foi?
— É que...
— Morreu?!
— Não.
Maria ficou indecisa, em pé, na soleira da porta, meio
inclinada para a frente. Vicente leu a pergunta nos olhos dela e
respondeu com a cabeça. Sim, sim, sim. Muitas vezes. E saiu
para o sol. Maria fez um movimento, como de quem vai abraçar,
mas ficou parada. “Curiango...”, começou. Por que parecia que
a voz dela vinha de longe, do fundo de alguma coisa, de algum
lugar sombrio e solitário? “Não. Ele não morreu. Mas... mas é
a mesma coisa. Não conhece ninguém. Não saia! Fique aqui.
Descanse um pouco. Você nem sabe onde ele está. Está...” —
pensou um segundo só o que ia dizer — “Está bem tratado. Com
remédios, com injeções. Tem tudo. Não. (Respondeu como se
Curiango tivesse perguntado alguma coisa.) Não sabe onde está.
Não chama ninguém. Machucado? (Maria estava lendo o que
Curiango pensava.) Não. Nem arranhado. Nada. Caiu rente com
o caminho de Itajubá velho. Foi lá que o Vicente achou ele. De
lá foi para a cidade. Voltou a si, mas não conhece ninguém.
Espere um pouco. Não adianta você ir hoje. Só quinta-feira.
Hoje não é dia de visita...” Curiango franziu a testa. “Na Santa
Casa”, acabou depressa, “eu não tinha dito ainda? Está um
pouco fraco. Tratam bem dele lá. Estava meio morto de frio e
não tinha comido nada.”

173
Curiango não respondeu, não chorou, não fez um gesto de
protesto, de recusa, de agradecimento. Levantou e saiu.

Chegou cedo demais. Viu no relógio grande, de parede,


que nem era meio-dia, ainda. Seguiu o corredor comprido, alto,
silencioso. Vultos de branco passaram, sem rumor. Uma ou
outra irmã de caridade, toda de preto, passava e repassava. O
coração dela bateu forte. A moça da portaria estava lendo um
romance, os cotovelos fincados na mesa:
— Dona!
A moça ergueu os olhos, surpreendida.
— Senhora...? Ah! Visita? Enfermaria? É muito cedo.
Sente aí no banco um pouco.
E pegou a ler de novo. Curiango sentou-se, pôs o paco-
tinho no colo e cruzou as mãos. Ficou olhando o corredor frio,
quieto, alto, vazio, e uma impressão de tristeza e de isolamento
foi descendo e escorrendo por ela, como chuva fina em janeiro.
De vez em quando passava gente bem-vestida:
— Bom dia, senhorita!
— Bom dia, doutor!
A senhorita sorria, erguendo os olhos, e pegava a ler outra
vez. Passava mais gente bem-vestida.
— Quarto n° 2.
— Quarto n° 9.

Encontros no corredor:
— Dona Titina está passando melhor?
— Felizmente. Vai ter alta na próxima semana. Iremos
para Poços de Caldas. O médico acha que é aconselhável, para
consolidar a cura.
Ela olhando, sem entender o que diziam.
— Enfermaria? Operada? João! Mostre a cirurgia a esta
senhora.

174
Agora gente malvestida. “Como eu.” Vestidos de chita, de
lona, de fazenda barata, rala, como peneira. Calçado com meia-
sola. Alpercatas de sete mil réis o par. Alpercatas pretas,
cambaias. Sapatos ordinários, de vaqueta dura, apertando no
dedinho. Pés mal-acostumados ao calçado. Tinha começado a
hora das visitas da sala geral.
— A senhora? Faz tempo que chegou, não? Como é o
nome do doente? João José dos Santos... Espere um momen-
tinho. — A moça correu o dedo na folha do livro de assentos.
— José, Elvira, João dos Santos, não é esse, Maria, Maria,
Maria, Maria Amélia, Joaquina (levava uma eternidade para
achar), Jonas, Antônio, Maria, João... está aqui. João José dos
Santos, não é? Já teve alta. Saiu hoje, minha senhora.
Curiango gaguejou:
— Sa... saiu? Já saiu?
— Já, sim, senhora.
— Eu... mas... ninguém me disse nada. Não me avisaram.
Não sabe para onde foi?
— Não, senhora. Não deixou endereço. Talvez volte aqui.
Se a senhora quiser falar com o médico, espere mais um pouco,
que ele já vem.
Curiango afastou-se estonteada. Via e não via o movi-
mento na frente dela. A senhora ? Enfermaria. Nome? Maria
da Conceição. Não pode entrar com pacote. Não, senhora.
Deixe aqui. Nós entregamos. Não, senhora. É do regulamento.
A mulher apertou o embrulho, no peito, como quem tem
medo de ser roubada. Igualzinho à filhinha, quando a gente
quer tomar o brinquedo dela. Você, menina? A menina estava
chorando. E era pobre. E tinha medo e frio. Que é isso?
Não chore. A voz da máquina que estava ali, bem-vestida,
avental branco e gorrinho, adoçou-se. Não chore, menina! É
sua mãe? Está muito doente? Não chore. Ela vai sarar e sair
logo daqui. Pode ir. Não vá chorando que ela fica triste. En-
xugue os olhos. Agora pode ir. Primeira porta, no fim do cor-

