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MACHADO DE ASSIS

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Autor: Sérgio Barcellos Ximenes.

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Uma crítica inédita ao romance Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881)
Resumo
Tema: uma crítica extensa e aparentemente inédita do romance Memórias Póstumas
de Brás Cubas, de Machado de Assis.
Publicação: Gazeta da Tarde (Rio de Janeiro), em 28 de janeiro de 1881 (mês de
lançamento do romance em livro), na primeira página, em três colunas.
Autor da crítica: Urbano Duarte (1855–1902); não há assinatura no texto.
Essência do texto: a afirmação de queda de qualidade do autor em relação aos
romances anteriores; a reprovação ao estilo “naturalista” de Memórias Póstumas; e a
crítica à natureza amoral da história e ao “materialismo grosseiro e desolador” de
Machado.
Único aspecto relevante da crítica: o pioneirismo do autor ao apontar semelhanças
de conteúdo entre Memórias Póstumas e O Primo Basílio, romance de Eça de Queiroz,
tema polêmico abordado em trabalhos acadêmicos da atualidade.
Sugestão final do autor a Machado: abandonar o novo estilo, dedicar-se ao
romance histórico e criar personagens heroicos capazes de transmitir mensagens
edificantes a seus leitores.
______________________
Apresentação
O caminho até essa crítica misteriosa (e um tanto cômica) foi simples e rápido.
Atualizando os textos de todas as resenhas e críticas sobre o romance de Machado de
Assis na madrugada de 28 de junho de 2020, para o artigo A recepção crítica a
Memórias Póstumas de Brás Cubas à época do lançamento, deparei-me com este trecho
da resenha de Arthur Barreiros publicada em 28 de fevereiro de 1881 pela revista A
Estação:
__________________
É esta circunstância singular o que lhe dá mais valor e lhe afirma a durabilidade; foi
ainda esta circunstância que levou um crítico, a quem aliás sobeja talento, a perguntar
admiradíssimo do ruído que o livro fez:
— Mas o que é, afinal, o Brás Cubas? Um sujeito nulo que escreve para os jornais,
escapa de casar, e morre.
__________________
“Escapa de casar, e morre”. O trecho se destacou porque não me lembrava de tê-lo
lido em nenhuma resenha ou crítica ao romance.
Imediatamente, uma consulta à Hemeroteca digital da Biblioteca Nacional (período
1800–1889, termos de busca “escapa de casar”) revelou, no primeiro resultado, uma
crítica desconhecida (ao menos para mim), publicada em 28 de janeiro de 1881 no
jornal Gazeta da Tarde, com o trecho devidamente destacado.

