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ESCRITORAS BRASILEIRAS

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Autor: Sérgio Barcellos Ximenes.

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______________________

Trave e Palha, conto de Guilhermina Santos, desconhecida autora brasileira


(1883)

Resumo

Tema: a atividade literária desconhecida da tradutora Guilhermina Santos, como


contista e poeta.

Conto: Trave e Palha, de estilo simples, leve e engraçado, publicado nos jornais:

1. A Folha Nova (Rio de Janeiro, RJ), em 18 e 19 de dezembro de 1883 (números


390 e 391), na página 2, em Folhetim; e

2. Gazeta do Norte (Fortaleza, CE), em 29 de fevereiro (número 46) e 1.º, 4 e


15/3/1884 (números 47, 49 e 50), na página 2, em Folhetim.

. O texto integral vem reproduzido no final do artigo.

Poema: A Uma Rola, publicado no Jornal das Senhoras (Rio de Janeiro, RJ), em 12
de novembro de 1854 (número 46, páginas 5 e 6); imagens mostradas neste artigo.

Obras de ficção traduzidas por Guilhermina:

1. Flip, Cenas da Califórnia, novela de Bret Harte publicada de 8 a 20 de setembro


de 1883 no jornal A Folha Nova (informação também inédita).

2. O Grande Industrial, romance de George Ohnet publicado de 29 de abril a 10 de


julho de 1884 no jornal A Folha Nova.

3. Sergio Panine, romance de George Ohnet publicado de 11 de julho a 21 de


setembro de 1884 no jornal A Folha Nova.
. Republicação de Sergio Panine em O País (São Luís MA), de 11 de novembro de
1884 a 7 de fevereiro de 1885.

. Provável tradução de vários outros romances publicados na Folha Nova em 1883,


1884 e 1885.

Traduções publicadas em livro: O Grande Industrial e Sergio Panine, ambas em


1884.

Dados da vida pessoal:

. Marido: José Rodrigues do Santos, major, falecido em 13 de julho de 1883.

. Filho: José Rodrigues do Santos Júnior, falecido em abril de 1879.

. Outro filho: nome desconhecido, ainda vivo em 1883.

. Prêmio recebido pela carreira de tradutora: uma caneta e pena de ouro cravejada de
pérolas, ofertada pelo jornal Gazeta Suburbana e exposta em uma vitrine da rua do
Ouvidor, no centro do Rio.

__________________________________________

Apresentação

Guilhermina Santos é um nome conhecido dos estudiosos de tradutoras brasileiras do


século XIX, mas não se encontra menção à sua atividade como poeta ou autora de
ficção em listas de autoras do século XIX ou em dicionários de escritores brasileiros.
Esta lacuna será preenchida no presente artigo.

Obras traduzidas por Guilhermina Santos

Guilhermina traduziu ao menos dois romances do escritor francês George Ohnet


(1848-1918), um dos mais populares de seu tempo. Na primeira tradução, publicada de
29 de abril a 10 de julho de 1884, Guilhermina escolheu o título O Grande Industrial
para o sucesso inicial de Ohnet: Mâitre de Forges (denominação do proprietário de forja
ou alto-forno), romance na França lançado em 1882.
A Folha Nova (Rio de Janeiro, RJ), 29/4/1884, número 522, página 1, última coluna.

http://memoria.bn.br/docreader/363723/2073

O periódico fluminense A Folha Nova publicaria todos os trabalhos de tradução de


Guilhermina. No recorte abaixo, lê-se que O Grande Industrial saiu também no
periódico A Província do Pará (indisponível), talvez com uma tradução diferente.

O texto ressalta a acusação de plágio a Ohnet, devido à semelhança de cenas e


personagens de O Grande Industrial com os de uma obra não especificada da
romancista sueca Emilie Flygare-Claren (1807-1892), a mais famosa daquele país no
século XIX.

A Federação (Porto Alegre, RS), 8/7/1884, número 155, página 2, penúltima coluna.

http://memoria.bn.br/docreader/388653/430
Repetindo um processo clássico da época, a tipografia da Folha Nova aproveitou o
sucesso do folhetim para lançar imediatamente o livro impresso com o romance de
Ohnet.

