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Edição em formato digital: fevereiro de 2024

O LIVRO SECRETO DE FLORA LEA


Título original: The Secret Book of Flora Lea
© 2023, Patti Callahan Henry
Publicado por Atria Books,
uma chancela de Simon & Schuster, Inc., Nova Iorque.
Todos os direitos reservados.

© desta edição:
2024, Penguin Random House Grupo Editorial, Unipessoal, Lda.
Publicada por acordo com
Jane Rotrosen Agency, LLC, através de International Editors & Yañez’Co, S.L.

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privado, além do uso legal como breve citação em artigos e críticas, sem a prévia
autorização por escrito do editor.
Tradução: Pedro Póvoa
Revisão: Raquel Dang
Capa: Wonder Studio/Ana Teixeira
Design da capa: Laywan Kwan
Fotografias da capa: Getty Images; Shutterstock; Adobe Stock

ISBN: 978-989-787-818-3

Composição digital: M. I. Maquetación S.L.

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Índice

O Livro Secreto de Flora Lea

Créditos
Dedicatória
Epígrafe
O Livro Secreto de Flora Lea

Nota da Autora
Agradecimentos
Sobre este livro

Sobre Patti Callahan Henry


Dedicado às indómitas e sábias mulheres da Friends and Fiction,
Mary Kay Andrews, Kristin Harmel,
Kristy Woodson Harvey e Meg Walker
E disse o rio: imagina tudo o que conseguires imaginar,
e depois vai mais além…
MARY OLIVER
CAPÍTULO 1

Não há muito tempo e não muito longe daqui, existiu e ainda existe um
lugar invisível que está mesmo ao nosso lado. Se nasceres ciente disso,
encontrarás o teu caminho pelo bosque até às portas cintilantes que abrem
para o mundo que foi criado única e exclusivamente para ti.
HAZEL MERSEY LINDEN, 1939

Outubro de 1940
Binsey, Oxfordshire

Numa manta vermelha, junto ao rio, Flora Lea Linden, de 6


anos, acorda sozinha sob uma cúpula de céu azul e, à sua volta,
o canto dos pássaros. Alguém chamou por mim? Olha em redor,
para a imensidão verde, para as águas agitadas do rio Tamisa
que se contorcem até quase galgarem as margens, arrastando
para o mar tudo e todos aqueles que se atrevem a entrar na sua
corrente.
O rio avança em direção a Oxford, onde os estudantes entram e
saem numa roda-viva dos gabinetes dos professores, numa
encumeada de torres que montam guarda a ruas calcetadas. As
águas dobram-se e curvam-se sobre si mesmas, ganham força,
fustigam os muros de pedra e as eclusas de Inglaterra até
chegarem a Londres, onde as bombas caem nas ruas da cidade
trazendo consigo a ruína, onde catedrais fumegantes e casas
destruídas cobrem o rio com as suas brasas e cinzas.
Alguém chamou por mim? Flora senta-se e esfrega os olhos.
Não está propriamente sozinha. Tem o Berry, o seu ursinho de
peluche. E não tem medo. Porque haveria de ter? A sua irmã
mais velha, Hazel, disse-lhe muitas vezes que estes bosques lhes
pertencem, que a clareira sombreada e as poças sagradas e
banhadas pelo sol onde as copas das árvores se apartam são um
lugar seguro para as duas irmãs, criado só para elas.
Levanta-se e aproxima-se cautelosamente do rio. Hazel recusa-
se a entrar com Flora no Bosque dos Sussurros, por isso não lhe
resta alternativa senão ir sozinha. É seu! Não pode ser
abandonado: o castelo cintilante e o bosque de amieiros, os
esquilos tagarelas e as árvores animadas.
Hazel dissera a Flora que as luzes que brilhavam no rio eram
estrelas e galáxias que corriam para encontrar o mar. Hazel
proibira-a de se transformar no rio quando ambas se tornavam
criaturas da floresta. E Flora tão-pouco deveria beber da sua
água. Se o fizesse, dissera-lhe, não voltaria a encontrar o
caminho de volta para a mãe ou para Bridie ou para o seu chalé
acolhedor nos campos cobertos de urze.
Este rio encantador era — tal como a maçã da Bíblia —
proibido.
Mas Flora não acredita que este belo rio estrelado possa ser
perigoso. Agarra no Berry pela pata desgastada e peluda e
aproxima-se ainda mais da corrente de água, entusiasmada com
a sua ousadia. Ninguém sabe o que lhe poderá acontecer nesta
aventura, nem em quem se poderá transformar.
Flora ouve uma voz próxima no bosque, uma voz familiar, mas
decide ignorá-la.
O caminho para chegar até aqui foi por uma porta cintilante, e
Hazel estava demasiado ocupada para a ver. O rio é o
companheiro de Flora, o seu amigo, e essa intimidade faz com
que ela se aproxime cada vez mais da sua margem.
Como Hazel nunca quer fingir que são coelhinhos, foi isso que
ela decidiu ser hoje. Flora vai ser um coelhinho.
Olha para as águas agitadas do rio, à procura de estrelas, mas
só vê lama e lodo, saliências de rochas alisadas pela corrente sob
a superfície. Desequilibra-se num declive encharcado e terroso, e
as galochas escorregam-lhe onde as ervas acastanhadas de
outubro se transformam em lama. Flora bate com o rabo no chão
e ri-se.
Que aventura!
O Berry escorrega-lhe da mão quando as palmas e os dedos se
cravam na terra molhada para não cair nas águas geladas.
Aproxima-se e tenta agarrar o Berry. O ursinho está demasiado
perto do rio.
— Está tudo bem — diz, enquanto lhe pega por uma pata,
repetindo as palavras da irmã. — Este é o nosso mundo. Estamos
sempre seguros no Bosque dos Sussurros.
CAPÍTULO 2

Março de 1960

Até Hazel Linden desatar a fita de veludo vermelho desgastada


do portefólio encadernado em pergaminho, o seu último dia na
Hogan’s Rare Book Shoppe, em Bloomsbury, estava a ser tão
normal como qualquer dia de trabalho passado a organizar,
classificar e proteger o notável inventário da livraria — se é que
podemos chamar normal a trabalhar com os livros e relíquias
literárias mais raros e colecionáveis de Inglaterra.
Hazel executou cada detalhe do seu último dia de trabalho na
livraria com alguma melancolia e até dramatismo. Seria a última
vez que guardaria O Hobbit e a sua capa com a montanha
coberta de neve na prateleira.
Seria a última vez que desfrutaria de um dia de março,
pontuado por rajadas de chuva rápida e intensa, a partir do
interior da livraria quente e pouco iluminada, com o seu
mostruário de volumes encadernados em pele, por detrás de
janelas altas e onduladas que se abriam para Charing Cross
Road.
A livraria cintilava com paredes em tom de verde-escuro, que
quase pareciam pretas, e arandelas de latão com os braços
dobrados sobre as prateleiras. Havia fotografias de autores
famosos em molduras pretas lacadas penduradas na parede atrás
da caixa registadora. Uma mãe e uma filha — devotas de Jane
Austen, como Hazel lhes chamava —, ambas com calças
impermeáveis de um vermelho-vivo, contemplavam embevecidas
uma edição de Orgulho e Preconceito que nunca poderiam
comprar. O aroma da pasta de papel, do pó e da história
misturava-se com o doce aroma dos lilases, que ela tinha colhido
no seu quintal e colocado numa jarra no balcão.
Observava tudo atrás da antiga caixa registadora, na sua
minissaia nova a imitar Mary Quant que comprara na feira de
Notting Hill, o cabelo castanho que lhe dava pelos ombros
penteado numa franja em nada parecida com a fotografia que
levara ao cabeleireiro. Sentia um ligeiro latejar atrás dos olhos.
Não devia ter bebido o último whisky ontem à noite. (Era sempre o
último whisky que a deixava em maus lençóis.) Mas a noite bem
passada no pub com os colegas livreiros Tim e Poppy
compensava a lassidão daquela manhã. Eles chamaram-lhe,
morbidamente, o «velório de despedida de Hazel».
— Para nós, é como se tivesses morrido — declarou Poppy, por
entre risadas. Seguiram-se aplausos e canecas levantadas num
brinde ao seu novo emprego na Sotheby’s. O cargo na equipa
internacional de especialistas em livros raros e manuscritos da
literatura inglesa era um emprego que todos desejavam, mas
tinha sido Hazel a escolhida. Os seus colegas estavam a ser
muito simpáticos. No seu lugar, ela estaria roída de inveja. Tim
entrou na conversa.
— Mas tens de trabalhar com aquele energúmeno do Lorde
Arthur Dickson, que é um cretino de primeira — rematou, fingindo
estremecer.
Hazel abanou a cabeça e bateu ao de leve no ombro de Tim.
— Vai valer a pena para ter acesso a coleções privadas e aos
leilões de Londres.
— Mas olha que não vai ser como na livraria. É tudo muito mais
enfadonho e snobe — contrapôs Tim. — Connosco, a vantagem é
que não há dois dias iguais. Garanto-te que não te vais divertir
tanto como te divertias connosco.
— Tenho a certeza que não. Mas virei visitar-vos muitas vezes.
Prometo. Não vou mudar de casa nem sair da cidade.
Poppy fez rodopiar a caneca de cerveja entre as palmas das
mãos.
— Preferia ter ficado com a área de atlas e mapas.
— Não desistas — incentivou Hazel. — Pode ser que um dia
consigas.
Poppy encolheu os ombros e deu um longo gole na cerveja.
— Raparigas como eu não vão trabalhar para a Sotheby’s,
apesar de já saber desde o dia em que entrei na Hogan’s aquilo
para o que estava destinada.
— Isso não é verdade — disse Hazel, que ainda tinha dúvidas
em trocar a Hogan’s pela Sotheby’s.
Aceitar o emprego de sonho a trabalhar com coleções literárias
raras implicava deixar para trás a segurança e o aconchego da
livraria. Quando começou a trabalhar, pensava que seria uma
paragem rápida, um primeiro trabalho após a universidade para
pagar as contas até… até o quê? Nem ela sabia. Na Inglaterra do
pós-guerra, ninguém sabia o que viria a seguir.
Agora, depois do seu último dia de trabalho, deixaria para trás a
livraria e os seus queridos colegas: o proprietário idoso, Edwin
Hogan, e o seu filho de 60 anos, Tim, que estava à espera de
tomar conta da livraria há demasiado tempo. E também Poppy, a
mais nova de todos, com 25 anos, que lá trabalhava desde os 18
anos. Ainda adolescente, Poppy tinha entrado tantas vezes na
livraria, onde passava horas a folhear cópias antigas d’As
Aventuras de Alice no País das Maravilhas, que Edwin finalmente
lhe disse que tinha de começar a trabalhar lá ou deixar de
aparecer. Só mais tarde é que Hazel descobriu que Poppy não
andava a vadiar pela livraria; simplesmente não tinha para onde ir.
Era uma órfã de guerra que tinha atingido o limite de idade e sido
obrigada a abandonar a London Orphan School, perto de
Hampshire. Passou a dormir em parques ou nos sofás de amigos
que a acolhiam por algum tempo. Na altura, andava à procura de
emprego, mas ninguém parecia disposto a dar-lhe uma
oportunidade.
Edwin deu-lhe uma nova vida. Ensinou-lhe o que tinha ensinado
a todos eles: se despertassem o amor pelos livros preciosos e
raros num cliente, não só conseguiriam fazer uma venda nesse
dia, como teriam um cliente dedicado durante décadas. Poppy
acolheu esses ensinamentos e agora vivia num apartamento de
dois quartos com mais quatro mulheres e sonhava com o futuro.
Hazel prometeu aos três que os visitaria amiúde. Com efeito,
considerava-os família.
— Hazel! — Ela olhou para cima. Edwin, com 92 anos, mas
parecendo ainda mais velho, saiu a mancar da sala das traseiras,
com a bengala prateada a marcar a sua passada familiar no piso
de parquê. — Tem livros acabados de chegar na sala das
traseiras. Por favor, registe-os e guarde-os no cofre.
Edwin não era dado a sentimentalismos, nem mesmo no seu
último dia; mas ela sabia que por baixo daquela barba branca e
dos olhos azul-água afilados batia um coração de manteiga. Vira
isso mesmo nas palavras gentis que dirigiu a um cliente que
precisava de vender a sua preciosa primeira edição de A
Importância de Ser Earnest, de Wilde; na forma como salvou
Poppy de uma vida nas ruas; nas lágrimas que lhe assomaram
aos olhos quando viu os bisnetos a entrar na livraria, mesmo
quando os admoestou com palavras duras: «Não toquem em
nada com esses vossos dedos pegajosos.»
— Vou já tratar disso.
Aquela era a sua parte preferida do trabalho, desembrulhar e
catalogar o que entrava pela porta das traseiras. Conferia cada
volume no catálogo Book Auction Reference, encadernado em
tecido vermelho, antes de começar a revelar um novo tesouro a
cada puxão de fio ou rasgo de fita-cola. E embora esta fosse a
última remessa que desembrulharia e a última vez que esperaria
encontrar algo de valor nas caixas doadas por um velho professor,
a verdade é que poderia muito bem encontrar livros ainda mais
raros na Sotheby’s. Sorriu ao sentir o peso do seu novo emprego
na maior leiloeira do mundo.
Ganhos e perdas. A verdade subjacente a quase todos os
mitos: nascimento, morte, renascimento. Uma coisa morre, outra
nasce. Troca-se um emprego antigo por um novo.
És tão dramática. Conseguia ouvir as palavras do seu amor,
Barnaby, eivadas de admiração.
Pressionou a porta vaivém pintada de verde com a palma da
mão no sítio de sempre. Ao fim de 15 anos, era possível que já
houvesse ali uma impressão permanente, mas invisível.
Quatro pacotes de papel pardo e cordel estavam colocados em
cima da mesa de pinho no centro da sala empoeirada. Para
Hazel, aquela parte do trabalho era como o dia de Natal. Edwin
tinha uma extraordinária capacidade de localizar volumes
interessantes antes que qualquer outra pessoa soubesse que eles
estavam disponíveis.
— Para sermos bons livreiros, precisamos de ter uma mente de
investigador, saber que perguntas fazer e onde encontrar as
respostas.
Um livro de registos grosso, de pele preta, estava aberto à
esquerda dos pacotes. A escrita apertada de Edwin preenchia as
linhas finas da grelha. Hazel demorara quase um ano a decifrar a
sua caligrafia. Tinha sido como aprender a decifrar hieróglifos.
Quanto tempo demoraria o próximo empregado a compreender
Edwin tão bem como ela?
À direita de cada entrada no livro de registos desgastado havia
duas colunas para as anotações de Hazel: qualidade e número de
identificação. Ela catalogava as condições de tudo o que entrava
pela porta das traseiras, atribuía um número de inventário, e
depois guardava o artigo no cofre até que Edwin decidisse onde e
como seria exibido. Hazel leu a lista.

1. Primeira edição de Um Conto de Natal, de Dickens;


2. Carta manuscrita de Hemingway a Fitzgerald, 1932;
3. Uma edição assinada (mas não a primeira) de O Hobbit, de
Tolkien;
4. Uma primeira edição de História da Filosofia Ocidental, de
Bertrand Russell, com a sobrecapa feita a partir de um mapa
da Segunda Guerra Mundial;
5. Uma primeira edição autografada de um conto de fadas da
autora americana Peggy Andrews com ilustrações originais
pintadas à mão de Pauline Baynes.

Edwin adorava ilustrações originais, porque isso aumentava o


valor dos livros com o passar do tempo. Quanto mais popular era
o livro, mais as ilustrações originais se tornavam um objeto
cobiçado pelos colecionadores. Mas ser uma primeira edição nem
sempre era o mais importante. Sobretudo para Tim, o mais
importante era a viagem do próprio livro. Tim valorizava todos os
livros, não pelo seu número na ordem de impressão, mas pela
narrativa de quem tinha lido, amado e até oferecido o próprio livro.
O pacote com as ilustrações de Baynes intrigou-a, por isso Hazel
decidiu guardá-lo para o fim.
Calçou um par de luvas brancas e passou meia hora a catalogar
cada um dos objetos. A capa de tecido de Um Conto de Natal, de
Dickens, estava ligeiramente rasgada no canto inferior direito e
tinha sinais de descoloração no canto esquerdo da capa. Mas, à
exceção destes pequenos defeitos, era uma edição maravilhosa
que mereceria ser exibida na vitrina fechada da principal sala de
exposições. Hazel anotou os factos no livro de registos e colocou
o livro de parte. Abriu a carta de Hemingway, verificou se havia
manchas ou rasgos, comparou as assinaturas com as originais
que estavam nos arquivos. O Hobbit: em perfeito estado de
conservação e, obviamente, guardado como um tesouro, não
como um livro para ser lido e amado. Em seguida, o livro de
Russell, um excelente exemplo de como, em consequência da
escassez de papel que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, os
mapas antigos haviam sido utilizados como sobrecapas. Este era
um mapa de Stettin, e incluía rotas e estradas claramente
cartografadas, assim como um aviso: UTILIZAÇÃO EXCLUSIVA DOS
MINISTÉRIOS DA GUERRA E DA MARINHA.
Hazel perdeu-se em pensamentos. Naquela noite, ela e
Barnaby tinham um jantar combinado com a mãe, o padrasto e o
meio-irmão. Conseguiria esquivar-se à estucha? Não, dissera-lhe
Barnaby, antes de a beijar para que ela soubesse que estava do
seu lado.
E depois disso: liberdade! Teria três semanas de férias
maravilhosas antes de começar no novo emprego.
Tencionava desfrutar dos dias livres que tinha pela frente. Talvez
apanhasse um comboio para a Escócia ou um ferry para a
Irlanda. Poderia fugir para Brighton Beach e sentar-se numa
esplanada com um livro, sem mais nada para fazer além de ler.
No entanto, tinha feito apenas um plano concreto: uma viagem de
uma semana com Barnaby a Paris. Hotel reservado. Bilhetes de
ferry comprados. Beberia cocktails sofisticados em bares, não em
pubs. Subiria à Torre Eiffel, passearia pelo Louvre e, com sorte,
faria amor desenfreadamente no quarto de hotel com vista para
as Tulherias. Tinha poupado todos os tostões para comprar dois
vestidos novos, que já estavam pendurados no armário, à espera
da viagem.
Primavera em Paris.
— Hazel? — A voz de Tim arrancou-a do seu sonho. O último
pacote continuava fechado. — Está aqui uma pessoa à tua
procura.
Ela seguiu pelo corredor escuro das traseiras até à sala
principal e encontrou à sua espera um homem alto com um
chapéu de feltro preto e um sobretudo a pingar de chuva. Ao seu
lado, uma mulher de cabelo preto, vestida quase toda de
vermelho, do casaco ao chapéu.
— Em que posso ajudar? — inquiriu Hazel.
— O meu colega da Foyles disse-me para vir cá e perguntar por
si — disse o homem. — Disse-me que talvez estivesse a par de
uma edição de autor dos poemas de Auden, de 1928. Espero que
ele não se tenha enganado.
— Ah, o Tim diz sempre que o otimismo é uma qualidade
essencial num colecionador de livros — declarou Hazel, com um
sorriso confiante. Fez sinal para que ele a seguisse até ao canto
de trás da sala de exposições, onde o panfleto vermelho estava
fechado a sete chaves.
A mulher deixou-se estar onde estava e Hazel mal voltou a dar
por ela, mesmo depois de o homem ter comprado o panfleto, que
ela colocou num envelope encerado.
— O senhor é colecionador? — perguntou, curiosa.
— Não. — Ele abanou a cabeça. — O meu amor. — Fez sinal
para a janela da frente, onde Hazel viu a mulher que o
acompanhava, o seu rosto agora erguido para o sol. — Ela está
apaixonada por Auden, e é um presente de casamento.
— «O tempo dirá apenas que bem te avisei.» — Hazel citou
Auden com um sorriso.
— Essa é uma das minhas preferidas — disse ele. — Mas a
frase preferida dela é «Que o amor maior seja o meu.»
— Ah, que maravilha — embeveceu-se Hazel. — Muitas
felicidades.
Quando terminou a conversa com o noivo apaixonado, Edwin já
tinha saído para fazer um recado e Tim estava agachado a
reorganizar uma prateleira de livros infantis que tinham sido
espalhados pelo chão por uma criança desacompanhada.
Antes que pudesse voltar para a sala das traseiras, o som
metálico da campainha da porta preencheu o espaço, e Hazel
virou-se para dar de caras com a sua melhor amiga, Kelty, e a sua
filha, Midge, uma fada de 8 anos.
Sorriu para Midge, de pernas compridas e corpo ainda a tentar
recuperar o atraso, o cabelo ruivo a querer libertar-se das duas
tranças; uma réplica de Kelty quando a conheceu há tantos anos,
durante a retirada.
As imagens surgiam-lhe muitas vezes dessa forma — velozes
como beija-flores —, lembranças daquele dia de setembro, frio e
límpido, o dia em que saíram de Bloomsbury para embarcar nos
comboios.
— Tia Hazel! — Midge abraçou a cintura de Hazel. — A mamã
disse que eu podia comprar dois livros hoje na Foyles. Dois!
— Bem, isso é muito bom — disse Hazel, inclinando-se
enquanto Kelty a cumprimentava com um beijo na cara.
— Estávamos a voltar da escola e pensámos em passar por cá.
Kelty usava um vestido esmeralda com cintura subida e sapatos
de couro envernizados. Parecia mais uma aluna do que uma mãe.
O cabelo ruivo estava apanhado num rabo-de-cavalo alto com
uma fita verde larga. Todos os homens olhavam para ela duas
vezes, alguns até três.
Midge pôs-se em bicos de pés.
— Vou para as traseiras olhar para o Swallows and Amazons, já
que não me deixam tocar-lhe — anunciou.
— Agora não, meu amor — disse Kelty. — Temos o teu pai à
espera. — E depois para Hazel: — Sabes que esta paixão que ela
tem pelos livros é culpa tua, não sabes?
— Aceito o mérito de bom grado. — Hazel fez uma vénia falsa
com um movimento amplo da mão na direção de Midge, que se
riu.
— Porque não vens connosco? — perguntou Kelty,
esperançosa.
Hazel acenou com a cabeça para a sala das traseiras.
— Ainda tenho trabalho a fazer.
— Estava-se mesmo a ver. Bem, só passámos por aqui para te
ver no teu último dia de trabalho na Hogan’s. Não podemos deixar
de assinalar a data, verdade?
Hazel dá um beijo na bochecha da afilhada e puxa-lhe
suavemente o rabo-de-cavalo.
— Vemo-nos amanhã? Hoje, vou jantar com a mãe e o Alastair.
— Boa sorte — disse Kelty, com um abraço.
Hazel ficou a vê-las sair, com Kelty a segurar na mão de Midge
enquanto esta saltitava porta fora. Uma onda de amor e
arrependimento tomou conta dela. Amava-as profundamente.
Sempre resistira a ter filhos, uma família, mas agora havia uma
nova vida a desabrochar. Ela e Barnaby estavam finalmente a
falar em casamento.
Havia tanta coisa boa pela frente. Depois de tanta perda no
passado.
Com Tim na sala principal, Hazel voltou para os pacotes que a
aguardavam na sala das traseiras. Pousou a mão no volume
retangular do último pacote. O último, observou para si mesma,
antes de se rir da sua abordagem dramática a uma tarefa tão
simples.
A caixa de cartão tinha chegado da América com os selos
vermelhos do correio aéreo. Hazel tirou a fita e deu de caras com
um portefólio encadernado em pergaminho e envolto em fita de
veludo vermelho. Percebia sempre quando um livro tinha sido
guardado por dinheiro ou por amor, e este tinha sido por amor.
Puxou a ponta da fita e esta caiu suavemente.
Com as luvas brancas calçadas, abriu o portefólio e viu um
monte de desenhos pintados à mão em papel de algodão grosso,
cada um separado por papel de seda.
A ilustração no topo era uma representação ternurenta de duas
meninas de mãos dadas a correr por densos bosques cor de
esmeralda, com tranças esvoaçantes e vestidos cobertos de
rosas amarelas. Do lado direito, um rio. Ao fundo, um castelo
branco refulgente onde flâmulas vermelhas e verdes esvoaçavam
do topo das torres.
A respiração de Hazel ficou suspensa no seu peito. De repente,
sentiu-se tonta, desorientada. Sentiu um arrepio na nuca. O seu
mundo afunilou-se no monte de ilustrações que estavam em cima
da mesa de pinho.
Inclinou-se para mais perto. O que era? O que tinha aquele
desenho que a fazia sentir que podia mergulhar naquela cena,
naquele mundo tão obviamente mágico? Pequenas criaturas do
bosque — tâmias, pássaros, esquilos, borboletas, castores —
espreitavam por entre folhas verde-menta e ramos nodosos. Uma
coruja, grande e imponente, empoleirada num galho sobranceiro,
vigiava as meninas.
Hazel estremeceu.
O rio, visto mais de perto, brilhava com o que pareciam ser
estrelas.
Estrelas.
Um rio de estrelas.
Hazel pousou as mãos protegidas por luvas brancas sobre a
mesa para se estabilizar. Não era possível. Claro que não. Ela
estava a fantasiar. A dramatizar. Claro que haveria outros mundos
imaginários com rios estrelados. Claro que sim.
Levantou cuidadosamente o monte de papéis grossos e
espreitou o livro que estava por baixo. O título: O Bosque dos
Sussurros e o Rio das Estrelas. Por Peggy Andrews.
A capa verde e azul continha uma ilustração das meninas.
— Não pode ser — disse Hazel, calmamente. — Não.
O Bosque dos Sussurros era seu e da sua irmã há muito
desaparecida, Flora. Era um reino privado que ambas haviam
criado, um mundo de faz-de-conta que as ajudava a suportar o
pior da guerra, um lugar onde encontravam algum conforto que
era praticamente inexistente no mundo real.
E tinha desaparecido com Flora no rio.
Pela primeira vez em vinte anos, no mais puro assombro, Hazel
disse o nome em voz alta.
— O Bosque dos Sussurros.
CAPÍTULO 3

Setembro de 1939

Hazel e Flora estavam sentadas na relva macia do seu quintal


em Bloomsbury, Inglaterra. O apartamento estava demasiado
silencioso, demasiado sombrio. O rádio tinha sido desligado para
o caso de haver más notícias que a mãe não queria que as filhas
ouvissem; a mãe que tinha os olhos inchados das lágrimas que
tentava esconder. Elas ouviam-na através das grossas paredes
de gesso, a chorar até adormecer, se é que chegava a dormir.
Mas naquela tarde, no quintal, foram brindadas por um dia
luminoso que lhes trouxe algum alívio. As folhas douradas,
castanhas e vermelhas atapetavam a relva, cercada por paredes
de tijolo mais altas do que o seu pai. O espaço fechado não era
maior do que a sala de aula de Hazel na Bloomsbury School. As
meninas estavam à espera de que a mãe voltasse para casa do
seu turno no Royal Voluntary Service. Dissera às filhas que se
recusava a ficar de braços cruzados quando a Grã-Bretanha
precisava dela.
As bombas poderiam cair do céu a qualquer momento. Na
escola, Hazel assistia a filmes pouco nítidos projetados na tela de
enrolar, imagens a preto-e-branco de aviões no céu, que abriam
as suas barrigas para libertar cilindros que caíam no chão e
explodiam em chamas destruidoras. Hazel imaginava as bombas
a cair sobre si, sobre a irmã, sobre a casa, sobre a mãe… sobre
todo o seu amado Bloomsbury.
Todas as manhãs, Hazel acordava sã e salva, mas perguntava-
se se seria aquele o dia. Seria aquele o dia para o qual se
preparavam na escola, o dia para o qual os cartazes afixados nos
candeeiros de rua de Londres alertavam, o dia em que as
crianças seriam enviadas para um lugar seguro, para longe das
suas mães, dos seus apartamentos e de tudo aquilo que
conheciam e amavam?
Era a chamada Operação Flautista de Hamelin, um nome de
conto infantil para uma ideia perfeitamente atroz.
Hazel ouviu dizer que algumas famílias tinham enviado os filhos
para junto dos familiares na América, mas os Lindens não tinham
tias ou avós distantes em lugares seguros. Ela queria ser
corajosa, mas a ideia de deixar Bloomsbury, Mecklenburgh
Square e o seu apartamento de dois quartos na mansão do
parque oval com os caminhos iluminados por candeeiros deixava-
a nervosa e insone. Se as bombas chegassem a cair do céu, não
percebia qual era a importância de ir para outro sítio qualquer. O
céu cobria a Terra inteira. Não tinha onde se esconder.
Enquanto Flora dormitava no seu colo, a recordação do dia em
que o pai partiu intrometeu-se como um visitante indesejável, o
que acontecia muitas vezes quando ela estava mais sossegada.
— Fazes demasiadas perguntas e pensas demasiadas coisas
— disse-lhe o pai com uma gargalhada. Estava diante de Hazel e
Flora com o seu casaco militar verde. — Não aborreçam a vossa
mãe com muitas perguntas. Guardem-nas para a escola. Ela já
tem muito com que se preocupar sem ter de procurar respostas a
perguntas obscuras. — Inclinou-se e beijou a testa de Hazel, com
um sorriso meigo e triste só para ela.
Hazel acenou com a cabeça por entre as lágrimas, mas na
verdade só lhe apetecia gritar:
— Não vás! Se fores, será o fim de tudo!
Ela sabia que era verdade. Mas não tinha conseguido impedir
nada do que estava prestes a acontecer, porque lá fora soou uma
buzina e, através da parede envidraçada, ela viu o grande carro
preto parado junto ao seu apartamento em Londres, à espera do
papá. A chuva fria caía em rajadas, fustigando os vidros das
janelas.
Hazel agarrara-se à manga da farda rígida do papá e Flora, de 4
anos, agarrara-se à sua perna esquerda, de modo que, se saísse
porta fora, acabaria por arrastá-las pelos degraus de mármore até
ao pavimento molhado da chuva que dava para a praça do jardim.
A mãe deixou-se estar atrás das duas irmãs, sem sequer tentar
esconder o choro.
— Meninas, o vosso pai tem de se ir embora.
— Não — respondeu Flora com simplicidade e segurança.
O papá agachou-se e pegou em Flora, era a única maneira de
ela lhe soltar a perna, e a filha acariciou-lhe o pescoço. O seu
cabelo preto e espesso, herança irlandesa, estava escondido
debaixo do boné castanho-azeitona. Hazel tinha inveja da sua
irmã mais nova, mas sabia que era demasiado crescida para ser
abraçada daquela forma pelo pai. Em vez de chorar como a mãe,
Hazel congelou as palavras presas sob uma camada de gelo tão
fria e prateada como as bordas do lago redondo de Kensington
Gardens no inverno.
O papá soltou os braços de Flora do seu pescoço e beijou-lhe
as faces antes de a entregar à mãe.
— Prometo voltar para as minhas filhas. — Olhou para a mãe
com um desespero tal, que Hazel não pôde deixar de esperar que
um dia um homem olhasse para ela da mesma forma. — Adoro-
vos a todas. Sejam boazinhas. Ajudem a vossa mãe, façam o que
ela diz. Vemo-nos em breve. Cuidem umas das outras. — O seu
rosto estremeceu como se um pequeno terramoto estivesse a
acontecer debaixo da pele, e isso, mais do que a sua partida, fez
com que Hazel se sentisse tonta, aterrorizada.
Depois de muitos beijos, ele virou costas. Tinha saído pela porta
com todas as promessas de voltar, mas aquela foi a última vez
que o viram. Enquanto fazia a formação na RAF, um motor
defeituoso explodiu e ceifou-lhe a vida.
Passou um ano desde então. Hazel, a mãe e Flora ficaram de
pé, de braço dado, durante algum tempo, depois de o papá pôr
mochila militar castanha ao ombro e fechar a porta atrás de si. Por
fim, a mãe expirou e limpou as lágrimas da cara com as costas da
mão.
— Bem, meninas, está na hora de pôr a mesa. O jantar está
quase pronto.
E Hazel pensou, é assim que vai ser. Fazemos de conta.
Fingimos que está tudo bem e continuamos com os nossos
jantares e os nossos dias até ele voltar. Mas o telegrama da sua
morte chegou apenas uma semana depois e, desde então, a casa
e o mundo ficaram mais sombrios e silenciosos. A guerra
aproximava-se e elas sentiam o seu hálito no ar.
O papá tinha partido para sempre e as suas mochilas estavam
feitas e à espera, com máscaras de gás penduradas nas correias
como monstros de nariz arrebitado. Tinham-lhes sido entregues
na escola — a de Hazel, muito escura, e a de Flora, a versão pré-
escolar, uma máscara vermelha e azul do Rato Mickey, concebida
para evitar que as crianças se assustassem. Mas foi em vão. Elas
eram assustadoras.
Agora, no quintal com Flora, Hazel não queria pensar em
partidas, mas esse era o único pensamento que preenchia a sua
mente.
— Conta-me uma história — pediu-lhe a irmã, quando acordou
e se espreguiçou, aninhando-se a Hazel e enfiando o ursinho de
peluche esfarrapado debaixo do braço. Flora era muito doce, com
os seus caracóis loiros revoltos, grandes olhos castanhos, e umas
pestanas exuberantes que quase lhe tocavam nas sobrancelhas.
Um pontilhado de sardas cobria o seu nariz e bochechas. Tinha
um sinal de nascença caraterístico na parte interna do braço, a
cinco centímetros da parte interna do pulso. Hazel dizia que os
sinais castanhos pareciam orelhas de coelho; a mãe achava que
eram asas de borboleta e o pai, asas de anjo. A mãe chegou a
dizer a Hazel que a avó tinha um sinal igual, e que era uma
dádiva ancestral, não um defeito. Naquela noite, sozinha na casa
de banho, Hazel examinou o seu corpo, ou o máximo que
conseguiu ver, à procura do seu próprio sinal ancestral. Não
encontrou nenhum.
Todas as tardes, Hazel ficava a tomar conta da irmã, sem que
isso fosse um incómodo. Essa era a parte fácil. O difícil era
pensar em histórias novas.
As flores do quintal pareciam não querer largar as cores do
verão. As centáureas e as cenouras-bravas curvavam-se rente ao
chão, enquanto as alfaces da horta da mãe murchavam em tons
de castanho. As roseiras derramavam flores cor-de-rosa e
vermelhas junto ao muro de tijolo que partilhavam com os vizinhos
de três lados. Hazel inspirou, enquanto sentia as palavras a
crescer e a subir pelo peito.
— Não há muito tempo e não muito longe daqui, existiu e ainda
existe um lugar invisível.
Flora riu-se com prazer. As histórias pareciam ser a chupeta de
Flora, a forma como Hazel conseguia fazer com que sua irmã
mais nova sossegasse a energia inesgotável que a mantinha
inquieta. Era a solução para a angústia de Flora e para as suas
noites sem dormir, o sobressalto a cada barulho e sirene:
histórias. Era assim que se superava o medo.
Flora, com o seu ceceio de 5 anos, perguntou:
— É invisível e está perto daqui?
— Sim! Está mesmo ao nosso lado e, por incrível que pareça,
está também noutro lugar.
Hazel teve noção disso mesmo naquele momento: ninguém
decidiria onde ficariam até ao fim da guerra. Seria ela mesma a
decidir. Ainda não sabia muito sobre aquele novo lugar. A
descoberta viria com o desenrolar da história.
— Como pode um lugar estar em dois sítios? — indagou Flora.
— Magia — respondeu Hazel, com naturalidade. — Neste lugar,
tudo pode acontecer, podemos ser o que quisermos — disse,
enquanto batia palmas. — Há um rio cheio de estrelas que passa
por lá.
— Quero ir lá. — Flora sentou-se direita e deixou cair o Berry no
chão. — Como vamos para lá?
— Fica atenta às portas secretas. Estão escondidas por todo o
lado, e só são visíveis para aqueles que são dignos. — Hazel fez
uma pausa. — Felizmente, nós somos dignas.
Flora sorriu e sentou-se mais direita.
— Podemos ir?
— Sim!
— Onde fica?
Hazel olhou para o céu limpo à procura da resposta, confiante
na sua imaginação. Pensou na Terra do Nunca, no País das
Maravilhas, no Bosque dos Cinquenta Hectares. Era preciso voar
ou cair para chegar a esses lugares secretos.
— Debaixo das pedras? — Flora inclinou-se para a frente e
encostou as mãos ao relvado irregular. — Ou é lá muito no alto,
acima dos aviões?
— Não — disse Hazel, resoluta, embora não pudesse dizer de
onde lhe vinha a certeza. Foi então que viu um brilho iridescente
na borda dos lençóis brancos estendidos ao sol. — Está sempre
aqui, mas nós só podemos vê-lo quando entramos pela porta.
Olha! — Hazel apontou para o castanheiro com os seus ouriços
castanhos cobertos de espinhos verdes pendurados nos ramos.
— A entrada brilha porque a luz se esgueira pela porta. O ar
estremece.
— Tenho medo — disse Flora.
— Não tenhas. É certo que alguns bosques são assustadores,
mas o nosso não é. É mágico e pertence-nos. Este mundo está
do nosso lado. É… seguro.
Flora torceu o nariz e pegou na pata do seu esfarrapado ursinho
Berry com o polegar e o indicador e esfregou-a.
— Como se chama o lugar? — sussurrou Flora. Os seus olhos
pareciam ainda maiores do que o normal.
Hazel imaginou um bosque, um rio, um castelo bem distante.
Nesse lugar, não havia guerras ou desgostos. Podiam fazer o que
quisessem, ser o que quisessem. Flora puxou as pontas dos
caracóis de Hazel.
— Hazel, como se chama?
A escolha do nome não podia ser feita de ânimo leve. Flora,
Hazel e a mãe, Camellia, todas tinham nomes de plantas. Lea e
Mersey, os seus nomes do meio, eram uma homenagem aos rios
da infância dos seus pais.
— Não se esqueçam — dissera-lhes o pai —, vocês são fruto
da terra e da água. De ambas. E também do amor. Do nosso
amor. — E depois puxou a mãe para junto de si com tanta força
que ela corou e afastou-o.
O nome daquele novo mundo surgiu a Hazel como uma oração,
um nome que já existia, que tinha esperado por elas, um nome de
segredos, da terra e dos rios, tal como as duas irmãs.
— Chama-se o Bosque dos Sussurros e o Rio das Estrelas. —
Hazel pegou na mão da irmã e ambas se levantaram e
caminharam até junto do castanheiro. Passaram as mãos pelos
sulcos entrelaçados da casca, e sentiram-nos ásperos nas palmas
das mãos. — Fecha os olhos — instruiu Hazel, e as irmãs
sentaram-se novamente na relva, com Flora aninhada em Hazel
como um cachorrinho. — Este mundo é feito de flores, rios e
árvores, tal como nós.
— Quero ir já para lá! — declarou Flora.
— Assim que passarmos pela porta, podemos ser o que
quisermos. Vamos ter uma aventura, mas temos de regressar
aqui, a não ser que…
— A não ser que o quê? — sussurrou Flora. — E se nos
perdermos?
— Ninguém se perde no Bosque dos Sussurros.
— Podemos ficar lá? — Olhou para Hazel, e a luz do Sol filtrada
pelas folhas desenhou-lhe um rendilhado de sombras no rosto.
Hazel ponderou durante alguns instantes.
— Ao princípio, não… talvez um dia, quando escolhermos o que
queremos ser. Mas só nessa altura. — Aproximou-se da árvore,
na esperança de encontrar uma reentrância, algo por onde
pudessem entrar e que as levasse dali. Por cima delas, um melro,
solitário e lamurioso, com o bico cor de laranja a espreitar por
entre as folhas esmeralda, entoava o seu chilreio caraterístico.
Flora olhou para cima.
— O que vamos ser? Pássaros?
— Saberemos quando chegar a altura. Não descansaremos até
encontrarmos aquilo que nos está destinado.
— Será que nós as duas vamos ser a mesma coisa? — Flora
chegou-se mais à irmã, como se isso garantisse que se tornariam
iguais. — Eu posso ser um pássaro e tu uma doninha.
Hazel soltou uma gargalhada.
— Uma doninha? Porquê?
Flora aproximou-se mais.
— Porque tu cheiras mal.
Hazel afastou a irmã.
— Para!
— Mentira — disse Flora, e aproximou-se mais. — E agora, o
que fazemos?
Por vezes, quando Hazel criava histórias para Flora, o que se
seguia na narrativa surgia como um segredo que só ela podia
ouvir. Outras vezes, a história escondia-se nas sombras,
indisponível para se revelar. Hazel disse a verdade à irmã.
— Não sei. Talvez sejamos a mesma coisa, talvez não. Mas
posso dizer-te que há sempre uma coruja a olhar por nós.
— Como entramos?
Uma nuvem baixa tapou o sol como um lençol de linho e ambas
estremeceram antes de Hazel dizer:
— Para entrar, temos de sussurrar o seu nome três vezes.
Bosque dos Sussurros. Bosque dos Sussurros. Bosque dos
Sussurros. — Fez uma pausa para criar suspense. — Chegámos,
finalmente — disse Hazel. — Não é lindo, Flora? Os bosques são
verdes, e o rio brilha com estrelas e… olha! Ali à frente está o
castelo!
— O que somos? O que somos? O que somos? — guinchou
Flora, impaciente.
— Nós somos… azulões!
Hazel entreabriu um olho para espreitar a irmã e sentiu o calor a
espalhar-se pelo peito, debaixo das costelas. Flora recostou-se na
relva e sorriu, com os olhos tão fechados que toda a sua carinha
estava enrugada. Levantou os braços e agitou-os. Sim, era aquela
a solução para fugir aos anseios e ao medo.
A voz de Hazel guiou-as por florestas com galhos tão
descomunais e robustos que pareciam capazes de agarrar e
levantar as duas irmãs. Na margem do rio, observaram
deslumbrantes constelações flutuantes e cometas sob a água
cristalina que corria rapidamente.
— Hoje, vamos conhecer o esquilo de casaco vermelho —
explicou Hazel. — Olha, Flora, estamos a sobrevoar a floresta,
acima da copa das árvores. É ali que o Tamisa desagua no mar.
Conseguimos ver tudo.
Ficaram as duas juntas, em silêncio, e tornaram-se pássaros.
Desfrutaram do seu próprio mundo, nas suas mentes. Enquanto
batia as asas sobre um mundo vibrante criado por si, Hazel
percebeu que encontrara uma história interminável, que podia ser
contada vezes sem conta.
Perdidas no seu mundo imaginário, as irmãs assustaram-se
quando a mãe chamou por elas.
Hazel e Flora abriram os olhos e viram a mãe de pé, a pairar
sobre elas, cercada por um nimbo criado pela luz do Sol. Trazia
um vestido florido cor-de-rosa e amarelo e os longos caracóis cor
de âmbar caíam-lhe pelas costas, animados pelo vento.
Haveria mãe no mundo mais bonita do que a delas? Hazel
duvidava.
Mas havia algo de errado. Com o batom vermelho a riscar a sua
pele de alabastro, a boca da mãe era uma linha trémula que se
esforçava para ficar direita. Os olhos estavam vigilantes e o lápis
preto, esborratado.
Na mão, tinha um quadrado de papel creme, que se agitava ao
sabor da brisa.
CAPÍTULO 4

Março de 1960

Hazel pegou no livro intitulado O Bosque dos Sussurros com


muito cuidado, como se este pudesse desintegrar-se nas suas
mãos. A ilustração da capa era encantadora e fantasiosa, mas
sugeria perigo. O rio refulgia como se esperaria de um rio feito de
estrelas.
Flora.
Estaria a sua Flora viva? Estaria a sua irmã algures a contar
esta história ao mundo?
Desnorteada, Hazel virou o livro e leu a sinopse.
Sempre que avistam uma porta cintilante invisível aos olhos de
terceiros, as gémeas órfãs Audrey e Janey Burton escapam à
crueldade do orfanato onde vivem. Cruzada essa entrada, as
irmãs dão por si no Reino do Bosque dos Sussurros, onde podem
tornar-se a pessoa ou coisa que mais desejam. Mas após cada
aventura, Audrey e Janey têm de regressar aos quartos sombrios
do Orfanato Shire… mas só até descobrirem quem estão
destinadas a ser no Bosque dos Sussurros.
«Shire.»
Ela e Flora viveram em Oxfordshire durante a retirada das
crianças de Londres. Hazel abriu a primeira página.
Dedicatória: A Linda Andrews, minha mãe, que é o começo de
todas as boas histórias.
Quem raio era Linda Andrews? Ela não podia conhecer esta
história. Ninguém sabia nada sobre esta história. Sim, o
desaparecimento da sua irmã de 6 anos tinha sido notícia nos
jornais quando ocorreu, em 1940: o facto de se ter perdido
durante o Blitz, quando ambas tinham sido enviadas para o
campo para viver sem os pais, à semelhança de tantas outras
crianças de Londres.
Ninguém quis acreditar que Flora teria desaparecido no ar — ou
no rio Tamisa, a fazer fé na polícia. Na altura, o terror da guerra
era a ameaça iminente, não o desaparecimento de uma menina.
Naquela manhã de outono de 1940, quando Hazel e Flora
saíram do chalé dos Aberdeens e percorreram o caminho
serpenteante de urze húmida do bosque para se sentarem no
amplo prado verde marginal ao rio Tamisa, Hazel não tinha
prestado atenção às mensagens silenciosas e secretas da
natureza que Bridie Aberdeen lhes tinha ensinado.
Se o tivesse feito, teria reparado que o rio estava
excecionalmente cheio, após a tempestade da noite anterior,
correndo desenfreado ao lado das irmãs e arrastando com
celeridade os galhos retorcidos que elas atiravam para a água.
É possível que o corvo de olhos castanhos que olhava para
elas, enquanto grasnava numa conversa quase humana, fosse
um mensageiro da desgraça. Ou que a coruja, que nos últimos
dias piava durante o dia, quisesse lembrar-lhes que prestassem
atenção.
Na noite anterior, o sono tinha chegado com uma relutância tal
que Hazel teve vontade de expulsar a irmã da cama para poder
tê-la só para si. Seria possível que fosse aquela a causa do que
tinha acontecido, o facto de Hazel ter desejado que a irmã
desaparecesse, nem que fosse por instantes, antes de cair no
sono?
Mas, apesar de todos os detalhes que contemplava em
retrospetiva, durante os vinte anos que passara a dissecá-los
como borboto de uma camisola, Hazel ainda acreditava que havia
deixado escapar uma dica, uma pista, uma pegada, uma nota,
algo que um dia viria à tona e resolveria o mistério do
desaparecimento de Flora.
Agora, na sala das traseiras da pequena Hogan’s Rare Book
Shoppe, o passado atormentava-a. Há vinte anos que procurava a
irmã, desde que esta desaparecera quando tinha 6 anos do
vilarejo de Binsey, e agora Hazel tinha uma pista, algo a que se
agarrar e que não tencionava largar.
Enfiou os outros pacotes dentro do cofre, fechou o ferrolho e
girou a combinação. Só tinha um pensamento: Este livro vai levar-
me até à Flora.
Hazel fechou o portefólio do Bosque dos Sussurros, atou a fita
de veludo e guardou tudo na sua pasta de cabedal. Com o
coração a bater descompassado, saiu pela porta das traseiras da
Hogan’s Rare Book Shoppe, deixando a pesada porta de metal
bater atrás de si.
A tarde de primavera estava turva com nevoeiro; um véu entre o
presente e o passado. Saiu a correr do beco de calçada para a
frente da livraria. Um grupo de oito turistas com sapatos pesados
e impermeáveis amarelos seguia uma guia robusta que entrava
na livraria. Através do vidro ondulado da janela, Hazel viu Tim ao
balcão, com a cabeça inclinada sobre um livro-razão. Levantou os
olhos quando o grupo entrou.
Hazel não se podia deixar ver, por isso desatou a correr pela
calçada. Passou pelas bicicletas azuis, verdes e vermelhas que
estavam estacionadas lado a lado ou encostadas umas às outras
na banca de aluguer. Os londrinos passavam por ela como se
nem existisse.
As explicações possíveis para o embrulho que trazia na pasta
assolavam-na a uma velocidade estonteante; uma tempestade
que tentava aprisionar num dedal. Será que Peggy era mesmo
Flora? Teria Flora contado a história a alguém? Teria ela
conseguido sobreviver, como sempre fora a ténue esperança de
Hazel e da mãe?
Virou para Charing Cross e continuou a correr em direção ao
Museu Britânico, e daí para a sua casa de Bloomsbury, em
Mecklenburgh Square. Passou a correr pela farmácia com o toldo
vermelho-escuro e pelo café com mesas de ferro onde os casais
se juntavam para beber cerveja. Atravessou a verdejante
Mecklenburgh Square até chegar às mansões georgianas
cercadas pelos seus relvados bem cuidados, as árvores
pontilhadas por rebentos primaveris.
Hazel entrou no apartamento que fora a sua casa de infância. O
edifício tinha sido construído com a grandiosidade do século XIX, e
depois transformado em apartamentos quando os londrinos
optaram por bairros mais chiques. No final da década de 1930, o
papá tinha conseguido comprar o melhor apartamento para a
família. Sobreviveu aos bombardeamentos e às guerras, embora
fossem visíveis as cicatrizes de uma época traumática para todos
os londrinos: a Segunda Guerra Mundial.
Hazel reparava sempre nas cicatrizes quando se aproximava
daquele edifício claro, com a alvenaria ligeiramente manchada, as
colunas ornamentadas que uniam o segundo ao terceiro andares,
as grades e portões de ferro de tinta lascada que protegiam as
portas reluzentes pintadas de preto e as janelas altas, uma das
quais ainda estava estilhaçada por causa de um bombardeamento
antigo. Ela nunca desviava o olhar. Desviar o olhar era negar
aqueles dias, negar inclusivamente a perda de Flora.
Tirou as chaves da pasta, abriu a porta e entrou a correr.
O apartamento de Hazel ficava no rés-do-chão, uma preferência
do papá. Frisos em gesso ornamentavam as sancas dos tetos
altos, com janelas que se abriam para um quintal e uma sala de
estar suficientemente grande para que estantes de pinho
embutidas cobrissem todas as paredes, assim como ambos os
lados da lareira de pedra, manchada por décadas de fuligem.
Hazel despiu a gabardina verde e pendurou-a no cabide junto à
porta da rua. A mobília do apartamento tinha sido comprada numa
loja de artigos em segunda mão ou herdada da mãe; confortável,
macia, e quase toda coberta por tecido florido, como se a mãe de
Hazel quisesse trazer o jardim para dentro de casa. Havia livros
por todo o lado, em prateleiras descaídas, mesas de apoio,
empilhados contra a parede.
A correspondência, que tinha sido atirada por uma abertura na
porta, estava espalhada pelo chão. Revistas. Contas. Publicidade
a um novo clube de jazz no Soho. Hazel pegou na papelada e
pousou-a na mesinha de centro. A capa brilhante da Vanity Fair
com a fotografia de uma mulher num fato e chapéu amarelos com
uma braçada de narcisos. E o slogan da revista: «Para a mulher
jovem e inteligente.»
Hazel riu-se. Jovem. Inteligente. Claro.
A mãe oferecia-lhe a subscrição da revista todos os anos, no
Natal, na esperança de que Hazel lesse os artigos sobre moda,
casamentos e feminilidade. Ela nunca lia. E nesta edição:
«Dezasseis páginas de roupas de viagem para a noiva!» E, por
amor de Deus, mais um artigo de As Crianças Perdidas do
Flautista de Hamelin, de Dorothy Bellamy, que todos os meses
falava de uma criança que se perdera durante a retirada das
crianças londrinas. Há um ano que a jornalista chata perseguia
Hazel para falar com ela sobre Flora.
Hazel deitou a revista para o lixo a caminho da cozinha. Nunca
responderia a perguntas sobre aquele dia e aquela noite a alguém
além da sua família e do inspetor que esteve presente no dia em
que Flora desapareceu, o homem com quem ela ainda mantinha
contacto, Aiden Davies.
Atravessou impetuosamente o piso de pinho até à ampla
cozinha amarela e pousou a sua pasta de cabedal na mesa de
pequeno-almoço de carvalho antes de acender a luz do teto. Por
cima do lava-loiça, uma janela dava para um beco nas traseiras,
onde um muro de pedra separava a sua casa da dos vizinhos. A
hera crescia ao longo do muro em ruínas onde estavam
encostados dois caixotes do lixo, como dois bêbados que tinham
colapsado a meio caminho de casa. Pôs a chaleira de porcelana
azul no fogão de dois bicos, acendeu o gás e ficou à espera da
melodia vaporosa da chaleira.
Tinha de se acalmar ou acabaria a respirar para dentro de um
saco de papel. Ligou o rádio e sintonizou uma estação de música
barroca. A chaleira cantou e ela deitou a água a ferver sobre a
saqueta de chá Darjeeling que já estava na sua chávena de
porcelana preferida, a que tinha florzinhas cor-de-rosa à volta da
borda. Juntou duas colheres de açúcar e recordou a época em
que o racionamento a privara desse luxo.
Tirou o embrulho da sua pasta de cabedal e colocou-o em cima
da mesa, marcada por anos de golpes de faca, manchas de tinta
e uma ou duas amolgadelas causadas pela queda de um tacho.
Abriu o embrulho, desatou o laço e pôs o monte de ilustrações
de lado. Pegou no livro. Na lombada, podia ler-se: Henry-Todd
Publishing, Nova Iorque, Nova Iorque. Olhou para a badana. Não
encontrou a habitual fotografia sorridente do autor. Hazel queria
procurar traços de Flora no rosto e feições da escritora. A sua
biografia resumia-se ao seguinte: Peggy Andrews vive em
Massachusetts. Este é o seu primeiro romance.
Era como se a quisessem manter em segredo; como se… seria
possível… que estivessem a esconder a sua verdadeira
identidade? Podiam muito bem tentar, mas aquela tal Peggy
estava a contar a história de Hazel, e Hazel estava determinada a
encontrá-la.
Verdade seja dita que havia algumas pessoas que poderiam ter
ouvido as conversas de Hazel e Flora sobre o mundo secreto do
Bosque dos Sussurros. Mas eram poucas. E não teriam fugido
para a América para escrever a história.
Pois não?
A única coisa a fazer é ler o livro.
Deve haver uma explicação racional.
— Se nasceste digna — e todos nascemos, mesmo que não o
saibamos —, encontrarás o teu caminho através da clareira da
floresta até às portas que te esperam. Quando entrares,
encontrarás um mundo feito à tua medida — disse Audrey à sua
irmã, Janey.
O início não era exatamente o mesmo — as palavras tinham
mudado ligeiramente em relação à abertura que Hazel usava
sempre como um feitiço quando contava a história a Flora.
Prosseguiu com a leitura.
As duas irmãs estavam sentadas num jardim banhado pelo sol
em cima de um cobertor vermelho-vivo, numa breve pausa do
Orfanato Shire, onde a Madame Nariguda aguardava pelas
amoras que as incumbira de apanhar.
Hazel riu-se. Madame Nariguda! Um nome arrojado — sem
dúvida que aquilo não fazia parte da história original de Hazel.
Parece que há que contar com alguns floreados. Mas o jardim e o
cobertor vermelho… isso era de Flora e dela.
— Todos nascemos com esta consciência — disse Audrey. —
Mas os adultos, com as suas feridas e as suas listas e as coisas
triviais que lhes parecem importantes, mas que na realidade não
têm importância nenhuma, perdem essa consciência. Deixam que
a dor, a perda e a mágoa bloqueiem as portas.
Janey sussurrou:
— Mas as crianças lembram-se.
Com a música do rádio a subir e a descer de intensidade, com o
doce chilrear dos pássaros lá fora e o chá a arrefecer ao seu lado,
Hazel leu a história de duas meninas chamadas Audrey e Janey
que viviam numa terra à beira de uma baía, em Cape Cod,
Massachusetts.
As meninas vasculharam arbustos de arandos e baías em
busca de portas cintilantes que conduzissem a outro mundo. Não
era Inglaterra, mas havia um rio de estrelas e colinas agrestes
com urze, penhascos, rochedos e pedras. E havia também dunas
de areia que invadiam praias extensas e lagoas com tartarugas e
peixes gigantes, e lagos de grande profundidade.
As ilustrações em cada página realçavam a história com clareza
e fantasia.
À medida que a história se desenrolava, as meninas iam
conhecendo personagens de contos de fadas. Conheceram
Hansel e Gretel e avisaram-nos para não entrarem no bosque,
explicando-lhes que seriam fechados e alimentados com doces
por uma velha que os queria comer. Algumas páginas mais à
frente, as duas irmãs encontraram a Branca de Neve e disseram-
lhe para não comer maçãs.
Ao mudarem o rumo destas narrativas, as irmãs criaram finais
melhores. Finais de que gostavam. Os três porquinhos podiam
assar o lobo para o jantar e a Caracolinhos de Ouro podia adotar
os três ursos. As órfãs de Peggy Andrews não se limitavam a
passear pelo Bosque dos Sussurros e a apreciar as vistas,
estavam a mudar histórias centenárias para se adequarem às
suas fantasias.
Duas horas depois, Hazel recostou-se na sua cadeira. Esta
autora americana conhecia a sua história secreta. Será que a
tinha ouvido de Flora? Ou que fosse esta a autora? Claro que
tinha mudado algumas partes, mas a verdade é que estamos a
falar da memória de uma criança de 6 anos.
Fechou a capa. «Como é possível que tu existas?»
Ao longo dos anos, enquanto sentia a ausência de Flora como
uma ferida aberta no seu coração e o zumbido latente da perda e
do mistério sob a pele, Hazel muitas vezes se perguntou se o
Bosque dos Sussurros tinha continuado sem ela e sem Flora, se o
mundo que tinham criado juntas embarcara nas suas próprias
aventuras enquanto ela vivia a sua vida real. O Bosque dos
Sussurros era fantasia, em tudo semelhante a qualquer um dos
livros que Hazel tinha amado, As Aventuras de Alice no País das
Maravilhas, Peter Pan, O Hobbit ou As Crónicas de Nárnia… mas
o Bosque dos Sussurros tinha-se esfumado no tempo.
Hazel ainda pensou em escrever o conto num dos seus muitos
cadernos, mas atirou os seus escritos de infância no rio após o
desaparecimento de Flora. Tinha considerado voltar a espreitar
pela porta cintilante para ver se o seu mundo tinha sobrevivido.
Sempre que sentia essa vontade, porém, era assolada por um
grande medo.
Porque visitaria o mundo que lhe levara Flora? Ou o bosque que
a pôs em perigo, o rio onde possivelmente a sua irmã se afogou?
Não obstante, de alguma forma, o rio dos seus sonhos e as
suas histórias tinha chegado à América. Com mil diabos, o que
devia ela fazer agora?
Podia ter ignorado o livro. Podia ter guardado o romance e as
ilustrações no cofre de Edwin, descartado a estranha
sincronicidade do conto de fadas, atribuindo a sua existência ao
inconsciente universal de que falava Jung, o mistério da
imaginação.
Mas não conseguia ignorar o formigueiro da sua curiosidade.
Não havia dúvidas. Este era o seu Bosque dos Sussurros.
Como poderia encontrar a autora? Não havia muitas opções.
Podia telefonar para a editora ou cruzar o oceano de avião e
percorrer todo o estado de Massachusetts. Não podia
simplesmente telefonar para uma telefonista nos Estados Unidos
e perguntar: «Conhece uma Peggy Andrews em Massachusetts?»
Haveria uma lista telefónica dos residentes daquele estado na
Biblioteca Britânica? Se houvesse, quantos Andrews encontraria?
Hazel espalhou as ilustrações originais sobre a mesa. Eram
obras belíssimas; artigos de colecionador; exemplares únicos. Foi
então que sentiu a verdade a martelar-lhe no peito: tinha saído do
seu local de trabalho sem dizer uma palavra, trazendo consigo
ilustrações valiosas assinadas pela proeminente Pauline Baynes,
ao nível das de Nárnia, juntamente com uma primeira edição
assinada de um conto de fadas. Tinha acabado de cometer um
crime.
Edwin podia ter ligado para a Scotland Yard por menos do que
tinha acabado de fazer.
Uma ladra, porém…
Este era o seu conto de fadas.
Pertencia-lhe.
E à Flora.
Levar o livro e a coleção de ilustrações era, na melhor das
hipóteses, irrefletido e, na pior, um crime. Mas Flora era a razão
pela qual Hazel ainda atentava em cada sussurro e momento
arrepiante, na vibração de uma qualquer ausência ou do
chamamento de uma pega, na maneira como uma amiga mexia o
chá no sentido dos ponteiros do relógio ou ao contrário. Dentro de
si, uma vigilância incessante mantinha-a atenta a livros que lhe
caíam nas mãos ou a letras de canções que a impressionavam,
ao pio de uma coruja durante o dia que podia significar algo raro.
O seu coração mantinha-se alerta, mesmo que
inconscientemente, a tudo aquilo que pudesse indicar o caminho
para Flora.
CAPÍTULO 5

Março de 1960

O som estrídulo soou alto e insistente. Depois de mais dois


toques, Hazel percebeu que o barulho vinha do telefone na
parede da cozinha. Levantou o auscultador de plástico verde com
um «Estou?».
— Hazel, estás bem? — Era Tim. Parecia preocupado.
— Estou. Sim.
O rubor quente do medo assomou-lhe ao pescoço. Ele já sabia.
— Foste-te embora sem te despedires. — Silêncio, uma pausa
que ela não conseguiu descortinar. — Mas eu compreendo, minha
amiga. Eu também sou péssimo em despedidas. E a verdade é
que não estás de partida. Vais continuar em Londres. Só que não
aqui na livraria. — Ele riu-se, mas foi um riso desconfortável,
como se nunca o tivesse feito antes.
— Desculpa — disse ela. — Sou péssima em despedidas, tens
razão. E ainda estou um pouco ressacada de ontem à noite. Creio
que o pub foi a melhor despedida.
— Concordo — disse ele. — A livraria ficou em polvorosa com
um grupo de turistas, e nem me apercebi de que te tinhas ido
embora. Vamos sentir muito a tua falta. Sei que tens férias, mas
promete que nos contas tudo sobre o teu primeiro dia na
Sotheby’s.
— Prometo. E, Tim, desculpa. — Hesitou. Era a sua
oportunidade de confessar o que tinha feito, de lhe dizer que tinha
saído com o embrulho sem querer pelas traseiras. Que amanhã o
devolveria.
Mas não disse mais nada.
— Não tens nada que pedir desculpas. Fica bem, Hazel.
Londres está a mudar tão rapidamente. Presumo que seja
expetável que as coisas também mudem por aqui.
Hazel desligou com uma mão trémula. Sim, era uma nova
década.
Londres estava a mudar diante dos seus olhos, a mudar de
formas que ela via em flashes rápidos: música com uma nova
batida, rádios transístores, as multidões no Soho, as bainhas a
subirem e os cabelos a descerem, os aristocratas a misturarem-se
com a plebe na rua e nos pubs. Rumores de uma droga sob a
forma de uma mancha em papel de seda que podia transportar
qualquer um para um novo mundo.
Os londrinos tinham finalmente começado a acreditar que a
guerra tinha acabado de vez. A breve pausa entre a primeira e a
segunda guerras tinha-os habituado a esperar pela próxima, mas
agora, quinze anos volvidos, começavam a descontrair. As
crateras deixadas pela guerra eram agora preenchidas por betão
e esperança.
E também Hazel tinha começado a virar a página.
Até agora.
Todos aqueles anos em contacto permanente com o inspetor
Aiden Davies para ter a certeza de que ele não esqueceria Flora,
a busca anual no baú que estava no armário do corredor para
reler artigos de jornal e reviver aquele dia fatídico, em busca de
uma dica ou uma pista que lhe pudesse ter escapado, e agora
isto. Decidiu anotar todas as formas possíveis de este livro ter
sido escrito por uma autora americana antes de ir parar à Hogan’s
Rare Book Shoppe.
Abriu o armário de pinho na parede oposta da cozinha e da
prateleira de baixo tirou um caderno cor de ovo. Era um dos
inúmeros cadernos que entravam em sua casa vindos de quase
todas as papelarias e livrarias de Londres: azuis e vermelhos,
púrpura e cremes, cadernos grandes e cadernos de bolso.
Enchiam-lhe os armários, as gavetas e as bancadas.
Nunca soube ao certo o que deveria escrever nos cadernos,
mas lá estavam eles, em branco e à sua espera quando estivesse
pronta para os usar. O seu desejo de escrever histórias extinguiu-
se no dia em que Flora desapareceu, mas isso não impediu Hazel
de comprar aqueles belíssimos cadernos. Nem de ir regularmente
direta do trabalho por Charing Cross Road até Gerrard Street e ao
café Legrain, onde se reuniam escritores de nomeada.
Queria ser um deles, ser um dos clientes que se diziam
escritores ou autores. Queria ser uma das mulheres que
escreviam livros que chegavam às prateleiras das bibliotecas e
das livrarias. Queria ser… uma autora. Mas aquele era um sonho
ridículo, sobretudo porque não conseguia sequer começar uma
história desde o dia em que Flora desapareceu. Os cadernos
vazios empilhados por todo o apartamento e as listas de ideias e
de tarefas que redigia eram os únicos vestígios da sua vontade de
pôr palavras no papel.
Da prateleira de baixo, tirou o tinteiro de barro verde e a sua
preciosa caneta de bico de prata gravada. Em seguida, colocou
cuidadosamente as ilustrações numa pilha, no canto mais
afastado da mesa. O primeiro desenho, condizente com a capa do
livro, saltava à vista sob uma folha de velino.
Abriu a primeira página em branco sem linhas. A caneta
demorou-se enquanto uma lágrima de tinta caía sobre o papel
vazio.