Gazeta da Tarde (Rio de Janeiro, RJ), 28/1/1881, número 25, página 2, da terceira à
quinta coluna.
http://memoria.bn.br/DocReader/226688/680
Hora de pesquisa no Google. Depois de experimentar várias alternativas e de
pesquisar em vários PDFs, nada. A busca incluiu a digitação de vários trechos do texto
da crítica, visando identificar a publicação de uma parte dela, ao menos.
No Google Scholar, seção do Google dedicada a trabalhos acadêmicos, também
nenhum resultado.
No verbete sobre o romance na Wikipédia, surpreendentemente bem referenciado,
nada sobre Gazeta da Tarde na seção de Recepção ou mesmo nas fontes.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Memórias_Póstumas_de_Brás_Cubas#Recepção
Nessa enciclopédia também não há referências ao jornal, em Reputação de Machado
de Assis.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Reputação_de_Machado_de_Assis
Percorri os 29 números da revista Machado de Assis em Linha, consultando todos os
artigos sobre Memórias Póstumas (cuidado um tanto redundante, já que estão
disponíveis na Web). Nada.
http://machadodeassis.fflch.usp.br/edicoes
Por fim, uma consulta ao site da Academia Brasileira de Letras dedicado ao escritor,
na seção de Artigos, nada revelou sobre Gazeta da Tarde ou mesmo nos resultados
para Memórias Póstumas, embora esse recurso também não devolva resultados
para Estação, indício de não ser uma fonte completa ou atualizada.
http://www.machadodeassis.org.br/abl_minisites/cgi/cgilua.exe/sys/start907c.html?U
serActiveTemplate=machadodeassis&from_info_index=1&infoid=17&sid=11
Esgotadas as possibilidades disponíveis, cumpro a função de pesquisador e deixo
aqui o texto completo da crítica para eventuais observações de estudiosos de Machado,
certamente mais conhecedores da obra do Bruxo do Cosme Velho do que este escriba.
Caso a crítica seja conhecida, passará a integrar o artigo sobre a recepção do
romance. Muito provavelmente é inédita, e o motivo dessa quase certeza é o que você
lerá nos parágrafos seguintes (jamais um conteúdo dessa natureza, inesperado,
extravagante e até cômico deixaria de aparecer em tantos estudos sobre Machado).
O resenhista aproveitou o espaço do jornal para uma exibição por vezes fútil de
erudição pessoal, citando em seu texto o maior número possível de autores e referências
clássicas. Além disso, ilustrou com perfeição um defeito primário em resenhistas: ao
invés de analisar as características únicas da obra e de se esforçar para entender o seu
autor, passou a doutrinar não só o romancista, mas todos os escritores, na esperança de
que, em termos de gênero literário, moral social e conteúdo da história, aceitassem seus
argumentos e passassem a personificar o ideal artístico do crítico.
A mensagem básica desse estilo de crítica é: “Isso que você fez não combina comigo,
e vou lhe explicar o porquê. Aprenda e corrija-se”.
Deixo aqui um estraga-prazeres (atualmente, spoiler): no final da resenha, o crítico
sugere que Machado se dedique ao romance histórico, passando a criar histórias nas
quais um herói transmita mensagens edificantes a seus leitores.
Pode rir.
Ressalte-se um mérito do crítico: ter sido o pioneiro da longeva polêmica sobre as
semelhanças entre o romance de Machado e O Primo Basílio, romance do português
Eça de Queiroz.
As imagens da fonte estão disponíveis no final do artigo.
____________________________
Atualização com o nome do autor da resenha (o artigo original informava
apenas que não havia assinatura no texto)
A pressa em explorar a descoberta levou ao abandono do artigo em desenvolvimento,
no qual se encontravam tanto a pista para a resenha quanto, mais abaixo, a pista para o
nome do seu autor.
Estes parágrafos seguintes na resenha de Arthur Barreiros publicada em 28 de janeiro
de 1881 contêm a chave inicial:
“[…] como entende um escritor consciencioso, o Sr. Urbano Duarte ― a luta do
egoísmo estéril e brutal de Brás Cubas e o altruísmo do Quincas Borba; e é positivo que
esta luta interessa, melhora e aperfeiçoa o espírito do leitor.
“O Brás Cubas mereceu do talentoso critico, a quem me refiro, outro reparo, que
também me parece menos cabível: o da influência patente que exercitou o Primo
Basílio, vicioso de hoje, no pobre do Brás Cubas, adúltero de 1814.”
O conteúdo acima refere-se à “resenha perdida” do romance, revelada neste artigo.
Ou seja, Arthur Barreiros informa que Urbano Duarte escreveu a crítica na qual se
aconselhava uma mudança de rumos na carreira de Machado.
A princípio, a informação não convenceu. Seria um caso único: um mesmo autor
redigindo duas resenhas sobre a mesma obra em dois periódicos diferentes, no espaço
de cinco dias (a da Gazeta da Tarde em 28 de janeiro e a da Gazetinha em 2 de
fevereiro). Muito estranho.
Como provar que o mesmo autor redigiu as duas resenhas?
Ambas contêm críticas pesadas a Memórias Póstumas. Além disso, enfatizam a
perspectiva moralista e criticam o “materialismo” e a escola realista, pontos chaves de
outros textos de Urbano. Quatro pistas importantes, mas não conclusivas.
Arthur Barreiros, em sua referência à crítica da Gazeta da Tarde, poderia ter errado
ao atribuí-la a Urbano Duarte?
Hora de nova pesquisa. Qual seria a relação entre os dois críticos?

E a solução veio rápida.