Brasil (Rio de Janeiro, RJ), 13/7/1884, número 162, página 1, penúltima coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/236055/137

O recorte abaixo informa que o livro foi colocado à venda em 10 de junho de 1884.
A Folha Nova (Rio de Janeiro, RJ), 10/6/1884, número 594, página 4, parte central.

http://memoria.bn.br/DocReader/363723/2364

Em julho, A Folha Nova comunicava o sucesso da edição do romance e informava


sobre a tradução de nova obra do mesmo George Ohnet, de título Sergio Panine, o
mesmo da obra francesa, lançada em 1880. Guilhermina baseou-se na 110.ª edição
desse romance, marca que, sendo verdadeira, comprova o enorme sucesso do escritor
em seu país natal.
A Folha Nova (Rio de Janeiro, RJ), 11/7/1884, número 595, página 1, primeira
coluna.

http://memoria.bn.br/docreader/363723/2365

A tradução do romance Sergio Panine saiu na seção Folhetim, de 11 de julho a 21 de


setembro de 1884.
A Folha Nova (Rio de Janeiro, RJ), 11/7/1884, número 595, página 2, em Folhetim.

http://memoria.bn.br/docreader/363723/2366

Em 11 de novembro do mesmo ano, o jornal maranhense O País começou a publicar


a mesma tradução, também na seção Folhetim. O folhetim terminou em 7 de fevereiro
de 1885.

O País (São Luís, MA), 11/11/1884, número 111, página 1, em Folhetim.

http://memoria.bn.br/DocReader/704369/7422
Assim como se deu no caso de O Grande Industrial, a edição em livro de Sergio
Panine seguiu-se ao final da história nos folhetins da Folha Nova.

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro, RJ), 25/9/1884, número 268, página 2,


terceira coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/364568_07/11330

Revista Ilustrada (Rio de Janeiro, RJ), 26/11/1884, número 393, página 5, última
coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/332747b/2918
A Folha Nova (Rio de Janeiro, RJ), 27/9/1884, número 673, página 4, parte superior.

http://memoria.bn.br/DocReader/363723/2680

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro, RJ), 10/12/1886, número 343, página 5,


segunda coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/364568_07/16803

A tradução da novela Flip, de Bert Harte (1883)


Em novembro de 1892, o leitor Manoel Carneiro informou aos leitores do Jornal do
Commercio (Rio):

"Não, não foi nem o seu excelente jornal, nem o Anuário do Rio Grande do Sul que
teve a prioridade de apresentar ao leitor português as produções de Bret Harte. Em 1882
publicou a Folha Nova a novela californiana 'Flip', traduzida pela Sra. D. Guilhermina
Santos, cuja versão ligeiramente retoquei, na tentativa de aproximá-la do sabor estranho
do original. Como era natural, agradou muito aos cultos [...]."

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro, RJ), 13/11/1892, número 349, página 2,


primeira coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/364568_08/9500

O editor Manoel Carneiro errou apenas o ano: a tradução de Guilhermina Santos para
Flip, Cenas da Califórnia saiu de 8 a 20 de setembro de 1883.
A Folha Nova (Rio de Janeiro, RJ), 8/9/1883, número 289, página 2, em Folhetim.

http://memoria.bn.br/DocReader/363723/1146

O escritor estadunidense Bret Harte (1836-1902) tornou-se famoso por seus contos e
novelas sobre a Corrida do Ouro na Califórnia.

É provável que outros romances traduzidos do francês e publicados pela Folha Nova
em 1883, 1884 e 1885 tenham resultado do trabalho de Guilhermina Santos.

Essa impressão é reforçada pelo prêmio concedido à tradutora em 1884. Na notícia


publicada pela Folha Nova sobre a caneta de ouro oferecida pelo concorrente Gazeta
Suburbana, lê-se: "[...] que à sua elegante pena deve a tradução da quase totalidade
dos romances que tem dado em folhetim [...]".
A Folha Nova (Rio de Janeiro, RJ), 14/7/1884, número 597, página 2, terceira
coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/363723/2374

O jornal catarinense A Regeneração especificou o "pobríssimo mimo" oferecido pela


Gazeta Suburbana a Guilhermina: uma pena e caneta de ouro cravejada de pérolas.

