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ESCRAVIDÃO

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Autor: Sérgio Barcellos Ximenes.

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Rita, Romance em cinco capítulos, uma história antiescravagista de autoria do


principal ator cômico brasileiro do século XIX

Resumo

Tema: o conto Rita, Romance em cinco capítulos, publicado na série de 28 folhetins


intitulada Cenas Cômicas (1883-1884), do jornal Gazeta da Tarde (Rio).

Autor do conto: Francisco Correia Vasques (1839-1892), considerado o maior ator


cômico brasileiro do século XIX.

Situação central: o amor incestuoso do filho de um comendador pela filha deste,


gerada por estupro de uma escrava.

Publicação: 27 de dezembro de 1883.

Outras produções sobre a escravidão na série de folhetins: dois poemas recitados


em encontros abolicionistas no ano de 1884, e uma história em defesa do
comportamento das mulheres brasileiras ante seus escravos, também de 1884.

Transcrição integral dos 28 folhetins: 25 deles no livro Scenas Comicas de


Francisco Correa Vasques, lançado em 2017 (incluindo o conto Rita: Romance em
cinco capítulos), e os três folhetins restantes no artigo Três folhetins inéditos de
Francisco Correa Vasques, publicado na Revista Regional de História (volume 24,
número 1, 2019), ambos os trabalhos de Silvia Cristina Martins de Souza.

Texto integral do conto: disponível no final deste artigo.

Agradecimento especial a Silvia Cristina Martins de Souza pelas informações a


respeito do número total de folhetins e do conteúdo do livro Scenas Comicas.

____________________________
Apresentação

Gazeta da Tarde (Rio de Janeiro, RJ), 27/12/1883, número 301, página 1.

http://memoria.bn.br/docreader/226688/3239

Francisco Correia Vasques (1839-1902) já se tornara ator consagrado ao iniciar a


série de folhetins Cenas Cômicas no jornal Gazeta da Tarde, em 18 de outubro de 1883.
Atuando desde 1858, Vasques especializou-se no teatro cômico, escrevendo e
representando peças curtas que fizeram sucesso nos teatros do Rio. As cenas cômicas
eram um gênero popular à época, encenado em intervalos ou ao final de programas
teatrais centrados em peças com vários atos.

No recorte abaixo, repare na qualificação "popularíssimo". A quadrinha refere-se à


participação de Vasques na estreia do drama O Mulato, de Aluísio Azevedo, no Teatro
Recreio Dramático.
Gazeta da Tarde (Rio de Janeiro, RJ), 18/11/1884, número 269, página 1, última
coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/226688/4303

Abaixo, um dos muitos registros da participação de Vasques em programas teatrais


da época.

Gazeta da Tarde (Rio de Janeiro, RJ), 12/12/1884, número 289, página 4, primeira
coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/226688/4386

Publicação da série Cenas Cômicas na Gazeta da Tarde (1883-1884)

Em seu artigo Três folhetins inéditos de Francisco Correa Vasques, Silvia Cristina
Martins de Souza revela os dados básicos sobre o dramaturgo, ator e escritor.
Três folhetins inéditos de Francisco Correa Vasques, Silvia Cristina Martins de
Souza, Revista Regional de História, volume 24, número 1, 2019.

https://revistas2.uepg.br/index.php/rhr/article/view/13649/209209210974

Abaixo, os dados sobre a série de folhetins Cenas Cômicas.

1. 18/10/1883, número 244.

Indisponível.

2. 25/10/1883, número 250, sem título.

http://memoria.bn.br/docreader/226688/3083

3. 31/10/1883.

Indisponível.

4. 8/11/1883, número 261, sem título.

http://memoria.bn.br/docreader/226688/3107

5. 15/11/1883, número 267, A José do Patrocínio.

http://memoria.bn.br/docreader/226688/3127

6. 22/11/1883, número 273, sem título.


http://memoria.bn.br/docreader/226688/3147

7. 29/11/1883, número 279, A S. M. o Imperador.

http://memoria.bn.br/docreader/226688/3167

8. 6/12/1883, número 285.

Indisponível.

9. 13/12/1883, número 290, Aos meus colegas.

http://memoria.bn.br/docreader/226688/3199

10. 20/12/1883, número 296, sem título.

http://memoria.bn.br/docreader/226688/3223

11. 27/12/1883, número 301, Rita: Romance em cinco capítulos.

http://memoria.bn.br/docreader/226688/3239

12. 3/1/1884, número 2, sem título.

http://memoria.bn.br/docreader/226688/3251

13 10/1/1884, número 8, sem título.

http://memoria.bn.br/docreader/226688/3275

14. 17/1/1884, número 14, sem título.

http://memoria.bn.br/docreader/226688/3299

15. 24/1/1884, número 3, Aí! Cara dura!

http://memoria.bn.br/docreader/226688/3323

16. 31/1/1884, número 26, A Revista Ilustrada.

http://memoria.bn.br/docreader/226688/3347

17. 7/2/1884, número 31, sem título.

http://memoria.bn.br/docreader/226688/3367

18. 14/2/1884, número 37, sem título.

http://memoria.bn.br/docreader/226688/3391

19. 21/2/1884, número 43, O Imperador.

http://memoria.bn.br/docreader/226688/3411
20. 28/2/1884, número 48, sem título.