Pessoas que possam conhecer o Bosque dos Sussurros:


1. Harry Aberdeen
2. Bridie Aberdeen
3. Mãe
4.

Hazel fechou os olhos e tentou lembrar-se de quem estava por


perto quando ela e Flora tinham sussurrado a história uma para a
outra. Nunca tinham contado a história num lugar público, por isso
não podia ter sido o bondoso padre Fenelly, com as suas camisas
pretas e colarinho branco, a carrancuda professora Slife, as
quatro enfermeiras de olhos arregalados, o simpático dono do
pub, o Sr. Nolan, os gémeos irritantes, a bruxa de cabelos crespos
ou…
Alguém bateu à porta do apartamento e Hazel deixou cair a
caneta. Levantou-se e caminhou até à sala de estar.
Felizmente, era Barnaby, com o seu cabelo preto luzidio debaixo
do boné de feltro verde, os olhos gentis cinza-azulados, a voz
alegre e as maçãs do rosto estreitas, e a cicatriz prateada que lhe
percorria a face esquerda e contava a história de uma bomba que
caiu na rua da sua infância em Hampstead Heath. Os seus pais
tinham-se recusado a mandá-lo embora, preferindo correr o risco
de o manter consigo.
— Olá, querida — disse ele, abraçando-a e acariciando o seu
pescoço com a barba escura e espigada. Aquele homem ganhava
barba entre o pequeno-almoço e o almoço.
— Mas que boa surpresa — disse ela, beijando-o, um pouco
desorientada.
— Surpresa? Vamos jantar com a tua mãe e o teu padrasto
daqui a meia hora.
— Oh, não…
— Esqueceste-te? — perguntou, tocando-lhe levemente no
nariz.
— Sim. Podemos cancelar? Não estou com paciência para a
minha mãe e para o chato do Alastair neste momento.
Ele sorriu.
— Não tenho problema nenhum em cancelar — assentiu,
enquanto desabotoava o casaco de lã cinzento e o pendurava no
cabide junto à porta, antes de pousar o boné no banco para se
instalar.
— Prepara uma bebida — disse ela. — Eu ligo-lhes. Tenho uma
coisa para te contar.
Ele ergueu as sobrancelhas.
— Isso soa a mistério.
— Uma história — tornou ela.
— Adoro. — Aproximou-se do carrinho de bar prateado que
tinha as garrafas de Macallan’s e Jameson, Relsky e Gordon’s, a
brilhar como joias entre os copos Waterford.
Hazel voltou para a cozinha e pegou no telefone para ligar à
mãe, que ficaria desagradada com a mudança de planos.

Londres, 1957

Hazel chegou cedo ao edifício de pedra branca, em Bond


Street: Sotheby’s Auction House. Só o facto de entrar na famosa
leiloeira causava-lhe frémitos. Lá dentro, encontrou a cavernosa
sala de leilões com os seus tetos com vigas de madeira escura
reluzente, com um pódio também em madeira colocado à frente.
As vozes sobrepunham-se no ruído.
Um letreiro de lona preta pendia torto na parede de painéis de
madeira à esquerda, anunciando o leilão do dia: LIVROS RAROS,
MANUSCRITOS E ARTIGOS DE AUTORES.
Hazel inscreveu-se numa longa mesa atoalhada e pegou na sua
raqueta: Número 42.
— Com licença, com licença — murmurava ao furar pela
multidão em busca de uma cadeira vazia.
Não tencionava comprar nada. Nunca comprava. Não tinha
dinheiro. Mas tinha amor suficiente por livros e manuscritos para
querer ver tudo pessoalmente, para descobrir algo que tivesse
escapado a Edwin.
Hoje, haveria cartas de Charles Dickens para Elizabeth Gaskill,
algumas páginas originais do manuscrito de O Hobbit e, o mais
interessante, uma caneta-tinteiro gravada em prata do espólio de
Virginia Woolf. Ninguém podia dizer que tivesse escrito com ela,
mas Hazel imaginou que teria sido usada para escrever Um
Quarto Só Seu.
O martelo bateu no pedestal e a sala ficou em silêncio. Um
homem alto, com uma careca que reluzia sob as luzes do teto,
anunciou:
— Silêncio. Vamos começar com o artigo 060 que consta na
página 2. Uma primeira edição d’As Aventuras de Alice no País
das Maravilhas.
Ouviu-se o restolhar das páginas das brochuras do leilão e
começou o frenesim: raquetas levantadas, vozes a gritar,
licitações feitas à medida que a sala ficava mais barulhenta. Um
homem que chegou atrasado entrou pelo lado esquerdo de Hazel.
Atrapalhou-se com a pasta de cabedal, deixou-a cair e espalhou
um monte de papéis pelo chão.
— Merda — exclamou. Encolheu-se e baixou a cabeça. —
Desculpe. — Voltou a enfiar os papéis na pasta e abanou a
cabeça. — Maldito comboio — disse, concentrando-se na
brochura por instantes, antes de voltar a sua atenção para o
homem no pódio.
Hazel olhou para a cicatriz prateada que lhe percorria a face
esquerda e imaginou a sua história. O cabelo encaracolado do
homem estava penteado para trás com brilhantina. As marcas do
pente eram evidentes. Diria que ele tinha 30 e poucos anos, tal
como ela, mas não seria a primeira vez que erraria tais cálculos.
Tinha uma expressão atenta e um queixo cinzelado. Quando
olhou na sua direção, ela desviou o olhar. Tinha sido apanhada a
olhar fixamente.
Não voltaria a deixar-se enlevar por outro homem que acabaria
por se fechar num quarto ao fundo de um longo corredor de
portas que ela acabaria sempre por fechar — por vezes até bater.
Outro homem a quem teria de dizer: «Não estou preparada para
isto.» Outro homem que quereria à força que ela fosse viver com
ele, afastando-a de Mecklenburgh Square.
Ele levantou a raqueta para alguns objetos, sem nunca
conseguir arrematá-los.
— Já nos conhecemos? — perguntou-lhe ela, em surdina, entre
artefactos.
— Acho que não — respondeu ele com um sorriso que irradiava
bondade. — Chamo-me Barnaby Yardley.
— Hazel — disse ela, e sentindo que tinha de explicar porque
estava ali, acrescentou: — Hogan’s Rare Book Shoppe.
— Ah, a livraria preferida do meu pai.
E, logo a seguir, lá estava ela: a caneta de Virginia, erguida no
ar pelo homem vestido de preto. A autora tinha vivido na mesma
praça de Bloomsbury onde Hazel vivia agora, mas o apartamento
de Virginia Woolf tinha sido bombardeado e destruído. Hazel
imaginou Virginia, desanimada e sem esperança. Apesar das
belas palavras que escrevia, certo dia encheu os bolsos com
pedras e entrou no rio Ouse para se afogar.
Hazel levantou a raqueta. Só se apercebeu depois de o fazer.
O homem chamado Barnaby levantou também a sua raqueta.
Na ronda seguinte, ela voltou a levantar a raqueta.
E ele também.
Hazel virou-se na cadeira e encarou-o. Só conseguiria comprar
aquela caneta se a sua mãe lhe desse mais dinheiro. E ela estava
determinada a que isso não voltasse a acontecer. Nem mesmo
pela caneta de Virginia Woolf.
Barnaby Yardley ganhou o lance e Hazel pôs-se de pé,
desanimada.
No exterior, o dia húmido de verão pesava nos ombros de
Hazel, que caminhou até casa com os punhos cerrados, a pasta
de cabedal a balançar contra as ancas. Quem era aquele sujeito
que tinha comprado a caneta que ela cobiçava? Era um idiota.
Um arrogante. Um homem que devia ter dinheiro de família e que
não fazia ideia do que era contar as libras para pagar a conta do
gás no inverno.
Dois dias depois, ele entrou na Hogan’s Rare Book Shoppe.
Hazel estava a abrir o armário para tirar uma primeira edição de
1984, de Orwell, que devia seguir para a América.
— Olá, olá — atirou ele, com um sorriso.
Ela demorou algum tempo a identificá-lo, pois ele usava um
chapéu de feltro cinzento que lhe tapava a testa. Um brasão da
Universidade de Londres estava cosido no bolso do casaco.
Um professor, pensou ela.
Acenou-lhe com a cabeça, mas não respondeu. Tinha livros
para arrumar, mensagens para responder, um cliente zangado
que tinha comprado um livro com páginas em falta.
— Peço desculpa — prosseguiu ele.
— Perdão? — Ela pegou no romance de Orwell e afastou-se
uns centímetros.
— Peço desculpa por ter feito uma oferta superior.
Ah, era o idiota bem-parecido do leilão. Ela acenou com o livro,
mas não se mexeu.
Ele sorriu.
— É fascinante ver os artefactos dos nossos heróis literários,
não é?
— É — disse ela. — É como desenterrar fósseis para ver como
tudo aconteceu.
— Exatamente! — concordou ele, e esboçou um sorriso tão
doce que ela sentiu o calor tomar conta do seu corpo.
Fez-se um silêncio confrangedor, antes de ele perguntar:
— Havia algum motivo especial para querer a caneta?
Hazel inclinou a cabeça e olhou mais atentamente para o
homem. Parecia sincero.
— Vários motivos, mas nenhum deles lógico ou intelectual. E
terá sido melhor não ter ficado com ela.
— Diga-me um dos motivos — insistiu ele.
— Adeline Virginia Woolf viveu no edifício ao lado do meu
durante a guerra, mas o dela foi destruído e o meu não. Ficava
sentada naquele apartamento a escrever livros. Tentou salvar a
própria vida com palavras e não conseguiu, acabando por cair ao
rio e…
Foram lágrimas que viu no rosto dele? Não tinha a certeza. Ele
acenou com a cabeça.
— Isso é muito triste, mas ao menos o mundo ainda tem a sua
obra.
— É verdade. — Hazel acenou com a cabeça, menos tensa,
mas ainda de pé atrás. — O que seria de nós sem Rumo ao
Farol?
— Ou Mrs. Dalloway — acrescentou ele.
De uma sala ao lado, alguém chamou por Hazel. Ela olhou para
trás e depois para Barnaby.
— Tenho de voltar ao trabalho. — Não conseguiu resistir a uma
última provocação. — Desfrute da caneta.
— Hazel, aceita jantar comigo esta noite?
Afinal, ele não era cretino. Ou idiota. Era professor de Literatura
Medieval Inglesa. Era também de uma família aristocrática que
passava férias num castelo em ruínas na Escócia, onde caçava
veados e galos silvestres. Em Hampstead Heath, os Yardleys
possuíam uma moradia de meados do século XVIII, com um
terraço com vista para Londres e uma biblioteca onde a coleção
literária do pai de Barnaby se tinha tornado uma das mais
famosas de Inglaterra. Ele tinha comprado alguns livros na
Hogan’s.
Pouco importou a sua intenção de resistir aos encantos dele.
Depois de um crème brûlée, ele ofereceu-lhe a caneta numa caixa
de veludo azul.
— Pensei que estava a comprar isto para a coleção do meu pai,
mas afinal estava a comprá-la para si.

Barnaby estava junto ao carrinho de bar de latão na sala de


estar de Hazel, a girar um copo alto Waterford entre as palmas
das mãos, com a luz do candeeiro refletida no vidro lapidado e no
whisky âmbar. Sorriu-lhe quando ela entrou na sala e entregou-lhe
o copo.
— Tenho a sensação de que a história que me vais contar pode
precisar disto.
— Talvez — anuiu. Sentaram-se de frente um para o outro no
sofá florido e desgastado. Hazel apoiou-se no braço do sofá e
pegou no copo sem beber. — É sobre a minha irmã — disse.
As espessas sobrancelhas escuras de Barnaby ergueram-se,
criando sulcos na testa, e ele inclinou-se para a frente.
— A tua irmã que está desaparecida. Há novidades?
— De certa forma. — Hazel contorceu-se no sofá e pousou o
whisky na delicada mesa de apoio. — Hoje, encontrei um livro.
Um livro que foi lançado na América. Um conto de fadas.
Ele acenou com a cabeça, instando-a a continuar. Sabia o que
se tinha passado com Flora, claro. Toda a gente sabia. Tinha
havido artigos de jornal — a rapariga perdida da Operação
Flautista de Hamelin que nunca foi encontrada, por mais grupos
de busca que se formassem, por mais vezes que dragassem o rio.
A história de Flora tinha-se tornado uma história de fantasmas,
uma lenda de Oxford, Binsey e Bloomsbury.
Mas Hazel não havia contado toda a verdade a Barnaby. Nunca
contou a ninguém. Nem mesmo a Kelty. Fechou os olhos e
pressionou as têmporas com as pontas dos dedos. Abriu os olhos,
encarou o homem que tanto amava e começou de novo.
— Quando eu e a Flora éramos pequenas, com 14 e 5 anos, em
1939, a Inglaterra tinha acabado de declarar guerra à Alemanha.
Londres estava ao rubro. O papá já tinha sido… já tinha partido…
aquele acidente de que te falei, quando fazia a formação. —
Encolheu-se. — Eu e a Flora fomos enviadas para o campo para
viver com estranhos.
— Sim, querida, eu sei. — Barnaby pegou-lhe na mão.
— Eu costumava contar histórias à Flora para a manter feliz,
para a distrair.
— Contos de fadas? Como as histórias infantis?
— Não propriamente. Era mais uma história sem fim, passada
num mundo imaginado por nós as duas. O Bosque dos Sussurros
e o Rio das Estrelas era só nosso.
— Bosque dos Sussurros?
Ela estremeceu com a queda no tom da voz dele. Barnaby
estava magoado por ela nunca lhe ter contado nada daquilo.
Hazel era exímia a detetar a desilusão nos outros. Percebia
sempre quando uma atitude sua não agradava a alguém.
— Sim. Barnaby, «Bosque dos Sussurros» é também o título de
um livro novo escrito por uma autora americana chamada Peggy
Andrews. Não é apenas o título que é semelhante, mas também o
mundo e partes da história.
— Oh, Hazel, querida, achas que essa autora pode ser a tua
irmã?
Ela olhou para ele e viu, tão nitidamente como um farol no
nevoeiro: pena. Afastou-lhe a mão e sentou-se mais direita.
— Não sei o que pensar. Mas quero saber como é que a nossa
história chegou à América. Estou confusa… ninguém conhece
esta história. E se…
— E se ela estiver viva — terminou ele.
Hazel acenou ligeiramente com a cabeça, relutante em deixar
entrar muita — ou mesmo qualquer — esperança. Ainda assim,
enquanto Barnaby olhava para ela, o seu desejo começou a
tornar-se mais forte, a emoção da ideia de que Flora poderia estar
viva, um final incrível para uma longa saga.
— Isso é extraordinário — disse ele —, mas tens a certeza de
que ninguém mais sabia da história? Nem a mulher com quem
viveram, nem o rapaz, nem…
— A Bridie e o Harry — cortou ela. — Não. Eles não sabiam do
Bosque dos Sussurros.
— Tens a certeza? — Ele arrastou-se no sofá para voltar a
pegar nas suas mãos, passando o polegar pelas costas de uma
delas.
— Tenho quase a certeza.
— Estou a tentar perceber onde queres chegar com isto. Achas
que, se encontrares a autora, vais encontrar a Flora ou talvez
saber o que lhe aconteceu?
— Isso ocorreu-me, sim.
— Talvez devesses ligar para aquela mulher que escreve artigos
sobre crianças perdidas. Talvez ela possa ajudar.
— A Dorothy Bellamy? Estás a falar a sério? Ela romantiza as
crianças perdidas. Escreve artigos cor-de-rosa para mulheres
jovens e profissionais. — Hazel troçou do slogan e revirou os
olhos. — De que me serviria contar-lhe a minha história?
— Não sei, mas ela é jornalista, certo? Alguma vez falaste com
ela?
— Não, e não vou falar. Ela pode escrever-me mais dez mil
cartas ou ligar para o Aiden Davies mais um milhão de vezes. —
Hazel abanou a cabeça. — Pelo amor de Deus, Barnaby, ela
chama «Criança do Rio» à Flora. Não quero que a Flora seja uma
lenda malograda, uma espécie de Julieta ou Isolda. Quero que ela
esteja viva. — Hazel fez uma pausa porque sabia o que Barnaby
estava a pensar. — Ela não é a criança que encontraram no rio
perto de Wallingford, em 1956. Não era ela. Podem dizer o que
quiserem, nunca identificaram o corpo como sendo dela. Só
sabem que se trata de um esqueleto de uma menina de 5 ou 6
anos. Não conseguiram encontrar quaisquer marcas distintivas.
— Como orelhas de coelho — disse ele, com compaixão.
— Sim.
A lógica podia ditar que aqueles eram os restos mortais de
Flora, que teria flutuado despercebida no pântano e nas marés
até chegar ali, mas Hazel recusava-se a acreditar.
— Quero o mesmo que tu, a sério — disse Barnaby —, mas
aposto que muitas pessoas sabiam dessa vossa história. Os
adultos? Os professores? A tua mãe? Não quero que tenhas
muitas esperanças. A sobrevivência de uma história não significa
a sobrevivência da tua irmã.
— Isso é muito simpático, professor — disse Hazel, sentindo a
raiva infiltrar-se no seu tom de voz.
— Calma. Não descarregues em cima de mim. É só um livro,
um conto de fadas.
— Qual é o conto de fadas, Barnaby? A ideia de encontrar a
Flora ou o livro da Peggy Andrews? Nenhum dos dois é somente
um conto de fadas. — As palavras soaram mais duras do que o
desejado. Baixou o tom de voz. — Achas que é uma coincidência,
não é? Aquilo a que chamarias sincronicidade. O inconsciente
universal, eu sei. Tudo isso é muito bonito em teoria, mas a
verdade é só uma, Barnaby: esta história pode ser a minha. Pode
ser a da Flora. Decerto que isso terá alguma importância.
— Oh, Hazel. — Abraçou-a e ela sentiu o aroma amadeirado de
cigarro que impregnava todas as suas roupas. Ele afastou-se e
beijou-a docemente. — Chamaram-lhe Operação Flautista de
Hamelin. Não foi muito bem pensado, tendo em conta o que
aconteceu às crianças do conto de Grimm. — Levantou-se e
dirigiu-se ao bar, onde se serviu de mais um whisky.
— Eu sei. — Ela bebeu um gole do seu copo e sentiu o calor a
invadi-la.
Como poderia explicar a Barnaby o que sentira na altura, o que
ainda hoje sentia, ao saber que perdera a irmã. O pavor. O
pânico. A inveja das pessoas que tinham os filhos pequenos
consigo. O facto de acordar com o coração a bater
descompassado, ciente de ter perdido algo, mas sem saber por
alguns instantes sagrados o quê. O desespero foi-se atenuando
com o passar dos anos, mas não muito. À medida que foi
crescendo, nada apagou as memórias: nem o álcool, nem os
homens, nem as histórias, nem os livros, nem as distrações dos
amigos e das festas.
Aos 25 anos, apercebeu-se de que tudo o que podia fazer com
a dor e a vergonha era aprender a viver com elas, permitir que a
acompanhassem como uma sombra, um fantasma, uma memória
viva. Havia dias em que encarava e reconhecia a perda; noutros
e, por vezes, durante horas abençoadas, esquecia-se, mas
depressa a sombra voltava a cobrir a sua alma e ela recordava a
incontornável perda da irmã. «Cuidem umas das outras», ecoava
pelos longos corredores do seu coração e ela estremecia, como
estremece agora.
— Tens o livro contigo? — perguntou Barnaby.
— Tenho. — Ela levantou-se e pegou-lhe na mão, conduzindo-o
pelo corredor estreito e azul-escuro até à sala soalheira nas
traseiras, que cheirava a chá, alecrim e alfazema, dos vasos que
estavam pousados no parapeito da janela, uma recordação
olfativa de Binsey.
CAPÍTULO 6

Setembro de 1939

Assim que viu o papel na mão da mãe a agitar-se ao sabor da


brisa, Hazel percebeu que algo de muito mau tinha acontecido: o
aviso da retirada tinha chegado. As lágrimas corriam pela cara da
mãe, que não se dava ao trabalho de as enxugar.
— É uma ordem do Governo — explicou a mãe. — A Alemanha
invadiu a Polónia e agora… isto.

OPERAÇÃO FLAUTISTA DE HAMELIN:


RETIRADA IMEDIATA DE TODAS AS CRIANÇAS DE LONDRES.

Enquanto a sua mãe e Flora dormiam, Hazel acordou com o


suave barulho da chuva na janela. Ao sair da cama, os seus pés
descalços afundaram no tapete de pele de carneiro e a sua nova
camisa de noite em flanela axadrezada, que lhe ficava comprida,
arrastou pelo chão.
Na escuridão da noite, Hazel avançou em bicos de pés até à
sala de estar, mais silenciosa do que uma pena a cair no chão. A
luz do candeeiro da rua preenchia a sala com um brilho nebuloso,
o suficiente para a ajudar a encontrar aquilo de que precisava:
Contos de Grimm.
Lembrou-se de uma tarde de neve há muito tempo, antes de
Flora nascer. Hazel estava sentada no colo do pai enquanto ele lia
a história da Cinderela no livro azul-claro dos Irmãos Grimm. A
mãe estava na cozinha de volta dos tachos e tudo estava em
ordem no mundo — mesmo quando os pássaros bicavam os
olhos das meias-irmãs malvadas.
— Theo! — A mãe apareceu de repente ao lado deles e tirou o
livro colorido das mãos do pai de Hazel. — Não a assustes. Ela é
muito nova para histórias tão horríveis.
O papá puxou Hazel mais para si e beijou-lhe a cabeça.
— A Hazel sabe que os contos de fadas não são reais.
A mãe arrastou uma cadeira de madeira que estava num canto
com um som estridente, subiu para o assento de meias e guardou
o livro na prateleira de cima, onde Hazel não conseguiria alcançá-
lo.
Anos volvidos, Hazel olhava agora para cima e lá estava ele,
exatamente onde a mãe o havia colocado, na prateleira de cima,
à direita da lareira. Dentro daquelas capas azuis estava a história
do Flautista de Hamelin.
Levou a mesma cadeira de madeira para junto das estantes,
pôs-se em cima dela e retirou o livro. Levou-o para um
aconchegante cadeirão de canto coberto de chita, sentou-se em
cima das pernas e começou a ler à luz do candeeiro de rua.
Hazel não demorou a encontrar a história que procurava. Um
flautista que chegou a uma cidade alemã chamada Hamelin
recebeu a tarefa de atrair os ratos que atormentavam a cidade
para um rio para se afogarem. Ao fazê-lo, o Flautista de Hamelin
salvou a cidade.
Ele fez um bom trabalho, não fez? O Flautista de Hamelin
salvou a cidade!
Continuou a ler.
Mas o presidente da câmara de Hamelin recusou-se a pagar ao
flautista de trajes coloridos. Para se vingar, o homem pôs o seu
chapéu vermelho garrido, tocou a sua melodia sedutora na flauta
e levou as crianças da cidade para as colinas, vales e rios mais
além. Nunca mais foram vistas.
Apenas duas crianças — cegas e coxas, e por isso incapazes
de seguir o flautista — foram poupadas. As restantes crianças da
cidade desapareceram para sempre.
Hazel soltou um grito de desespero, mas tapou rapidamente a
boca. Se procurava algum consolo naquela história, não o
encontrou. Nenhum Flautista de Hamelin as levaria dali para
sempre. Ela haveria de proteger Flora até ao seu regresso a
Bloomsbury.
Teria de inventar as suas próprias histórias.

Hazel acordou na manhã seguinte, assustada, mas tentou


esconder o que sentia. Flora estava aninhada ao seu lado. Tinha-
se desenvencilhado dos seus lençóis emaranhados a meio da
noite para se enfiar na cama de Hazel.
Os sons da mãe a preparar o pequeno-almoço entravam por
baixo da porta do quarto: o tilintar das panelas, a sua cantoria, o
assobio da chaleira. Flora ainda dormia, ao lado de Hazel, de
costas uma para a outra. Hazel virou-se e abraçou a irmã mais
nova, fazendo com que esta se mexesse. Flora virou-se e
encarou-a.
— Não! — disse-lhe, com firmeza.
— Eu sei — retorquiu Hazel, num sussurro, ciente do significado
da declaração de Flora. Não te levantes. Não me tires daqui. Não
permitas que seja hoje que tenhamos de partir.
— Ainda não? — perguntou.
— Não, dorme mais um pouco — respondeu Hazel.
Uma lâmina de luz solar penetrou na nesga de cortina aberta e
incidiu entre Flora e Hazel. Esta aproximou-se e tapou o raio de
luz com a mão, garantindo assim que nada se interpunha entre
elas.

Após o pequeno-almoço, a mãe tirou uma fotografia das duas


irmãs na varanda da frente. Em seguida, caminharam até à Argyle
School, onde Hazel e Flora se juntaram às crianças que seguiam
a pé para a estação de comboios. O ar húmido e frio entranhava-
se nos ossos. Mães, pais e crianças amontoavam-se atrás dos
professores que seguiam por becos estreitos e ruas ascendentes.
Máscaras de gás balançavam nas mochilas como se fossem
enormes cabeças de insetos, aterrorizando Hazel de cada vez
que ela calhava a olhar para uma. Meninas com laços no cabelo
usavam casacos pesados e lenços apertados à volta do pescoço.
Uma multidão cada vez maior impulsionava-as para a frente.
Passaram por mulheres e homens que interrompiam o que
estavam a fazer para observar tristemente a fila desordenada de
crianças, como se elas fossem arautos da desgraça. Os
comerciantes observavam o cortejo, enquanto outros se
encostavam aos candeeiros de rua, alguns acenando às crianças,
enquanto colavam enormes X nas janelas para que estas não se
estilhaçassem quando as bombas começassem a cair.
Bloomsbury Park — com a estátua de Charles James Fox que as
meninas escalavam e atrás da qual se escondiam — estava
vazio. Hazel imaginou o Flautista de Hamelin de traje garrido a
levá-las para longe da família e de casa.
A sua mochila parecia mais pesada a cada minuto que passava.
Semanas antes, tinha arrumado tudo lá dentro com a ajuda da
mãe e de Flora, ainda na esperança de nunca ter de a levar até à
estação de comboios. Tinham assinalado todos os artigos que
constavam na lista fornecida pelo Governo.
Máscara de gás.
Sapatilhas de lona.
Bilhete de identidade e senhas de racionamento.
Escova de dentes.
Pente.
Meias de reserva.
Gabardina.
Hazel puxou a mochila para cima à medida que as filas de
crianças de outras escolas e de outras zonas convergiam para a
plataforma da estação de comboios.
A mãe seguia de mãos dadas com as duas irmãs; Flora de um
lado, com o seu ursinho de peluche pela mão, a pata esfarrapada
a arrastar-se pelo chão, e Hazel do outro. A professora Plink
estugou o passo e elas apressaram-se para a acompanhar. A
professora Plink ergueu um cartaz que identificava a turma de
Hazel, e pouco depois já estavam na plataforma, enquanto à sua
volta a multidão se empurrava e gritava por amigos ou pais. Flora
foi autorizada a ir com a turma da professora Plink e ficar com
Hazel.
A mãe, Flora e Hazel ficaram em silêncio, agarradas umas às
outras.
Do bolso do casaco de malha, a mãe tirou duas etiquetas
presas com cordões. Colocou-as à volta do pescoço das filhas,
como se fossem malas. Hazel pegou na sua e virou-a para ler:

NOME: Hazel Mersey Linden


MORADA: Bloomsbury, Londres
DATA DE NASCIMENTO: 2 de junho de 1925
ESCOLA: Argyle School

E no verso da etiqueta.

DESTINO:

Nesta parte havia três linhas, uma para o condado, uma para a
freguesia e uma para a localidade. Estavam em branco porque
ninguém sabia onde elas iriam parar.
Uma onda de pessoas levantou-se atrás delas. Hazel sentiu-se
a cair para a linha férrea. Agarrou o casaco da mãe, que por sua
vez lhe agarrou o braço. Hazel olhou para as ervas daninhas que
cresciam por entre os carris de metal cinzento brilhante e, logo a
seguir, o comboio chegou com um clamor violento, por entre
guinchos, avanços e baforadas de fumo branco, como se
estivesse a arder.
A mãe soltou um grito, mas levou rapidamente a mão à boca.
— Todos a bordo! — gritou uma voz grave de homem.
Era chegada a altura da partida.
— Para onde vai este comboio? — quis saber Hazel.
— Não sei — respondeu-lhe a mãe, com a voz embargada. —
Mas, Hazel, envia-me o vosso postal assim que chegarem.
Preciso de saber que estão bem.
A voz da professora Plink fez-se ouvir:
— Subam a bordo! Meninos, subam!
Um a um, os colegas da turma de Hazel, e respetivos irmãos
mais novos, subiram as escadas da plataforma para o vagão. A
mãe abraçou as filhas e nem sequer tentou esconder as lágrimas
que lhe corriam pela cara.
— Não vou descansar enquanto não tiver notícias vossas.
— Adoro-te — disse Hazel, ciente de que aquela podia ser a
última coisa que diria à mãe.
A mãe abraçou as filhas enquanto sentiam os encontrões das
outras pessoas.
— Para onde vamos? — insistiu Hazel.
A professora Plink estava no topo das escadas e estendeu a
mão para puxar Hazel.
— Só saberemos quando chegarmos lá — disse ela. — O
destino é segredo para que não haja registos. É uma questão de
segurança. Podes enviar um postal assim que chegares.
O comboio avançou, por entre silvos do apito. Já estava outro a
chegar. Hazel pensou no acaso e na sorte, e em como outras
crianças entrariam noutro comboio a caminho de um lugar
diferente. Teria mais sorte neste comboio ou no próximo?
Impossível de saber?
Hazel e Flora cambalearam pelo corredor e encontraram dois
lugares vazios quando o comboio já ganhava velocidade. O
cabelo de Flora tinha-se soltado da fita cor-de-rosa que a mãe lhe
tinha posto e Hazel tirou o laço do cabelo da irmã e guardou-o no
bolso do casaco.
O comboio estava abafado. Havia demasiadas pessoas a
enchê-lo com a sua respiração. Hazel apertou a mão de Flora. Os
seus olhos estavam tão arregalados, enquanto olhava para as
outras crianças assustadas, as malas e mochilas esfarrapadas, as
fronhas cheias de roupas.
— Hazel, vamos encontrar um rio de estrelas? — perguntou-lhe
a irmã.
— Claro que sim — disse Hazel, com a autoridade de um adulto
que conta mentiras.
Flora adormeceu no colo de Hazel enquanto esta olhava pela
janela. As estações de comboio passavam sem nomes. Os
letreiros haviam sido removidos para confundir o inimigo que
procurasse orientações. Trocaram de linhas e Hazel ficou confusa
quanto à direção que seguiam. Por fim, fechou os olhos, mas não
conseguiu adormecer. Até que sentiu o comboio a parar.
As irmãs Linden desceram do comboio para uma plataforma de
madeira, de mochilas às costas. Flora trazia o Berry pela mão. O
sol da tarde estava alto e refulgente. Hazel não sabia quanto
tempo tinha demorado a viagem. Tinha sido uma hora… ou cinco?
Talvez até um dia.
Ficaram paradas juntamente com os colegas de turma, todos
juntos, de braço dado, as mochilas a baterem umas nas outras,
mas ninguém disse palavra. Num silêncio sinistro, seguiram a
professora Plink até ao interior da estação.
Uma placa preta com letras brancas esmaltadas estava
pendurada na parede: OXFORD.
Oxford, Inglaterra, era um lugar do qual Hazel já tinha ouvido
falar bastante. Foi onde o papá fez os seus estudos, em Christ
Church, e onde a mãe o visitara, vinda de Londres, durante os
tempos de faculdade. Era um cenário tão lendário como o Bosque
dos Sussurros, e sempre lhe parecera igualmente imaginário. Até
então, Bloomsbury tinha sido o único sítio real.
Tinha sido em Oxford que a mãe e o papá se tinham
apaixonado.
Porém, aquilo que Hazel via agora não era nada como havia
imaginado Oxford. As crianças todas amontoadas. Flora chorou
baixinho e Hazel deu-lhe a mão. Precisava de ser corajosa. Não
havia mais ninguém a quem recorrer.
Hazel nunca se sentira tão sozinha. Era um sentimento que a
consumia por dentro. Se a sobrevivência das irmãs ao tempo de
guerra dependesse dela, estavam condenadas.
— Vamos ficar aqui? — perguntou Flora.
Hazel respondeu com sinceridade.
— Não sei. — Tentou esboçar um sorriso. — Vamos comer a
merenda que a mãe preparou para nós.
Flora acenou com a cabeça e enxugou as lágrimas com as
costas da mão. Hazel beijou-lhe a cara e provou o medo salgado.
Ao seu lado, um menino chorava, com a virilha e a parte interna
das calças manchadas de urina. Hazel aproximou-se e tocou-lhe
no ombro, mas ele não prestou atenção, isolado no seu desgosto.
No outro lado da estação, a professora Plink falava com um
homem de farda azul rígida. Hazel não desviou o olhar da
professora enquanto guiava Flora até um caixote de madeira para
se sentarem. Abriram o embrulho que a mãe havia preparado:
dois ovos cozidos, um pedaço de queijo, dois nacos de pão. Havia
ainda um bilhete dobrado três vezes, formando um retângulo.
Flora olhou para Hazel.
— Lê.
— Vamos guardar para mais tarde, quando soubermos onde
vamos ficar.
Flora pegou no bilhete e enfiou-o no bolso da gabardina.
— Não o percas! — disse-lhe Hazel numa voz muito severa. O
lábio de Flora estremeceu.
— Não vou perder — garantiu-lhe.
Em silêncio, comeram o queijo, o pão, os ovos e, por fim,
saborearam lentamente dois pequenos quadrados de chocolate.
— Turma da professora Plink, sigam-me! — gritou uma voz
masculina com um forte sotaque cockney.
Outro colega de turma, um rapaz alto chamado Padraig Logan,
levantou a mão como se estivessem numa sala de aula e a
professora Plink tivesse pedido para resolverem o problema de
matemática no quadro.
— Sim, Padraig? — perguntou a professora.
— Para onde vamos? — A sua voz trémula assustou Hazel,
porque Padraig era o brincalhão da turma. Com o seu cabelo
escuro desgrenhado e os seus olhos azuis que pareciam
pequenos globos, era ele que sempre os fazia rir.
— Vamos seguir para a câmara municipal, no centro da cidade.
Quando lá chegarmos, serão escolhidos por uma família
encantadora que vos vai levar para casa. Vai correr tudo bem.
Hazel não acreditou na professora Plink, e ficou parada a olhar
para a palavra que sobressaía contra o negro da placa: OXFORD.
CAPÍTULO 7

Março de 1960

Barnaby pousou a sua bebida e colocou as palmas das mãos


dos dois lados do livro, inclinando-se para olhar para a capa. De
pé ao seu lado, Hazel sentiu a necessidade de desviar o olhar
para não ver a sua reação. Atrás dele, na bancada da cozinha em
linóleo amarelo, estava a tacinha do ovo do pequeno-almoço, com
uma crosta amarela na borda. Ao lado, uma colher virada para
baixo. O saleiro tinha o formato de um cordeiro. Aquele era o seu
mundo simples antes de encontrar o livro.
— A capa é linda — disse ele.
— Pois é — concordou ela, antes de beber um gole do whisky.
— E isto aqui? — Barnaby apontou para o monte de ilustrações.
Ela sentiu um aperto no estômago. Devia tê-las guardado. Ele
saberia o seu valor.
— Estas são as ilustrações originais — declarou. — Trouxe-as
da livraria.
— Trouxeste-as? O Edwin e o Tim não sabem que as tens aqui?
Ela encolheu-se.
— Foi um erro.
Ele cerrou as sobrancelhas.
— Claro que foi um erro. Vamos levá-las de volta agora mesmo.
— Devíamos fazer isso, sim — concordou ela. — Ainda nem
sequer olhei para todas elas. Podemos fazer isso amanhã de
manhã?
— Hazel, não estás a pensar bem.
— Concordo. — Ela não precisava que ele dissesse aquilo. O
homem que estava à sua frente era incapaz de ficar agastado,
irritado ou desesperado. Barnaby era uma rocha. Mas não era de
sangue-frio que ela precisava naquele momento.
— Estás bem? — perguntou ele. — Estás a deixar-me
preocupado.
Tocou-lhe na testa com as costas da mão. A sua ternura
acalmou o pânico que começava a tomar conta dela. Hazel
pegou-lhe na mão.
— Eu estou bem. É que… isto é tudo tão desconcertante.
Preciso mesmo de saber o que se passa.
— Tens de devolver estas ilustrações ou a única coisa que vais
saber é o horário das refeições nos calabouços de Holloway.
A referência à prisão para mulheres devia ser uma piada. Ela
sentou-se na cadeira de metal forrada a vinil amarelo-vivo, uma
compra recente.
— Preciso de pensar bem no assunto.
Barnaby passou a mão pelas ilustrações e inclinou-se para as
ver mais de perto.
— Meu Deus. São obras da Pauline Baynes?
— Sim.
— Originais?
— Sim.
— Vai devolvê-las agora mesmo, Hazel.
— Podemos parar de falar sobre as ilustrações? Vamos falar
sobre a história. Sobre o livro. Sobre como e porque é que ele
existe. Sobre a Peggy Andrews.
Barnaby meteu a mão no bolso e tirou um maço de cigarros
vermelho e amarrotado. Colocou um cigarro entre os lábios.
Precisou de três fósforos para o acender e, em seguida, exalou
duas baforadas pelo nariz.
— Está bem, vamos falar sobre a história.
Hazel acenou com a cabeça e pegou no livro, entregando-lho
em seguida.
— Olha para ele. Lê o verso. O que estás a ler foi o que eu
inventei, o que contei à Flora.
Ele leu em silêncio, enquanto a cinza do cigarro caía sobre a
mesa. Hazel pegou no cinzeiro de vidro verde que estava na
prateleira e colocou-o debaixo da mão dele. Era apenas mais um
dos pequenos rituais que ganharam raízes após três anos de
convivência. Era muito tempo para namorar quando quase todas
as suas amigas já estavam casadas e a ter o segundo e terceiro
filhos. Mas eles tinham concordado que não estavam prontos.
Ainda não. Em breve.
Manter Barnaby longe de uma união mais formal com Hazel foi
um desgosto desastroso após a dissolução do primeiro
casamento dele. O filho fruto desse casamento morrera no parto,
e a mulher de Barnaby, Maggie, ficou totalmente arrasada, como
seria de esperar. Fugiu do marido e voltou para a família, na
Irlanda, recusando-se a falar com ele e esperando quase três
anos antes de assinar os papéis do divórcio. Hazel achava que
queria tudo o que um casamento e uma família implicavam, mas
também hesitava perante a ideia de abrir mão do seu
apartamento e da sua liberdade.
Hazel raramente se deslocava ao apartamento de Barnaby, um
T1 exíguo perto da Universidade de Londres. Era lindo,
certamente, localizado num edifício do século XVI que havia sido
dividido em apartamentos com tetos altos e soalho em madeira de
carvalho, mas também estava lotado com as caixas e os
pertences da sua ex-mulher, que ela ainda se recusava a ir
buscar.
Mas Hazel tinha algumas expetativas em relação à viagem que
ela e Barnaby tinham planeado fazer a Paris, nomeadamente, um
anel de safiras e diamantes que pertencera à avó dele, que
morrera já depois de Maggie deixar Barnaby. O anel da avó
estava guardado no cofre da imponente casa dos pais dele, em
Hampstead Heath, e tinha-lhe sido prometido se ele voltasse a
casar.
Barnaby levantou os olhos.
— Hazel, esta é exatamente a história que acabaste de me
contar.
— Sim.
Ele cerrou os lábios.
— Alguém deve ter-te ouvido contá-la.
— Não.
Ele apoiou os cotovelos na mesa, deu mais uma passa no
cigarro e estendeu a mão para pegar no copo alto. Os seus olhos
estavam postos nela, não na bebida. A mão alcançou o copo e
tocou na borda de cristal, um movimento que fez com que este
tombasse.
O whisky transformou-se num rio âmbar que corria agora sobre
a mesa marcada. Hazel, que estava junto ao lava-loiça, assistiu
horrorizada à cena e desatou de imediato a correr para a mesa
para salvar as ilustrações.
Mas não foi a tempo.
— Foda-se! — Barnaby pôs-se de pé num pulo e pegou no
pano de cozinha com o mapa de Londres costurado em ponto de
cruz que tinha sido um presente de Natal da mãe dela.
Chocaram um com o outro no meio da movimentação frenética,
e as folhas voaram para o chão, quais asas brancas de pássaros
caídos, enquanto Hazel gritava:
— Não!
Barnaby limpou o líquido da mesa e olhou para Hazel, que
rastejava pelo chão a recolher as folhas.
— Ficaram danificadas? — perguntou ele.
— Acho que não. — Hazel agachou-se, pegou nas folhas uma a
uma, e examinou as vinte ilustrações, antes de as empilhar na
bancada de pinho. Duas meninas a abrir os portões de um
castelo. Dois coelhos com cara de meninas. Uma árvore que
estende os braços ramificados para pegar nas meninas. Uma
raposa escondida na relva cor de esmeralda. Uma coruja que voa
atrás das irmãs para zelar por elas. Todas as ilustrações eivadas
de encanto e fantasia.
E depois um chalé de pedra tão parecido com a casa em Binsey
que Hazel caiu redonda no chão, os olhos fixos no desenho,
enquanto sentia o olhar penetrante de Barnaby no seu corpo. No
desenho, havia fumo a sair da chaminé, e as janelas
transbordavam de flores de todas as cores. A porta era de um
azul-vivo, o caminho de lajes irregulares, a cerca branca com
rosas trepadeiras a espreitar por entre as ripas. E, no canto
inferior esquerdo, uma mancha de terra cor de âmbar.
Não era terra. Era whisky.
Ela levantou a folha e ele pegou-lhe.
— Foda-se — repetiu ele, incapaz de pronunciar outra palavra.
— É só um — disse ela.
— Não. — Ele apontou para o canto da cozinha, para junto do
frigorífico. Encaminhou-se para lá, pegou no desenho de uma
árvore com uma abertura no tronco e com dois rostos de meninas
a espreitarem do seu esconderijo. No canto superior esquerdo,
uma mancha escura tapava o sol.
Ficaram em silêncio, enquanto seguravam com pesar nas duas
ilustrações danificadas.
Uma batida forte e rápida na porta da rua. Barnaby pousou o
desenho na bancada da cozinha e espreitou pela janela lateral
com vista para a porta.
— Um polícia — anunciou.
O calor tomou conta de Hazel, trazendo consigo a adrenalina
avassaladora e rápida.
— Abre — disse ela. — Agora. Eu escondo as ilustrações.
— Isso só piora a situação, Hazel.
— O que queres que faça? Que confesse? Estás a brincar
comigo? Queres que dê cabo de tudo? Da Sotheby’s? Da
Hogan’s? Aquilo que disseste sobre a prisão podia ser uma piada,
mas acredita que é uma possibilidade real.
— O Edwin adora-te. Ele não faria tal coisa. — Barnaby fechou
a cortina de renda. — Ele vai compreender.
— O Edwin é o homem com mais princípios que já conheci. E
gosta mais dos seus artefactos e da sua coleção de livros raros
do que gosta de mim. Mais do que gosta de qualquer pessoa.
Acredita em mim. — Hazel expirou através dos seus lábios
cerrados. — Dá-me algum tempo. Eu preciso de descobrir o que
está por trás de tudo isto.
Barnaby avançou para a sala de estar.
Hazel juntou os papéis e o livro, colocou-os de novo no
embrulho e depois parou para refletir sobre a sua situação.
Tinha duas hipóteses. Podia entregar o embrulho ao agente da
polícia e dizer: «Lamento imenso. Foi um erro.» Ou podia ocultar
o embrulho atrás da cristaleira, onde um compartimento secreto
escondia documentos importantes da família. Isso implicava que
ela encontrasse respostas antes que as respostas a
encontrassem a ela.
CAPÍTULO 8

Março de 1960

— Hazel! — chamou Barnaby da sala de estar. Ela fechou os


olhos e compôs-se. Será que ele já tinha contado tudo ao agente?
Será que o seu namorado calmo e cheio de princípios tinha
contado a verdade?
Entrou na sala de estar e viu Barnaby a sorrir e a rir com um
agente de farda azul-escura e chapéu na mão. Hazel ficou em
silêncio e acenou ao polícia.
— O agente Martin recebeu uma queixa do teu vizinho de cima
sobre um cão a ladrar.
A resposta de Hazel foi um riso nervoso.
— Bem, como eu não tenho cão… — Esboçou um sorriso que
se revelou trémulo.
— Desculpe incomodá-la, minha senhora. — O agente revirou
os olhos. — Como se não tivéssemos coisas mais importantes
com que nos preocupar do que um cão que perturba o sono de
uma criança. Parece que a menina acredita que o cão é um
lobisomem e a mãe não consegue acalmá-la.
— Ao menos a criança tem uma imaginação fértil. — Barnaby
deu uma leve palmada no ombro do agente antes de o
acompanhar até à rua e fechar a porta, correndo o trinco superior.
Hazel caiu no sofá e enterrou a cara nas mãos. Um soluço que
misturou medo e lágrimas tomou conta de si. — Está tudo bem.
Ele já se foi embora.
Hazel olhou para cima.
— Não, não está tudo bem. Não está nada bem.
— Oh, Hazel. — Barnaby aproximou-se dela e estendeu-lhe a
mão. Ela aceitou-a e levantou-se para o encarar. Barnaby cingiu-a
contra si, passando-lhe a mão pela nuca e até lhe agarrar os
cabelos. O desejo surgiu quente e ágil. — Eu posso fazer com
que fique tudo bem — disse-lhe, enquanto lhe acariciava o lóbulo
da orelha com a língua. Antes que ela pudesse certificar-se de
que o cigarro dele se tinha apagado no cinzeiro, já estavam na
cama.
O desejo de a proteger parecia dar-lhe energia. O sexo era
agora tão urgente como nos primeiros dias. Por momentos, todos
os problemas se dissiparam para Hazel. O medo fez-se desejo, as
mentiras, verdade. Quando ele a penetrou, as suas pernas
abriram-se ainda mais e as ancas arquearam-se para ir ao seu
encontro, e ela derreteu-se nele.
Aquilo era amor.
O passado era uma âncora, e ela precisava de cortar o cabo.
O passado. Harry.
Meu Deus, não. Não aqui, não agora. Não quis pensar em Harry
quando Barnaby se virou de lado e a puxou para perto de si,
encaixando o seu corpo no dela.
— Amo-te tanto — disse-lhe.
— E eu perdidamente — disse ela segundos depois, mas ele já
tinha adormecido.
Ela permaneceu desperta, como se tivesse bebido demasiadas
chávenas de chá. O Bosque dos Sussurros abrira uma caixa de
memórias fechada e decrépita, cheia de pensamentos sobre
Flora, Oxford, a mulher que as acolhera e Harry — o rapaz com
quem vivera quando foram deslocadas; o rapaz que estivera ao
seu lado quando perdeu Flora; o rapaz que se tornara o seu
melhor amigo; aquele que ela nunca esqueceu apesar das
tentativas desesperadas para o fazer.
Levantou-se da cama, nervosa e agitada.
Entrou na casa de banho azul com o espelho alto e prateado e
olhou para a sua cara. Hazel nunca se achou bonita, embora os
outros dissessem o contrário. Mas, às vezes, quando a luz a
favorecia e ela vislumbrava a sua figura desprotegida ao espelho,
acreditava que poderia ser bonita. Ou, pelo menos, talvez noutra
época tivesse sido; numa época mais propícia aos seus olhos
castanhos e ao cabelo castanho ondulado que lhe caía sobre o
rosto sardento.
Abriu o chuveiro e entrou na água a escaldar. Ensaboou-se,
lavou o cabelo até sentir que o fumo do cigarro tinha
desaparecido; a espuma a escorrer pelo ralo em fiapos de teia de
aranha à medida que o luar penetrava pela janela da casa de
banho. Saiu, mexeu os dedos dos pés no tapete da casa de
banho e tirou o roupão cor-de-rosa do gancho atrás da porta. Não
fez barulho, mesmo sabendo que seria preciso um tremor de terra
para acordar Barnaby. Ele tinha o sono pesado, sobretudo depois
de beber whisky e fazer amor. Vestiu o roupão e foi em bicos de
pés até à sala de estar.
Agora que estava mais calma e que o mundo estava escuro e
silencioso, teve noção do que estava em jogo: não só cumprir
pena de prisão, mas perder o emprego na Sotheby’s. Tudo isso
tinha sido posto em causa por uma decisão impulsiva e o derrube
de um copo de whisky.
Procurou soluções. Apenas duas das vinte ilustrações estavam
danificadas. Podia devolvê-las e seria como se nunca tivessem
desaparecido. Se Edwin reparasse que faltavam duas, atribuiria
as culpas ao remetente.
Hazel, contudo, seria incapaz de mentir a Edwin ou a Tim. Não
podia voltar a pôr tudo no cofre de ferro escuro como se nada
tivesse acontecido. Teria de enfrentar Edwin e a verdade.
Mas não seria já.
Pensou naqueles que acreditavam que a história de Flora tinha
chegado ao fim: Aiden Davies tinha sido o único a ligar para Hazel
e para a mãe em 1956. Tinham passado dezasseis anos desde o
desaparecimento de Flora e foi Aiden Davies quem ligou a dizer:
— Acreditamos tê-la encontrado.
Tinham encontrado os restos do esqueleto de uma menina que
parecia ter a mesma idade de Flora. Hazel tinha corrido para
Oxford com a mãe, ouvido as desculpas de Aiden para a demora,
assentes em factos e números: os 343 quilómetros do Tamisa, o
facto de todas as semanas encontrarem um cadáver a boiar no
rio. Tal como prometera após o desaparecimento de Flora, Aiden
percorrera a costa de Binsey a Wallingford centenas de vezes,
procurando nas águas frias uma pista ou indício do paradeiro de
Flora, interrogando os habitantes locais, deixando fotografias. No
dia 6 de dezembro de 1956, um grupo de adolescentes saiu de
suas casas à socapa numa noite de lua cheia, com uma garrafa
de Jameson, e deparou-se com o que restava de um corpo na
margem pantanosa do rio.
No gabinete abafado da esquadra da polícia de Thames Valley,
em Oxford, Hazel e a mãe sentaram-se em cadeiras de metal,
enferrujadas nas extremidades, e encararam Aiden atrás da sua
secretária desarrumada.
— Não têm como provar que é ela — dissera a mãe sem
hesitar, agarrada à mala preta de couro envernizado que
mantinha assente no colo.
Nenhuma das duas tinha visto o corpo, ou o que restava dele.
Quem faria tal coisa? Não havia nada para identificar, porquê
olhar para um amontoado de ossos em decomposição? Não havia
marca de nascença com orelhas de coelho ou cabelo loiro
encaracolado.
— A idade bate certo e… — atirou Aiden.
— Como é que sabem? — cortara Hazel. — Disse que procurou
por quilómetros e quilómetros de rio, certamente já teria
encontrado a Flora há muitos anos.
A voz de Aiden era paciente e triste. Tal como elas, não queria
que aquele fosse o fim da sua história.
— A largura do rio, a força da corrente… Aquele rio não entrega
os seus segredos facilmente. Sinto muito.
Hazel e a mãe saíram do gabinete de Aiden Davies estoicas na
sua crença de que aquele corpo não resolvia o mistério de Flora.
Não tinham provas além dos seus instintos e, para Aiden, isso
não era suficiente.
E talvez Aiden Davies tivesse razão; o esqueleto da criança e os
restos encontrados na margem do rio podiam ser a resposta:
Flora estava morta. Mas, no fundo, Hazel não acreditava nisso. É
verdade que podia muito bem estar a enganar-se a si própria para
evitar o desespero de reconhecer a morte de Flora. Mas enquanto
não houvesse uma prova definitiva, continuaria a viver com a
esperança de que Flora tivesse sobrevivido.
Hazel estremeceu. O metrónomo do relógio de pêndulo de
carvalho que estava no corredor deu sinal de vida: 23h00.
Calculou a hora em Nova Iorque: 18h00. Entrou na cozinha,
pegou no auscultador do telefone, girou o disco e foi sendo
transferida através de algumas centrais telefónicas. Em seguida,
ouviu o barulho do mar — que, na verdade, era apenas o som da
estática — e, por fim, um homem atendeu um telefone,
provavelmente, num arranha-céus em Manhattan. Ela não sabia
bem porque esperava ser atendida por uma mulher.
Hazel calculou que cada minuto daquela conversa custaria uma
fortuna, mas a verdade é que tinha roubado uma primeira edição
com obras de arte originais. Bem vistas as coisas, uma chamada
telefónica internacional não traria grande mal ao mundo.
— Chamo-me Hazel Linden. — Pigarreou e carregou no
sotaque britânico na esperança de impressionar o americano. —
Trabalho na Hogan’s Rare Book Shoppe, em Londres.
— E então? — O tom de voz do homem era brusco.
— Bem, hoje, recebi o extraordinário livro da vossa autora,
Peggy Andrews. Tinha esperança de que me pudesse pôr em
contacto com ela.
— Posso arranjar-lhe todo o material necessário. Porque
precisa de entrar em contacto com ela?
Hazel não estava preparada para aquela pergunta, por isso
disse sem rodeios:
— Preciso de falar com ela sobre o livro.
— É para uma entrevista?
— Sim. — Hazel embarcou na desculpa com alívio. — Nós
publicamos um boletim informativo da livraria.
— A Sra. Andrews é extremamente reservada. Não estou
autorizado a fornecer os seus dados. Mas pode escrever-lhe, ao
cuidado da Henry-Todd Publishing.
— Importa-se de lhe pedir que me ligue de volta?
— Ela não tem telefone, ou se tem, não me deu o número.
— Ah…
— Ouça — disse o homem, depois de perceber a desilusão no
seu tom de voz. — Escreva-lhe para a nossa morada e a sua
carta será reencaminhada. — Ele recitou a morada de um
qualquer arranha-céus em Nova Iorque e o nome de um assessor
de imprensa.
— Obrigada — disse Hazel. — Entretanto, tenho algumas
perguntas às quais espero que possa responder — insistiu,
mesmo depois de ouvir outros telefones a tocar e o restolhar de
papéis.
— Talvez, desde que seja breve.
— Com certeza. Pode dizer-me que idade tem a Sra. Andrews?
— Diz aqui que vai fazer 25 anos em abril.
Flora fazia anos em julho. Peggy Andrews era pelo menos um
ano mais nova do que a sua irmã.
— E como é ela fisicamente? — tornou Hazel. O homem devia
ter achado a pergunta um tanto ou quanto assustadora; o seu
silêncio denotou uma mudança de atitude. — Importa-se de me
enviar uma fotografia pelo correio? Por favor.
— Se quiser contactar a autora, envie uma carta aqui para a
editora. — E com isto desligou, tal como ela imaginava que um
nova-iorquino ocupado faria.
Ela pousou o auscultador.
Podia meter-se num avião e voar até à América, ou reservar
uma passagem num navio e ir em busca da mulher que vivia
algures em Massachusetts. Ela precisava de mais informações.
Acendeu o pequeno candeeiro na extremidade da cristaleira,
pegou numa folha do seu melhor papel de carta de linho fino e na
sua caneta de aparo. Havia de encontrar aquela autora e havia de
encontrar Flora. Ou, pelo menos, saberia mais sobre a irmã.
O que dizer numa carta? Que parte da verdade contar? O
Bosque dos Sussurros é a minha história. É a história da minha
irmã. Não é sua. Como é que soube dela?
Não. Não podia ser agressiva, ou Peggy Andrews poderia
tornar-se ainda mais esquiva. Hazel tinha de ser gentil e
interessada.
Curiosa.
Começou a escrever. Quando era criança, inventei essa mesma
história com esse mesmo nome: O Bosque dos Sussurros e o Rio
das Estrelas. Estou curiosa para saber como…
Quando terminou, sentou-se e leu-a duas vezes, satisfeita por
lhe ter conferido o tom certo. Respeitosa ao ponto de receber uma
resposta e depois… talvez… a Peggy Andrews lhe dissesse mais
qualquer coisa.
CAPÍTULO 9

Setembro de 1939

No exterior da estação de comboios de Oxford, o grupo de


crianças exiladas caminhava novamente em fila, desta vez
passando por táxis e semáforos intermitentes, passadeiras e uma
rua muito comprida. Ao longo do caminho, avistaram os grandes
campanários da cidade, os edifícios de pedra maciça e as
vedações de ferro forjado. As ruas serpenteavam pelos altos
portões de madeira das muitas faculdades de Oxford. O caudal de
crianças passava por cafés cheios de gente enquanto alunos em
trajes negros passavam a correr por eles, antes de pararem para
olhar com pena.
A beleza da cidade erguia-se alta e majestosa, com os seus
pináculos e torres, e janelas arqueadas e vetoriais esculpidas em
pedra. Uma leveza esperançosa começou a crescer no peito de
Hazel. Não estavam a ir para a parte horrível dos contos de fadas,
com bruxas, feiticeiras e dragões. Talvez tivesse subido para o
comboio certo, o comboio da sorte. Os habitantes da cidade que
se aglomeravam nos passeios agitavam bandeiras e aplaudiam
as crianças, como se tivessem feito algo de especial, como se
depositassem nelas a esperança de vitória na guerra.
— Bem-vindos a Oxford! — gritou um rapaz. Hazel parou para
olhar para ele. Devia ter a sua idade, mais alto, porém, com uns
caracóis que parecia nunca terem visto uma escova. Usava um
casaco de malha cinzento desbotado e um boné preto. Acenava
com fervor a todas as crianças que passavam.
Hazel ajeitou a mochila mais para cima nos ombros, mas a alça
deu de si e a mala caiu na rua calcetada. As crianças que vinham
apressadamente atrás de si pisaram-na, o que fez com que o
conteúdo se espalhasse pelo chão: as sapatilhas de lona pretas e
a roupa interior branca de algodão, o vestido amarelo florido e a
escova de dentes de madeira. Os pés iam pisando tudo enquanto
ela gritava e tentava recuperar os seus parcos pertences por entre
maços de cigarros, papéis de caramelos amarrotados e jornais
gordurosos onde tinham sido servidas batatas fritas.
Juntou tudo com as mãos e tentou enfiar o monte para dentro
da mochila. Logo a seguir, mãos por toda a parte. Hazel gritou e
empurrou alguém para longe de si — não permitiria que ninguém
levasse as poucas coisas que lhe pertenciam! Mãos ásperas e
macias agarraram na sua mochila. Flora agarrou a bainha do
vestido de Hazel para não ser levada pelo caudal de gente.
Hazel empurrou com força um corpo que estava inclinado sobre
ela, juntamente com a mão que tentava pegar na sua escova de
cabelo. Olhou para cima e viu o rapaz que lhes dera as boas-
vindas. O empurrão de Hazel fê-lo cair redondo no chão, mas ele
riu-se com gosto.
— Só queria ajudar. Toma! — Entregou-lhe a escova e também
uma camisa branca com uma gola peter pan, a sua preferida,
enlameada pelas passadas.
Com a multidão imparável à sua volta, Hazel enfiou as coisas na
mochila. Tinha sido tão bem arrumada, mas agora estava uma
bagunça. Os soluços que ela tinha conseguido reprimir durante
todo o dia ameaçavam vir ao de cima. O rapaz levantou-se e
estendeu-lhe a mochila.
Ela pôs-se também de pé e pegou na mala.
— Obrigada.
— Não tens de quê.
Flora puxou a mão de Hazel, apontando para a turma que se
afastava.
Hazel lançou um último olhar ao rapaz e correu a juntar-se ao
grupo, abrindo caminho até chegarem junto da professora Plink.
Em poucos minutos, chegaram à câmara municipal, onde as
famílias escolhiam as crianças que queriam levar para casa, como
cachorros para os miúdos ou vacas para a quinta.

