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INVESTIGAÇÕES DE AUTORIA E PUBLICAÇÃO

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Autor: Sérgio Barcellos Ximenes.

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O segundo poema-acróstico ofensivo a D. Pedro II: Barão d'Itabuna, o guarda-


serralho do Rei (1869)

Resumo

Tema: o poema-acróstico Barão d'Itaúna, o guarda-serralho do rei.

Título original do poema: Bem-te-vi em roda-vida, uma composição de conteúdo


infantojuvenil.

Primeira publicação: Diário de S. Paulo (jornal governista e monarquista), em 16


de janeiro de 1869, sem o destaque da letra inicial de cada verso.

Segunda publicação: O Ypiranga (jornal paulista opositor do governo), em 22 de


janeiro de 1869, com o destaque da letra inicial de cada verso.

Terceira publicação: Opinião Liberal (jornal carioca opositor do governo), em 28


de janeiro de 1869, com o destaque da letra inicial de cada verso.

Inspiração do poema: um hino comemorativo ao 43.º aniversário de D. Pedro II, de


autoria de Vicente José Ramos (1826-1896), que continha o acróstico O bobo do rei faz
anos; publicado no Jornal do Commercio em 2 de dezembro de 1868, gerou uma crise
política no governo de Pedro II.

Reação à revelação do acróstico: um editorial furibundo do Diário de S. Paulo, em


24 de janeiro, inserido na seção Folhetim do Diário de sua primeira página.

Provável autor do poema: o escritor e político Salvador de Mendonça (1841-1897),


um dos dois principais redatores do Ypiranga.

Indícios de autoria:
1. Uma situação paralela à do primeiro poema-acróstico: a publicação em jornal
governista e a revelação do acróstico, por seu autor, em outro jornal. Sem essa
revelação, a trollagem não geraria impacto político.

2. A pessoa mais indicada para conhecer a própria existência de um acróstico político


em um inocente poema infantojuvenil seria, obviamente, o seu autor.

3. Salvador de Mendonça era um dos dois responsáveis pelo jornal paulistano, o


maior crítico do Barão de Itaúna na imprensa paulista.

4. Teve seu nome associado ao primeiro poema-acróstico, provavelmente por uma


confusão de jornalistas entre a autoria do primeiro e a do segundo.

5. Como político, era um ferrenho opositor da monarquia e propagandista da


República.

6. Destacou-se na literatura como poeta.

O Barão (depois Visconde) de Itaúna: Cândido Borges Monteiro (1812-1872),


médico cirurgião e fundador da Academia Imperial de Medicina, que abandonou a
carreira para se tornar político, chegando a senador vitalício e a presidente da província
da São Paulo (este, na época do poema-acróstico).

Motivação para o poema: a administração de São Paulo pelo Barão, considerada


desastrosa pelos redatores de O Ypiranga:

. A mais desgraçada administração que jamais teve a província de S. Paulo;

. O mais servil de todos os homens públicos do Império;

. Nem ao menos teve o talento da torpeza, ele, o seu mais zeloso cultor;

. Todos os sentimentos elevados pareceram-lhe insultos à devassidão de sua alma.

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Apresentação

O primeiro poema-acróstico ofensivo ao imperador D. Pedro II saiu no Jornal do


Commercio (Rio) em 2 de dezembro de 1868, data do 43.º aniversário do monarca.
Lendo-se verticalmente a primeira letra de cada verso descobria-se a frase: O bobo do
rei faz annos (grafia da época).

Abaixo, a imagem da reprodução do poema no jornal baiano Alabama, a única na


qual a primeira letra de cada verso aparece em negrito.
O Alabama (Salvador, BA), 15/12/1868, número 446, página 3, primeira coluna.

http://200.187.16.144:8080/jspui/bitstream/bv2julho/985/1/Dezembro_1868.pdf

A história desse poema e da investigação que levou à descoberta de seu autor, em 14


de novembro de 2020, estão contadas no artigo O autor do poema-acróstico O bobo do
rei faz anos, publicado no dia do aniversário de D. Pedro II em 2 de dezembro de 1868,
disponível para leitura ou download no OneDrive, subpasta Investigações de Autoria e
Publicação:

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O segundo poema-acróstico

Não há dúvida: o segundo poema-acróstico teve como inspiração esse primeiro. O


mês de dezembro de 1868 caracterizou-se no Brasil pela repercussão midiática, política,
legal e policial da iniciativa ousada (e vingativa) do comerciante e jornalista
independente Vicente José Ramos (1826-1896), autor do poema-acróstico publicado no
Jornal do Commercio.
Um misto de decoro e receio impediu muitos periódicos de abordarem o caso, até
porque teriam de repetir a frase insultuosa ao imperador nas explicações, gerando mais
repercussão para o escândalo: a maioria desses jornais era governista e monarquista.
Mas isso não impediu a sociedade brasileira de comentar a trollagem histórica de
Vicente, como foi demonstrado no primeiro artigo desta série.