http://memoria.bn.br/docreader/226688/3431

21. 6/3/1884, número 54, sem título.

http://memoria.bn.br/docreader/226688/3455

22. 13/3/1884, número 60, sem título.

http://memoria.bn.br/docreader/226688/3479

23. 10/4/1884, número 84, sem título.

http://memoria.bn.br/docreader/226688/3567

24. 17/4/1884, número 89, sem título.

http://memoria.bn.br/docreader/226688/3587

25. 29/5/1884, número 124, A José do Patrocínio (a partir deste número, a coluna
saiu da seção Folhetim na primeira página).

http://memoria.bn.br/docreader/226688/3728

26. 5/6/1884, número 130, sem título.

http://memoria.bn.br/docreader/226688/3751

27. 19/6/1884, número 141, sem título.

http://memoria.bn.br/docreader/226688/3795

28. 17/7/1884, número 164, sem título.

http://memoria.bn.br/docreader/226688/3887

No dia 12 de dezembro de 1884, uma nota na coluna Atualidade sugeria a retomada


do folhetim por Vasques:

"O Vasques, o gracioso ator cômico que lhe agradeça a pilhéria, e já que volta a
escrever as suas Cenas Cômicas nesta folha, tome lá um abraço e mande o
coleopterozinho pintar menos, que é mais fácil do que se folhetinista".
Gazeta da Tarde (Rio de Janeiro, RJ), 12/12/1884, número 289, página 1, penúltima
coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/226688/4386

Entretanto, não há registro de outra participação do ator-escritor na Gazeta de Tarde,


antes ou depois dessa notinha.

Os textos integrais da série foram atualizados e publicados por Silvia Cristina


Martins de Souza, vinte e cinco deles no livro Scenas Comicas de Francisco Correa
Vasques (2017), e os três últimos no artigo Três folhetins inéditos de Francisco Correa
Vasques, publicado na Revista Regional de História (volume 24, número 1, 2019, link
disponível acima).

Entre os folhetins de Scenas Comicas se encontra o de número 11, Rita: Romance em


cinco capítulos. Como não tenho acesso à obra, a atualização dos textos mostrados neste
artigo é de minha autoria.
https://www.amazon.com.br/Scenas-Comicas-Francisco-Correa-
Vasques/dp/8555077621/

Além desses dois estudos sobre Vasques, Silvia Cristina publicou também Cá estou
outra vez em cena: diálogos políticos nas 'Scenas Comicas' de Francisco Correa
Vasques, em Sæculum – Revista de História, número 12, 30 de junho de 2005.

https://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/srh/article/view/11315

O conto antiescravagista Rita: Romance em cinco capítulos

No décimo primeiro folhetim da série, publicado em 27 de dezembro de 1883,


Vasques escreveu uma história centrada em situação comum na época da escravidão: o
estupro de uma escrava pelo seu "senhor".

A história retrata a situação mais "benevolente" após o estupro: a cria continuava sob
as ordens do dono da fazenda, recebendo às vezes um grau especial de afeto, limitado, é
claro, pela condição de escrava. Outras consequências mais sérias (e mais frequentes)
derivavam do repúdio pelo efeito natural do ato: quando nascida, a criança era enviada
pelo escravagista a uma instituição de caridade ou vendida a outro dono.

Houve situações piores: a esposa do estuprador, consciente da traição, vingava-se da


"rival" grávida por meio de torturas continuadas, muitas vezes focadas na região genital;
ou então forçava o aborto com o recurso à perfuração. As formas mais extremas de
crueldade (e de vingança contra o marido) envolviam a extração do feto por meio da
abertura do ventre, às vezes com a vítima ainda viva, outras vezes depois do seu
assassinato.
Obras como a novela Fantina: Cenas da Escravidão, de Francisco Duarte Badaró
(1881), retrataram a participação cruel das mulheres no período da escravidão brasileira.

Ao introduzir o conto, Vasques explica aos leitores que o título Cenas cômicas não
deve ser interpretado literalmente: "As minhas cenas cômicas tanto podem fazer rir
como chorar". A condução da história é leve, mas a realidade (exposta na parte final) é
bem pesada, apesar do idealismo com que Vasques retrata a relação entre o "senhor" e
seus escravos: "Viúvo há bastantes anos, querido e estimado por um número
considerável de escravos [...]". Há também toques de preconceito: "Era desconfiado
como todos de sua raça", revela, sobre o pajem negro do comendador.

Silvia Cristina desenvolve uma análise acadêmica dessa história em seu trabalho
Escravidão e Liberdade na série de folhetins 'Scenas Comicas' de Francisco Correa
Vasques ('Gazeta da Tarde', Rio de Janeiro, 1883-1884), apresentado em 2019.

https://docplayer.com.br/amp/183605635-Escravidao-e-liberdade-na-serie-de-
folhetins-scenas-comicas-de-francisco-correa-vasques-gazeta-da-tarde-rio-de-
janeiro.html

Outros textos da série centrados na temática da escravidão

Nas Cenas Cômicas, Vasques incluiu dois breves poemas de sua autoria, recitados
em espetáculos abolicionistas, e uma história destinada a expor sua opinião sobre a série
A mulher brasileira é escravocrata?, da própria Gazeta da Tarde, na qual escritores e
personalidades respondiam com longos textos.