— Este serve — disse a voz profunda de um homem.


Hazel agarrou com toda a força na mão de Flora enquanto via o
homem de calças sujas de lama a apontar para um rapaz mais
velho com um macacão e uma expressão desafiadora. Hazel
abriu o casaco e passou-o à volta de Flora, para que todos
soubessem que elas eram uma unidade. Indivisível.
Uma mulher de cabelo grisalho e desgrenhado, e roupas que
lhe assentavam como um saco de batatas com flores desbotadas,
parou à frente de Hazel e Flora. Olhou para Flora com uma
intensidade que fez com que Hazel apertasse ainda mais o
casaco à volta da irmã.
— Que criança adorável! — A sua voz era melosa e arrastada,
um som desagradável.
— Elas são irmãs — anunciou o oficial fardado com o caderno
na mão. — Vão juntas.
A mulher olhou para Hazel com os olhos miúdos e escuros dos
corvos empoleirados no muro do quintal de casa quando se
aproximavam de coisas brilhantes. Hazel sabia que não era
brilhante. Mas Flora brilhava como uma moeda nova, como um
diamante, um tesouro. O seu cabelo loiro, o narizinho de botão e
os olhos arregalados atraíam toda a gente. Hazel não lhe fazia
sombra.
A bruxa — a palavra que borbulhava na mente de Hazel — virou
costas e seguiu a mancar pela fila, até chegar junto a uma
rapariga de cabelos castanho-avermelhados tão vivos que
pareciam chamas e que lhe caíam sobre os ombros apanhados
em duas tranças. Tinha a cara baixa e o vestido amarrotado pelos
pequenos punhos.
— Tu! — guinchou a mulher. — O rosto marcado pelas lágrimas
da rapariga virou-se para cima. — Como te chamas, pequena?
— Kelty Monroe.
— Vens comigo.
— Não! — gritou a rapariga quando a bruxa levantou a mão a
chamar um oficial.
— Eu fico com esta — disse a mulher ao oficial, agitando o dedo
na direção de Kelty.
Hazel desviou o olhar, sentiu um pássaro amedrontado a
mergulhar no seu peito.
A sala estava cheia de crianças, algumas da sua turma e
escola, outras que Hazel não reconhecia. Estavam sentadas em
bancos amontoados no espaço enquanto os habitantes locais
passeavam e selecionavam crianças para serem alojadas nas
suas casas. Uma mesa encostada à parede mais distante tinha
pratos de comida para as crianças que não fossem escolhidas até
à hora de jantar. Alguns agricultores preferiam os rapazes de
calções de sarja cinzenta ou calças de tweed. As famílias sem
filhos queriam raparigas bonitas com vestidos de renda com
folhos, parecidas com a Shirley Temple ou suficientemente novas
para serem tratadas como bonecas.
Mas quem haveria de querer uma rapariga de 14 anos e a sua
irmã?
Hazel não sabia se a dor que sentia no estômago era fome ou
medo. E se ninguém as escolhesse e ela e Flora ficassem
sentadas naqueles bancos duros enquanto todas as outras
crianças seguiam para casas de famílias gentis onde teriam à sua
espera refeições quentes?
Havia um cartaz pendurado na parede, com o canto superior
esquerdo caído e a abanar. Tinha a imagem de uma mulher a
caminhar por entre escombros numa cidade bombardeada, com
fumo a sair das janelas dos edifícios alvejados, uma cena horrível.
A mulher, descomposta, trazia um bebé ao colo. Duas crianças
sujas agarravam-se ao seu casaco enquanto ela avançava por
aquela terra de ninguém. Num belo fundo azul, em dissonância
com a imagem, surgiam as palavras PODIA SER CONSIGO! CUIDAR
DOS DESLOCADOS É UM DEVER NACIONAL. E mais abaixo, em letras
mais pequenas, lia-se MINISTÉRIO DA SAÚDE.
Parecia que ela e Flora tinham uma designação oficial:
deslocadas.
Uma mulher com uma saia de camponesa azul e um sorriso
rígido e desajeitado, como se fosse um sacrifício, entregou uma
caneca esmaltada com leite e bolachas de chocolate às irmãs,
que beberam e comeram avidamente. Todas as janelas da sala
abafada, com vigas baixas, estavam fechadas. O ar fresco do
outono estava isolado no exterior por portas grossas que se
abriam e fechavam à medida que os adultos chegavam e saíam
com as crianças.
O cheiro a suor e lã húmida preenchia o ar, e Flora disse:
— Leva-me para o nosso mundo.
— Agora, não — sussurrou Hazel.
— Então, conta-me outra história, uma em que a mãe nos leve
para casa.
— Ela está em casa — disse Hazel, incapaz de dar o salto para
uma fantasia frívola quando a realidade pairava ameaçadora
diante delas. Os adultos passavam por elas, avaliando-as como
tomates no mercado.
— Faz com que a mãe esteja aqui — pediu Flora. — Ela que
nos venha buscar.
Mas Hazel não conseguia encontrar o começo de tal história. Os
seus ombros descaíram quando viu uma mulher bonita num
vestido azul-claro a caminhar na direção delas. Os cabelos
castanhos caíam-lhe pelos ombros, para lá da gola de renda, e
trazia um chapéu vermelho vistoso inclinado para um lado. Os
olhos verdes examinavam os bancos como se estivesse à procura
do próprio filho.
— Escolha-nos — sussurrou Hazel.
Flora levantou os olhos do ombro de Hazel e sentou-se direita,
abrindo o casaco da irmã. A mulher sorriu para elas quando
passou. Ao seu lado, Hazel viu o rapaz que a tinha ajudado na
rua. Ele estava com aquela bela mulher. Quando ele olhou para
Hazel, o seu rosto abriu-se num sorriso.
— Tu! — disse.
— Sim, eu — respondeu Hazel.
— Sou o Harry. — Ele parou na frente de Hazel e, embora não
corresse a menor aragem naquela sala, o seu cabelo parecia
mover-se. — Como te chamas?
A mãe dele, ou a senhora do vestido azul que Hazel supunha
ser a sua mãe, já seguia por entre os bancos, a sorrir e a acenar
às crianças esperançosas que se agarravam umas às outras ou
às suas bonecas, cobertores e ursos de peluche.
Hazel levantou o queixo, sem querer mostrar medo.
— Hazel Mersey Linden.
— Mãe! — chamou Harry, sem desviar o olhar de Hazel.
— Sim, querido? — Ela virou-se, seis crianças mais abaixo no
banco.
— Podes chegar aqui, por favor?
Ela aproximou-se rapidamente, e o seu batom vermelho era tão
vibrante que Hazel conseguiria ter lido as suas palavras tão
facilmente como as ouviu.
— O que foi? — perguntou.
— Quero apresentar-te a Hazel.
A senhora do batom e chapéu vermelhos e vestido florido olhou
para Hazel, e depois para Flora. Sorriu tão docemente que a
esperança renasceu no peito de Hazel. Parecia ser o tipo de
senhora que seria amiga da mãe delas; uma senhora que ria e
cozinhava coisas no fogão que cheiravam pela casa toda; uma
senhora capaz de lhes ler livros e fazer desenhos em folhas de
papel em branco com lápis de cor.
— Olá, Hazel. — Ela olhou para Harry. — Temos de escolher
um rapaz, filho. Alguém para nos ajudar. Não podemos levar para
casa duas meninas. A sua voz não era cruel quando disse
aquelas palavras, não como a bruxa de cara feia e cabelos
crespos. Foi gentil até mesmo quando negou o pedido dele.
Hazel sentiu o coração a mirrar. Apertou a mão de Flora com
tanta força que a irmã deu um grito.
— Mãe — disse Harry num tom de voz ligeiro, como se
estivessem a brincar na rua —, não precisamos de mais rapazes.
Tens-me a mim.
O seu riso soou exatamente como Hazel imaginara: alegre e
divertido. A mulher fez um compasso de espera, mas a pausa
pareceu tão longa e penosa como a viagem de comboio até aqui
— o lugar onde os pais de Hazel se apaixonaram, o lugar onde
Hazel e Flora iriam viver até que a Grã-Bretanha travasse o
homem cruel chamado Hitler e elas pudessem voltar para casa
em segurança.
— Meninas — disse ela com um sorriso e um aceno da cabeça.
— De onde são?
Flora respondeu antes que Hazel pudesse abrir a boca.
— Londres, minha senhora, Bloomsbury.
— Bem, eu adoro Bloomsbury. — Ela virou-se para o rapaz. —
Harry, a Virginia Woolf fazia parte do Grupo de Bloomsbury.
Harry olhou para Hazel.
— A minha mãe é perdida de amores pelo Grupo de
Bloomsbury. Ela é muito boémia, e sei que sempre desejou
pertencer ao Grupo. Infelizmente, é obrigada a ser minha mãe.
— Ora, está caladinho! — Ela deu-lhe um beijo ao de leve na
cara e ele não se afastou. Hazel ficou espantada: um rapaz que
não se afastava dos afetos da mãe em público; um rapaz que
dizia coisas como perdida de amores e boémia.
— E os vossos pais? — quis saber a mulher.
— A nossa mãe está a trabalhar para o Serviço Britânico, e o
papá está… — Hazel ainda não conseguia dizer uma palavra tão
definitiva: morto.
— Sinto muito — condoeu-se a mulher, lendo nas entrelinhas da
voz trémula de Hazel. — Infelizmente, só tenho uma cama vaga.
Lamento.
Flora saltou do banco, agarrando nas patas traseiras do urso
com todas as forças.
— Nós podemos partilhar — disse, com a voz sumida.
Hazel acenou com a cabeça.
— Não seria um problema.
A mulher agachou-se para olhar Flora nos olhos.
— Bem, se isso não é impedimento, então claro que devem vir
para casa connosco.
Hazel sentiu o queixo a cair de surpresa e alívio. Flora olhou
para a mãe de Harry.
— E a Hazel pode contar histórias. Ela conta as melhores
histórias!
— Isso parece-me maravilhoso. Chamo-me Bridgette Aberdeen.
— Eu chamo-me Hazel Mersey Linden.
— E eu Flora Lea Linden.
As apresentações saíram sobrepostas.
— É um prazer conhecer-vos.
Hazel viu Flora através dos olhos da Sra. Aberdeen: uma
criança adorável cheia de ingenuidade e bondade. Flora era a
melhor de todas, não só da família Linden, mas de todas as
crianças que tinham chegado naquele dia de comboio.
Bridgette Aberdeen levantou-se e ajeitou o chapéu. Chamou o
oficial que estava na ponta do banco.
— Estas duas crianças vão para nossa casa.
CAPÍTULO 10

Março de 1960

A manhã entrou no quarto de Hazel, em Bloomsbury, com


lampejos de luz que se infiltravam através das cortinas de renda
cor de chá. Ao longe, no mundo dos despertos, um telefone
tocava sem parar. Hazel deslizou a perna direita pelos lençóis, à
procura de Barnaby. Esticou a perna e depois a mão, em busca
do conforto do seu corpo, mas o espaço estava vazio. Virou-se e
olhou para a almofada amassada onde ele tinha estado.
O dia anterior acorreu-lhe à memória com a angústia de um
aperto no estômago.
Tinha acabado por se deitar à uma da manhã e Barnaby estava
a dormir.
Aquele barulho irritante. Avançou trôpega e ensonada até ao
telefone que tocava incessantemente na cozinha.
— Estou?
— Bom dia, Hazel.
Edwin Hogan.
— Bom dia — disse ela, fingindo leveza no tom de voz. — Estou
atrasada para o trabalho? — perguntou, tentando fazer uma
piada, mas perfeitamente ciente do motivo do telefonema.
— Temos um problema.
— Ai sim? — Levou a mão ao coração e sentiu-o a bater
descompassado.
— Ontem, alguém entrou na sala das traseiras e roubou um
embrulho. O Tim disse-me que foi uma tarde caótica. Um grupo
de turistas. Um jovem casal a comprar um Auden. Uma mãe e
uma filha. Estou a ligar para saber se viu algo fora do lugar ou se
se lembra dos nomes. — A sua mente estava a mil e Hazel
decidiu contar a verdade, mas Edwin adiantou-se. — Liguei para a
Scotland Yard. — Pausa. — Guardou os pacotes no cofre
juntamente com os outros?
— Não — disse ela. — Deixei um cá fora para o Tim.
A mentira surgiu tão facilmente que ela sentiu o refluxo gástrico
na garganta. Inclinou-se e segurou o auscultador entre a orelha e
o ombro, colocando as mãos nos joelhos. Quem era esta mulher
que mentia e roubava, tudo por causa de um conto de fadas e na
esperança fútil de encontrar a irmã com vida? Onde estava
Barnaby? Tinham de devolver aquelas ilustrações de alguma
forma, levá-las à socapa para a sala das traseiras da livraria.
— Hazel, sabe que não deve deixar um pacote… sem vigilância.
— O que é que roubaram? — perguntou com um vislumbre de
falsa esperança de que pudesse ser outra coisa.
— Há um novo conto de fadas que está a ser um sucesso na
América. Consegui obter as ilustrações originais. As ilustrações
de Baynes. Quando a Grã-Bretanha descobrir o livro, elas valerão
uma fortuna. Mas agora desapareceram. Viu-as?
Como se ela tivesse uma pequena caixa para guardar mentiras
que estivesse a encher demasiado depressa, Hazel disse uma
verdade parcial.
— Vi. Mas não olhei bem para elas… Vim-me embora.
— Foi-se embora?
— Sim.
— Porquê, Hazel?
— Estava perturbada, Edwin. Pensei… bem, não sei
exatamente o que pensei. Estava emocionada. Perdoe-me.
— Se se lembrar de alguma coisa, diga-me, por favor. Se por
acaso se lembrar de alguém que tenha entrado na sala das
traseiras.
— Claro que sim.
— Sabe onde estava a Poppy? — perguntou ele. — Ela ainda
não apareceu hoje.
— Não. Mas, Edwin, é impossível que ela fizesse uma coisa
dessas. Não depois de todos estes anos, e não depois de tudo o
que fez por ela.
— Tenho de desligar, Hazel. O inspetor já chegou. Por favor,
ligue-nos se se lembrar de alguma coisa.
Ele desligou sem se despedir, e Hazel correu para a casa de
banho, onde ficou a hiperventilar na sanita, antes de se afundar
no chão de mosaico cinzento. O papel de parede com rosas
serpenteantes em vermelho, amarelo e verde toldou-lhe a visão e
ela pousou a testa nos joelhos dobrados. Será que culpariam
Poppy, o apaixonado que comprou o livro de Auden para a noiva
ou Tim?
Era demasiado tarde para devolver o pacote. Era demasiado
tarde para dizer a verdade. Mas ela não podia deixar que
culpassem a pobre Poppy.
Trinta minutos depois, com calças de tweed, uma camisola azul-
clara e a carta para Peggy Andrews no bolso, Hazel tirou o
casaco de feltro vermelho que estava no cabide junto à porta da
rua e viu um bilhete colado ao painel de madeira.

Desculpa, tive de sair a correr. Tenho uma aula de orientação cedo e não
quis acordar-te. Encontramo-nos às 10h30, no Legrain.
Amo-te, B.

Hazel deixou o bilhete no banco da entrada e saiu.


O dia de março nasceu quente e limpo. Hazel parou por
instantes antes de avançar pelo passeio. Um quarteirão mais à
frente, chegou junto ao marco do correio vermelho na esquina da
Doughty, onde colocou a carta.
Recordou o dia em que escreveu o postal à mãe, em Binsey.
Estamos seguras e fomos bem acolhidas por uma família muito
simpática. Não precisas de te preocupar…
A primeira parte era verdadeira, a segunda, uma mentira não
intencional.
Quando ela e Flora chegaram a Binsey, Hazel antecipou um tipo
de história, que acabaria por se revelar outro. Agora, ela sabia o
que tinha de fazer, sabia o que lhe era exigido. Para que a
descoberta daquele Bosque dos Sussurros pudesse trazer algo
de positivo, não podia nascer manchado pela mentira.
CAPÍTULO 11

Setembro de 1939

Hazel e Flora seguiam no banco de trás do Flying Nine azul da


Sra. Aberdeen. Lá fora, o céu estava carregado e plúmbeo, e a
chuva caía em rajadas. Os limpa-para-brisas rangiam contra o
vidro. As sebes roçavam no carro, o que explicava todos os riscos
na pintura. Com o chapéu no colo, a Sra. Aberdeen conduzia com
as duas mãos no volante, entoando com total abandono uma
canção da rádio que era um hino ao amor-próprio.
No banco do passageiro da frente, Harry virou-se duas vezes e
sorriu para as irmãs, revirando os olhos como se quisesse dizer
que sabia que a mãe era extravagante, mas que não podia fazer
nada quanto a isso. Flora e Hazel estavam o mais próximas
possível uma da outra, de mãos dadas; o Berry estava espremido
entre elas, com o focinho peludo virado para a frente, como se
estivesse a ver para onde iam, quantas curvas teriam de
descrever para chegar à casa dos Aberdeens.
Hazel olhou para a Sra. Aberdeen, e pensou na melhor forma
de descrever a senhora que as acolheu à sua mãe. Tinha a pele
branca e cremosa de uma mulher que nunca tinha estado ao sol.
A boca tinha o formato de um laço e era em tudo igual à de Harry,
e quando cantava com a sua voz doce, os cantos da boca
contorciam-se num sorriso. O cabelo caía-lhe sobre os ombros e
agitava-se ao sabor do balanço do carro que parecia pronto a
desfazer-se a cada solavanco.
Flora e Hazel nunca tinham estado na zona rural de
Oxfordshire, e a irmã mais nova olhava pela janela sem dizer uma
palavra. A paisagem crepuscular quase fez Hazel acreditar que o
Bosque dos Sussurros era possível, que havia portas cintilantes
espalhadas aqui e ali. Os seus pés estavam inquietos para sair do
carro, para correr pelos campos de urze e pelas colinas
ondulantes, para saltitar sobre rochas cobertas de líquenes.
Imaginava as sombras que pairavam nos campos relvados como
poças de água prateadas. Basta procurares por essas coisas.
Abraçou Flora.
— Vamos ficar bem — afiançou-lhe.
Flora tirou o Berry do lugar onde estava e pô-lo ao colo.
— Eu sei.
Pouco depois, passaram por um longo caminho de cascalho
com tantos sulcos e buracos que o carro parecia que ia desabar.
Quando pararam subitamente, a Sra. Aberdeen trauteou, como se
fosse o último verso da canção que tinha estado a interpretar:
— Bem-vindas ao chalé Aberdeen.
As irmãs saíram do carro para o cascalho e ficaram a olhar para
aquela casa pitoresca. Parecia brilhar. O sol que se punha atrás
do chalé tornava as pedras quase prateadas. Uma luz interior
acesa preenchia as janelas com tons de amarelo. A porta da rua
estava pintada de azul. Sob as janelas de ambos os lados da
porta, os canteiros estavam repletos de plantas de folhas verdes e
flores vermelhas e amarelas que transbordavam alegremente dos
vasos.
O chalé parecia ter brotado da terra. A hera percorria a lateral
da casa e avançava em direção à janela da esquerda. O telhado
era de ardósia escura e a chaminé de cobre parecia arder à luz do
sol poente, lançando setas brilhantes sobre a linha do telhado. À
volta da casa, a paisagem espraiava-se por montes e colinas em
ondas verdes e castanhas.
Não havia mais casa nenhuma à vista.
— Toca a andar. Está a escurecer e quero que se instalem —
disse a Sra. Aberdeen. — Amanhã, logo admiramos a paisagem.
Vamos, vamos.
As irmãs seguiram-na, com Harry atrás a transportar as suas
mochilas para dentro.
O musgo tornava coeso o caminho de lajes que serpenteava à
volta de dois amieiros, cujas folhas amarelas caíam no chão
enquanto outras se agarravam tenazmente aos ramos. Na
fachada da casa, as sebes brotavam de todos os lados.
Levantou-se uma ventania atrás delas que fez com que as irmãs
entrassem pela porta juntamente com um turbilhão de folhas,
pequenos paus e musgo. A Sra. Aberdeen soltou uma gargalhada
cintilante.
— Parece que a terra está a dar-vos as boas-vindas ao lar.
Hazel observou a casa aconchegante e a lareira coberta por
pedras de rio, tão grande que podia albergar uma pessoa no
interior, com muita lenha empilhada ao lado. A cornija era feita de
um tronco cortado ao meio. Em cima, havia vigas expostas e
paredes de gesso rugosas caiadas de branco. E por todo o lado
havia livros: em mesas de apoio e prateleiras de madeira,
espalhados no chão e empilhados nos cantos. A acolhedora sala
de estar tinha ainda um sofá demasiado volumoso e dois
cadeirões com um padrão de flores vermelhas e azuis. Em vez de
uma mesinha de café, havia um baú e, sobre ele, mais livros. O
tapete representava um caramanchão entretecido por heras. Toda
aquela desordem deveria ser caótica, mas não era. O chalé
transbordava conforto.
— Não se pode dizer lar — disse Flora, resoluta, mas com os
lábios trémulos. — Não é o nosso lar.
A Sra. Aberdeen pousou a sua mala de tapeçaria num banco da
entrada, inclinou-se e pôs as mãos nos joelhos para encarar
Flora.
— Oh, querida, tens toda a razão. Não é o teu lar. Mas espero
que gostes de aqui estar. Devia ter sido mais cuidadosa com as
minhas palavras. Vou tentar outra vez. — A Sra. Aberdeen
levantou-se e aclarou a garganta. — Bem-vindas ao chalé
Aberdeen, lar de Bridgette e Harry Aberdeen.
Fez uma vénia e sorriu. Flora riu-se.
— Temos de escrever já um postal à nossa mãe — disse Hazel.
— Ela tem de saber que estamos seguras. É… — Ela tentou
lembrar-se da palavra. — Imperativo.
A Sra. Aberdeen olhou para Hazel e fez-lhe uma festa no cabelo
como se a conhecesse desde sempre, não há menos de uma
hora.
— Tratamos disso amanhã de manhã. Para já, vamos comer
algo quente para poderem instalar-se no vosso quarto. O dia deve
ter sido muito difícil!
Harry pegou nas mochilas que pousara na entrada e atirou-as
por cima do ombro.
— É aqui atrás. — Acenou com a cabeça em direção ao
corredor.
As irmãs seguiram-no pelo chão de madeira escura que brilhava
sob a luz das lâmpadas. Fotografias emolduradas de Harry em
todas as idades cobriam as paredes do corredor. Hazel não teve
tempo para olhar para elas, mas sabia que o faria. Viraram à
direita e deram por si na cozinha, uma divisão quadrada e sólida,
com janelas na parede do fundo que deixavam antever um jardim
ao anoitecer. Hazel viu caramanchões, carreiros e um celeiro
vermelho, uma horta e gaiolas de verga.
Uma lareira de tijolos com toros carbonizados preenchia a
parede da direita e Hazel pensou que nunca tinha visto nada tão
glorioso: uma lareira na cozinha. Na cozinha! Noutra parede havia
uma porta que dava para uma casa de banho minúscula, outra
que se abria para o exterior, e uma última porta fechada com um
puxador de latão brilhante em forma de ovo.
A cozinha estava pintalgada de verde: nas bancadas, no fogão
AGA que estava aceso, nas cortinas em xadrez esmeralda-pálido
sobre o lava-loiça e nos tampos cor de menta. As prateleiras
abertas dos armários de madeira estavam cheias de pratos,
canecas, copos e roupa de cama. No centro de uma mesa
redonda de madeira escura havia um bule de chá florido e um
vaso de cardos roxos.
Harry abriu a porta fechada com um empurrão da anca. Hazel
seguiu-o enquanto Flora se deixou ficar na cozinha, avançando
para a mesa e tocando nas pontas dos cardos espinhosos. Hazel
entrou no quarto atrás de Harry.
O rapaz pousou as mochilas em cima da cama coberta com
colchas de padrões diferentes que dominavam o quarto
retangular.
— Este é o vosso quarto.
Um guarda-roupa de madeira escura e uma cómoda com
naperons de renda estavam encostados à parede da esquerda.
Duas janelas ofereciam uma vista para os campos nas traseiras
da casa.
— É lindo — disse Hazel, e não estava apenas a ser simpática.
Estava demasiado cansada para ser simpática. Hazel sentou-se
na cama quando Flora entrou.
— Oh! — Era uma exclamação de prazer. Flora correu a sentar-
se no colo da irmã.
O alívio tomou conta de Hazel: segura numa casa como esta,
com uma cama como esta, enquanto a guerra se travava ao
longe. Mas teria ela o direito de estar tão feliz quando a mãe
provavelmente estaria sentada à mesa da cozinha com as
lágrimas a correrem-lhe pela cara, enquanto imaginava onde
estariam as filhas e se estariam em segurança?
Harry sorriu-lhes com o mesmo sorriso que ela vira quando
tinha deixado cair a mochila na rua e as mãos começaram a
agarrar as suas coisas. De repente, ali estava ele.
— A minha mãe diz que o jantar é daqui a vinte minutos, por
isso, se quiserem lavar-se, a casa de banho fica mesmo ao lado
da porta do quarto. A sua cara contorceu-se num esgar. — Vamos
ter de a partilhar. Só temos uma.
Hazel puxou Flora para perto de si e pousou o Berry na
almofada.
— Vou desfazer as malas, e depois vamos jantar.
Harry ficou à porta até Hazel perguntar:
— Precisas de mais alguma coisa?
— Não, só estou contente por estarem aqui — disse, antes de
desaparecer e fechar a porta com um estalido.
Flora soltou Hazel e recostou-se na cama que ambas iam
dividir.
— É tão macia!
Hazel calcou o colchão e sorriu.
— É ótimo, mesmo que pareça que estamos a um milhão de
quilómetros de tudo. Londres não parece estar apenas à distância
de uma viagem de comboio.
— Conta-me uma história — disse Flora. — Por favor.
— O jantar está quase pronto — desculpou-se Hazel. — Conto-
te uma história quando formos dormir.
— Está bem. — Flora levantou-se e começou a rodopiar o
vestido no meio da divisão. — O nosso quarto!
Do outro lado da porta, ouviam-se os sons da Sra. Aberdeen na
cozinha: o bater de tachos e panelas, o baque mais cavo da
cerâmica e o som melodioso da música no rádio, em vez da voz
sombria do primeiro-ministro Chamberlain. Aromas a alecrim e
lavanda entraram no quarto. À janela, Hazel olhou para as formas
da terra, as protuberâncias e picos que se elevavam contra a luz
crepuscular. Havia um rio por perto; o caudal suave fazia-se ouvir.
A música no rádio estava alta e Guy Lombardo cantava sobre a
chuva de setembro. O riso de Harry sobrepôs-se às notas
musicais.
— Ela ouve muita música — constatou Hazel.
Flora aproximou-se da porta e pousou a mão como se fosse a
porta mágica do Bosque dos Sussurros. Não estava preparada
para a empurrar e entrar, ainda não.
— Eu gosto — disse.
— Eu também — concordou Hazel. — Gosto muito.
— Já podemos ler o bilhete da mãe? — Flora torceu a bainha
do vestido, ansiosa.
— Sim. — Hazel tirou o bilhete do bolso da gabardina de Flora,
que estava pendurada no cabide de madeira junto à porta, e
desdobrou-o. Leu-o em voz alta.

Adoro-vos às duas. Sejam corajosas e cuidem uma da outra. Irei visitar-


vos assim que puder.
Todo o meu amor para sempre,
Mãe

— Cuidem uma da outra — repetiu Flora, em voz alta, e virou-se


para Hazel. — Eu vou cuidar de ti.
Hazel quase se riu, mas viu a sua expressão de sinceridade e
percebeu que isso magoaria a irmã, por isso deu-lhe um beijo no
nariz.
— Toca a desfazer as malas.
Atirou as mochilas para o fundo da cama e tirou os seus
escassos pertences: a roupa interior branca, as meias dobradas e
as camisas engomadas. A sua camisa branca e um vestido florido
estavam manchados de lama por terem caído na rua. Colocou-os
em cima da cómoda e dobrou-os com cuidado; mais tarde haveria
de os limpar. Agora, era ela que mandava. Guardou o resto da
roupa numa gaveta vazia da cómoda de pinho. Hazel colocou os
casacos e os dois vestidos azuis iguais, que a mãe tinha feito na
máquina de costura Singer preta, no guarda-roupa, juntamente
com outras gabardinas e camisolas de malha.
Mesmo em casa, nunca tiveram muito, apenas alguns vestidos
e todas as camisolas e casacos de que precisavam para não
passarem frio, mas aqui tinham ainda menos, e Hazel queria que
tudo ficasse arrumado — como se tivesse sido a mãe a arrumar
tudo no seu devido lugar. Seria uma mãe para Flora, além de irmã
e contadora de histórias.
Cuidem uma da outra.
As palavras ecoaram na cabeça de Hazel e ela puxou Flora
para junto de si, abraçou-a com força e deu-lhe um beijo na
cabeça.
— Larga-me! — disse Flora, mas agarrou-se a Hazel com uma
força tal que esta não teria sido capaz de a largar mesmo que
quisesse.
CAPÍTULO 12

Março de 1960

O sino da Hogan’s Rare Book Shoppe tocou quando Hazel


entrou na livraria. Ao balcão, Poppy estava junto à caixa
registadora com um vestido vermelho-vivo, o cabelo escuro
apanhado num rabo-de-cavalo apertado e a testa franzida de
preocupação, enquanto conversava com dois homens que
estavam em pé de cada lado do balcão, ambos de azul, ambos
inspetores da polícia com cadernos e olhares severos.
Hazel agarrou na sua pasta com mais força e, com uma
confiança que não tinha, cumprimentou Poppy com um aceno e
avançou para o corredor das traseiras. Pressionou a mão contra a
porta vaivém verde e empurrou.
Tim estava de pé e Edwin sentado numa cadeira, mas ambos
estavam debruçados sobre um livro-razão na longa mesa de
carvalho, com as cabeças tão próximas que quase se tocavam. A
cabeça careca de Edwin tinha o restolho branco da idade, ao
passo que os fartos cabelos negros de Tim brilhavam à luz do
candeeiro de teto em latão. Usavam casacos de tweed quase
iguais; só quem olhasse mais atentamente conseguiria perceber
que os padrões eram ligeiramente diferentes. Levantaram a
cabeça ao mesmo tempo e olharam para ela.
— Hazel! — A voz de Tim encheu-se de felicidade. — Mudaste
de ideias? Percebeste o erro que cometeste e voltaste para nós
em vez de ires trabalhar para o monstro da Sotheby’s?
Ela tentou sorrir, mas foi debalde.
— Cometi um erro… grave. Sinto muito. — Pousou a pasta
sobre a mesa e abriu o trinco de latão. Retirou o pacote e
colocou-o diante dos dois homens. — Fui eu que o levei.
Confessar foi tão fácil quanto isso. Basta dizer as palavras.
Basta pôr tudo em cima da mesa, dizer a verdade e o que
acontecer, acontece, pensou.
A expressão no rosto de Edwin alternou-se entre a confusão e a
raiva. Tim esfregou a face esquerda com a mão. Hazel manteve-
se imóvel. Enfrentaria as consequências.
— Podem avisar os agentes que estão lá fora. Peço imensa
desculpa. Não era minha intenção. Eu estava… Acho que posso
explicar.
Ela já tinha visto aquela expressão em Edwin; ele tinha uma
decisão a tomar. Estava a decidir se seria clemente ou inflexível.
E nunca ninguém sabia para que lado penderia.
— Pode explicar?
— É difícil, mas posso tentar.
— E que tal eu chamar o inspetor Norman para participar na
conversa? Talvez ele queira ouvir as suas explicações. — A cara
de Edwin estava vermelha, o nariz bulboso em chamas, os olhos
brilhantes de raiva.
— Pai — disse Tim, baixinho, pousando a mão no braço
bexigoso do pai, onde a manga da camisa havia sido arregaçada.
— É a Hazel. Tem de haver uma boa explicação.
Edwin olhou para ela como se duvidasse que a mulher que
estava à sua frente fosse a mesma pessoa que trabalhara para
ele durante quinze anos, que passara férias com ele, com a sua
mulher e com a sua família mais alargada. E Hazel sentia-se uma
mulher diferente, outra pessoa.
— Foi um gesto impulsivo e errado — refletiu ela.
E, em seguida, contou-lhes a verdade, de forma lenta e
metódica. Falou-lhes do Bosque dos Sussurros, de Flora, do
mundo que ficou virado do avesso quando encontrou o livro.
Quando terminou, só a chiadeira do radiador enchia a sala.
Tentou ler as expressões faciais deles. Edwin foi o primeiro a
olhar para cima e, sim, tinha lágrimas nos olhos.
— Deus do Céu, Hazel, passou por um verdadeiro inferno.
— Não fui a única, Edwin. Aquele tempo foi um inferno para
todos nós. O Edwin perdeu dois filhos. Perdeu metade da sua
livraria num bombardeamento e conseguiu reconstruí-la. Não sou
especial e o que fiz não merece perdão, mas quero que
compreendam.
— O que devo fazer agora? — Edwin olhou para o filho. —
Aqueles inspetores estão a interrogar a Poppy e a contactar os
clientes que tivemos naquele dia.
— Digam-lhes que fui eu que roubei o embrulho. — Hazel
baixou a cabeça. — É verdade.
Edwin agarrou na bengala de prata que estava encostada à
mesa de carvalho. Saiu, ao som ritmado da sua passada. As
lágrimas acumularam-se no peito de Hazel e ela soube que não
seria capaz de parar se começasse a chorar.
A voz de Tim.
— Vai ficar tudo bem. O meu pai seria incapaz de te mandar
prender.
Hazel limpou a cara e olhou para Tim.
— Achas mesmo que não? — Tim não respondeu, mas
colocou-se ao seu lado e ambos olharam para os desenhos. —
Nem sequer contei a pior parte.
— Há mais?
— Danifiquei duas das ilustrações. — Ela não trairia Barnaby.
Antes que pudesse continuar, Edwin entrou na sala das
traseiras com o inspetor mais alto dos dois. Um homem moreno
de olhos ternos e chapéu azul enterrado na testa larga. Trazia
consigo um caderno, onde ela viu os nomes e anotações que
estavam rabiscados nas folhas: Poppy era um deles.
— Esta é a Hazel Linden — anunciou Edwin. — Era a nossa
melhor funcionária, até nos ter deixado para aceitar um novo
emprego na Sotheby’s. Veio confessar que levou o embrulho.
O polícia aclarou a garganta.
— É verdade? — inquiriu.
— Sim. — Hazel apontou para a mesa, com a voz trémula. —
Vim devolvê-lo.
— Roubou o embrulho para o levar para a Sotheby’s? — tornou
ele. — Para ganhar uns cobres à custa do seu antigo patrão?
Uma última vingança?
— Não!
— Não!
Tim e Hazel responderam em uníssono.
— Não foi nada disso — explicou ela. — Foi um acidente. Um…
um acidente emocional.
— Essa é nova — disse o polícia. — Um acidente emocional.
Edwin apoiou-se na bengala.
— Obviamente que não vou apresentar queixa.
O inspetor fixou o olhar em Hazel.
— O Tim não lhe ligou a perguntar pelas ilustrações? Se sabia
alguma coisa sobre isso? Tal como o Edwin?
Hazel engoliu em seco.
— Sim, e eu menti. Entrei em pânico. Mas estou aqui agora. —
Olhou para Tim, que mordeu o lábio inferior e abanou a cabeça.
Sabia que ela estava prestes a confessar o que tinha feito às duas
ilustrações danificadas.
— Senhor inspetor — interveio. — Tivemos uma noite e um dia
infernais. Está tudo esclarecido e podemos pôr este assunto para
trás das costas. Agora, é connosco.
— As coisas não são bem assim — disse o inspetor. — Ela
pode ter confessado, mas roubou mercadoria valiosa.
— Que depois devolveu — rematou Tim. — Podemos
simplesmente seguir em frente?
O inspetor enfiou o chapéu na cabeça, guardou o caderno no
bolso e saiu em silêncio.
Hazel expirou quando a porta vaivém se fechou.
— Edwin, sinto muito, mas há mais…
— Pai — cortou Tim. — Duas das ilustrações foram danificadas.
Acidentalmente.
Edwin fechou os olhos por instantes e apoiou a mão esquerda
na mesa de carvalho. Em seguida, voltou a abrir os olhos.
— Hazel, este embrulho e respetivo conteúdo agora são seus.
Mas terá de pagar por eles.
— O Edwin sabe que não tenho dinheiro para isso.
— Vai arranjá-lo — disse ele. — Eu sei que sim. Pode pedi-lo ao
Barnaby ou à sua mãe. Mas há…
— Eu sei — depreendeu ela. — Há consequências. Há sempre.
Vou arranjar maneira de pagar, Edwin. Prometo. Só que não será
com um empréstimo do Barnaby ou da minha mãe.
Tim soltou uma gargalhada.
— Talvez com o salário do teu novo emprego catita.
Ela percebeu a mágoa no seu riso.
— Tim…
— Ouça — interveio Edwin, com doçura na voz e no rosto. —
As histórias e os livros encontram sempre os seus legítimos
donos. Eu sempre disse isso. E desta vez não é diferente. Vá lá
descobrir porque é que essa mulher tem a sua história. Descubra
se a sua irmã sobreviveu. — Levantou a bengala e caminhou até
ao armário de metal cinzento-escuro, abriu uma gaveta que
guinchou com a ferrugem antiga e pegou numa pasta. Voltou para
trás, pousou a pasta sobre a mesa e abriu-a. Lá dentro estava um
recibo manuscrito da Henry-Todd Publishing, de Nova Iorque.
Hazel olhou para ele e virou a cabeça. Demoraria anos a pagar
o custo das ilustrações e da primeira edição assinada de uma
produção limitada. Anos.
Edwin pegou no recibo amarelo e entregou-o a Hazel.
— Isto agora é seu. — Ela acenou com a cabeça e tentou
conter as lágrimas. — Se olhar com atenção, verá que há algo
neste recibo de que poderá precisar.
O seu olhar percorreu o recibo. Realçados como se estivessem
sob a luz de um holofote, Hazel viu um número de telefone e uma
morada em Cape Cod, Massachusetts, com um nome: Linda
Andrews.

Eram 11h00 em Londres, 06h00 na América. Hazel teria de


fazer tempo antes de ligar.
Fez os cálculos das horas enquanto caminhava para casa, com
o embrulho na pasta. Se não tivesse confessado, não teria obtido
o número de telefone. O preço exorbitante do livro valia bem o
número de um telefone algures em Massachusetts, onde uma
mulher chamada Peggy Andrews tinha escrito sobre o Bosque
dos Sussurros.
A chuva caía em gotas miúdas, mas Hazel não se deu ao
trabalho de abrir o guarda-chuva. Que importava que ficasse
molhada? Ela tinha um número, uma forma de encontrar a autora
americana.
A meio caminho de casa, lembrou-se de que tinha combinado
encontrar-se com Barnaby no café Legrain, onde autores e
argumentistas rabiscavam cadernos e tomavam cappuccinos
enquanto as máquinas de latão soltavam silvos e vapor. Homens
com cigarros fumegantes e mulheres com casacos de malha,
batom vermelho e brincos desproporcionados à espreita debaixo
de chapéus ousados discutiam animadamente Kingsley Amis e
Graham Greene, Willa Cather e John Steinbeck.
Hazel adorava os cafés do Soho. Adorava ouvir as conversas
enquanto tomava café, com um caderno aberto que nada mais
continha além de listas, afazeres, excertos de diálogos ouvidos e
coisas que ia observando: o olhar furtivo de uma rapariga na
direção de um homem sensual que estava com outra mulher, o
papel que se rasgava quando um parágrafo acabado de escrever
seguia pelo rumo errado, a astróloga com argolas e lenço
vermelho sentada no canto, que lia as cartas a troco de alguns
pence.
Mas, de momento, Hazel tinha coisas mais importantes a tratar:
a sua própria história. Barnaby já estaria nas aulas, por isso
restava-lhe apenas seguir em frente. Haveria de lhe explicar mais
tarde.
Abriu a porta da rua e deixou que os pingos de chuva que trazia
no corpo molhassem o chão de pinho, enquanto pousava a pasta
no banco da entrada e tirava lá de dentro o recibo amarelo da
Henry-Todd Publishing. Com a pressa, escorregou na
correspondência que havia sido entregue pela ranhura na porta
da rua. As pernas voaram para leste e oeste e ela foi bater com
força no chão de madeira, com o pulso esquerdo a amparar o
impacto da queda.
— Maldição!
Recompôs-se e levantou-se do chão. Pegou na
correspondência, deu uma vista de olhos e pousou-a no aparador
de pinho no corredor iluminado a caminho da cozinha. Dorothy
Bellamy, leu num dos envelopes. Santo Deus, aquela jornalista
não desiste? Que novas perguntas teria ela para fazer? Aquela
era a quarta carta que lhe escrevia. Hazel abriu o envelope.

Prezada Senhora Linden,


Venho pedir-lhe alguns minutos da sua atenção sobre o assunto da
Criança do Rio. Não sei se leu os meus outros artigos, mas quero
assegurar-lhe de que tudo farei para homenagear a sua irmã nesta
história, como tenho feito com todas as outras crianças. Mas a verdade é
que só posso fazê-lo se a senhora e a sua mãe falarem comigo. Todos os
artigos e histórias desta série são um relato da vida de uma criança
perdida em…

Hazel não leu mais nada. Rasgou a carta ao meio e deitou-a


para o caixote do lixo que estava junto à mesa.
— Nem minutos, nem segundos.
Massajou o pulso esquerdo, começou a caminhar pelo
apartamento. Tinha de aguardar pelo menos três horas até poder
ligar para o número de telefone na América, onde seriam nove
horas. Separou a correspondência, dobrou a roupa lavada, fez a
cama, varreu e esvaziou o lixo. Aquelas tarefas braçais evitavam
que a sua mente se dispersasse em mil direções.
Por fim, Hazel pegou no auscultador verde do telefone. Girou o
disco de plástico com o dedo direito até ouvir a voz da telefonista,
que ia pressionando os inúmeros botões da central telefónica. A
voz mecânica disse duas vezes a Hazel para tentar mais tarde,
mas esta recusou. Por fim, ouviu do outro lado:
— Estou, sim? — Era uma voz feminina.
— Posso falar com a Peggy? — perguntou Hazel, enquanto
caminhava pela cozinha com o fio enrolado do telefone que ia
esticando e encolhendo como um acordeão.
— Sou eu, mas estou a ouvi-la com alguma dificuldade.
— Chamo-me Hazel Linden. Estou a ligar de Londres. Lamento
que não me consiga ouvir bem.
— Londres. — A mulher disse o nome da cidade como se nunca
tivesse ouvido falar dela.
— Trabalho numa livraria de livros raros, em Bloomsbury. E
recebi o seu romance, Bosque dos Sussurros, juntamente com as
ilustrações originais, no nosso estabelecimento.
— Ai sim? As ilustrações originais?
— Sim.
— Ah, não fazia ideia — disse ela. — Que curioso.
Hazel não tinha tempo a perder, não só pelo preço de cada
minuto de longa distância, como também pelo risco de a mulher
desligar e pôr fim à conversa. Aquela era a sua primeira pista em
vinte anos. Que caminho devia seguir para encontrar as respostas
às suas perguntas?
— Preciso de lhe perguntar de onde conhece a história do
Bosque dos Sussurros.
— De onde a conheço? Escrevi-a. — A voz da mulher, com o
seu sotaque americano, tornou-se imediatamente mais fria.
— E é uma história absolutamente maravilhosa — sossegou-a
Hazel.
— Disse que tinha as ilustrações originais?
— Sim.
— Compreendo.
— Senhora Andrews, preciso de saber onde ouviu falar do
Bosque dos Sussurros.
— Porquê?
— Porque… porque esta já foi a minha história. Uma história
que inventei para tranquilizar a minha irmã de 5 anos quando
fomos deslocadas de guerra. Uma história que foi parar às suas
mãos, mas a minha irmã desapareceu. Perdemo-la durante a
guerra. Nunca falei a ninguém do Bosque dos Sussurros. Estou a
tentar perceber como a história chegou até si.
Entre elas, apenas o som da estática causado por quilómetros
de distância.
— Lamento o que aconteceu à sua irmã — disse a mulher —,
mas a história não é sua. — Um restolhar do outro lado da linha,
seguido pelo som abafado da mulher a gritar. — Ninguém, mãe. É
engano.
— Peggy? — Hazel chamou-a pelo nome, subitamente
frenética. Talvez não devesse ter despejado a informação daquela
maneira, mas o que mais podia fazer? — Pode dizer-me onde
ouviu esta história? Pode ser uma questão de vida ou de morte
para uma rapariga… — Nada. — Por favor, fique com o meu
número de telefone, caso se lembre de alguma coisa. — Hazel
disparou o número. — Chamo-me Hazel Linden. — Repetiu o
número.
Ao fundo, Hazel ouviu a voz de uma mulher a gritar:
— Peggy?
— Desculpe, mas ligou para o número errado. Não volte a ligar,
por favor.
O som da chamada a ser desligada fez com que Hazel largasse
o auscultador, que ficou pendurado na parede da cozinha, a
balançar para a frente e para trás.
CAPÍTULO 13

Março de 1960
Cape Cod, Massachusetts

Peggy Andrews colocou o auscultador cinzento-escuro no


descanso do telefone que estava pendurado na parede. Ficou de
pé, atónita, na cozinha da cabana de tábuas de cedro decrépita,
na costa de Cape Cod, em Massachusetts. A mãe chamou-a da
sala ao lado.
— Era engano — disse Peggy, enquanto anotava o número de
telefone da tal Hazel.
Tirou o telefone do gancho e pousou o auscultador na bancada,
com o fio preto esticado na parede. Quem é que liga a alguém às
nove horas da manhã? Qual era o problema daquela senhora?
Tenho de lhe perguntar como soube desta história.
Nunca falei a ninguém do Bosque dos Sussurros.
Uma questão de vida ou de morte para uma rapariga.
A minha irmã.
Peggy ficou a olhar pela janela. O vento agitava a areia da praia
em remoinhos dourados. Ninguém informara a meteorologia de
que estávamos na primavera, de que o mundo se encaminhava
para dias mais longos e soalheiros no Nordeste. O mar azul-
acinzentado avançava e recuava na areia num movimento
chicoteado. Com o vento, as ervas altas bailavam nas dunas. A
maré estava a subir.
Olhou para o telefone e para o zumbido do auscultador. Uma
mulher em Londres tinha lido O Bosque dos Sussurros e afirmava
ter sido ela a criar o mundo e o rio.
Que ideia tão perturbadora e pavorosa.
O que quereria a mulher? Há com cada maluco no mundo. A
mãe sempre a avisara para ter cuidado com tal gente, e tinha
razão. Era por isso que viviam praticamente em reclusão naquele
pequeno pedaço de terra.
Estremeceu só de pensar que aquela mulher estaria a persegui-
la.
Inquietante.
Pensou no bebé dos Lindberghs que havia sido retirado do seu
berço. A mãe de Peggy tinha-lhe contado a história inúmeras
vezes, até esta fazer 10 anos e lhe implorar para parar.
— Chega! Eu sei o que aconteceu. — Nunca mais teve de ouvir
essa história. Mas, tal como todas as histórias, perdurou na
imaginação de Peggy.
Uma ponta de ansiedade subiu-lhe à garganta, mas Peggy
reprimiu-a. Não permitiria que aquela tola livreira britânica lhe
estragasse uma bela manhã, precisamente no momento em que
ela ia sentar-se a escrever. Pegou no pedaço de papel com o
número de telefone, amarrotou-o numa bola e atirou-o para o
caixote do lixo por baixo do lava-loiça.
Peggy e a mãe tinham negociado a posse das ilustrações
originais juntamente com o adiantamento, por isso quem podia tê-
las vendido a alguém em Inglaterra? Pensava que a mãe as tinha
guardadas no cofre do banco, mas não quis perguntar, porque
isso implicaria contar à mãe do telefonema. E Peggy não queria
aborrecer a mãe quando tudo estava a correr tão bem.
A sua mãe demorara muito tempo a fazer o luto do marido que
perdera em Pearl Harbor e da morte prematura da irmã, Maria,
três anos depois de se terem mudado para a casa desta em Cape
Cod para estarem com ela. A mãe dizia-lhe muitas vezes que era
uma sorte terem a casa de Maria, mas que daria tudo para que
esta ainda estivesse viva e de saúde. E agora, o sucesso d’O
Bosque dos Sussurros parecia ter reanimado a sua mãe, Linda, e
ela não queria pôr isso em risco.
Peggy sentou-se, pegou no seu caderno pautado e começou a
escrever, a mergulhar no mundo do Bosque dos Sussurros, um
mundo que era dela e da mãe. Era ali que ela pertencia e não
permitiria que um telefonema bizarro a fizesse abdicar disso.
Mais tarde, ao início da noite, Peggy estava na cozinha a ouvir o
matraquear da Olympia que vinha da marquise onde a mãe
datilografava as páginas do dia. Peggy ouviu-a rir; era óbvio que
tinha chegado à parte em que as irmãs se transformavam em
doninhas.
Foi à procura das sapatilhas para ir dar um passeio na praia,
algo que fazia todos os dias depois de atingir a sua quota de
páginas. Fizesse chuva ou sol, ela fazia uma caminhada.
O Bosque dos Sussurros era uma série de livros. O primeiro
livro tinha sido um sucesso tal que a editora já ia na quarta
reimpressão. Tinham telefonado a suplicar a Peggy que
escrevesse mais e mais depressa. Ofereceram-lhe um bónus e
Peggy começou a produzir em velocidade cruzeiro. As primeiras
edições já estavam a ser vendidas por quantias substanciais.
Aquelas histórias eram a sua obra-prima. Como é que aquela
estranha livreira podia dizer o contrário?
Com as sapatilhas azuis nos pés e o cabelo escuro — que, se
não tivesse cuidado, qualquer dia já lhe dava pela cintura —
apanhado num rabo-de-cavalo, Peggy pôs um gorro de lã
vermelho na cabeça e saiu pela porta da cozinha. No alpendre,
pegou no impermeável que estava no gancho e enrolou o
cachecol cinzento e já puído à volta do pescoço.
A porta de rede fechou-se com um estalido. Começou a fazer
uma lista de tudo aquilo em que devia pensar durante o passeio: o
que fazer para o jantar, o passo seguinte na história e o
telefonema de Hazel Linden.
Não. Ela não iria pensar nisso.
Caminhou ao longo da costa. À medida que a maré subia,
Peggy ia-se desviando das ondas brancas e das poças de água
límpida, pontilhadas por bolhas de ar que denunciavam criaturas
marinhas escondidas, enquanto pensava no capítulo seguinte.
Depois de serem doninhas, em que é que as irmãs se iriam
transformar a seguir?
Desde pequena que lhe diziam que tinha dificuldade em separar
o real do imaginário. Talvez, mas isso proporcionou-lhe uma
carreira com a qual a maioria das jovens da sua idade — 24 anos
— nem sequer sonhava. Mas sim, o seu mundo ficcional parecia
muitas vezes mais vital do que o mundo que ela sabia ser real.
Já por mais de uma vez lhe tinha ocorrido que, se pensasse
tanto na sua própria vida como no destino das duas irmãs órfãs,
não estaria ainda a viver com a mãe. No início daquela nova
década, talvez Peggy estivesse a divertir-se à grande com os
seus pares em Nova Iorque ou Boston. Talvez fosse aquela que
tinha emigrado para Londres.
Riu-se do absurdo. Praticamente nunca tinha saído do estado
de Massachusetts, quanto mais do país, se excluirmos a visita de
estudo às cataratas do Niágara, do lado canadiano da fronteira.
Um búzio, cor-de-rosa por dentro e coberto de cracas por fora,
veio à tona com uma onda que recuava para o mar. Peggy
apanhou-o. Mais um para juntar à coleção que se estendia pelas
tábuas do alpendre. Fechou a mão à volta dele e baixou a
cabeça. O vento forte levantou-lhe o cabelo e a gola do casaco.
Seria o prenúncio de uma tempestade?
No horizonte, apenas o azul-celeste se fundia com o mar.
Estava preocupada com a aproximação de uma tempestade e
com a possibilidade de uma britânica louca apanhar um voo para
a América para lhe roubar a carreira literária. Que absurdo. Ainda
assim, lembrou-se de telefonar para a editora a pedir para nunca,
mas nunca, fornecerem os seus dados pessoais.
— Pegs!
Virou-se, com o vento a bater-lhe nas costas e o rabo-de-cavalo
a abanar. Só havia uma pessoa que lhe chamava Pegs: Wren
Parker, o rapaz que vivia na casa ao lado da sua. Tinham crescido
em casas separadas por vinte metros. Não havia muito que não
soubessem da vida um do outro. Tinham frequentado
universidades diferentes — ela tinha estudado perto de casa, no
Quincy College, em Cape Cod, e ele tinha ido para Harvard.
— Wren, o que fazes de volta a casa?
— Estou à procura de emprego — disse ele, enquanto corria
para a apanhar. — Vi-te da janela e pensei em vir dizer um olá!
— Então, olá — devolveu ela, com um sorriso. Quantas vezes
teria ela ouvido aquelas mesmas palavras: Vi-te da janela e
pensei em vir dizer um olá?
— Como está a correr o teu livro? — perguntou ele.
— Muito bem. — Ela estremeceu. — Fui muito imodesta? Não
foi essa a minha intenção. Mas está a ser um sucesso de vendas
inesperado. Para ser sincera, pensava que só duas pessoas é
que o iam ler: a minha mãe e talvez tu.
— Eu li.
Estugou o passo e pôs-se à frente dela. Parou, de modo que ela
tivesse de o contornar se não quisesse encará-lo. Ela ainda
pensava em Wren Parker como um rapaz irritante, o miúdo que
lhe punha areia no saco das batatas fritas, que saltava de trás das
dunas e das esquinas das casas para a fazer gritar.
Mas ali estava ele, trinta centímetros mais alto do que o seu
metro e cinquenta e dois. Tinha o cabelo cortado daquela forma
tola que agora era moda, a imitar James Dean. Os seus olhos
castanho-escuros tinham um anel cor de avelã à volta — isso não
tinha mudado.
Trazia uma camisola grossa de pescador, um estilo usado por
gerações da sua família de criadores de ostras de Massachusetts.
O seu sorriso era provocador. Desafiou-a a contorná-lo. Peggy
ficou imóvel diante dele.
— E então? — perguntou ela. — O que achaste do livro?
— Adorei cada página. E tu sabes que não leio histórias
daquelas. Prefiro ler histórias sobre Robinson Crusoe ou sobre
rebeliões piratas. — Levantou o braço como se estivesse a
segurar uma espada. — Mas, caramba, Pegs, o teu livro é mesmo
bom.
— Obrigada. Isso é muito importante para mim.
Girou sobre os calcanhares e retomou a marcha em silêncio
durante um minuto. Ao seu lado, apenas a respiração do mar.
As mãos deles tocaram-se e, por instantes, ela pensou que ele
poderia pegar na sua mão. Mas claro que isso nunca aconteceria.
Wren Parker era o tipo que namorava com a rainha do baile. Era o
shortstop da equipa da Liga de Basebol de Cape Cod e o tipo que
conseguia navegar um veleiro numa tempestade e regressar
ileso. Não era o tipo que pegava na mão de Peggy Andrews. Ele
tratava-a como a irmã que não tinha.
Quando ela foi excluída pelos outros alunos na escola, ele
convidou-a a sentar-se à mesa do almoço com a sua sandes de
mortadela espapaçada. Quando ela não foi convidada para o baile
de finalistas, achou que ela estaria triste e convidou-a. Claro que
ela recusou; a ideia de se vestir a rigor e de se comportar horas a
fio parecera-lhe insuportável. Quando uma tempestade causou
um apagão geral, ele levou-lhe velas e fósforos.
Houve uma altura em que Peggy sonhou que Wren Parker lhe
dissera que a amava — em detrimento daquelas raparigas da
cidade com a pele macia e lábios brilhantes. Mas isso foi há muito
tempo. Tanto quanto Peggy sabia, ele continuava a namorar com
a rapariga de olhos azuis de Hyannis Port que conhecera num
torneio de basebol. Podia até estar já à procura de um anel de
diamantes para a pedir em casamento.
— Como está a correr a procura de emprego? — perguntou ela.
— Está a correr bem. Tenho de decidir se aceito um emprego na
OSHA, em Cape Cod, ou se abro as asas. — Pôs-se de frente
para ela, avançando às arrecuas enquanto falava. Estava tão
cheio de energia que Peggy pensou que ele poderia entrar em
autocombustão.
— E onde te levariam essas asas?
— Estou a fingir que me posso transformar em qualquer coisa,
como no teu livro.
— Ah, já percebi. — Peggy abriu as mãos e empurrou
suavemente o seu peito, e ele manteve a passada. Virou-se para
voltar a caminhar ao lado dela.
— Tive uma oferta de emprego na Califórnia. Tenho um mês
para decidir.
— Porquê um mês?
— Porque tenho mais um trabalho para entregar antes de
terminar o curso. — Deu-lhe um toque ligeiro com o ombro. —
Podias fazê-lo por mim.
— E eu lá tenho tempo — disse ela, com uma gargalhada. — O
meu editor pediu-me o próximo livro dois meses mais cedo.
Recebo um bónus chorudo se o acabar, por isso estou a trabalhar
como uma doida.
— Estava a brincar, Pegs.
— Eu sei. Eu sei.
— Um dia ainda hei de conseguir que encares as coisas com
mais leveza.
— Mas eu encaro as coisas com leveza — disse ela, na
defensiva. — Olha, estou a passear na praia, leve como uma
pena.
Ele riu-se com gosto, e ela adorava quando o seu riso
estrondoso chegava ao céu.
Wren olhou-a nos olhos.
— Pareces triste. Está tudo bem?
— Recebi uma chamada estranha hoje de manhã e vim
caminhar para ver se esquecia.
— E eu vim interromper.
— Não faz mal — disse ela, e era verdade. Qualquer outra
pessoa que interrompesse a sua longa caminhada ao fim da tarde
tê-la-ia irritado, mas não Wren.
— Quem é que te ligou?
— Foi uma mulher de Londres… — Peggy parou a meio, não
para criar suspense, mas para encontrar a melhor forma de
explicar a Wren. As ondas massajavam a areia, avançando cada
vez mais pela praia, impulsionadas pelo vento. — Disse-me que a
história do Bosque dos Sussurros era dela. Que era o seu mundo
de infância.
— E será que isso pode ser verdade?
— Impossível. Eu e a minha mãe inventámos tudo. Foi nossa
durante toda a minha vida. É por isso que faço questão de a
envolver. Ela contou-me a primeira história quando era miúda,
para me manter calma depois da morte do meu pai, para que eu
tivesse algo só meu.
— Ah…
— Às vezes, acrescentava algo à história e via o meu pai no
Bosque dos Sussurros, mas acabei por transformá-lo no cenário
das aventuras das irmãs órfãs.
— É fantástico. Pensar que consegues criar isso do ar, do nada.
Contaste à tua mãe?
O tom de voz quando se referiu à mãe dela era o mesmo de
sempre, eivado de desdém. Peggy sabia porquê, mas não
gostava de o ouvir falar assim. A sua mãe não nutria simpatia por
Wren. Não lhe dizia quando Wren telefonava. Se ela estivesse a
trabalhar, não o deixava entrar em casa. Durante um ano, depois
de ele ter estado com um grupo de miúdos da cidade que se
tinham atirado do cais, causando a morte de um deles, a mãe
proibiu Peggy de falar com ele.
Ela não gostava de Wren e sabia que Peggy gostava.
— Não, não lhe contei. Sabes bem como ela reagiria. Seja
como for, não deve ser nada.
Caminharam durante algum tempo em silêncio. Ela sabia o que
aí vinha. Wren estava ocupado. Tinha de se ir embora. Como
sempre. Ele andava sempre a mil à hora e ela a passo de
tartaruga.
Mas não foi isso que aconteceu.
— Conta lá, Pegs, andas com alguém neste momento?
Ela estancou.
— Neste momento? Até parece que já andei com alguém.
— Vá lá, deves ter alguém. És praticamente uma celebridade, e
há tanta coisa a acontecer em Provincetown. A cena musical é
fenomenal e tu és…
— E eu sou o quê? — Ela retomou a marcha.
— Tão gira.
Ela não se riu.
— Giros são os cachorros, e tu não regulas.
— É possível — concordou ele, com um brilho nos olhos.
— E o senhor Parker, tem alguém?
Wren abrandou o passo para um ritmo mais fácil, e Peggy
agradeceu.
— Mais ou menos. Acho que ela pensa que somos namorados,
mas só saímos algumas vezes para dançar.
— Aposto que ela usa vestidos com margaridas, e que tem os
cabelos loiros apanhados num rabo-de-cavalo perfeito.
Ele riu-se tanto que teve de parar e de se inclinar, apoiando as
mãos nos joelhos.
— Caramba, acertaste em cheio.
— Claro que sim. E tem uma alcunha gira, como Bonequinha ou
Docinho.
Desta vez, ele não se riu. Uma forte rajada de vento quase os
arremessou para a frente, e eles pararam para a enfrentar. O
cheiro a mar tomou conta deles.
— Desculpa ter interrompido o teu tempo de reflexão — disse
Wren.
— Não faz mal. Estava a tentar ter ideias para a próxima cena
com as órfãs, mas só pensava naquele estranho telefonema.
Obrigada por me teres distraído disso.
— Porque haveria uma mulher de Inglaterra de te ligar a
propósito do teu conto de fadas se não houvesse pelo menos uma
ponta de verdade naquilo que ela disse? Não a ignores. Vê se
descobres o que ela quer.
— É demasiado estranho.
— De que tens medo?
— De nada. O que queres dizer com isso?
— Há algum motivo para não quereres saber o que ela quer,
para teres medo de onde isso te pode levar? — Encolheu os
ombros. — Mas que sei eu? Sou apenas mais um tipo que quer
mergulhar nas ondas e descobrir o que se passa lá em baixo.
Ele não tinha intenção de a magoar.
— Tu não és apenas mais um tipo — disse ela, e as palavras
saíram-lhe da boca antes que ela pudesse contê-las.
— Ora, ora — disse ele, com um sorriso. — Até que enfim que o
reconheces.
Ela deu-lhe um leve murro no braço.
— Para. Tu percebeste o que eu quis dizer.
— Espero que sim.
CAPÍTULO 14

