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ROMANCEIRO DA INCONFIDÊNCIA
CECÍLIA MEIRELES
PROF. JORGE ALBERTO
1. RESUMO BIOGRÁFICO
CECÍLIA BENEVIDES DE CARVALHO MEIRELES nasceu na Tijuca, no Rio de
Janeiro, em 7 de novembro de 1901. Terminou o curso primário por volta de 1910, na Escola
Estácio de Sá, acabada de construir e muito bem equipada. Olavo Bilac era o Inspetor Escolar
do Distrito, e dele recebeu, nessa ocasião, uma medalha de ouro com o seu nome gravado,
por ter feito o curso primário com “distinção e louvor”. A vocação para o magistério levoua a
fazer o curso da Escola Normal, diplomandose como professora em 1917. Paralelamente,
estudava línguas, canto e violino. Interessouse profundamente pelos estudos orientais,
história, línguas, filosofia. Traduziu importantes autores orientais – o poeta hindu Tagore, o
chinês Li Po e o japonês Bashô. Aos 21 anos, casouse com o artista plástico português
Fernando Correa Dias, que passou a ilustrar suas obras.
Em 1934, com o marido, inaugurou a primeira biblioteca infantil do país: o Centro de
Cultura Infantil do Pavilhão Mourisco, no Rio de Janeiro. A convite do governo português,
partiu para Lisboa e Coimbra, proferindo conferências sobre cultura brasileira. O ano seguinte
foi trágico: seu marido se suicidou, e ela ficou responsável pela educação das três filhas. A
perseguição continuou. Foi uma convicta defensora do ensino laico e uma crítica constante da
ditadura de Getúlio Vargas. Denunciava o casuísmo, a ladroeira do sistema vigente e aqueles
que, sob a máscara da beatice, usavam o poder para defender causas próprias; referiase a
Getúlio Vargas como o “Senhor Ditador”. Sob o Estado Novo, soldados invadiram a biblioteca
infantil, apreenderam o livro As Aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain, sob acusação de
comunismo, e fecharam a biblioteca. Em 1940, casouse novamente, agora com o professor
Heitor Grillo. Iniciase um longo período de intensa atividade profissional e literária: lecionou
Cultura Brasileira na Universidade do Texas; tornouse também conferencista internacional. A
década de 1950 é de prosperidade, de prestígio e de reconhecimento. Intensifica suas
pesquisas sobre história e folclore brasileiros e suas viagens ao exterior. A convite de Nehru,
primeiroministro indiano, a autora visitou a Índia. Recebeu da Universidade de Nova Delhi o
título de Doutor Honoris Causa entregue pelo Presidente da Índia. Voltou ao Brasil em 1958 e,
publica Solombra em 1963, última obra publicada em vida. Faleceu em 9 de novembro de
1964, no Rio de Janeiro, em plena atividade literária. Em 1965 a Academia Brasileira de
Letras concedelhe, post mortem o Prêmio Machado de Assis, pelo conjunto de sua obra.
2. CONTEXTO HISTÓRICO DO MODERNISMO (1930 – 1945)
No período que vai de 1930 a 1945, o mundo, abalado pela crise da bolsa de Nova
Iorque (1929), começa a enfrentar duríssimas conseqüências econômicas. No Brasil, o
problema econômico tem como causa a crise cafeeira, e politicamente o país também
atravessa momentos internos complicados: Getúlio Vargas, levado ao poder pela Revolução
de 1930, inicia um governo “provisório”. O país enfrenta ainda a Revolução Constitucionalista
de 1932; a chamada “Intentona Comunista“, de 1935. Em 1937, é decretado o Estado Novo e
o Presidente Getúlio Vargas passa a exercer o poder de modo ditatorial que se estende até
1945. Tem início a Segunda Guerra Mundial.
2.1. A POESIA DE 30: MATURIDADE
A segunda geração modernista, livre do compromisso de combater o passado, manteve
muitas das conquistas da geração anterior, mas também se sentia inteiramente à vontade
para voltar a cultivar certos recursos poéticos que foram abominados pelos autores da
primeira geração (1922), tais como o verso metrificado e rimado, a forma fixa, como o soneto,
a balada, o rondó, o madrigal.