Gazetinha (Rio de Janeiro, RJ), 2/1/1882, número 2, página 2, segunda coluna.


http://memoria.bn.br/docreader/706850/318
Artur Barreiros não pode ter errado: era colega de redação de Urbano Duarte
na Gazetinha, portanto não atribuiria a um conhecido um texto alheio.
Solução do mistério: o resenhista que aconselhou Machado de Assis a se tornar um
romancista histórico, em uma resenha que entra para a categoria especial de crítica
literária representada pelo emoji a seguir, foi realmente Urbano Duarte.

A captura de tela da Gazetinha também desfaz qualquer dúvida quanto à origem da


assinatura “U.D.” na resenha publicada em 2 de fevereiro de 1881. Seu autor também é
Urbano Duarte.
A resenha de Arthur Barreiros na Estação pode ser lida tanto na tese de Hélio de
Seixas Guimarães (Os Leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o
público de literatura no século 19), defendida em 2001, quanto em seu livro derivado
da tese, publicado em 2004. Hélio é atualmente um dos principais estudiosos da obra de
Machado.
Para baixar a tese:
http://bdtd.ibict.br/vufind/Record/CAMP_6a6c5f0ecbf21bf0455144099626de0e

Resultado 1
https://books.google.com.br/books?id=gA_S4cepf6AC&lpg=PA349&ots=O7X5j0p
3_i&dq=%22Virg%C3%ADlia%20teve%20de%20acompanhar%20o%20marido%2
2&hl=pt-
PT&pg=PA354#v=onepage&q=%22primo%20bas%C3%ADlio%22&f=false
Agora repare o que aconteceria se um pesquisador, intrigado com essas informações,
digitasse na caixa de busca da Hemeroteca digital da Biblioteca Nacional os termos
“bazilio” e “cubas”, escolhidos por não serem triviais (“bazilio” era a grafia da época), e
depois escolhesse o período 1880–1889 e o local “RJ”:
Somente quatro resultados, um dos quais seria a “resenha perdida” de Urbano Duarte
na Gazeta da Tarde.
Tanto essa resenha quanto a identificação do seu autor estavam disponíveis, pelo
menos, desde 2013:
http://www.juventudect.fiocruz.br/noticia/esta-no-ar-hemeroteca-digital-brasileira
Que outras surpresas sobre Machado de Assis ainda nos reservam os textos
digitalizados e em digitalização?
Agora veja esta curiosa imagem da Revista Brasileira: juntos, os dois envolvidos
nessas questões de autoria, o romance avaliado e seu autor.

Revista Brasileira (Rio de Janeiro, RJ), julho a setembro de 1880, página 1.