Se alguns periódicos da atualidade tivessem de mencionar a candente discussão entre


monarquistas e opositores, talvez recorressem ao emprego do chavão clássico do
jornalismo murista: Poema-acróstico sobre o imperador divide opiniões.

Em 16 de janeiro de 1869, quando o impacto político do primeiro poema-acróstico já


havia se dissolvido, o Diário de S. Paulo, jornal monarquista como o seu colega
fluminense Jornal do Commercio, publicou um poema muito mais inocente do que o
hino-louvação a D. Pedro II. Tinha por título Bem-te-vi em roda-viva. Aparentemente,
tratava-se de um poema lúdico de natureza infantojuvenil.

Na reprodução abaixo, acrescentei o negrito na letra inicial de cada verso para


destacar o acróstico.

PUBLICAÇÕES PEDIDAS

____

Bem-te-vi em roda-viva

Bem-te-vi do mato virgem!

Anda! Toca a trinar;

Roda; roda, meu povinho,

Araponga vai cantar.

O Joãozinho toca viola,

Devemos todos folgar;

Ignacinha forma a roda,

Tenho fieira que puxar.

Anda, vem, ó Mariquinhas,

Um abraço quero dar;

Não faz mal, papai já disse;


Apertai-me até matar.

O papai não quer que eu dance

Gosto muito de folgar.

Uma fieira bem puxada,

Algum dia hei de mostrar.

Razão não tens, Mariquinhas,

Deixa papai caducar.

A violinha está vibrando,

Salta logo, vem folgar.

Espera papai dormir,

Roda-viva hei de fazer.

Rapaziada! Encham os copos,

A tua saúde vou fazer.

Livre nasci, cresci livre,

Hoje livre hei de morrer.

Os copinhos bem virados.

Dançaremos com prazer.

O papai já está dormindo,

Roda-viva vou fazer;

E a coroa do noivado,

Inda espero merecer.


Diário de S. Paulo (São Paulo), 16/1/1869, número 1017, página 2, última coluna.

http://memoria.bn.br/docreader/709557/3917

Ninguém atinou para a malícia do acróstico escondido no poema: Barão d'Itaúna, o


guarda-serralho do rei.

O guarda do serralho era o funcionário encarregado de tomar conta do lugar onde


viviam as mulheres do sultão.

Mais uma vez, os responsáveis por um grande jornal monarquista haviam sido
trollados por opositores políticos. Vicente José Ramos fazia escola.

Os responsáveis pelo jornal certamente buscariam alguma trapaça escondida em


publicação paga relativa ao imperador, alertados pela gafe histórica do Jornal do
Commercio, mas supor o mesmo grau de maldade em um poema infantojuvenil... O
autor do poema, de modo esperto, evitou o tema político e superou de modo criativo os
guardiões da dignidade de Pedro II.

Encontrei esse poema durante a pesquisa para o artigo sobre o acróstico de autoria de
Vicente José Ramos, em 15 de novembro de 2020. A princípio achei apenas curioso,
mas depois de uma breve investigação veio a surpresa: não há menção ao poema Bem-
te-vi em roda-viva ou ao acróstico Barão d'Itaúna, o guarda-serralho do rei no Google,
no Google Scholar (seção destinada a trabalhos acadêmicos) ou no Google Books.
Muito provavelmente, é inédito em trabalhos históricos.

Os acrósticos e a sua relação com o espírito lúdico

A história do acróstico é longa e remonta aos antigos egípcios, como revelei na


minha História Cultural das Palavras Cruzadas. Esse trabalho, realizado entre 2000 e
2003, valeu-se apenas de fontes obtidas por meio da internet e já foi aproveitado em
livros sobre o passatempo publicados nos Estados Unidos, na Itália, no Japão e na
Sérvia.