A Regeneração (Florianópolis, SC), 23/7/1884, número 164, página 2, primeira


coluna.
http://memoria.bn.br/DocReader/892068/5507

A poeta

Não se encontra o nome de Guilhermina em nenhum dicionário de escritores ou


escritoras brasileiras, ou em obras sobre poetas do século XIX.

Aparentemente, o único poema da autora saiu no Jornal das Senhoras em 1854.


Intitulava-se A uma Rola.
O Jornal das Senhoras (Rio de Janeiro, RJ), 12/11/1854, número 46, páginas 5 (parte
inferior) e 6 (parte superior).

http://memoria.bn.br/DocReader/700096/1369

http://memoria.bn.br/DocReader/700096/1370

A contista

Só há um conto conhecido de Guilhermina Santos, publicado em periódicos do


século XIX. Intitulado Trave e Palha, saiu em A Folha Nova, jornal do Rio de Janeiro,
em dezembro de 1883, sendo reproduzido na Gazeta do Norte, jornal de Fortaleza, em
fevereiro e março de 1884.

A Folha Nova (Rio de Janeiro, RJ), 18/12/1883 (número 390) e 19/12/1883 (número
391), página 2, em Folhetim.

http://memoria.bn.br/DocReader/363723/1550

http://memoria.bn.br/DocReader/363723/1554

Gazeta do Norte (Fortaleza, CE), 29/2/1884 (número 46), 1/3/1884 (número 47),
4/3/1884 (número 49) e 15/3/1884 (número 50), página 2, em Folhetim.

http://memoria.bn.br/DocReader/103950/3539
http://memoria.bn.br/DocReader/103950/3543

http://memoria.bn.br/DocReader/103950/3551

http://memoria.bn.br/DocReader/103950/3555

O título desse conto leve e engraçado remete a um trecho do Evangelho de Lucas:

"Por que é que você vê o cisco que está no olho do seu irmão e não repara na trave de
madeira que está no seu próprio olho? Como é que você pode dizer ao seu irmão: 'Me
deixe tirar esse cisco do seu olho', se você não repara na trave que está no seu próprio
olho? Hipócrita! Tire primeiro a trave que está no seu olho e então poderá ver bem para
tirar o cisco que está no olho do seu irmão."

https://www.diocesedeblumenau.org.br/site/blog/a-palha-e-a-trave-santo-agostinho-
comenta-o-evangelho-de-hoje/

Os sobrenomes dos personagens principais refletem o tema dessa lição de moral:


Travassos e Palhares.

Como tantas outras escritoras brasileiras da época, Guilhermina Santos deixou uma
produção muito aquém de suas possibilidades devido à dominância dos espaços
literários pelos homens.

Vida pessoal

Em 13 de junho de 1885, o jornal niteroiense O Fluminense publicou uma retificação


de Guilhermina a respeito do texto Separação dos Sexos, atribuído em número anterior
a Arthur Azevedo, embora fosse de autoria do finado marido da escritora, José
Rodrigues dos Santos. Guilhermina morava, então, em Icaraí, bairro de Niterói (RJ), e
pretendia reunir os "bem conhecidos escritos humorísticos" do marido para publicá-los
em um volume, "em breve".
O Fluminense (Rio de Janeiro, RJ), 14/11/1885, número 1102, página 1, penúltima
coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/100439_02/3377

Eis o início do texto de José Rodrigues dos Santos.


O Fluminense (Rio de Janeiro, RJ), 10/11/1885, número 1100, página 3, terceira e
quarta colunas.

http://memoria.bn.br/DocReader/100439_02/3371

Este recorte revela que o marido de Guilhermina tinha o posto militar de major.
Faleceu em 13 de julho de 1883.

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro, RJ), 19/7/1883, número 199, página 4,


penúltima coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/364568_07/8374

O filho mencionado no anúncio fúnebre não se chamava José Rodrigues dos Santos
Júnior. Este falecera em 1879, quando estava casado com Joana Flávia Viana dos
Santos.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro, RJ), 29/4/1879, número 118, página 6,
penúltima coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/364568_06/20808

A seguir, o texto integral do conto de Guilhermina Santos.

___________________________________

TRAVE E PALHA

D. Valentina Travassos adora seu marido; o Sr. Teófilo Travassos é fanático por sua
mulher; isto é a voz pública. Vistos em separado são excelentes; reunidos, são perfeitos.
Todos os estimam.