Os poetas dessa geração levaram adiante o projeto de liberdade de expressão dos seus
antecessores, a ponto de até de se permitirem empregar as formas utilizadas pelos clássicos
dentro da tradição da lírica portuguesa.
A poesia da segunda geração modernista foi, essencialmente, uma poesia de
questionamento: da existência humana, do sentimento de “ estarnomundo” , das
inquietações social, religiosa, filosófica, amorosa e também da metalinguagem. Carlos
Drummond de Andrade é o poeta que melhor representa o espírito dessa geração, e sua
produção poética constitui um dos pontos mais altos da literatura de língua portuguesa.
Nesse contexto social ganha força a poesia participativa de Drummond. Por outro lado,
cresce também um outro de tipo de prática poética: a poesia metafísica, espiritualizante e
mística, que aparece em obras de Cecília Meireles, Vinícius de Moraes, Murilo Mendes,
Jorge de Lima, Mário Quintana e Manuel de Barros. Os dois últimos cronologicamente estão
ligados à geração de 30.
3. OBRA
Cecília Meireles estreou em livro em 1919, com a publicação de Espectros, mas ao
reunir sua obra poética, deixou de lado os trabalhos anteriores a 1939. Em 1938, o seu livro
de poemas, Viagem , publicado no ano seguinte, conquistou o prêmio de poesia da Academia
Brasileira de Letras. A poeta deixou claro que considerava sua obra madura a partir do livro
Viagem , editado em 1939, também em Lisboa. O livro significou o reconhecimento da
revelação definitiva de uma natureza artística em sua plenitude, de um estilo poético em seu
ponto de perfeição e o estudo da nossa tradição literária e a assimilação dos recursos
expressivos da arte verbal.
POESIA
· Espectro (1919)
· Nunca mais . . . e e Poema dos Poemas (1923)
· Baladas para Elrei (1925)
· Viagem (1939)
· Vaga Música (1942)
· Mar Absoluto (1945)
· Retrato Natural (1949)
· Amor em Leonoreta (1952)
· Doze Noturnos de Holanda e o Aeronauta (1952)
· ROMANCEIRO DA INCONFIDÊNCIA (1953)
· Pequeno Oratório de Santa Clara (1955)
· Pistóia, Cemitério Militar Brasileiro (1955)
· Canções (1956)
· Romance de Santa Cecília (1957)
· A Rosa (1957)
· Metal Rosicler (1960)
· Poemas Escritos na Índia (1962)
· Antologia Poética (1963)
· Solombra (1963)
· Ou Isto ou Aquilo (lit. infantil, 1965)
· Crônica Trovada da cidade de San Sebastiam (1965)
· Poemas Italianos (1968)
TEATRO
· O Menino Atrasado (1966)
FICÇÃO
· Olhinhos de Gato (s/d)
PROSA POÉTICA
· Giroflê, Giroflá (1956)
· Evocação Lírica de Lisboa (1948)
· Eternidade de Israel (1959)
CRÔNICA
· Escolha o seu Sonho (1964)
· Inéditos (1968)
4. ESTILO POÉTICO: O NEOSIMBOLISMO
A poesia de Cecília Meireles, de modo geral, filiase às tradições da lírica lusobrasileira.
Apesar disso, as publicações iniciais – Espectros (1919), Nunca mais... e poema dos poemas
(1923) e Baladas para ElRei (1925), desconsideradas da Obra Poética, aproximam a autora
do grupo da revista carioca FESTA (19271928). Surgiu sob a liderança de Tasso da Silveira e
de Andrade Murici no início da sua carreira literária. Revista de orientação espiritualista que
defendia o universalismo e a preservação de certos valores tradicionais da poesia. A
exploração da musicalidade do verso e a insistência em imagens abstratas e imateriais
permitem falar em heranças simbolistas (neosimbolismo). A poetisa supera essas
influências praticando uma poesia que se volta cada vez mais para o espetáculo da
existência, que tem no tempo – fugaz e fugidio o foco principal, mas não perde o intimismo e
a consciência da transitoriedade das coisas.