http://memoria.bn.br/DocReader/139955/3936
____________________________
O texto da resenha de Urbano Duarte
Bibliografia
Memórias Póstumas de Brás Cubas, por Machado do Assis — Rio de Janeiro —
1881 — Tipografia Nacional.
É uma produção literária, de forma romântica, já conhecida do público.
Divulgou-a a Revista Brasileira, na prossecução [continuação] do nobre intuito com
que se propõe vingar os manes [as almas dos mortos] da Minerva, de Guanabara,
da Biblioteca Brasileira e de tantas outras ilustres vítimas do indiferentismo [da
indiferença] a que nos temos votado para o que não seja[m] variações da política e ágios
da Bolsa.
Subscreve-a nome de escritor laureado na república das letras pátrias, o que, se vale
como incitamento para a leitura, não menos serve para desafiar severidades da crítica
judiciosa e isenta.
Pouco importa que Homero [poeta épico grego] (ab Jove principium [Comecemos
pela pessoa mais importante]) houvesse escrito depois da Ilíada a Batrachyomachia
[Batrachomyomachia, a Batalha dos Sapos e Ratos, uma paródia da Ilíada], se é que
deste pecado não o absolve a verdade histórica; que Corneille [dramaturgo francês]
desse ao Cid [O Cid] e a Polieucte [Polyeucte] indignas irmãs e companheiras
no Partharita, em Agesisláu [Agélisas] e em Attila [Átila]; que Vieira se nos apresente
envergonhado e confuso com a História do Futuro a nulificar-se ante as magnificências
do seu inimitável sermonário [conjunto de sermões], e para também dizermos das coisas
pátrias, que ao Guarani e às Minas da Prata de Alencar sucedessem como o crepúsculo
de um fulgente dia o Til e o Gaúcho.
A própria favorável opinião que laureia o escritor não lhe consente desfalecimentos
do engenho com que se lhe desermassem [inutilizassem] as produções.
Noblesse oblige [Todo privilégio impõe uma responsabilidade]. Traduzida e aplicada
aos cultores das letras, vale esta regra não menos do que negar-lhes o direito de se
apresentarem ao supremo juízo do público com trabalho de somenos valia a que lhes
granjeara título de benemerência e nomeada [fama].
Vão mais longe as exigências: ao lado do Capitólio [colina da Roma antiga] não se
levanta a Rocha Tarpeia [local de execução de vítimas naquela cidade-estado] somente
para os que decaem, mas também para os que não sobem, cada vez mais alentados no
caminho do Olimpo [a morada dos deuses na mitologia romana], sem que os aterrem a
queda dos Titãs [gigantes que perderam a guerra contra os deuses do Olimpo] ou o
insaciável abutre do Prometeu [titã que roubou o fogo dos deuses e foi amarrado a uma
rocha, tendo o fígado comido todo dia por uma águia, o qual se regenerava no dia
seguinte].
É possível que alguém veja nisto um dos grandes inconvenientes da celebridade, mas
não há [como] duvidar que aí reside também um dos mais poderosos estímulos para que
os verdadeiros talentos se esmerem e aprimorem.
Cumpre não esquecer que as literaturas enriquecem com o mérito e não com a
quantidade dos escritos.
O Encomium Moriae [O Elogio da Loucura] de Erasmo [teólogo holandês],
o Discurso sobre o Método de Descartes [filósofo francês], e na esfera puramente
literária o René de Chateaubriand [romancista francês] e o Uruguai [O Uraguai] de
Basílio da Gama valem mais, tenuíssimos e exíguos volumes, do que os temorosos in-
folio [forma de impressão usada para volumes grandes] de Nicolau de Lira [teólogo
francês] e outros dos controversistas [cristãos que discutiam os pontos chaves da Bíblia]
de há 4 ou 5 séculos, as inúmeras produções de Scudery [escritora francesa], o ridículo
[sic] rival de Corneille, e, salvo o devido respeito ao bom gosto dos populares, nossos
avoengos, que tanto as aplaudiram, as infatigáveis e por vezes pesadas jogralidades de
José Daniel [Rodrigues da Costa, escritor português], de truanesca [própria de bobo da
corte] memória.
Ora, a crítica, que não desça até o nível igualmente desairoso da lisonja ou da
detração, só poderá dizer das Memórias de Brás Cubas que, não exaltando o autor por
manifesta superioridade sobre os seus outros escritos, também não o deprimem, se é que
realmente sob o aspecto do estilo não lhe saíram elas mais aprimoradas e de sobre-
excelente [sublime] lavor.
Mais correto do que original, mais esmerado e criterioso na pureza e graças da dicção
do que fecundo e arrojado nas faculdades invectivas [inventivas], o talento do Sr.
Machado de Assis ainda uma vez se manifesta no seu novo livro, cuidoso [zeloso] da