Dotados pela natureza de um coração excessivamente sensível, ocupam-se desde pela


manhã até a noite em tornar-se úteis ao próximo.

Bem poucos casos do seu conhecimento existem que não tenham experimentado da
sua solicitude, pelo bem dos outros.

As moças que vão ficando para tias; os filhos de família que estão em desarmonia
com pais exigentes; os esposos que uma incompatibilidade de gênios passageira
desuniu, podem, com toda a confiança, dirigir-se a eles.

O marido encarrega-se dos homens; a mulher das senhoras; dão-lhes conselhos,


admoestações, se é preciso, exemplos sobretudo, e as reconciliações fazem-se com
maravilhosa prontidão.

Algumas línguas perversas têm pretendido que o Sr. e a Sra. Travassos são muito
fingidos e que se intrometem demasiado com o que não é da sua competência. Isso,
porém, não passa de boatos; são indignas acusações que sempre colhem, sem lhes dar
importância, as pessoas caridosas que espalham o bem em torno de si.

II

D. Valentina só tem um defeito: é um pouco ruidosa.


Também só as pessoas de consciência pouco tranquila buscam dissimular ou
amenizar a sua presença. Ela que nada tem a exprobar-se, em qualquer parte onde está, é
preciso que a vejam, que a ouçam. Mas isso não é crime.

Em fins do mês passado entrou D. Valentina no quarto em que dormia seu marido ―
eram seis horas da manhã ―, foi direita à janela, correu com violência as cortinas,
abriu, sem nenhuma precaução, as venezianas, e dirigiu-se para o leito em que o Sr.
Travassos, com as sobrancelhas carregadas, perguntava a si mesmo por que o
acordavam tão bruscamente.

Sem incomodar-se com os olhares que lhe lançava seu marido, ela tomou a palavra:

― O céu envia-nos uma dolorosa ocasião de exercermos a dedicação, na qual


procuramos a nossa única voluptuosidade.

Teófilo, que de boa vontade recomeçaria um sono interrompido, fez o gesto de quem
deseja adiar para mais tarde as confidências de quem está ameaçado.

Mas a exuberante Valentina prosseguiu:

― Sabes o que acontece? Luciana deixou o marido!

― Luciana? Quem diabo pode chamar-se Luciana a esta hora? ― murmurou Teófilo,
aborrecido.

― Luciana Palhares, a minha melhor amiga.

― Ah! Deveras! A Lucianinha! Mas eu nada tenho com isso... Eu não sou o marido
dela... Sou o teu... O que já é mais que suficiente ― acrescentou in petto.

― Ah! Tu nada podes fazer! Crês isto?... Pois eu penso exatamente o contrário.

"E esta!", pensou Travassos.

― Sim! Nós devemo-nos a nós mesmos, não podemos perder a reputação de nos
envolver sempre à reconciliação do próximo.

― Isso lá é verdade ― respondeu Teófilo, em tom de condensada indiferença. ―


Mas que fez essa Lucianinha? Deixou-se raptar por algum urbano [agente de polícia]?

― Oh! Teófilo! ― exclamou Valetina indignada.

― Também, ela tem uns olhos que parecem pedir esmola à porta de todos os
corações...

― Olha que sempre tens lembranças!... Pois fica sabendo que ela teve uma questão
com o marido. Exaltaram-se demais. Luciana ofereceu a Palhares uma bofetada que este
não teve tempo de recusar. Em suma, separaram-se de comum acordo e vão divorciar-
se!
Travassos, vendo que era impossível reatar o sono interrompido, disse esfregando os
olhos:

― Sempre pensei que isso acabaria assim. Essa moça tem um gênio detestável!

― Quem? Luciana! Ah, se te parece!

― Certamente! Demais [Além disso], não possuía um vintém quando casou com o
Palhares.

― Tinha a sua beleza!

― Qual beleza... qual beleza... Não sei com que olhos a vês para achá-la bonita; é
uma boneca malfeita.

― Em todo o caso, sempre é melhor que o marido, que tem um ombro mais alto do
que o outro.

― Calúnia!

― Pois sim! É calúnia também que ele é jogador e que não pode ver um rabo de saia
sem correr-lhe logo no encalço? É um miserável e um monstro!

― Então, para que queres reconciliar a tua amiga com um ente tão abominável?