5. ROMANCEIRO DA INCONFIDÊNCIA: COMENTÁRIOS GERAIS
A obra é fruto de longos dez anos de pesquisas e sua publicação ocorreu em 1953. A
autora afirma que se trata de “uma narrativa rimada”. A temática remete o leitor à época da
Inconfidência Mineira (1789), daí o caráter nacionalista e histórico da obra. Associando
verdade histórica, tradições e lendas, e utilizando a técnica ibérica dos romances populares, a
poeta recria a atmosfera da Vila Rica (hoje Ouro Preto) dos Inconfidentes. A mineração, as
rivalidades e contendas, os altos impostos cobrados pela Coroa, a conscientização de alguns
intelectuais e letrados, os ideais de liberdade, as Academias e as tendências arcádicas
renascem, ao mesmo tempo em que se faz a defesa dos oprimidos. Alternamse na obra
“romances”, “cenários” e “falas”. Os “romances” reconstituem a história, compondo o fio
narrativo; os “cenários” situam os ambientes, marcando as mudanças de atmosfera e
localizando os acontecimentos; as “falas” representam uma intervenção do eu líriconarrador,
tecendo comentários e convidando o leitor a refletir sobre os fatos revividos.
É o livro mais famoso e o menos explorado e conhecido do público e da crítica. A autora
conta a história da tentativa de libertação do Brasil ocorrida em Minas Gerais no século XVIII.
O título obedece a uma terminologia própria dos romances espanhóis medievais – época em
que a palavra “romance” aplicavase também a obras em verso.
No Romanceiro, o elemento histórico é bastante forte. Contudo, o que a autora tenta
recuperar é menos os fatos históricos em si, e mais o ambiente e as sensações envolvidas na
revolta. Assim, cada elemento histórico adquire um valor simbólico: a busca do ouro
representa a ambição e a cobiça; a conspiração esconde a esperança e o fracasso; as prisões
dos envolvidos são focalizadas como situações de medo; o degredo é visto como momento de
perda e saudade; e as punições finais mostram todo o desengano da derrota política.
Portanto, não há essa preocupação de focalizar essencialmente o fato histórico que envolveu
os inconfidentes, a obra vai muito além do próprio tempo que tematiza.
A poeta não se afastou do seu conhecido estilo, composto de atmosferas fugidias e
imprecisas, e preocupada com o registro das sensações, com o clima predominante no
momento da revolta, de incertezas e de medo. É o que está além da realidade, invisível e,
quase sempre, intransponível para aqueles que não são dotados de sensibilidade poética.
5.1 NATUREZA DA OBRA
O Romanceiro é formado por um conjunto de romances, poemas curtos de caráter
narrativo e/ou lírico, destinados ao canto e transmitidos oralmente por trovadores e que
permaneceram na memória coletiva popular. Expressão poética específica do passado
ibérico: saída técnica para dar maior autenticidade e força evocativa ao episódio histórico.
Seus autores, em regra geral, ficaram anônimos. Os romanceiros eram conhecidos na
Espanha e em Portugal desde o século XV e tinham várias funções: informação, diversão,
estímulo agrícola, doutrinamento político e religioso.
O Romanceiro da Inconfidência caracterizase como uma obra lírica, de reflexão, mas
com um contexto épico, narrativo, firmemente apoiado no fato histórico. Em 1789, inspirados
pelas idéias iluministas européias e pela independência dos Estados Unidos (1776), alguns
homens tentam organizar um movimento para libertar a colônia brasileira de sua metrópole
portuguesa.
A colônia sofria pesada carga tributária sobre o ouro extraído das Minas Gerais deixava
os que viviam dessa renda cada vez mais descontentes. Assim, donos de minas, profissionais
liberais – entre os quais alguns poetas árcades – e outros começaram a conspirar contra
Portugal. Contudo, o movimento é delatado (Joaquim Silvério dos Reis e outros) e os
envolvidos, presos. Alguns são condenados ao exílio (Moçambique e Angola), e o único a ser
executado, na forca, e depois esquartejado, é Tiradentes, em 21 de abril de 1792.