Março de 1960

Hazel andou de um lado para o outro na cozinha, com o telefone


desligado ainda pendurado. Peggy Andrews tinha-lhe desligado o
telefone na cara. E agora?
Neste momento, estava na posse de um conjunto de ilustrações
originais danificadas que não podia pagar e tinha faltado ao
encontro com Barnaby, que devia estar preocupado. Os
pensamentos sucediam-se a uma velocidade vertiginosa e ela
não sabia o que fazer a seguir.
Chegou ao fundo do corredor, abriu a porta do armário de
roupas de cama e tirou um baú de madeira com trincos de latão
fosco. Atirou para o lado a pilha de casacos, chapéus e cachecóis
que estavam por cima do baú e que levantaram uma nuvem de
poeira ao cair no chão. Abriu a fechadura com uma chave que
guardava na parte interior da moldura do armário.
Hazel levantou a tampa do baú. Em cima estava o urso
esfarrapado de Flora. Por baixo, cuidadosamente dobrados em
pilhas separadas, estavam os esboços de Harry, alguns artigos de
jornal e fotografias. E, no fundo, enterrado debaixo de tudo o
resto, estava o molho de cartas de Harry atado por um cordel.
Não as tirou, deixou-as estar no canto bolorento do baú.
Hazel nunca contou à mãe que ainda tinha o Berry. Na verdade,
ela também nunca tinha perguntado pelo urso de peluche. Hazel
pensou que a omissão seria tão reprovável como o facto de a
mãe ter voltado a casar e ter tido outro filho, um adolescente
chamado Barclay — um nome pretensamente real —, cujo
apelido, Tennyson, lhe valera o diminutivo Tenny. Os olhos de
Hazel reviravam-se sempre que a mãe o tratava assim, e esta já
lhe tinha pedido para parar.
— É um nome de família, Hazel. Não sejas indelicada. Ele é teu
irmão.
As costuras por baixo do braço esquerdo do urso estavam a
desfazer-se. Levou o pobre animal maltratado para a cozinha.
Revirou a gaveta das tralhas, encontrou uma agulha e linha e
coseu a zona rasgada. Puxou o último ponto, atou-o e cortou a
ponta. Pousou o Berry na mesa da cozinha ao lado do embrulho.
O urso devolveu-lhe um olhar expetante.
Hazel pensou na porta cintilante do Bosque dos Sussurros e
nos pássaros, leões e peixes em que ela e Flora se haviam
transformado há tantos anos. Pensou no rio, e no Berry, que tinha
sido encontrado nas suas margens lamacentas. Pensou na
pequena Flora, a debater-se no Tamisa.
Para!
Era nesta altura que costumava instalar-se o pânico: uma
torrente de adrenalina misturada com o cheiro a relva e lama. Em
seguida, vinham as lembranças de Harry, assim como a culpa por
ter negligenciado a irmã por estar sozinha com ele, por ter
permitido que a emoção do desejo precoce a fizesse esquecer o
que era realmente importante: a sua irmã.
Hazel afastou aqueles pensamentos e pegou no telefone para
marcar o número que sabia de cor.
— Estou? — atendeu Kelty, num tom de voz melodioso.
— Podes vir cá a casa? Tenho uma coisa para te contar.
Meia hora depois, Kelty irrompeu pela porta sem bater. Trazia
um minivestido novo com padrões geométricos em amarelo e
azul. O facto de ela estar sempre chique costumava irritar Hazel,
mas agora tinha mais em que pensar. Hazel olhou para trás de
Kelty.
— Onde está a Midge?
— O museu está fechado hoje. O Fergus ficou em casa a tomar
conta dela. — Kelty pousou a mala no banco da entrada. — Seja
como for, ela prefere estar com ele.
— Duvido. — Hazel adorava o marido de Kelty, o diretor do
Victoria and Albert Museum, mas todos sem exceção preferiam
Kelty. Hazel levou a amiga pelo corredor escuro e acendeu a luz
do teto quando se aproximaram do armário, com a porta aberta
junto ao baú.
— Encontraste um tesouro? — perguntou Kelty, enquanto se
sentava no chão, dobrando delicadamente as pernas em V à
esquerda, como se estivesse a posar para uma fotografia.
— Nem por isso — respondeu Hazel, sentando-se ao lado dela.
Kelty espreitou para dentro do baú e depois olhou para cima,
com os olhos arregalados.
— São os artigos de jornal da altura em que a Flora
desapareceu. — Voltou a olhar lá para dentro. — E os esboços do
Harry!
— Sim.
— O que se passa?
Hazel sentou-se para trás, tranquilizada pela presença de Kelty.
O baú aberto era um libelo acusatório, com o seu conteúdo
escondido durante tanto tempo. Hazel pegou numa edição
amarelada do Oxford Times.
— Nunca fizeram capa com a Flora. Trataram o seu
desaparecimento como se fosse apenas um incómodo.
— Podemos levar isto para a mesa da cozinha? — perguntou
Kelty, em surdina.
Fizeram várias deslocações de um lado para o outro, até terem
sobre a mesa os esboços de Harry e os artigos do Oxford Times,
amarelecidos e enrugados nas pontas. Uma fotografia de Flora,
do tamanho de um selo postal e tirada por altura do seu sexto
aniversário, em julho de 1940, surgia no canto superior esquerdo
da página 4. A história do seu desaparecimento estava resumida
em breves frases por baixo.
— O Blitz ocupou todas as primeiras páginas do país —
constatou Hazel. Kelty folheou as páginas.
— Sim. Crianças mortas nas ruas de Londres, e Flora perdida
no caos.
BOMBA ALEMÃ MATA 64 NA ESTAÇÃO DE METROPOLITANO DE BALHAM, EM
LONDRES.
CHURCHILL SUCEDE A CHAMBERLAIN COMO LÍDER DO PARTIDO
CONSERVADOR.
A PRINCESA ISABEL FAZ O SEU PRIMEIRO DISCURSO PÚBLICO NA BBC:
TEM 14 ANOS.
Flora era uma nota de rodapé entre os grandes acontecimentos
históricos.
Hazel pegou nos esboços de Harry, alguns do tamanho da
palma da mão de uma criança, e outros desenhados em folhas de
papel arrancadas da parte de trás dos manuais escolares.
Ocasionalmente, quando Bridie tinha dinheiro para tal, comprava
um bloco de desenho a sério.
Os olhos de Hazel lacrimejaram perante o esboço intrincado de
um navio de três mastros num mar de estrelas e nuvens.
— Ele fez este desenho no dia a seguir a lermos a história de
Peter Pan à Flora. Deixou-o para nós na manhã seguinte. —
Outro dos seus esboços retratava uma árvore despedaçada
tombada nas ervas. — Este foi no dia em que um raio caiu num
carvalho. — Havia um desenho de Hazel a correr pelos bosques.
— Ele desenhou isto no solstício de verão.
— Porque guardaste estes desenhos todos? — inquiriu Kelty,
em voz baixa.
— Eu guardei tudo — admitiu Hazel. — Sempre pensei que um
dia encontraria uma pista esquecida.
— Estou sempre a pensar na Flora. Ainda… — disse Kelty.
— Como poderíamos não pensar? — Hazel fixou o chão e
depois olhou para a amiga. — Ela está em todo o lado e em lado
nenhum ao mesmo tempo. Quando os polícias viram os esboços
do Harry, foram horríveis com ele, acusando-o de ser obcecado
por nós e de ter feito algo terrível à Flora. Interrogaram-no até à
exaustão.
— Oh, não. Eu não sabia disso.
Hazel olhou para Kelty. Ela tinha uma aura à sua volta, como
naquela tarde longínqua em que se conheceram. Uma
intensidade vívida atraía toda a gente para a sua chama. A beleza
de Kelty não era falsa como a de algumas mulheres com
maquilhagem perfeita, roupas feitas à medida e colares de
pérolas. A sua beleza era mais selvagem. Parecia sempre, como
agora, que ela tinha acabado de chegar de uma caminhada ou de
um mergulho.
— Kelty, quero falar-te do Bosque dos Sussurros.
— Bosque dos Sussurros? — Kelty sentou-se à mesa e
tamborilou com os dedos no tampo de forma ritmada. — Espera,
eu conheço esse… Bosque dos Sussurros.
— Como assim? — admirou-se Hazel.
— Tinha-me esquecido. Até agora. Lembras-te do primeiro dia
em que fui a casa dos Aberdeens? Estava cheia de medo e
aquela mulher…
— A Sra. Marchman — concluiu Hazel. — A bruxa.
— Sim. Céus, tinha bloqueado o nome dela. — Kelty
estremeceu de forma exagerada. — Enfim, quando fomos para o
quarto, durante alguns minutos fiquei a sós com a Flora. Eu
chorava como uma criança de 2 anos, e ela estava calma como
um pássaro no ninho. Disse-me para não me preocupar porque tu
nos levarias ao Bosque dos Sussurros.
— Lembras-te disso? — Hazel inclinou-se para a frente.
— Sim. Foi então que entraste e me contaste a história de
Frideswide. E eu pensei que era a isso que ela se referia.
— Foi só isso que ela te contou?
— Ela tinha o quê? Cinco anos? Sim, foi só isso. Mas lembrei-
me agora porque era um nome muito bonito. Fiquei a pensar
nisso durante algum tempo, mas depois esqueci-me.
— Então, se a Flora falou contigo sobre isso, pode ter dito
alguma coisa ao Harry, à Bridie, à nossa mãe ou…
— Às enfermeiras. Ou ao padre Fenelly. — Kelty pegou no livro,
com a sua fantasiosa capa azul e verde, onde se viam duas
meninas com cabelos esvoaçantes. — Mas porque é que nunca
me falaste do Bosque dos Sussurros?
— Foi o mundo que criei para mim e para a Flora quando
precisámos de algo só nosso. Por mais amorosa e gentil que
fosse a Bridie, ela era mãe do Harry, não nossa. Éramos
hóspedes naquela casa. Mas o Bosque dos Sussurros era só
nosso. No dia em que a Flora desapareceu, tenho a certeza de
que foi à procura dele.
— Como podes saber? — Kelty pegou no livro. — Então,
inventaste este lugar?
— Não exatamente. O meu mundo era mais uma terra
imaginária. O livro é mais um conto de fadas, ao qual a autora
acrescentou outras personagens de contos de fadas. — Hazel foi
até à janela da cozinha e abriu-a ligeiramente para deixar entrar o
ar da primavera. — Neste livro, há outras diferenças. A autora
americana pegou no nosso Bosque dos Sussurros seguro e
transformou-o num lugar onde são travadas batalhas e é
necessário salvar uma rainha. A Peggy Andrews fez do Bosque
dos Sussurros um mundo de aventuras assustador para duas
meninas. Continua a ser o nosso lugar, mas os bosques foram
invadidos por forças obscuras e são as meninas que têm de
salvar o reino. Nada disso foi ideia minha. Nunca quis que a
nossa história fosse uma espécie de conto moral… o Bosque dos
Sussurros era um lugar maravilhoso onde aconteciam coisas
mágicas, o nosso refúgio de um mundo que ardia à nossa volta.
Kelty tamborilou com os dedos na capa do livro e depois virou-o.
— Quem é esta Peggy Andrews?
— É isso que tenciono descobrir. E se ela for…
— A Flora. — Kelty recostou-se e cruzou os braços. — A
aventura está à nossa frente. — As suas faces sardentas
ergueram-se com o sorriso. — Então, este livro é a nossa primeira
pista em vinte anos. Onde vamos primeiro? À América, em busca
da autora? Podemos ir, o Fergus pagava as passagens.
— Claro que sim. — Hazel olhou para o telefone. — Eu
telefonei-lhe, sabes?
— O quê? Ganhaste a lotaria?
— Estou a enterrar-me em dívidas, mas é pela Flora.
Kelty acenou com a cabeça.
— Um excelente motivo. O que é que ela disse?
— Pouca coisa, e desligou-me o telefone na cara, por isso, para
já, vou falar com a Bridie Aberdeen. Consigo pensar em coisas
melhores para fazer do que enfrentá-la. Não voltei a falar com ela
ou com o Harry desde que me vim embora. Tenho de descobrir se
a Bridie sabia do Bosque dos Sussurros e se contou a mais
alguém.
— E tens de falar com o Harry.
— Para já, não.
— Hazel, não podes ignorá-lo para sempre.
— Posso ignorá-lo o tempo que for possível. — Ela pensou na
jura de infância que fizera naquela igreja húmida. Pensou nos
seus últimos momentos com Harry. Pensou no beijo que trocaram
no bosque. Lembrou-se de ter gritado a Bridie e a Harry que
nunca mais queria vê-los.
— Alguma vez voltaste a Binsey? — perguntou Kelty.
— Não. — Hazel sentiu um arrepio, embora a cozinha estivesse
quente. — Fui cruel. Abandonei uma família que me amava. Mas,
Kelty, foi tudo demasiado horrível, e o tempo foi passando. O que
podia eu dizer? Ou fazer? Fiquei paralisada com a tristeza e
quando finalmente voltei ao normal, anos mais tarde, fiquei sem
saber como os abordar, ou o que dizer. E a verdade é que
nenhum deles veio à minha procura. — Uma raiva defensiva
preencheu as palavras que Hazel proferiu a seguir. — Pareceu-
me melhor deixar tudo no passado. Era demasiado penoso para
todos nós trazer tudo aquilo de volta. Não havia e não há nada
que eu possa fazer para emendar a situação.
Kelty colocou o braço à volta do ombro de Hazel, e ambas
ficaram a olhar para o livro azul e verde, para o campo, as irmãs e
o castelo em pano de fundo, e para o caminho que serpenteava
pelas árvores até chegar ao rio de estrelas. Hazel ponderou se
seria tarde, se o caminho que conduzia até Flora já estaria há
muito coberto pela vegetação.
CAPÍTULO 15

Setembro de 1939

Hazel e Flora revezaram-se na casa de banho antes do primeiro


jantar em Binsey. Hazel lavou a cara e as mãos da irmã para
eliminar a sujidade da viagem, assim como o fumo e a poeira da
estação. Olhou para o espelho ondulado e viu-se a si mesma, ao
seu cabelo embaraçado e ao rubor que lhe subira à cara. Hazel
tentou convencer-se a ser corajosa.
No quarto, mudaram de roupa e optaram pelos vestidos azuis
com golas peter pan brancas e por um par de meias dobradas
pela mãe. Hazel entrançou o cabelo de Flora como a mãe lhe
tinha ensinado e perguntou:
— Estás pronta?
— Ainda não — respondeu a irmã.
— O que se passa? — Hazel inclinou-se e tocou ao de leve no
nariz de Flora, que olhou para ela, timidamente.
— Isto não é o Bosque dos Sussurros, pois não? Ainda estamos
no mundo real, verdade?
Hazel pensou em todas as vezes que tinham visitado o Bosque
dos Sussurros nos últimos dias e sorriu.
— Claro que é o mundo real. Nós estamos numa casa em
Binsey, onde ficaremos até que as bombas parem de cair. Não é a
nossa casa, mas também não é o nosso mundo, Flora.
— Neste momento, sinto que me posso transformar no que
quiser.
Ela precisava de explicar tudo? Bem, talvez precisasse. Tal
como a mãe faria. As irmãs falavam em voz baixa, e quase
encostavam as testas quando inclinavam as cabeças uma para a
outra. Do outro lado da porta, chegou-lhes o tilintar de tachos e
panelas e as vozes abafadas de Harry e da Sra. Aberdeen.
— Para já, só podemos ser nós mesmas — disse Hazel. — E
não podes desaparecer. Temos de ir jantar com a Sra. Aberdeen e
o filho. E depois esperamos.
— Esperamos pelo quê?
— Que a mãe nos venha buscar.
As irmãs deram as mãos e seguiram para a cozinha.
A Sra. Aberdeen estava junto ao fogão, com uma colher de pau
na mão, a mexer uma panela que cheirava a ensopado de
borrego.
— Meninas! Sentem-se.
Quatro cadeiras de madeira desirmanadas estavam
aglomeradas junto a uma mesa que tinha sido posta com pratos
de porcelana de cor creme com flores verdes e amarelas nas
bordas. Os guardanapos de linho verde, com os rebordos rígidos,
tinham sido obviamente passados a ferro. Quatro copos brancos
estavam dispostos à volta da mesa, e Harry estava a pôr os
talheres.
Os últimos meses tinham sido tão caóticos na sua casa, em
Bloomsbury, que Hazel nem se lembrava da última vez que a mãe
tinha posto a mesa com os talheres Arthur Price que guardava na
caixa de pinho. Às vezes, chegavam a comer com o prato ao colo,
enquanto ouviam Chamberlain a anunciar as últimas notícias da
guerra através do rádio com estática. A mãe ficava muda a ouvir,
enquanto as meninas comiam em silêncio.
Harry pousou o último garfo e olhou para cima. Esperou que
elas se sentassem antes de tomar o seu lugar. Os seus caracóis
pareciam saídos de um vendaval e o seu sorriso fazia parecer que
tinha acabado de ganhar alguma coisa. Fez eco das palavras da
mãe:
— Sentem-se!
Pousou a terrina com o ensopado fumegante diante de Hazel.
Cenouras e batatas, raminhos de tomilho a flutuar no molho. A
Sra. Aberdeen abriu o forno e tirou um tabuleiro de biscoitos
salgados, colocou-os numa tigela de cerâmica e levou-os para a
mesa. Assim que ela e Harry se sentaram, a Sra. Aberdeen juntou
as mãos em oração, e todos fizeram o mesmo.
— Senhor, abençoa-nos e a estes alimentos que vamos receber
pela Tua graça… — Hazel abriu o olho esquerdo e olhou em volta
da mesa enquanto a Sra. Aberdeen abençoava a comida. Claro
que Harry estava a olhar para ela quando ambos deviam ter os
olhos fechados. Ele sorriu-lhe e voltou a fechar os olhos. Harry
guardaria o seu segredo. — … por Jesus Cristo, nosso Senhor,
ámen.
A Sra. Aberdeen sentou-se direita e olhou para as meninas.
— Acho que vão adorar a nossa aldeia. Não podia ser mais
encantadora. Vivi aqui toda a minha vida. Não é bem uma vila,
nem uma cidade. Só há uma estrada para entrar e outra para sair.
— Onde está o teu pai? — perguntou Flora, enquanto
observava Harry com adoração.
— Ele… partiu. — Harry olhou para a mãe, que acenou com a
cabeça.
Hazel ficou sentada em silêncio, a pensar que aquela evasiva
escondia uma história que ela queria conhecer. Se alguém saía,
desaparecia, partia de carro ou simplesmente era chamado para
longe, geralmente havia um motivo. Ela adorava saber o porquê
de as coisas acontecerem, porque, se soubesse, era bem
possível que pudesse evitar que voltassem a acontecer.
A Sra. Aberdeen voltou a sua atenção para Hazel.
— O meu nome próprio é Bridgette, e não vou admitir que me
tratem por Sra. Aberdeen, são demasiadas sílabas. Como o meu
nome é um trava-línguas, vão ter de me chamar Mamã Bridie.
Bridie era a minha alcunha quando era pequena.
— Mas nós já temos uma mãe — disse Hazel.
Em vez do olhar displicente a que Hazel estava habituada a
receber dos adultos, a Sra. Aberdeen acenou com a cabeça.
— Pois bem, Hazel Linden. Então e que tal… Tia Bridie?
— A senhora não é nossa tia. — A voz de Hazel soou mais dura
do que ela pretendia.
— Então, vão tratar-me por…
A Sra. Aberdeen fez uma pausa suficientemente longa na sua
incerteza para que Flora proclamasse:
— Só Bridie!
A Sra. Aberdeen levantou o braço como uma rainha que segura
num cetro.
— Está proclamado: passarei a ser apenas Bridie. — Sorriu. —
Amanhã, vamos a Oxford enviar o postal para que a vossa mãe
saiba que estão bem. E convidamo-la a vir visitar-nos. — Bridie
mergulhou um biscoito no guisado. — Tenho mesmo de ir ao
mercado, por isso posso levar o correio. O equinócio de outono é
daqui a duas semanas e precisamos de mantimentos.
— O que é um equinócio? — Flora arrastou a palavra longa e
melódica, tropeçando nos sons finais.
A Sra. Aberdeen pigarreou e disse no seu tom de voz mais
harmonioso:
— Em tempos que já lá vão…
— Tal como a nossa história! — exclamou Flora.
Hazel meteu a mão por baixo da mesa e apertou o joelho da
irmã, avisando-a para ficar calada. Bridie continuou como se não
tivesse sido interrompida.
— Havia uma deusa chamada Perséfone que, durante o verão,
vivia à superfície da Terra com a mãe, mas que, todos os anos,
quando chegava o dia do equinócio, era obrigada a regressar ao
submundo, para junto do marido, Hades.
— Mãe! — exclamou Harry. — Não as assustes. Elas ainda
agora chegaram.
— Não é uma história assustadora — disse Flora.
Hazel observou Bridie com curiosidade. Quem era aquela
mulher que contava histórias sobre deusas? A sua mãe nunca
lhes tinha contado uma história que não estivesse num livro, algo
que ela pudesse ler. Hazel não conseguiu evitar. A curiosidade
veio à tona.
— Porque vivia ela no submundo? Porque é que Hades não
passava o verão com ela?
— Boa pergunta, Hazel. Sabes, sendo senhor do submundo,
Hades não podia sair de lá.
Hazel ponderou naquelas palavras.
— Então, ele não podia sair, mas ela sim?
— Ela podia sair durante seis meses do ano. Juntava-se à mãe
no equinócio da primavera e depois… — A Sra. Aberdeen
emudeceu, como se a página tivesse chegado ao fim. — Esta
história tem de ficar para outro dia.
Harry mexeu o guisado com a colher.
— A minha mãe gosta de histórias — rematou.
— Nós também! — disse Flora, mas o seu ciciado fez com que
as palavras adquirissem uma sonoridade formal e doce.
Bridie e Harry olharam para Flora e sorriram. Hazel reparou no
olhar, e algo de ruim dentro de si fê-la querer gritar que era ela,
Hazel Mersey Linden, quem criava todas as histórias delas, e que
estas eram apenas para a Flora.
Bridie não precisava de saber tudo sobre tudo.
Mas Hazel também sabia que as histórias não pertenciam a
ninguém. Estavam por toda a parte. Devia estar feliz por terem
encontrado um lugar onde uma mãe contava histórias, mas Hazel
resistia a sentir-se feliz; não era justo para a mãe, que, por esta
altura, estaria muito preocupada.
Só de pensar na mãe, os olhos de Hazel começaram a
lacrimejar, sem que Bridie e Harry se apercebessem, visto que
dedicavam toda a atenção a Flora. E porque não haveriam de o
fazer? Ela era a mais bonita, a que tinha a voz melodiosa, os
caracóis loiros e o nariz de botão. Flora era a única que merecia
ser amada. Hazel sabia que Flora era aquela que todos
adoravam.
CAPÍTULO 16

Setembro de 1939

Naquela primeira noite em Binsey, as irmãs enroscaram-se na


cama. Flora sussurrou para Hazel:
— A Bridie é simpática.
— Sim — respondeu Hazel. — E nós também temos de ser
simpáticas, como disse a mãe. Tudo isto vai passar. A Inglaterra
vai ganhar a guerra, e nós vamos voltar para casa. Temos de ser
pacientes.
Flora ficou quieta e calada, como se tivesse acabado de ouvir a
primeira história de Hazel em que não acreditava.
— Leva-me ao Bosque dos Sussurros — pediu, com urgência
na voz.
— Está bem. — Hazel fez uma pausa dramática e respirou
fundo antes de começar. — Estou a ver ali uma porta cintilante. —
Hazel acenou com a mão no ar, e ambas se aconchegaram
enquanto ela encontrava as palavras que já a aguardavam.
— Não há muito tempo e não muito longe daqui, num mundo
que está mesmo ao nosso lado — sussurrou Hazel na escuridão
—, havia um lugar onde tudo podia acontecer, onde podíamos ser
tudo aquilo que quiséssemos, onde um rio de estrelas corria pela
floresta. Procura as portas escondidas! Estão por toda a parte,
mas só são visíveis para aqueles que são dignos. E nós somos
dignas.
— Sim — disse Flora, numa voz já muito ensonada.
— A floresta está impregnada com o cheiro doce dos pinheiros
e algo…
— Doce — interveio Flora. E Hazel prosseguiu:
— Sim, doce como caramelo derretido.
— O que é que nós somos? — perguntou a irmã,
aconchegando-se mais, com os olhos bem fechados.
— Espera um pouco. Está a chegar. Sinto-o no vento que sopra
por entre as árvores. Segue-me pelo caminho tortuoso até ao rio.
Vem comigo, Flora.
— Estou a ir!
— Acho que tenho uma pata… E tu?
— Oh, sim, é grande — exclamou Flora. — Que tipo de pata é?
— Eu acho que nós somos…
— Leoas! Somos leoas! — gritou Flora.
— E vamos ao rio beber estrelas — concluiu Hazel. — As
estrelas deixam as leoas mais fortes.
A voz de Hazel guiou-as pela floresta. Passaram por um falcão
falante, por uma ponte de vidro e por baixo da copa das árvores
que entoam canções, até chegarem ao rio, sempre com uma
coruja a voar atrás delas, vigilante. E, ao longe, muito ao longe, as
torres de um castelo; um lugar maravilhoso onde poderiam chegar
um dia, se nunca desistissem.
Flora já estava a dormir antes de chegarem ao castelo e Hazel
interrompeu a história, ciente de que também ela estaria prestes a
adormecer, as suas pálpebras pesadas e densas. Mas não
adormeceu. Em vez disso, pensou na mãe e nos seus quartos
vazios.
Deslizou para fora da cama e acendeu o pequeno candeeiro de
cabeceira. Em cima da cómoda estava o postal que enviariam à
mãe na manhã seguinte. Pegou no lápis que guardava na mochila
e sentou-se na beira da cama para escrever, com o postal
equilibrado nos joelhos.
Pensou na mãe a abrir a caixa do correio de hora a hora, à
procura do postal. O que gostaria ela de ouvir?

Querida mãe,
Estamos num chalé acolhedor, em Binsey, com a família Aberdeen: uma
mãe, Bridgette, e o seu filho, Harry, que nos escolheram para viver com
eles. Por favor, vem visitar-nos. Estamos em segurança. Já temos muitas
saudades tuas. As tuas filhas que te adoram, Hazel e Flora.

Pôs o postal em cima da cómoda e deitou-se na cama ao lado


da irmã, enquanto pensava em que tipo de história se tinham
metido, se de conto de fadas ou de terror. Ainda não sabia.

Hazel sonhou com um postal a sobrevoar Londres, a voar rente


ao chão antes de chegar ao seu destino, e a entrar numa sarjeta
até se perder nos esgotos por baixo de Bloomsbury.
Acordou com a chuva a bater no telhado e a tilintar nos vidros
das janelas. O sonho não era uma premonição — esperava ela
—, era apenas o mundo exterior a entrar no mundo dos sonhos.
Hazel sacudiu o medo e levantou-se rapidamente, atraída pelo
aroma de algo substancial e saboroso.
Hazel levou a mão à maçaneta de latão e reparou num pedaço
de papel que tinha sido colocado debaixo da porta. Baixou-se
para o apanhar.
À luz ténue da manhã, Hazel contemplou um desenho a lápis do
Berry. Era um esboço extremamente realista, quase uma
fotografia desfocada, com o pelo do animal de peluche grosso e
até gasto nas patas onde Flora o segurava e esfregava contra a
cara. O Berry estava sentado, com a cabeça ligeiramente virada
para a esquerda, o focinho e o pelo macios perfeitamente
retratados pelo lápis.
O desenho era obviamente para Flora, e era ternurento. A
gentileza apagou o pesadelo de Hazel. Colocou o papel na mesa
de cabeceira de madeira antes de se dirigir para a cozinha, onde
Bridie preparava papas de aveia e salsichas.
— Bom dia — cumprimentou Hazel, insegura da sua voz
naquele lugar silencioso. Bridie virou-se.
— Bom dia, docinho. — Nunca ninguém tinha tratado Hazel por
docinho, uma alcunha que muito lhe agradou. — Vamos tomar o
pequeno-almoço?
— Sim. A Flora ainda está a dormir. Devo acordá-la?
— Deixa-a estar. Tudo isto foi um grande choque. Senta-te,
minha querida.
Hazel sentou-se, cruzando as pernas nos tornozelos como uma
rainha, porque queria que Bridie soubesse que tinha escolhido
bem, que tinha acolhido meninas bem-comportadas e educadas.
Bridie serviu as papas de aveia numa tigela, e as salsichas
cheiravam tão bem que Hazel só queria atirar-se a elas sem pedir
autorização.
As papas eram densas e grumosas, tal como ela gostava, com
um lago de natas por cima. Hazel mergulhou a colher e um caudal
de natas invadiu as papas. Comeu a primeira colherada. Embora
nunca o fosse admitir em voz alta, aquelas papas eram muito
melhores do que as da mãe. Que coisa horrível de se pensar.
— Gostas? — inquiriu Bridie.
— Oh, sim, muito! As natas…
— São da nossa vaca.
— Não as comprou no mercado? — Hazel demorou alguns
instantes a pensar naquilo. Nunca tinha pensado muito sobre a
origem das coisas, sabia apenas que a mãe comprava leite no
mercado e que o racionamento tinha imposto muitas restrições.
Bridie sentou-se ao lado dela.
— Assim que amanhece, o Harry vai ordenhar a nossa vaca.
Temos sorte. Nem toda a gente pode ter esse privilégio nos
tempos que correm.
— Oxalá tivessem uma vaca que desse açúcar. Não como há
tanto tempo…
Bridie riu-se.
— Tu, minha querida, vais dar-te muito bem aqui na casa dos
Aberdeens. O Harry fez bem em escolher-te. — Escolhê-la. O
Harry tinha-a escolhido. Hazel não conseguiu conter o sorriso. —
Olha, lá vem ele — disse Bridie, apontando para a janela.
Harry corria colina abaixo, em direção à casa, com o seu casaco
castanho e gorro de malha vermelho. Nesse instante, a chuva
parou e o sol irrompeu por uma nuvem baixa e plana, rasgando-a
como se fosse uma folha de papel. Os raios de luz, filtrados pela
neblina, incidiram sobre Harry quando ele parou na orla do
campo. Ergueu o rosto para o calor e sorriu antes de entrar
apressadamente pela porta.
Aquele lugar era maravilhoso, pensou Hazel. Uma imensidão de
verde para correr; o céu aberto que se fundia com um horizonte
de árvores não ofuscadas por uma catedral ou um edifício alto.
Era como se aquela viagem de comboio lhe tivesse revelado o
mundo, desdobrando-o em longas extensões de colinas
ondulantes e campos de urze. Vês, ouviu Hazel, o mundo é vasto
como nunca imaginaste. Sentiu peixes pequeninos a nadar no seu
estômago, e a certeza de que aquele mundo a mudaria para
sempre.
— Hathel! — Um grito angustiado. Hazel saltou da mesa,
tropeçando no pé de Bridie antes de desatar a correr para o
quarto, que ficava a poucos passos de distância. Abraçou a irmã e
garantiu-lhe que estavam a salvo, e que havia um belo pequeno-
almoço à espera.
— Pensei que me tinhas abandonado! — choramingou Flora.
— Nunca. Eu nunca te abandonarei.
CAPÍTULO 17

Março de 1960

Hazel caminhou ao lado do rio Tamisa em direção a Binsey e a


Bridie, com as palavras que havia dito há tantos anos a ecoar pelo
rio sinuoso: «Eu nunca te abandonarei.»
Ela tinha quebrado essa promessa.
As ervas primaveris cresciam tão verdes que pareciam pintadas
em tons de esmeralda. As suas sombras desenhavam padrões
rendilhados no chão. Na margem do rio, amieiros e choupos
erguiam-se bem alto, com rebentos verdes nos ramos. As flores
silvestres começavam a despontar, brancas como a neve,
vermelhas como as framboesas e azuis como o céu.
Era a primeira vez em vinte anos que ia ver Bridie, e começava
a desejar que Barnaby ou Kelty a tivessem acompanhado.
Naquela manhã, tinha tomado a decisão impulsiva de ir; Bridie era
a primeira pessoa na sua lista.
Hazel vestiu o impermeável e calçou as galochas antes de
apanhar o comboio na linha de Piccadilly em direção a Oxford.
Um taxista que cheirava a repolho deixara-a à entrada de Port
Meadow. Hazel tinha caminhado lentamente até Binsey, atenta a
tudo o que via à sua volta, enquanto passava pela ponte e entrava
na aldeia.
Parou na beira do caminho de terra e tocou na parte macia de
um cardo roxo, evitando os seus espinhos: eram as flores
preferidas de Bridie. Um coelho com uma orelha mais curta do
que a outra surgiu por entre as ervas, parou para olhar, e
desapareceu. Hazel sorriu tristemente ao pensar em todas as
vezes que Flora quis ser um coelho e em todas as vezes que ela
disse que não. Porquê? Não sabia.
Enquanto percorria o caminho, pensou que talvez devesse ter
trazido flores ou um bolo, ou pelo menos telefonado antes de lhe
aparecer à porta. Após vinte anos, talvez fosse necessário algum
decoro.
A manhã estava tão quente que Hazel despiu o impermeável e
pô-lo no braço quando passou pelo pub, The Perch. O Sr. Nolan
estava no alpendre, no mesmo sítio onde estivera o pai antes
dele. Preservava o sorriso amável e o aceno enérgico, assim
como o cabelo escuro ondulado e a camisa de ganga. Não
reconheceu Hazel, e ela ficou grata por isso. A aldeia estava
habituada a ver gente de Oxford a fazer a peregrinação até à
igreja e ao poço sagrado.
Naquela manhã, ela e Barnaby tinham seguido a sua rotina de
The Times, dois ovos quentes e chá com torradas. Nenhum deles
disse uma palavra sobre o Bosque dos Sussurros ou sobre as
ilustrações, até que ele finalmente perguntou:
— Já decidiste o que fazer com o… embrulho? Estou
preocupado, meu amor.
— Ontem à tarde, tentei devolvê-lo e agora é meu.
Ele recostou-se na cadeira com uma sobrancelha levantada.
— É teu? — Depois de ela lhe explicar tudo o que tinha
acontecido, ele abanou a cabeça. — Uau. Foi um golpe de sorte.
— Sorte? Barnaby, aquelas ilustrações valem uma fortuna. Não
sei como vou pagar ao Edwin. Mas hei de arranjar maneira.
Ele sorriu.
— Bem, já que danifiquei dois deles, vou ajudar…
— Não — cortou ela.
— Uma coisa é certa: temos a viagem a Paris daqui a… — pôs-
se a contar com os dedos, exagerando o movimento — dez dias.
— Depois beijou-a, antes de perguntar. — Quais são os teus
planos para hoje? Tu que agora és uma mulher livre, sem
emprego? Café com a Kelty? Compras em Carnaby? Fazer as
malas para Paris?
Não lhe tinha respondido, porque era Binsey que ocupava os
seus pensamentos. Barnaby deu-lhe um beijo de despedida e foi
buscar o casaco ao cabide junto à porta.
Agora, Hazel estava parada à entrada do chalé de Bridie. Havia
marcas de pneus gravadas na terra como tatuagens, e a água da
chuva enchia os buracos e refletia o sol alto. Alguns passos mais
à frente, o chalé parecia estar à sua espera, após uma pausa
intemporal.
Hazel ficou parada durante alguns instantes, a olhar para a casa
que foi o seu abrigo durante um ano. As pedras de múltiplos tons
de cinzento — da cor das rolas, das nuvens e quase brancas —
sobrepunham-se umas às outras, sólidas e desgastadas. A porta
azul tinha agora uma aldrava de latão. O jardim despontava com
folhas e ervas esmeralda, os narcisos brancos observavam-na
com os seus olhos amarelos.
Uma mulher veio abrir a porta, com a palma da mão a cobrir-lhe
a testa para tapar o sol da tarde. A inclinação da cabeça era-lhe
familiar.
Bridie.
O seu cabelo grisalho estava preso atrás num nó que começava
a soltar-se. Uma aragem levantou-lhe o vestido florido pela
bainha, fazendo o tecido rodopiar à sua volta.
— Estás aqui! — gritou ela. — Olá!
Será que Bridie sabia que era ela?
— Hazel! — Bridie correu para ela. — És tu? Meu Deus, és tu?
— Sim — respondeu Hazel. O seu coração começou a bater
forte quando viu a mulher a correr na direção dela, mas mesmo
assim ficou parada; expetante, porém tímida. A última vez que
tinha estado naquele lugar onde estava agora tinha gritado, alto e
bom som: «Eu nunca, mas nunca mais vos quero ver!»
Logo a seguir, os braços de Bridie cingiram-na contra si, e ela
sentiu o mesmo aroma a alecrim e ouviu o seu nome naquele tom
de voz suave.
— Hazel.
Hazel envolveu o corpo de Bridie nos seus braços, num
amplexo recíproco.
— Bridie — disse ela, baixinho, sentindo o conforto e o amor
que não sentia há vinte anos.
Bridie soltou-se, pôs as mãos nos ombros de Hazel e olhou-a
com uma ternura maternal.
— Deixa-me olhar para ti. Tão bonita e luminosa como eu me
lembrava. Até que enfim que vieste. Eu estava à espera.
— Esperou?
— Eu sabia que um dia virias. Sabia que, graças aos fados ou
às fúrias, encontrarias o caminho até à minha porta. Diz-me
porque vieste. — Bridie soltou uma gargalhada límpida. — Oh,
isso que interessa? Mesmo nada. O importante é que estás…
aqui. — A emoção embargou-lhe a voz e encheu-lhe os olhos de
água. — Entra. Entra. Temos muita conversa para pôr em dia.
O interior do chalé envolveu Hazel num abraço em tudo
semelhante ao de Bridie. Hazel olhou em volta e viu a mesa onde
tinha feito os trabalhos de casa com Harry; a manta axadrezada
no sofá; os toros empilhados num padrão cruzado junto à lareira
de tijolo. No ar, pairava o cheiro a fumo da lenha, chá forte e
alecrim. As molduras das portas de madeira eram cor de mel à luz
do Sol que entrava pelas janelas em forma de diamante. Não
havia nada que acusasse Hazel.
— Oh — sobressaltou-se quando a porta se fechou atrás de si.
Ambas entraram na cozinha e Hazel olhou em volta; a porta
para o pequeno quarto onde ela e Flora tinham dormido estava
fechada. Caminhou até lá, tocou na maçaneta de latão oval e
virou-se para Bridie, sentindo o picar das lágrimas que tinha
conseguido reprimir até então.
— Podes entrar — disse Bridie, em surdina. — Se quiseres.
Agora, é a sala de costura, e tem uma secretária, mas consigo
sentir-vos às duas quando entro; consigo sentir a vossa luz e a
vossa bela energia. Sinto-vos às duas.
Hazel afastou-se do quarto.
— Ainda não — disse.
Como se tivesse adivinhado a pergunta tácita de Hazel, que
perdurara todos aqueles anos, Bridie disse:
— Tinhas de ser tu a vir ter comigo, Hazel. Mesmo que
quisesse, não podia ter-te procurado.
— Porquê?
— Eu tentei uma vez, há muitos anos, mas a tua querida mãe
deixou bem claro que tu precisavas de sarar, que não podias
reviver aquele tempo vezes sem conta. E eu compreendi, mesmo
que aquilo me tenha partido o coração. Mas fiquei à espera.
Era maravilhoso ter alguém à sua espera, pensou Hazel. Ter
alguém que aguardasse ansiosamente a sua vinda era
absolutamente glorioso.
Hazel reparou num casaco de homem que estava pendurado
numa cadeira da cozinha e num par de botas grandes e muito
enlameadas que estava à direita da porta das traseiras. Bridie
sorriu quando percebeu o que tinha captado a atenção de Hazel.
— Sim, eu casei.
— Oh, Bridie! O seu… o seu ex-marido voltou?
Bridie abanou a cabeça.
— Não.
— E quem é o seu marido? Eu conheço-o?
Bridie sorriu timidamente e acenou com a cabeça de forma
quase impercetível.
— É o Johnny Nolan.
— O Sr. Nolan? — espantou-se Hazel. — Vi-o quando vinha
para cá! Nunca na minha vida teria adivinhado que era ele.
— A pária da aldeia casou-se com o dono do pub — disse ela,
com um sorriso.
— Eu acho isso maravilhoso — disse Hazel.
— Mas não foi por isso que vieste até aqui. O que te trouxe
finalmente até mim?
— Lamento muito. — Hazel proferiu as palavras antes de ter
noção do que estava a sair da sua boca. Talvez devesse ter
usado o caminho até aqui para pensar no que dizer.
Bridie olhou por cima do ombro enquanto enchia a chaleira no
lava-loiça da cozinha.
— Pelo quê, querida?
— Por tudo. Estraguei tudo. A sua vida. A do Harry. De toda a
gente. A da minha mãe.
Bridie pôs a chaleira no fogão e acendeu o lume alto. Virou-se,
pousou as palmas das mãos na bancada atrás de si, inclinou a
cabeça como se fosse um pássaro e abanou-a ligeiramente.
— Como assim? Não estou a perceber.
— Aquilo que aconteceu. — Hazel afundou-se numa cadeira da
cozinha. — Quando a Flora desapareceu, soube que a culparam.
Li os jornais. Eu sei. E ao Harry também.
— É o trabalho da polícia. — Bridie aproximou-se de Hazel e
sentou-se ao lado dela.
— Na altura, não tive coragem para lhe contar a verdade, mas
estou aqui para o fazer.
— Vieste até aqui porque tens algo para me contar? —
perguntou Bridie.
— Sim.
— Falamos enquanto tomamos um chá. — Bridie foi buscar
chávenas, cubos de açúcar e natas. Assim que a chaleira
assobiou, ela serviu o chá. Não disse mais nada, limitou-se a fixar
Hazel com o olhar que tinha derretido o coração e o medo dela no
dia em que chegaram de Bloomsbury.
— Bridie, sabia das histórias que eu contava à Flora?
— As que lhe lias? — Bridie olhou para cima, como se a
memória estivesse no teto. — Aquela criança adorava as histórias
do Ursinho Pooh, sobretudo do Tigre, e do Peter Pan.
— Não. Não me refiro a essas histórias. Aquela que eu inventei.
— Inventaste uma história? Que maravilha!
Hazel sentiu um enorme alívio ao constatar que Bridie não sabia
nada sobre o Bosque dos Sussurros. Talvez tivesse sido Flora a
contar a história; talvez ela ainda estivesse viva e tivesse dado
continuidade ao seu mundo de fantasia. Hazel contou tudo a
Bridie, incluindo o facto de ter criado um mundo para Flora.
Bridie bebeu um gole de chá e inclinou-se para a frente,
pousando os cotovelos na mesa.
— Sempre foste uma criança encantadora, e sempre viste
magia à tua volta. — Bridie sorriu. — Faz sentido que
conhecesses mundos secretos escondidos dentro do nosso.
— Oh, não. — Hazel abanou a cabeça. — Não era nada disso.
Era um lugar simples para onde íamos juntas, vivíamos aventuras
e depois voltávamos para casa.
— Mas depois de estarem lá, vocês eram melhores e mais
corajosas quando voltavam?
— Sim, melhores e mais corajosas. Isso é verdade. — Hazel
mordeu o lábio inferior. — Até deixar de ser verdade.
— Continua.
— Acredito que, no dia em que desapareceu, a Flora foi à
procura do nosso mundo imaginário sem mim.
— Acreditas ou tens a certeza?
— Acredito.
— E como se chama esse mundo?
— Bosque dos Sussurros.
— Bosque dos Sussurros — repetiu Bridie, fechando os olhos.
Hazel enfiou a mão na mala e tirou o livro de Peggy Andrews,
que pousou na mesa.
— E agora tenho isto.
Bridie não lhe pegou, mas passou-lhe a mão por cima.
— Foste tu que escreveste este livro? Sempre tiveste tanto jeito
para a escrita.
— Não. Foi uma autora americana que o escreveu. Alguém está
a usar o nosso mundo para contar as suas histórias.
Bridie fez uma pausa.
— Será que essa autora é a Flora? — Havia tanta esperança na
sua voz quando disse aquilo que Hazel quis acreditar que sim.
— Não. Por instantes, também pensei que sim, mas a idade não
bate certo. Isso é tudo o que sei sobre ela.
— Será que a Flora contou a história à autora?
— É isso que estou a tentar descobrir.
Bridie acenou com a cabeça.
— Então, acreditas que o vosso lugar secreto, o vosso belo
mundo, a vossa terra da fantasia, por assim dizer, te tirou a Flora.
— Sim. Tenho a certeza.
— Tens de esquecer essas ideias, Hazel. — Bridie puxou a
cadeira para a frente e pousou as mãos nas faces de Hazel, tal
como fizera quando Hazel era criança. — O desespero leva-nos a
criar histórias. Inventamo-las para podermos viver num mundo
com sentido. Eu própria te contei histórias. Nós dançámos a
contar histórias. Contei-as à fogueira e a esta mesma mesa. O
que tu fizeste — criar um mundo para a Flora e para ti — deu-vos
consolo durante um período muito assustador. Meu amor, as
coisas más nem sempre acarretam culpa. — Bridie fez um
compasso de espera. — Tu ou a Flora alguma vez contaram ao
Harry?
— Eu não contei, mas é isso que preciso de saber. Talvez a
Flora lhe tenha contado e ele tenha contado a outra pessoa. Ou
talvez ela esteja… viva.
Bridie ergueu o sobrolho.
— Quem me dera que isso fosse verdade. — Levou a mão ao
coração.
— O que aconteceu depois de me ir embora? — Hazel
perguntou tão baixinho que Bridie teve de se inclinar para a frente
e pedir-lhe para repetir a pergunta.
— Isso agora não tem importância — respondeu Bridie. — Os
inspetores fizeram o que lhes competia.
— Diga-me, por favor. Eu ouvi-os a fazer perguntas ao Harry
sobre os seus esboços e levei alguns comigo.
Bridie recostou-se na cadeira e fixou o seu olhar em Hazel.
— Todos os habitantes da aldeia eram suspeitos, Hazel. Não
fomos os únicos.
— Foram, sim — contrapôs Hazel. — Sei que não quer que eu
saiba, mas foram. Li isso nos jornais. Eu tenho os artigos. — Só
de o dizer em voz alta… era o que ela sabia, o que tinha ouvido
nos dias em que vagou pelas ruas de Oxford com a mãe, que
afixou fotografias de Flora em todos os postes de eletricidade e
montras de lojas que conseguiu.
A família Aberdeen estivera sob suspeita. Bridie teve um marido
que desapareceu e, anos mais tarde, uma criança que
desapareceu. A história era demasiado sumarenta para ser
ignorada pela imprensa.
— Eles não me acusaram por tua causa, Hazel. Interrogaram-
me porque disseram que eu já tinha perdido uma pessoa.
— O seu marido — concluiu Hazel.
Bridie olhou para ela.
— Sim, mas, na verdade, não o perdi. Ele nunca foi meu
marido. Ele era… meu amante. Um professor convidado de
Oxford. Sem que eu soubesse, ele tinha mulher e filho na
Escócia. — Ergueu o queixo. — Não valia a pena falar sobre isso.
Ele voltou para junto da família e eu nunca mais soube dele. Não
faço ideia do que lhe terá acontecido. Durante muito tempo, quis
saber para onde tinha ido e porquê. Sonhava com o seu regresso.
Eu e o Harry encontrámos o nosso caminho juntos. Sei que
ouviste os boatos, mas escuta, Hazel, as pessoas precisam de
explicações. Precisam de significados e razões. Mesmo que essa
razão transforme uma mulher comum numa mulher que consegue
fazer as pessoas desaparecerem no ar.
— Oh, Bridie. Eu não sabia o que se tinha passado com o pai
do Harry.
Ela acenou com a cabeça.
— E porque haverias de saber? Contei ao Harry quando ele
tinha 10 anos, mas ele nunca quis procurar o pai.
— E eles também culparam o Harry — disse Hazel, com o
sentimento de culpa e vergonha que já lhe eram familiares.
— Interrogaram-no sobre os seus desenhos, é verdade. Há
sempre um bode expiatório, meu amor. Sempre. Se pensares
bem, faz parte de todas as histórias.
— Mas isto não é uma história — gritou Hazel. — É a sua vida.
A vida dele. Para onde é que ele foi? Onde é que o Harry está
agora?
— Numa comunidade artística.
Hazel sentiu um choque elétrico no corpo.
— Onde?
Bridie levantou-se e caminhou em direção ao antigo quarto de
Hazel, perto da cozinha. Hazel quis segui-la, olhar à sua volta em
busca de resquícios dos bons tempos que viveu ali, mas
aguardou. Ouviu uma gaveta a abrir e, logo a seguir, Bridie voltou
com um artigo de jornal dobrado sobre St. Ives, uma comunidade
artística na costa da Cornualha.
— Já ouvi falar deste lugar — disse Hazel. — Fui a uma
exposição de arte em Chelsea no mês passado que tinha obras
deste coletivo. A cerâmica era extraordinária.
— Talvez também houvesse quadros dele nessa exposição —
sugeriu Bridie. — Ele é muito bom. Como sabes, sempre gostou
de desenhar, mas agora começou a pintar a óleo.
— O que é que ele pinta? — quis saber Hazel.
— Porque não vais ver por ti própria?
— Acho que não posso — disse Hazel. — Não sei se sou capaz
de o encarar.
— Bem, querida, só o Harry é que pode responder às perguntas
que tens para ele. Às vezes… — fez uma pausa e inclinou-se
para a frente. — Às vezes, temos de enfrentar os nossos dragões.
— E não há nenhum cavaleiro andante para nos salvar —
concluiu Hazel, lembrando-se da ocasião em que se sentaram à
volta da fogueira, no Dia de Santa Brígida. Tinha parecido uma
coisa tão divertida de se dizer, uma ideia tão irreverente, não
precisarem de um cavaleiro, mas agora era a mais pura verdade:
Hazel tinha de matar os seus próprios dragões.
O chalé tinha mudado pouco. As brasas na lareira poderiam
muito bem ser as mesmas que ardiam na manhã de outubro em
que Hazel saiu dali com a mãe e sem Flora. Mas, agora, ali
estava Hazel, na cozinha, a poucos passos do seu antigo quarto.
Quase viu a rapariga que costumava ser, aquela que acreditava
em magia e em mundos escondidos.
— Podes contar-me a história do Bosque dos Sussurros? —
pediu Bridie.
— Sim — concordou Hazel. — Não há muito tempo e não muito
longe daqui…
CAPÍTULO 18

Março de 1960

Hazel sentou-se na cadeira de metal em frente à secretária


desarrumada do inspetor Aiden Davies, na esquadra de Thames
Valley.
Depois do chá, Bridie deixara Hazel no centro de Oxford. A
cidade refulgia com o brilho mágico e nebuloso do final de tarde.
Hazel seguira diretamente para a esquadra, que ficava em frente
aos grandes pináculos da Christ Church College. Agora, estava a
olhar para a careca de Aiden Davies, cujo brilho Hazel acreditava
dever-se ao modo como ele esfregava continuamente a mão
sapuda na cabeça, para a frente e para trás, enquanto falava,
sem grandes pressas, como se estivesse à espera de que as
palavras certas se formassem sob a palma da sua mão.
Este era o homem que tinha desistido do caso de Flora há
vários anos, quando um corpo não identificado foi encontrado nos
pântanos de Wallingford: a criança que eles acreditavam ser
Flora.
— É bom ver-te, Hazel. Dizes que tens provas novas? —
perguntou ele.
— Sim. — Hazel resumiu rapidamente tudo sobre o conto de
fadas. Não mencionou o Bosque dos Sussurros, nem mesmo o
conto completo, apenas o suficiente para que Aiden soubesse que
poderia haver esperança. — Fiz uma lista de todas as pessoas
que nos podem ter ouvido a contar a história, e as únicas pessoas
que não consigo localizar são as quatro enfermeiras que viviam
atrás da paróquia.
— Lembro-me delas, uma americana e três inglesas. Uma delas
chorou quando a Flora desapareceu, como se fosse a sua própria
filha. Tivemos de pedir a uma assistente social que fosse acalmá-
la. Mas acredita que verificámos tudo, Hazel. E a guerra não fez
nada bem a essas enfermeiras voluntárias. Muitas ficaram
traumatizadas. Pensavam que iam usar fardas brancas e limpar a
testa a soldados bonitos. A maioria de nós previu o que estava
para vir. Bastava prestar atenção aos aviões que sobrevoavam as
nossas cabeças, aos discursos na rádio, mas acho que aquelas
enfermeiras não estavam preparadas. Quando a tua irmã…
— Desapareceu — cortou Hazel.
— Sim. Foi no início do Blitz. Foram dias muito negros.
— De facto. — Hazel inclinou-se para a frente e agarrou a borda
da mesa. — Sabe como se chamavam? Tem os dados delas?
— Não mantemos registos atualizados de pessoas que não são
suspeitas. Mas tenho os nomes delas, claro. Nos arquivos.
— Pode fornecer-me essa informação?
O inspetor voltou a esfregar a cabeça e olhou para além de
Hazel, para além daquele momento, e murmurou:
— Não adianta desenterrar este assunto. Não podemos
encontrar o que desapareceu. É o que estou sempre a dizer
àquela jornalista. — Ele olhou para Hazel com tristeza. Não era só
a perda de Flora que o afetava, e Hazel sabia disso. Era o que
tinha visto nos vinte anos seguintes. Guerra. Drogas em Oxford.
Bandos. Morte.
— Mas há uma novidade — disse ela, tentando aplacar alguma
da tristeza profunda. — Se a história está viva, ela também pode
estar.
— Ah, sim? — Ele ergueu o sobrolho. — Então, é isso que
pensas.
— Sim.
Ele tamborilou automaticamente com os dedos na secretária,
qual metrónomo dos seus pensamentos.
— Vou procurar os ficheiros. — Aiden levantou-se, apoiou as
mãos na secretária e sobre elas todo o seu peso. — Espera aqui.
Volto já.
Hazel esperou bastante tempo, de pé, sentada, novamente de
pé, enquanto olhava em volta para aquele gabinete apertado. Por
fim, Aiden surgiu com um pedaço de papel, que lhe entregou.
— Estão aqui todos os nomes. Vou fazer algumas indagações
por conta própria para ver se descubro as moradas delas.
Hazel olhou para a página.

1. Imogene Wright (Reino Unido)


2. Frances Arkland (EUA)
3. Maeve Muldoon (Reino Unido)
4. Lilly Carnigan (Reino Unido)

— Também vou fornecer estas informações à jornalista. Ela


quer escrever um artigo. E, para ser sincero, dava-me jeito a
ajuda. Mais um par de olhos. Ela fez um ótimo trabalho com as
outras histórias.
— Por favor, não faça isso. — Hazel abanou a cabeça. — O que
acabei de lhe dizer sobre o livro é confidencial. Não pode contar
isto à Dorothy Bellamy. Ouviu? Aiden, ela chama à Flora «Criança
do Rio». É um disparate.
— Sim, bem sei.
— Aquela mulher escreve-nos, a mim e à minha mãe, quase de
três em três meses. Por favor. Deixe-me investigar isto sozinha.
— Hazel fez um compasso de espera. — Vamos ser nós os dois a
descobrir o que isto significa.
— Bem, gosto dos artigos que ela escreve para a revista. Cinge-
se aos factos. No que diz respeito ao caso da Flora, não está a
escrever um artigo para atacar nem a tentar resolver o mistério;
só quer contar o que aconteceu naquele dia. Não está a
investigar. Não se vai pôr com efabulações, garanto-te.
— Parece que ela já lhe deu a volta. Mas não me pode garantir
nada sobre ela, Aiden. E isto é uma coisa nossa. Não é dela. Por
favor, não aguento ver a Flora noutra revista. Isso teria um grande
impacto na minha mãe.
— Compreendo. — Aiden inspirou com tanta força que as suas
narinas se expandiram. — Mas se me escapou alguma coisa
naquela altura, nunca me vou perdoar.
— Não pense assim. Todos temos de nos perdoar.
Todos temos de nos perdoar.
Ela ainda sentia o travo amargo e falso daquelas palavras
quando saiu da esquadra em direção à rua principal. Era um
conselho que Hazel sabia que ela própria não aceitaria, um
consolo vazio para um homem que passou a vida a resolver
mistérios e a ver o pior da humanidade.