Revoltado com participantes favoráveis à tese escravocrata, Vasques expressou


opinião contrária em alguns folhetins, resolvendo depois criar uma história para ilustrar
a sua posição. O conto, sem título, saiu no décimo sétimo folhetim da série, em 7 de
fevereiro de 1884. De natureza (novamente) idealista, retrata uma situação possível mas
rara, segundo o nosso conhecimento daquele período.

Registre-se que os jornais do Rio, entre eles a Gazeta da Tarde, publicaram na


década de 80 daquele século muitas notícias sobre o tratamento cruel de escravizadas
por parte de mulheres brasileiras.

Reproduzo a história após os dois poemas.

O poema Aos Escravos

No domingo, l3, teve lugar, no Polytheama, o festival abolicionista.

A Confederação deve estar satisfeita.

Povo e artistas pareciam estar combinados para darem boas notas de si, sem faltar no
dó de peito do Sr. Arrighi.

O Dr. Ennes de Souza discutiu com toda a calma e desenvolveu com clareza a sua
tese.
O Dr. José Mariano foi eloquentíssimo no seu pequeno porém brilhante discurso. Se
algumas notas falsas apareceram no meio daquela festa de homens livres, foram os
pobres versos que escrevi e recitei. Publicando-os hoje no meu folhetim, peço ao leitor
que não me denuncie; aceite-os em nome da santa causa que abracei.

AOS ESCRAVOS

Um dia na terra livre

Onde nasce o africano,

Descuidado e soberano

Um branco pôs pé no chão.

Trouxe muitos amarrados

Porque assim tinha certeza

De fazer grande riqueza

Vendendo seu próprio irmão!

Vieram depois mais outros

Em grandes barcos negreiros;

E assim vimos brasileiros

Na terra dos homens bravos.

Nossa bandeira manchada,

Nossas estrelas sem brilho,

Pois é vergonha ser filho

Da pátria que tem escravos!

Cruéis castigos se inventam

Além do muito trabalho,

Ferros, correntes, vergalho,

Troncos, algemas e morte!

Enquanto vendem pr'o sul


Os filhos com grande calma

Vão também sem dó, sem alma

Os pais vendendo pr'o norte!

Inda assim nessa agonia,

Mesmo ao pé desses destroços,

Eis que surgem, quais colossos,

Os filhos da escravidão!

Na luta dos condenados

Há pouco tempo em desordem,

Foram amigos da ordem

Na Casa de Correção!
Gazeta da Tarde (Rio de Janeiro, RJ), 17/1/1884, número 14, página 1, em Folhetim.

http://memoria.bn.br/docreader/226688/3299

Poema sem título em homenagem à libertação dos escravos no Ceará, em 25 de


março de 1884

É hoje a festa do povo,

Parabéns, oh! brasileiros,


Nós somos os jangadeiros,

Filhos da nova alvorada!

No santo livro da pátria

Hão de ver na grande história

Ligadas p'ra nossa glória:

A Marselhesa e a Jangada.

Os negros corvos fugindo

Envolvidos na mortalha,

Não contam nesta batalha

O hino dos vencedores;

Nós damos em vez de ferros

A liberdade e a luz,

Em vez de algemas, a cruz,

Em vez de vergalho, flores!

Salve! Mulher brasileira!

Esta festa é o teu brasão,

Caridade e abolição

De todas foi sempre a lei;

Acusadores vencidos

Aqui sorrindo suplantas,

Pois hoje beijam-te as plantas

O povo, a pátria e o rei!

Oh! Brasil, se hoje festejas


A tua glória passada,

Se queres ver respeitada

A carta que tens na mão,

Segue a marcha dos heróis

Daqueles que foram grandes

Sobe mais alto que o Andes,

Fita teus olhos nos céus

E pede palmas a Deus

Pr'a festa da redenção!


Gazeta da Tarde (Rio de Janeiro, RJ), 10/4/1884, número 84, página 1, em Folhetim.

http://memoria.bn.br/docreader/226688/3567

A história de Vasques em defesa das mulheres brasileiras na questão da


escravatura

Leocádia, filha de um negociante rico, tinha, por vontade de seu pai, esposado o Sr.
Antunes da Cunha, que ocupava também, no comércio, uma bonita posição.

Leocádia quereria antes ter casado com o primo Henrique, um moço louro e bem-
educado, porém seu pai embirrou com ele por muitas razões, e a maior delas era saber
que Henrique era um abolicionista do coração, enquanto ele, seu tio, professava ideias
verdadeiramente opostas.

Leocádia obedeceu a seu pai, e no dia de seu casamento o Sr. Antunes recebeu das
mãos de seu sogro um avultado dote.

À sua filha ele mimoseou com algumas joias e fez-lhe presente da escrava Joana,
rapariga dos seus dezesseis anos e que havia crescido ao lado de sinhá moça; era este o
tratamento que Joana lhe dava.

Este presente tinha sido feito debaixo de uma condição: fosse qual fosse o motivo,
Leocádia nunca daria a carta de liberdade a Joana.

Ele sabia que sua filha dava muita atenção às palavras entusiásticas do maluco do
sobrinho, como ele o apelidava, e queria cortar-lhe as vazas [dificultar-lhe os planos]...

* *

Estavam as coisas neste pé.