5.2 COMPOSIÇÃO DA OBRA
Há um fio narrativo que passa através dos vários romances que compõem o
Romanceiro, sem que a ação se sobreponha à reflexão. Alguns cortes permitem a mudança
de ambientes ou de figuras que permitem ao narrador surgir diante do público e anunciarlhe
nova situação dramática.
A crítica observou que não é possível estabelecer uma divisão rigorosa da matéria
tratada por Cecília Meireles. O romanceiro avança ou faz regredir uma perspectiva, além dos
poemas transitórios, feitos de considerações de momento, verdadeiros parênteses ou
interpolações da poeta (alguns desses poemas não recebem o título de “romance”). Não há
consenso, mas seguindo o crítico Darcy Damasceno e outros estudiosos, é possível verse
um plano geral de composição:
NA PRIMEIRA PARTE: a “Fala Inicial”, o primeiro “Cenário” e os romances I — XX.
NA SEGUNDA PARTE: Romances XXI — XLVII.
NA TERCEIRA PARTE: Romances XLVIII — LXIV.
NA QUARTA PARTE: Romances LXV — LXXX.
NA QUINTA PARTE: Romances LXXXI — LXXXV, mais a Fala aos Inconfidentes Mortos.
A obra apresentase estruturada em 85 romances, além de outros poemas, como os
que retratam os cenários. Total de 95 textos. Em sua composição, é utilizada principalmente a
medida velha, ou seja, a redondilha menor, verso de cinco sílabas poéticas (pentassílabo) e,
predominantemente, a redondilha maior, verso de sete sílabas (heptassílabo), além de
versos mais curtos, tercetos, quadras, sextilhas, refrões e versos decassílabos.
Neste fragmento, a autora tece considerações de como foi composto seu Romanceiro
da Inconfidência. A este respeito, ela aborda os limites entre a criação literária e a História,
mostrando os limites e as relações entre ambas:
“(...)
Assim, a primeira tentação, diante do tema insigne, e conhecendose tanto quanto
possível, através dos documentos do tempo, seus pensamentos e sua fala seria reconstruir
a tragédia na forma dramática em que foi vivida, redistribuindo a cada figura o seu verdadeiro
papel. Mas se isso bastasse, os documentos oficiais com seus interrogatórios e respostas,
suas cartas, sentenças e defesas realizariam a obra de arte ambicionada, e os fantasmas
sossegariam, satisfeitos.
Nesse ponto descobremse as distâncias que separam o registro histórico da invenção
poética: o primeiro fixa determinadas verdades que servem à explicação dos fatos; a segunda,
porém, anima essas verdades de uma força emocional que não apenas comunica fatos, mas
obriga o leitor a participar intensamente deles, arrastado no seu mecanismo de símbolos, com
as mais inesperadas repercussões.
Ainda que se soubessem todas as palavras de cada figura da Inconfidência, nem assim
se poderia fazer com o seu simples registro uma composição da arte. A obra de arte não é
feita de tudo mas apenas de algumas coisas essenciais. A busca desse essencial expressivo
é que constitui o trabalho do artista. Ele poderá dizer a mesma verdade do historiador, porém
de outra maneira. Seus caminhos são outros, para atingir a comunicação. Há um problema de
palavras. Um problema de ritmos. Um problema de composição. Grande parte de tudo isso se
realiza, decerto, sem inteira consciência do artista. É a decorrência natural da sua
constituição, da sua personalidade por isso, tão difícil s∙e torna quase sempre a um criador
explicar a própria criação. Quanto mais subjetiva seja ela, maior a dificuldade de explicála é
quase impossível chorar e perceber nitidamente o caminho das lágrimas, desde as suas
raízes até os olhos. No caso, porém, de um poema de mais objetividade, como o
"Romanceiro", muitas coisas podem ser explicadas, porque foram aprendidas, à proporção
que ele se foi compondo.