Link para o capítulo sobre os acrósticos:

https://1drv.ms/w/s!Aj6kOBkyV630ghV0EDM4-NKHQl4d?e=s96QOb

A mais importante evolução do acróstico, em termos sociais, deu-se quando o


espírito lúdico responsável por sua criação foi além da mera poesia e incorporou o
cruzamento de palavras, em meados do século XIX, nos periódicos da Inglaterra.

A novidade levaria, ao final de uma evolução que abrangeu a criação de mais de 100
formas de jogos de cruzamento de palavras, ao passatempo das palavras cruzadas, que
estreou em 21 de dezembro de 1913 com a publicação de um jogo no jornal nova-
iorquino The New York World, de autoria do inglês Arthur Wynne, responsável pelo
caderno de diversões do periódico (Fun). As palavras cruzadas são o mais famoso jogo
de cruzamento de palavras da História.

No Brasil tivemos um caso notável de trollagem por meio do acróstico, em texto


jornalístico, quando Pedro Ivo Tomé publicou o seu último texto na Folha de S. Paulo,
em 13 de julho de 2015, logo após ser informado da demissão pela chefia.

Lendo-se apenas a letra inicial de cada parágrafo do obituário, forma-se a frase:


Chupa Folha.

Na matéria do site Blasting News Brasil intitulada Repórter demitido da Folha se


despede "trollando" a empresa com acróstico (17/7/2015), o jornalista Oro Mendes
tentou reproduzir a brincadeira criando a palavra ACRÓSTICO do mesmo modo, mas
acabou escrevendo ACRÓSTIOO.

https://br.blastingnews.com/sociedade-opiniao/2015/07/reporter-demitido-da-folha-
se-despede-trollando-a-empresa-com-acrostico-00478593.html

A revelação da segunda trollagem com D. Pedro e a fúria do Diário de S. Paulo

No dia 22 de janeiro de 1869, seis dias após a divulgação do inocente poema no


Diário de S. Paulo, o periódico O Ypiranga revelou ao público o real significado
daquela iniciativa. Na página 4 da edição lia-se em Notícias diversas:

____
Acróstico famoso ― O Diário de S. Paulo de 16 do corrente, na quarta coluna da
segunda página, publicou o seguinte e interessante acróstico: [...]

____

Seguia-se a reprodução do poema, agora com o destaque vertical de cada letra inicial
dos versos para que os leitores, inclinando o jornal para a esquerda, pudessem ler o
acróstico.

O Ypiranga (São Paulo, SP), 22/1/1869, número 122, página 4, segunda coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/375420/1703
Repare na imagem da caveira ao final do texto. O Ypiranga era um jornal paulista
defensor da política liberal, ou seja, contrário à instituição da monarquia.

A reação furibunda (para dizer o mínimo) do Diário de S. Paulo à revelação da


rasteira literária e política veio dois dias depois, em 24 de janeiro de 1869.

"Eu fugirei desses répteis nojentos como quem evita o contágio da lepra, como quem
foge dos horrores da peste."

No Folhetim do Diário – Ao correr da pena, um redator que se assinava Tullio ―


muito provavelmente o proprietário do jornal, capitão Paulo Delfino da Fonseca ―
abordou a questão desta maneira:

_______

A canalhocracia do órgão da oposição, acompanhando pari-passu os miseráveis que


na Corte, por meio de infames tricas conseguiram a publicação de uma versalhada no
Diário do Rio [de Janeiro], que nada mais era do que um acróstico com estas palavras
— O Rei bobo faz annos, acaba de usar da mesma perfídia e de revolver-se no mesmo
lixo, fazendo estampar no Diário de S. Paulo aguda indecência ritmada a quatro e que a
folha volante da farrapagem oposicionista [O Ypiranga] expôs à indignação dos homens
de bem e aos comentos [comentários] dos mal-intencionados.

Como se deu aquela infâmia, como o órgão da imprensa oficial apresentou em suas
colunas aquela prova escrita da degradação a que têm chegado os pasquineiros da rua do
Ouvidor, já se acha perfeitamente explicado, já está na consciência do público.