175
redor. A senhora? Enfermaria. Homens. Naquele corredor.
Segunda porta à direita. O senhor?
“Quem sabe morreu e não me querem contar?” Curiango
sentiu o coração apertado. Sentiu a ânsia crescer dentro dela.
Primeiro um fio d’água. Depois mais grosso e mais forte e mais
poderoso, até que desce roncando como trovoada, arrastando
tudo que atravessa o caminho. Esteve a pique de gritar. Cruzou
as mãos com força no colo, em cima do pacotinho de queijo
com goiabada. “Seu Chico, pese meio quilo de goiabada, pra
mim. Quanto? Dois mil réis? Corte meio quilo. Meio quilo de
queijo fresco. Queijo mineiro. É. Ele gosta. Pode pôr no mesmo
embrulho. Vai tudo para o mesmo lugar.” Tinha rido. Como
pôde rir? A comadre disse que ele tinha tido uma melhora
bonita. Melhorou. Sentou na cama. O Vicente veio de lá
agorinha mesmo. Perguntou de você, comadre. E ela,
alvoroçada: É? Perguntou? (Vicente tinha chegado só até a
porta, terça-feira, de manhã. Perguntou do doente. “Está
melhor”, disseram. “Perguntou da família.” Não entrou. Mas
isso Curiango não sabia.)
A felicidade tinha se derramado no seu coração e se es-
palhado, como quando se toma um gole de conhaque, tempo de
frio. O calorzinho percorre o corpo, junto com o sangue, sobe
ao peito, vai aos pés e às mãos, envolve a gente como poncho
grosso, ou como calor de fogueira. Tirou o vestido verde da
mala, cheirando a alfazema, e vestiu. Olhou no caco de espelho
na hora de fazer as tranças. Botou passador de pedrinhas
no cabelo. Botou o broche que tinha comprado na lojinha do
Zé Turco, prendendo o decote do vestido. E tinha andado
légua e pico, a pé, risonha, falando baixinho pelo caminho,
com cuidado para não amassar a goiabada e o queijo.
Passarada cantava nos ramos — titititi, bem-te-vi, titititi, viira...
titititi, sem fim, sem fim... tititi... — Aquele titititi,
acompanhando todas as cantigas, como uma orquestra dife-
rente. Nem parecia gorjeio de passarinho. Parecia mais far-

176
falhar de folhas, quando o vento passa, ou rumor de folhas secas
que forram o chão. A gente passa. Pisa. Elas cedem e se
quebram, estalando. Curiango pisou as folhas secas, a cabeça
no ar, de tanta contenteza. “Já conhece as coisas... Perguntou de
mim.” O dia estava lindo. O céu azul, como o que há de mais
azul e de mais bonito. Um verde de pedra de anel, um verde
brilhante e claro e alegre, espraiando-se embaixo, no vaiado. A
lembrança daquela beleza e daquele esplendor, a injustiça
daquilo tudo, pesou na alma de Curiango. Quando viu, estava
falando com o médico. Confiou nele, sem querer. Estava de
avental branco e, por isso, tinha um ar de limpeza e saúde. E
tinha também um jeito grave e doce de quem está acostumado
a lidar com doentes, com loucos, com defuntos, com gente
desesperada. Curiango sentiu que ele estava acima das dores.
Parecia entender tudo, sem se manchar com coisa alguma.
— Ele tinha que ir, minha senhora. (Curiango ficou re-
confortada, e calma, e, de um certo modo, mergulhada na
compaixão que havia na voz dele) — Tinha que ir. Aqui não é
lugar para ele. Não é lugar de... — Ia dizer “louco”, mas parou
com a palavra meio formada nos lábios. Curiango viu, pelo jeito
da boca, o que ele ia dizer e não disse. “Deus lhe pague,
doutor!” — Não é lugar para pessoas que têm ataque, como ele
tem. Pode prejudicar os outros. — explicou — E não adianta
ficar, porque não tem febre, não tem dor nenhuma, não está
machucado, não precisa fazer curativo. Está ocupando lugar de
outro que precisa mais.
— Será que ele tem cura?
O médico disse que não com todo o corpo, menos com
a boca. Disse “não” com os ombros, com o movimento que
fez, com o meio gesto de negação, com a cabeça, com as
mãos, com os olhos, com o recuo do corpo. Não. Não. Não.
Não me force a dizer isso. Não. Curiango compreendeu.
Abaixou a cabeça. E ele falando: Precisa de descanso. Curian-

177
go concordava com a cabeça. Sim. Sossego. Não contrarie o
rapaz, que é pior. Sim, sim, eu sei, sim. Tenha paciência com
ele. Tenha muita paciência. Sei, sim, sim. Cuide dele, com
cuidado. Não fale muito alto. Sim. Sim. Não grite com ele.
Alimentação em horas certas. Sim. Trate dele, como de seus
filhos. Precisa de sossego, não se esqueça. Sim.
Então criou coragem e falou:
— Mas doutor...
— Não tem tempo? Não é preciso ficar sempre perto dele.
Trabalha fora?
— Não, doutor, é que...
— Não precisa ficar com ele, sempre. Deixe o rapaz
quieto, no quarto ou no quintal. Se ele não falar, não puxe prosa.
— Sei... É que... Ele não me esperou. Não sei para onde
foi...
— Não sabe?!
Curiango notou a estranheza da voz do médico.
— Como não sabe?
— Não sei, não senhor. Vim para ir com ele, ia sair hoje.
Não está mais. A moça me disse que foi embora. Não sabe para
onde e eu também não sei. Saí de casa, ele não estava. Não me
encontrei com ele pelo caminho...
— Veio para ir com ele e não estava mais aqui? Ó! Sinto
muito!
Chamou o enfermeiro:
— João! Você sabe aquele doente da segunda enfermaria?
Número... Qual é mesmo o número?
— 45. — O enfermeiro fez um gesto, apontando a testa.
— É. Esse mesmo.
— Saiu. Saiu hoje.
— Você deixou o homem ir sozinho?
— Não quis ficar. Eu não podia fazer nada. Não podia
segurar aqui. O senhor já tinha dado alta. Quis ir, foi.