Henrique frequentava a casa de Antunes e conversava sempre alegremente com a


prima. Um dia, Leocádia disse ao marido:
— Vamos forrar [dar a alforria] a Joana?

— A senhora está doida? — perguntou Antunes. — Não se lembra da recomendação


de seu pai? A senhora quer fazer de Joana uma vagabunda, como muitos outras que
andam por aí? Naturalmente foi o Seu Henrique que lhe meteu isso na cabeça.

— Está bom, está bom! — acudiu Leocádia. — Não falemos mais em tal.

* *
Antunes conheceu [soube] um dia que ia ser pai, e daí a meses Leocádia dava à luz a
uma interessante menina. Joana, que também já era mãe e cujo filho morrera no sétimo
dia, foi encarregada de amamentar a filha da sua sinhá moça.

Tudo quanto aquela criatura tinha de meiguices e de afagos reservados para seu filho,
no fundo do coração, reverteu em favor da filha de Antunes, a quem ela prodigalizava
todos os cuidados de uma mãe extremosa [muito dedicada].

A menina já tinha uns dois anos e era linda como os amores, saltava muitas vezes do
colo de Leocádia, a quem ela chamava mamãe branca, para ir dar um beijo na mamãe
preta.

* *
Com a maior naturalidade deste mundo, passados alguns meses, as cenas de
maternidade tornaram-se a reproduzir em casa de Antunes; com a diferença, porém, que
Leocádia perdia o filho no fim de quinze dias e Joanna dava à luz uma menina.

Foi nesta ocasião que Leocádia achou que era oportuno falar a seu marido outra vez
na liberdade de Joana.

— Qual! — respondeu —: as amas de leite estão por muito bom dinheiro, são mais
oitenta mil réis que tu podes ter por mês para os teus alfinetes.

— E a criança? — perguntou Leocádia.

— Ora, que pergunta: vai para a roda [dos expostos].

E assim aconteceu.

No dia em que Joana saía para o aluguel, debulhada em lágrimas, a criança era
entregue à parteira para seguir o seu destino.

* *
Henrique continuava a frequentar a casa, e sabendo por sua prima do ocorrido,
reprovou acremente o ato do marido.
Antunes não gostava multo destas visitas e começou a notar grande diferença em
Leocádia; via que ela emagrecia a olhos vistos, estava constantemente distraída.

Quando ele entrava em casa não a via na sala; custava a aparecer-lhe e tinha sempre
uma desculpa frívola para justificar as suas ausências.

Este estado de coisas durou quase um ano.

Antunes começou a suspeitar que sua mulher o enganava e fez notar a Henrique que
as suas continuadas visitas não lhe eram agradáveis.

Pôs em jogo todos os meios para surpreender sua mulher, mas todos falhavam.

Uma noite, porém, em que ela tinha se deitado mais cedo do que costumava, teve a
prova de que alguma coisa de extraordinário se passava na sua casa.

Antunes percebeu que Leocádia se levantara de mansinho para observar se ele estava
acordado.

Deixou-se, pois, ficar quieto e fez todos os esforços para fingir que se achava
profundamente adormecido.

Viu Leocádia erguer-se do leito, tomar o peignoir, abrir a porta do quarto e seguir
pelo corredor.

— Até que enfim! — exclamou ele, e foi acompanhando-a, devagar.

Leocádia passou pela cozinha, atravessou um pequeno pátio, entrou num estreito
corredor e bateu levemente em uma porta. Esta abriu-se, e ela entrou, fechando-a por
dentro.

Antunes tremia de cólera; quis deitar a porta dentro, porém conteve-se.

No quarto havia luz; abaixou a cabeça e espiou pelo buraco da fechadura.

Um raio que lhe caísse aos pés não lhe produziria maior efeito.

Leocádia, sentada no chão ao lado de uma preta velha, amamentava a filha de Joana!

.......................................

. No dia seguinte, quando Antunes e sua mulher acabaram de almoçar, vieram lhes
dizer que os procuravam na sala.

Era o pai do menino a quem Joana acabava de criar.

— Aqui está sua escrava, minha senhora — disse ele. — A maneira por que ela
tratou meu filho autoriza-me a vir perguntar-lhe: quanto quer pela sua liberdade?

— Não tem preço, senhor — respondeu Antunes. — Joana está livre!


— Muito bem, Sr. Antunes; esse ato eleva-o a meus olhos. Vou contentíssimo dar
parte à minha mulher.

E saiu.

* *
Ficaram os três na sala.

Leocádia e Joana estavam atônitas.

— Antunes, isto é verdade? Joana está livre? — interrogou Leocádia.

— Certamente — respondeu Antunes —: não pode ser escrava a mãe cuja filha foi
amamentada por ti.

— Minha filha! — gritou Joana.

— Ah! perdão! — disse Leocádia, caindo de joelhos.

— Nos meus braços — respondeu Antunes —; a santa aqui és tu! Vem Joana, vem
abraçar tua filha, e de hoje em diante estás livre... podes partir.

— Nunca! — bradou Joana, agarrando-se aos joelhos de Leocádia —: a mulher pode


ser livre, porém a mãe agradecida há de ser eternamente escrava de sinhá moça.

E então?

.......................................

A mulher brasileira é escravocrata?