Quem tem coragem para cometer uma ação tão vil é capaz de esconder-se atrás do
pau para assaltar a vítima e roubar-lhe a vida e a fortuna; é capaz de mercadejar com a
própria honra para realizar seus depravados planos; é capaz de precipitar-se pela rampa
escorregadia das ações mais torpes, dos crimes mais horrendos, para saciar sua fome
devoradora, para embeber-se mais e mais no satânico prazer de pôr em almoeda [leilão]
a reputação de caracteres honestos.

É o prazer que sente a fera quando suga o sangue da vítima semiviva que se estorce
nas agonias de uma dor que não se exprime. É a satisfação dos perversos, que, não
podendo medirem-se com o seu adversário em uma luta a peito descoberto, própria de
cavalheiros que se prezam, buscam as trevas, envolvem-se numa mortalha tão negra
como suas almas, empunham a arma do sicário, e cosendo-se com a parede, no lugar
onde a sombra é mais densa, onde a noite é mais completa, atiram-se sobre a vítima
desapercebida e a ferem no coração!

Admire quem quiser o cinismo dos salteadores da imprensa, que se apregoa — o


órgão de um grande partido; riam-se da boa-fé com que foi acolhida essa página
vergonhosa escrita por uma penca sem pudor; que eu fugirei desses répteis nojentos
como quem evita o contágio da lepra, como quem foge dos horrores da peste.
"Há almas, que, à semelhança dos caranguejos, recuam continuamente para as trevas,
retrogradando na vida em vez de avançarem, empregando a experiência em aumentar
sua própria perversidade, piorando de contínuo e impregnando-se mais e mais de uma
crescente infâmia."

O autor das Orientais [Victor Hugo, 1829, Os Orientais], traçando estas linhas, quis
sem dúvida estereotipar alguns caracteres do seu tempo e do seu conhecimento,
recomendáveis pelo cinismo que distingue os acrostiqueiros da oposição atual.
Ingenuamente o confesso: a gente do pasquim é de tal arte organizada, que não há coisa
alguma que lhe faça mossa. Tenho estragado meia dúzia de bacalhaus [açoites] e nada
tenho conseguido!

Infelizmente é o mesmo que chover no molhado. Não sei realmente se deva ter dó ou
se deva ter ódio.

Que desgraça.
Diário de S. Paulo (São Paulo, SP), 24/1/1869, número 1024, páginas 1 (penúltima e
última colunas) e 2 (primeira coluna), na seção Folhetim do Diário.

http://memoria.bn.br/DocReader/709557/3944

Assim como no caso do primeiro poema-acróstico ofensivo ao imperador, a mídia


nacional evitou a reprodução do poema e mesmo a divulgação do fato, parte dela por ser
governista, outra parte já sabedora da reação violenta dirigida ao divulgador do primeiro
acróstico.

Mas o Opinião Liberal (Rio), o mesmo jornal que ajudara a divulgar o acróstico O
bobo do rei faz annos, não perdeu a oportunidade: quatro dias após o editorial raivoso
do Diário de S. Paulo, reproduziu o texto de O Ypiranga. A notícia chegava à Corte.
Opinião Liberal (Rio de Janeiro, RJ), 28/1/1869, número 8, página 4, segunda
coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/359696/659

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O Barão (depois Visconde) de Itaúna

O Barão (depois Visconde) de Itaúna não passou à História como "guarda do


serralho do rei". Ao contrário, os textos biográficos sobre Cândido Borges Monteiro
(1812-1872), médico cirurgião e fundador da Academia Imperial de Medicina, são
altamente elogiosos por sua carreira profissional e seu humanismo no tratamento dos
doentes, especialmente nas epidemias de varíola e de cólera ocorridas na década de 50
do século XIX.
Político intimamente ligado a D. Pedro II, ocupou os cargos de vereador, deputado
provincial, deputado geral e senador imperial vitalício (escolhido pelo imperador),
sempre representando o Rio de Janeiro, além de ter sido o presidente da província de
São Paulo na época da criação desse poema-acróstico.

Sua filha Teresa Cristina recebeu esse nome em homenagem à imperatriz, esposa de
Pedro II.

Cabe agora aos historiadores pesquisarem a existência ou não da relação exposta no


acróstico publicado no Diário de S. Paulo. Muito provavelmente, a imagem refere-se ao
sentido figurado, já que jornais como o próprio Ypiranga falavam de sua "prostituição"
no sentido de beneficiamento de políticos favoráveis ao imperador.