178
— A senhora ouviu, dona. Foi embora — falou sem pro-
pósito. — O enfermeiro também não sabe para onde.
Curiango ainda ficou parada, boca meio aberta, esperando.
O médico avançou pelo corredor. Curiango sentou-se outra vez,
sem saber muito bem o que estava fazendo, no banco da sala de
espera. Viu uma porção de gente. Ali era a sala de espera do
ambulatório também. Estava assim de pobres que iam à
consulta. Todos com cara de quem espera uma sentença de
morte. Pensou que, depois da primeira volta do corredor,
havia sol e céu e cor e calor e movimento. E nenhuma
cara doente, nem amarela, nem ansiosa. E nem cheiro de
remédio. E nem gemidos. Apertou o embrulhinho de queijo
com goiabada. Levantou silenciosamente e foi embora, sem
olhar para trás.

A comadre veio encontrar com ela, no caminho.


— Veio com o Vicente — avisou — mas não quis parar.
Saiu andando por aí. Tenha paciência, comadre! Com o tempo
pode ser que ele sossegue.
Curiango sacudiu os ombros e apertou os lábios. Não disse
nada. Estava cansada demais para falar, para chorar, para
pensar. E estava consumida, desanimada, triste e indiferente,
tudo num tempo só. Era de tardinha e uma pomba gemedeira
chorou no galho. Curiango escutou como quem não escuta, mas
sentindo que aquela agonia era dentro dela. Entrou em casa e
sentou com um jeito tão largado na tripeça, que a tripeça rangeu.
E foi um dia, abriu bem as janelas e pegou a cantar outra
vez.
— Olhem a conta que ela faz do marido! — dizem.
Passarinho preso canta alegre e sabe Deus o que o coi-
tadinho sente. E mesmo que ela não sinta nada, que é que
tem isso? A vida é assim mesmo, moço. Rolinha juriti, que

179
perde o companheiro, geme ao cair da noite. Mas, por fim,
arranja outro companheiro. Mal da gente, se não fosse o es-
quecimento.

Contei essa história ao Dr. Amadeu, assinzinho como


estou contando agora. E falei também que, antigamente, isto
aqui não era assim. É uma coisa no ar que está mudada. Sabe o
que ele disse? Foi o espírito dessas paragens que mudou.

O que eu sei é que não fico mais neste lugar pesteado.

Diz-se que praga, metade cai e metade volta. Por isso


quem roga muita praga não tem sorte. Bobagem? Não é, não,
moço. Pois essa daqui da fazenda caiu até no Biguá. Morreu de
dentada de onça — onça ou porco do mato, sei lá! Não, moço.
Não é o mesmo Biguá do tempo de Sinhá, que bobagem! Onde
se viu cachorro durar cinquenta anos? É sestro do Seu Pedro.
Quanto vira-lata arranja, bota nome de Biguá.
Pois essa praga caiu. Veja: o Bugre morreu de morte feia.
Esse desconfio que não foi por causa de praga, pois não devia
nada. Seu Pedro é que vive dizendo que aquela cobra foi
mandada. “Era um urutu preto, que nem um pecado. Pra
mim foi mandada. Pois cobra mordeu o homem tanta vez
e não aconteceu nada, como é que daquela ele foi?” O Santana
morreu matado. O Antônio Olímpio matou a mulher e foi
parar na cadeia. Aquele morre lá. O Pais encrencou com o
patrão e foi embora com u’a mão adiante, outra atrás. Luís Rosa
bebe de cair. Anda andando por essas estradas, com uns
olhinhos de piaco-piaco. Com o Bebiano aconteceu o que
aconteceu, no desastre da usina. E Joca é esse trapo que anda
aí. Virou andante. Um dia está aqui, outro dia não se sabe

180
dele. Aquele sossega só com a morte. Assim mesmo, não sei.
Até em Curiango a praga acertou, de ricochete. Enquanto o pai
foi vivo, foi um cabresto para ela, mas depois que morreu... Não
pode contar com o marido e não é mulher pra ficar sozinha. É
moça demais e é bonita demais. Tudo no diacho dessa mulher
faz a gente lembrar de correnteza. Tem o andar bamboleado e
macio de veio d’água. Tem uma risada de passarinho nascido
perto de cachoeira. E o lustro daqueles olhos pretos é ver lustro
de jabuticaba bem madura, molhada de chuva.

Agora que fechou a volta, a praga pode subir a serra, atrás


de quem a rogou. A troco de que tudo isso aconteceu, não sei.
E é um pecado Curiango estar pagando o que não fez. Ê mundo
errado!...
Bom. Não sei não. Não sei... Deus sabe o que faz, e a gente
não sabe o que diz.

Cala-te, boca!
Se aconteceu, é porque era bom que acontecesse.