O dia deu lugar à noite na janela do comboio. No caminho de


Oxford para Londres, Hazel observou o céu a mudar de um azul-
pálido para um azul-escuro, as árvores verdes a adquirir tons
mais escuros. Quando pisou a plataforma da estação de Oxford
Circus, estava tão cansada como se tivesse vindo a correr de
Binsey para Bloomsbury. Mas tinha prometido a Barnaby que se
encontraria com ele para jantar no Simpson’s, na Strand.
Era altura de planear a viagem a Paris, dissera-lhe ele.
Porém, se Hazel quisesse ser sincera consigo mesma, tudo
aquilo — a Hogan’s, Paris e a Sotheby’s — parecia fazer parte da
vida de outra pessoa. O passado tinha-se misturado com o
presente; as fronteiras tinham sido esbatidas.
Tinha saído do comboio uma estação adiantada, claramente
alheia ao que estava a fazer. Olhou para o relógio e viu que tinha
quinze minutos para chegar ao restaurante. Mesmo assim,
chegaria atrasada; era mais de um quilómetro e meio a andar.
Além de já estar desarranjada, também não tinha a roupa
apropriada para ir jantar fora, com as suas calças beges e camisa
branca simples. O cabelo estava desgrenhado, mas pelo menos
desta vez não ia faltar. Não podia voltar a desiludir Barnaby.
Ao passar pelas montras coloridas da Liberty London, e depois
pela multidão até chegar a Carnaby Street, sentiu-se num mundo
estranho. A música jorrava das portas dos bares de jazz, que
estariam abertos toda a noite. Manequins com saias curtas
miravam quem passava com os seus olhos pintados que mais
pareciam alucinações. Ao passar por mais lojas de roupa,
imaginou o que vestiria se fosse ver Harry a St. Ives, mas
depressa se repreendeu por ter tido aquela ideia disparatada
quando estava a caminho de ir ter com Barnaby.
Estugando o passo o mais possível sem começar a correr, virou
em Beak Street e deu de caras com uma mostra de obras de arte.
Um artista magro, alto, com uma cartola suja e um bigode tão
espesso que parecia falso, exibia as suas obras ao som de uma
música carnavalesca que tocava num rádio portátil. Os quadros
vivos e garridos retratavam palhaços, malabaristas, tendas de
circo e acrobatas. E entre eles, iluminado por um candeeiro de
rua, brilhava o do Flautista de Hamelin, com o seu boné vermelho-
vivo, pavoneando-se e tocando flauta, enquanto encaminhava
meninos e meninas para a perdição.
Hazel parou a meio do caminho, tropeçou na borda do passeio
e caiu. Sentiu uma pontada de dor no joelho direito e no pulso
esquerdo quando bateu no chão. O artista estendeu a mão para a
ajudar a levantar-se, mas ela não aceitou. Pôs-se de pé sozinha,
limpou a sujidade das calças e olhou para a pintura.
— Este aqui — apontou.
— É uma cópia do famoso quadro de Maxfield Parrish —
esclareceu ele, num tom de voz grave com sotaque cockney
cerrado. — Cá para mim, o meu é melhor do que o original.
Ela estava demasiado envolta em mensagens do mundo
invisível para ver aquele quadro como uma mera reprodução. Era
um sinal para seguir em frente. Ela estava no caminho certo.
Hazel olhou para o homem, que parecia saído de uma estranha
miragem.
— É lindo — mentiu, enquanto se afastava, sem olhar para trás.
À sua frente, no passeio, estava o irmão com um grupo de
amigos: Tenny. Reconheceu-o a um quarteirão de distância pelo
seu cabelo comprido e casaco de tweed. Ele e os amigos
estavam a fumar e a passar uma garrafa de vinho que parecia de
muito boa qualidade, mesmo à distância. Muito provavelmente
tinha vindo da adega do Sr. Alastair Tennyson. Ainda pensou em
atravessar a rua, na esperança de passar despercebida, mas
depois mudou de ideias. Aproximou-se do grupo de quatro jovens,
que riam de algo que Tenny havia dito.
Os seus olhares cruzaram-se e ele ficou boquiaberto; o riso
desapareceu. Tenny deixou cair o cigarro e calcou-o com o tacão
do sapato oxford creme. Ela sorriu-lhe e, por instantes, pensou
que ele poderia desatar a correr. Mas Tenny devolveu-lhe o
sorriso. Foi um momento de camaradagem sem uma única
palavra trocada. Os outros rapazes repararam no olhar.
— Quem é esta tipa? — perguntou um rapaz com o cabelo tão
preto que brilhava à luz do candeeiro.
— É a minha irmã — respondeu Tenny. — Por isso, tento na
língua.
— Caramba — disse outro rapaz, com um boné de feltro. —
Muito bonita.
Tenny empurrou-o e ele levantou as mãos em sinal de rendição,
com uma gargalhada. Tenny olhou de relance para Hazel, que lhe
acenou por cima do ombro e continuou a andar.
Nem ela nem o irmão tinham escolhido os seus pais ou a sua
vida. Porque tinha sido ela tão dura com ele? Com a própria mãe?
O que ela gostaria de ter feito era tirar a garrafa das mãos do
rapaz loiro com o casaco axadrezado e beber um gole de vinho.
Minutos depois, Hazel passou a correr pela entrada em arco do
restaurante e entrou na sala principal, iluminada por lustres de
cristal. Barnaby lia o menu numa mesa perto da parede de
painéis; uma arandela dourada iluminava o espaço por cima da
sua cabeça.
À sua volta, homens de fato e gravata e mulheres de vestidos
pretos e colares de pérolas. Barnaby levantou o olhar quando ela
se aproximou da mesa. Primeiro sorriu, depois baixou as
sobrancelhas. Inclinou a cabeça.
— Querida, estás bem?
Ela sentou-se e olhou para ele por cima da toalha de mesa de
linho branco e das rosas vermelhas de corte curto que estavam
numa jarra de prata.
— Tive um dia infernal. Conto-te tudo depois de tomar uma
bebida. E tu, como estás? — Ele levantou um copo alto, já quase
vazio. Bebeu o que faltava e voltou a pousá-lo. — Sinto muito. —
Hazel olhou em volta à procura do empregado.
Depois de pedir uma garrafa de vinho e uma entrada de
calamares, ele perguntou:
— Onde estiveste o dia todo, meu amor?
— Em Binsey.
Ele fez uma longa pausa antes de repetir o nome da cidade.
Inclinando-se para trás, Barnaby bebeu um gole do seu whisky.
— Parece que não foi o passado que voltou para te assombrar,
tu é que foste atrás dele.
Hazel sentiu um tremor nos alicerces da sua relação; ele estava
aborrecido com algo que era tão importante para ela como o ar
que respirava. Os sons dos outros comensais enchiam a sala,
risos e conversas sobrepostas, um pianista ao canto cantava uma
canção de Frank Sinatra.
— Não percebo porque é que isto nos está a acontecer — disse
ele. — Logo agora que estamos prestes a começar a nossa nova
vida.

Deitados na cama, Barnaby puxou Hazel para perto de si,


abraçando-a. Estava nu e ela com uma camisa de noite de seda
que ele lhe tinha comprado como presente de aniversário. Beijou-
lhe o lóbulo da orelha e sussurrou:
— Quero que saibas que vou pagar as ilustrações e o livro. Não
te preocupes com isso.
— Não, meu amor. — Ela virou-se para o encarar, tão cansada
que era difícil encontrar as palavras certas. Não podia revelar-lhe
aquilo que a atormentava verdadeiramente. Não era a
preocupação com o dinheiro, isso teria solução. A inquietação de
voltar a ver Harry perturbava-a. Os pensamentos que, por norma,
conseguia evitar tornavam-se cada vez mais impositivos. — Eu
arranjo maneira de os pagar — disse-lhe, em surdina, e deu-lhe
um beijo.
— Não precisas de ser sempre tão independente — tornou ele,
passando-lhe a mão pela coxa. — Até parece que não queres que
cuide de ti; que queres provar à força toda que não és a tua mãe
e que eu não sou o teu padrasto.
— Talvez tenhas razão — concordou Hazel —, mas há coisas
que quero ser eu a resolver.
Puxou-a ainda mais para si, como se quisesse provar o
contrário com o seu toque.
CAPÍTULO 19

Março de 1960

Naquela noite, o jantar de Peggy e da mãe, Linda, foi frugal:


frango assado e espargos. Peggy estava demasiado preocupada
para cozinhar algo mais. Enquanto a mãe datilografava, ela sentia
os pensamentos a saltitarem como gafanhotos nas ervas, sem
nunca assentarem. Isto devia-se, pelo menos em parte, ao facto
de as duas irmãs do Bosque dos Sussurros se terem
transformado em gafanhotos na última história.
As distrações tinham começado com aquele estranho
telefonema. Passara dois dias a refletir sobre o assunto. A história
dela? Onde a tinha ouvido?
Os estudos de Peggy tinham-se centrado na mitologia e nos
contos de fadas, que a maioria das pessoas não sabia que, não
sendo a mesma coisa, estão ligados, fazem parte de um universo
maior. Estudou tudo, dos deuses gregos às divindades indianas,
dos mitos celtas aos contos de Grimm. Conseguia desvendar uma
história com todos os seus significados multifacetados e
arquétipos junguianos. E, no entanto, quando se tratava da
história da sua própria vida, não sabia o que fazer. Compreendia
melhor as motivações das personagens dos seus romances do
que aquilo que ela própria queria — ou porquê.
Saber o porquê era sempre importante. Porque é que as irmãs
órfãs escolhiam certas transformações ou aventuras. E a resposta
era sempre a mesma: para fugirem ao orfanato da cruel Madame
Nariguda e para se tornarem aquilo que estavam destinadas a
ser. Mas os desejos de Peggy, fossem eles quais fossem,
pareciam mudar consoante as horas. A falta de motivação das
personagens era a sentença de morte de qualquer história.
Pensou na pergunta de Wren:
Porque tens tanto medo da resposta?
A tempestade rugia do lado de fora das janelas, sacudindo a
estrutura da casa, à medida que os relâmpagos iluminavam a
ondulação marítima. Peggy levou os pratos vazios para o lava-
loiça.
— Mãe, recorda-me como surgiu o Bosque dos Sussurros.
— A que se deve essa pergunta? — A voz de Linda era firme
como a corda de um varal estendida no quintal.
— É uma das perguntas da apresentação do livro. Eles querem
saber as suas origens. Querem que escreva sobre a minha
inspiração. — Peggy virou-se de costas, para que a mãe não
visse a mentira que lhe saía tão facilmente dos lábios. Escrever
ficção tornara-a uma mentirosa hábil, rápida a inventar histórias,
mas normalmente não usava essas capacidades com a mãe.
— Eu e a tua tia Maria inventámos tudo quando eras pequenina.
Querias tanto o teu pai que não paravas de chorar. Que Deus
tenha a sua alma em descanso. E eu queria dar-te um lugar
seguro para fugires. — Um suspiro. — Já te tinha dito.
— Sim, o meu pai. — O maior desejo de Peggy era lembrar-se
dele, mas ele morrera quando ela tinha 5 anos, durante a invasão
de Pearl Harbor, e o seu corpo fora enviado para casa num caixão
coberto por uma bandeira americana.
Na fotografia, ele era elegante à maneira dos soldados: chapéu
direito, uma expressão severa num rosto cinzelado a encimar uma
farda com emblemas que ela não compreendia. Garrett
Witherspoon Andrews, um nome tão bonito como o seu rosto.
Havia algumas fotografias dele. Numa delas, pegava em Peggy,
ainda bebé, ao colo. Conseguia ver o desenho do sorriso do pai
enquanto ele olhava para ela com adoração, para o bebé que ela
tinha sido, mas de que não se lembrava. Peggy perguntou à mãe:
— Mas ouviste a história noutro sítio ou veio diretamente da tua
imaginação?
Linda riu-se, um som alegre que indicava que aquela era a mãe
divertida, a que jogava gin rummy, desenhava o jogo da macaca a
giz no passeio e corria para as ondas com Peggy até ambas
caírem na areia.
— É a nossa história, meu amor. — Linda fez uma pausa.
As águas agitadas dentro de Peggy acalmaram. A mulher que
tinha ligado de Inglaterra só podia ser doida varrida, como se
costuma dizer. Mas ela tinha mais uma pergunta.
— O nome, Bosque dos Sussurros, foi ideia minha, tua ou da
Maria?
A mãe levantou-se da mesa e aproximou-se de Peggy, que
estava junto ao lava-loiça. Pegou nas suas mãos e beijou-lhe as
palmas.
— Não existe o meu ou o teu. Apenas o nosso.
— Mas o nome — insistiu Peggy, levantando os olhos do lava-
loiça.
— Não me lembro bem, minha querida. O nome surgiu das
histórias. Talvez a ideia tenha sido em parte minha e em parte tua,
ou até mesmo da Maria, e depois misturou-se tudo como nas
nossas histórias.
— Sim — concordou Peggy. — Como nas nossas histórias.

Depois da leitura noturna das páginas escritas no dia e de uma


conversa sobre o que tinha saído bem ou não, Peggy ficou
acordada na cama durante horas, com a mesma energia dos
relâmpagos lá fora. O seu quarto estava decorado como o de uma
princesa: cor-de-rosa e vaporoso, com uma cama de dossel, em
tecido branco, agora invisível na penumbra.
O quarto não tinha mudado nos dezoito anos que tinham vivido
em Cape Cod. As recordações da Califórnia eram difusas e
desconexas: as ondas a rebentar numa costa diferente, os
campos verdejantes de Napa, onde tinham chegado a viver.
Porque tens tanto medo da resposta?
Pôs-se em guarda: ela não tinha medo. É que a origem da sua
história nunca tinha tido importância até agora. Os mitos de
origem eram as histórias mais importantes: eram usadas para
explicar a criação do mundo.
E, no entanto, Peggy nunca tinha pensado nas origens do seu
mundo, o Bosque dos Sussurros. Tinham-lhe contado uma
história simples: a mãe e a irmã, a tia Maria, começaram a
inventar histórias para consolar Peggy depois da morte do pai.
Do lado de fora da janela, ao longe, um relâmpago atingiu uma
árvore com um som explosivo e fraturante, e Peggy saltou da
cama. Não valia a pena tentar dormir. Foi até à cozinha, mas não
acendeu a luz; isso acordaria a mãe. Tateou o armário inferior até
encontrar o lixo. Enfiou a mão no caixote e afastou os espargos
escorregadios até encontrar o papel amarrotado com o número de
telefone de Hazel Linden. Levou-o consigo para o quarto. Tal
como fazia com a Teen Magazine, que muitas vezes escondia da
mãe, que as achava insípidas e ridículas, Peggy escondeu o
pedaço de papel debaixo do colchão. Em seguida, enfiou-se
novamente debaixo dos cobertores cor-de-rosa.
Fechou os olhos e pensou no conto de fadas da princesa e da
ervilha; a pequena e impercetível ervilha debaixo de uma pilha de
colchões tinha sido um teste de sensibilidade, para ver se a
princesa era digna do príncipe. Ninguém precisava de testar a
sensibilidade de Peggy, mas ela jurava que conseguia sentir o
pedaço de papel amarrotado debaixo do colchão.
CAPÍTULO 20

Março de 1960

O táxi preto parou em frente à casa georgiana palladiana, com a


sua fachada simétrica de tijolo e madeiras ornamentadas. O
caminho de cascalho rangia sob os pneus, enquanto o taxista de
nariz vermelho terminava a sua diatribe sobre o declínio de
Londres sob a égide do primeiro-ministro Macmillan, os protestos
contra as armas nucleares, a possível entrada dos Estados
Unidos na Guerra do Vietname, e a dúvida sobre se não estariam
já todos fartos de guerra. Hazel pagou ao taxista e despediu-se
com um:
— É verdade, não estamos já todos fartos de guerra?
Saiu do táxi e parou no início de um caminho de arenito. Olhou
para a imponente casa da sua mãe. A fachada sussurrava
histórias antigas de Londres, de heranças de família no sótão e de
chás requintados. Alastair Tennyson era descendente de um
qualquer duque ou visconde ou qualquer outro título nobiliárquico
ao qual Hazel não atribuía importância, obviamente, ao contrário
da mãe. E tinham um filho, um rapaz de 14 anos que dava pelo
diminutivo Tenny.
Hazel estremeceu ao perceber que ele tinha exatamente a
mesma idade que ela tinha quando foram enviadas para o campo.
Tenny tinha uma vida melhor; nunca conheceria o exílio e o medo;
nunca saberia o que significava estar afastado do conforto, da
família e do amor.
Hazel percorreu o caminho, pisando de pedra em pedra até
chegar a uma grande porta de madeira esculpida com o brasão
da família, um leão e um castelo. Hesitou. Aquela era a casa da
sua mãe e ela tinha o direito de entrar simplesmente, mas era
também a casa do padrasto — como ela detestava esse termo.
Não conseguia conciliar a mãe que conhecera em Bloomsbury
com a mãe que vivia aqui. Hazel e a mãe conversavam amiúde, e
adoravam-se, mas após o desaparecimento de Flora, descera
sobre a relação delas uma longa sombra cuja fria penumbra
permanecia ainda hoje.
Um dia, em 1945, numa tarde de outono, duas semanas depois
de os sinos da igreja terem anunciado o fim da guerra, Hazel
voltou para casa da livraria e encontrou a mãe à espera, sentada
no sofá florido, com palmadinhas nas almofadas para ela se
sentar.
— Preciso de falar contigo — dissera-lhe a mãe. — Vou casar-
me com o Tennyson no próximo mês. Será uma pequena festa no
jardim dele, só com a família. Um coração pode guardar muita
alegria e muita tristeza ao mesmo tempo. É um mistério, mas é
verdade.
Hazel sentiu a felicidade da mãe como uma traição. Naquela
altura, Flora estava desaparecida há cinco anos, mas parecia que
tinha sido há um dia e também há uma eternidade. Por vezes,
Hazel calculava a idade de Flora e, naquela altura, ela teria 11
anos. Hazel tinha 20. E o pai, cinco anos mais velho do que a
mãe, teria 45 anos. Era uma família alternativa, como Hazel bem
sabia. Uma família imaginária, mas que permanecia intacta no
seu coração, viva e próspera. Hazel precisava de acreditar que
Flora estava viva e que tinha 11 anos. Se a mãe se casasse e
seguisse em frente com a sua vida, se saísse daquele
apartamento e se mudasse para outra casa, como conseguiria
Flora encontrá-las?
Era um pensamento irracional e absurdo, e Hazel sabia disso.
Mas o absurdo não mudava a sua certeza absoluta de que a mãe
tinha de estar na casa da família para que Flora voltasse para ela.
Tomada pelo espanto e pela incredulidade, Hazel deixou
escapar um:
— Casar com ele? Estás a falar a sério, mãe?
— Estou. — Entufou a almofada ao seu lado e apoiou nela o
braço para mostrar o anel de noivado em safiras de corte
retangular que brilhava no seu dedo anelar esquerdo. Hazel
dispensava a prova em forma de pedra preciosa de grandes
dimensões e desviou o olhar.
— Ama-lo? — A indignação fez com que Hazel se levantasse do
sofá e andasse agora de um lado para o outro na sala de estar.
Bateu com a mão na lareira e virou-se para encarar a mãe. —
Ama-lo?
— Sim, minha querida. Sei que é difícil para ti perceberes isso,
mas há espaço em mim para este e outros amores.
— Não — gritou Hazel.
— Quero que fiques com este apartamento, se é isso que te
preocupa. Quero que fiques aqui, que vivas aqui. Esta casa agora
é tua.
— Eu não quero os teus restos. — Hazel não queria dizer
aquilo; claro que queria a casa, mas pareceu-lhe a coisa mais
dolorosa de se dizer. Agora, ela ficaria sozinha com os fantasmas
da sua família.
— Então, vê isto como um presente do teu pai.
— Mãe. Por favor, não te cases com ele.
— Porquê? — A mãe afagava o anel com a outra mão. — Não
muda o que aconteceu.
Hazel fechou os olhos e percebeu que aquele era o cerne da
questão: o seu desejo infantil de que, se elas ficassem ali e
mudassem muito pouco, Flora poderia voltar.
Vê se cresces, Hazel, pensou.
A mãe levantou-se, aproximou-se de Hazel e encarou-a com um
sorriso triste.
— É impossível mudar o que aconteceu, minha filha. Se
pudesse, já o teria feito. Abdicaria de tudo para que isso fosse
possível.
— Até do Tennyson?
— Até do Tennyson — concordou a mãe. — Mas abdicar dele
agora não satisfaz esse desejo.
Hazel pensou que aquele era o momento certo. Podia contar à
mãe sobre o Bosque dos Sussurros, sobre o facto de Flora ter ido
em busca do mundo imaginário; de Hazel ter beijado Harry no
tronco da árvore oca e se ter esquecido da irmã tempo suficiente
para a perder; de como o amor, o desejo e as histórias tinham
alterado as suas vidas e causado aquele desfecho. Ela podia
dizer à mãe que amar outra pessoa não faria com que
esquecesse o papá e a Flora, e que seria impossível Hazel
conseguir fazer o mesmo.
Mas a confissão ficou cristalizada na sua garganta apertada, e
ela não disse uma palavra.
Agora, junto à entrada da casa da mãe, aquela sombra
permanecia, longa, escura e fria. Estava na altura de a dissipar.
Hazel pressionou o grande botão de cerâmica da campainha, e
o som ecoou no interior como o dobrar do sino horário na torre da
igreja.
Pouco depois, a porta abriu-se e Hazel viu Tenny.
— Muitos parabéns! — disse ela, alegremente.
— Obrigado, mana.
Ela passou pelo irmão e entrou no saguão escuro e cavernoso.
Quadros a óleo dos antepassados de Tennyson cobriam cada
espaço da parede forrada a papel vermelho-damasco. A grande
base de ferro da mesa redonda de carvalho no saguão tinha rosas
suficientes para encher o jardim da sua infância. Mas a verdade é
que o cheiro era divinal.
— Onde está a mãe? — perguntou ela.
— No jardim de inverno. — Tenny olhou à volta, como se
estivesse à procura de alguém. — Ela tem estado a manhã toda a
falar da tua visita, por isso, sê simpática.
— Eu sou sempre simpática.
Tenny olhou para ela com os seus olhos castanhos como
pedras brilhantes num rio, alerta e consciente. O seu cabelo loiro
despenteado na perfeição e o seu nariz fino e cinzelado contavam
a história dos seus antepassados.
— Não és, não.
Em seguida, subiu as escadas, galgando os degraus dois de
cada vez.
Hazel avançou para a parte de trás da casa através de um
corredor que desembocava na sala ensolarada onde a mãe
estava sentada a uma mesa de vidro, a tomar o pequeno-almoço
e a ler The Observer, que fazia manchete com um tête-à-tête
entre Macmillan e De Gaulle.
— Olá, mãe — cumprimentou Hazel.
A Sra. Alastair Tennyson olhou para cima com um largo sorriso.
— Minha querida! — Largou o jornal e estendeu a mão para que
Hazel se aproximasse. Tocou na primeira página. — Olha, é a
semana do casaco na Rodex. Temos de combinar uma tarde de
compras.
Hazel beijou a cara da mãe.
— Com certeza, mãe.
A mãe ainda não se tinha arranjado. Estava sem maquilhagem
e com o cabelo escuro a cair-lhe sobre os ombros. Estava
radiante com os seus 55 anos, a mesma força vital de sempre.
Hazel sentou-se ao lado da mãe e virou a cadeira para poderem
ficar frente a frente. Pousou a mala no chão. A mãe inclinou a
cabeça na sua direção.
— Estás com bom ar. Oh, querida, estás grávida? Adoro o
Barnaby Yardley. — A mãe sorriu, com a esperança a crescer
dentro de si.
— Lamento desiludir-te, mãe. Não.
— Podia organizar uma festa de noivado maravilhosa aqui
mesmo. Podíamos pendurar luzes, contratar um quarteto e falar
com a minha florista, que faz uns arranjos divinais…
— Mãe, não estou noiva e não estou grávida. Talvez um dia,
mas não hoje. Lamento desiludir-te.
A mãe inclinou-se para a frente.
— Tu nunca me desiludes. Eu só quero a tua felicidade.
— Casamento e um bebé nem sempre são sinónimo de
felicidade.
A mãe recostou-se e fechou os olhos por instantes antes de os
abrir.
— Eu sei, Hazel. Então, o que se passa? — Levantou a
chávena de chá e bebeu um gole.
— Primeiro, acho que preciso de um chá e de comer qualquer
coisa, se puder ser.
Enquanto a mãe foi à cozinha pedir à cozinheira para preparar
mais um prato de picadinho de carne com ovos, Hazel olhou em
volta e admirou aquela divisão plena de luz solar. A mãe tinha
conseguido levar uma vida tranquila e encantadora. Havia
fotografias em molduras de prata na mesa de apoio: Hazel com 5
anos no quintal, Hazel e Flora com o papá num barco a remos no
lago do Victoria Park quando Hazel completou 13 anos, o
casamento da mãe e de Alastair, Tenny em bebé. Flora podia ter
desaparecido do mundo, ou de Oxfordshire, mas não tinha
desaparecido da vida da mãe.
Na outra ponta da mesa, refulgia uma moldura espelhada. Hazel
aproximou-se e pegou na fotografia: Hazel e Flora estavam de
mãos dadas em frente ao apartamento da sua infância, em
Mecklenburgh, aquele onde ela ainda morava. A fotografia tinha
sido tirada no dia em que saíram de Londres e foram para o
campo. Era de manhã cedo, como Hazel bem se lembrava. As
suas mochilas penduradas nos ombros com as máscaras de gás
a balançar, grotescas com os seus óculos de proteção
desproporcionais. O sorriso de Hazel era forçado, mas Flora
sorria alegremente, com o focinho do Berry enterrado debaixo do
braço.
De uma penada, a mãe tinha ficado sozinha em Bloomsbury
para enfrentar o futuro.
Quando ela voltou com o prato do pequeno-almoço e o pousou
na mesa, virou-se para Hazel e viu que esta estava a chorar.
— Hazel, Hazel. — A mãe correu para ela e abraçou-a. — O
que foi?
A filha mostrou-lhe a fotografia.
— Oh, querida. — Os ombros da mãe descaíram e os seus
lábios, agora rodeados por linhas finas, ficaram curvados para
baixo. — Senta-te, meu amor.
Hazel pousou a fotografia e sentou-se à frente da mãe.
— Hazel, eu não podia ir para Binsey contigo, minha querida.
Sabes disso, não sabes? Não só tinha de trabalhar, como as
famílias não podiam albergar adultos. — Ela deu a Hazel um
guardanapo de linho para enxugar as lágrimas. — Meu Deus, eu
era tão jovem. Tive-te quando tinha 20 anos. Fiz o melhor que
pude… Eu fiz…
— Mãe! Para. Eu sei.
— Não me arrependo, mas não voltaria a fazê-lo — disse,
resoluta.
— Eu não te culpo, mãe. Nunca o fiz.
— No fundo, talvez ainda te perguntes porque é que eu vos
abandonei às duas.
— Não, mãe.
— Se pudesse voltar atrás e mudar essa decisão, mudava. O
Governo instruiu-nos sobre como vos manter em segurança. Se
abandonasse o meu trabalho, estaria a ser negligente, a não
cumprir o meu dever para com a Coroa e para com a família.
Pensei que não demorariam a voltar. Não fazia ideia…
— … do que iria acontecer. Eu sei. — Hazel enxugou as
lágrimas. Hesitou. O filho da sua mãe fazia hoje 14 anos e os
convidados chegariam à noite. Havia fornecedores e floristas a
chegar à entrada de serviço nas traseiras. — Quero que desfrutes
do aniversário do Tenny.
— Se for alguma coisa sobre a Flora, quero que me digas. O
que se passa?
Tal como acontece quando mergulhamos num lago frio — o
melhor é não protelar —, Hazel decidiu contar-lhe.
— Sabes que eu e a Flora costumávamos inventar histórias,
não sabes?
— Eram sempre sussurradas, minha querida. Sei que havia um
rio. E um castelo. Mas o resto era vago e era uma coisa vossa.
— Demos um nome ao nosso mundo.
— Qual?
— Bosque dos Sussurros.
A mãe fechou os olhos, e as faces elevaram-se com o apertar
das pálpebras. Um som próximo do choro, mas mais suave.
— É lindo: Bosque dos Sussurros — repetiu, abrindo os olhos.
— E era algo só vosso?
— Até agora. — Hazel baixou-se e tirou o livro da mala,
entregando-o à mãe. — Mais alguém sabia.
— Quem? — A palavra saiu disparada como uma bala,
repentina e veloz, na direção de Hazel.
— Não sei. É isso que estou a tentar descobrir.
— O Harry? Talvez a Bridie?
— Não, não era a Bridie.
— Já lhe perguntaste? — A mãe fez uma pausa e recostou-se
na cadeira. — Contaste-lhe antes de falares comigo?
Hazel ouviu a mágoa nas suas palavras.
— Desculpa, mãe. Precisava de saber se ela tinha contado a
alguém antes de vir ter contigo.
— Amas tanto aqueles dois.
— Sim, amo. — Hazel abanou a cabeça. — Amava. Mas tu
pensas sempre que gosto mais deles do que de ti. Não é verdade.
A mãe sorriu com os lábios ligeiramente fechados e acenou com
a cabeça para a casa.
— Tal como tu, Hazel, que achas que gosto mais deles… — Fez
um gesto que abarcou todo o jardim de inverno. — E isso também
não é verdade. Nós podemos ter saudades da nossa Flora, chorar
a sua perda, mas não podemos deixar que isso nos impeça de
amar.
— Mãe… isso pode ser verdade para ti, mas um amor louco e
desmedido por alguém ou alguma coisa destrói-me a mim e ao
objeto do meu amor. Sempre.
— Oh, minha Hazel. — Os seus lábios estavam trémulos. — Há
tanto tempo que procuro uma maneira de conseguires sarar.
Custa-me que acredites que o amor pode destruir. Vi-te deitar por
terra relações e fechar o teu coração. Tentei ajudar-te, mas não
sei fazer isso por ti. — A mãe inclinou-se para a frente e beijou a
testa de Hazel. — Adoro-te. — Em seguida, pegou no livro. Leu o
texto da contracapa e abriu-o, passando os olhos pelas palavras
antes de olhar novamente para Hazel. — Uma coincidência?
— Impossível.
— Pois bem. Quem contou a história a esta autora?
— Estou a rezar para que tenha sido a Flora a contar a história,
mãe.
A mão da mãe voou para o peito, onde ficou a repousar por
instantes, o rosto contorcido numa esperança que ela julgava ter
desaparecido.
— Delia, querida, onde estás? — disse uma voz grave, clara e
sonante. A mãe respondeu:
— Aqui, com a Hazel.
Hazel detestava a forma como Alastair encurtava o nome da
mãe de Camellia para Delia, a forma como se tinha apoderado
dela dando-lhe um novo nome, mais curto e menos melódico do
que o original.
Ele entrou na sala da mesma forma que sempre fazia, com
alegria e como se fosse aguardado. Era um homem alto, e
quando Hazel o conheceu, pensou que parecia um cabide com
um chapéu torto pendurado em cima — uma imagem que nunca
esqueceu. Transmitia a imagem de um homem que nasceu ciente
do seu lugar de privilégio na ordem das coisas.
— Hazel! — A sua voz preencheu cada fenda, sobrepondo-se à
música. Logo a seguir, já estava ao seu lado, estendendo-lhe a
mão. — Que bom que já tenha chegado para a festa. Seja muito
bem-vinda.
— Obrigada, Alastair — disse ela, tentada a ser mazinha e a
chamar-lhe «Stair» para ver se ele gostava.
— Mas que assunto tão sério é esse de que estão a falar? —
Hazel não conseguiu tirar o livro da mesa de vidro a tempo. Ele
olhou de soslaio para o prato de picadinho de carne com ovos
intocado. — Isso tem bom aspeto.
— Sim — concordou a mãe. — Pois tem.
Hazel percebeu que a sua história estava segura com a mãe,
protegida. O seu ritmo cardíaco abrandou e ela brindou Alastair
com um sorriso que ele nunca saberia que era falso.
— Tenho de ir buscar o champanhe — disse ele. — Precisas de
mais alguma coisa, meu amor?
— Está tudo a postos — respondeu a mãe. — Tenho marcação
no salão de beleza para daqui a uma hora, mas a Lorraine tem
tudo o resto controlado.
Alastair acenou com a cabeça, deu-lhe um beijo carinhoso e
apertou-lhe o ombro, olhando para a mulher como se Hazel não
estivesse na sala.
— O nosso filho faz 14 anos, acreditas?
— Não. — Ela sorriu e beijou-o novamente.
Alastair saiu para tratar dos seus afazeres. A mãe olhou para
Hazel sem que fosse necessário trocar mais uma palavra naquele
momento.
CAPÍTULO 21

Setembro de 1939

Logo a seguir ao pequeno-almoço do primeiro dia em Binsey,


Bridie expulsou Harry, Hazel e Flora de casa.
— Toca a andar! O Harry vai mostrar-vos tudo. Tenho trabalho
para fazer e vou à cidade enviar o vosso postal. Temos de tratar
da escola, mas hoje é sábado, por isso vão lá. — Mas antes de
saírem, Bridie enfiou-lhes um ramo de alecrim nos bolsos dos
casacos. — Para proteção — disse ela, com um piscar de olhos.
— Que trabalho é que ela tem para fazer? — perguntou Hazel a
Harry, enquanto vestia a gabardina e calçava as galochas.
— A minha mãe trata da contabilidade de alguns negócios em
Oxford.
No exterior, Hazel respirou fundo. Este mundo cheirava a relva,
possivelmente a terra, e porventura a flores pisadas ou a folhas
em decomposição. O que quer que fosse, era glorioso e fresco.
Alguns passos atrás de Harry e Hazel, Flora deu um salto,
tropeçou num balde de esmalte de ordenha, e gritou ao bater no
chão. Harry virou-se e tentou agarrá-la, mas Flora já estava caída
no meio do campo.
— Estás bem? — perguntou ele.
— Isto? — Flora levantou a galocha para mostrar, na sola da
bota, uma massa castanho-escura, com um aroma húmido e
distinto.
Harry ofereceu-lhe a mão, que Flora agarrou, voltando a pôr-se
de pé.
— Pisaste o esterco da Daisy — esclareceu ele, com uma
gargalhada. — Presumo que não haja muitas vacas em Londres.
— Sorriu. — Bem-vindas ao campo.
Flora pareceu crescer dez centímetros. Levantou o queixo e
sorriu para Harry, como se ele lhe tivesse salvado a vida.
— Venham, vou mostrar-vos o rio — disse Harry. — Se
souberem onde fica o rio, nunca se vão perder. O rio é o marco
que assinala os limites do nosso território.
Flora olhou para Hazel e sorriu. Harry podia ser tão charmoso
como um príncipe, mas Hazel e Flora tinham os seus segredos e
o seu próprio território. Só elas sabiam o significado do rio, e era
mais do que um marco. O rio unia-as.
Seguiram Harry por um caminho de terra batida que atalhava
por entre as ervas. Alguém tinha colocado pedras na orla do
caminho, onde o chão afundava, e havia poças de lama
espalhadas pela terra.
Hazel perdeu a noção do tempo enquanto passavam por casas
com telhados de colmo em caminhos tranquilos. Era um dos
passeios mais bonitos que Hazel já tinha feito, por entre silvas
amarelecidas e árvores que iam perdendo as folhas como pingos
de chuva. O sol parecia pairar no céu, imóvel, à espera de que
eles chegassem à beira do rio.
As três crianças correram pelo caminho ladeado por campos
verdejantes, até que Hazel viu a faixa azul e cinzenta do rio a
brilhar; além das águas, um pasto maior. Parou por instantes e
Flora imitou-a.
— Oh, é lindo — disse Hazel. Em Londres, o rio estava quase
sempre sujo, preenchido com os grandes navios que chegavam e
partiam, o grasnar das gaivotas e o som cavo das buzinas. Mas
este rio, com o mesmo nome, o mesmo que corria para Londres,
refulgia com patos a nadar junto às suas margens lodosas e
cisnes a pairar serenamente ao lado dos galhos das árvores que
se curvavam sobre as águas, em adoração.
Harry acenou com o braço, como quem diz «vamos», e
arrancou. Hazel e Flora correram atrás dele. À beira-rio, de mãos
dadas, as irmãs ficaram ao lado de Harry enquanto um barco à
vara passava com três mulheres, que riam enquanto tentavam
não cair à água. Do outro lado do rio, no pasto verde e plano,
havia vacas pretas e brancas a pastar, fuçando as ervas e
mastigando ociosamente. As nuvens brancas estavam plasmadas
na água. Hazel comentou:
— Parece outro mundo, um mundo de cabeça para baixo dentro
do rio.
Harry abanou a cabeça com um sorriso.
— Não seria maravilhoso se fosse verdade?
Flora puxou o casaco de Hazel.
— Este é o nosso? Tem estrelas?
Hazel arregalou-lhe os olhos e abanou ligeiramente a cabeça.
— Estrelas? — admirou-se Harry.
— É por ser tão brilhante, só isso — explicou Hazel.
Mas Harry olhou diretamente para Flora.
— Não podes entrar ali dentro. Parece bonito, mas vai arrastar-
te… — parou e olhou para Hazel, em busca de confirmação.
— Sim — concordou Hazel. — Não podes entrar ali sem nós.
Flora acenou com a cabeça, à beira das lágrimas.
— Muito bem — disse Harry. — Tenho mais para mostrar.
Vamos…
Arrancou novamente e elas seguiram-no. Embora Hazel tivesse
preferido ficar à beira daquele rio, onde os salgueiros se
curvavam em submissão, criando recantos escondidos, e os
juncos verdes balançavam ao som da música da água. Queria
ficar a olhar para as vacas que pastavam em Port Meadow, do
outro lado das águas correntes, enquanto contemplava o céu
refletido. Ali, tudo parecia tão misterioso como no reino que ela
imaginava, um mundo tão antigo que teria certamente as suas
próprias histórias para contar.
— Aqueles telhados que veem ao longe são as cidades de
Gadstow e Wolvercote. — Virou-se na direção oposta e apontou.
— E mais além é onde o rio se divide e abraça uma ilhota com
uma casa de barcos, e depois a ponte que atravessamos para o
prado que se estende até Jericho e Oxford. — Sorriu. — Venham
daí.
As irmãs seguiram Harry por um longo caminho que
desembocava numa capela de pedra que luzia ao sol. Enquanto
caminhavam, Flora ia juntando folhas caídas na bainha do
vestido, até que chegaram ao amplo relvado em frente à Igreja de
Santa Margarida. As lápides, brancas e cinzentas, inclinadas e
direitas, estavam espalhadas pelo cemitério da igreja.
— Estamos a caminhar sobre os mortos — disse Harry, com um
sorriso malicioso.
— Oh — exclamou Flora, olhando para baixo com curiosidade.
— Para com isso — admoestou Hazel. — Vais assustá-la.
— Não vai nada. — A voz de Flora ressoou nas copas nas
árvores.
Hazel parou e Flora imitou-a. No silêncio, Hazel conseguia ouvir
o som agudo dos pássaros e o restolhar dos insetos que corriam
debaixo das folhas caídas. Flora puxou a ponta da gabardina de
Hazel, deixando que as folhas recolhidas caíssem no chão. Harry
caminhava alguns metros mais à frente, pontapeando folhas para
o ar.
— Estou a ver uma porta — sussurrou Flora.
Hazel sorriu.
— Onde é que ela está?
— Ali, debaixo daquele á’vore.
— Também estou a vê-la — assentiu a irmã —, mas só
podemos explorá-la mais tarde. O Harry não pode saber das
nossas portas.
Flora acenou com a cabeça, caracóis saltitantes e sorriso
rasgado.
À frente, Harry parou e virou-se, fazendo sinal para que não
ficassem para trás. Hazel achou-o muito bonito. Mas não era só a
sua aparência que lhe causava uma sensação estranha. Era o
seu modo de ser que a fazia sentir um aperto no estômago. Não
era nada parecido com os rapazes espertalhões e bem penteados
que passeavam por Bloomsbury. Era como se a luz do Sol o
seguisse. Hazel sentiu-se virada do avesso, uma sensação que
não conseguia descrever. Era algo parecido com medo, só que
diferente.
Reparou num chalé cinzento atrás da igreja paroquial. Havia
fumo a sair da chaminé e, no alpendre, uma mesa com quatro
cadeiras e castiçais com velas queimadas, como se tivesse
havido uma festa.
— Quem mora ali? — perguntou Hazel.
— É a casa do pároco, mas ele cedeu-a às enfermeiras que
vieram ajudar no hospital e mudou-se para um quarto de
hóspedes na casa dos Baldwins. Todos temos de ajudar de
alguma forma. — Harry fez uma pausa. — Venham, quero
mostrar-vos uma coisa.
Seguiram-no até que ele parou diante de um muro de pedra
retangular que rodeava uma abertura no chão. Degraus de tijolo
desciam abruptamente para uma área plana de cascalho em
frente a uma abertura triangular, um poço de água escondido na
penumbra. Hazel sentiu um arrepio. Parecia estar ali desde
sempre.
Harry inclinou-se para a frente e apoiou as mãos no muro de
pedra.
— Este é o poço do País das Maravilhas.
— Ooohhh! — Flora largou a mão de Hazel e aproximou-se.
A irmã agarrou-a pelo ombro, afastando-a do poço escuro que
desembocaria num qualquer lugar subterrâneo desconhecido.
Harry bateu as palmas, e ambas deram um pulo. Ele avançou
um passo. Hazel sentiu o seu calor e o cheiro a terra que
emanava do seu corpo.
— Lembram-se da parte do livro em que o Arganaz conta a
história de três filhas que vivem no fundo de um poço de melaço?
— Durante o chá — assentiu Hazel.
— Sim! — Harry ergueu um punho como se ela tivesse ganhado
um prémio. — Ele referia-se a este poço. — Apontou para três
degraus de tijolo, que desciam até onde a água escura brilhava
como tinta.
— O que é melaço? — perguntou Flora, mastigando a palavra.
— É um bálsamo — disse Harry.
— Não! — Hazel bateu com o pé. Se queria contar histórias,
tinha de usar as palavras certas. — Melaço é uma espécie de
xarope; é doce e açucarado.
— Também tens razão — concordou ele, tão amável e gentil
que as palavras espinhosas de Hazel lhe pareceram agora cruéis.
— Mas também pode ser usado como bálsamo; é uma palavra de
origem latina[1]. — Harry revirou os olhos de forma exagerada. —
Não pensem que vão escapar às aulas de Latim em casa da
minha mãe. — Hazel olhou para ele e Flora aproximou-se do
poço, tocando ao de leve na borda de pedra. — Há outra história
sobre este poço ainda mais antiga do que a d’As Aventuras de
Alice no País das Maravilhas.
— Conta! — instou Hazel, com um entusiasmo surpreendente.
Harry bateu numa pedra gasta com palavras gravadas.
— Diz aqui que é o poço de Santa Margarida, mas houve outra
santa que chegou primeiro: Santa Frideswide.
— Isso não é uma história! — disse Flora, mais próxima de
Harry do que de Hazel.
— Não. É o começo de uma história.
— Mas não é assim que se começa uma história! — contestou a
menina.
— Está bem, então como é que se começa uma história?
— Não há muito tempo e não muito longe daqui… — Olhou
para Hazel para confirmar.
— Pois bem. — Harry acenou com a cabeça. — Não há muito
tempo e não muito longe daqui, havia uma princesa de Oxford
chamada Frideswide.
— Inventaste esse nome? — perguntou Hazel.
— Não! Ela chamava-se mesmo assim. Deixa-me contar a
história! — Sorriu. — Frideswide cresceu num priorado de Oxford,
e sempre quis ser freira, mas a sua beleza era tal que atraía
pretendentes de todo o reino, que lhe imploravam que se casasse
com eles. — Harry falou num tom mais grave. — Um dia, o rei de
Mércia, Algar, chegou a Oxford e pediu ao pai de Frideswide a
mão da filha em casamento. Frideswide seria coroada Rainha de
Mércia.
— Eu quero ser rainha! — Flora levantou as mãos.
Harry baixou o tom de voz.
— Tu podes querer, mas a princesa Frideswide não se quis
casar com Algar. Por isso fugiu. Meteu-se num barco e navegou
pelo rio Tamisa até chegar a… — Pausa dramática.
— Onde? — inquiriu Hazel, totalmente embrenhada na história.
— Binsey! — disse ele.
— Ela veio para aqui? — concluiu Hazel. — Para não se casar
com o rei?
— Sim!
Hazel fez um compasso de espera para pensar no significado
daquela história.
— Ela não queria ser rainha?
— Não, queria ser freira e curar as pessoas, o que fazia com
estas águas.
— Se o rei a amava e se queria casar com ela, porque a deixou
fugir? Ou foi à procura dela? — quis saber Hazel. Pareceu-lhe um
pormenor importante. Não valia a pena ir atrás da pessoa amada?
— Foi — respondeu Harry. — Algar foi à procura dela, e esteve
quase a encontrá-la, mas foi então que… — Harry fez outra pausa
dramática, e ergueu as sobrancelhas.
— O quê? — perguntou Flora. — Foi então que o quê?
— BUM!
As duas raparigas saltaram para trás e depois riram-se da sua
tolice.
— O rei Algar foi atingido por um raio. Ficou cego e nunca
encontrou Frideswide.
— Ooohhh. — Os olhos de Flora arregalaram-se.
Hazel ponderou em voz alta numa história que nunca tinha
ouvido.
— Uma princesa que não queria ser encontrada e não queria
ser rainha.
— Estranho, não é? — concordou Harry. — E agora é santa. O
seu túmulo fica em Oxford, em Christ Church. Até Catarina de
Aragão visitou o túmulo quando soube que não podia ter filhos.
Pensou que Frideswide a curaria.
— É melhor ser santa do que ser rainha? — perguntou Hazel.
Harry encolheu os ombros.
— Acho que depende da pessoa. Também existe um vitral
dedicado a Frideswide junto do túmulo.
— O que é aquilo? — inquiriu Hazel, apontando para uma
pequena pilha de pedras e penas, pedaços de vidro irregulares,
elos de uma corrente dourada e um pedaço de porcelana azul
rachada.
— As pessoas trazem oferendas e rezam a Frideswide.
Acreditam que, se deixarem aqui alguma coisa e rezarem, o poço
vai curá-las. — Fez uma pausa e sorriu. — Venham comigo!
Arrancou enquanto Hazel e Flora ficaram a olhar para o buraco
de água escura. Os seus poderes curativos transformaram uma
princesa numa santa; uma princesa determinada a viver a sua
própria vida.
— O Bosque dos Sussurros tem um poço? — segredou Flora a
Hazel.
— Aposto que tem. Vamos procurá-lo da próxima vez.
Correram atrás de Harry, que seguia mais à frente, sem olhar
para trás. Já tinha partido para a próxima aventura sem antes
terminar esta.
As três crianças desceram a colina a correr, com as ervas
castanhas vergadas sob os seus pés, até chegarem a uma
estrada de terra batida. Harry parou e virou-se. À sua frente, mais
uma antiga construção de pedra com uma placa num poste de
madeira que balançava ao vento: THE PERCH. Harry apontou para
lá.
— Dizem que Lewis Carroll escreveu muitas páginas d’As
Aventuras de Alice no País das Maravilhas aqui — informou,
antes de baixar a voz e olhar à volta, como se estivesse
assustado — E dizem que este lugar é assombrado por um
marinheiro.
— Um fantasma? — perguntou Flora, num sussurro.
Harry encolheu os ombros.
— Vivi sempre aqui e nunca o vi.
Deu mais alguns passos e parou em frente a um edifício de
madeira.
— A escola de Binsey — anunciou.
— Escola? — Hazel ainda não tinha pensado no regresso a
algo tão normal como a escola. Estavam agora num lugar mágico:
no meio de uma aldeia perto de um rio onde um rapaz contava
histórias sobre santas e reis e princesas que fugiam do
casamento.
— Sim — disse Harry, com uma gargalhada. — Achavas que as
crianças só iam à escola em Londres?
— Não. — Hazel corou de vergonha. — É… pequena.
— Tem apenas duas salas. E pronto, já viram tudo o que há
para ver. Binsey é agradável, mas é uma aldeia pequena.
— Esperem! — gritou uma voz.
Os três viraram-se e viram uma rapariga com tranças ruivas
esvoaçantes, com a bainha do vestido na mão, para correr mais
depressa, a descer apressadamente a colina na direção deles.
Espantada, Hazel ainda pensou que a rapariga levantaria voo.
Capaz disso parecia ela. Era Kelty, a rapariga que vira a chorar e
que tinha sido levada pela bruxa.
Ofegante, Kelty parou diante de Hazel, Flora e Harry.
— Eles vêm atrás de mim — disse, apontando para a colina.
Dois miúdos de faces coradas — gémeos, obviamente —
corriam na sua direção.
— São os gémeos Baldwin — esclareceu Harry. — São
inofensivos.
Os miúdos pararam diante deles.
— Achas que são migras? — perguntou o da direita ao da
esquerda.
— São migras nojentas — respondeu o outro.
— Ei! — Harry deu um passo em frente e bateu no ombro do
rapaz da direita. — Ethan, estas raparigas são visitas na nossa
cidade. — Harry olhou para as raparigas com um sorriso e tentou
aligeirar a situação. — Vocês são deslocadas, sabiam?
Flora abanou a cabeça com força, à beira das lágrimas.
Escondeu a cara na saia de Hazel.
— Não somos nada disso — declarou Hazel, com uma coragem
fingida, enquanto se aproximava dos dois miúdos malcriados. —
Somos de Bloomsbury, e estamos aqui para ajudar no esforço de
guerra, mantendo-nos seguras e fora de perigo.
— Quer dizer que são medrosas — concluiu o gémeo da direita.
— O que é uma migra? — perguntou Hazel a Harry, recuando
alguns passos.
— É um nome estúpido para um deslocado — esclareceu ele.
— E se formos? — A rapariga das tranças ruivas, Kelty,
empurrou o segundo rapaz para o chão. — Deslocado não é um
nome feio!
O gémeo que ainda estava de pé cerrou o punho como se
quisesse dar um murro a Kelty, mas depois pensou melhor. O
irmão pôs-se de pé, limpou a terra dos joelhos e das palmas das
mãos e disse num rosnado:
— A tua sorte é seres rapariga, senão desfazia-te à pancada.
— Adam, não. — Harry pôs-se à frente das raparigas. — Vamos
lá parar, está bem? Isto já não tem graça. Vão arranjar outra
brincadeira e esqueçam as raparigas.
Os gémeos viraram costas e desapareceram colina acima, em
passo de corrida. Por cima deles, um bando de estorninhos
transformou-se numa nuvem de asas. Um padre passou de
bicicleta, tocou a campainha e acenou-lhes. Atrás dele, a pé,
vinha um grupo de quatro mulheres com capas azuis a esvoaçar
ao vento, toucas alvas como penas de cisne pousadas nas
cabeças. Riam-se e empurravam-se umas às outras, e a mais
baixa, com caracóis escuros, acenou para as crianças antes de
enlaçar o braço de outra mulher e dizer:
— Vocês acham que ele vai estar no pub hoje à noite?
Hazel desviou o olhar e observou com admiração a rapariga de
cabelo ruivo.
— Chamo-me Hazel — apresentou-se. — Gostei da maneira
como deitaste aquele fanfarrão ao chão.
— Kelty — respondeu a rapariga. — Teria feito o mesmo por ti,
sabes.
Hazel quis abraçar Kelty.
— Não é preciso. Ficaste em casa daquela senhora má?
Kelty acenou com a cabeça.
— É a Sra. Marchman.
Hazel baixou a voz e inclinou-se para a frente.
— Acho que ela é uma bruxa de conto de fadas. Vi-te na
Câmara Municipal de Oxford.
Kelty mordeu o lábio inferior.
— Deixas-me passar algum tempo em tua casa? — perguntou.
Hazel pensou em Frideswide, que fugiu do rei Algar e encontrou
um lar em Binsey. Pensou em Algar, que ficou cego, e desejou o
mesmo para a bruxa. Era como se Harry tivesse invocado
Frideswide para este mundo, e ela tivesse tranças ruivas e um
espírito indómito.
Harry pronunciou-se.
— Sim, vamos para casa.
[1]
Em inglês, treacle, do latim theriaca. Preparado medicinal
usado como antídoto para veneno. [N. T.]
CAPÍTULO 22

Setembro de 1939

A lareira acesa aquecia o chalé dos Aberdeens. No fonógrafo,


ouvia-se Bing Crosby. Isto, pensou Hazel ao atravessar a porta da
rua juntamente com Harry, Flora e Kelty, é o que o Harry quer
dizer quando pronuncia carinhosamente a palavra lar.
Despiram os casacos e penduraram-nos nos ganchos, e
alinharam as galochas numa fila muito direitinha debaixo do
banco de pinho quando Bridie saiu da cozinha e os cumprimentou
com um caloroso «Olá! Como correu a exploração pela nossa
aldeia?».
Flora pôs-se em bicos de pés e ergueu as mãos.
— Encontrámos um poço para onde uma princesa fugiu… — A
palavra que lhe saiu foi prissessa, mas Bridie percebeu o que ela
quis dizer.
— Sim, é verdade. A nossa Frideswide local. — Bridie limpou as
mãos ao avental. — Quem quer uma chávena de chá e um
biscoito?
— Eu quero! — disse Harry, e logo a seguir: — Mãe, apresento-
te a Kelty.
Bridie esboçou um sorriso caloroso.
— Sê bem-vinda, minha querida.
— Obrigada. — A voz de Kelty estava trémula. Bridie
aproximou-se mais.
— Estás bem?
Kelty endireitou os ombros e a verdade veio ao de cima.
— Não. A senhora que me acolheu é má e suja. Não posso ficar
em casa dela. Queria pedir-lhe para me deixar ficar aqui consigo.
— Não posso aceitar mais crianças sem ter camas disponíveis.
Mas não pode ser assim tão mau, pois não?
— Eu durmo ali. — Kelty apontou para o sofá florido e mole
onde Hazel tinha deixado um livro de Peter Pan aberto e virado
para baixo nas almofadas. Os lábios de Kelty tremeram. — Dava-
lhe as minhas senhas de racionamento, mas a Sra. Marchman
guardou-as numa gaveta fechada à chave. E ela quer ensinar-me
a remendar roupa, que é como ganha dinheiro. À noite, bebe de
uma garrafa escura e adormece numa cadeira grande sem fazer o
jantar. — Kelty estremeceu, e as palavras saíram-lhe em
catadupa. — Ontem à noite, encontrei umas cenouras para
comer. E ela ressona com a cabeça toda para trás e fala e grita
durante o sono! Nem imagina as coisas que ela diz!
Bridie parecia estar à beira das lágrimas, mas recompôs-se.
— Kelty, por agora, vem tomar uma chávena de chá e comer um
biscoito. — Em seguida, apontou para as traseiras do chalé. — E
depois podes usar a nossa banheira para te lavares. Tenho um
sabonete de alecrim com um aroma divinal.
Os olhos de Kelty encheram-se de lágrimas e ela abraçou
Bridie, como uma criança a afogar-se que encontra um bote
salva-vidas.
— Sei que todos recebem dinheiro por nos acolher. Já ouvi
dizer. Recebem dez xelins e seis pence por cada criança.
Harry ergueu os ombros.
— A minha mãe ganha o seu próprio dinheiro. Trata da
contabilidade de quase todos os negócios da cidade. Não
acolhemos ninguém por dinheiro!
Bridie pousou a mão no ombro do filho e apertou-o.
— Está tudo bem.
A expressão de Kelty parecia prestes a desmoronar-se, ainda
mais agora que tinha insultado Harry.
— Eu sei, desculpe. Queria insultar a bruxa, não a si — corrigiu.
Hazel e Harry olharam um para o outro e a rapariga sentiu a
falta de algo que não conseguiu nomear. Mas o sentimento
passou tão depressa como surgiu, e os cinco logo se sentaram à
volta da pequena mesa da cozinha, a mergulhar biscoitos de
manteiga no chá quente. Hazel reparou no olhar expetante de
Bridie e disse-lhe:
— Nós adoramos Binsey.
— Que bom. — Bridie sorriu, embevecida com Hazel. — Há
magia em toda a parte.
Hazel sabia que isso não era verdade, mas o facto de o dizer
fazia com que parecesse possível, mesmo que a guerra fosse
uma realidade e a mãe estivesse em casa sozinha, à espera do
seu postal.

A noite caiu sobre eles lentamente, e o fogo na lareira da sala


de estar voltou a acender-se. Harry estava de volta dos trabalhos
de Matemática e Hazel lia Peter Pan em voz alta para Flora.
Bridie estava na cozinha, de volta dos tachos, com Kelty muito
atenta a tudo. O aroma reconfortante do borrego e do alecrim
enchia a casa, quando uma série de pancadas fortes na porta os
surpreendeu a todos.
Hazel deu um salto. A mãe tinha recebido o seu postal em
apenas um dia? Tinha-se metido no comboio para ir ter com elas?
Hazel correu de meias até à porta e abriu-a para dar com a bruxa
desgrenhada a olhar para ela com olhos sem vida.
Não era, de todo, a sua mãe.
A Sra. Marchman, que tinha o mesmo cheiro azedo de um beco
de Londres, passou por Hazel em direção a Kelty, que estava
encolhida no sofá.
— Bem me parecia que a Sra. Aberdeen estava por detrás
disto. Assim como está por detrás de tantos outros
desaparecimentos.
Harry deu um pulo e a cadeira caiu no chão.
— Não volte a falar com ou sobre a minha mãe.
Bridie surgiu quase a flutuar na sala, com o avental florido a
cair-lhe da cintura em dobras suaves. Contrastava com a bruxa
em todos os aspetos.
— Olá, Glynnis. Em que posso ajudar?
— Tirou-me a criança que acolhi. Mande-a já para casa ou digo
à polícia que a raptou.
— Tenha calma. Não raptei ninguém.
— Devolva-me a rapariga. — A bruxa moveu-se rapidamente,
posicionando-se tão perto de Bridie que os seus narizes quase se
tocaram. Bridie não se mexeu.
— Hazel — disse ela, sem virar a cabeça —, levas as duas
meninas para o teu quarto?
Hazel não se mexeu, enquanto Flora e Kelty fugiam.
— Por favor — disse ela a Bridie. — Deixe a Kelty ficar
connosco.
Bridie acenou com a cabeça.
— Hazel, preciso que vás para o quarto e me deixes tratar disto.
A rapariga assim fez, e foi dar com Flora e Kelty sentadas na
beira da cama.
— Aquela senhora é horrível — disse Flora. — Como a bruxa no
esconderijo.
Hazel sentou-se ao lado da irmã e apertou-lhe a perna com
força, na esperança de que a mensagem fosse clara. Não fales
sobre a nossa história.
— Ela é mais do que horrível. Ela é… — Kelty enrolava as
pontas desfiadas da sua trança — ela é horrível como o raio.
Riram-se todas, mas não de alegria.
Hazel ainda pensou em contar a Kelty sobre o Bosque dos
Sussurros, para confortá-la, mas não o fez. Era demasiado
sagrado. Em vez disso, contou a Kelty a história de Frideswide, a
princesa que não queria ser rainha de Mércia, que fugiu e foi
protegida por Deus, que cegou o rei Algar.
— Bela história — disse Kelty —, mas não estou a contar que
Deus cegue a Sra. Marchman.
As raparigas brincaram no chão do quarto e Kelty contou às
irmãs a sua história. Tinha vindo da zona norte de Londres, o pai
estava na guerra e a mãe teria vindo buscá-la se soubesse da
bruxa. Tinha um cão chamado Jack e um gatinho chamado Silver.
A sua melhor amiga era a Lila, e o seu quarto roxo tinha cortinas
de renda. Kelty falava sem parar, como se isso pudesse abafar a
voz esganiçada da bruxa que se esgueirava por baixo da porta.
Ouviram mais alguém a bater à porta da rua, mas Kelty não
parou de contar a história da mãe que a tinha levado à praia no
ano passado, quando nenhuma delas podia imaginar que hoje
estariam naquela situação.
A porta do quarto abriu-se.
— Meninas — disse Bridie. — Preciso que venham cá para fora.
Elas obedeceram prontamente, mesmo quando Hazel sentiu o
frio do medo na barriga. Na sala de estar foram encontrar um
homem alto, um polícia com o seu chapéu azul na mão. Uma
cicatriz mais branca do que a pele do rosto marcava-lhe a testa
como uma estrada sinuosa.
Falou num tom solene.
— Bridgette, tem de deixar a rapariga voltar para a Sra.
Marchman, que foi quem a acolheu. A papelada já está tratada
e…
— A papelada não significa nada para mim, Aiden — disse
Bridie. — A Sra. Marchman trata esta criança com crueldade. Não
lhe dá comida suficiente! A Kelty fica aqui.
A bruxa soltou um som que seria supostamente um riso, mas
que ninguém consideraria como tal.
— Crueldade? Só porque espero obediência e cooperação?
Crueldade? Porque não danço à volta da fogueira e brinco no rio
como uma criança?
Hazel olhou para Bridie, com um rosto que tinha tanto de bonito
como o da Sra. Marchman tinha de feio. Dançar à volta da
fogueira? Brincar no rio?
Bridie bateu palmas como se estivesse prestes a lançar um
feitiço.
— Fora. Da. Minha. Casa.
— Não sem a rapariga — disse a Sra. Marchman.
Bridie expirou com força e as suas faces sardentas enrugaram-
se.
— Podemos falar sobre isto lá fora, por favor?
Os adultos saíram para a rua e as quatro crianças juntaram-se à
volta da mesa da cozinha.
Não demorou muito até que o inspetor Aiden Davies voltasse
com a notícia devastadora de que Kelty teria de ir com a Sra.
Marchman, por quem tinha sido legalmente acolhida.

