Você está na página 1de 7

INVESTIGAÇÕES DE AUTORIA E PUBLICAÇÃO

Pasta no OneDrive com mais de 100 artigos para baixar:


https://1drv.ms/u/s!Aj6kOBkyV630khcEvKdfnFl6K5aP?e=hcoacK

Autor: Sérgio Barcellos Ximenes.

Artigos no Medium | Blog literário | Scribd | Twitter | Livros na Amazon

______________________
Fragmento de um romance inédito de Júlia Lopes de Almeida: O Dinheiro
(1888)
Resumo
Tema: o segundo capítulo do romance O Dinheiro, publicado no jornal português
Correio da Manhã em 26 de março de 1888, na primeira página do Suplemento
Literário.
Importância do texto: único trecho disponível do primeiro romance abortado de
Júlia Lopes de Almeida (1862, RJ – 1934, RJ), até agora inédito (incluindo a
informação sobre o fragmento e o próprio romance).
Momento da publicação: pouco mais de 8 meses antes da publicação do primeiro
romance completo da autora, Memórias de Marta, em folhetins do jornal carioca
Tribuna Liberal, a partir de 3 de dezembro de 1888).
Informações adicionais na publicação: nome da autora (Júlia Lopes) e ano de
criação do capítulo (1886).

______________________
Júlia Lopes de Almeida (1862, RJ – 1934, RJ) foi talvez a mais prolífica escritora
brasileira do final do século XIX e início do século XX, autora de 15 romances, além de
novelas, contos, peças teatrais, crônicas, livros didáticos e infantis, entre outras
produções literárias.
É conhecida a relação infeliz da autora com a Academia Brasileira de Letras,
resultado que alguns poderiam atribuir, com sorriso irônico, a alguma forma de “carma”
ou retribuição do destino: a clássica situação de uma pessoa preconceituosa sendo alvo
de preconceito (veja O artigo abertamente racista da escritora brasileira Júlia Lopes
de Almeida em 1884, disponível no OneDrive, subpasta Escravidão).
O nome de Júlia chegou a ser considerado pelos fundadores da ABL, todos homens,
para integrar o grupo inicial da Academia, mas o veto à participação de mulheres, então
vigente, foi contornado de modo constrangedor pela indicação do marido da autora, o
também escritor (bem menos talentoso) e português de nascimento Filinto de Almeida
(1857–1945) para ocupar a sua vaga.
A obra ficcional de Júlia Lopes mereceu reavaliação favorável na primeira década
deste século a partir da reedição dos romances A Família Medeiros (1891) e Pássaro
Tonto (publicação póstuma, em 1934), entre outras obras, pela Editora Mulheres.
Também na área acadêmica, estudos recentes ressaltaram aspectos positivos da obra da
escritora.
Para ler uma apresentação analítica da obra de Júlia, recomendo a série de artigos do
escritor Luiz Ruffato no jornal Rascunho, publicada em 2012. Ruffato é o principal
responsável pela divulgação da obra literária da autora, nos últimos anos.
http://rascunho.com.br/julia-1/
http://rascunho.com.br/julia-2/
http://rascunho.com.br/julia-3/
http://rascunho.com.br/julia-final/

O romance O Dinheiro
Seria o primeiro romance de Júlia.
O fragmento referente ao segundo capítulo da obra, publicado em 26 de março de
1888 na primeira página do Suplemento Literário do jornal português Correio da
Manhã, saiu mais de 8 meses antes do início da publicação de Memórias de Marta em
folhetins, no jornal carioca Tribuna Liberal. Memórias de Marta é, em termos
cronológicos, o primeiro romance da autora.

Tribuna Liberal (Rio de Janeiro, RJ), 3/12/1888, número 3, página 2, seção


Folhetim.
http://memoria.bn.br/docreader/709808/12
E é tudo que conhecemos desse romance misterioso intitulado O Dinheiro.
Curiosamente, não há sequer menção do fragmento em resultados do Google (a não
ser o da Cronologia atualizada da ficção feminina: 1752-1900, disponível no Onedrive,
subpasta Cronologias), assim como nos do Google Scholar, ferramenta de busca de
trabalhos acadêmicos.
A hipótese mais provável refere-se ao nome. Vinte e um dias antes da publicação do
fragmento, ou seja, em 5 de março de 1888, o Correio da Manhã ofereceu a seus
leitores o primeiro texto ficcional de Júlia no jornal, O Presente de Núpcias. A
assinatura da autora: Júlia Lopes de Almeida. Ainda sairiam no mesmo periódico: A
Alma das Flores, em 24/3/1890; Santa! (conto antigo), em 25/8/1890; e Carta a uma
Noiva, em 18/9/1896, todos com o nome completo.
Mas o fragmento do romance saiu assinado apenas como Júlia Lopes.
Quase certamente, tanto a informação sobre o romance quanto o texto publicado
abaixo são inéditos.
Essa situação de carência de fontes impede a investigação do motivo pelo qual O
Dinheiro se tornou mais um clássico primeiro romance abortado. Como não havia
restrição à publicação de obras de Júlia na mídia da época, supõe-se que ela mesma
decidiu-se por Memórias de Marta como o ponto inicial da carreira nas novelas e
romances.
O fragmento é datado de 1886, indicando a longa elaboração do romance. Em algum
momento entre março e dezembro de 1888, Júlia abandonou a ideia de publicá-lo,
optando por Memórias de Marta, história também centrada na pobreza.
Correio da Manhã (Lisboa, POR), 26/3/1888, número 1016, Suplemento Literário,
primeira página.
http://memoria.bn.br/DocReader/890529/4865
______________________