forma, culto, polido, avisado à boa linguagem vernácula pelo diurno e noturno versar
dos grandes mestres, e por tal forma sobrepujando-lhe a felicidade da expressão à
substância do pensamento, que bem coubera aplicar ao caso o muito conhecido conceito
com que de certo escritor se disse ser “um estilo à procura de assunto”.
Não o impeliu a escrever o ambicioso intento de doutrinar-nos, sob a amena e
insinuante forma do romance, com a demonstração prática e surpreendente de uma tese
filosófica mais ou menos escabrosa e difícil; não teve a pretensão de dissecar e exibir,
severamente analisado, o grande corpo social e pôr-nos à vista, com a crueza da
verdade, todas as misérias da comédia humana; não pensou também em votar [decretar]
às gemônias [ao escárnio público], qual se fora executor de alta justiça da história, um
reinado ou um regime político, patenteando com vivíssimo colorido a perversão de
costumes e caracteres que nele e por ele se originara. [Eugène] Sue [romancista
francês], Balzac e o ruidoso historiador dos Rougons-Macaire [o escritor francês Émile
Zola], não o tentaram. As Memórias Póstumas de Brás Cubas, como em sua própria
introdução se declara, inspiraram-se no humorismo e livros fantasias de [Laurence]
Sterne [romancista irlandês], [Charles] Lamb [escritor britânico] e Xavier de Maistre
[escritor francês].
É justo acrescentar que o humor dos dois filhos de Albion [das Ilhas Britânicas] e a
suave filosofia do exilado de Chambery [o escritor francês Alexandre Dumas, que para
lá fugiu por questões políticas] estão ali em parte modificados pelo espírito da nova era
romântica. Um sopro da escola naturalista bafejou sobre o livro, que o engenho casto e
recatado do escritor debalde [inutilmente] quisera resguardar, não consentindo ao seu
herói mais do que as quase inocentes audácias, a medo arriscadas na Viagem
Sentimental de Sterne [romance inacabado do autor].
Brás Cubas é um sujeito que nasce, herda, estuda sem proveito a cartilha do padre
Inácio, tem dois ou três amores, inventa um emplastro, escapa de casar e morre.
Como se vê, nada mais simples e comum.
É a vida da multidão a quem espera a cova rasa dos cemitérios; com a só diferença de
que nem todos herdam, e menos [ainda] escapam de casar. Se neste ponto valeu mais a
sorte do malogrado Cubas, decidam-no Sócrates [filósofo da Grécia antiga] e Milton
[poeta épico inglês] em competência com os que julgam possuir a suprema felicidade de
Filémon e Baucis [casal que abrigou os deuses Zeus e Hermes, rejeitados por todos, e
que por isso foi poupado da destruição de sua cidade].
No correr de uma existência que não deu sequer à avidez da imprensa local maioria
para duas linhas de noticiário, sobressai, ocupando grande parte do livro, a narrativa dos
amores do herói com a esposa de um amigo.
A história desses amores é a mesma de todos os adultérios que se têm sucedido no
mundo desde os tempos patriarcais, quando não terminaram pela mudança de uma
dinastia como o da esposa de Caudaulo [rei da Lídia] ou pela destruição de Troia
[tomada pelos gregos antigos], como o da formosíssima Helena [princesa espartana
raptada por Páris e levada por ele a Troia], elevando-se à altura das crônicas, memórias,
decretos régios, anais e monumentos da arte, para caírem, afinal, na galhofeira e nada
edificante coleção das “celebridades predestinadas” de Paul de Kock [autor francês de
romances populares].
Ao ler aquela caprichosa narrativa não faltarão maliciosos que julguem ter sido
pensamento do escritor brasileiro reduzir o Primo Basílio de Eça de Queiroz às
resumidas proporções de um simples episódio.
Escusa dizer que, se não lhe esqueceu a casinha das misteriosas entrevistas
[encontros amorosos], votou a completo e decente olvido a célebre página em que o
talento do notável romancista de além-mar descera até encontrar-se com as
obscenidades do Marquês de Sade.
Diferem apenas as duas histórias quanto aos pontos capitais, no desfecho, que o
nosso autor delineou menos desigual. A amante de Basílio sofre dura punição, enquanto
o sedutor maldito prossegue impávido na carreira de conquistas, sem remordimentos de
consciência, nem importunas recordações que lhe perturbem as digestões sempre
felizes. A de Brás Cubas deixa-o um belo dia, e em santa paz conjugal vive tempo
bastante para, ostentando o luto da viuvez, proclamar no convite para a missa do sétimo