― Sabes que mais?... Aborreces-me!

― Começam as amabilidades. Se é para isso que vieste despertar-me antes de


romper o dia...

― Até que afinal! Soltaste a palavra! Vim importunar a tua preguiça. Eis o grande
crime!... Não é assim? Não se te pode arrancar da cama...

― Valentina, deixa-me em paz. Não estou disposto hoje a fazer coro com o teu mau
humor. Se queres disputar, vai procurar a tua cozinheira. Ela tem boa língua e faz-te
calar às vezes.

― Como és indigno e grosseiro!

― Não! Dize antes "sincero".

A Sra. Travassos apruma-se e vai responder; mas seu marido, retraindo-se, toma a
palavra e diz:

― Entretanto será bom irmos à casa dos Palhares hoje mesmo.

― Ah! Pensas que ela está lá? Pois não! Retirou-se para casa de sua mãe, a viúva
Sampaio.

― Pois irás visitá-la aí. Eu procurarei o Juca. Estou certo de encontrá-lo na rua do
Ouvidor. Tu convencerás Luciana de que fez mal. Eu provarei ao Juca que ele não tem
razão, e nós os convidaremos para jantar no sábado. À sobremesa eles hão de abraçar-se
ou perderemos a nossa fama! Em campo, pois, Valentina, e desenvolve toda a tua
diplomacia.

III

Logo que findou o almoço, D. Valentina Travassos, que se intitulava modestamente


― a irmãzinha dos aflitos ―, saiu de sua casa em trajes pouco vistosos, como indicando
que levava nas dobras do vestido o termo de todos os males.

Luciana era uma graciosa moça de vinte e quatro anos, que Travassos caluniara, pois
que era realmente formosa e elegante.

Com tanta eloquência como precaução, com palavras confidenciais, mas sem abdicar
da autoridade que dá a consciência do próprio valor, Valentina expôs o motivo de sua
visita, Luciana exclamou:

― Nunca! Sabe que ele me insultou?

― A senhora ofendeu-o.

― Ele me ameaçou, minha cara!

― E a senhora bateu-lhe, minha amiga.

― Então, ele que me peça perdão.

― Pedirá.

― Não aceito o seu convite senão com essa condição.

― Pois bem, mas venha.

― Que dia?

― Sábado.

― Se soubesse como ele foi violento!... A propósito, eu quer ser a primeira a chegar.
Às duas horas estou lá! Mas não conte muito comigo.

― Ai! Mau! Mau! Olha que a espero!

E Valentina saiu, toda risonha.

Pouco depois, Palhares recebia igual convite de Teófilo e aceitava-o com entusiasmo.

― Você é o modelo dos amigos ― disse ele. ― Nunca me esquecerei que me


restituiu a felicidade!

― Falemos condicionalmente, meu caro Palhares; espero que minha mulher consiga
convencer a sua, mas o caso ainda não é certo.
― Ah! Tem razão! A minha pobre Luciana é um pouco teimosa e, demais, sua mãe
mete-lhe na cabeça certas ideias... Deus queira que ela consinta em vir! Enfim, seja
como for, até sábado!

― Até sábado!

Logo que chegaram à casa, os consoladores de profissão interrogaram-se:

― Então? ― disse Teófilo.

― Então, meu amigo, não me foi difícil convencê-la. Não era tarefa digna das
minhas qualidades.

― Tal qual como eu: o Juca quase saltou-me ao pescoço quando lhe fiz a proposta.
Lamentei, deveras, ter-me incomodado por tão pouco.

― O que eu não compreendo ― disse Valentina ― é como há gente que brigue com
tanta violência, para tão facilmente estarem prontos a abraçar-se...

― Quem sabe! Talvez que até sábado o rompimento tenha se tornado completo.

― Assim o devemos desejar para termos ocasião de ser mais úteis ― retorquiu
Valentina em tom beatífico.

IV

No sábado seguinte, às duas horas, D. Luciana Palhares, em traje sombrio, como


convém a uma infeliz mulher esmagada pela dor, com o semblante oculto por espesso
véu, batia, muito comovida, à porta de sua boa amiga. A sua primeira palavra foi esta:

― Chego primeiro do que ele, não é?