Gazeta da Tarde (Rio de Janeiro, RJ), 7/2/1884, número 31, página 1, em Folhetim.

http://memoria.bn.br/docreader/226688/3367
RITA: UM ROMANCE EM CINCO CAPÍTULOS

ADVERTÊNCIA

Antes de começar, hoje, a minha pequena história, tenho de absoluta necessidade


prevenir o leitor para que não faça caso do título do meu folhetim.

No teatro, como ator cômico, sou obrigado a fazer rir, muitas vezes, quando um
sentimento bem diverso ocupa todo o meu ser.

O público alegra-se e não adivinha que a minha alma chora.

A responsabilidade é penosa; o ator nessas ocasiões não é mais do que um autômato;


as frases saem-lhe da boca sem consciência; o gesto não tem vida; as inflexões são
tardias e falsas, e quando às vezes, pelo costume, este bom público o aplaude, nesta ou
naquela cena, as palmas e os bravos vão bater-lhe no coração como se fossem pancadas
de um martelo.

Aqui não vejo razão para contrafazer-me.

As minhas cenas cômicas tanto podem fazer rir como chorar; tanto podem aborrecer
como deleitar.

Sirva esta explicação para os mais exigentes, aos quais peço, neste momento, toda a
benevolência.

Comecemos, pois, a história.

_________________

RITA

ROMANCE EM CINCO CAPÍTULOS

Capítulo I

Preparativos

São quase dez horas da manhã.

O comendador Antunes está radiante de prazer e nota-se nos seus movimentos um


constante desassossego, filho de uma impaciência que mal pode dissimular. O seu
estado tem uma justificação naturalíssima: rico fazendeiro daquele lugar, com sessenta
anos de idade, naquele dia realizava-se o seu último desejo. Viúvo há bastantes anos,
querido e estimado por um número considerável de escravos, era o anjo bom daquelas
vizinhanças; todos tributavam-lhe uma amizade franca e respeitosa. No meio de toda
aquela felicidade, faltava-lhe uma, a verdadeira — abraçar seu filho Carlos, o seu único
herdeiro, a quem esperava naquele momento e que havia dez anos passeava na Europa.

Esse dia tinha chegado.


Antunes estava radiante.

Tinha reunido tudo que havia de melhor naqueles arredores.

Lá estavam o Dr. Anselmo, seu íntimo amigo; o Guedes, boticário; o mestre-escola,


que naturalmente havia de ter algum discurso engatilhado para o momento solene, e o
velho padre João, vigário da freguesia, cujas virtudes eram admiradas por todos.

A sala de jantar oferecia um espetáculo soberbo para os que sabem apreciar o que há
de mais fino na arte culinária.

Era um banquete real.

A sala de visitas estava ornada com um luxo digno de príncipes.

No terreiro tinha-se armado um lindo fogo de artifício, oferecido pelo mestre Inácio,
fogueteiro do lugar.

Desde a porta principal do palacete até ao portão que dava para a estrada, passava-se
por uma abóbada formada de arcos enfeitados com folhas de mangueira e flores. O chão
estava todo atapetado com folhas de canela.

Desse serviço tinham-se incumbido os escravos da fazenda, que se multiplicavam no


trabalho vendo que nisso eram agradáveis àquele que os tratavam com tanto amor e
carinho.

A direção de tudo aquilo estava a cargo de Romualdo, o pajem do comendador, seu


escravo fiel e amigo dedicado, que exercia com toda a perícia as funções de mestre de
cerimônias. Romualdo tinha mais de sessenta anos, era caboclo, mais claro que moreno,
forte ainda e ágil como um rapaz de vinte anos. Sua cabeça estava toda branca, porém
era difícil perceber-se uma ruga naquele rosto sereno onde brilhava um rosto franco e
bondadoso, que lhe bailava nos lábios mostrando duas fileiras de magníficos dentes,
cuja alvura sobressaía no seu rosto acaboclado.

Era desconfiado como todos de sua raça, porém isso não o impedia de ser para com
todos leal e um severo cumpridor das suas obrigações.

Era viúvo também e casara-se com uma linda cabocla, escrava do comendador.
Desse enlace só existia uma filha — Rita ou Ritinha, como todos a chamavam na
fazenda, uma adorável criatura de dezoito anos, travessa e descuidada como um pássaro,
meiga como Iracema, humilde e maliciosa ao mesmo tempo; enfim, um diabrete, uma
verdadeira tentação.

Era afilhada do comendador e tratada na fazenda quase como filha da casa, posição
essa de que ela não abusava, indo muitas vezes fazer companhia a seu pai no meio de
todos os outros escravos. Tocava piano, cantava com gosto e graça, e os autores
franceses não lhe eram estranhos.

O seu padrinho lhe tinha dado uma educação muito regular.


Neste momento estavam todos reunidos no terreiro; os cavalos seguros pelos
escravos esperavam pelos cavaleiros.

O comendador disse em alta voz:

— Vamos a isto, meus senhores! Daqui até a estação ainda temos uma boa meia
légua, e o trem não tarda a chegar. Romualdo, monta no alazão que deve trazer o Sr.
Carlos e partamos.

— Partamos! — foi o grito que saiu de todos os lábios, e a cavalgada partiu a todo o
galope.