O Ypiranga (São Paulo, SP), 10/9/1868, número 19, página 1, terceira coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/375420/1260

Dois textos biográficos sobre o Visconde de Itaúna:


https://www.fredericocarvalho.com.br/tema/sao-goncalo/o-visconde-de-itauna/

http://www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.br/iah/pt/verbetes/montcanbor.htm

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O jornal Ypiranga e sua relação com o Barão de Itaúna

Não é preciso mais do que o texto a seguir para entender o motivo da criação e
divulgação do poema-acróstico pelos jornalistas do periódico paulista O Ypiranga. O
redator (talvez o poeta e político Salvador de Mendonça) se referia ao final próximo da
administração da província de São Paulo pelo Barão de Itaúna nos seguintes termos.

_______

Aproximam-se os últimos momentos da mais desgraçada administração que jamais


teve a província de S. Paulo ―a do Sr. Barão de Itaúna.

Não houve vício que não adorasse; não houve crime que não achasse nele guarida;
não houve, finalmente, virtude [em] que não cuspisse.

Odiou a independência nos amigos, perseguiu a probidade nos adversários; fez da


vingança aos pobres e da violência aos desprotegidos um ato de grandeza.

O mais servil de todos os homens públicos do Império, porque despiu às portas dos
grandes o pudor e a dignidade da criatura humana, procurou imitadores e, horrorizado
de si mesmo por não encontrá-los, como queria, repreendeu sem motivo, maltratou sem
causa os que por sua posição tinham no emprego a obrigação de servi-lo.

Mas nem ao menos teve o talento da torpeza, ele, o seu mais zeloso cultor.

Do patriotismo fez um azorrague do povo, como o padre sem alma que fizesse de um
missal um travesseiro de orgia!

Da lei fabricou a medida do patronato. Onde a encontrou, derrubou-a.

Na polícia, na administração, na guarda nacional ― demitiu e nomeou com violação


de terminantes disposições legais.

Abriu sorrindo os cofres públicos e despendeu muita vez sem verba, ou mandou
fornecer dinheiro a granel para obras não orçadas.

Recrutou e designou com escândalo, gratificando contra as ordens do governo e


disposições da lei os cúmplices de seus atentados.

A este um emprego, àquele uma gorjeta, àquele outro um contrato, a todos o preço da
violência, da fraude ou da abjeção!

Todos os sentimentos elevados pareceram-lhe insultos à devassidão de sua alma.


Para estimar mesmo carecia aviltar. O contato de sua mão não queimava, sujava.
Destino, cegueira, loucura ou remorso, ele precisava cair... cair... cair... para nunca
mais levantar-se!

Aos anátemas dos adversários seguiu-se o horror dos próprios amigos. Só aplaudem-
no os consórcios de suas torpezas; todos os mais [demais] profligam-no [destroem-no]
com uma palavra, ou com um sorriso, ou com o próprio silêncio.

Fez o deserto moral em torno de si.

Quando já não tinha adversários em luta a jogar na mesa eleitoral, o fidalgo atirou-se
aos amigos para estrangulá-los.

Como Judas vendeu a seu mestre, o desgraçado comerciou com o próprio partido.

Atraiçoou e mentiu: contava com o silêncio.

Depois de ter antedatado ofícios e demissões, permitiu, autorizou ou inspirou a


falsificação de cartas.

Era pouco! Pai de família, velho, primeira autoridade da província, nenhum


sentimento lhe mereceu respeito.

Desceu à intriga do vilão, ao mexerico do escravo, às artimanhas de baixa extração.

Oh miséria?! Que presidente de província, desde a época de sua criação, desceu até o
ponto de escrever cartas a um cunhado, intrigando-o com quem era quase seu irmão!

Só ele!...

Entre as criaturas humanas não tem igual! Tê-lo-ia ao menos fora do reino em que
nasceu, entre os animais de mais tristes instintos ou de mais humildes costumes?

Não pode comparar-se ao porco, porque este sai da lama às vezes para aquecer-se ao
sol; ao cão, porque este ao menos conhece a fidelidade; ao gato, porque este tem
momentos de altivez; à raposa, porque esta sabe esperar o momento oportuno para as
suas espertezas.

Muito incompreensível, tem de todos alguma coisa.

Por exemplo, foi corvo no Patrocínio, mas nunca subiu às alturas. Sentiu a carniça
deitando e dormindo!