― Sim, minha queridinha ― respondeu Valentina, que tomava ares cada vez mais
maternos e protetores. ― Como está trêmula, minha filha! Que tens?

― Pois não sabe, minha cara Valentina ― disse Luciana, já impacientada com as
carícias exageradas da sua amiga ―, que o meu destino vai decidir-se dentro em pouco?
De que se admira?

― E a sua grande cólera?

― Ruge ainda... mas ao longe. Não falemos nisso... Poderia despertar...

Batem. É o marido que entra em companhia de Travassos. Coisa singular: se bem


que o Palhares desejasse ardentemente fazer as pazes, apresentava-se com semblante um
pouco severo.

Preocupado em não deixar rebaixar a sua autoridade marital, dera-se desastradamente


a aparência de quem vai receber pêsames.
Sua mulher, que já começava a sorrir-se, notou isso à primeira vista. Tinha a
expressão de arrufo: tornou-se carrancuda. Trocaram-se cumprimentos cerimoniosos,
falou-se na chuva e no bom tempo enquanto se esperava o jantar.

A Sra. Travassos dava-se os ares solenes de uma sacerdotisa da paz, e, observando


essas mutações, sorriu-se do alto de sua nuvem e disse consigo:

"Quando chegarmos à sobremesa, estará derretido o gelo"

E o seu olhar abateu-se amorosamente sobre o adorado esposo, que pelo seu lado
parecia dizer:

"Contemplem bem como se comportam dois esposos entre os quais nunca estalou a
menor tempestade"

Neste momento, um moleque anunciou o jantar, e passaram para a outra sala.

Desde a sopa, Teófilo Travassos encetou a batalha. Dando a perceber quanto era feliz
no seu interior, deixava escapar algumas alusões à situação dos seus amigos.

Estes respondiam às meias palavras dos seus hóspedes com sorrisos constrangidos, e
assim foram indo até às aproximações da sobremesa, onde, segundo as previsões de D.
Valentina, aqueceria a conversação. De vez em quando saía uma palavrinha mais
chistosa, via-se um risinho mais expansivo.

Luciana, sem mostrar ainda francamente os seus lindos dentes, despira-se do seu ar
altivo e reservado. O Juca conversava deixando entrever suas esperanças.

A Sra. Travassos pensou que era chegada a hora de impelir os dois esposos a darem-
se as mãos. Já abria a boca para fazer o supremo esforço que devia assegurar-lhe a
vitória, quando seu marido, querendo servir-se de um prato que estava do lado oposto,
prendeu-se-lhe à manga a asa da saleira, que entornou na toalha todo o conteúdo.

Valentina era supersticiosa. Empalideceu. Depois, não podendo dominar a sua


bulhenta natureza, murmurou, desgraçadamente bem alto, esta só palavra:

— Desastrado!

Teófilo tornou-se do lacre e ficou pasmo um instante. Mas a cólera amontoava-se-lhe


no íntimo. Não podia afazer-se à ideia de ser assim tratado diante de pessoas às quais
queria demonstrar as doçuras de um interior irrepreensível.

— Minha querida ― disse secamente ―, sinto muito dizer-te, mas o verdadeiro


desastrado é quem colocou na mesa esta saleira.

Valentina sacudiu os ombros.


— Nem compreendo ― continuou Travassos, cada vez mais refratário ao epíteto de
"desastrado" ―, que se comprem saleiras com asas tão descomunais, sobretudo quando
quem as compra tem a fraqueza de crer nas más influências de um pouco de sal
entornado...

— Quando se compra um utensílio desses ― retorquiu com força a Sra. Travassos


―, não se pode prover que tenha de sentar-se à mesa a criatura mais desajeitada do
mundo.

Tudo isto era dito num tom de cólera crescente.

Luciana enterrara o nariz no prato, e seus olhos viam maliciosamente.

O Juca Palhares tentou intervir, mas não sem pensar na esquisitice da situação.
Infelizmente nem teve tempo de começar. Teófilo, cada vez mais excitado, continuou:

— Bem sei, minha amiga, que não se pode pedir que acauteles a tua língua; ao
menos, porém, deverias dissimular tuas enfermidades morais diante de pessoas de
cerimônia...

D. Valentina saltou com a ferroada.

— Se eu não respeitasse os meus hóspedes, ser-me-ia fácil fechar-te a boca!