Capítulo II

A chegada

Romualdo ia na frente como batedor. O mestre-escola, que tinha presunção de


grande cavaleiro, queria acompanhá-lo, mas, ou porque o seu animal era um tanto
preguiçoso ou porque ele, preocupado com o discurso da recepção, agarrava-se muitas
vezes no clássico santo-antônio, deixou-se ficar atrás. Isto o aborrecia bastante, pois
desejava ser o primeiro a chegar.

Ouviu-se o primeiro grito da locomotiva, e o comendador bradou:

— A todo o galope, meus senhores!

Um hurra geral acolheu aquela ordem, e os cavalos partiram como relâmpagos, como
se tivessem compreendido a impaciência do comandante.

O mestre-escola fez um esforço: o cavalo em que ia montado deu dois arrancos, e ele
que vinha estudando a primeira parte de seu discurso perdeu os estribos e saiu pela
cabeça do animal, que teve a prudência de estacar, apenas [mal] viu a instrução pública
por terra.

— Ah! patife — exclamou ele, levantando-se um tanto magoado —, se fosses meu


discípulo pespegava-te agora duas dúzias de bolos.

O trem tinha chegado ao mesmo tempo que os cavaleiros. O leitor conhece a


balbúrdia dessas ocasiões e me dispensará, portanto, de fazer a narrativa. De um carro
de primeira classe saiu um rapaz que poderia ter os seus trinta e seis anos. Vinha vestido
irrepreensivelmente, trazia bigodes retorcidos e usava pastinhas; uma luneta colada ao
olho esquerdo dava-lhe um certo ar de superioridade e desdém. O comendador, apenas o
avistou, correu para ele, gritando:

— É ele! É meu filho, o meu querido Carlos!

E precipitou-se nos seus braços, chorando de prazer.


Todos o rodearam, e entre abraços e apertos de mãos testemunharam da melhor
forma o prazer daquele momento. Carlos osculou seu pai na testa e retribuiu, como
pôde, as manifestações de que era alvo. Romualdo apresentou-lhe as rédeas do alazão, e
partiram todos ao mesmo tempo.

— Esperem! Esperem! — gritava o mestre-escola, que chegava a toda a brida. Todos


pararam, e ele, tirando do bolso da sobrecasaca uma enorme tira de papel, começou
nestes termos:

— Neste momento solene, meus senhores...

Não pôde continuar, pois gritaram-lhe:

— Tenha paciência, Sr. Soares, a ocasião não é própria, temos pressa de chegar,
guarde isso para mais tarde. — E tal dizendo, continuaram a marcha.

O mestre-escola encordoou [zangou-se] e deixou-se ficar outra vez atrás, guardando


os rasgos de sua eloquência que tantas noites de vigília lhe tinham custado.

Ao chegarem, o portão estava aberto e todos os escravos da fazenda formaram alas


para receber o filho do comendador, que, apeando-se, passou pelo meio deles entre
aclamações ruidosas e alegres. Queriam mostrar daquela forma que compartilhavam do
prazer de que se achava possuído o dono da casa.

Na porta principal do palacete, Ritinha estava de pé e tinha um ramo de violetas na


mão.

Quando viu o moço, aproximou-se com certa timidez e balbuciou:

— Desculpe, Sr. Carlos; aqui está o meu presente de recepção.

Carlos recebeu um choque elétrico ao contemplar aquela formosa moça, cuja voz lhe
penetrara no íntimo da alma.

— Minha senhora — disse ele —, agradeço a V. Ex...

Não teve tampo de acabar; o velho comendador ria a bandeiras despregadas,


dizendo-lhe:

— Oh! Pateta, não conheces a Ritinha, a minha afilhada, a filha do nosso velho
Romualdo!

— Que diz, meu pai! Pois esta encantadora criatura é aquela criança que deixei com
seis anos de idade?

— Sem tirar nem pôr. E vê como te arranjas, ela não foi à Europa, mas sabe um
pouco de tudo: toca piano, canta, desenha e fala francês.

— Oh! Eu terei muito gosto em ouvi-la.


— Nada mais fácil. Ritinha, canta aquele lindo romance francês da tua predileção.

— No mesmo instante, padrinho — disse a moça, correndo ligeira para o piano.

O Sr. Soares, o mestre-escola, chegava naquele momento trazendo na mão o seu


discurso, que teve de guardar ainda mais uma vez, vendo que todos estavam sentados e
ansiosos por ouvir a voz da moça.

Capítulo III

O banquete

Ao terminar o romance, admiravelmente cantado pela Ritinha, uma salva de palmas


rebentou na sala, e Carlos, mais deslumbrado do que nunca, exclamou entusiasmado:

— Oh! Em Paris não se canta melhor!

— Neste momento solene, meus senhores... — ia começar de novo o Sr. Soares,


quando Romualdo, que já tinha chegado a tempo, veio declarar ao comendador que a
mesa estava posta.

— À mesa! À mesa! — gritaram todos.

O mestre-escola fez uma careta e não teve remédio senão conformar-se com a
situação, seguindo com os outros convivas para a sala de jantar.

Ritinha ficara arrumando as músicas e fechava o piano.

Carlos, cego por uma ideia infernal que lhe atravessava o cérebro, sem mesmo ver
que Romualdo estava a dois passos de distância, certo de que não existiam obstáculos
para si, aproximou-se atrevidamente da moça e, tomando-a pela cintura como se fosse
uma cocote de Paris, disse-lhe ao ouvido:

— Preciso saber onde é o teu quarto de dormir.

