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Clarice Lispector, em seu livro Laços de Família, lançado em 1960, abarca uma
série de contos, entre eles o “Amor”, que por ora será analisado. A obra narra a trajetória
de Ana, uma mulher do lar, de classe média, com uma estável rotina familiar: cuidar dos
filhos, cuidar do marido e dedicar-lhes suas horas. O equilíbrio da sua vida costumeira
rompe-se ao encontrar, quando sai para fazer compras, um cego mascando chiclete no
ponto do bonde em que ela viajava. O acontecimento é o estopim para o momento de
epifania da personagem que se estende ao longo do dia.
Inicialmente, percebe-se que no conto predomina-se o gênero narrativo que
busca contextualizar a vida de Ana associando-a à família e aos objetos de sua casa, “os
filhos”, “o fogão”, “a cozinha” ilustram o cenário da sua rotina. A personagem vê-se
“como um lavrador”, escolhendo as sementes que quer plantar e, cansada, acompanhando
o crescimento de tudo ao seu redor, desenvolvido por meio de suas mãos. No entanto, a
heterogeneidade apresenta-se em trecho descritivos, como em “as árvores que plantara
riam dela” . A autora, por meio da figura de linguagem anáfora, enfatiza a ideia desse
crescimento pela repetição do verbo crescer: “cresciam árvores” “crescia a água”,
“cresciam seus filhos”.
Observa-se a presença de literariedade na criação de um sentido próprio à
expressão “certa hora da tarde”, que abarca o sofrimento interno da personagem,
momento em que ela via-se sem sua estabilidade necessária e encontrava-se com seu eu,
sentindo-se inquieta e em perigo. O texto segue seu fio, mostrando a abdicação de Ana,
substituindo suas aptidões subjetivas pelas necessidades familiares, tal situação soa como
uma adaptação necessária “ (…) seu gosto pelo decorativo se desenvolvera” , demonstra
que ela poderia aperfeiçoar seus desejos às demais necessidades. A autora usa a expressão
“destino de mulher” para referir-se a anulação identitária de Ana e afirma que ela chegara
a esquecer-se da sua juventude, deixando clara sua infelicidade “também sem felicidade
se vive”.
A viagem de bonde, remete à uma ideia de reflexão causada pelas pequenas
viagens do dia a dia e promove em Ana uma análise dos seus maiores duelos internos: de
um lado a agonia causada pela “hora perigosa da tarde”, momento de profundo medo e
ansiedade e de outro a tentativa de abafar tal ideia pelo autoconvencimento de que essa
foi a vida que escolhera e que não poderia retroceder, “assim quisera e escolhera”.
Percebe-se que o momento de retorno à estabilidade, “o fim da hora instável”, é
interrompido por um acontecimento, que poderia ser corriqueiro, mas que abala toda a
estrutura de Ana, o cego mastigando chicletes enquanto espera o bonde é capaz de tirá-la
totalmente da zona confortável e levá-la à uma autoanálise profunda, caracterizando outro
traço de literariedade. A autora, metaforeia o acontecimento, Ana também estaria cega,
alheia aos acontecimentos ao seu redor, não vendo a realidade da vida . A epifania inicia-
se no fim da viagem com o quebrar dos ovos, que marca a ruptura do status quo e celebra
o abrir dos olhos da personagem, para enxergar a partir de agora as circunstâncias da sua
existência, as durezas da vida e todas as possibilidades inerentes à ela.
A obra clariceana é marcada pelo conflito existencial e por uma busca pelo
encontrar-se, sem de fato conseguir fazê-lo. Nota-se que a epifania causa total confusão e
desorientação em Ana, isso faz com que ela perca seu ponto de descida do bonde, “há
muito passara do seu ponto” e, por sua vez, demore a conseguir localizar o Jardim
Botânico, onde passa um bom tempo sozinha, observando minuciosamente a natureza e
suas metáforas. A lembrança amorosa do filho tira-a do mergulho introspectivo e de
súbito, Ana retorna para casa. O abraço do filho, o jantar com a família pouco a pouco
trazem-na de volta à sua vida normal e ela observa e goza esses pequenos prazeres, a
saída dos familiares, porém, traz à tona novamente os conflitos que a perturbavam.
O estouro vindo do fogão da cozinha e causado pelo seu marido é o ápice do
retorno de Ana à sua vida rotineira, a personagem choca-se com a mera possibilidade de
perder aqueles que ama e isso parece convencê-la da aceitação de sua realidade. O amor
para Ana evidencia-se no final do conto, ao aceitar ir com o marido para o quarto dormir
ela vira as costas para seus questionamentos e dúvidas. O verbo “dormir” contrapõe-se
paradoxalmente ao verbo “acordar”, este refere-se ao momento de despertar que ela
vivenciou em contraposição ao ir fechar os olhos novamente. Seria então anular-se em
detrimento do outro(s) a manifestação de amor intitulada?
A expressão “se atravessara o amor e seu inferno”, finaliza o conto e de forma
sincera transparece a dor e a abnegação de Ana em nome de sua família, , sem esconder
a penosidade da escolha, o soprar da “ pequena flama do dia” sugere que a personagem
esquecera-se dos acontecimentos do dia e aceitara sua condição.
Amor
Clarice Lispector