— Oh! Essa agora é um pouco forte! Fala, ordeno-te que fales!

— Deveras! Ordenas-me! Crês que é da tua dignidade, na presença destes senhores,


parecer que tens aqui autoridade. Farias melhor em confessar as tuas culpas... Eu te
perdoaria!

— Minhas culpas!... Perdoar-me!... Valentina, julgava-te mais inteligente.

— Pois eu — respondeu Valentina com desprezo esmagador — nunca me enganei a


teu respeito. Sei, ao justo, quanto vales...

Palhares quis de novo intervir. Voltou-se para um e para outro, com olhares
suplicantes, mas os ataques e respostas cruzavam-se com tal rapidez que apenas pôde
articular um:

— Então, meu amigo...

— Pois não se admira — exclamou Travassos — como essa desgraçada quer dar-se
importância?

— E você? E você? — berrou Valentina. — Não me dirá o que quer dizer essa
expressão de "desgraçada"? Responde, eu o quero!

— Estão vendo, ela o quer. Esta expressão, minha cara, significa... o que tu és.

— Eu que o enriqueci...
— Eu que lhe perdoei...

— Oh! — gritou Valentina, possessa de raiva. — Déspota! Miserável! Carrasco!

— Senhora! Tenha ao menos o pudor de...

A Travassos, que tinha suas razões para não querer ouvir mais, ergueu-se
bruscamente; seu marido, pouco senhor de si, fez o mesmo. Os Palhares imitaram-nos, e
desta vez fizeram o que puderam para acalmá-los.

A doce, meiga e impecável Valentina estende o dedo para aquele que apresentava
como o modelo dos maridos e diz, enfurecida:

— O Sr. Travassos é um covarde!!!

Depois desatou em soluços entremeados por estas palavras:

— Que infâmia!... Quero o divórcio!... Nunca tornarei a vê-lo!... Ninguém me fale


mais nele!...

Sufocada, esquece afinal todos os deveres de dona de casa e retira-se enquanto seu
marido, perdendo a cabeça, esquece também os convidados e sai atirando com as portas.

Achando-se a sós, os Palhares olharam-se mutuamente sem nada dizer e, tomados de


um acesso de riso, abafaram-no nos guardanapos.

Mas, após um instante, Luciana pôs a mão na de seu marido e, rindo-se ainda,
perguntou-lhe:

— Dize, meu amigo, acaso nós fomos assim tão ridículos como estes?

— Ai, minha querida! Creio que sim! Porém, mais ridículos seríamos agora se não
nos disséssemos: Perdoa-me e ama-me!

— Pois amame-nos e perdoemo-nos — repetiu Luciana, lançando-se nos braços de


seu marido, que a conversou unida ao peito num longo abraço.

— E agora, que faremos?

— Só vejo uma coisa: é reconciliar os Travassos. Há de ter sua graça!

— Sim, devemos-lhe essa compensação.

— Encarrega-te da fogosa Valentina, eu vou procurar Teófilo.

Puserem mãos à obra e não tardaram em descobrir os dois esposos inimigos,


furiosos, cada um para seu lado.

Fizeram-lhes compreender quanto sofreria a sua reputação de consoladores dos


aflitos, se pudesse dizer-se que os seus arrufos haviam durado algumas horas somente.
Afinal, sem muito esforço, conduziram Travassos aos pés de Valentina.
Estes caíram nos braços um do outro, derramando lágrimas patéticas!

...........................

E foram alegremente saborear a sobremesa.

VI

Algum tempo mais tarde, Travassos encontrou um amigo que já tivera também
ocasião de precisar dos seus bons ofícios. Este disse-lhe gracejando:

— Então, meu galhardo! Que foi isso? Vocês também dão maus exemplos!

— Que queres dizer?

— Ora! Que não sabe que tiveste uma desavença com tua mulher?

— Quem te disse isso?

— Soube-o em casa de Palhares.

— Os Palhares! Logo vi! Então os Palhares espalham maledicências contra nós?...


Eis como se é recompensado do pouco bem que se pode fazer! Fomos nós que os
reconciliamos e... São uns ingratos!!!

O amigo despediu-se e foi dizendo com os seus botões:

— E não querem crer no ditado: Queres tirar a palha do olho alheio, tira primeiro a
trave do teu!

FIM

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