O Dinheiro – Fragmento de um romance


II
A claridade de um belo dia, morno e doce, espalhava-se brandamente pela sala,
beijando acariciadora as cabeças encanecidas e severas de uns retratos a óleo pendentes
da parede. No largo espelho ao fundo refletiam-se as flores artificiais da jardineira
erguida ao centro pelos braços arredondados de uma estatueta de jaspe. Sobre uma
mesa, a um canto, como um protesto, erguiam-se airosamente numa açucena de vidro,
com toda a sua pureza natural, ao lado do um livro aberto, L'amour, duas La France
esplêndidas. Na estante de um piano aberto estava uma música interrompida por enfado
da pianista, e ao lado, numa cadeira dourada, um começo de bordado esquecido pelo
mesmo motivo que a música; em tudo a prova palpável da pior e da mais
desconsoladora das doenças — o aborrecimento. Fazia exatamente vinte anos que
Helena, a elegante burguesa de formas esculturais, se casara sem amor com um
negociante rico, fugindo de ouvir repetirem-lhe sensatamente ao ouvido a palavra
economia, que a fazia estremecer de horror!
Havia exatamente vinte anos que julgara libertar-se para sempre daquela vida
apertada, trevosa, ameaçadora e tirânica como um cárcere — a pobreza; e, como de
propósito, o destino, o mais feroz dos mestres, escolhera essa data para cortar-lhe o
caminho luminoso e brilhante por um pavoroso abismo — a ruína.
Tremenda fatalidade! Justa punição. Por isso Helena passeava febril, de canto a
canto, cerrando apertadamente os dentes.
A multidão graciosa dos seus bibelôs dispersos nas prateleiras de cristal das étagères
prateleiras], nas paredes, nos dunquerques [móveis clássicos e baixos, com duas portas],
no chão, parecia-lhe rir-se dela ironicamente, tilintando à tremura que os sons passos
nervosos, miúdos, irregulares faziam no soalho de mosaico e polimento.
E ela olhava raivosa e excitada para as ingênuas pastorinhas à Pompadour, as
chinesas dos vasos e dos pratos antigos, as figuras em relevo dos metais...
Nesses desordenados passeios foi encontrá-la a filha. A mãe olhou-a sem meiguice,
interrogativamente, como a dizer com impertinência:
— Que vens cá fazer?!
Evelina, por única resposta, aproximou-se serena e pôs-se nos bicos dos pés para
beijar-lhe a fronte.
Fez-se o silêncio, um silêncio que nenhuma parecia ter animo de quebrar.
Com aquela serenidade recrudescera a agitação de Helena. Continuava de um lado
para o outro num giro entontecedor, como uma hiena em jaula apertada, sentindo um
ferro em brasa a queimar-lhe as carnes... Súbito parou perto da filha, e como doida
desdobrou aos olhos da atônita criança todo o seu passado.
As palavras sucediam-se cortadas pela respiração ofegante. Não amara o marido, ele
não fora mais do que um meio de que se servira para elevar-se de uma posição precária
a outra de conforto e de luxo!... Acusava-o, amesquinhava-o, pisava-o... Amaldiçoava o
instante em que aos pés do altar lhe dera o sim... Dizia-o estúpido, brutal, ignorante:
casara-se não com ele, mas com o seu dinheiro; logo que esse dinheiro desaparecia,
considerava-se viúva. Não queria vê-lo nem ouvir falar dele. Que vergonha! Que
ignomínia!
Se eu o tivesse amado, concluiu ela, se eu o tivesse amado... resignava-me: mas
aborreço-o [odeio-o]! mas nunca o amei!
Evelina cortava o bárbaro discurso com exclamações indignadas: Minha mãe... ao
princípio; Minha senhora! depois.
Não havia dique possível para aquela cólera, que explodia correndo impetuosa. O
acesso durou ainda muito tempo, a crise tornou-se mais e mais violenta, até às
convulsões características da histeria.
Evelina amparou assustada a mãe, fê-la deitar-se, desapertou-lhe o vestido,
desprendeu-lhe as soberbas tranças negras, que se estenderam como duas serpentes no
cetim cor do ouro fulvo do divã, puxou-lhe uma manta de casimira até aos joelhos,
ajeitou-lhe as almofadas, e só saiu quando Helena, com um gesto, apontou-lhe a porta,
fingindo querer descansar.
Atravessou então o aposento em bicos de pés, deixou entreaberta a porta para acudir