dia as impagáveis saudades que lhe ficaram do prezadíssimo consorte.
Não é severidade dizer que, se tais narrativas aguçam a curiosidade de leitores
sequiosos de escândalos e deleitam o paladar de embotados, nem por isso constituem
grata matéria para o lavor de escritores de real talento e esmerada cultura.
Compreende-se que a veia cômica de Molière [dramaturgo francês] votasse à irrisão
[chacota] (e quanto não lhe devia doer mais tarde o escárnio do infortúnio que não o
poupou!) o imprudente e mal-avisado [inconsequente] George Dandin [personagem
central da comédia O Marido Confundido], doutrinando com os inconvenientes práticos
dos consórcios [casamentos] desiguais; e que estas, como outras misérias da vida
humana, sejam traça [um ardil] para que o engenho do dramaturgo ou do romancista dê
proveitosas lições e ensinamento aos muitos que deles carecem.
Mas a que vem a narrativa calma, serena, indiferente como a lembrança das coisas
mais triviais da vida. senão por vezes galhofeira, de torpezas e vícios, que encontram
afinal as honras do triunfo ou pelo menos a segurança da impunidade?
Invocaram os que assim resvalam (e alguns sem que o pressintam e queiram) para as
lagoas Pontinas [referência a antigo pântano romano] do naturalismo a lógica cerebrina
de [Alexandre] Dumas pai, que, acusado de ter ofendido à moral num dos dramas da sua
auspiciosa estreia, defendeu-se transcrevendo trechos obscenos das comédias de
Aristófanes [autor de comédias na Grécia antiga]?
É certo que o romance não deve ser vazado no molde único, e porventura já meio
gasto e cansativo, do Paulo e Virgínia [romance popular do francês Bernardin de Saint-
Pierre] e da Picciola [outro romance popular] de Saintine [escritor francês], com que
encara a humanidade por uma só das suas múltiplas faces.
Mas entre os requintados idealismos da inocência e da virtude e o materialismo
grosseiro e desolador, que vasto campo para o lavor literário! Que variedade de assuntos
para os puros deleites do entendimento e do coração! Que livro eloquente e inexaurível
para vencimento do tempo, consolação dos desenganos, e ensino e educação das almas
populares!
Pelo que toca especialmente às letras pátrias, aí está o gênero histórico desafiando a
atividade dos bons engenhos, que reúnam à natural inspiração o paciente estudo dos
anais e memórias da nossa vida colonial.
Tradições existem dessa era, três vezes secular, que por certo o gênio de [Walter]
Scott [escritor escocês, criador do romance histórico] ou de [Fenimore] Cooper [escritor
estadunidense cujas tramas centravam-se em heróis] se honrará de perpetuar no
monumento re [aere] perenius [mais durável que o bronze] dos seus sempre lidos
romances se as houvessem encontrado no seio da pátria.
E o que fazemos nós, esquecidos herdeiros dessas glórias, que prestes se vão
sumindo no abismo do tempo?
Esperamos que Mendes Leal [escritor ultrarromântico português] e outros escritores
de estranha nacionalidade evoquem da região dos finados os grandes vultos da história
propriamente nossa, e deem às nobres cenas do heroísmo brasílico a eloquente e
inapágavel comemoração da forma literária que mais se insinua nos ânimos populares?
Tempo é já de volver-nos para essa inexplorada mina de infinitas riquezas.
Quando a onda do materialismo, irrompendo desatinada sob a forma corruptora da
literatura naturalista, como outrora o inumerável exército de Átila, o flagelo de Deus,
ameaça subverter-nos todo o edifício social, fora empenho de alta benemerência reviver
em livros da mais amena e por conseguinte vulgarizável leitura os fastos [a história] da
vida avoenga [dos antepassados], onde acentuados se desenham notabilíssimos
caracteres, e eloquente e edificante ensinamento fala o exemplo de acrisoladas
[aperfeiçoadas] virtudes.
Tem o Sr. Machado do Assis predicados que o indicam para este nobre
empreendimento — a forma e o amor ao trabalho literário.
Entre resoluto nesse caminho; interrogue a poeira dos arquivos, as sepulturas dos
conventos, os códices das bibliotecas, as tradições das famílias e traga à luz da imprensa
os tesouros que ali se ocultam não menos ao ensino das novas gerações do que às
glórias da pátria.
____________________________
Imagens originais da resenha
Gazeta da Tarde (Rio de Janeiro, RJ), 28/1/1881, número 25, página 2, da terceira à
quinta coluna.
http://memoria.bn.br/DocReader/226688/680

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