Digo "que ele se foi compondo" e não "que foi sendo composto", pois, na verdade, uma
das coisas que pude observar melhor que nunca, ao realizálo, foi a maneira por que um tema
encontra sozinho ou sozinho impõe seu ritmo, sua sonoridade, seu desenvolvimento, sua
medida.
O "Romanceiro" foi construído tão sem normas preestabelecidas, tão à mercê de sua
expressão natural que cada poema procurou a forma condizente com sua mensagem. Há
metros curtos e longos; poemas rimados e sem rima, ou com rima assonante o que permite
maior fluidez à narrativa. Há poemas em que a rima aflora em intervalos regulares, outros em
que ela aparece, desaparece e reaparece, apenas quando sua presença é ardentemente
necessária. Tratase, em todo caso, de um "Romanceiro", isto é, de uma narrativa rimada, um
romance: não é um "cancioneiro" o que implicaria o sentido mais lírico da composição
cantada.
Nesse ponto, já ficara ultrapassada a idéia de uma composição dramática. Impossível
distribuir a cada personagem seu verdadeiro papel: seria atribuirlhes, por vezes,
pensamentos e sentimentos incompatíveis com a sua psicologia, e darlhes uma linguagem
que não podemos reconstituir com suficiente perfeição.
O "Romanceiro" teria a vantagem de ser narrativo e lírico; de entremear a possível
linguagem da época à dos nossos dias; de, não podendo reconstituir inteiramente as cenas,
também não as deformar inteiramente; de preservar aquela autenticidade que ajusta à
verdade histórica o halo das tradições e da lenda.
A voz irreprimível dos fantasmas, que todos os artistas conhecem, vibra, porém, com
certa docilidade, e submetese à aprovação do poeta, como se, realmente, a cada instante lhe
pedisse para ajustar seu timbre à audição do público. Porque há obras que existem apenas
para o artista, desinteressadas de transmissão; outras que exigem essa transmissão e
esperam que o artista se ponha a seu serviço, para alcançála. O "Romanceiro" é desta
segunda espécie.
Por isso, a parte "pessoal" que nele se encontre, é uma simples intervenção para
favorecer o desenvolvimento do tema: aqui, o artista apenas vigia a narrativa que parece
desenvolverse por si, independente e certa do que quer. Os "cenários" são intervenções para
marcar os ambientes respectivos, exatamente como numa indicação dramática. E se o artista
se permite alguma reflexão sobre o que vai acontecendo, é como espectador que comenta,
entre outros comentadores imaginários, ou cronista que observa, entre outros que estão
observando o que confere ao livro uma simultaneidade que se procurou assinalar até pela
disposição gráfica dos versos, e pela diferença dos tipos de impressão.
(...).”
(MEIRELES, Cecília. Como Escrevi o “ Romanceiro da Inconfidência” . IN:___. Romanceiro da
Inconfidência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, págs. 20 a 22.)
6. ANTOLOGIA
Romance XXVIII ou da denúncia de Joaquim Silvério
No palácio da Cachoeira,
com pena bem aparada,
começa Joaquim Silvério
a redigir sua carta.
De boca já disse tudo
quanto soube e imaginava.
Ai, que o traiçoeiro invejoso
junta às ambições a astúcia.
Vede a pena como enrola
arabescos de volúpia,
entre as palavras sinistras
desta carta de denúncia!
Que letras extravagantes,
com falsos intuitos de arte!
Tortos ganchos de malícia,
grandes borrões de vaidade.
Quanto a aranha estende a teia,
não se encontra asa que escape.
Vede como está contente,
pelos horrores escritos,
esse impostor caloteiro
que em tremendos labirintos
prende os homens indefesos
e beija os pés aos ministros!
As terras de que era dono,
valiam mais que um ducado.
Com presentes e lisonjas,
arrematava contratos.
E delatar um levante
pode dar lucro bem alto!
Como pavões presunçosos,
suas letras se perfilam.
Cada recurvo penacho
é um erro de ortografia.
Pena que assim se retorce
deixa a verdade torcida.