Hazel já estava acordada na manhã seguinte, quando o esboço


de Harry passou por baixo da porta. Estava sentada com as
costas contra a cabeceira de pinho da cama de dossel, a pensar
em Kelty. A rapariga tinha sido levada pela Sra. Marchman e por
Aiden, com as lágrimas a escorrerem-lhe pelas faces sardentas.
Hazel levantou-se e pegou no desenho, segurou-o contra a luz da
manhã que entrava pela janela do quarto e admirou o esboço do
focinho felpudo de uma vaca com grandes olhos castanhos. Era
uma das vacas do pasto junto ao caminho de terra batida que
desembocava no rio. Era tão realista que Hazel teve vontade de
passar os dedos pelas suas orelhitas em forma de vírgula.
Quando Flora acordou, tomaram o pequeno-almoço em silêncio.
Harry fez os trabalhos da escola à mesa. Flora e Hazel foram dar
um passeio pelo bosque e depressa se depararam com uma
abertura no tronco de um carvalho que se erguia em solo húmido
e macio. Os galhos quase nus arqueavam-se para o chão da
floresta e as raízes levantavam-se da terra em bossas de corda
grossa e brilhante. O vento sussurrava uma linguagem secreta
entre as árvores.
O espaço aberto no tronco da árvore tinha o tamanho certo para
que duas meninas pudessem entrar, fechar os olhos e escapar.
Hazel e Flora entraram no Bosque dos Sussurros.
— Diz-me — instou Flora. — O que vamos ser hoje?
— Tu é que decides — disse Hazel.
— Fadas.
— Sim — assentiu a irmã. — A nossa missão é salvar a rainha
das fadas e fazê-la regressar ao seu castelo sob o amieiro.
As irmãs voaram sobre o Bosque dos Sussurros, onde reinava a
primavera, não o frio do outono. Neste mundo, as flores
desabrochavam brancas e vermelhas. Os caminhos
serpenteavam, tornando mais difícil a sua busca pelo ogre que
tinha raptado a fada e que a tinha escondido debaixo dos ramos
de uma aveleira morta. Como sempre, o castelo erguia-se para lá
das montanhas, e o mundo ganhava vida diante dos seus olhos.
As árvores transformavam-se em mulheres prestáveis, as suas
folhas em ratinhos, o céu elevava-as e as ervas empurravam-nas
para a frente — tudo no Bosque dos Sussurros contribuía para
ajudar as irmãs, para facilitar o seu caminho. Passaram por uma
bruxa que dormia no tronco de uma grande árvore caída. As
raparigas chegaram finalmente ao castelo, e a rainha, que era
igualzinha à sua mãe, que estava em Londres, pôde sentar-se em
segurança no trono. Foi então que a sala do trono ribombou com
a voz de Kelty, que chamava os seus nomes.
— Hazel! Flora!
As irmãs abriram os olhos e estremeceram. Estava noite escura
no exterior da árvore, e elas estavam escondidas num espaço
cavernoso e húmido.
— Aqui! — gritou Hazel, enquanto saía e puxava por Flora.
Kelty irrompeu por entre as árvores e parou diante delas.
Hazel ficou inquieta. Certamente tinham trazido consigo uma
fada para fora do Bosque dos Sussurros. Kelty bateu o pé e pôs
as mãos nas ancas.
— O que estão a fazer? — perguntou ela, num tom de voz
agudo, que denotava urgência e medo.
— Estávamos apenas a brincar — disse Hazel. Tinha passado
uma eternidade. Quanto tempo tinham passado no Bosque dos
Sussurros?
— Já passa da hora de jantar, e a senhora simpática com quem
vocês moram está muito preocupada. O rapaz anda à vossa
procura por toda a parte. Pensou que estariam no poço mágico.
— Oh, não. Não queríamos assustar ninguém. Só não
queríamos atrapalhar — disse Hazel, numa voz sumida.
— Não acredito que a Sra. Aberdeen ache que vocês
atrapalham… ao contrário da bruxa com quem vivo. Seria capaz
de me cozer para o jantar se achasse que escapava impune.
Flora levantou-se e deu um passo em direção a Kelty.
— Vives com uma bruxa?
Kelty pousou a mão na cabeça de Flora.
— Quem é que te enche a cabeça de histórias que te fazem
acreditar em tudo o que ouves? — Flora olhou por cima do ombro
para Hazel e esboçou o sorriso conspiratório de uma guardiã de
segredos. — A Sra. Aberdeen está muito preocupada.
As três correram o mais rápido que puderam até desembocarem
na clareira, subindo depois o caminho em direção ao chalé. Antes
de chegar, Hazel parou e olhou para a casa. O fumo escapava da
chaminé no telhado de ardósia, e a hera que subia pelo lado
esquerdo refulgia em tons de vermelho e dourado. A casa era
muito parecida com a que ela havia criado. Tinha contado a
história de um chalé na floresta e agora ali estavam elas a viver
nele.
Hazel apanhou Flora e Kelty. Bridie estava no jardim diante da
casa, à espera. Kelty gritou:
— Encontrei-as!
Bridie abanou a cabeça.
— Onde é que vocês estavam?
— Estávamos no bosque, minha senhora. Não fomos para
longe — disse Hazel. Naquele momento, como se estivesse a
responder a Hazel, uma coruja piou ali perto. Todas ergueram o
rosto na direção do som. Será que o pássaro as tinha seguido
desde o Bosque dos Sussurros?
— Ah — disse Bridie, sonhadora. — A visita de uma coruja.
— O que significa? — Kelty girou sobre si mesma, em busca da
coruja na escuridão.
— Significa que alguém aqui consegue ver o que está
escondido.
— Hazel! — gritou Flora. — Nós temos uma coruja, não temos?
Hazel apertou a mão de Flora e olhou para Bridie.
— Desculpe. Perdemos a noção do tempo.
Bridie fez sinal para que entrassem, depois fechou a porta atrás
de si. Olhou para as raparigas com uma intensidade que elas
ainda não tinham visto.
— Quero que ouçam com atenção. É ótimo correr pelo bosque e
o rio é muito bonito. Mas têm de me dizer para onde vão e têm de
voltar para casa antes de escurecer. Agora, sou responsável por
vocês. — Flora aproximou-se de Hazel, escondeu-se atrás da
irmã e enterrou a cabeça nas dobras do seu vestido. — Não te
quero assustar, Flora, mas vocês pregaram-me um valente susto.
— Depois, voltou a atenção para Kelty. — E obrigada, querida.
Jantas connosco?
— Sim, por favor. — Kelty saltitou sem sair do mesmo sítio. —
Posso… ficar mais tempo?
— Mais tempo? — perguntou Bridie.
— Sim.
Foi interrompida por Harry, que entrou de rompante com o ar
frio. Viu o grupo e fechou a porta.
— Onde é que vocês estavam?
— Na nossa xetória — disse Flora.
— História — corrigiu Hazel.
— O que quer isso dizer?
Hazel sentiu o cheiro do seu suor misturado com o ar da
floresta.
— Nada — disse. O seu pescoço estava quente, a cara perdida
em atrapalhação, entre sorrisos e testas franzidas. Tinha a
certeza de que as suas pernas acabariam por ceder.
Hazel afastou-se dele e Bridie voltou para a cozinha, com Flora
no encalço. Kelty e Hazel caminharam até à lareira e estenderam
as mãos para o calor das chamas. Harry seguiu-as, aproximando-
se demasiado.
— Não precisas de te preocupar comigo! — disse Hazel, num
tom de voz mais agudo do que o esperado. Ultimamente, não
conseguia definir os sentimentos. Surgiam demasiado rápido e
eram difíceis de identificar.
— Claro que tenho de me preocupar contigo. Eu e a minha mãe
já perdemos uma pessoa.
— O teu pai — concluiu ela.
— Não me lembro dele — disse Harry com palavras duras,
como se as tivesse cuspido.
— O que aconteceu? — insistiu Hazel, não se contentando com
informações vagas. Harry corou e Hazel percebeu que estava a
fazer um esforço para não chorar. — As pessoas não
desaparecem simplesmente.
— Desaparecem — disse Harry, encarando-a. — Desaparecem,
sim.
CAPÍTULO 23

Março de 1960

A festa de aniversário em casa dos Tennysons transbordava de


sala em sala no piso principal. Na varanda de pedra, quase todos
os rostos estavam iluminados pelo brilho de um cigarro, enquanto
um quarteto de cordas atuava no relvado sob o beiral, onde
cresciam prímulas amarelas. As lanternas tremeluziam com velas
que tinham sido acesas mesmo antes da chegada do primeiro
convidado.
Depois da marcação da mãe, Hazel passara o dia a ajudá-la
com as flores, a decidir onde colocar os copos de vinho e a
acender velas. Agora que a festa estava no auge, Barnaby estava
ao seu lado, entrelaçando os dedos nos dela como se quisesse
uni-los. Para ser sincera, era assim que sempre quisera que ele
fosse: atento, centrado nela, a perguntar se estava bem, a trazer-
lhe taças de champanhe, a dizer-lhe que estava linda no seu novo
vestido de seda verde com uma saia que balançava a cada
movimento seu.
Hazel olhou para Barnaby, que naquele momento estava a olhar
para ela, e beijou-o.
— Amo-te — disse-lhe. O rosto dele iluminou-se, e ele
devolveu-lhe o beijo.
— E eu a ti.
Tenny apareceu ao lado deles.
— Estão a divertir-se? — inquiriu. Sempre quis que Hazel
gostasse dele mais do que ela estava disposta a mostrar. Mas,
naquela ocasião, ela decidiu ceder um pouco.
— Sim. Estou a divertir-me imenso! Muitos parabéns!
— Obrigado. — Ele sorriu; um sorriso encantador não menos
radiante do que o do pai.
Uma rapariga com a idade de Tenny, cerca de 14 anos,
aproximou-se dele, com um vestido vermelho tão curto que Hazel
ponderou se ela não o teria cortado uns centímetros.
— Tenny — chamou, numa voz sedutora. — Parabéns. —
Inclinou-se para beijá-lo, mas ele esquivou-se dos seus lábios
com mestria.
Hazel sorriu e acenou para que Barnaby a seguisse. No
corredor, ouviram a voz de Kelty.
— Até que enfim! — exclamou Hazel.
Kelty viu-os do outro lado da sala e correu para eles. O seu
vestido azul bordado estava coberto de pequenas flores brancas e
parecia dançar quando os abraçou.
— Que festa maravilhosa.
— É sempre assim com a Sra. Tennyson — disse Barnaby, com
um empurrãozinho cúmplice a Hazel. Fergus abriu caminho por
entre a multidão e cumprimentou Hazel e Barnaby com um forte
aperto de mão. Era um homem de aparência indómita, com
cabelos loiros que nunca haviam perdido a cor e que apontavam
em todas as direções. Trazia um casaco verde com um lenço
amarelo no bolso, sempre muito elegante, e um martíni com duas
azeitonas, ambas com uma mordidela.
Kelty entrelaçou o braço no de Hazel.
— Vamos procurar o Tenny para eu lhe dar os parabéns e
despachar as formalidades.
— Boa desculpa — disse Fergus, acenando com a cabeça para
Barnaby. — Olha que duas.
Hazel levou Kelty para o jardim de inverno vazio e fechou a
porta.
— Estás livre nos próximos dois dias? — perguntou. — Preciso
de ir a St. Ives.
Kelty quase deu um pulo.
— Na Cornualha? Sou toda tua. Mas antes de me dizeres do
que se trata, tenho de te confessar uma coisa.
Hazel tirou os sapatos de salto alto, que lhe apertavam os
dedos dos pés.
— Preciso de ir buscar as contas do rosário?
— Possivelmente. — Kelty caminhou até à janela e depois
virou-se. — Tirei a morada do recibo da Hogan e enviei um
telegrama.
Hazel levou a mão ao coração.
— Não podes simplesmente fazer uma coisas dessas… não
podes.
— Eu sei. Foi presunçoso da minha parte e peço desculpa. Fi-lo
por amor e depois percebi que devia ter falado contigo. —
Contorceu a cara num esgar. — Sou dada a precipitações.
Perdoas-me?
— O que escreveste no telegrama?
— Como soube desta história? Stop. É uma questão de vida ou
morte. Stop.
— Oh, Kelty…
— Dei-lhe a tua morada. Se ela ignorar, embarcamos para a
América.
Hazel aproximou-se da amiga e abraçou-a.
— Perdoo-te e quero que saibas que gosto muito de ti. Era isso
que eu devia ter feito.
— Pois bem — disse Kelty. — O que há na Cornualha?
A porta do jardim de inverno abriu-se para dar passagem a
Fergus e Barnaby.
— Eu disse-te que elas queriam ficar sozinhas — disse Fergus,
com um sorriso.
— Certamente para traçar planos para dominar o mundo —
concluiu Barnaby, enquanto se aproximava de Hazel e a beijava.
— É por aí — assentiu Kelty.
Hazel calçou os sapatos e saíram os quatro, em casal, de
braços dados. Kelty olhou por cima do ombro, com a pergunta
ainda a pairar entre elas: «O que há na Cornualha?» Levantou as
sobrancelhas para Hazel, num gesto pleno de significado.
— O Harry — respondeu Hazel, em surdina.
CAPÍTULO 24

Setembro de 1939

Ao quarto dia em Binsey, chegou finalmente uma carta da mãe,


enxovalhada e suja como se tivesse feito uma viagem muito
turbulenta. A mãe iria visitá-las dentro de três semanas. Mas até
lá escreveria cartas e Hazel e Flora deveriam fazer o mesmo.
À medida que os dias iam passando, Hazel e Flora foram
criando um calendário com o papel de desenho de Harry.
Desenharam um coração a vermelho no dia em que a mãe
chegaria. Todas as noites desenhavam pequenas estrelas do seu
rio imaginário no quadrado do calendário correspondente ao dia
que passava.
Hazel gostava tanto de estar ali que era difícil desejar voltar a
Bloomsbury, apesar de Bridie não saber fazer tranças e de os
gémeos Baldwin gozarem com ela na escola por ser uma
deslocada. A escola era horrível. Sentia-se sozinha entre as
crianças que já eram amigas umas das outras, e o trabalho
escolar era chato. Mas Hazel não queria reclamar; não queria que
a mandassem para outro lugar. Bridie tinha uma cozinha quente e
papas de aveia doces com natas, havia livros por todo o lado, e
podiam sempre comprar mais nas viagens de sábado a Oxford. Já
para não falar de Harry, dos seus desenhos diários e das
aventuras em que as levava todas as tardes no bosque.
Por vezes, Kelty juntava-se a Harry, Hazel e Flora nas suas
aventuras, quando a Sra. Marchman adormecia ou a mandava
fazer um recado. Kelty era um deles, mesmo que não pudessem
passar a noite na mesma casa. Construíam fortes com troncos e
musgo debaixo de um grande amieiro, e atiravam pedras para o
rio delimitado por juncos, até Harry ensinar Hazel e Kelty a fazer
as pedras rasar nas águas. Kelty falava pouco sobre o horror de
viver com a Sra. Marchman, mas todos sabiam que era mau.
De poucos em poucos dias, Bridie insistia que Hazel escrevesse
à mãe, e ela aproveitava para contar as suas aventuras. Hazel
praticava a caligrafia e tentava parecer animada e feliz. Faziam
desenhos do campo e da vaca Daisy. Era tudo o que sabiam fazer
e não lhes parecia suficiente.
Uma tarde, Flora chamou do quarto, mas a sua voz soava
abafada, aterrorizada.
Hazel foi a correr e viu que Flora estava sentada de pernas
cruzadas na cama, com a máscara de gás vermelha e azul sobre
a cara, os olhos grandes por trás dos óculos de plástico e o
focinho reptiliano com buracos perfurados em evidência. As
fivelas estavam tortas. Flora apertava o Berry com força nos
braços.
— Flora! — Hazel sentou-se ao lado da irmã, afundando a
cama, e estendeu a mão para soltar as tiras pretas. — O que
estás a fazer?
— Ouvi uma sirene — disse Flora. A sua voz e respiração por
trás da máscara faziam parecer que estava debaixo de água.
Hazel soltou as fivelas e deslizou os dedos para baixo da
borracha, retirando-a do rosto de Flora. Hazel viu as marcas da
máscara apertada na pele pálida de Flora.
— Não era esse tipo de sirene. Era só um carro da polícia a
passar ao fundo da rua.
Flora enterrou o rosto no peito de Hazel.
— Eles disseram para colocar a máscara quando ouvíssemos
as sirenes…
— Oh, Flora. — Hazel abraçou a irmã e afagou-lhe as costas.
Estalou a língua como a mãe fazia quando algo corria mal. Hazel
imitava e praticava ser adulta sem se sentir como tal.

Numa tarde fria, com o fogo aceso na lareira, Hazel sentou-se à


mesa redonda da sala de estar com Harry, onde faziam os
trabalhos de casa. Os números que tinha à sua frente já estavam
desfocados. Harry conseguia somar longas filas de números sem
grande esforço, ao passo que ela tinha de contar com os dedos
debaixo da mesa.
— Detesto Matemática. Detesto. — Hazel cravou e arrastou o
lápis pelo papel, partindo o bico e rasgando a folha. Bridie gritou
da cozinha:
— Está tudo bem por aí?
Flora levantou os olhos do tapete de lã, onde estava a separar
botões coloridos em potes diferentes.
— São só números — disse ela.
— Nem consegues contar sem falhar os números sete e doze,
por isso o que sabes tu? — atirou-lhe Hazel, sentindo as faces a
ruborizar ao ser envergonhada à frente de Harry. Levantou-se
para sair, frustrada e com vontade de ir até ao rio.
— Eu posso ajudar — ofereceu-se o rapaz.
Hazel olhou para ele. Bridie tinha-lhe dito naquela manhã ao
pequeno-almoço que precisava de cortar o cabelo; iriam à cidade
amanhã. Os seus caracóis escuros estavam arrumados atrás das
orelhas. As suas longas pestanas e olhos escuros eram lindos de
morrer. Ela desviou o olhar.
— Não quero a tua ajuda.
— Porquê? — perguntou ele, rodopiando o lápis entre as mãos.
— Não tenho jeito para muitas coisas, mas sou bom a
Matemática. Posso ajudar-te.
— Não quero a tua ajuda — tornou ela.
— Porquê?
Porque, se me ajudares, vou gostar de ti ainda mais do que já
gosto e, se gostar de ti ainda mais do que já gosto, podes não
retribuir, apeteceu-lhe gritar. E isso poderia estragar tudo. Se
Harry não gostasse dela como ela gostava dele, teria de ir viver
com outra família ou voltar para Londres. E de todas as coisas
horríveis do mundo, perder Harry parecia ser a pior.
Era um dilema que ela não compreendia: precisava que ele
gostasse dela, mas queria afastá-lo; estava apavorada com a
ideia de deixar Binsey, mas tinha vontade de fugir; sonhava com
ele, mas via-o todos os dias do outro lado da mesa do pequeno-
almoço, desalinhado pelo feno e pelo orvalho da manhã.
— Não importa porquê — disse finalmente. — Não quero e
pronto.
— Ela não está a dizer coisa com coisa — disse Flora do chão.
— Faz isso às vezes. — Flora retomou a separação de botões,
contando em voz alta. — Um, dois, três, quatro, cinco, seis, oito…
— Viste? — disse Hazel, ao sair da sala. — Saltas sempre o
número sete!
Nessa noite, a véspera do dia em que a mãe chegaria ao chalé
dos Aberdeens, Hazel abraçou Flora.
— Desculpa. Às vezes, não me comporto como a adulta que
quero ser.
— Não faz mal — disse Flora, chegando-se a ela. O perdão era
fácil para o seu espírito doce, perante o peso do remorso que
atormentava Hazel.
Adormeceram finalmente, mas em sonhos Hazel sentiu uma
leve batida que acabou por acordá-la. Uma nova batida na janela
ressoou pelo quarto. Da cama, com a perna esquerda de Flora
por cima de si, Hazel viu na janela o contorno da cara de uma
rapariga com duas tranças.
Kelty.
Hazel saiu da cama aos tropeções e abriu a janela. Uma lua
baixa e redonda assentava como uma tigela no horizonte atrás de
Kelty.
— O que estás a fazer? — sussurrou Hazel.
— Vim dizer-te que vou fugir. Roubei o dinheiro do frasco da
bruxa e vou a pé até à estação por Jericho. É uma caminhada
fácil por Port Meadow e depois é só apanhar um comboio para
Paddington. Prefiro ser morta por uma bomba a viver com aquela
mulher horrível.
— É de noite. Está escuro.
— Claro. É a melhor altura para fugir. Todas as coisas secretas
acontecem no escuro — disse Kelty. — Mas queria que
soubesses que serás para sempre a minha melhor amiga, porque
foste tu que me falaste da Frideswide. Às vezes, não podemos
ficar à espera de que alguém nos salve.
— Isso foi só uma história — disse Hazel, sentindo o medo a
subir-lhe pelo corpo. A noite era perigosa.
— Não. Não foi só uma história. Nunca é só uma história.
— Kelty, não vás.
— Promete-me que não contas a ninguém até eu chegar a casa
da minha mãe. Não podes contar a ninguém. Promete que me
vais dar tempo para chegar a Londres.
— Prometo — disse Hazel na noite, sob uma lua em quarto
crescente. Certamente aquele seria o tipo de promessa que
nunca poderia ser quebrada.
E com isso, Kelty desapareceu.
De manhã, Hazel pensou que tinha sonhado com a fuga de
Kelty, e viu outro desenho a escorregar por baixo da porta. Desta
feita, era do forte que tinham construído e que tinha sido
arrastado pela chuva. Hazel colocou-o na cómoda antes de sair
para a cozinha quente.
Bridie levantou os olhos da panela e ela perdeu o sorriso.
— Docinho, o que se passa?
A forma terna como Bridie fez a pergunta mostrava a sua
preocupação, e Hazel teve de dizer a verdade.
— Quero estudar aqui, como o Harry. Não odeio a escola, até
gosto muito da minha escola em Bloomsbury, mas nesta daqui
tenho sempre de almoçar sozinha na colina porque ninguém fala
ou brinca comigo.
— Mas porquê?
— Porque não sou daqui. Acabo sempre os meus trabalhos
mais cedo, mas tenho de ficar ali sentada porque a professora
nem me deixa ler. E eles dizem… — Hazel emudeceu e Bridie
apertou-lhe a mão para continuar. — Dizem que fez o seu
marido… desaparecer.
— As coscuvilhices são o flagelo das aldeias pequenas. — As
papas borbulharam no fogão, uma sirene soou ao longe e Flora
chamou por Hazel, mas nem ela nem Bridie se mexeram. — Vais
estudar com o Harry, aqui em casa.
Uma sensação de alívio espalhou-se pelo seu corpo, desde o
estômago até à garganta, e Hazel soltou um suspiro. Bridie
baixou-se e abraçou-a com tanta força que Hazel se perguntou
porque é que os outros não abraçavam sempre assim.
Bridie levantou-se e apanhou a colher de pau do chão.
— Eu sei o que dizem sobre mim, Hazel. Não deixes que isso te
incomode. A mim, não me incomoda nem um pouco. Eles são
ignorantes e tu não podes mudar isso.
Bridie virou-se e caminhou até ao fogão, com as costas direitas
e as mechas do cabelo encaracolado a cair dos ganchos. Hazel
quis ficar de pé e abraçá-la com força, enquanto mexia o
pequeno-almoço borbulhante, e ser para Bridie o que esta tinha
acabado de ser para ela.
Se Bridie confiava nela, ela tinha de confiar em Bridie.
— Bridie, tenho de lhe dizer uma coisa. — Bridie virou-se, com
um meio-sorriso. Hazel estava prestes a quebrar uma promessa.
Mas e se Kelty se perdesse na floresta? Ou caísse no rio? E se
tivesse sido esfaqueada nas ruas de Oxford? — A Kelty fugiu…
levou o dinheiro da bruxa e vai apanhar o comboio para ir ter com
a mãe no norte de Londres.
As palavras tropeçavam umas nas outras.
— Oh, Hazel! Quando?
— A meio da noite.
— Minha querida menina. — Bridie fechou os olhos. — Vou
certificar-me de que ela está segura. Vou pedir ao padre Fenelly
para ligar do seu telefone e descobrir onde ela está. Hazel. Quem
me dera poder salvar toda a gente. — Abriu os olhos. — Tenho a
certeza de que ela está com a mãe. Não te preocupes com ela.
Por favor.

A chuva caía enviesada, turvando a vista para o pasto. Hazel e


Flora estavam especadas nas janelas da frente da casa de Bridie,
à espera de que um táxi descesse o caminho esburacado e
trouxesse a mãe até elas. Já tinham passado três semanas. Até
então, elas nunca tinham estado separadas um dia que fosse.
Flora agarrou-se à mão de Hazel e entre elas instalou-se um
silêncio inquieto. Flora sussurrou:
— Acho que estou a ver uma porta cintilante. — Mas foi uma
declaração pouco convicta.
— Não — disse Hazel. — Não podemos ir a lado nenhum.
Temos de estar aqui quando a mãe chegar.
Na cozinha, o rádio emitia uma música suave. Harry estava
sentado à mesa redonda onde fazia os trabalhos da escola e a
sua cabeça estava inclinada sobre uma folha de papel com uma
longa equação que Hazel nunca seria capaz de decifrar.
— Ali! — gritou a irmã mais velha, apontando para um táxi cheio
de lama que avançava pela entrada. O táxi parou e a mãe saiu do
banco de trás sem guarda-chuva. Tinha vestida uma gabardina
verde comprida e vinha com o cabelo puxado para trás. Trazia um
saco de lona ao ombro e, em vão, levantou a mão para tapar a
chuva, correndo para a porta do chalé.
Hazel abriu a porta e a mãe quase caiu dentro de casa, rindo e
abraçando as filhas. A mãe cheirava a lã molhada, a lar e a
conforto. Tremia sob o peso das filhas e as lágrimas juntaram-se à
chuva que lhe escorria pela cara.
— As minhas meninas. As minhas meninas. As minhas
meninas.
Por fim, soltaram-se umas das outras. A mãe pegou em Flora
ao colo e olhou para Hazel. Os olhos da mãe estavam marcados
com cores escuras e os seus lábios estavam rachados e secos,
as faces rosadas. Mas era em tudo o resto igual e o medo que
Hazel não tinha percebido que carregava como uma flecha no
peito sossegou finalmente. A mãe estava ali e estava tudo bem.
Elas ficariam bem. Mais algum tempo no campo e depois
voltariam a estar todas juntas novamente. A mãe beijou-as às
duas.
— Tive tantas saudades vossas.
Flora pousou a palma da mão na cara da mãe e deu-lhe uma
palmadinha para ver se ela era real.
— Estás aqui — declarou Flora.
— E trouxe-te algumas surpresas — disse ela.
A voz doce de Bridie interrompeu-a.
— Bem-vinda, senhora Linden!
A mãe olhou para Bridie e sorriu.
— Camellia, por favor. Como posso agradecer-lhe por ter
tomado conta das minhas filhas?
— Elas trouxeram muita alegria à nossa casa — disse Bridie. —
Pois bem, quem quer chá e biscoitos?
— Oh, eu quero — disse a mãe, com uma gargalhada. — Sem
dúvida.
A tarde passou tão depressa que Hazel pensou que os minutos
tinham acelerado a sua marcha. A mãe tinha trazido fitas azuis
brilhantes para o cabelo, um pião que já tinha visto melhores dias,
com uma mossa no lado esquerdo, e galochas novas para as
duas: verdes para Flora e azuis para Hazel. Bridie e a mãe
deram-se tão bem que era como se já se conhecessem e tivesse
sido a mãe a telefonar-lhe a pedir que escolhesse Hazel e Flora.
Harry mantinha-se em silêncio, por mais que a mãe tentasse que
falasse.
Hazel e Flora tagarelavam como os esquilos do Bosque dos
Sussurros. Falaram à mãe do poço mágico e dos gémeos maus,
de Kelty e da sua fuga para o norte de Londres. Falaram-lhe do
rio, da aldeia, do padre Fenelly e da vaca Daisy.
A mãe não era a mesma e Hazel não sabia como explicar, mas
a mãe de antes da guerra tinha desaparecido. As pérolas e os
saltos altos; a voz cantada dos dias felizes; os bolos que fazia e
que tombavam com a espessura da cobertura; os piqueniques no
quintal a fingir que estavam de férias. Aquela mãe parecia
adormecida, como se uma bruxa má lhe tivesse lançado um
feitiço. Esta mãe falava baixo, assustava-se facilmente e o seu
corpo parecia tenso. Raramente se ria e, quando o fazia, era um
riso forçado e falso. Quando a guerra acabasse, talvez a mãe de
antes regressasse.
Quando a mãe partiu, e embora a chuva não tivesse parado e
não tivessem conseguido mostrar-lhe a zona, Hazel acreditou que
tinha estado enganada ao recear que a guerra daria cabo de tudo.
E ao adormecer, e embora isso a fizesse sentir-se um pouco
culpada, Hazel não desejou voltar para Bloomsbury. Ainda não.
Quando a mãe se despediu delas com um abraço, não houve
lágrimas. Só mais tarde é que Hazel descobriu que a mãe chorou
o caminho todo até casa, mas para Hazel e Flora tudo estava
bem.
CAPÍTULO 25

Março de 1960

— As melhores histórias de amor são aquelas que estão


condenadas. Romeu e Julieta. Tristão e Isolda. Todas acabam em
desgosto — disse Hazel, apontando para o livro de Kelty na mesa
da cozinha: O Monte dos Vendavais.
Kelty esboçou um esgar divertido.
— Nós vamos para St. Ives para ver o Harry, e tu a falar de
amores condenados.
— Estou a falar do livro que estás a ler.
A luz da alvorada suavizava a cozinha enquanto Kelty lavava as
taças dos ovos e Hazel preparava o almoço para a viagem à
Cornualha.
— Não é o meu livro que te está a incomodar. É o Harry. Tens
medo de o ver, não tens?
— Eu não tenho medo do Harry. É o Barnaby. — Hazel
envolveu as sandes de queijo e fiambre em papel manteiga e
encarou Kelty. — Partimos para Paris daqui a uma semana. Se eu
fizer alguma coisa para estragar tudo, ele nunca me vai perdoar.
— Então, veres o Harry não é das coisas que mais lhe
agradem?
— Não me parece que esteja muito interessado em que o
encontremos.
— Acho que tens medo de que o Harry não corresponda às
expetativas que tens para ele. Talvez não seja digno de ser
comparado com todos os outros homens com quem saíste.
— Kelty, para. Não vou falar com o Harry para reparar uma
história de amor condenado. Nunca o comparei com outros
homens. Estou a fazer isto apenas pela Flora. Pelo Bosque dos
Sussurros. Para descobrir se a Flora sobreviveu para contar a
história.
Kelty acenou com a cabeça, mas Hazel sabia que ela não
acreditava. Antes que pudessem continuar a conversa, o telefone
tocou. Hazel atendeu.
— Senhora Linden?
— É a própria — disse, enquanto posicionava o auscultador
entre o ombro e o ouvido para conseguir guardar as sandes numa
cesta.
— Fala Lorde Arthur Dickson, da Sotheby’s.
— Oh, olá, senhor Dickson — disse, num tom mais animado,
enquanto endireitava as costas e segurava no auscultador com a
mão. Um homem que sentia a necessidade de lhe lembrar que
era membro da Câmara dos Lordes era um homem que precisava
que lhe afagassem o ego. — Estou ansiosa para começar a
trabalhar.
— Pois. É por isso que lhe estou a telefonar. Nós, aqui na
Sotheby’s, recebemos todos os autos e relatórios policiais sobre
roubos de obras de arte ou livros. O seu nome apareceu no último
relatório que nos chegou de Londres. Queria apenas certificar-me
de que há outra Hazel Linden em Londres que poderia ter
desviado gravuras valiosas e uma primeira edição assinada. — O
homem fez uma pausa, e Hazel sentiu o refluxo gástrico a subir-
lhe pela garganta, o gosto metálico do medo. A voz dele subiu de
tom ao perguntar. — Existe outra Hazel Linden?
— Não, senhor. Fui eu. Foi um mal-entendido terrível, mas já
está tudo corrigido.
— Ora, ora, foi um grande mal-entendido, senhora Linden.
— Sim, foi no meu último dia de quinze anos de trabalho
exemplar na Hogan’s.
— De facto. No entanto, antes de a direção decidir o que fazer
com esta informação, queria confirmar os factos consigo.
Obrigado pela sua honestidade.
— A minha folha de serviço até ao momento tem sido
irrepreensível. Se me permitir, terei todo o gosto em explicar o que
aconteceu.
— Esta situação coloca o seu emprego em risco, senhora
Linden. Voltaremos a contactá-la.
O homem, tal como Peggy Andrews e o funcionário da editora,
desligou sem se despedir. Hazel estava farta de que as pessoas
lhe desligassem o telefone na cara. Voltou a bater com o
auscultador no descanso e encarou Kelty, que fez uma careta.
— Oh… não.
— É bom que isto valha a pena — disse Hazel. — Se perder o
meu emprego, e perder o Barnaby…
Kelty levantou a mão, como se estivesse a falar com a sua filha
pequena.
— Basta. Não entres nessa espiral negativa. Vamos concentrar-
nos no que temos pela frente. Só por agora… hoje.
Era chegada a altura de Hazel ver Harry Aberdeen. Ele não fora
avisado. Não recebera nenhum telefonema. Depois de tantos
anos a pensar se e quando voltaria a vê-lo, era chegado o dia. E o
que Hazel queria dizer a Kelty, o que não tinha encontrado
palavras para dizer, ficou preso dentro de si.
Embora fosse a primeira vez que o veria desde Binsey, não
seria a primeira vez que comunicariam.
CAPÍTULO 26

Novembro de 1946

Aos 21 anos, Hazel estava no 3.º ano da universidade e


ocupava um quarto na Newnham Hall, em Cambridge. Ao entrar
no edifício num dia de outono, o porteiro entregou-lhe o correio,
húmido da chuva incessante de novembro. Entrou no seu quarto e
atirou a correspondência para uma mesa de café redonda no
centro da área de estar. Preocupada com os exames do final do
ano e distraída pela música alta que vinha do quarto duas portas
abaixo, ocupado por uma caloira de Lancashire que só queria
saber de pubs e dos rapazes de Hughes Hall, Hazel não reparou
logo na carta.
A guerra tinha acabado, a Alemanha tinha sido derrotada, mas o
racionamento de artigos como açúcar e chocolate continuava, e
nas ruas calcetadas de Cambridge permaneciam os fantasmas
dos rapazes que não tinham regressado, e os olhares vazios
daqueles que tinham conseguido sobreviver. O seu pai tinha
desaparecido e nem sequer tinham o corpo para enterrar, e Flora
continuava a ser um mistério que nem os melhores detetives de
Oxford conseguiam resolver. Tinham desistido, mesmo que, de
tempos a tempos, Hazel fizesse as duas horas e meia de viagem
de comboio até Oxford e entrasse no gabinete do inspetor Aiden
Davies a pedir atualizações.
Nunca havia nada de novo.
Entretanto, Hazel tinha mergulhado nos livros e nas histórias
que estudava. Percorria os caminhos verdejantes de Cambridge,
passando por edifícios gloriosos e antigos, mas mal reparava na
paisagem. Havia rapazes, claro, mas o seu coração estava
indisponível para eles… e também para si mesma. Nunca mais
voltaria a contar ou a escrever histórias. Criar histórias causava
tristeza, mas lê-las e estudá-las dava-lhe algum conforto. Nas
histórias dos outros, havia finais sem pontas soltas, os
desaparecidos eram encontrados e o mundo fazia sentido.
Esta noite, havia uma palestra do professor J. R. R. Tolkien, de
Oxford, e Hazel tencionava chegar cedo e arranjar um lugar à
frente. Atirou a mochila para o chão e sentou-se numa cadeira
com manchas de chá de gerações de estudantes a percorrer os
envelopes para ver se a mãe tinha escrito de Londres.
Não.
Mas havia uma carta da Escócia, com um carimbo vermelho
húmido onde ela lhe tinha tocado. Não tinha remetente. Rasgou o
envelope, ciente, ainda antes de ler a assinatura, de que era a
carta que esperava. Durante todo aquele tempo, estivera à espera
de notícias de Harry Aberdeen. O resto do mundo desvaneceu-se,
o tempo e Tolkien esquecidos, enquanto a chuva fustigava as
janelas e a noite de outono começava a instalar-se.

Querida Hazel,
Espero que esta carta chegue até ti. Há muitos anos que quero escrever-
te, mas não sabia o que dizer ou como encontrar-te. O Ethan disse-me que
te viu em Cambridge e que estás a estudar em Newnham. Por isso, se
esta carta chegar até ti, bravo, Ethan!

Hazel enunciou o nome. Ethan Baldwin era o rapaz que ela


tinha deitado ao chão na escola com a sua bota. O rapaz que a
chamara «migra», mas que depois os ajudara a procurar Flora. O
rapaz que chorou quando se apercebeu de que não iriam
encontrá-la.
Leu a carta o mais depressa possível, depois uma segunda vez,
mais devagar, e depois outra, alternando os pensamentos entre a
forma como imaginara os últimos seis anos de Harry e o homem
que ele poderia ser hoje.
Leu que Bridie enviara Harry para um colégio interno na altura
em que Hazel regressara a Bloomsbury com a mãe. Bridie quisera
protegê-lo de boatos e insinuações. Harry formara-se e estudava
agora Matemática na Universidade de Edimburgo. Nunca deixara
de pensar em Hazel, nunca, e em como seria a sua vida agora.
Ela fechou os olhos, recuou no tempo e lembrou-se da
promessa que fez na igreja de pedra quando, num pranto, com
sangue no altar, jurou nunca mais ver Harry Aberdeen.
Mas uma carta não era o mesmo que vê-lo. A promessa não
seria quebrada se ela lhe escrevesse de volta, pois não?
Demorou uma semana a escrever a carta, enquanto as
recordações da bondade dele regressavam com a dor da
saudade, que se juntava ao anseio que nunca desaparecera. O
que escrever a Harry consumia os seus pensamentos e fazia-a
negligenciar os estudos.
A correspondência manteve-se durante três anos. Hazel deu por
si a anotar coisas em que reparava todos os dias para partilhar
com Harry: um tordo salpicado a subir da margem do rio, um
arbusto de alecrim em flor que a fez pensar em Bridie e em como
ela enfiava molhos de alecrim nos bolsos, um novo livro de
Agatha Christie acabado de ser lançado, rebentos de centáureas
azuis, aquelas flores que Bridie uma vez lhes disse que curaram
Aquiles.
E Harry contava a Hazel sobre a sua vida: os seus estudos e a
sua viagem à América para visitar Princeton, onde estudou um
semestre com James Waddell Alexander, o renomado
matemático. Escreveu sobre as aventuras com Ethan Baldwin, as
caminhadas na Escócia e as caçadas ao Monarch of the Glen, até
mesmo sobre a tentativa de entrar nos campos de caça de
Balmoral para ver o rei Jorge! Mas nem Harry nem Hazel
escreveram uma única vez sobre Flora ou sobre aquele dia
fatídico que despedaçou o seu mundo idílico.
Hazel formou-se em 1948 e mudou-se para um apartamento por
cima de uma lavandaria no centro de Londres. Aceitou um
emprego num pub chamado The Crown, a tirar Guinness e a
servir whisky.
Ao longo desse ano, por cima da lavandaria, contou a Harry
tudo o que vivia: o cheiro a químicos que subia pelas tábuas do
chão, os livros que lia. Fazia-lhe perguntas, às quais ele
respondia sempre. Ainda desenhas? (Sim, dizia ele.) Ainda
procuras bengalas quando fazes caminhadas? (Sim, dizia ele.) O
que ela não perguntava: os teus lábios ainda se mexem quando
lês em silêncio? Fazes caminhadas à beira do rio e pensas na
Flora?
Tens saudades minhas?
Ele fazia-lhe perguntas sobre a sua vida, e ela começou a
responder com histórias, pegando no pormenor mais aborrecido
do seu dia e transformando-o num conto sensacional, exagerando
pelo simples prazer de o fazer e descrevendo cada cor, aroma e
som.
Sentia-se um pouco mais ela própria quando escrevia a Harry.
Numa das cartas, ele escreveu: «Tornas a vida mágica, Hazel
Linden. Sabias?»
A emoção de ler aquele elogio trouxe de volta a tarde na árvore
oca, os seus lábios nos dela, o seu corpo… Por fim, ele escreveu:
«Posso ir visitar-te a Londres?»
Ela quase escreveu de volta. Tentou responder. Se dissesse
que sim, quebraria a própria promessa feita com sangue. Se
dissesse que não, arrepender-se-ia para sempre. Acabou por
nunca lhe responder, e ele deixou de lhe escrever. Desistiu, sem
mais nem menos. Quando sentia vontade de chorar por ele, abria
a torneira da raiva como quem abre a torneira de pressão de um
barril de cerveja, lembrando-se de que fora ele quem baixara os
braços quando ela não lhe respondeu. Ele não lutou por ela.
E a sua promessa numa igreja, no Dia de Santa Frideswide, de
1940, permanecia intacta.
Foi então que ela fez uma nova promessa: ser a Hazel que
Harry conhecia das cartas, aquela pessoa capaz de tornar a vida
mágica. Sem Harry e sem as suas cartas, Hazel estava decidida a
mudar. Aceitou a oferta do apartamento da mãe e candidatou-se a
um emprego na Hogan’s. Possivelmente e, bem vistas as coisas,
seria esse o objetivo daquela troca de correspondência: empurrar
Hazel na direção certa.
Pelo menos, era isso que ela dizia a si mesma.
CAPÍTULO 27

Março de 1960

Após três horas de viagem, Hazel parou numa bomba de


gasolina para abastecer. Kelty esticou-se e abriu a porta do
passageiro para estender as suas longas pernas. Suspirou.
— Quanto tempo falta?
— Duas horas. Podemos fazer um piquenique nos jardins do
Castelo de Rougemont.
— A que distância fica?
— É aqui perto. Já estamos em Exeter.
— É tão bom poder dormir na parte mais chata da viagem! E
sem a Midge por perto a chamar por mim a cada dois segundos e
meio. — Sorriu ao pronunciar o nome da filha, mesmo tendo visto
com bons olhos aquela breve separação.
— Mas perdeste tanta coisa — disse Hazel. — A paisagem rural
é magnífica na primavera. Os cordeirinhos trôpegos que tentam
acompanhar o resto do rebanho, os telhados de colmo nas casas
caiadas de branco, as capelas com os campanários que se
erguem para algo que nunca conseguirão alcançar, o…
— És uma contadora de histórias nata, minha amiga.
— Isto não é uma história. É apenas o que vi no caminho.
— É as duas coisas.
Em poucos minutos, Hazel encontrou um lugar para estacionar
na beira da estrada perto do Castelo de Rougemont, no
estacionamento para visitantes, em Northernhay Gardens. Saíram
com a cesta que tinham preparado na cozinha de Hazel naquela
manhã e caminharam por um carreiro sombreado pelas folhas
sonolentas de uma fileira de olmos. Entraram nos jardins com as
ervas macias debaixo das botas, passaram pela estátua de ferro
do Caçador de Cervos, que começava a ganhar o verdete da
idade, e encontraram uma mesa de piquenique e um banco de
madeira ali perto.
— Aquele castelo é parecido com o vosso no Bosque dos
Sussurros? — perguntou Kelty enquanto estendiam o farnel sobre
a mesa, debaixo de um plátano.
— Não, aquele é de pedra vermelha. O nosso era… — Hazel
fechou os olhos e ergueu o rosto para o sol, permitindo que os
seus raios a aquecessem. A sua mente vagueou por um caminho
na floresta que ela passou anos a evitar. — O nosso era de pedra
branca e cinzenta. Mesmo antes de vermos a casa da Bridie, já
era feito do mesmo material. A Flora pensava que eu tinha
imaginado a casa da Bridie. — Abriu os olhos. — Talvez não
devesse ter permitido que pensasse que eu tinha esse tipo de
poder. Mas pareceu-me inofensivo na altura.
— Era inofensivo, mas não inconsequente. Naqueles tempos
horríveis, a Flora precisava de um escape, de contos de fadas e
de mundos mágicos. — Kelty pegou num cubo de queijo e meteu-
o na boca.
— Eu tentava encontrar palavras diferentes para branco e
cinzento sempre que nos aproximávamos do castelo. Era da cor
de uma pérola numa concha; da asa de uma pomba; da orla
celeste antes da chuva; do branco puro de uma nuvem de verão.
— Hazel afastou aqueles velhos sonhos e olhou para as pedras
vermelhas de Rougemont. — As bruxas de Devon foram julgadas
aqui, as últimas a serem executadas por bruxaria em Inglaterra.
— Como é que sabes essas coisas?
— Em 1680 — concluiu Hazel. — Eu leio, e acabo por fixar
esses pequenos factos.
Kelty abriu a boca como se fosse falar, mas conteve-se.
— O que foi? O que ias dizer? — inquiriu Hazel, cutucando a
bota de Kelty com a sua.
— Estava a pensar em como será o Harry agora, só isso.
Hazel não quis admitir que estava a pensar no mesmo.
— Isso que interessa? — disse. — Chegamos lá, perguntamos-
lhe se sabia o nome do Bosque dos Sussurros, e vimo-nos
embora.
— Lembro-me tão bem dele, e estivemos juntos quanto tempo?
Uma semana? Ele era tão…
— Aventureiro, eu sei.
— E tão…
— Giro, eu sei.
Esboçaram os seus sorrisos de melhores amigas, terminaram o
lanche e voltaram à estrada sinuosa em direção a St. Ives.
Passaram por campos de trigo descolorados pelo sol, que
evocavam a cor das praias de areia amarela, e conduziram
através de uma manta de retalhos de campos verdes, por entre
sebes implacáveis que raspavam a parte lateral do carro, tudo
num silêncio cúmplice, enquanto imaginavam o que poderia
acontecer quando chegassem.

Chegaram quando o sol da tarde começava a esconder-se no


mar agitado, que flagelava os muros de pedra cinzenta daquela
cidade da Cornualha, delimitada por cais de betão. St. Ives
enrolava-se como um gato preguiçoso à volta da baía. Os
telhados cinzentos das casas pontilhavam as colinas verdes.
Hazel ouviu o grasnar das gaivotas e olhou para o cais com o
farol branco e uma torre com quatro picos. A maré estava baixa e
uma longa extensão de areia brilhava da cor de torradas com
manteiga. Os barcos repousavam, à espera da maré alta.
Hazel estacionou o carro em frente à Sloop Inn, na esquina da
Fore Street. FUNDADA EM 1312, anunciava uma placa em letras
vermelhas. Na calçada de frente para o mar, havia cadeiras de
vime e mesas de café em mármore. Hazel e Kelty ficaram em
silêncio diante de tanta beleza, até que Kelty perguntou:
— Como vamos encontrá-lo?
— Podemos perguntar por aí. — Hazel desligou a ignição e
ambas saíram do carro. Com as malas a reboque, caminharam
em direção à Sloop Inn. As mesas estavam ocupadas por casais
e solteiros que bebiam vinho e admiravam o mar. Adivinhava-se
férias primaveris à beira-mar para aqueles que trajavam
camisolas garridas e chapéus coloridos, perdidos em trocas de
olhares amorosas e doces palavras ao fim da tarde.
Quando chegaram à porta de madeira, Hazel disse:
— Vamos fazer o check-in, desfazer as malas, beber uma
cerveja e procurar o Harry.
Kelty passou a mala para a outra mão.
— Tu e as tuas listas! Deve ser cansativo.
— Se eu não te adorasse… — Hazel abanou a cabeça. — Ou
se não soubesse que era recíproco, encararia isso como um
insulto e não como um elogio.
— Claro. Tudo em ti é adorável.

Uma hora depois, trajando o seu vestido favorito com padrões


de folhas verdes, o cabelo preso numa bandolete a condizer,
Hazel esperava por Kelty numa das mesas do café. A luz suave
do fim de tarde enchia o ar com uma névoa, uma mitigação do
mundo, que trazia consigo uma espécie de foco luminescente,
uma atenuação das arestas mais rígidas.
— Estás deslumbrante! — Kelty sentou-se numa cadeira e
bebeu um longo gole da cerveja âmbar que a esperava.
— Tu também. — E era verdade. Um vestido simples, azul-
celeste, com bolsos e gola peter pan abraçava-lhe o corpo.
— Eu conheço-te, minha amiga — disse Kelty. — Estás aqui
sentada, a imaginar o dia, a pensar em quem, o quê, onde…
— Na verdade, estava a pensar que esta luz é sublime,
definitivamente, a luz de um artista. Não admira que haja tantos
estúdios.
Kelty recostou-se na cadeira e ficou a olhar para o mar,
enquanto cruzava e descruzava as pernas.
— Hmmm… — Tocou com um dedo no topo do seu copo de
cerveja. — Pois bem, perguntei à empregada onde poderia
encontrar os artistas de St. Ives. Tens algumas escolas: cerâmica,
pintura, escultura. Mas não é preciso ir de casa em casa, porque
ela conhece o Harry Aberdeen. Disse que o estúdio dele fica no
número 6123 da Fore Street.
— Ena, foi fácil. — Demasiado fácil, pensou Hazel. Tinha-se
imaginado a vaguear por St. Ives talvez mesmo sem conseguir
encontrá-lo.
— É uma vila pequena, e a comunidade artística é
simultaneamente amada e odiada. Para o gerente, são
«boémios». Para a Silvie, a empregada, «artistas geniais».
«Vagabundos malcheirosos», disse-me o gerente. «Uns amores»,
contrapôs a Silvie.
A gargalhada de Hazel era contagiante.
— Duvido que o Harry seja malcheiroso.
— Vamos descobrir.
CAPÍTULO 28

Março de 1960

A luz banhava Harry. Estava de pé, em frente a um cavalete


perto da alta janela de ferro, com a mão esquerda no ar, a segurar
num pincel, a cabeça inclinada para a direita, a mão direita a
tamborilar de forma ritmada nas calças cremes. O cabelo era
comprido o suficiente para tocar os ombros, arrumado atrás das
orelhas.
Hazel e Kelty ficaram paradas na porta aberta. Havia mais três
artistas a trabalhar; dois homens, um sentado numa roda de
cerâmica e outro a olhar fixamente para um bloco de mármore
ligeiramente lascado, e uma mulher com calças pretas finas e
uma T-shirt cinzenta manchada com salpicos de tinta vermelha,
que estava em frente a outro cavalete, com um cigarro a queimar
preguiçosamente na mão esquerda.
No rádio, Bobby Darin cantava Dream Lover. Hazel percebeu
que a porta das traseiras estava aberta, deixando entrar a brisa
fresca do mar.
A mulher foi a primeira a reparar em Kelty e Hazel. Esboçou um
sorriso lento, que pareceu ao mesmo tempo preguiçoso e sedutor.
Dirigiu-se a uma mesa de cartão onde estava o rádio salpicado de
tinta e barro seco e baixou o volume da música.
— Olá! Desculpem a indelicadeza. Bem-vindas ao 6123.
A garganta de Hazel fechou-se, entupida por palavras que lhe
pareciam inúteis. Mas Kelty não tardou a gritar um «Harry!».
Ele virou-se tão subitamente que deixou cair o pincel, com a
tinta laranja a salpicar-lhe as calças já manchadas e a lona que
estava por baixo. O reconhecimento chegou lentamente, em
ondas plasmadas no seu rosto, e depois nos seus olhos.
Foi apenas um segundo, talvez dois, mas o tempo alongou-se
naquela sala, enquanto Hazel reparava em cada movimento de
Harry. A faísca nos seus olhos castanhos, as sobrancelhas
levantadas, e Hazel com tempo suficiente para imaginar se ele iria
sorrir ou franzir a testa, se acenaria para se irem embora ou….
Harry correu na direção das duas amigas, abraçou as duas,
uma de cada lado, e puxou-as para si.
— Hazel! E tu és a Kelty, não és?
Esta riu-se com alegria e disse:
— Não consigo respirar. — Hazel sentiu os braços dele à sua
volta e ficou maravilhada com o homem que tinha agora pela
frente, com aquele homem.
O tempo retomou o seu ritmo normal. Harry deu um passo atrás,
mas manteve uma mão nos ombros de cada uma delas.
Caramba, que bonito que ele era. Provavelmente, sempre tinha
sido, mas na altura a sua beleza ainda estaria escondida sob a
aparência pueril e dissonante da adolescência, com cada parte do
seu corpo à espera de crescer para encaixar nas restantes.
— O que fazem aqui? — Abanou a cabeça e o cabelo
encaracolado caiu-lhe por detrás das orelhas. — Não, deixem-me
começar de novo. Estou tão contente por estarem aqui! Como é
que me encontraram?
— Foi a tua mãe que nos disse — explicou Hazel.
— Fez ela muito bem. Estiveste com a minha mãe? — Dirigiu a
pergunta a Hazel, com uma ânsia familiar.
— Sim.
— Ela está bem, não está? — disse ele, mais uma afirmação do
que uma pergunta.
— Sem dúvida. E o Sr. Nolan? — admirou-se ela. — Não estava
à espera dessa.
— Também eu andava cego. — Harry abanou a cabeça. — O
amor é estranho.
— Sem dúvida — disse Kelty, olhando em volta para a sala. —
Isto é espantoso. Que vida.
Harry pareceu aperceber-se de que não eram os únicos na sala.
— Oh, Ethan! Olha quem está aqui. Marvin e Dawn, apresento-
vos as minhas amigas de infância, Hazel e Kelty.
O homem da escultura de mármore pôs-se de pé, com as suas
pernas de cegonha surpreendentemente longas. Deu alguns
passos em direção a elas, mas foi o que bastou para que Hazel
reconhecesse o nome de Ethan, o gémeo de Binsey com o sorriso
travesso, e os seus tímidos olhos azuis.
Ethan Baldwin.
— Virgem Santíssima, se não é a beleza e a graça de Hazel
Linden que nos vem visitar — declarou ele.
Todos os presentes desataram a rir. As vozes sobrepuseram-se
e houve abraços e beijos à saciedade antes de Harry sugerir que
fossem pôr a conversa em dia no pub que ficava a um quarteirão
de distância — o mesmo de onde Hazel e Kelty tinham acabado
de vir.
Hazel quis dizer-lhe que não era para isso que estavam ali. E
que também não era para ver as suas obras de arte ou beber
cerveja. Ela estava ali para lhe fazer uma única pergunta. Mas a
verdade é que a energia do grupo fez com que voltassem a
percorrer os becos calcetados até chegarem ao pub do Sloop Inn,
onde pediram uma rodada de cerveja. Marvin e Dawn ficaram
para trás. Hazel sentou-se entre Harry e Ethan. Quatro pessoas
numa mesa para dois, com os joelhos a tocarem-se. A mesa
depressa se encheu de peixe e batatas fritas, com a gordura a
impregnar o papel vegetal. O embaraço substituiu a felicidade
inicial que se sentira no estúdio.
Kelty, como sempre, preencheu o silêncio com uma calorosa
explosão de energia.
— Uma comunidade artística — disse ela aos homens. — Já
devíamos ter adivinhado naquela altura.
Harry encolheu os ombros e apoiou os cotovelos na mesa.
— Eu não sabia na altura. Ainda experimentei outras coisas.
— O quê? — Hazel deu por si ávida de informações sobre os
seus últimos anos. Tantas vezes tinha tentado suprimir uma
curiosidade que agora vinha ao de cima. Era casado? Tinha
filhos? E a sua arte? Os seus outros empregos?
Ele apoiou o braço nas costas da cadeira de metal de Hazel.
Olhou para cima.
— Banca, consultoria financeira, jornais… — Os seus olhares
cruzaram-se. — Nada disso me interessou. Estou aqui há dez
anos, a pintar em todo o tipo de meios e à espera, como toda a
gente, da minha grande oportunidade, da pessoa certa para
reparar no meu génio. — Riu-se.
— Parece-me o lugar ideal para esperar por uma grande
oportunidade — disse Hazel, com a palma da mão virada para
cima, enquanto, com um gesto, abarcava todo o mar.
— É um lugar extraordinário — concordou Harry. — Por vezes,
esta luz nem parece real. Podemos passar a vida inteira a tentar
captá-la, encontrá-la, pegar nesta atmosfera prodigiosa da
Cornualha e colocá-la numa tela. Posso não conseguir, mas não
vou parar de tentar.
Hazel sorriu para aquele menino, para aquele homem, cuja
exuberância continuava a ser adolescente e livre, mesmo que
temperada pela idade.
Kelty apontou para os dois homens.
— Filhos? Mulheres?
Ambos abanaram a cabeça. Ethan deu uma palmada no ombro
de Harry.
— Embora a Dawn, lá do estúdio, esteja provavelmente à
espera de que este aqui a peça em casamento. — Ethan apontou
para Kelty. — E tu?
— Estou casada com um tresloucado, o Fergus, e tenho uma
menina linda, a Midge.
— Que maravilha — comentou Ethan. — Eu e este artolas não
somos os melhores candidatos a maridos e pais, tendo em conta
que vivemos numa casa com quatro pessoas e estamos a tentar
singrar no mundo das artes. — Ethan acenou com a cabeça para
Hazel. — Então e tu?
— Sim, tenho alguém. Chama-se Barnaby. É professor
universitário. — Hazel ficou-se por ali; parecia o lugar errado para
falar sobre ele. Alternou o olhar entre Harry e Ethan. — Vocês
fizeram uma escolha — disse, ciente de que também ela tinha
feito uma escolha, mas diferente. — Preferiram a arte à
segurança e…
— E àquilo a que alguns podem chamar normalidade —
acrescentou Ethan, enquanto bebia um gole de cerveja e limpava
a espuma da barba. — Mas se não viveres a tua vida, vives a vida
de quem?
— Uma ótima pergunta — disse Kelty.
— Sabem — interveio Harry —, se tivessem esperado dois dias,
vamos ter uma exposição em Londres, em Hampstead Heath, e
teríamos ido ter convosco. — Hazel e Kelty olharam uma para a
outra e riram-se.
— Onde está o teu irmão gémeo, o… — Hazel não conseguiu
lembrar-se do nome do irmão de Ethan, mais uma recordação
perdida na cave escura daqueles dias.
— O Adam vive na América. Conheceu uma rapariga que veio
estudar um semestre em Oxford e depois foi viver para Nova
Iorque. — Ethan revirou os olhos. — E agora trabalha no
armazém de roupas dos pais dela. Ou melhor, está à frente do
armazém. Está a tornar-se o rei do vestuário do Lower East Side
de Manhattan.
Adam mudou-se para a América.
A informação ecoou pela mesa como se Ethan tivesse
dedilhado uma guitarra. Era aquilo — aquilo mesmo —,
possivelmente todas as respostas num só instante. Harry tinha
falado a Ethan sobre o Bosque dos Sussurros, Ethan contou a
Adam, Adam contou a uma jovem que era agora sua mulher… na
América.
— Quando é que o Adam se mudou para a América? —
perguntou Hazel, casualmente, com as mãos entrelaçadas.
— Oh, há dez anos mais ou menos. Tem dois monstrinhos que
eu adoro, um rapaz e uma rapariga. Mas não os vejo muitas
vezes, como deves imaginar.
Kelty estreitou os olhos para Hazel, que percebeu o que ela quis
dizer com aquele olhar.
Pergunta-lhe.
Mas ela não podia, não à frente de Ethan.
— Harry, vens comigo até à beira-mar? — Todos ouviram o
tremor na sua voz.
— Sou todo teu. — Levantou-se, passou as palmas das mãos
pelas calças manchadas de tinta e empurrou a cadeira para trás.
— Está maré baixa. É boa altura para um passeio.
Ao levantar-se, Hazel sentiu os resquícios do inverno ocultos na
brisa da primavera, um frio que a fez pegar na camisola de lã
creme e vesti-la enquanto caminhavam silenciosamente pela rua,
em direção a uma grande extensão de praia. Pensou nas longas
caminhadas que faziam em Port Meadow até ao rio, nas manhãs
calmas e nos esboços que escorregavam por baixo da porta, na
forma como as orlas do caminho passavam de castanho a verde,
até explodirem de cor, e em como tinha visto tudo aquilo ao lado
de Harry.
Desceram as escadas de betão e pisaram na areia molhada, de
um castanho mais escuro e macio. Um barco a remos azul estava
deitado de lado, com uma boia vermelha pendurada numa corda
coberta de cracas, que estava amarrada a um aro de metal no
muro de pedra da praia. Harry sentou-se na borda do barco e
cruzou um pé sobre o outro, inclinou a cabeça como a sua mãe
costumava fazer e sorriu.
— É muito bom ver-te, Hazel. Há muito tempo que não sabia de
ti. Ainda perguntei por aí… Para ser sincero, sei que trabalhas na
Hogan’s. Pensei em passar por lá, mas sabia que não me querias
ver. — Ela desenhou um risco na areia com os pés, sentindo-a
ceder por baixo de si. Não conseguia encontrar as palavras para
falar, agora que estavam sozinhos. Harry olhou para baixo e
trocou um pé pelo outro; o barco balançou um pouco, depois
voltou a assentar. — Não respondeste à minha última carta.
— Eu sei. E posso explicar — disse ela. Mas será que podia?
Podia falar-lhe da jura de sangue que fizera numa igreja de pedra
fria após o desaparecimento da irmã? Mesmo agora, ela sentia
que estava a trair Flora, a quebrar uma promessa. Mesmo agora,
com os seus olhos e mente de adulta, a criança que tinha dentro
de si gritava: traição.
Ele interrompeu-lhe os pensamentos.
— Não tens de te explicar. Sei que me culpas. Não há nada que
eu possa fazer e, apesar de me custar, é verdade.
— Culpar-te de quê?
Ele inclinou a cabeça.
— Pela perda dela… da Flora.
— Perda? — Um choque elétrico atravessou o peito de Hazel.
— Quando fui à tua procura, pensei que a Flora estava a dormir
profundamente. Deixei-a sozinha junto ao rio… cinco minutos?
Dez? Dou voltas à cabeça a tentar lembrar-me de quantos
segundos ou minutos demorei até te encontrar e depois…
— Para. A culpa nunca foi tua. Nunca. Não estou aqui para que
me peças perdão.
— Então, porque vieste?
Naquela faixa de areia molhada da Cornualha, onde as gaivotas
grasnavam e um cão passava a correr coberto por uma fina crosta
de areia, ela soube que havia mais do que uma razão para estar
ali: tinha saudades dele. Queria voltar a vê-lo e saber que ele
estava bem. Procurava absolvição. Queria tocar-lhe. Ela queria…
tanto.
O cabelo dele estava brunido pelo sol do fim da tarde, com
laivos de feno, os olhos tão fixos nela que Hazel pensou ser
possível que ele tivesse sentido a sua falta tal como ela tinha
sentido a dele.
— Harry, preciso de te perguntar uma coisa.
— Tudo.
— Sabias o nome do nosso mundo? Do mundo que criei para a
Flora?
— Não foi por isso que ficaste tão zangada comigo naquele dia?
Por ter perguntado?
— Sim.
— Então, como é que eu podia saber?
— Alguma vez me ouviste falar ou contaste a nossa história a
alguém? Ao Ethan, que talvez a tenha contado ao Adam ou…
Harry levantou-se. Chegou tão perto dela que Hazel sentiu o
cheiro do seu hálito quente de cerveja.
— Hazel Mersey Linden, eu nunca repeti a vossa história. Muito
sinceramente, não saberia contá-la. E nunca contei a ninguém
sobre a nossa discussão naquele dia à beira do rio. O que se
passa afinal?
— Bosque dos Sussurros — disse ela.
— O Bosque de Wytham? A norte de Binsey?
— Não.
Foi então que, no que pareceu uma longa expiração, Hazel
contou a Harry toda a história, desde o dia, há menos de uma
semana, em que encontrou o livro Bosque dos Sussurros até
àquele momento na praia.
Ele ouviu sem se mexer, e mal piscou os olhos. Hazel fez
questão de se manter firme, sem desviar o olhar. Quando
terminou, ele puxou-a para si, apertou-a contra o peito sem dizer
uma palavra. Hazel sentiu o coração dele através da T-shirt, a
sintonia dos dois batimentos. Ergueu os braços e enrolou-os à
volta dele, agarrando-se a Harry.
Queria que ele a abraçasse assim quando tinha 15 anos, mas
tinha feito tudo para o afastar. Agora, o silêncio manteve-se até
ele se soltar e ela recuar. Harry chorava sem se importar com o
seu aspeto ou com quem pudesse vê-lo numa praia pública da
Cornualha.
— Harry.
— Então, se eu não sabia da história e a minha mãe também
não, isso significa que a Flora pode estar viva? Não morreu nem
se afogou naquele dia; viveu para contar a tua história?
— Pensei que ela tivesse desaparecido à procura do Bosque
dos Sussurros.
— Não. — Harry abanou a cabeça. — Fui eu que a deixei
sozinha.
Meu Deus, eles carregavam o mesmo fardo. O mesmo peso da
culpa. Hazel percebeu que podiam ter partilhado esse peso desde
aquela altura.
CAPÍTULO 29