ao mais leve chamado e encostou-se à janela de uma sala próxima. Faltava-lhe o ar.
Sentia-se vestida de chumbo. Um peso superior às suas forças caía sobre ela e
dominava-a. Olhava para tudo como se estivesse no escuro; nada via. Batia-lhe
lentamente o coração, como se de cheio não se pudesse mover mais facilmente.
Assim esteve muito tempo envolvida numa onda negra e gélida que a afogava e com
que não lutava, porque a sentia esmagadora sobre o peito.
A pouco e pouco adelgaçou-se aquela massa negra; Evelina respirou com mais força
e demorou os olhos na paisagem abstratamente.
No espaço azul brunido nem uma nuvem, tênue que fosse; uma limpidez tão pura,
tão imaculada, tão bonita! Embaixo, no jardim, entre canteiros largos e côncavos de
relva, semeados de grupos de roseiras, de açucenas e de fúcsias, nadavam mansamente
num lago dois cisnes brancos. Havia tantos anos que Evelina os conhecia ali! Mais
além, nos grossos galhos de duas mangueiras copadas, o balouço [balanço] vazio, onde
tantas e tantas vezes brincara, parecia-lhe agora uma forca silenciosa em que se
estrangulavam todas as suas alegrias!
E cantavam os passarinhos, os passarinhos ingratos!
Então, pensava ela comigo, olhando para o elegante jardim, eu gozei tudo isto, não
porque minha mãe amasse meu pai, mas porque desejou o seu dinheiro... o seu dinheiro!
E voltavam-lhe à memória obstinadamente as palavras da mãe, aquelas expressões
envenenadas que lhe tinham feito tanto mal! Essa confissão súbita, impetuosa, ferina, de
uma verdade revoltante e baixa!
A ambição de hálito e impuro olhar do fogo vivera naquele coração, que ela queria o
mais puro, o mais perfeito, o melhor de todas as mulheres! Em vez do amor, o amor
santo, o amor sublime, que é o hino triunfal, o espontâneo hosana nos dourados
tabernáculos do ideal, da verdade e da luz; em vez do amor que consola os tristes e
fortifica os bons, que é o bálsamo das grandes lutas e o supremo poder; em vez do amor,
que faz iluminado e ridente o casebre tosco do lavrador pobre, que transforma o mais
rude alimento no mais fino manjar, o mais duro leito no mais fofo arminho, o pior
tecido na mais linda e delicada trama, caleidoscópio mágico, tornando cintilante e
preciosa a mais humilde coisa; em vez do amor, que tão bem compreende as flores, os
ninhos, as estrelas, que é sagrado e suave como uma bênção da invisível e santa mão de
Deus; o amor, como o sentia a pobre Evelina a desabrochar no seu ingênuo coração,
docemente, como desabrocham, aromatizando sutilmente o ar, as modestas flores dos
prados; em vez desse amor justo, digno, leal e verdadeiro, tivera a mãe na sua
mocidade, por sonho de futuro, como ideal da sua mocidade na Terra — o dinheiro... só
o dinheiro, única e exclusivamente o dinheiro!
Miséria!
Evelina corava de vergonha, como se aquele vendaval, que lhe abalava a alma, lhe
vergastasse o rosto.
O pai, o amigo sincero, que vivera para o trabalho e para a família, tornou-se para ela
um ídolo!
Ele, muito mais velho do que a esposa; ele, homem batido em guerras acérrimas,
vencedor tantas vezes, vencido agora, tivera por ambição... o afeto de uma menina
pobre, aceitando numa candidez de alma boa os seus protestos de amor e de fidelidade
eterna!
O mundo tem desses dramas, infelizmente vulgares: Evelina é que não os
compreendia. A fatalidade deu-lhe um exemplo perto e doloroso. Agora via que o
dinheiro não é só o positivo da vida, a magna luta da sociedade, é mais, é a máxima
glória, a única felicidade que sonham atingir os que não têm na alma outra riqueza.
*
O sol iluminava brandamente a Terra, como uma carícia maternal. Brilhavam
reluzentes os cômoros raivosos do jardim, esvoaçavam entre flores as borboletas
alegres, doidejantes, e Evelina, cercada de confortos e em plena mocidade, invejava a
mais humilde das mulheres, que, entrando descalça em casa, vinda do trabalho no sol,
ao vento ou à chuva, visse, sentados ao lado um do outro, os pais com as mãos
entrelaçadas na mais doce e serena intimidade.
Lisboa, 1886.
JÚLIA LOPES.

Você também pode gostar