Deixa como legado na província serviços desorganizados, estradas em abandono,


vítimas que pedem reparação, a intriga e o ódio levados ao seu auge nas localidades, e,
para coroar a obra da fraude, da mentira e da força, a desunião, a discórdia em seu
próprio partido!

Num dia de boa digestão pensou na imortalidade. A alma buscava um trono no


ventre.
Coitado!

― Uma obra! Uma obra que lembre meu nome ― exclamava desesperado.

E... achou... achou justamente o céu... um velho encanamento e uma caixa de filtrar
água!

Para quê?

Até nisto, sátira da fortuna, a consciência ri-se dele!

A obra indicará, depois de sua despedida, o que ele fez e o que ela vale.

― São águas servidas ― dirá o povo. ― Ele precisava lavar-se todos os dias; aquela
água era a sua banheira; mas a água saía tão suja que era necessário filtrá-la.

Que miserável!
O Ypiranga (São Paulo, SP), 14/3/1869, número 168, página 1, terceira e quarta
colunas.

http://memoria.bn.br/DocReader/375420/1857

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O desconhecido autor do poema-acróstico: seria Salvador de Mendonça?

Fora a manifestação espumante de raiva do editor do Diário de S. Paulo, não


encontrei nenhuma outra consequência, legal ou policial, da publicação do poema Bem-
te-vi em roda-vida.

No artigo sobre a criação poética de Vicente José Ramos, mostrei como o escritor e
político Salvador de Mendonça (1841-1897) chegou a ser apontado como autor do
poema-acróstico publicado no Jornal do Commercio.

A hipótese mais provável é a de Salvador ter sido o autor do segundo poema-


acróstico.

Seis indícios, não conclusivos, levam a acreditar nessa hipótese:


1. No caso do primeiro poema-acróstico, publicado no Jornal do Commercio também
sem o destaque da letra inicial de cada verso, quem revelou a trollagem foi o autor da
composição (Vicente José Ramos). De outra forma, a ofensa passaria despercebida e o
efeito político da iniciativa teria sido nulo.

No caso do segundo poema-acróstico, se O Ypiranga não houvesse destacado a


chave do poema, o mesmo resultado inócuo teria acontecido. Portanto, partiu de algum
poderoso dentro do jornal a ordem para publicar o acróstico.

2. A pessoa mais indicada para conhecer a própria existência de um acróstico político


em um inocente poema infantojuvenil seria, obviamente, o seu autor.

3. Salvador de Mendonça era um dos dois responsáveis pelo jornal paulistano.

Seu jornal considerou a administração do Barão de Itaúna, na função de presidente


da província de São Paulo, como a mais desastrosa de toda a História. E contra ele
utilizou vários epítetos depreciativos, ao descrever o caráter do Barão.

4. A atribuição do primeiro poema-acróstico a Salvador de Mendonça pode ter


derivado de uma confusão de jornalistas entre a autoria do primeiro e a do segundo,
natural quando a informação corre de boca em boca, sem haver registro ou admissão
aberta da iniciativa.

5. Salvador de Mendonça era opositor da monarquia. Na biografia do "imortal", o


site da Academia Brasileira de Letras informa: "Assumiu [em 1867] o cargo de diretor
de O Ipiranga, órgão do Centro Liberal de São Paulo, e nessa atividade iniciou a
propaganda republicana no Brasil".

https://www.academia.org.br/academicos/salvador-de-mendonca/biografia

6. Por fim, destacou-se como poeta. Da mesma biografia:

"Como poeta, Salvador de Mendonça, que parece ter feito a formação intelectual na
poesia de Gonçalves Dias e Casimiro de Abreu, é um legítimo continuador dos
românticos. Seus versos de mocidade, perdidos em velhas coleções de jornais do Rio e
de São Paulo, têm características dos poetas do fim do Romantismo. Há, porém, em sua
poesia, aspectos que o distinguem, como o intenso sentimento da terra, da gente e da
paisagem do Brasil".
Nesse caso não temos a garantia de duas fontes da época que afirmaram
categoricamente conhecer o autor, como no caso do primeiro poema-acróstico. Mas não
há, até o nosso presente grau de conhecimento, "suspeito" mais provável para a autoria
do poema-acróstico Bem-te-vi em roda-vida que o próprio Salvador de Mendonça.

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