FIM

181
EXCERTOS DA CRÍTICA
E UMA ENTREVISTA (1946-47)

“Ruth Guimarães é uma descoberta literária de Edgard


Cavalheiro e Amadeu de Queiroz. Nasceu em Cachoeira, às
margens do Paraíba, no estado de São Paulo, e tem apenas 26
anos. Passou a infância na roça, numa fazenda do Sul de Minas
e logo ao começar a escrever seu desejo teria sido recompor
artisticamente as impressões desse período da existência. Daí o
romance Água funda com que ela hoje se apresenta ao público.
A técnica de composição fragmentária, muito preconizada pelos
modernistas — e repudiada pelos romancistas de 1935 para cá,
que lhe sentiram, de certo, as deficiências —, no romance de
Ruth Guimarães, entretanto, se justifica, admiravelmente, pelas
circunstâncias particulares da obra. São bocados de narrativa,
ouvidos de um e de outro que a autora reconstrói, encarreirando-
os, espontaneamente, na forma de uma ‘suíte’ fragmentária.
Julgamos perceber, às vezes, até a mudança de voz, tal a força
da evocação. Estilizando tudo isso, Ruth Guimarães conservou
a naturalidade da narrativa, sempre no tom sentencioso,
moralizante e meio parabólico do caipira. Ela mesma fala num
‘gigantesco brinquedo de armar, cujas peças vieram aos poucos,
trazidas por gente contadeira de casos’. E esse ‘gigantesco
brinquedo’ de armar encerra uma história de bruxaria — uma
dessas histórias com que a fantasia e a superstição do caipira
explicam a decadência do trabalhador rural em zonas atingidas
pelas reviravoltas econômicas. Na região cafeeira empobrecida

183
do Vale do Paraíba, a ideia do bruxedo sempre viveu ligada às
ruínas das velhas fazendas.
Ruth Guimarães passou todas suas impressões pelo crivo
da arte, dando-nos uma verdadeira rapsódia sertaneja, cheia de
encanto e de discreta emoção. É bem a gente do mato que
ouvimos nessas páginas, com seu falar natural, embora se
confundindo, por vezes, com as próprias figuras dos contos de
fada.”

Brito Broca [“Livros em Revista”, Letras e Artes (Suplemen-


to de A Manhã), Rio de Janeiro, 8/9/1946]

“A melhor qualidade do romance de estreia da sra. Ruth


Guimarães, Água funda, é o tom pessoal. Num momento em
que as nossas ficcionistas não resistem ao fascínio do livro de
sucesso, à costumeira história neorrealista e sentimental, a
jovem escritora ouviu apenas a sua vocação e, sem preocupar-
se com moda ou tendências do público, escreveu uma obra que
percebemos impulsionada por nítida exigência interior. Água
funda, graças a esta impressão, refresca agradavelmente a nossa
sensibilidade e revela uma escritora que poderá atingir um nível
literário de primeira ordem. [...]
A sra. Ruth Guimarães conta duas histórias, saborosa-
mente entremeadas de pequenos casos e embelezadas por um
rico acervo de comparações sertanejas: a história dos fazen-
deiros primitivos dos Olhos D’Agua e a história do Joca, ca-
boclo que vive na mesma fazenda, meio século depois. A pri-
meira qualidade que notamos, ao encetar a leitura, é o bom
estilo. Estilo expressivo e vivo, muito adaptado aos movimentos
da narrativa e dotado de uma bela faculdade de síntese.
A sra. Ruth Guimarães concentra o seu pensamento em pe-
quenos feixes de frase s e ilustra-o com alguns provérbios ou

184
comparações e arremata com uma fórmula feliz. E com isso,
muito simples, sem ceder à facilidade dos termos locais, dos
sertanejismos, dos barbarismos.
A este estilo harmonioso, corresponde uma narrativa
igualmente feliz, muito animada e bem dirigida, que prende a
atenção sem esforçá-la. As descrições são, por vezes, belíssimas
na sua concentração discreta: ‘Nessa hora, o cálice brilhou
como um sol, lá em cima. Era a elevação. Como se não pudesse
suportar o brilho e o peso daquela hora sagrada, o povo abaixou
a cabeça. Já viu quando o vento passa e abaixa o capim alto,
florescido? Ficou tudo quieto na manhã milagrosa. A
campainha tiniu, um som claro de ouro. Dali a pouco o quadro
se desmanchou de repente. Sabe quando a gente atira uma pedra
na água parada e a paisagem do fundo se desfaz e se mistura e
treme e confunde tudo, num movimento ligeiro? O povo
começou a levantar-se e a descer. Tinha acabado’.
São dez linhas, em que a autora descreveu toda a missa ao
ar livre, devendo-se notar que a cena é sugerida com duas ou
três impressões, centralizadas por duas comparações que dão
todo o movimento e convidam a imaginação a construir.
Trechos dessa natureza não são raros no livro da sra. Ruth
Guimarães, que sabe vencer, com eles, o perigo da monotonia
que apresentam os períodos curtos, de sua predileção. [...]
Até aí [o meio do livro], com efeito, a autora sugere mais
do que descreve, apresentando a realidade em escorços por
vezes admiráveis, num estilo sintético, incrustado de compa-
rações e provérbios. Daí por diante, dá mais seguimento à
narrativa, descreve com maior minúcia, estabelece continui-
dade sensível na técnica de narrar. O narrador do livro é um
anônimo que o ponteia de observações e tira a moral dos casos.
Na primeira parte, vêm juntar-se ao narrador alguns in-
terlocutores, anônimos ou indicados, que aparecem e desva-
necem, formando com ele uma espécie de coro, cujo efeito é