1 de fevereiro de 1940

Hazel nunca tinha ouvido falar do Dia de Santa Brígida ou do


Imbolc, mas o ritual chegou no início de fevereiro e a maioria dos
habitantes da aldeia juntou-se a Bridie para o festejar.
A fogueira, colocada a uma certa distância do chalé dos
Aberdeens, no pasto amplo, erguia-se bem alto; as faíscas
subiam para alcançar as estrelas invisíveis a que se
assemelhavam. Bridie estendeu mantas de lã coloridas pelas
ervas e, em cima de cada uma delas, havia uma pequena pilha de
junco verde. Harry foi buscar uma velha mesa do celeiro, marcada
e manca, com uma das pernas roída por um animal de dentes
afiados. Colocou-a por perto e pôs um tronco por baixo da perna
traseira esquerda para nivelar a mesa. Em cima, havia queijos e
frutas do mercado, pão fresco e um grande jarro de vinho tinto.
O fim de tarde pintava o céu; as nuvens rasgadas em fiapos de
tecido dourado. Um homem de casaco escuro tocava violino
enquanto bebericava vinho de uma caneca que tinha pousada ao
seu lado.
Também estavam presentes as quatro enfermeiras que viviam
atrás da capela paroquial: Frances era americana, ao passo que
Maeve, Imogene e Lilly tinham vindo de aldeias inglesas. Eram
jovens e estavam ansiosas por ajudar a curar os rapazes que
chegavam ao hospital com feridas de guerra que remédio algum
podia curar. Frances era tímida e reservada, Imogene tinha uma
energia frenética e divertida, enquanto Maeve e Lilly pareciam
gémeas de Hazel, ambas loiras e caladas. Ocasionalmente, Bridie
pedia a Imogene que tomasse conta de Flora, quando levava
Hazel e Harry sozinhos para a cidade, para fazer compras e tratar
dos assuntos dela.
Naquele dia, as enfermeiras brincaram mais com Flora do que
falaram com os aldeões, como se a sua função fosse guardar a
mais pequena.
O padre Fenelly e o Sr. Nolan estavam juntos, e riam-se de algo
que o Sr. Nolan dissera. Os gémeos, Ethan e Adam, davam
toques numa bola de couro com Harry e outro rapaz da aldeia, de
cujo nome Hazel se esquecia sempre — um rapaz de olhos
selvagens e cabelo oleoso que tinha vindo ter com Hazel e Flora e
perguntara calmamente:
— Vocês são órfãs?
— Não — declarou Hazel. — Não, não somos!
Quando ele se afastou, Flora chegou-se mais a Hazel, agarrou
no Berry com mais força, e perguntou com uma voz trémula:
— O que é uma órfã?
— Não lhe dês ouvidos. Só deves ouvir-me a mim, à Bridie e ao
Harry.
— E à mãe.
— E à mãe — confirmou Hazel, agachando-se para abraçar a
irmã. — Não somos órfãs.
Mas Hazel ponderava, com uma dor penetrante, o que seria
delas se de repente ficassem sem pais. Era comum isso
acontecer na guerra.
O grupo aumentou quando duas das amigas de Bridie de Oxford
chegaram sem maridos, trajando vestidos floridos debaixo dos
casacos grossos e cachecóis de lã.
O frio mordia as caras destapadas de todos os presentes, a
maioria dos quais tinha narizes vermelhos como cardeais.
Hazel e Flora estavam a viver com os Aberdeens há quatro
meses, quando a mãe as foi visitar no Natal e no Ano Novo,
levando-lhes presentes. O padre Fenelly também as visitava, e
Harry fazia esboços que colocava debaixo da porta todas as
manhãs. Hazel começou a aprender Latim quando Bridie reparou
que ela acabava os trabalhos de casa muito depressa, ficando
sem nada para fazer. O tempo passava tão languidamente em
Binsey que Hazel pouco reparava na sua passagem, mas Bridie
marcava as estações com rituais, velas e pauzinhos perfumados.
Kelty tinha partido e Hazel sentia a sua falta, mas aquela
chegara a Piccadilly de comboio, em segurança, com o dinheiro
que tirara do frasco que estava na bancada da cozinha da bruxa.
A mãe de Kelty acolheu-a e decidiu que voltar a entregar a filha a
outra estranha cruel seria pior do que sujeitá-la à ameaça das
bombas.
Kelty escrevia-lhe uma vez por semana, e Hazel respondia da
mesma forma, contando-lhe tudo sobre Binsey: o Sr. Nolan e o
seu cão, Mackey, que visitavam quando acabavam os trabalhos
de casa; o festival da aldeia na Consoada, quando a mãe as
visitou; e a recém-descoberta simpatia dos gémeos Baldwin.
Escreveu-lhe que o campo mudava da manhã para a noite, com o
orvalho e depois com a geada, com o nascer do sol e o nascer da
lua. Escreveu sobre Bridie e a sua doçura.
— Porque é que estamos mais seguras aqui? — perguntou
Hazel certa vez a Bridie, quando estavam sentadas na esplanada
de uma geladaria em Oxford. Tinham acabado de visitar o túmulo
de Frideswide, em Christ Church, e Hazel ainda estava a pensar
no glorioso vitral que contava a história de uma princesa que se
tornou santa. Flora estava a lamber as bordas do seu cone de
gelado, tentando apanhar os pedaços derretidos de baunilha.
Bridie tinha a sua própria maneira de falar, e nunca dizia o nome
de Hitler.
— Diz-se que o homem mau quer manter Oxford para si, por
isso não vai bombardear a cidade. É horrível, sim, mas é isso que
nos mantém em segurança. — Quando Bridie falou no «homem
mau», Hazel sentiu que estava a viver nos contos de fadas que
criava para Flora, e que Hitler era um dragão ou um ogre que elas
tinham de derrotar para chegar ao castelo.
Hazel e Flora sussurraram nessa noite.
— Podemos levar a mãe ao Bosque dos Sussurros? — indagou
Flora.
— Talvez ela possa ir da próxima vez — disse-lhe Hazel.
Mas elas nunca levaram a mãe ao Bosque dos Sussurros e,
mesmo que tivessem levado, não mudaria nada do que viria a
suceder.
A mãe ia visitá-las nos feriados, e de tempos a tempos, mas só
uma vez é que passou a noite no sofá florido de Bridie. No início,
trazia pequenos presentes — um laço para o cabelo ou um
vestido novo —, porém, à medida que o dinheiro escasseava,
deixou de trazer. Bridie guardava sempre a melhor manteiga e as
melhores natas para quando a mãe as fosse visitar, ciente do
racionamento em Londres.
Um dia de inverno, quando o céu estava coberto de nuvens, a
mãe combinou ir passar o dia inteiro e também a noite com elas.
Hazel e Flora fizeram tranças no cabelo, lavaram a cara até
ficarem coradas, e esperavam nos degraus da frente. O táxi parou
e, como sempre, a mãe saltou do lado do passageiro e abraçou
as filhas, chorando de saudades delas.
Hazel reparou que a mãe estava mais magra a cada visita.
Tentaram animá-la, trazendo-a para o seu mundo quotidiano:
brincaram no chão de soalho da sala de estar, com a bola a
saltitar na mão da mãe, mostraram-lhe o que Flora tinha
aprendido, verificaram os trabalhos de casa e pediram a Harry
para demonstrar como fazia contas de cabeça, como se visse
coisas que mais ninguém conseguia ver. Depois de um jantar
quente, foram deitar-se.
Foi só quando a mãe as aconchegou na cama, depois que
terem rezado e de ela as ter beijado como nos velhos tempos, nos
dias de Bloomsbury, que Hazel soube a verdade sobre a vida da
mãe.
Hazel fez os possíveis para adormecer, mas não conseguiu.
Esgueirou-se para fora da cama e foi sentar-se no corredor, entre
a cozinha e a sala de estar. De pernas encostadas ao peito, ouviu
os altos e baixos da conversa da mãe com Bridie.
Hazel só apanhou algumas partes, mas a mãe contou que
tinham de se esconder nos túneis do metropolitano quando
soavam as sirenes das bombas, que havia mulheres que perdiam
os maridos e os filhos. Bridie insistiu que as meninas estavam em
segurança e que ela lhes queria muito bem. Hazel ouviu os sons
ténues do choro.
Quando já não conseguia ouvir mais e o peso da tristeza da
mãe se tornou insuportável, entrou na sala de rompante e atirou-
se para cima do sofá, entre Bridie e a mãe.
— Fica connosco, mãe. Podes viver aqui connosco!
A mãe abraçou Hazel e encostou-lhe o rosto ao peito, enquanto
lhe dizia palavras de coragem.
— Não posso, meu amor, mas um dia vamos voltar a estar
juntas.
Hazel guardou essa promessa perto do coração. Vamos voltar a
estar juntas.
Agora, só desejava que a mãe estivesse presente para ver a
festa de Santa Brígida. Abrigou-se debaixo do casaco e da manta,
a observar Bridie a mostrar como cada um poderia fazer a sua
própria cruz de Santa Brígida com os ramos de junco que ela
tinha colocado em cima das mantas.
— Santa Brígida é a santa do Imbolc, que marca a chegada da
criatividade, da primavera e do renascimento, das coisas novas —
disse Bridie, enquanto as suas mãos entreteciam habilmente os
ramos de junco para formar uma cruz. Olhou para cima e
prosseguiu. — A santa quer que pensemos no que queremos
trazer para este mundo no próximo ano.
As vozes sobrepunham-se, por entre risos e respostas. O que
havia de novo nas suas vidas? Pegando nos juncos, alguns
fizeram cruzes tortas, outros desistiram e dedicaram a sua
atenção aos queijos e ao vinho.
O Sr. Nolan interveio. Tinha luvas calçadas e agarrava na sua
caneca de vinho.
— Ela é uma santa cristã, não é?
Bridie sorriu.
— Sim.
A resposta satisfez o Sr. Nolan, que tentou desajeitadamente
fazer uma cruz, em homenagem à santa que assinalava a
chegada da primavera e da nova luz. Bridie inclinou-se para Hazel
e sussurrou:
— Mas começou por ser uma deusa celta.
— Primeiro, uma deusa — repetiu Hazel, e sorriu, decorando
aquele pedaço de história para uma altura em que pudesse
precisar. — Porque organizam estas festas? — tornou ela, com os
dentes a bater.
— Para homenagear as estações, menina curiosa. Para nos
homenagearmos uns aos outros. Para nos reunirmos. Para
recordar que fazemos parte de algo muito maior do que as
minudências do presente, muito maior do que os boatos e…
— A guerra.
— Sim, fazemos parte de algo ainda maior do que a guerra.
Algo que perdura, e que foi festejado antes de nós e será
festejado depois de nós.
— Depois de nós — repetiu Hazel, imaginando pela primeira
vez o que isso significava. Uma vida sem ela, sem as pessoas
que amava. Aproximou-se das enfermeiras, que mal repararam
nela. Estavam juntas em círculo. A enfermeira chamada Imogene
estava a chorar e a mais sossegada, Maeve, tinha o braço à volta
do ombro de Imogene.
— Está tudo bem.
Imogene ergueu o rosto para Maeve e abanou a cabeça.
— Tu não viste, Maeve. Não estavas lá. Atribuíram-me um turno
em St. Hugh’s e estava lá um soldado, que juro que não tinha
mais de 19 anos, que perdeu todo o lado esquerdo do crânio; e eu
conseguia ver… o interior da sua cabeça. Não pude fazer nada
para o salvar.
— Eu sei. — Maeve entregou um copo de vinho a Imogene, que
o bebeu em três goles.
Hazel soltou um grito; aquilo parecia demasiado horrível para
ser verdade.
As enfermeiras viraram-se ao ouvir o som e Imogene estendeu-
lhe a mão.
— Sinto muito, querida. Não devias ter ouvido isto. Estás aqui
para ser protegida. Sinto mesmo muito.
Hazel correu para junto de Bridie e Flora. Aqueceu-se junto à
fogueira e jurou nunca contar a Flora o que tinha ouvido. Aquele
era o horror do qual elas deviam ser protegidas, mas que estava
lá fora, escuro e sinistro.
Mais tarde, quando o calor do vinho e da fogueira tomou conta
de Imogene, Hazel viu-a pegar em Flora pela mão e a dançarem
de um lado para o outro até caírem no chão frio, às gargalhadas.
— Achas que ela é uma bruxa? — perguntou Imogene a Maeve,
agarrada à caneca de vinho e acenando com a cabeça para
Bridie.
— Porque dirias tal coisa? — Maeve abanou a cabeça. — A
Bridie?
— Bem, isto não é um ritual pagão? E ouvi dizer que ela nunca
vai à igreja. — Os lábios de Imogene estavam azuis com o frio e
Hazel pensou que se alguém era uma bruxa, era ela por dizer tais
coisas.
— Isto não é pagão — contrapôs Lilly, em surdina. — É Santa
Brígida, não é?
— Não para ela — sussurrou Frances, mas alto o suficiente
para Hazel ouvir. — Para ela… — acenou com a mão em direção
a Bridie, que estava a mostrar a um rapaz como dobrar os juncos
para fazer uma cruz. — … Brígida é uma deusa.
Hazel não queria ouvir mais nada; só lhe apetecia gritar: «Ela é
a melhor de todos nós!»
Pagã.
Como é que alguém poderia acreditar que Bridie não fosse toda
ela bondade e amor?
Ouviu-se um estalido de fogo e um silvo, e todos olharam para
cima para verem que as nuvens gordas que se tinham juntado,
formando um teto baixo e cinzento e tornando o sol da tarde fraco
e pálido, começavam a libertar flocos gordos de neve que caíam
com indolência em remoinhos, individualmente, até se juntarem e
criarem um manto branco que cobria o chão.
— Temos de ir para casa — disse finalmente o Sr. Nolan.
— Deveras — concordou o padre Fenelly, com tanta tristeza
que Hazel ainda pensou se aquela palavra não teria um
significado diferente daquele que ela conhecia.
— Lá se vai a primavera — disse Frances, a sua voz fria como o
chão em que Hazel estava sentada.
Imogene abraçou Frances pelo ombro.
— Tenta divertir-te um pouco.
Mas ela abanou a cabeça.
— É perigoso brincar com estas coisas.
Bridie falou com uma gargalhada.
— Quase não se nota que a estação está a mudar, mas está. A
energia chega de forma subtil e, de repente, dá-se uma mudança.
Pode parecer que estamos presos no inverno, mas não estamos.
O arquétipo de Brígida é o alquimista.
— Estás a ver? — Frances virou-se para Imogene. — É
perverso. Não cristão.
Bridie sorriu e afastou-se, aproximando-se da fogueira e do Sr.
Nolan, sempre atento a ela e às suas belas histórias. Todos se
juntaram para a despedida, enquanto Bridie agradecia aos que
tinham vindo e erguia a voz para todos.
— Tal como estão agora, que para o ano estejam sete vezes
melhor.
Todos ergueram as canecas num brinde. O padre Fenelly
levantou a mão direita e disse:
— Na escuridão e na luz, na tristeza e na alegria, ajuda-nos,
Senhor, a confiar no Teu amor, a servir o Teu propósito e a louvar
o Teu nome, em Jesus Cristo, Nosso Senhor.
Hazel pensou que Bridie também deveria ter erguido a mão
para fazer a sua proclamação. Porque é que só os homens de
batina preta podiam fazer essas coisas?
A multidão dispersou lentamente, por entre beijos nas faces
rosadas e gritaria no pasto amplo. Flora tinha adormecido nos
braços de Imogene e Harry acordou-a com um leve abanão.
— Harry? — disse Flora, ensonada. — A magia é real?
— É, sim. — Ele estendeu a mão para a levar para dentro.
O rosto de Bridie abriu-se num sorriso largo; o filho tinha dado a
mesma resposta que ela teria dado. Bridie beijou Harry e Flora,
com instruções para que a menina lavasse os dentes antes de se
deitar. Hazel observava cada expressão e palavra de Bridie, como
se pudesse aprender os segredos para ser uma mulher como ela.
Enquanto juntava as mantas de lã, Hazel disse-lhe:
— Disseram que é pagã.
Bridie riu-se.
— Quem, minha querida?
— A Imogene e a Frances.
Bridie acicatou o fogo com um galho longo e nodoso, cobrindo
com terra os resquícios luminosos das brasas moribundas.
— Oh, minha doce Hazel, para mim esse é o melhor de todos
os elogios. Um pagão — explicou Bridie — é apenas alguém que
ainda acredita que a natureza está viva e que constrói novas
histórias em cima das antigas. — Virou-se para Hazel. — Não
permitas que os outros te privem de boas histórias só para se
sentirem bem consigo mesmos.
— Está bem — assentiu Hazel, e pensou no Bosque dos
Sussurros e na rainha boa. — Podemos criar as nossas próprias
histórias pagãs?
Bridie colocou as mantas no carrinho de mão e aproximou-se de
Hazel, abraçando-a num amplexo tão forte que Hazel se sentiu
aquecida por ela.
— Contar histórias é um dos maiores poderes que possuímos. É
como um sonho que podemos preencher com o que quisermos. E
o cavaleiro nem sempre tem de salvar a princesa; às vezes, ela
salva-se a si própria.
Hazel acenou com a cabeça, o seu coração aberto ao que
Bridie fosse dizer, pois sabia que era importante.
— As melhores histórias são aquelas que elevam a alma. Mas
as histórias que contamos sobre nós próprios, e mesmo as que os
outros contam sobre nós, também podem destruir a nossa alma.
Compete-nos escolher o que é bom e verdadeiro, não aquilo que
possa causar devastação.
— Sim — disse Hazel.
— Agora, vamos para dentro. Temos de nos certificar de que o
Harry já deitou a Flora e não está a fazer o puzzle do leão pela
centésima vez.
Hazel dobrou a última manta axadrezada de lã, colocou-a no
carrinho de mão e seguiu Bridie para dentro de casa sob um céu
baixo e escuro. Bridie abriu a porta e Hazel entrou, sentindo uma
onda de calor a crescer dentro de si.
CAPÍTULO 30

Março de 1960

As paredes forradas a painéis de madeira cor de mel do pub em


St. Ives refulgiam à média luz. Uma mulher baixa com um sorriso
rasgado tocava jigas irlandesas no violino. Alguns dos presentes
estavam encostados ao bar, enquanto outros dançavam no piso
em madeira da pequena área onde as mesas tinham sido
empurradas para trás. Kelty observava da mesa redonda onde
tinham acabado de jantar empadão. Ela e Ethan estavam numa
risota pegada.
Hazel estava tonta de tanto dançar com Harry, que mergulhava
e girava, fazendo rodopiar o seu vestido. Precisava de ar;
precisava de um chão estável. Largou-o da mão e correu porta
fora, com a música e Harry no seu encalço.
— Estás bem? — perguntou ele, quando a alcançou no passeio.
— Ar puro? — retorquiu ela, apontando rua abaixo para a praia
onde tinham caminhado naquela tarde e que agora brilhava ao
luar, a um quarteirão de distância.
Ele acenou com a cabeça e deu-lhe a mão. A sensação de
caminhar de mãos dadas com Harry tinha tanto de natural como
de avassalador. Com o whisky a correr-lhes no sangue e a noite a
encobri-los, chegaram à praia e deixaram-se estar parados à
beira da maré alta. A luz do farol varria a areia e o rosto de Harry.
Não havia mais nada no mundo, só Harry, as estrelas, a areia
nos pés e o desejo. Mas ela não queria nada daquilo, por isso
largou-o da mão e afastou-se enquanto ele a observava. Tentou
convencer-se de que eram apenas sentimentos antigos que
tinham voltado à tona, sentimentos irreais.
A luz do farol voltou a passar por eles, iluminando o rosto de
Harry.
— Hazel… estás bem?
Ao ouvir o seu nome, voltou a si, acordou do sonho de estar
com ele. Aquilo era errado. Se permitisse que ele lhe tocasse,
tudo se desmoronaria. Voltaria a afogar Flora.
— Estar sozinha contigo — disse-lhe. — É perigoso.
— Como é que é perigoso? — inquiriu ele. — Estamos apenas
numa praia…
— Será que estamos? O que estamos a fazer, Harry? Tu tens
alguém, eu tenho o Barnaby, e sentir-me assim… estraga tudo.
— Estraga o quê? — perguntou ele.
— A minha vida — disse ela, ciente de que não fazia sentido,
mas que era verdade.
— Hazel, fica aqui comigo. Não te vás embora. Prometo que
não vamos estragar nada.

— A minha cabeça… — A voz de Kelty ecoou pelo quarto da


pousada e despertou Hazel de um sono agitado. As cortinas
vermelhas axadrezadas estavam abertas, e os tons amarelados
da manhã encheram o quarto. Hazel sentou-se e olhou para Kelty
na cama ao lado.
— A quem o dizes.
Mas a ressaca de Hazel era de um tipo diferente. A sua ressaca
era do coração. Tinha falado em demasia; rido em demasia;
exposto em demasia. Tinha ido à procura de uma única resposta
e acabado num pub com Ethan, Harry e Kelty a entoar cantigas
tolas com a banda, antes de se ir sentar na praia com Harry, a ver
a lua a surgir e as estrelas a pontilharem o céu.
Ela e Harry tinham ficado horas na praia, a contar histórias dos
últimos vinte anos das suas vidas. Não tudo, claro. Não havia
tempo para isso. Por uma noite, o passado tinha desaparecido em
vez de pairar sempre sobre eles. Aquelas horas passadas com
Harry eram um tempo que Hazel sabia que não voltaria a ter. Uma
noite tinha de ser suficiente. Não havia maneira de mudar o que
aconteceu e agora as suas vidas seguiam trajetórias distintas.
Tinham outras obrigações, empregos, amores e famílias. Hazel
estava ali para saber se ele tinha conhecimento do Bosque dos
Sussurros, e a verdade era que não.
— Temos de voltar para casa — declarou Hazel.
— Mas dissemos que passaríamos hoje no atelier para ver os
quadros e as esculturas. — Kelty esticou-se. — O Fergus disse
para não ter pressa, por isso não precisamos de voltar a correr
por minha causa. — Kelty passou as pernas por cima da beira da
cama e desfez os nós dos cabelos com as mãos. — Tive a
sensação de que o tempo não passou. Sei que sentiste o mesmo,
como se nunca tivéssemos deixado de nos dar com eles.
— Não. Sinto que já passou um milhão de anos. — Hazel
levantou-se. — Ouve, já tenho a minha resposta. Temos de nos ir
embora.
Enquanto Hazel se dirigia para a casa de banho, Kelty gritou:
— Pensaste no Barnaby ontem à noite? Sentiste a falta dele?
Hazel virou-se e encarou a amiga.
— Sim, claro que senti. E nós temos de ir.
E, no entanto, a verdade era que ela tinha pensado em Barnaby,
mas apenas com culpa, porque se ele a tivesse visto na praia com
Harry, se ele os tivesse visto na areia a conversar até a lua
terminar de fazer o seu percurso e as estrelas cobrirem o céu por
completo, teria ficado magoado e zangado. Mas ela não tinha feito
nada de mal. Kelty voltou a deitar a cabeça na almofada.
— Boa, agora além da ressaca, vou ficar enjoada com a viagem
de carro. Maravilha.
Entraram no carro pouco depois de tomarem o chá da manhã e
comerem os croissants que foram servidos no restaurante da
pousada. Encheram os termos de chá e puseram alguns biscoitos
nas malas. Já na rua, enquanto guardavam a bagagem no carro,
Kelty parou para olhar para o mar, para os barcos que
balançavam na água e para os pescadores que avançavam para
o mar com as redes estendidas e os barretes enfiados na cabeça,
enquanto gritavam palavras que se perdiam na brisa.
A estrada serpenteava pela paisagem rural à medida que
refaziam o percurso que as tinha levado até St. Ives no dia
anterior.
— Consigo perceber que eles queiram viver aqui — disse Kelty.
— É extraordinário. Não consigo pintar uma linha reta, mas esta
luz e este lugar fazem-me querer ser artista.
Hazel acenou com a cabeça. Concordava com a amiga, mas
eram demasiadas coisas a acontecer ao mesmo tempo.
Passaram-se duas horas até Kelty perguntar num tom de voz
doce:
— O que te disse o Harry?
Aquele era o cerne da questão, e Kelty já tinha esperado tempo
suficiente.
— Ele não conhecia a história nem sabia o nome do nosso
mundo.
Kelty exalou um suspiro.
— Como te sentes em relação a isso?
— Sinto tudo, Kelty. Tudo ao mesmo tempo.
— E agora?
— Não sei… — Tentou conter as lágrimas de desespero
enquanto olhava pelo para-brisas para um cenário distorcido de
vacas de focinho aveludado paradas junto à cerca, ovelhas
preguiçosas espalhadas pelos campos como rebentos de
gardénias, e uma estrada sinuosa que as levava de volta a
Bloomsbury.

— Ele nunca foi suspeito de crime nenhum — disse Hazel, com


fogo nas palavras.
Barnaby andava de um lado para o outro na sala de estar de
Hazel. Serviu-se de mais uma dose de whisky e rolou o copo
entre as palmas das mãos. Era tarde, e ele tinha acabado de
voltar de um passeio com o primo que estava na cidade, vindo de
Winchester. Já tinha bebido bastante quando se serviu de mais
uma dose.
— Estás enganada, Hazel. O Harry Aberdeen era um dos
suspeitos. Li isso nos jornais que deixaste em cima da mesa da
cozinha. Ele e a maluca da mãe. E o pai? Ela fê-lo desaparecer?
— Não foi nada disso, Barnaby. — Hazel estava farta de
explicar que as coisas não eram como ele pensava.
— Nada disso, o quê?
— Não foi como estás a fazer parecer. Eles não foram
considerados suspeitos nem tinham a capacidade de fazer as
pessoas desaparecerem. Para.
Barnaby tinha chegado ao apartamento dela já tarde, depois de
Hazel ter regressado de St. Ives. Estava acordada no sofá, a reler
O Bosque dos Sussurros, de Peggy Andrews, na esperança de
encontrar uma dica, uma pista, uma frase escondida que pudesse
mostrar-lhe a verdade. Tinha afastado os pensamentos sobre
Harry da mente, mas ele teimava em voltar.
Barnaby aproximou-se mais. Era possível que a sua raiva não
tivesse que ver com o facto de ela ter desaparecido durante dois
dias, mas sim com o facto de perceber que Hazel estava a
esconder alguma coisa.
— Hazel, tu nunca me mentiste. Diz-me a verdade. Estiveste
com o Harry desde o dia em que saíste de Binsey, há vinte anos?
Até teres ido ontem a St. Ives com a Kelty, alguma vez o tinhas
visto?
— Não.
Barnaby apontou para a mesa do corredor onde Hazel
normalmente colocava a correspondência, e ela viu as cartas que
lhe tinham passado despercebidas, as cartas que tinha guardado
no canto empoeirado do baú, no armário do corredor, as cartas
que já não estavam atadas com um cordel.
— Mexeste nas minhas coisas? — A sua voz subia de tom a
cada palavra.
— O baú estava aberto, com todos os artigos e fotografias à
mostra. Não o arrombei nem andei à procura dele. Estava mesmo
ali.
— Barnaby, eu posso explicar.
Ele pegou numa carta e voltou a atirá-la para a pilha.
— Estas são as cartas melancólicas de duas pessoas
apaixonadas. Não é difícil ler nas entrelinhas.
— São cartas antigas, e eu nunca mais o vi. — Hazel levantou
as mãos em sinal de rendição. — E é óbvio que não olho para
elas há anos.
— Mas guardaste-as. Diz-me, ainda o amas?
Hazel pensou na verdade e no que aquilo poderia significar para
os dois, na sinceridade que seria necessária para conseguirem
seguir em frente.
— Sim, e vou amar para sempre. Mas não como estás a pensar,
não como nós. Foi uma coisa de infância. E acabou no dia em
que a Flora desapareceu.
— Não. — Barnaby apontou para as cartas com o cigarro
aceso. — Não acabou. Por amor de Deus, Hazel, ele diz que a
vida tem mais magia contigo.
— Barnaby, lamento que tenhas visto e lido aquelas cartas
antigas, mas a minha busca não tem nada que ver com o Harry.
— Amo-te muito, Hazel. — O seu olhar tornou-se mais terno. —
E estou preocupado contigo. Estás a ficar obcecada com aquele
livro. Preocupa-me que vás ter com uma paixão antiga quando um
telefonema teria sido suficiente, que acredites que a tua irmã pode
ressuscitar dos mortos…
Uma onda tomou conta do corpo de Hazel, elétrica e ardente.
— Não digas isso. Não digas que ela está morta. Qual é o teu
problema?
— Hazel, por favor, acalma-te.
O riso de Hazel saiu como um som indignado de desprezo.
— Acalmar-me? A sério?
Ele baixou a voz, mais brando agora.
— Sei que esta é a maior ferida do teu passado, e lamento
mesmo muito. Oxalá isto nunca tivesse acontecido, mas não
podes andar a correr às cegas pela Inglaterra e pela América, à
procura do teu próprio conto de fadas.
— Eu já encontrei um conto de fadas, Barnaby. Está num livro
escrito por uma autora americana. Estou à procura da verdade:
onde é que ela ouviu a história e será que a Flora…
— Está bem. Se é importante para ti, é importante para mim.
Perder uma criança é… indescritível.
— Lamento, Barnaby. — Tocou-lhe na cara por barbear. —
Ambos perdemos alguém.
A filha bebé de Barnaby tinha desaparecido, e ele tinha visto
isso acontecer. Hazel não tinha visto Flora deixar este mundo,
contudo as perdas de ambos estavam entrelaçadas, e ele não
conseguia imaginar algo diferente para Hazel, não conseguia
imaginar que a história dela pudesse ser alterada por um livro que
tinha acabado de encontrar.
CAPÍTULO 31

Março de 1960

Peggy Andrews não podia ficar sozinha com um telegrama que


dizia: «Como soube desta história? É uma questão de vida ou
morte.» De telegrama na mão, ela corria agora para casa de
Wren.
Wren abriu a porta e, assim que viu a cara dela, vestiu o velho
casaco de bombazina azul, agarrou-a pelo cotovelo e
encaminhou-a para a praia. Os seus pés escorregaram na areia.
Ela entregou-lhe o papel fino para ler.
— O que se passa, Pegs?
— Não sei o que pensar ou acreditar. Isto não é de loucos?
Achas que ela é doida?
— É difícil diagnosticar com exatidão uma psicose a partir de
um telegrama. — Sorriu, e ela deu-lhe um murro no braço. — Mas
deixa-me perguntar-te uma coisa: porque é que as perguntas
desta mulher são tão importantes para ti?
Peggy olhou para ele enquanto estavam parados nas dunas de
areia, com o sol do meio da manhã a aquecer-lhes as costas,
mesmo quando a brisa trazia uma frescura que a fazia tremer.
— Sabes quem é Oscar Wilde?
— Sim, claro. Poeta irlandês. Dramaturgo. A Importância de Ser
Earnest.
Ela sorriu.
— Bem, ele disse uma vez que contar «belas coisas não
verdadeiras» era o objetivo da arte. Eu gosto muito disso.
— Eu também — concordou Wren. — Belas coisas não
verdadeiras. Quando lemos relatos de Nárnia, da Terra Média ou
do País das Maravilhas, todos sabemos que não é verdade, mas
é tudo tão bonito que acreditamos enquanto lá estamos.
— E as belas coisas não verdadeiras contêm verdade — disse
ela.
— Ele também disse isso?
— Não, mas digo eu. Sinto que te estou a contar — não a ti, que
não lês essas coisas — mas ao leitor… sinto que estou a recontar
aquilo que vi num mundo invisível.
— E o que vês por lá? Diz-me.
Peggy fechou os olhos e viu o seu rio de estrelas, a clareira da
floresta e as torres de chapéus de burro contra um céu escuro
iluminado apenas por uma lua crescente.
— É como nos sonhos. Num conto de fadas, as palavras, as
maldições e os feitiços têm poder. Há magia. Tudo é animado,
desde as ervas à coruja falante, desde a mesa esculpida em
madeira de aveleira a um peixe que avisa que não se deve beber
a água do rio. — Abre os olhos e encara-o, na expetativa de que
ele compreenda. — A magia está no centro de tudo isto.
Ele acenou com a cabeça e ergueu a mão, tocando-lhe na face.
— Tu és muito especial.
— E, por norma, mas nem sempre, as minhas histórias têm
finais felizes. Os contos de fadas originais de Grimm são
horríveis, e é por isso que às vezes faço com que as raparigas se
cruzem com uma personagem de um conto de fadas antigo para
alterar o seu destino.
— Bem, então não admira que esta mulher queira a sua história
de volta, ou que queira saber como soubeste dela, ou que
queira… encontrar a irmã.
— Aí é que está, parece que a irmã dela desapareceu, mas a
história acabou por chegar à minha tia e à minha mãe. Como é
que isso é um problema meu?
— Não é um problema teu. Mas também acho — e não te
zangues comigo, eu sei que a tua mãe já me odeia — que talvez
seja uma dádiva que te vai abrir portas para uma aventura ainda
maior.
— Como assim?
— És uma rapariga inteligente, mas olha que às vezes és muito
obtusa.
Peggy sentiu uma ponta de raiva. Ele estava a sorrir, não a
acusá-la.
— O que queres dizer com isso?
— Pode ser que esse teu mundo interior te esteja agora a
apontar para aventuras no mundo real. Uma busca, para
descobrir de onde veio, para ajudares esta mulher em Inglaterra a
deslindar a sua própria história.
— Não estou a perceber. — Ela já estava arrependida de lhe ter
contado. As suas respostas eram demasiado crípticas. — O que
estás a dizer, Wren?
— Vamos até Inglaterra, Pegs. Vamos a Londres, procuramos a
mulher, falamos com ela e tentamos ajudá-la. Em vez de teres
aventuras nas tuas páginas, vamos ter uma no mundo real. Nós
os dois.
— Inglaterra?
— Sim, Londres. Eu já lá estive e vou contigo. Nem imaginas a
beleza daquela cidade.
— Não posso…
— Podes. — Ele fez uma pausa. — Tens passaporte?
Ela acenou com a cabeça.
— Sim, daquela viagem que fiz ao Canadá no meu último ano
do liceu.
Ele pegou-lhe nas mãos.
Desde a primeira vez que ele lhe tocou no braço, quando
estavam a jogar à apanhada no 5.º ano, que Peggy quis que ele
lhe tocasse outra vez. Tinha estado com outros dois rapazes na
faculdade, em tentativas desleixadas e insatisfatórias. Mas agora
ela sabia que podia ser de outra forma. Não sabia o que fazer a
seguir.
Ela escrevia aventuras. Seria capaz de viver uma?
— Queres descobrir de onde veio esta história? Ou queres ficar
aqui presa, a acreditar sempre no que te dizem?
Deu um passo na direção de Wren. Estavam tão perto que, se
ele quisesse, e ela esperava que sim, Wren podia inclinar a
cabeça e beijá-la.
— Peggy Maria Andrews! — A voz da mãe cortou a brisa.
Peggy virou-se e viu a mãe a caminhar na sua direção, com o
casaco preto a esvoaçar como as asas de um corvo gigante.
— E a bruxa regressa para levar a princesa para a sua torre —
disse Wren, com amargura.
— Wren… — atirou Peggy.
— É verdade. — Ele escondeu o telegrama no bolso das calças.
Antes que a mãe os alcançasse, inclinou-se para ela e os seus
lábios tocaram na sua orelha. — Bosque dos Sussurros. Bosque
dos Sussurros. Bosque dos Sussurros — entoou, num
encantamento. — Vem ter aqui comigo à meia-noite. Traz uma
mala; vamos partir à aventura.
A mãe já estava ao lado deles.
— O que estão a fazer? — perguntou.
— Também é um prazer vê-la, senhora Andrews — disse Wren,
afastando-se das duas. — Pegs, até à vista — despediu-se, numa
vénia exagerada. A mãe avançou para ele, e ele recuou.
— Ela chama-se Peggy.
— Mãe, para com isso — admoestou Peggy, com uma chama
de raiva a arder no peito. — Qual é o teu problema?
— Sabias que ele foi preso? — disse a mãe, apontando o
queixo para Wren. — Que tem cadastro? Que quase foi expulso
de Harvard?
Peggy virou-se para Wren, que parecia ter levado um estalo da
mãe.
— É tudo verdade, mas não é o que pensa.
A mãe cuspiu as palavras:
— Que coisa tão ridícula de se dizer.
Wren olhou para Peggy, que viu a dor nos seus olhos. Não uma
dor defensiva, numa luta para provar que tinha razão, e sim uma
dor de vergonha. Ela queria abraçá-lo, puxá-lo para junto de si,
acalmá-lo. Mas esperaria pela altura certa.
Ele terá lido isso mesmo nos seus olhos, pois sorriu e virou
costas, seguido pela sua sombra alongada. Peggy virou-se para a
mãe.
— Às vezes, consegues ser cruel.
— Só te estou a proteger.
— Mãe, eu não preciso de proteção. — Pela primeira vez na
vida, Peggy virou costas à mãe e foi para casa.
Sentiu que as páginas da sua vida estavam a avançar mais
depressa do que imaginava, em direção a algo perigoso ou
maravilhoso, não sabia, não podia saber, mas a verdade é que
algo estava a acontecer, como num conto de fadas.
Na praia, à meia-noite, com uma mala.

Peggy mal tocou no jantar insípido de esparguete com molho de


lata. Não se levantou como a boa menina que era todas as noites
para lavar a loiça, enquanto a mãe lia as páginas em voz alta. Em
vez disso, pousou os cotovelos na mesa, o que era proibido,
claro, e disse:
— É possível que o Bosque dos Sussurros tenha pertencido a
alguém antes de nós?
A voz da mãe era agora mais branda, melodiosa, mas cansada.
— O Bosque dos Sussurros é nosso. Não importa como
começou, importa que o tenhamos tornado nosso.
— Mãe, para mim, importa como começou. Diz-me, quem
inventou o nome? Quem chamou a este mundo Bosque dos
Sussurros?
— Porquê tantas perguntas? O que se passa contigo? — A mãe
levantou-se da mesa e, em câmara lenta, meteu a mão no bolso
do vestido, um balão em tecido axadrezado. Tirou de lá o número
de telefone amarrotado que Peggy julgava ter ficado escondido
debaixo do colchão. — Será que é por isto que estás a perguntar?
Peggy olhou para o pedaço de papel e depois para a mãe.
— Sim, é por isso. Porque é que esta mulher diz que esta
história é dela?
A mãe sorriu com a confissão e falou sem amargura na voz.
— Oh, minha querida menina, eu avisei-te sobre as pessoas
loucas, sobre aqueles que tentariam roubar o que é teu, todos os
teus prodígios e maravilhas. Como o bebé Lindbergh…
— Para com isso. Quero saber porque é que esta mulher me
ligou. — Deveria contar à mãe sobre o telegrama? Não, não
falaria sobre a irmã desaparecida ou sobre o telegrama, pelo
menos até decidir se ia ter com Wren à meia-noite. Peggy
levantou-se e foi ter com a mãe. — Eu sei que é a nossa história,
mas porque não responder às perguntas desta mulher?
— Não. Vamos ignorar esta loucura e avançar para o próximo
livro, que, escuso de te lembrar, tem um prazo de entrega
iminente. Se a história pertenceu a esta mulher, porque é que não
publicou ela o livro? Se lhe pertencia, porque é que a escondeu?
Eram boas perguntas. Ela não tinha respostas, ainda não, mas
tencionava descobri-las.

Não tinha sido necessário acertar o despertador para as 23h45.


Peggy estava acordada. Depois de anos a escrevê-las, estava
pronta para viver as suas próprias aventuras. Sobretudo com
Wren. Estava farta de sonhar, de imaginar e de inventar coisas.
Queria fazer mais do que escrever sobre viagens, queria viajar.
Tirou a sua pequena mala circular com margaridas cor de
laranja e verdes de baixo da cama. Gostava de ter uma mala mais
adulta, mas tinha de se contentar com aquela; ela e a mãe nunca
viajavam.
No escuro, dobrou os conjuntos de roupa interior de seda a
condizer que a mãe tinha comprado na JCPenney no Natal do
ano passado, assim como dois vestidos floridos que usava em
ocasiões especiais, um par de calças azul-escuras e uma
camisola azul de caxemira, ainda por estrear.
Como se estivesse a viver um sonho, percorreu o corredor em
bicos de pés e saiu pela porta das traseiras, caminhando até
chegar ao paredão. Era como se não tivesse apenas saído de
casa, mas sim entrado por uma porta cintilante.
CAPÍTULO 32

Março de 1960

As paredes brancas da Lamplighter, uma galeria da rua principal


de Hampstead, exibiam obras de arte emolduradas, esboços,
óleos e fotografias. Hampstead Heath era um dos bairros
londrinos preferidos de Hazel. O seu encanto subtil resultava das
ruelas calcetadas estreitas, das portas amarelo-vivas e azul-
pálidas, sombreadas por trepadeiras rastejantes, das sebes que
escondiam jardins verdejantes e dos degraus de pedra antigos
que conduziam a pubs e casas. Aqui e ali, espreitavam pequenas
igrejas. Era o bairro da infância de Barnaby.
A festa já estava a decorrer há uma hora e por toda a sala havia
conversas, sem que uma única palavra se elevasse acima das
demais. Um homem todo de preto passava música num fonógrafo
ao fundo da sala. Todos trajavam as suas melhores roupas
artísticas. A monotonia do pós-guerra havia sido substituída por
mulheres com vestidos brilhantes que seguravam em copos de
martíni com azeitonas a flutuar e rebordos manchados de batom.
Havia uma mesa branca no canto esquerdo, junto à porta da
rua, onde estava uma jovem a servir vinho e a agitar o shaker no
qual preparava as bebidas daqueles que já faziam fila. Hazel
pediu um copo de chardonnay. Embalou o vinho morno nas mãos
e aproximou-se das obras de arte penduradas na parede.
Ali, numa moldura prateada, envolta num passe-partout em
cinzento-escuro, estava um esboço a lápis de uma jovem a correr
pelo bosque. Os seus caracóis brilhavam e os seus braços
estavam em movimento. Se uma obra de arte pudesse rir, esta fá-
lo-ia certamente. As árvores viçosas curvavam-se sobre ela como
se quisessem protegê-la e, ao longe, avistava-se um rio.
O copo, onde apenas restava um gole de vinho, caiu ao chão e
partiu-se; o som, um mero tilintar no rugido das conversas e da
música, nem sequer suficientemente alto para fazer com que
muitas pessoas se virassem.
Por baixo do desenho, uma pequena etiqueta quadrada
emoldurada: Flora no bosque.
A jovem que estava atrás do bar saiu a correr com panos
brancos na mão e limpou o vinho derramado antes que Hazel
tivesse noção do que tinha feito. Hazel olhou para a mulher
agachada no seu minivestido, a limpar o líquido derramado no
soalho.
— Sinto muito — desculpou-se, inclinando-se para ajudar. —
Sou mesmo desastrada.
— Acontece todas as noites, minha senhora. Não se preocupe.
Aceita outro?
— Sim, por favor.
Hazel levantou-se novamente e deixou os olhos vaguearem até
ao desenho seguinte: um poço, mais precisamente o poço de
Santa Margarida. O desenho seguinte retratava a igreja paroquial,
e o seguinte um rio com uma ponte que se prolongava até à
névoa.
A arte de Harry espelhava o inconsciente de Hazel. Os seus
pesadelos. Os seus segredos. Estava tudo ali, às claras, com
candeeiros de bronze a iluminar a verdade: nenhum dos dois
tinha esquecido o passado.
Com outra bebida na mão, Hazel caminhou mais para dentro da
sala e aproximou-se do esboço de um perfil, um rosto que
conhecia bem, uma representação da inocência e da alegria
pueril. Um rosto que ainda via ao espelho.
O seu rosto.
— Hazel. — Kelty aproximou-se dela e beijou-a na cara. —
Sempre vieste!
— Tia Hazel. — Midge apareceu disparada e chocou com
Hazel, abraçando-lhe a cintura. Ergueu o rosto.
— A minha menina — disse Hazel, beijando-lhe a testa,
desviando o olhar das linhas e curvas do seu próprio rosto de
infância. Kelty reparou nos desenhos.
— Oh!
— A arte dele — anunciou Hazel. — Algumas obras são sobre
nós.
— Talvez ele quisesse fazer-te uma surpresa?
— Uma surpresa? Com desenhos da Flora no bosque?
Midge bateu o pé.
— Parem de falar de coisas que não percebo.
Riram-se as duas.
— Vai procurar o teu pai — disse Kelty, apontando para o outro
lado da sala. — Nós já vamos ter convosco.
— Odeio conversas de adultos — disse Midge, antes de sair a
correr.
— Vocês os dois — atirou Kelty — têm esta coisa, esta ferida,
esta mágoa antiga. Não podem fingir que ela não existe. A tua
assume determinadas formas. E a dele expressa-se através da
arte. Ou pelo menos é o que parece.
— Estás a analisar-nos aqui e agora?
— Não. Estou a dizer-te para parares de fugir. — Kelty
aproximou-se do retrato a carvão. — Parece que não és a única
que pensa no amor perdido.
— Para. — Hazel virou costas ao desenho. — Quando ele
enfiava desenhos por baixo da porta todas as manhãs, nunca
eram sobre mim, retratavam sempre o dia, os campos, a mãe dele
ou a Flora. Ele chegou mesmo a fazer um desenho sobre ti. Mas
nunca sobre mim.
— Parece que guardava os teus.
— Gostas? — Hazel virou-se para Harry, que passava os dedos
pelo cabelo.
— Gosto. Mas não está a ser fácil… não sei… absorver isto
tudo.
Ele pigarreou.
— Hazel, fartei-me de dar voltas à cabeça a pensar no que
dirias ou farias se visses isto. E olha para nós. — Forçou uma
gargalhada, que mais pareceu uma tosse, um ronco. — Aqui
estamos.
— Sim.
Kelty escapuliu-se.
— São mesmo muito bonitos — disse Hazel, agarrando no seu
copo de tal forma que até se admirou de não o ter partido.
Quantos copos poderia ela partir numa noite? — O desenho da
Flora é adorável.
— Naquela parede — disse ele, apontando para o outro lado da
sala — tenho alguns de St. Ives, de barcos e de paisagens. Nem
todos são…
— Sobre aquela época horrível. — Ela estendeu a mão e tocou-
lhe no braço, por cima da camisa escura. Ele ficou imóvel, como
se estivesse à espera para ver no que mais ela tocaria.
— Não te assustes com os quadros. Foram pintados de
memória. Não são daqueles tempos. Desenhei-os ao longo dos
anos.
— Porquê?
— Quando não consigo esquecer uma coisa, desenho-a. Pinto.
Faço esboços. Trago-a cá para fora.
— Como eu fazia com as histórias. — Ela olhou novamente
para aquelas obras de arte extraordinárias. — Mas tu continuaste
e eu desisti.
Ele acenou com a cabeça em direção à porta.
— Está muito barulho aqui dentro. Vamos lá para fora?
Ela seguiu-o.
Na rua principal, ele encarou-a, e esfregou as mãos nos braços
para se aquecer do frio da noite. As vozes que subiam e desciam
de intensidade saíam pela porta e eram vertidas para a rua, um
rio de som. Hazel e Harry chegaram-se para a direita, onde havia
mais sossego.
— Será que sabes… — atirou ele.
— O quê?
— A tua mãe nunca permitiu que nos aproximássemos de ti
durante aquele período terrível. Tentámos visitar-te em Oxford. Fui
sozinho para tentar encontrar-te e a minha mãe teve de me ir
buscar e levar para casa. Não te abandonámos. Sempre tive
medo de que pensasses que sim.
— Nunca pensei tal coisa. Pensava que… me odiavas.
Um rouxinol cantou alto e bom som. Ambos inclinaram a cabeça
em direção ao som e Harry pegou-lhe na mão e afagou-lhe o
pulso com o polegar.
— Seria incapaz de te odiar.
A mão dele sobre a dela nos bosques; a mão dele sobre a dela
aqui e agora.
— Mas porquê todos os desenhos daquela época horrível,
Harry?
— Grande parte não foi horrível, e às vezes a vida causa-nos
desgostos para que deles possa surgir a melhor arte. Não sei
porquê, mas não conheço maior verdade. Pelo menos, se
permitires que seja.
— Parti do princípio de que te tinhas esquecido de mim — disse
ela, ciente de que era impossível, mas ansiosa para ser
contrariada.
— Não é que te tenha esquecido, Hazel. Precisava de te
esquecer. Não respondeste à última carta em que pedi para te
ver. O que devia eu fazer? Procurar-te? Correr atrás de ti?
— Sim — respondeu ela, com um sorriso. Ele abanou a cabeça
e riu-se.
— Não. Se não te lembras, em Binsey, disseste que nunca mais
me querias ver.
— Eu tinha 15 anos e estava em estado de choque. Como
pudeste levar-me a sério?
— Sempre te levei a sério. — Ele fez uma pausa, como se se
lembrasse daquela manhã, daquela maldita manhã em que ela
lhe dissera aquelas mesmas palavras. Nunca mais te quero ver.
— A culpa também foi da tua mãe, que disse à minha para
garantir que eu me mantinha afastado.
— Acho que estava a tentar proteger-me — concluiu Hazel. —
Mas ao fazê-lo, manteve-me longe da pessoa que eu mais
amava.
Ele sorriu, astuto e doce.
— Ah, então a verdade é que me amavas.
Ela ainda pensou em rir-se daquilo, mas isso que importava
agora?
— Sim.
Harry parecia à beira das lágrimas, no entanto conseguiu
proferir as palavras mais doces com uma voz firme.
— Eu também. Eu também te amava, Hazel.
— Tivemos a sorte de ser o primeiro amor um do outro. Tivemos
sorte até a sorte acabar.
Ele aproximou-se e encostou a testa na dela. Ela ficou em
silêncio, à espera.
— És a primeira rapariga que amei. Na altura, não sabia o que
era aquilo que sentia, mas agora sei. Vou arrepender-me para
sempre de ter dado ouvidos à minha mãe ou à tua. Devia ter-te
procurado. Fui um cobarde. Sei que isso não muda nada agora,
mas é verdade.
Aquelas palavras libertaram algo dentro dela, algo tão apertado
como o punho de um pugilista quando ouve a campainha que
assinala o início da partida. Hazel soltou-o.
— Harry, esse amor deixou-me doente. Sentia-me culpada por
sentir a tua falta após o desaparecimento da Flora.
Ele levantou a testa e olhou para ela; o beijo estava tão
próximo.
— Hazel? — Ela virou-se e viu a mãe de Barnaby, Eleanor, e o
seu pai, Meldon, parados a três metros de distância. Eleanor
trazia um vestido cor de champanhe que lhe assentava tão bem
que mais parecia ter sido costurado no seu corpo. O seu cabelo
grisalho estava apanhado num chignon apertado. Meldon tinha as
mãos enfiadas nos bolsos do seu longo casaco preto.
Hazel e Harry afastaram-se, uma tarefa nada fácil já que
contrariava o movimento natural do corpo de Hazel até então. O
seu rosto ruborizou com a adrenalina. A sua língua a postos com
desculpas e mentiras.
— Que bom ver-vos! O que fazem aqui? — Espantou-se que a
sua voz se mantivesse calma, apesar de sentir o coração preso
na garganta.
Tinha sido apanhada.
Eleanor olhou para Harry, com os lábios cerrados numa linha
reta.
— Viemos ver a exposição de arte. E a Hazel?
— Estão cheios de sorte — comentou Hazel. — Este é o Harry
Aberdeen, um dos artistas! — A voz tremeu-lhe, mas ela fez os
possíveis para a manter firme. — Harry, apresento-te a Eleanor e
o Meldon Yardley.
O rosto de Eleanor transformou-se em pedra e os seus olhos
gelaram quando olhou para Hazel. Ela tinha visto; ela sabia.
— Onde está o meu filho? — perguntou.
— Teve um jantar com os colegas da universidade. — Hazel
sentiu que estava prestes a vomitar. — Partimos para Paris daqui
a alguns dias.
— Ai sim? — Eleanor olhou para Meldon, que olhava para
Harry.
Onde tinha a cabeça? Fora imatura, tola e impulsiva. Agora,
sofreria as consequências.
Meldon passou o braço pelo de Eleanor e virou-a, de tal modo
que ela quase tropeçou nos seus delicados saltos altos. Seguiram
na direção oposta à da galeria de arte, descendo a rua por onde
tinham vindo, com Eleanor a gritar:
— Meldon, meu querido… a exposição de arte!
Harry olhou para eles e depois para Hazel, com a mão na
barriga, por cima da camisola cinzento-pálida.
— Quem são?
— São… os pais do Barnaby. Do meu namorado, Barnaby. Ele
é um dos mais famosos colecionadores de arte e artefactos de
Inglaterra.
Harry acenou com a cabeça.
— Eles não parecem muito satisfeitos.
— Tenho a certeza de que não estão. — Hazel ficou a olhar
fixamente para os pais de Barnaby, e teve a certeza de que
estariam prestes a ligar ao filho.
CAPÍTULO 33

Março de 1960

As luzes do apartamento de Hazel estavam apagadas. Assim


que entrou, ela tirou o impermeável e sacudiu o guarda-chuva
antes de fechar a porta da rua. O tapete da entrada ficou
manchado por pequenas poças de água, e Hazel estremeceu com
frio no seu vestido húmido. Avançou pelo apartamento e acendeu
todos os candeeiros.
Mas ao chegar à cozinha, reparou num ponto de luz: um vulto
desenhado contra a bancada com um cigarro aceso na mão.
Hazel soltou um grito de susto e disse:
— Barnaby, assustaste-me. O que fazes aqui às escuras? —
Acendeu o candeeiro de mesa e ele semicerrou os olhos.
Avançou lentamente em direção a ela.
— Hazel, onde estiveste, meu amor?
— Já te disse, fui a uma exposição de arte em Hampstead, com
a Kelty e o Fergus. A Midge também estava lá.
— A minha mãe ligou-me.
Hazel tentou manter a calma e fazer-se de desentendida.
— Com quem estavas, Hazel?
— Isto nem parece teu, Barnaby. Agora deu-te para me
interrogares como se tivesse feito algo de errado?
Ele apagou o cigarro no cinzeiro, embora estivesse apenas
meio fumado.
— Estiveste com o tal rapaz de Binsey.
— Sim, o Harry Aberdeen era um dos artistas.
Ela agarrar-se-ia à verdade enquanto pudesse. Mas não
permitiria que um erro estúpido — ceder aos seus desejos infantis
por Harry — estragasse a vida que estava a construir com
Barnaby.
— Amas o homem com quem estiveste no passeio hoje à noite?
A minha mãe disse-me que vocês pareciam amantes.
— Isso é ridículo.
Ele inclinou-se para a frente.
— Também me fizeram perguntas sobre o livro e as ilustrações
roubados.
— Roubados? Sabes muito bem que não os roubei… foi…
— Um engano. Eu sei.
— Espera, como é que eles sabem disso? Contaste-lhes? — A
sua boca ficou seca, árida.
— Não. Eu não lhes contei. — A voz dele começava a
desvanecer-se com o cansaço. — O meu pai ajudou-te a
conseguir o emprego na Sotheby’s e eles ligaram-lhe.
Hazel ouviu o que Barnaby disse. As suas palavras eram claras,
mas ela estava perplexa. Abriu a boca para falar, porém abanou a
cabeça.
— Estás bem? — perguntou ele.
— Não. Estou… confusa? — Uma fenda notória e irregular
começou a desenhar-se nas certezas que Hazel tinha em relação
à sua vida. — O teu pai ajudou-me a conseguir o emprego? Como
assim? Eu fiz por merecer ser contratada para aquele cargo.
— Ele fez alguns telefonemas, nada de mais.
— Foram assim tantos telefonemas que eles acharam por bem
contactá-lo a propósito da Hogan’s e das ilustrações?
— Sim, suponho que sim. E a minha mãe, exagerada como
sempre, a dizer que nos tinhas traído. — Barnaby tirou outro
cigarro do bolso e meteu-o entre os lábios sem o acender.
— Que vos tinha traído?
Hazel esfregou as têmporas com os dedos. Não podia
responder às perguntas dele, porque ela própria tinha muitas
perguntas que precisavam de resposta.
— Barnaby, eu e o Harry não somos amantes.
— Hazel, meu amor, partimos para Paris daqui a dois dias. Se
há alguma coisa que tenhas para me dizer, por favor, diz-me
agora.
— Barnaby, fui a uma exposição de arte com a Kelty e, quando
estava na rua a falar com o Harry, encontrei os teus pais. A tua
mãe interpretou mal o que viu. Amo-te. Partimos para Paris daqui
a dois dias. É tudo o que tenho para te dizer.
Ele ficou parado a ponderar nas suas palavras, no passado dela
e no futuro deles. Logo a seguir, puxou-a para si e beijou-a. Hazel
sentiu que estava a ver-se a si própria a ser beijada, como se
estivesse do lado de fora de uma janela a espiar dois amantes
que não conhecia.