A moça não soube o que havia de responder e ficou imóvel vendo-o caminhar para
junto de seu pai, que já tinha chamado por ele para dar-lhe o lugar de honra.

Romualdo aproximou-se da moça e perguntou:

— Rita, o que te disse o Sr. Carlos?

— Que desejava saber onde era o meu quarto de dormir.

— Ah! — fez Romualdo, empalidecendo.

— Meu pai não acha essa pergunta extravagante?

— Não — respondeu Romualdo —, acho até isso muito natural: que ver os teus
livros, os teus desenhos, enfim, curiosidade de moço viajante que andou por terras
estrangeiras.
— Meu pai tem razão, e eu hei de fazer-lhe a vontade, não acha? Vai em tal também
um pouco de satisfação para minha vaidade.

E, dizendo isto, correu para a sala de jantar.

Romualdo seguiu-a com os olhos e limpou na manga do casaco uma lágrima,


prenúncio talvez de uma grande tempestade.

Durante o tempo em que estiveram à mesa, todos se esforçaram para dar ao moço as
mais vivas demonstrações de júbilo pela sua chegada. O velho comendador estava louco
de prazer; Ritinha fazia as honras da mesa como não o faria melhor uma senhora da alta
sociedade.

Carlos não perdia ensejo para lhe dizer uma ou outra graçola, que ela não ouvia ou,
pelo menos, fingia não dar atenção. Romualdo não os perdia de vista.

O Sr. Soares já tinha tentado pela quarta vez fazer ouvir o seu discurso, porém nada
tinha conseguido.

Aparecia sempre um incidente que lhe cortava a palavra. À sobremesa quis


aproveitar uma ocasião que lhe pareceu favorável e bateu palmas. Todos exclamaram:

— Atenção! Atenção! Vai falar o Sr. Soares.

— Enfim — disse ele triunfante, e desenrolou o papel. — Neste momento solene,


meus senhores — começou, fazendo um gesto largo, que por caiporismo lhe sugeriu
naquele momento, fazendo tombar duas garrafas cujo conteúdo foi empregar-se nas
calças do boticário e na camisa do vigário.

Uma gargalhada geral acolheu aquela catástrofe, e todos levantaram-se da mesa com
grande desapontamento do infeliz mestre-escola.

Capítulo IV

A rainha do Congo

Enquanto o padre João jogava uma partida de xadrez com o boticário e outros
fumavam, pois o comendador tinha recomendado a mais completa liberdade, este tomou
o braço de seu filho e, acompanhado pela Ritinha, lhe foi mostrar os aposentos que lhe
estavam destinados, aproveitando ao mesmo tempo para lhe fazer ver o resto do
palacete.

Foi nesta ocasião que Ritinha, parando junto a uma escada, disse com toda a
naturalidade:

— Não quer subir, Sr. Carlos? Venha ver o meu quarto de dormir.

— Vaidosa! — exclamou o comendador. — Anda lá, vamos ver o ninho desta


rolinha.
A sala que precedia o quarto da moça era verdadeiramente o que se pode chamar um
paraíso; tudo ali respirava asseio, conforto e inocência. Seus livros, sua pasta de
desenho, uma máquina de costura, tudo estava irrepreensivelmente em ordem. Ritinha
montava também a cavalo; via-se pendurado no cabide o seu gracioso vestuário de
amazonas e sobre uma pequena mesa um lindo rebenque com cabo de prata, presente de
seu padrinho. Carlos sentia-se embriagado.

Ritinha entrou no seu quarto e abriu uma janela que dava para o campo.

— Veja como isto é bonito, Sr. Carlos? Que linda vista.

— É realmente admirável! — exclamou o moço, sem tirar os olhos de Ritinha.

— Vê — continuou ela — esta mangueira cujos ramos entram pela janela? Foi
plantada por minha mãe é o meu talismã. Estes galhos que chegam quase a tocar a
minha cama são como os braços desse ente querido que me abençoa lá de cima e me
protege de qualquer perigo.

— Está bom — disse o comendador —, deixemos de lembranças tristes, vamos para


baixo que já devemos estar fazendo falta.

Desceram. Ritinha ia adiante, o velho comendador seguia-a e Carlos, que se deixou


ficar um pouco atrás, teve tempo de verificar que a porta da sala apenas se fechava com
um trinco. Um sorriso maligno lhe assomou aos lábios, e ficou satisfeito.

Quando chegaram embaixo, dava o padre João o xeque-mate ao rei, o que não foi
muito agradável para o boticário, que se dizia um destro batalhador. O Dr. Anselmo
fumava um havana encostado à janela, ouvindo com toda a paciência, pela terceira vez,
o discurso que o mestre-escola não tinha podido disparar.

* *

Já era noite fechada. O palacete oferecia um espetáculo encantador, todo iluminado


por fora. Os nossos personagens conversavam sobre tudo, ouvindo com muita atenção
todas as aventuras por que Carlos dizia ter passado no estrangeiro. Seriam dez horas
quando foram ouvidos ao longe os sons extravagantes de pandeiros, adufes e marimbas.
Eram os escravos do comendador que vinham celebrar a dança da rainha do Congo em
honra ao futuro dono daquela casa.