185
de primeira ordem. Na segunda parte, o caráter coral do nar-
rador é atenuado, os coreutas desaparecem, ou quase, e a
história de Joca é apresentada de modo mais ou menos direto.
Penso que a solução literária da primeira parte é mais bela e
pessoal, supondo no leitor maior capacidade poética. [...]
Com admirável capacidade de simpatia humana e artística,
a sra. Ruth Guimarães teceu-a [a filosofia do livro] com a
própria concepção do caboclo. À maneira do primitivo, para
este nada na vida tem causalidade lógica; o mundo é povoado
de forças misteriosas, que precisam ser aplacadas; cada doença,
cada desgraça, é fruto de mau olhado. Em Agua funda perpassa,
tema constante, a fatalidade das pragas, das maldições e dos
feitiços. Todos, como Sinhá Carolina, marcham para a sua
tragédia com inflexível precisão: é questão apenas de tempo,
para os homens morrerem de tiro, veneno de cobra, desastre;
para as mulheres se perderem. Ainda indeterminada na primeira
parte, essa força se concretiza na segunda, com a obsessão
permanente da Mãe de Ouro, que atrai Joca, misteriosamente,
levando-o a perder a razão. Loucos são os dois personagens
principais do livro — Sinhá e Joca; desgraçados, todos os
demais.
Em face do destino terrível que, pensando bem, é o per-
sonagem mais forte do livro, a romancista narra com placidez
— e a atmosfera de Água funda se torna interessante devido ao
contraste de uma fatalidade sobrenatural, misteriosa, com o tom
habilmente natural. [...]
Quem começa desta maneira irá, certamente, muito alto na
carreira de escritor.”

Antonio Cândido [“Notas de Crítica Literária”, Diário de S.


Paulo, São Paulo, 14/11/1946]

186
“A contar pelos sinais, que são os livros publicados, dentro
de pouco tempo os nomes femininos poderão sobrepujar os
masculinos no nosso movimento literário. E não tanto pela
quantidade, mas principalmente pela qualidade. É o que se
verifica, por exemplo, na produção dos estreantes de 1946. Com
exceção da obra do sr. Guimarães Rosa, que representa um caso
raro, as estreias femininas desse ano, em matéria de ficção,
foram escandalosamente superiores às masculinas. E se as
deixei para o último destes artigos, em que estamos registrando
o aparecimento de romances, novelas e contos, quando
deveriam ter figurado no primeiro deles, foi para que a
conclusão neste terreno não se apresentasse de todo pessimista.
Não há, aliás, nenhuma gentileza em tal constatação. [...] Por
outro lado, nada existe de mais penoso e constrangedor do que
o espetáculo de literatas espevitadas, em geral poetisas, flores
de enfeite da subliteratura, que colocam fotografias nos livros,
que exibem as suas pessoas acima dos seus escritos, que se
afogam no ridículo pela sofisticação de atitudes. As estreantes
de 1946 estão completamente fora desta galeria grotesca, sendo
que uma delas é uma autêntica escritora
O cenário do romance Água funda, da sra. Ruth Gui-
marães, é uma região do interior nas divisas de São Paulo e
Minas Gerais. E o cenário no caso deste livro não tem sim-
plesmente função decorativa; antes, é a sua realidade pri-
meira, a sua fonte de vida, a sua temática essencial. Além da
paisagem física, a região fornece à autora elementos de ro-
mance nos costumes dos homens, nas suas superstições ca-
racterísticas, nas suas histórias meio lendárias e meio reais,
enriquecidos poeticamente na transmissão oral. O caráter
folclórico torna-se, então, o predominante em Água funda. O
que é mais comum, nos escritores regionalistas de hoje, é a
visão do interior com intuitos políticos ou ao menos huma-
nitários. Eles parecem escrever menos com um espírito artís-

187
tico do que com o propósito de comover ou revoltar o leitor ante
a fome, a miséria, a doença, a ignorância, a sorte desgraçada das
populações rurais. Quando não transformam os seus romances
regionalistas em instrumentos de uma ideia política, de uma
ideologia partidária, fazem deles pelo menos apelos
sentimentais. De qualquer forma, a intenção extraliterária é
quase sempre um vício na literatura regionalista. A sra. Ruth
Guimarães colocou-se, porém, fora da tendência do
regionalismo político, como também do outro extremo que
consiste em poetizar falsamente a vida rural, em apresentar os
seus aspectos com a enjoativa cor-de-rosa. Do seu espírito,
revelado em Água funda, podemos dizer que é um realismo
poético. Ela sentiu a realidade de uma região para exprimi-la
sem outra intenção que não fosse a verdade artística. E esta é a
sua principal qualidade: o espírito poético de criação literária.
[...]
A estreia da sra. Ruth Guimarães representa sem dúvida
um acontecimento para a ficção brasileira em 1946; o seu Água
funda, sem cair na banalidade do documentário, é um livro que
revela excelentemente os principais aspectos de uma região do
interior, com espírito poético de criação e seguro aparelhamento
folclórico.”

Álvaro Lins [“Jornal de Crítica”, Correio da Manhã, Rio de


Janeiro, 3/1/1947]

“Tivemos um Luiz Gama. Tivemos um José do Patrocínio.


Tivemos um Cruz e Sousa. Tivemos um Lima Barreto. Tivemos
um Teodoro Sampaio. Temos um Lauro Palhano. Mas só agora
surgiu uma grande escritora da raça negra no Brasil. Ruth
Guimarães é sem dúvida a grande descoberta literária de 1946.