(No grande espelho do tempo,
cada vida se retratra:
os heróis, em seus degredos
ou mortos em plena praça
— os delatores cobrando
o preço das suas cartas ...)
Romance LIII ou Das Palavras Aéreas
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Ai, palavras, ai, palavras,
sois de vento, ides no vento,
no vento que não retorna,
e, em tão rápida existência,
tudo se forma e transforma!
Sois de vento, ides no vento,
e quedais, com sorte nova!
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Todo o sentido da vida
principia à vossa porta;
o mel do amor cristaliza
seu perfume em vossa rosa;
sois o sonho e sois a audácia,
calúnia, fúria, derrota...
A liberdade das almas,
ai! com letras se elabora...
E dos venenos humanos
sois a mais fina retorta:
frágil, frágil como vidro
e mais que o aço poderosa!
Reis, impérios povos, tempos,
pelo vosso impulso rodam...
Detrás de grossas paredes,
de leve, quem vos desfolha?
Pareceis de tênue seda,
sem peso de ação nem de hora...
— e estais no bico das penas,
e estais na tinta que as molha,
e estais nas mãos dos juízes,
e sois o ferro que arrocha,
e sois o barco para o exílio,
e sois Moçambique e Angola!
Ai, palavras, ai, palavras,
íeis pela estrada afora,
erguendo asas muito incertas,
entre verdade e galhofa,
desejos do tempo inquieto,
promessas que o mundo sopra...
Ai, palavras, ai, palavras,
miraivos: que sois, agora?
– Acusações, sentinelas,
Bacamarte, algema, escolta;
– o olho ardente da perfídia,
a velar, na noite morta;
– a umidade dos presídios,
– a solidão pavorosa;
– duro ferro de perguntas,
com sangue em cada resposta;
– e a sentença que caminha,
– e a esperança que não volta,
– e o coração que vacila,
– e o castigo que galopa...
Ai, palavras, ai, palavras,
Que estranha potência, a vossa!
Perdão podíeis ter sido!
– sois madeira que se corta
– sois vinte degraus de escada,
– sois um pedaço de corda...
– sois povo pelas janelas,
cortejo, bandeiras, tropa...
Ai, palavras, ai, palavras,
Que estranha potência, a vossa!
Éreis um sopro na aragem...
– sois um homem que se enforca!
Romance XLIX ou de Cláudio Manuel da Costa (fragmentos)
[...]
– Não creio que fosse morto
por um atilho encarnado,
nem por veneno trazido,
nem por punhal enterrado.
Nem creio que houvesse dito
o que lhe fora imputado.
Sempre há um malvado que escreva
o que dite outro malvado,
e por baixo ponha o nome
que se quer ver acusado...
Entre esta porta e esta ponte,
fica o mistério parado.
Aqui, Glauceste Satúrnio,
morto, ou vivo disfarçado,
deixou de existir no mundo,
em fábula arrebatado,
como árcade ultramarino
em mil amores enleado.
Triste pena, triste pena
que pelo papel deslizas!
que cartas não escrevestes
que versos não improvisas
que entre cifras te debates
e em cifras te imortalizas ...
Ai, fortunas, ai, fortunas ...
Doblas, oitavas, cruzados,
vastos dinheiros antigos,
pelas paredes guardados,
prêmio de tantos traidores,
dor de tantos condenados!
Escreve Marília,
escreve seu pequeno testamento;
na verdade, por que vive,
se a morte é o seu alimento?
se para a morte caminha,
na sege do tempo lento?
Cortesias, cortesias
de quem diz adeus ao mundo:
breves lembranças; presentes
amáveis, de moribundo.
Que sais vós, ouro das Minas,
no oceano de Deus, tão fundo?
Repartivos, repartivos,
ouro de tantas cobiças ...
(Tanto amor que separastes,
entre injúrias e injustiças!
E agora aqui sais contado
para a piedade das missas!)
Triste pena, triste pena ...
Triste Marília, que escreve.
Tão longa idade sofrida,
para uma vida tão breve.
Muitas missas ...
Muitas missas ...
(Que a terra lhe seja leve.)