Não se pode descrever as extravagâncias daquele bailado. Ora formavam círculos,


ora uma cruz que logo desmanchavam para dar lugar a uma corrida infernal. O que,
porém, mais chamou a atenção geral e muito particularmente a de Carlos, foi a chegada
da soberana que era nada mais nada menos que a nossa encantadora Ritinha. Estava
fascinadora e deslumbrante com seu vestuário de penas. Fazia tais requebros e tais
meneios ao receber as homenagens da sua improvisada corte que todos que estavam
presentes, entusiasmados, cobriram-na de palmas e de flores no fim da festa.
Pouco depois teve lugar o fogo de artifício com que deviam terminar os festejos, e
retiraram-se todos. Carlos abraçou seu pai e, chegando para junto de Ritinha que tinha
ficado distraída junto de uma janela, disse-lhe:

— Até logo, feiticeira, vou me deitar. — E desapareceu pelo corredor.

— Veremos — disse uma voz que partira do jardim em frente à janela.

Era Romualdo.

Capítulo V e último

A revelação

São pouco mais ou menos duas horas da madrugada, todos dormem na fazenda à
exceção de Carlos, que passeia agitado no seu quarto.

A formosa Ritinha não lhe saía da cabeça, e ele resolvera que ela havia de ser sua
naquela mesma noite.

Quem diabo se poderia opor aos seus desígnios? A filha do escravo devia até
lisonjear-se por ele ter-se lembrado da sua pessoa. Meteu uma caixa de fósforos na
algibeira e saiu com as cautelas precisas para não despertar ninguém.

Chegou com facilidade à escada que dava para os aposentos da moça e subiu
desassombradamente.

Chegado à porta da pequena sala, empurrou-a e verificou que estava apenas fechada
com o trinco. Abriu o seu canivete de mola e meteu a ponta entre a fechadura e a
chapatesta. Ouviu-se um pequeno estalo, e a porta, cedendo, abriu-se vagarosamente.

— Às mil maravilhas! — exclamou ele, contente de si mesmo. — Tudo caminha


perfeitamente.

Entrou, riscou um fósforo e acendeu uma vela que estava sobre a pequena mesa. As
portas do quarto da moça estavam abertas, Rita dormia profundamente, e a fina colcha
de damasco que a cobria desenhava com fidelidade todas as formas de seu corpo gentil
e artisticamente correto. Carlos caminhou para ela. De repente, como se fosse uma
aparição fantástica, um homem surgiu, interpondo-se entre ele e o quarto da moça.

Era Romualdo, que tendo adivinhado os projetos do moço, tinha subido pela
mangueira e, auxiliado pelos galhos que Rita chamava os braços de sua mãe, chegava a
tempo de evitar uma infâmia.

— Que quer isto dizer? — exclamou Carlos com todo o sangue-frio.

— Silêncio, Sr. Carlos — disse Romualdo em voz baixa —, volte para seu quarto,
que minha filha ignore que o senhor penetrou aqui.

— Desde quando os escravos dão ordens aos seus senhores?


— Desde que os senhores se esquecem dos seus deveres querendo desonrar as filhas
desses escravos — respondeu Romualdo.

— Para trás, negro, deixa-me passar.

— Não passará — disse Romualdo. — O escravo desapareceu, aqui agora só está um


pai que defende sua filha.

— Ah! Tu teimas comigo — murmurou Carlos, enfurecendo-se e tomando o


rebenque de Rita que estava sobre a mesa.

— Veja o que faz, Sr. Carlos, depois não se arrependa.

— Ousas ameaçar-me! Espera. — Levantou o chicote, e duas vergalhadas caíram em


cheio sobre o rosto de Romualdo. O velho caboclo quis conter-se, mas sentiu caírem-lhe
nos lábios duas gotas de sangue. Ficou como um louco, atirou-se sobre Carlos, enlaçou-
o nos seus braços de ferro e em menos de dez segundos tinha-o atirado por terra, pondo-
lhe um pé no pescoço.

Rita, acordando com aquele barulho, sem saber o que se passava, abriu a janela,
enrolada na sua colcha, e começou a gritar:

— Socorro! Acudam! Meu padrinho!

Aquela voz foi um sinal de rebate. Todos se levantaram.

Quando o velho comendador entrou no teatro em que se passava esta cena, Carlos já
estava de pé, e caminhando para ele disse-lhe com altivez.

— Meu pai, este negro acaba de desfeitear-me.

— Romualdo, que foi isto? — perguntou o comendador.

O velho caboclo não respondeu, olhou para a menina, olhou para Carlos e atirou-se
de joelhos aos pés do comendador, confundindo as lágrimas com o sangue que lhe
corria das faces.

O pai de Carlos tinha compreendido tudo.

Ordenou a Romualdo que se fosse deitar, que acomodasse os outros e que nada
dissesse sobre o que se tinha passado. Depois tomou o filho pelo braço e saíram ambos.

Quando chegaram embaixo, o velho comendador, trêmulo, banhado em pranto, quase


a tombar, tal era a emoção que se apoderara dele naquele momento, agarrando-se ao
moço para não cair, disse-lhe em voz baixa, com medo que as paredes ouvissem:

— Carlos, meu filho, que ias fazer? Rita é tua irmã!

Gazeta da Tarde (Rio de Janeiro, RJ), 27/12/1883, páginas 1 e 2.


http://memoria.bn.br/docreader/226688/3239

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