188
Poucos são os escritores que falam tão bem como escre-
vem. Os homens de letras possuem, geralmente, dois idiomas
— um para falar e outro para escrever. Ruth Guimarães, porém,
figura entre os privilegiados: fala exatamente como escreve, o
que torna extremamente agradável a conversa que se mantém
com ela, mesmo quando se prolonga por algumas horas. — ‘Sou
neta de contadeira de casos’ — disse-nos sorrindo —, ‘daí a
minha facilidade para contar histórias. Para contar e escrever...’
Ruth Botelho Guimarães nasceu em 1920, numa velha
cidade decadente de uma zona morta: Cachoeira, no Vale do
Paraíba. Ainda menininha, como se pressentisse que aquela
região era condenada a nunca mais despertar do seu sono le-
tárgico, Ruth se sentia possuída pela vontade do fugir. — ‘Oh!
como eu queria fugir!’ — conta a escritora — ‘Lembro-me
como se fosse hoje. E eu ainda era tão criança... Tinha apanhado
umas chineladas e saí andando à toa pelo caminho, uma das
muitas trilhas da fazenda, sempre para a frente. Depois senti frio
e voltei, mas estava demorando para chegar, e escureceu: fiquei
com medo e com fome e botei a boca no mundo. Um agregado
da fazenda me levou para casa onde cheguei chorando com
quanta força tinha, mas isso não me livrou de apanhar outra vez.
Um completo fracasso’.
— Serviu de lição?
— Que nada. Tornei a fugir, mas dessa vez com uma fi-
nalidade premeditada: ir para a escola. E francamente, não foi
tão ruim assim... E agora ando com uma vontade danada de
viajar. Quisera eu possuir um tapete mágico. Até mesmo uma
vassoura de bruxa serviria...
— E como se portou na escola?
— Mais ou menos... Engraçado, não tinha vontade para
escrever quando era menina... só se me amarrassem na cadei-
ra, porque era muito sem modos. As tarefas da escola mes-
mo, fazia às vezes. Só no quarto ano do Grupo Escolar que

189
comecei a fazer composições. Algumas saíram muito compri-
das, cheias de adjetivos, mas saíam naturalmente, sem outro
objetivo que o de tirar boa nota. Isto, para que me deixassem
brincar em paz, depois.
— E ninguém reparou algo de excepcional no seu modo
de escrever?
— Sim, houve quem reparasse. Quando o percebi, co-
mecei a escrever com cuidado, adquirindo logo reputação de
menina inteligente.
— Gostava de recitar?
— Às vezes. Um dia, numa festa escolar, tinha declamado
uns versos de Olegário Mariano. A música dos versos ficou na
minha cabeça uma porção de tempo e um dia, lembrando-me
mais particularmente da casa-grande da fazenda onde passei a
primeira infância — de três aos oito anos —, escrevi também
uns versinhos muito sentidos e muito chorados sobre a minha
casa.
— Foi então que revelou seu talento literário?
— Acho que sim. Se não, eu não teria tido coragem de
levar esses versos à redação do jornalzinho local.
— E foram aceitos?
— Tive que esperar toda uma semana para sabê-lo. Du-
rante esse tempo andei tão ressabiada e tão excitada que meu
avô dizia a todo instante: — ‘Essa rapariguinha está tramando
alguma...’.
— E depois?
— Chegou o domingo. Milagre dos milagres: os meus
versinhos de pé quebrado estavam na primeira página, com
umas vinhetas torcidas em volta. E na outra página vinha a
história da minha ida à redação e grandes cumprimentos ‘à
inteligente menina do nosso grupo escolar’ e outras coisas mais,
dos quais não me lembro.
— A que mais se dedicava, então: à ‘literatura’ ou à lei-
tura?

190
— Lia muito. Com nove anos de idade, li a coleção inteira
de Machado de Assis, sem entender patavina do sentido. Os
anos foram passando, ‘como canoa em água funda’. Aos doze
anos imitava Cassiano Ricardo. Aos quinze tinha Guilherme de
Almeida embaixo do travesseiro. Namorava, amava, suspirava,
tudo em termos guilherminos... Imaginei balcões floridos,
pensava em aventuras, sonhava com renúncias e uma vez quis
ser freira, como nos romances de Delly. Acontece, porém, que
cresci e mudei. A vida obrigou-me a mudar... Ia começar uma
nova fase na minha vida.
— E onde estudou? Qual o curso que completou?
— A minha vida sempre foi um tanto desgovernada. Es-
tudei em Cachoeira, em Lorena, em Guaratinguetá, até em
colégio de freiras e, finalmente, na Escola Normal Anchieta, de
São Paulo. Mas sou formada pela Escola Normal de Gua-
ratinguetá. Agora, estou me preparando para entrar para a
Faculdade de Filosofia desta capital. Quero estudar Letras
Clássicas.
Chegando a São Paulo, desdobrou sua atividade. Traba-
lhou como não sei quê. Trouxe com ela dois irmãos menores,
cuja educação dependia do seu trabalho. Ruth, para manter essa
pequena família — perdeu o pai aos nove anos e a mãe aos
dezessete — experimentou vários empregos. Durante esse
tempo, apesar de lutar com tremendas dificuldades, ainda teve
tempo para dedicar algumas horas às letras diariamente. Tinha
Água funda na cabeça, água que exigia uma saída, liberdade
para correr, bastante terreno para expandir-se... Um dia, a Água
funda jorrou. Saiu em edição da Globo, causando celeuma nos
meios literários de norte a sul do país.
Ruth é solteira. Vive só, num quartinho pouco maior
que um bocejo. É um larzinho pobre, limpo, pitoresco, enfei-
tado com quadros e flores. Levanta-se às 6 horas. Não toma
café. Prefere chá, que ela mesma prepara. Depois de um pas-
seio pela várzea, volta ao quartinho, onde escreve das 7 às

191
10 horas. Funcionária autárquica, entra às 12 no serviço, saindo
às 18.
— Tem algum livro em preparo?
— Tenho muita coisa em preparo, mas o que vou publicar,
dentro de muito breve, é um livro de poesias, Poemas.
Concorrerei ao Prêmio Fábio Prado com um ensaio sobre os
espíritos do mal. O resto vou guardar ainda. Futuramente,
depois de viver mais alguns anos e tendo mais experiência da
vida, hei de escrever um novo romance.”

Nelson Vainer [“Uma escritora negra que triunfa”, trechos


da entrevista com Ruth Guimarães publicada na Revista da
Semana, Rio de Janeiro, 25/1/1947]

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FORTUNA CRÍTICA DE ÁGUA FUNDA

“Ruth Guimarães, Água funda”, O Jornal, Rio de Janeiro,


5/5/1946 (excerto do romance em primeira mão).
SENNA, Homero. “Notícia de uma romancista”, O Jornal, Rio
de Janeiro, 26/5/1946 (com reprodução de trechos do texto
de Justino Martins publicado na Revista do Globo).
BENEDETTI, Lúcia. “Gente conhecida em Água funda”, Revista
da Semana, Rio de Janeiro, 27/7/1946 (matéria com retrato
de Ruth Guimarães).
“A escritora Ruth Guimarães cujo livro de estreia Água funda
está empolgando todos os leitores ao mesmo tempo que
vem batendo um autêntico record de vendas”, Diário
Carioca, Rio de Janeiro, 11/8/1946 (anúncio da Livraria do
Globo com comentário de Érico Veríssimo).
LIMA, Raul. “Movimento Literário — Água funda”, Diário de
Notícias, Rio de Janeiro, 18/8/1946 (nota).
CONDÉ, José. “Vida Literária — Água funda”, Correio da
Manhã, Rio de Janeiro, 18/8/1946 (nota reproduzindo
palavras de Ruth Guimarães).
BRITO, Monte, “Romance invertebrado”, O Jornal, Rio de
Janeiro, 1/9/1946.
CONDÉ, José. “Vida Literária — Duas estreias”, Correio da
Manhã, Rio de Janeiro, 1/9/1946 (nota reproduzindo
palavras de Lúcia Miguel-Pereira).

193
SENNA, Homero. “Água funda”, O Jornal, Rio de Janeiro,
8/9/1946.
BROCA, Brito. “Livros em Revista — Ruth Guimarães, Água
funda”, Letras e Artes (Suplemento de A Manhã), Rio de
Janeiro, 8/9/1946.
“Ruth Guimarães — A revelação literária de 1946 — De me-
nina espeloteada e petulante a romancista benquista pelo
público e elogiada pela crítica”, Jornal de São Paulo, São
Paulo, 22/9/1946 (inclui entrevista com Ruth Guimarães).
SILVEIRA, Alcântara. “Livros em Revista — Ruth Guimarães,
Água funda”, Letras e Artes (Suplemento de A Manhã),
Rio de Janeiro, 6/10/1946.
CÂNDIDO, Antonio. “Notas de Crítica Literária — Água funda”,
Diário de S. Paulo, São Paulo, 14/11/1946.
MACHADO FILHO, Aires da Mata. “O mistério dos aconte-
cimentos”, Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 17/11/ 1946.
LIMA, Paulo Oliveira. “O Livro da Semana — Água funda, de
Ruth Guimarães”, Vamos Ler!, Rio de Janeiro, 28/ 11/1946
(inclui excerto do romance).
NABUCO, Araújo. “Duas estreias”, Jornal de Notícias, São
Paulo, 8/12/1946.
LINS, Álvaro. “Jornal de Crítica — Romances, Novelas e
Contos (IV) — Ruth Guimarães, Água funda”, Correio da
Manhã, Rio de Janeiro, 3/1/1947.
VAINER, Nelson. “Uma escritora negra que triunfa”, Revista da
Semana, Rio de Janeiro, 25/1/1947 (reportagem especial e
entrevista com Ruth Guimarães, ilustrada com fotos).
SEIDL, Roberto. “Estante de Livros — Ruth Guimarães, Água
funda”, Careta, Rio de Janeiro, 25/1/1947.

194
BARROS, Luiz Alípio de. “Crônica de Livros — Novidades”, A
Cigarra, Rio de Janeiro, jul. 1947 (frase).
“As duas águas”, A Cigarra, Rio de Janeiro, ago. 1947 (nota
reproduzindo palavras de José Geraldo Vieira).
COELHO, Nelly Novaes. Verbete “Ruth Guimarães”, Dicionário
de Escritoras Brasileiras. São Paulo: Escrituras, 2003.
SANTOS, Alckmar Luiz dos. “Récit et prophétie chez Ruth
Guimarães”, em Études Romanesques, n° 8. Paris: Lettres
Modernes Minard, 2004.
OLIVEIRA, Ana Paula Cianni Marques de. “Um mergulho em
Agua funda e suas distintas vertentes”. Dissertação de
Mestrado em Processos e Manifestações Culturais, Uni-
versidade Feevale, Novo Hamburgo, 2011.
CRUZ, Adélcio de Sousa. “Ruth Guimarães”, em DUARTE,
Eduardo de Assis (org.). Literatura e afrodescendência no
Brasil: antologia crítica, 4 vols. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2011.
Revista Ângulo, n° 137, Cadernos do Centro Cultural Teresa
d’Ávila, Lorena, abr.-jun. 2014, número especial dedicado
a Ruth Guimarães, com organização de Joaquim Maria
Guimarães Botelho.
ANTÔNIO, Severino. Ruth Guimarães: uma voz de muitas vozes.
Guaratinguetá: Penalux, 2017.

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SOBRE A AUTORA

Ruth Guimarães nasceu em Cachoeira Paulista, SP, no


Vale do Paraíba, em 13 de junho de 1920, filha de Cristino
Guimarães e Maria Botelho, no sítio de seu avô materno, o
português José Botelho. Dos três aos oito anos de idade morou
na Fazenda Campestre, em Pedra Branca, atual município de
Pedralva, no sul de Minas, onde seu pai trabalhava como
administrador. Fez o curso primário no Grupo Escolar Dr.
Evangelista Rodrigues, em Cachoeira Paulista, e o magistério
na Escola Normal Patrocínio de São José, em Lorena.
Mudando-se temporariamente para São Paulo, frequentou a
Escola Normal Padre Anchieta em 1935, concluindo seus es-
tudos na Escola Normal de Guaratinguetá em 1937.
Aos dez anos de idade, quando ainda residia com os avós
maternos em Cachoeira Paulista, publicou seus primeiros
versos nos jornais locais A Região e A Notícia.
Órfã aos dezessete anos, radicou-se em São Paulo em
1938, cursando o magistério na Escola Normal Caetano de
Campos, e trabalhando como datilografa do Laboratório Torres,
como revisora de textos da Folha da Manhã e depois como
funcionária pública concursada do Instituto de Previdência e
Assistência dos Servidores do Estado, sustentando dois irmãos
menores e vivendo em um quarto na Vila Formosa. Conheceu
Mário de Andrade em 1943, que a iniciou nos estudos de
folclore, e frequentou o círculo literário chamado “Grupo
da Baruel”, ingressando em 1947 na Faculdade de Filosofia,

197
Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, onde se formou
em Letras Clássicas em 1950.
Escreveu poesia, crônicas, contos, artigos, reportagens e
crítica literária para diversos jornais e revistas, como Correio
Paulistano, A Gazeta, Diário de S. Paulo, Folha da Manhã,
Carioca, Realidade, O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo.
Em 1946 lançou pela Livraria do Globo seu primeiro livro,
Água funda, romance que retrata com uma linguagem inventiva
o universo rural e a cultura caipira do Vale do Paraíba e do sul
de Minas, sucesso de público e crítica, ao qual se seguiu Os
filhos do medo (Globo, 1950), ampla pesquisa sobre o diabo e
seu papel na tradição popular brasileira.
Nos anos 1950 frequentou cursos de pós-graduação na
USP com Roger Bastide (Sociologia) e Antônio Soares Amo-
ra (Literatura), e em 1961 graduou-se em Dramaturgia e Crítica
pela Escola de Arte Dramática, de Alfredo Mesquita.
Participou de diversas entidades ligadas à preservação da
nossa cultura popular, como o Conselho Estadual do Folclore,
foi professora de instituições de ensino superior, como a
UNIFATEA, e escreveu dezenas de livros, de ficção e de não
ficção, além das peças Romaria (com Miroel Silveira) e A
Pensão de Dona Branca. Em 2008 foi a primeira escritora negra
eleita para a Academia Paulista de Letras.
Casou-se com seu primo, o jornalista e fotógrafo José
Botelho Netto, em 1949, e teve nove filhos: Marta, Rubem,
Antonio José, Joaquim Maria, Judá, Marcos, Rovana, Olavo e
Júnia. Faleceu em Cachoeira Paulista, em 21 de maio de 2014,
aos 93 anos de idade.

Publicou, entre outros:


Agua funda. Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1946
(Coleção Autores Brasileiros, 21).
Os filhos do medo. Porto Alegre: Editora Globo, 1950.

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As mães na lenda e na história. São Paulo: Cultrix, 1960.
Histórias quase simples: contos escolhidos, de Amadeu de
Queiroz (org.). São Paulo: Cultrix, 1963.
Lendas e fábulas do Brasil. São Paulo: Cultrix, 1963.
Dicionário da mitologia grega. São Paulo: Cultrix, 1972.
O mundo caboclo de Valdomiro Silveira (org. com
Bernardo Elis). Rio de Janeiro/São Paulo: José
Olympio/Secretaria de Cultura, Esportes e Turismo do
Estado de São Paulo/INL, 1974.
Medicina mágica: as simpatias. São Paulo: Global, 1986.
Crônicas valeparaibanas. São Paulo: Centro Educacional
Objetivo/Fundação Nacional do Tropeirismo, 1991.
Contos de cidadezinha. Lorena: Publicações do Centro
Cultural Teresa D’Ávila, 1996.
Calidoscópio: a saga de Pedro Malazarte. São José dos
Campos: JAC Editora, 2006.

Traduções, entre outras:


Histórias fascinantes, de Honoré de Balzac. São Paulo:
Cultrix, 1960.
Histórias dramáticas, de Fiódor Dostoiévski. São Paulo:
Cultrix, 1960.
O asno de ouro, de Apuleio. São Paulo: Cultrix, 1963.
Histórias de Alphonse Daudet (com Rolando Roque da
Silva). São Paulo: Cultrix, 1964.

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