Barnaby ressonava e Hazel olhou para o relógio: 06h00. Não


conseguia dormir, o melhor era levantar-se. Deslizou para fora da
cama e foi até à cozinha para ferver água para o chá. Precisava
de se pôr de pé, para encontrar o seu caminho de volta ao mundo
real.
Ao passar pela sala de estar, o seu olhar pousou na edição da
Vanity Fair que Barnaby tinha tirado do lixo e atirado para cima da
mesa de apoio. Pegou nela e voltou a olhar para o texto da capa.
As Crianças Perdidas do Flautista de Hamelin, de Dorothy
Bellamy.
Talvez Hazel estivesse errada. Talvez a jornalista pudesse
ajudar. Era possível que Dorothy Bellamy tivesse fontes que Hazel
não tinha. Levou a revista para a cozinha e, depois de fazer o chá,
sentou-se à mesa a ler. O artigo de Bellamy falava de uma jovem
de Hillingdon, membro do Mickey Mouse Club, que fora enviada
para o Canadá na sequência da retirada das crianças de Londres
para viver com os primos. Mas a pobre Beryl Myatt tinha morrido
aos 9 anos quando o navio onde seguia foi bombardeado, a 17 de
setembro de 1940. Noventa crianças deslocadas seguiam a
bordo, e setenta e sete tiveram um fim trágico.
Hazel sentiu um aperto no coração. Não conseguiu ler nem
mais uma palavra. Tanta amargura. Crianças que saíram de casa
para ficarem em segurança e que acabaram por perecer.
Não podia permitir que Flora fosse mais uma das histórias
melodramáticas de Dorothy Bellamy, algo para a «mulher jovem e
inteligente» ler com consternação. Voltou a atirar a revista para o
caixote do lixo e olhou para a correspondência intocada em cima
da mesa. Bebeu um gole de chá e remexeu nas contas até ver o
papel timbrado da Esquadra da Polícia de Thames Valley Oxford.
Abriu o envelope e leu os nomes das quatro enfermeiras numa
linha datilografada; os nomes deixavam marcas fundas no papel e
todos os E estavam tortos. Havia ainda um bilhete manuscrito na
caligrafia de Aiden preso por um clipe à lista de nomes.

Em setembro de 1940, foram todas interrogadas e prontamente ilibadas da


suspeita de qualquer crime relacionado com o caso da Flora.

Imogene Wright, agora Mulroney, mora em Henley-on-Thames. É casada e


tem uma filha chamada Iris Taber, também de Henley-on-Thames.

Frances Arkwright faleceu um ano após o fim da guerra.

Maeve Muldoon é casada, tem seis filhos e vive em Glasgow.

Lilly Carnigan é solteira e vive em Birmingham.

Com os melhores cumprimentos,


Aiden

Em anexo, estavam as moradas e os números de telefone. O


coração de Hazel disparou.
— O que é isso? — A voz de Barnaby apanhou-a de surpresa, e
Hazel deixou cair a carta, que ele apanhou do chão.
— Bom dia — disse ela, beijando-lhe a face áspera. — Dormiste
bem?
— Bom dia, meu amor. — Ele olhou para o bilhete. — O que é
isto?
— São as quatro enfermeiras de Binsey. Lembras-te de te ter
dito que fui visitar o Aiden, aquele inspetor da polícia?
Ele olhou para Hazel, com o olhar ensombrado.
— Nunca vais esquecer isto, pois não? Vais perseguir
incessantemente esta perda durante toda a tua vida.
— Estás a ser injusto, Barnaby. É impossível não perseguir esta
pista.
Ele colocou o bilhete na mesa e preparou-se para sair.
— Tenho trabalho hoje de manhã. Vou andando.
— Tão cedo? — Tantas dúvidas entre eles agora. Ele pareceu
magoado com a pergunta.
— Sim, tenho de ir, meu amor. — Ele beijou-a. — Até logo.
— Barnaby… — disse ela, ao vê-lo sair. Ele olhou por cima do
ombro, já a afastar-se.
— Sim?
— Amo-te. — Ela não sabia como melhorar aquela situação. Ou
qualquer outra.
— Também te amo. — Mas a resposta dele soou vazia,
sublinhada pelo abrir e fechar da porta da rua.
A filha de Imogene.
Uma filha única.
Iris.
CAPÍTULO 34

Fevereiro de 1940

Foi depois do Imbolc que Hazel começou a escrever as histórias


do Bosque dos Sussurros em cadernos escolares. Escondeu-os
na gaveta inferior da cómoda, debaixo de camisas e calças
dobradas, sob um forro de gaveta em seda que Bridie tinha
costurado para elas. Estavam mesmo ao lado dos desenhos
diários de Harry.
Apesar de o Imbolc marcar o início da primavera, o inverno só
partiu no final de fevereiro. Uma tempestade de neve durou dois
dias, cobrindo a terra com um manto branco que manteve as
crianças fechadas em casa com uma lareira crepitante, os
trabalhos de casa e pilhas de livros. Saíam para brincar na neve e
voltavam com os dedos dos pés e das mãos dormentes, depois
aqueciam-se junto à lareira e a sensação nos dedos regressava
com um formigueiro elétrico. Bridie fazia chocolate quente e todos
ansiavam por açúcar para o adoçar.
Enquanto isso, Hazel escrevia sem parar.

Se nasceres ciente disso — e, verdade seja dita, todos nascemos —,


encontrarás o teu caminho pelo bosque até às portas cintilantes que te
estão destinadas. Elas abrem para o mundo que foi criado única e
exclusivamente para ti.
Todas as noites, tinha como rotina acrescentar algumas linhas a
estas histórias, no seu quarto minúsculo junto à cozinha. Com a
música do rádio de Bridie a tocar em pano de fundo, Flora
fechava os olhos para dormir enquanto Hazel rabiscava em
cadernos até não conseguir manter os seus próprios olhos
abertos. Escrevia sobre as atividades do dia, mas era mais do que
uma lista; ela adicionava elementos mágicos, como se o Bosque
dos Sussurros tivesse deixado de ser imaginário e tivesse entrado
no seu mundo real. Aquela coruja escapou das amarras da
imaginação e passou a observá-los à beira do rio com Harry. Os
dois mundos entrelaçavam-se à medida que ela ia escrevendo e
os meses iam passando.

No dia 20 de maio, Flora e Hazel correram para o prado e


deram com ele transformado num acampamento barulhento e
caótico de soldados e tendas em forma de sino. Aterrorizadas
com a chegada do homem mau a Oxford, correram para junto de
Bridie, que lhes explicou que deviam manter-se afastadas.
Tratava-se de uma operação para ajudar a Força Expedicionária
Britânica e as tropas aliadas que tinham sido resgatadas de um
porto francês chamado Dunquerque; aqueles homens ali reunidos
tinham sido salvos. Eram belgas, franceses e britânicos e tinham
sido levados para ali a caminho da sua próxima missão.
Na manhã seguinte à chegada dos soldados, Harry, Flora e
Hazel correram para a porta assim que terminaram de tomar o
pequeno-almoço. O sol da manhã brilhava num céu prateado e
Bridie estava de partida para a cidade para tratar de alguns
assuntos. Flora bamboleava-se, imitando uma mãe pata a
conduzir as suas crias para o rio. Harry riu-se e pegou nela ao
colo quando chegaram à beira do rio.
Os três avistaram os homens e o acampamento ao mesmo
tempo. Ficaram imóveis a olhar para a outra margem, para as
tendas que se erguiam nos pastos verdejantes de Port Meadow.
Homens com fardas das Tropas Expedicionárias Britânicas —
castanhas e verde-azeitona, com botões, dragonas e medalhas
presas no tecido — marchavam para aquela área. Outros
andavam de um lado para o outro, atordoados, como se tivessem
acabado de acordar.
— Vieram de Dunquerque — disse Harry em voz baixa, como
se fosse um segredo, coisa que não era. Hazel já estava a par de
tudo pelo Oxford Mail e pelas explicações de Bridie, mas deixou
Harry continuar, porque sabia que isso o faria sentir-se inteligente.
— Foram retirados porque Hitler invadiu a França e nós tivemos
de os ir resgatar. — Nós, dissera ele. Por «nós», quis dizer a Grã-
Bretanha, e estava orgulhoso disso. — Quando puder, vou juntar-
me a eles.
Hazel encarou Harry.
— Não vais, não.
— Claro que vou — reiterou ele, num tom de voz mais elevado,
como se quisesse convencer-se a si mesmo. — Daqui a três
anos, já me posso alistar. Podia fazê-lo agora mesmo, mas a
minha mãe denunciava-me por mentir sobre a idade.
— Não faças isso — pediu-lhe Hazel, com o pensamento no pai
e no dia da sua partida. Desviou o olhar de Harry, com medo de
desatar a chorar com a possibilidade de ele partir para não mais
voltar.
Uma névoa subiu do rio, que corria como um fantasma, e
pairava agora sobre o prado. Os pináculos de uma igreja de
Oxford erguiam-se ao longe, vigilante daqueles que tinham sido
resgatados. Flora agarrou-se ao Berry, e Hazel aproximou-se de
Harry, um instinto que crescia a cada dia que passava.
— Não podes ir para o sítio onde as pessoas morrem. A tua
mãe não suportaria isso.
Harry mexeu-se apenas o suficiente para a encarar e ela viu a
pergunta nos seus olhos: e tu, suportarias? Mas ela não
respondeu à pergunta implícita, nem mesmo com os olhos.
— Hazel? — Flora puxou as bordas do vestido florido da irmã, o
mesmo que tinha ficado pelo menos dois centímetros e meio mais
curto no último mês. Hazel agachou-se.
— Sim?
— O papá está ali?
Hazel compreendeu a confusão de Flora. A última vez que tinha
visto o pai, ele envergava uma farda igual àquelas. Um soluço
cresceu-lhe na garganta, mas Hazel engoliu-o.
— Não. O papá morreu, Flora. Tu sabes disso.
— Como é que sabes? — Flora deu uma palmada a Hazel, que
lhe acertou na coxa, e soltou um grito impotente. — Ele pode
estar ali. Talvez não tenha morrido. Talvez seja um deles… —
Apontou para o outro lado do rio e desatou a correr em direção à
água.
Hazel perseguiu a irmã e agarrou-a por um braço antes que ela
alcançasse a margem mole e lamacenta. Assustados, patos e
gansos atiraram-se ao rio, e um remador matutino passou por
elas no seu bote.
— Flora. Para com isso, já.
— Quero encontrar o papá. Quero encontrá-lo. Quero… — Flora
enterrou a cara no vestido da irmã. — Temos de o encontrar.
— Oh, Flora. — Hazel deixou-se cair nas ervas, e sentiu a lama
a penetrar no tecido fino do seu vestido e a molhar-lhe o rabo.
A visão dos soldados desnorteados e maltrapilhos, com as
fardas rasgadas e as ligaduras cor de ferrugem a cobrir-lhes os
braços e os rostos, tornou a guerra muito real. Tornou a perda do
pai muito real.
Hazel sentiu isso mesmo; tinha ido longe demais com o seu
mundo imaginário. Flora tinha perdido a noção do que era real e
do que não era. Não estava a fazer bem à irmã com aqueles
contos de fadas.
— Por favor, vai lá procurá-lo — pediu Flora.
Hazel abraçou Flora e, pouco depois, Harry aproximou-se e
sentou-se ao lado delas nas ervas macias e lamacentas,
envolvendo as duas num abraço.
Flora enterrou o rosto no pescoço de Harry.
— Consegues trazê-lo de volta?
Harry pousou a cabeça sobre a de Flora e olhou para Hazel.
Cruzaram olhares por cima do cabelo farto de Flora, e Hazel
deixou as lágrimas silenciosas caírem. Harry limpou a cara de
Hazel com um dedo, numa carícia quase impercetível.
Em seguida, baixou-se e arrancou do chão uma flor de
artemísia; com o seu centro amarelo e as suas pétalas delicadas.
Puxou com tanta força que até as raízes arrancou. As gavinhas
brancas ainda traziam o solo escuro agarrado. Partiu o caule e
colocou a flor atrás da orelha de Hazel. Flora mantinha a cara
enterrada entre eles, e tremia com o choro impotente. Hazel não
podia fazer mais nada além do que fez: inclinou-se para frente e
beijou Harry na cara. Pelo menos, era aí que ela pretendia beijá-
lo, mas ele virou-se e os seus lábios encontraram-se por um
breve instante.
— Meninos! — A voz de uma mulher ecoou pelo prado,
apanhada na neblina da manhã.
Flora levantou a cabeça tão depressa que chocou contra o
queixo de Hazel. As duas gritaram, e Flora soltou-se. Hazel levou
a mão ao queixo, sentiu calor, e retirou-a para ver um crescente
de sangue no seu dedo médio. Flora esfregou a cabeça, mas não
chorou.
Viraram-se e reconheceram as quatro enfermeiras que se
aproximavam — capas azuis ondulantes, fardas brancas
amarrotadas e manchadas com a ferrugem do iodo e o vermelho
do sangue. Não sabiam ao certo quem tinha chamado por elas.
Frances foi a primeira a chegar ao pé deles.
— O que estão a fazer aqui? Onde está a Bridie? Estão
sozinhos?
Harry levantou-se e limpou as mãos enlameadas às calças
castanhas.
— Estávamos a observar os soldados. Não estamos a fazer
nada de mal, minha senhora. A Flora está um pouco perturbada,
por isso estávamos…
O rosto de Frances contorceu-se num esgar como se algo
rançoso e húmido tivesse atravessado o rio, e a enfermeira
abanou a cabeça.
— Pareceu-me que estavam aos beijinhos por cima da cabeça
de uma menina inocente.
— Não! — Hazel deu um pulo.
As outras três mulheres aproximaram-se de Frances, e todas
pararam à beira do rio. Os seus rostos refletiam o cansaço que
sentiam. As olheiras eram claramente visíveis. Sob o queixo de
Maeve, logo abaixo do espaço macio da sua garganta, uma
mancha de sangue seco criara uma crosta oval. Hazel teve
vontade de estender a mão e de a limpar.
Flora também se levantou, apertou o Berry contra o peito e
alternou o olhar entre as quatro enfermeiras.
— O meu papá está ali? — perguntou.
Imogene, a que tinha o cabelo escuro como a noite e que
muitas vezes tomava conta dela, respondeu:
— Não, querida.
— Como é que sabe? Já o procurou?
Imogene agachou-se, pôs as mãos nos joelhos e beijou o cimo
da cabeça de Flora.
— Ele não está ali, meu amor.

Quando chegou o verão, as tendas e os homens já tinham


desaparecido. A consciência da guerra tornou-se mais difusa.
Hazel e Flora corriam pelo bosque, passando pela igreja de
pedra, pelo chalé das enfermeiras e pelo poço de melaço.
Atiravam pedras ao rio e viam-nas afundar, criando um buraco
que desaparecia e assustava patos e cisnes. Os dias pareciam
suspensos no tempo, intermináveis e feitos apenas para o seu
prazer, enquanto visitavam o Bosque dos Sussurros.
Bridie tricotou meias grossas para os soldados, fez pepinos e
cebolas em conserva e pediu às meninas que etiquetassem os
frascos e os guardassem numa cave fria. Bridie ensinou-as a
fazer tartes de coelho e de borrego, a estender a massa com
farinha suficiente para as fazer estalar no forno. Enquanto as
outras crianças tinham de suportar longos domingos de roupas
formais e serviços religiosos rígidos, Flora, Hazel e Harry
passeavam pelo bosque com Bridie. Aprenderam a distinguir a
rara alga carófita, submersa logo abaixo da superfície do rio, da
delicada violeta. Procuravam cogumelos que cresciam naquilo a
que se chamavam círculos de fadas. Bridie ensinou-as a terem
cuidado com as folhas verdes da Heracleum mantegazzianum,
que queima a pele, e a distinguirem o chamamento de um chapim
do de um rouxinol. Flora sabia dizer o nome de flores como bem-
me-quer, ulmária e língua-de-serpente.
Parecia impossível, ou talvez injusto, que vivessem esta vida
idílica enquanto noutros sítios as bombas caíam, as pessoas
morriam e os soldados chegavam aos hospitais, destroçados. Os
dias eram cheios de aventuras inocentes. Hazel e Harry
percorriam o caminho de terra batida ao longo do rio até onde
sabiam que podiam ir antes de terem de voltar para trás. Corriam
atrás das vacas em Port Meadow. No verão, quando Flora estava
com Imogene ou com Bridie na cidade, nadavam no rio. Todas as
manhãs, Hazel procurava o desenho de Harry e imaginava o que
fariam juntos naquele dia. Por vezes, ela e Flora sentavam-se nas
ervas e ficavam a ver Harry e os outros rapazes de Binsey a jogar
críquete com tacos feitos de madeira e bolas que já tinham visto
melhores dias. Os rapazes gozavam com o facto de Harry viver
com duas raparigas, e ele ria-se disso, enquanto lançava às irmãs
um olhar, como quem diz «O que sabem eles?». Hazel ficava com
ciúmes quando ele saía com os amigos e não a deixava ir com
eles.
Quando pensava nessa hipótese, Hazel não conseguia
visualizar o regresso a Londres. Conseguia imaginar todo o
mundo do Bosque dos Sussurros, mas não se via numa cidade
que já existia. Em Londres, não havia pastos amplos e o rio
estava entupido de navios e lixo. Em Londres, não havia esboços
diários debaixo da porta, nem trabalhos de casa numa mesa
redonda na sala de estar onde muitas vezes a lareira estava
acesa. Em Londres, não havia Harry, e isso parecia impossível,
porque agora ele era… o que era ele, afinal? Não era um irmão.
Não. Um melhor amigo? Ela não sabia e, por enquanto, isso não
importava muito, desde que Hazel acordasse na mesma casa que
ele.
No dia de julho em que Flora fez 6 anos, ela e Hazel estavam
no bosque. Os raios de sol refulgiam peneirados pela copa das
árvores sazonadas pelo verão, incidindo depois nas ervas
orvalhadas. As irmãs corriam por entre carvalhos e amieiros até
que Flora apontou — Hazel deixava sempre que fosse ela a
encontrar a porta — e exclamou:
— Ali está ela!
— Estou a ver — corroborou Hazel, acompanhando Flora na
corrida.
Tinham encontrado a porta cintilante do Bosque dos Sussurros
tantas vezes que Hazel quase acreditava que as duas viram a
mesma porta ao mesmo tempo. Sabia para onde Flora estava a
apontar, por onde entrariam, onde se deitariam nas ervas e
fechariam os olhos em busca de uma nova aventura. Entrariam na
abertura da árvore e sussurrariam o encantamento.
O chão estava esponjoso com a chuva da noite anterior. Hazel
colocou a mão ao lado da mão de Flora e ambas pressionaram o
tronco da árvore, sentindo as arestas afiadas contra as palmas
das mãos.
Assim que deslizaram para dentro do buraco, Hazel começou
como sempre fazia:
— Existiu outrora e ainda existe um lugar invisível que está
mesmo aqui. No mundo do Bosque dos Sussurros, podemos ser
tudo o que desejarmos para conseguirmos alcançar o castelo que
nos espera.
— Corujas — disse Flora.
Começava a perder o seu ceceio, o que entristecia Hazel, que a
via a deixar a infância.
— Sim! Corujas — disse Hazel. — O rio estrelado corre veloz, e
o sol brilha. Repara nos veados do outro lado. Estão a olhar para
nós!
— Uuuu-uuuu — disse Flora.
Voaram em direção ao castelo, passando por fadas azuis e
verdes cintilantes que as rodeavam como um arco-íris,
sussurrando palavras de incentivo e revelando caminhos secretos
para o castelo.
— Chegámos — anunciou Flora, aproximando-se de Hazel. —
Vês os portões?
— Sim — confirmou Hazel. — Quem vai abri-los?
— Nós as duas.
Bateram as asas de coruja até que os portões se abriram e elas
entraram para o pátio. Avançaram para a sala do trono, onde a
rainha estava sentada, como sempre fazia. Era deslumbrante,
feroz e selvagem, com cabelos ruivos e uma coroa estrelada.
— Saudações — cumprimentou alegremente a rainha, que
gostava que elas a visitassem, independentemente da forma
escolhida.
— Tenho uma pergunta — disse Flora.
— Todos são dignos? — perguntou Hazel.
— Sim, mas nem todos sabem que são, por isso agem como se
não fossem. Ainda não descobriram as suas portas cintilantes.
Flora riu-se por Hazel estar a usar duas vozes.
Foi então que outra voz as interrompeu: Harry chamava por
elas.
As irmãs voltaram imediatamente para o bosque de Binsey. O
sol já lançava sombras mais longas, num padrão de renda
intrincada.
Rastejaram para fora do buraco, com um sorriso no rosto.
— Parabéns, Flora — disse Hazel, abraçando a irmã.
— Este foi o melhor dia de anos de sempre — declarou Flora.
— Se podemos ser tudo aquilo que quisermos, talvez um dia
possamos ser o rio.
Hazel parou, agachou-se e disse-lhe docemente:
— Se te transformares num rio, não poderás voltar para ficar
aqui comigo. Lembra-te de que o Harry disse que não podes
nunca entrar no rio.
— Eu não quero voltar — disse Flora. — Prefiro o Bosque dos
Sussurros.
Hazel pensou numa resposta que garantisse a segurança da
irmã.
— Se ficares lá, nunca mais me vais ver a mim, nem ao Harry,
nem à Bridie, nem à mãe. Não queres isso, pois não?
O lábio de Flora tremeu, e ela escondeu a cara no vestido de
Hazel.
Hazel não se arrependeu de ter assustado a irmã. Levou-a até
junto de Harry, que estava na orla do campo de flores silvestres,
enquadrado por groselhas verdes que caíam em veias sobre um
muro de pedra, pelas vacas que mugiam mais ao fundo e pela luz
do Sol, que o cercava como uma nuvem.
Harry trazia as suas calças de verão cáqui e uma camisa de
linho branca de mangas curtas na qual Bridie tinha cosido botões
novos na noite anterior. Viu-as a chegar e acenou.
— A minha mãe diz que está na hora da festa de anos, minha
menina. O bolo está pronto e a vossa mãe está quase a chegar.
Flora começou a correr, mas Hazel conteve-se.
— Eu já te apanho — disse. — Vai lá.
Queria fazer o caminho até ao chalé sem pressa. Nunca tinha
imitado a rainha com a sua própria voz. Isso dava-lhe que pensar.
Como podia ela ter duas vozes dentro de si? Uma que faz
perguntas e outra que responde?
Aquilo era uma novidade, uma reviravolta no enredo. E isso fez
Hazel sorrir; percebeu que podia fazer a história crescer. Esse
poder recém-descoberto, esse fulgor de consciência de que podia
expandir um universo inteiro, fê-la vibrar.
Hazel chegou ao chalé no momento em que um táxi parou no
caminho de cascalho e a mãe saiu do banco de trás. Ficou de pé,
olhou à volta, sem ver ninguém, e colocou a palma da mão na
testa para se proteger do sol. Sem que ela soubesse, Hazel
observou a mãe.
Havia algo de errado.
Não era apenas o facto de as suas roupas estarem mais
folgadas, ou de o seu cabelo estar despenteado. Hazel lembrou-
se do dia em que a mãe tinha entrado no jardim das traseiras de
Mecklenburgh Square e mostrado o aviso de retirada. No seu
rosto sem maquilhagem faltava o caraterístico batom vermelho-
vivo. Os seus lábios tremiam.
Hazel correu para ela, contornando fardos de feno e uma
carroça virada ao contrário, enquanto gritava:
— Mãe!
Ela virou-se e não sorriu, limitou-se a abrir os braços para
acolher Hazel, que percebeu então o que estava errado: a mãe
estava a chorar.
— O que foi? — perguntou Hazel encostada ao vestido cor-de-
rosa da mãe. — O que se passa, mãe?
— Tudo o que temos está seguro, por isso deixa-me começar
por aí, meu amor. Eu estou bem, mas, há três noites, o filho dos
McWhorters morreu num campo de batalha na Bélgica. — Fez um
compasso de espera, enquanto os seus olhos ficavam rasos de
lágrimas que acabaram por transbordar e correr impercetíveis
pelo seu rosto. — Hazel, ele morreu.
Hazel fechou os olhos e tentou imaginar o jovem vizinho morto
num campo de batalha. Era impossível.
— Não! — Hazel afastou-se, deu dois passos atrás e ergueu as
palmas das mãos como se quisesse afastar a verdade.
— Não te quero assustar. Só disse isto para que saibas que
vocês não podem voltar para casa. Não agora. Ainda vai demorar
algum tempo.
Bridie apareceu à porta e Flora saiu de trás dela, correndo para
a mãe e erguendo os braços para que esta lhe pegasse ao colo.
— Mãe!
Hazel não quis que Flora soubesse dos McWhorters, não queria
que a irmã tivesse noção da instabilidade do mundo em que
viviam, que sentisse medo. Hazel desatou a correr. Correu pelos
campos, pelo caminho de terra batida, passou pelos arbustos de
framboesas e pelas silvas, sem reparar nas urtigas que lhe
mordiam os tornozelos. Subiu a colina até chegar à igreja e ao
poço de melaço, onde caiu de joelhos e cravou os dedos na terra.
Hazel olhou para a água escura: um buraco por onde brotava
água vinda das profundezas da terra, uma abertura que ela
imaginava ser mágica.
Não havia magia aqui ou em qualquer outro lugar. Era apenas
água a sair da terra.

Na noite seguinte, as estrelas estavam brilhantes o suficiente


para iluminar o pasto e Hazel foi deitar-se na manta axadrezada
que ela e Flora sempre levavam para o rio. Todos os outros
estavam dentro de casa a dormir, mas ela não conseguia
descansar; imaginava bombas a cair na vizinhança. O horror tinha
finalmente chegado ao bairro de Hazel. Era inevitável. Como
podia ela pensar que criar pequenas histórias poderia mantê-las a
salvo?
Hazel chorou baixinho, pois não queria acordar ninguém. As
ervas estavam molhadas e a humidade depressa passou para a
manta e para a sua camisa de noite de flanela. Ela tremeu e olhou
para o céu. A lua estava em quarto minguante. Hazel sabia disso
porque Bridie lhe ensinara as fases da lua.
O chão estremeceu e Hazel virou a cabeça para ver Harry a
caminhar na sua direção. Sentou-se ao lado dela e depois
também se deitou, ficando a olhar para o céu em silêncio, até que
finalmente perguntou:
— O que estás a fazer?
— O que estás tu a fazer? — replicou ela.
— Ouvi-te a sair à socapa. Fiquei preocupado.
— Não precisas de te preocupar comigo, Harry. Podes parar
com isso. Não sou uma menina de quem tens de tomar conta. —
A raiva era preferível à tristeza.
— Eu sei que sabes cuidar de ti. Só que eu também gosto de o
fazer. — A voz dele era tão doce que fez com que o desejo que
ela sentira nos últimos meses voltasse a inundar o seu corpo.
Sentia vontade de lhe tocar, como já sentira tantas outras vezes.
Aproximou-se e pegou na mão dele. Harry entrelaçou os seus
dedos nos dela.
— Estás triste?
— Muito. Às vezes, as estrelas fazem-me sentir melhor, mas
hoje não.
— Como? — perguntou ele. — Como é que elas te fazem sentir
melhor?
Hazel ponderou durante um minuto silencioso.
— Talvez porque me dizem que há algo mais que não consigo
ver. Ou, se consigo ver, é apenas a parte mais pequena, quando
há muito, muito mais por revelar.
— Gosto disso — disse ele, e virou-se para o lado. Soltou a
mão dela e apoiou-se no cotovelo, o queixo na palma da mão.
Encarou Hazel, tão intensamente que ela se viu obrigada a
desviar o olhar.
— Ou talvez me façam sentir melhor porque, apesar de se
esconderem o dia todo, aparecem sempre à noite; nunca
desaparecem. — Fez uma pausa e observou-o a olhar para ela.
— De onde achas que vêm as estrelas?
— Há pessoas mais inteligentes do que eu que estão a tentar
descobrir isso — disse ele.
— Achas que é para lá que vamos? Algures lá para cima?
— Se me estás a perguntar se acho que foi para lá que o teu pai
foi quando morreu, acredito que seja possível.
Ela tentou conter as lágrimas, mas foi debalde. Não queria dar
parte de fraca; não queria que Harry visse nada do que ela sentia.
Era tudo demasiado intenso.
Ele aproximou-se, curvando o cotovelo até que os seus lábios
tocassem o local onde as lágrimas lhe molhavam a cara. Beijou-a
tão ao de leve que podia ter sido tudo fruto da sua imaginação.
— Sinto muito — disse ele. — É triste não ter pai.
Hazel virou ligeiramente a cara, apenas o suficiente para que os
seus lábios roçassem os dela. Ele podia ter-se afastado, mas não
o fez. Era isto que ela desejava há tanto tempo e, no entanto, não
sabia o que fazer agora.
Harry beijou-a uma vez, e depois outra, demorando tempo
suficiente para que ela desse por si a beijá-lo também, os seus
lábios a pressionar os dele, o corpo solto, a tristeza a perder-se
no céu estrelado. Os braços dele envolveram-na e ele parou de a
beijar. Puxou-a para junto de si, de modo que a cabeça de Hazel
repousasse no seu ombro e o braço dele apoiasse o seu pescoço.
— Sinto-me melhor — disse ela.
— Era essa a minha intenção.
O corpo de Hazel formigava e, coragem houvesse, ter-lhe-ia
implorado outro beijo.
— Ficaste com um pouco? — perguntou ela.
— De quê?
— Da tristeza.
Ele passou-lhe a mão pelo cabelo.
— Espero que sim.
CAPÍTULO 35

Março de 1960

A decisão matinal de Hazel de apanhar o comboio para Henley-


on-Thames foi tão impulsiva como a de tirar o livro da Hogan’s.
Era quase como se algo dentro dela, uma parte autónoma,
estivesse a tomar decisões, restando-lhe apenas fazer-se ao
caminho. Tinha telefonado às três enfermeiras nessa manhã:
Maeve não se lembrava de algo tão frívolo como um conto de
fadas e lamentava a perda de Hazel, pois ela tinha seis filhos e
não sobreviveria à perda de nenhum deles; Lilly nunca tinha
ouvido falar no Bosque dos Sussurros e a frieza na sua voz
indiciou que ela nunca mais queria falar sobre aqueles dias
horríveis. Imogene Wright nunca atendeu o telefone, por mais
vezes que Hazel ligasse.
Hazel tirou o casaco do cabide e seguiu para a estação de
Piccadilly. Devia ter informado Barnaby ou a sua mãe, que ligava
quase de hora a hora, preocupada e ansiosa para saber como ela
estava e se havia novidades em relação à fonte da história de
Peggy Andrews.
Saiu a correr em direção ao parque, numa manhã que ia
ganhando forma enevoada. Um esquilo subiu a uma árvore, por
entre guinchos direcionados a Hazel, que tinha perturbado a sua
rotina. Um homem sentado num banco de ferro comia um
croissant, com o seu barrete de lã enfiado na cabeça.
— Hazel.
A jovem virou-se com um salto.
— Harry.
Ele caminhava em direção a ela com um saco de papel.
— Trouxe-te um croissant.
— O que estás a fazer aqui? — Ela tirou o croissant do saco,
agradecida. Não tinha comido nada antes de sair de casa a correr,
naquela que seria, certamente, mais uma missão idiota. Deu uma
dentada e saboreou a massa quente e amanteigada.
— Queria falar contigo — disse ele. — Fugiste ontem à noite
e…
— Sim, desculpa. — Ela sorriu-lhe. Caramba, estava mesmo
feliz por ver que ele a tinha esperado no parque.
— Para onde vais?
— Andas a seguir-me? — perguntou ela, com um sorriso. —
Ficaste no parque de plantão à minha espera? Isso nem parece
teu.
Ele riu-se.
— Não. Não tenho o teu número de telefone e tive medo de
bater à porta, não fosse eu incomodar… fosse o que fosse. —
Encolheu os ombros. — Esta pareceu-me a melhor opção, mas
pela tua cara não foi uma boa decisão.
— Foi uma boa decisão e ainda bem que a tomaste. — Ela
sorriu. — Vou a Henley-on-Thames.
— Fazer o quê?
— É toda uma história.
— Quero ouvi-la — disse ele. Deixaram-se ficar à sombra de um
carvalho, enquanto uma mãe passava por eles a empurrar um
carrinho de bebé.
Hazel começou a andar e ele acompanhou-a.
— Eu ia… — Abanou a cabeça. — Ou melhor, vou a Henley-on-
Thames falar com uma daquelas enfermeiras que viviam em
Binsey. Lembras-te delas?
Ele acenou com a cabeça.
— Lembro. Deixas-me ir contigo?
— É uma péssima ideia.
— Sem dúvida — concordou ele. — Tem sido recorrente em nós
ultimamente.

— Tal como a Flora, o nome dela é uma flor — disse Hazel,


enquanto se instalavam nos lugares no comboio, viravam os
tabuleiros e desfrutavam do chá. — Iris Taber.
— Isso parece-me uma coincidência.
— E como diria a tua mãe… — Hazel deslizou para mais perto
da janela para se virar melhor e encarar Harry que estava sentado
ao seu lado. — Não há coincidências.
Os seus olhares cruzaram-se. Hazel sentiu um aperto já familiar
no estômago.
— Mas se ela foi raptada por uma enfermeira, que a trouxe para
cá para a criar, não achas que o Aiden teria descoberto?
— Não se ela a tivesse escondido. Ela pode muito bem ser um
génio do crime… ou então foi sorte, não sei — constatou Hazel.
— Juro que sinto que fui atingida por um golpe que me cegou,
como o rei Algar de quem nos falaste há tantos anos. A Flora é
Frideswide, e a ideia é eu não conseguir encontrá-la.
Pensou na conversa com Barnaby sobre causas perdidas
enquanto o comboio arrancava. A estação desapareceu, e não
muito tempo depois a paisagem mudou de cidade para campo,
exatamente como tinha acontecido quando ela e Flora deixaram
Londres há muitos anos.
Hazel olhou para Harry.
— Por isso achei que valia a pena tentar, mas… Estou a
estragar tudo nesta busca.
— Como assim?
— Posso perder o meu novo emprego. O Barnaby está
chateado. — Olhou pela janela para a cidade que passava, os
telhados de colmo, o campanário de uma pequena igreja e o
cemitério muito perto dos carris. Virou-se para Harry com
admiração. Ali estava ele, depois de tantos anos, sentado ao lado
dela.
— Tenho de te dizer uma coisa — disse ele. — Devia ter-te dito
isto quando te vi pela primeira vez.
A respiração de Hazel ficou suspensa no peito. Seria sobre
Flora? Porventura, uma das respostas que ela procurava?
— Eu cheguei a vir procurar-te. Uma vez.
— O quê? — Ela levou a mão à garganta.
— Foi um ano depois da minha última carta. Fui ao apartamento
de onde me escrevias. A empregada da lavandaria deu-me a tua
nova morada e fui ter contigo.
— Estás a deixar-me confusa. O que aconteceu? Porque é que
não…
— Esperei no mesmo sítio onde me viste hoje de manhã. No
mesmo banco. No mesmo parque. Foi ao anoitecer e vi-te chegar
a casa de braço dado com um homem alto. Parecias tão feliz. Ele
beijou-te e eu pensei… Não posso fazer isto. Não posso trazer o
passado para o futuro dela. Não posso trazer tudo de volta. Ela
está bem e obviamente apaixonada.
— E foste-te embora? Viraste costas?
— Sim.
— Meu Deus, Harry, nem sequer me lembro do nome do
homem com quem me viste. Teria de tentar recordar-me desse
ano… Quando foi isso? Em 1946?
— Acho que sim.
— Quem quer que fosse, não era amor.
Ele encolheu-se.
— Sinto muito. Vi-te e percebi que não podia estragar a vida
nova e boa que tinhas construído.
Hazel quis voltar atrás no tempo, olhar para lá do homem alto
cujo nome já esquecera e ver Harry sentado num banco da praça,
tal como o viu hoje de manhã. Expirou.
— Oxalá te tivesse visto.
— Digo o mesmo.
— Pois bem, vamos falar de outra coisa? — perguntou ela. —
Fala-me de St. Ives. É uma vila tão bonita. Fala-me da tua arte. —
Apertou-lhe a mão. — Fala-me de ti.

Hazel descobrira que Henley-on-Thames era quase equidistante


entre Londres e Oxford, e que existia desde o século II. O vilarejo
de pedra, tijolo e telhados vermelhos estendia-se pelas colinas
ondulantes que o cercavam, acessível por uma ponte de pedra
com quatro arcos. Hazel e Harry passaram por casas caiadas de
branco e pararam num cruzamento perto do mercado e da
padaria. O Tamisa, que lhes teria levado Flora, corria em tons de
cinzento-prateado, avançando célere em direção a Londres.
Barcos ancorados cobertos com lonas azuis e brancas
balançavam lado a lado nas margens do rio.
Um pensamento atroz passou pela mente de Hazel: se Flora se
tivesse afogado, o seu corpo poderia ter sido arrastado até ali e
aparecido na vila de Henley-on-Thames. Estremeceu e desviou o
olhar do rio.
— Estás bem? — perguntou Harry.
— Sim — disse ela, com rapidez suficiente para que ele
soubesse que era mentira. Pegou-lhe na mão e beijou-lhe a
palma, num gesto de tamanha ternura que ela quis abraçá-lo e
permitir que ele a abraçasse, até que a imagem do corpo de Flora
no fundo do rio, levado pela correnteza, desaparecesse para
sempre. Um senhor de idade passou por eles, com um cigarro
aceso numa mão e uma trela na outra. Um pequeno cão branco
caminhava à sua frente.
— Desculpe — interpelou Harry. O homem parou e sorriu,
levantando o boné de lã cinzenta em jeito de cumprimento.
— Sim?
— Estamos um pouco perdidos. Procuramos o número 17 de
Allington Way.
— Ah, a Iris Muldoon?
— Sim. — Os olhos de Harry arregalaram-se. — Conhece-a?
Ou a mãe dela, Imogene?
— Conheço — disse ele. — Toda a gente conhece. É um cão
que querem?
— Um cão? Não… — Hazel olhou para ele, confusa.
— A Imogene acolhe todos os animais feridos da vila, todos os
animais vadios e abandonados, desde pássaros a cães e gatos.
Na sua maioria, é procurada por pessoas que querem um animal
de estimação.
— E a filha dela? — perguntou Hazel.
— Vinte passos naquela direção — instruiu o homem,
apontando para leste. — Segunda rua à direita depois da galeria.
É a quarta casa à direita. Branca com flores na janela.
Seguiu caminho sem se despedir e Harry olhou para Hazel.
— Bem, foi muito específico.
— Parece ser uma família conhecida.
Hazel evitou olhar para o rio quando passaram pelo edifício de
tijolos vermelhos da câmara municipal, que dominava a paisagem
ao fundo da vila. Não demoraram a encontrar a casa, que tinha
um carreiro de pedras e tijolo que desembocava numa porta de
madeira escura com uma aldrava de ferro em forma de cruz celta.
Duas janelas em ambos os lados da porta tinham canteiros que
transbordavam de flores primaveris.
Hazel e Harry pararam no passeio diante de uma pequena
cerca branca com um portão de ferro. As heras cobriam a parede
oeste da casa, dobravam a esquina e avançavam para a fachada.
— Parece a casa da Branca de Neve — constatou Hazel. —
Como se os anões pudessem aparecer a qualquer instante.
Harry puxou-a para perto e beijou-lhe a cara.
— Vamos a isto.
Hazel cerrou os punhos dentro dos bolsos do seu casaco de lã.
O sol da tarde lançava as suas sombras longas no chão: duas
figuras que se estendiam pela rua calcetada.
— Serias capaz de reconhecer a Flora se a visses? —
perguntou Harry.
— Acho que sim. Procuro-a por todo o lado; às vezes, nem
tenho noção de que estou a procurá-la. Basta-me olhar para uma
sala cheia ou para uma multidão num bar ou num mercado e
percebo que estou à procura de uma menina de 6 anos com
caracóis loiros, e lembro-me de que ela tem agora 25 anos. Pode
ser alta ou baixa, gorda ou magra. Como é que sabemos?
— Não sabemos, mas, Hazel, estamos aqui para descobrir.
Hazel levantou o trinco do portão. Percorreram o carreiro, e ela
estava prestes a bater com os nós dos dedos quando a porta se
abriu.
A luz dos candeeiros interiores desenhou uma aura amarela à
volta da silhueta de uma mulher.
— Sim? — A voz de Iris Taber era afável mas cautelosa. —
Posso ajudar?
Atrás dela, o choro de uma criança e o ladrar estridente de um
cão pequeno. A mulher saiu para o alpendre e fechou a porta,
protegendo o que quer que estivesse no interior da casa.
Iris era uma mulher baixa, mais jovem do que eles — quantos
anos Hazel não sabia dizer. Os cabelos eram de um loiro
esbatido, os olhos castanhos, ou talvez verdes.
— Chamo-me Hazel Linden e há muito tempo conheci uma
mulher chamada Imogene Wright, em Binsey. — O resto saiu
numa torrente. — Conheci-a quando era pequena. Ela trabalhou
como enfermeira na aldeia durante a guerra, no âmbito da
Operação Flautista de Hamelin, e… — Ela fez uma pausa. — Eu
vivia com a família Aberdeen.
— Oh, que maravilha! — A mulher juntou as palmas das mãos e
encostou-as ao peito. — A minha mãe vai ficar muito contente por
saber que está aqui. Ela falou-me da sua família e da mãe… Bird
ou…
— Bridie — corrigiu Hazel. — E este é o Harry Aberdeen.
Iris sorriu para Harry.
— Vou já ligar-lhe! Ela vive mesmo ao fundo da rua. Vai adorar
ver-vos.
— Antes disso — cortou Harry, dando um passo em frente —,
posso perguntar quantos anos tem?
Hazel ficou chocada com a ousadia dele e temeu pela resposta.
Parecia estar a acontecer tudo muito rápido. Desmontou o rosto
da mulher em pequenos pedaços. O nariz, um botão. A pele
branca sem sardas. Maçãs do rosto altas. Seria possível ser
aquele o rosto de Flora, vinte anos volvidos?
Iris mordeu o lábio inferior.
— Vinte.
Cinco anos de diferença. Era impossível. Iris Taber não era
Flora.
Hazel sentiu o chão debaixo dos seus pés a ficar esponjoso e
instável.
— Tem alguma irmã? — tornou Harry.
— Posso saber porque está a fazer tantas perguntas?
— Pedimos muita desculpa pelo incómodo. — O sorriso de
Harry, a sua voz suave e aura afável permitiram que a mulher
voltasse a relaxar. — Quando a sua mãe viveu em Binsey, havia
uma menina… — Olhou para trás para ver se Hazel concordava,
antes de terminar a frase.
Iris concluiu a ideia:
— Sim, uma menina que desapareceu. A minha mãe contou-
me. Ela nunca a esqueceu.
Hazel esclareceu:
— Era a minha irmã, Flora.
— Podemos falar com a sua mãe? — perguntou Harry.
Iris abriu a porta e fez-lhes sinal para entrarem.
— Entrem. Vou pôr a chaleira ao lume para tomarmos um chá.
CAPÍTULO 36

8 de setembro de 1940

O desenho que Harry passou por baixo da porta do quarto na


manhã de 8 de setembro era um dos que mais tinha gostado até
então: Flora a correr em direção a algo indistinto em primeiro
plano. O cabelo esvoaçava atrás de si, os braços abertos. O seu
destino pouco definido consistia em objetos arredondados e
pontiagudos. Hazel olhou para o desenho e pensou que podia ser
o que ela quisesse: um castelo, uma montanha, uma catedral.
Antes de acordar, Hazel tinha tido um sonho confuso. O padre
Fenelly estava na sua casa, em Bloomsbury, a rir e a falar com a
mãe, que esvoaçava à volta dele num vestido comprido de gaze e
fitas azuis brilhantes. O seu cabelo era tão comprido que
arrastava pelo chão. A mãe não prestou atenção a Hazel e Flora,
mesmo quando chamaram por ela.
Hazel tentou esquecer aquele sonho estranho, o último
resquício da noite, e colocou o desenho de Harry em cima da
cómoda para que Flora o visse ao acordar. Mais tarde, haveria de
o colocar na pasta onde já estavam todos os outros desenhos —
352 até agora, guardados juntamente com as suas histórias.
Hazel calçou as pantufas felpudas que já estavam moldadas
aos seus pés e entrou na cozinha banhada pelo sol, admirada por
encontrá-la vazia. Mesmo quando Bridie apanhou uma
constipação que lhe deixou o nariz vermelho como um tomate,
não se furtou a preparar as papas de aveia, as salsichas e o chá,
que agora servia a Hazel todas as manhãs na sua própria
chávena de porcelana florida que tinham encontrado numa loja de
artigos usados em Oxford, numa das suas aventuras.
A vida com Bridie era mesmo assim — nada era um recado ou
uma ida ao mercado, tudo era uma aventura.
A divisão estava vazia.
Havia algo de errado.
Hazel aproximou-se do lava-loiça e pôs-se em pontas dos pés
para olhar pela janela. O Flying Nine, que sempre surpreendia
Bridie quando pegava, tinha desaparecido. A geada cobria as
bordas da janela, e começava a derreter com o calor do sol
nascente. As sombras da manhã distorciam as ervas no jardim,
de tal modo que, à semelhança do desenho de Harry, ela podia,
se tivesse disposição para tal, transformar aquelas formas no que
quisesse. Mas Hazel não estava com disposição. Queria saber o
que se passava, o que havia de errado, o que aí vinha.
Hazel ligou o rádio que estava junto ao lava-loiça.
A voz do locutor encheu a cozinha.
«Londres foi bombardeada.»
Hazel caiu numa cadeira da cozinha. Mesmo que todos
soubessem que aquilo acabaria por acontecer — por que outro
motivo estava ela em Binsey? —, a verdade atingiu-a no peito.
Desligou o rádio para que Flora não ouvisse a notícia. Esperou
que Bridie ou a mãe ou alguém viesse contar-lhe o que se
passava. Eram as bombas de que estavam à espera, as
explosões antecipadas que as mantinham em Binsey há um ano.
Pouco depois, Flora acordou e Hazel preparou torradas para as
duas. Foi então que ouviu o barulho do carro na entrada. Bridie e
Harry tinham ido à cidade comprar um jornal.
Bridie sentou-os à volta da lareira e contou a Hazel e Flora que,
às 16h00 do dia anterior, as primeiras bombas tinham caído do
céu para destruir as ruas, as casas, as catedrais e a beleza de
Londres. A voz do padre Fenelly não tinha sido um sonho — ele
tinha passado pelo chalé de manhã para contar a Bridie o que
tinha acontecido.
Bridie prosseguiu com uma voz vacilante.
— A vossa mãe telefonou e mandou recado pelo padre Fenelly
a dizer que está bem e que a vossa casa está segura. Mas tenho
notícias muito tristes.
— A Kelty — disse Hazel, ciente de que a má notícia lhe dizia
respeito. Ela nunca devia ter fugido naquela noite para voltar para
junto da família.
— Bem, sim, a Kelty está no hospital. Ela e a mãe seguiam para
casa depois de visitarem um amigo no hospital quando uma
bomba caiu perto de Willowbridge Road, por onde elas passavam,
arrasando duas casas e… — Bridie estremeceu. — E incendiando
um autocarro cheio de pessoas.
— E a mãe dela está bem? — perguntou Hazel, com um aperto
na garganta.
— Não.
O peito de Hazel ficou gelado, e um arrepio percorreu-lhe os
braços e a coluna, deixando-a tonta.
— Ela está ferida? — Hazel esperava que fosse uma coisa má,
não a alternativa.
— Morreu. — A voz de Bridie falhou-lhe e as lágrimas caíram-
lhe dos olhos, descendo pela cana do nariz até se instalarem nos
cantos da boca. Ela nem sequer as enxugou, como se não tivesse
percebido que tinham caído.
— Como o papá — concluiu Flora, de forma tão natural que
partiu o coração de Hazel. A morte não devia ser natural. Nunca.
— Sinto muito — disse Bridie, pegando nas mãos das duas
meninas. — A Kelty está no hospital, ferida, mas viva. Não corre
perigo de vida. Há de ir viver com uma tia, em Lancashire. Vou
tentar saber mais.
— Ela tem uma tia? — indagou Hazel, como se isso tivesse
importância. — Não sabia. Porque é que ela não ficou com a Kelty
em vez de a mãe a mandar para aqui, para junto da bruxa?
— Acho que a tia dela, irmã do pai, não queria ficar com ela.
Mas agora tem de a aceitar.
— Oh, pobre Kelty. — Hazel esfregou os olhos. — E o pai dela,
onde está?
— Neste momento, dizem que está desaparecido em combate;
foi visto pela última vez no Luxemburgo.
Os vários nomes dos locais que definiam a frente de guerra
pouco significado tinham para Hazel. Ouvia-os da boca da mãe ou
lia-os nos jornais; nomes estrangeiros onde os homens lutavam
com armas de fogo, facas e bombas, lugares onde as pessoas
morriam enquanto ela vivia numa casa acolhedora em
Oxfordshire, onde passava os dias a contar histórias de um
mundo mágico. Não era justo nem correto. Não lhe devia ser
permitida esta vida quando outros sofriam tanto.
— Podia ter sido a nossa mãe. Podia ter sido… — Hazel
engasgou-se com as palavras e a noção da realidade.
— Tragam a Kelty para aqui! — disse Flora, saltando do sofá.
— Quem me dera, querida, mas não posso. Quando isto acabar,
vamos estar todos juntos outra vez.
Hazel gritou:
— A minha mãe. Preciso da minha mãe.

Três dias depois, a mãe chegou a Binsey. Os seus olhos


vermelhos revelavam tudo o que elas precisavam de saber sobre
os horrores de Londres. A cerca de cem quilómetros de distância,
era um mundo completamente diferente, e a mãe não queria tocar
no assunto.
Em vez disso, perguntou por Binsey, elogiou os trabalhos de
casa, a horta que Flora ajudara Bridie a plantar para os legumes
de inverno e o guisado que Hazel preparara para todos com a
receita que Bridie lhe ensinara. A mãe dizia que a casa delas
estava em segurança e ela também: fazia o percurso de casa
para o trabalho no Ministério da Guerra, e vice-versa, de bicicleta
e abrigava-se nos túneis do metropolitano sempre que as sirenes
ecoavam pelos céus noturnos.
Nessa noite, a chuva não parou de cair com estrondo no
telhado. O último comboio para Londres partiria em breve, e Bridie
convenceu a mãe a passar a noite no sofá e a partir na manhã
seguinte bem cedo.
A meio da noite, Hazel não sabia que horas eram, mas a lua
não era visível da janela e a casa estava mergulhada em silêncio,
à exceção dos rangidos e sussurros no chão e nas paredes.
Esgueirou-se para perto da mãe no sofá e permitiu-se ser
abraçada da mesma forma que abraçava Flora todas as noites.
Hazel pensou na pobre Kelty que ficara sem mãe. Por fim,
adormeceu e, de manhã, a mãe levantou-se do sofá sem a
acordar. Hazel despertou com os sons da mãe e de Bridie, que se
afadigavam para que aquela conseguisse apanhar o primeiro
comboio.
Ela sabia o que tinha de fazer. Enquanto a mãe se despedia de
Flora e terminava o chá, Hazel correu para o quarto e arrumou a
mochila à pressa. Guardou a máscara de borracha e colocou a
chapa com o nome, que estava pendurada num prego ao lado do
espelho da cómoda, ao pescoço. Era a mesma chapa que usara
no dia em que chegara a Binsey.
Quando saiu a correr para a rua, sentiu a chuva a escorrer-lhe
pelo impermeável e as galochas a escorregarem nas ervas
molhadas, até chegar junto à porta aberta do carro de Bridie, onde
estava a mãe.
— Leva-me contigo. Preciso de ver a Kelty — disse Hazel, com
o lábio inferior a tremer como se fosse chorar. Abrigaram-se
debaixo do guarda-chuva vermelho-brilhante que a mãe tinha na
mão. Flora e Harry observavam da porta do chalé. Harry segurava
na mão de Flora, que tentava livrar-se dele para se juntar a Hazel
e à mãe.
— É muito perigoso — disse a mãe. — Se vos acontecesse
alguma coisa… — Engoliu em seco e abanou a cabeça. — Tens
de ficar aqui a proteger a Flora. És a minha menina crescida.
— É só hoje, mãe. Só isso. Leva-me contigo no comboio, que já
sou crescida para voltar sozinha.
— Não.
Hazel bateu com as galochas. A lama que espirrou manchou a
bainha do vestido e a porta do carro.
— Se não me levares, eu vou na mesma. Sei o caminho para a
Great Ormond Street, para o hospital onde está a Kelty. — As
suas palavras denotavam uma coragem que não sentia
verdadeiramente. A voz era firme, mas o seu estômago abanava
como gelatina. Na verdade, ela não sabia bem como lá chegar,
apesar de tudo o que acabara de dizer. — Preciso de ver a Kelty.
A mãe olhou para Hazel. Bridie já estava no lugar do condutor, a
ligar a ignição, uma, duas vezes, até que pegou.
— Está bem, mas vais voltar para casa da Bridie esta tarde.
Não vou permitir que passes a noite em Londres. — A sua voz era
severa, quase fria. — Não vou correr riscos contigo.
— Está bem, mãe, prometo.
Hazel abriu a porta de trás e entrou no carro de Bridie.
CAPÍTULO 37

Março de 1960

Em Henley-on-Thames, Imogene Mulroney estava sentada à


frente de Hazel e Harry na mesa oval de madeira da cozinha da
filha Iris, sobre a qual estavam espalhados livros para colorir,
caixas de lápis e carrinhos de brincar. Era uma mulher magra,
com olhos azul-brilhantes, que parecia mais velha do que os seus
50 anos, com caracóis castanhos que brotavam em todas as
direções. Hazel pensou que Imogene não parecia ser alguém
capaz de raptar uma criança, mesmo que ela desejasse que sim.
Beberam chá, falaram de Bridie, da guerra e de como o mundo
parecia ter avançado, apesar de bem lá no fundo sentirem que
tudo podia desabar a qualquer momento.
— Precisamos desse esquecimento deliberado — disse
Imogene. — Não estar sempre a remoer o passado, não é?
Por fim, Hazel perguntou a medo:
— Lembra-se da Flora?
— Claro! Ela era espevitada. Penso muito nela. Não consigo
imaginar o que tu e a tua família passaram. Rezo sempre o terço
por ela no dia 19 de outubro e lembro-me dela na festa de Santa
Frideswide.
— Não faz ideia do que lhe possa ter acontecido? — indagou
Hazel.
— Quem me dera saber. Certamente que o gritaria ao mundo,
ou correria a procurá-la, para a trazer de volta para vocês.
— Também gostava de a trazer de volta — disse Harry,
levantando a chávena vazia. Olhou para o fundo e voltou a pousá-
la.
Imogene alternou o olhar entre Harry e Hazel.
— Lembro-me de vocês os dois. Sempre juntos. Inseparáveis.
Subiam às árvores, corriam pelo bosque. Quando eu tomava
conta da minha querida Flora, vocês desapareciam num piscar de
olhos, como gafanhotos pelo bosque. Vi logo que iam ficar juntos.
Era como se não existisse mais ninguém.
— Perdão? — Hazel inclinou-se para frente. — Nós não
estamos juntos e… a Flora existia.
— Claro que sim. E desculpem a minha presunção. Vocês
parecem tão…
— Chega, mãe — cortou Iris. — Não é da tua conta.
— A minha filha diz que sou muito intrometida e que falo
demais.
Iris tirou do forno um grande biscoito de manteiga, que cortou
em pequenos quadrados, enquanto continuavam a conversar e o
seu filho, um rapaz de 2 anos, corria pela casa, à procura de um
coelho imaginário. Imogene prosseguiu.
— Voltando à tua pergunta. O polícia veio falar connosco.
Ninguém viu nem sabia de nada. Ficámos arrasadas e sentimo-
nos impotentes quando soubemos a notícia. Acho que ele ficou
aborrecido connosco. — Imogene franziu o sobrolho e inclinou a
cabeça. — Como é que me encontraste?
Hazel disse a verdade.
— Aiden, o inspetor da polícia, deu-me o nome e a morada de
todas as enfermeiras. Espero que não leve a mal.
— Claro que não. Mas talvez estejas mais interessada na
enfermeira americana da Cruz Vermelha… Frances, creio eu. —
Imogene desviou o olhar. — Ela era de… Não me lembro bem.
Uma rapariga estranha mas simpática. A guerra não foi o que
nenhuma de nós esperava, muito menos ela. Veio para cá à
espera de conhecer um rapaz britânico e de se apaixonar. Tinha
sonhos românticos, imaginava-se a Florence Nightingale a limpar
o rosto dos rapazes feridos, como se um dia pudessem erguer
uma estátua em sua homenagem. Foi-se logo embora quando as
coisas começaram a apertar. — Imogene abanou a cabeça. — O
Blitz… — A voz arrastou-se. — Aqueles pobres rapazes.
Sobretudo os da RAF, com aqueles aviões frágeis que caíam do
céu e se desfaziam em pedaços quando se despenhavam.
— Sim, foi horrível — corroborou Hazel.
A expressão facial de Imogene mudou, como se estivesse
prestes a chorar ou a gritar, Hazel não sabia ao certo.
— Eu não pude salvá-los. Sabes bem que tentei. Dei o meu
melhor. Demos todos. Às vezes, não conseguimos salvá-los.
Mesmo quando queremos, mesmo quando tentamos e não
dormimos durante dias e encostamos a mão à ferida com sangue
a jorrar…
— Mãe! — gritou Iris, pegando-lhe na mão. — Está tudo bem.
— Sim — disse Hazel, encolhendo-se e pegando na mão de
Harry. — Todas vocês deram o vosso melhor.
Imogene parecia ter voltado ao presente, e já sorria. Hazel sabia
que Imogene tinha visto coisas que lhes tinham sido escondidas;
a ela, a Flora, a Harry e a todas as crianças. Tentou novamente
chegar à verdade com Imogene, encontrar algo que a levasse até
Flora.
— Quando tomava conta da Flora, alguma vez ela lhe contou
uma história sobre um mundo mágico?
Imogene olhou pela janela.
— Que me lembre, não. Lamento não conseguir ajudar-te. —
Acenou com a cabeça para Iris. — Naquele Dia de Santa Brígida,
eu já estava grávida desta aqui. E estava assustadíssima, porque
o meu homem estava na guerra. Não nos tínhamos casado antes
de ele partir.
— Mãe — disse Iris —, eles não precisam de saber disso.
— É tão antiquada, esta minha filha — disse Imogene, com um
brilho nos olhos. Deu uma palmadinha na mão de Iris. — Era por
isso que eu gostava tanto da Flora. Tinha acabado de saber que
estava grávida e imaginava a vida com um bebé.
— O pai da Iris conseguiu voltar? — perguntou Harry, enquanto
pegava no segundo biscoito e limpava as migalhas dos lábios.
— Sim. Perdeu uma perna, mas isso foi o menos. Amava-o
loucamente. Ainda amo.
Iris sentou-se ao lado de Hazel.
— O meu pai é maravilhoso. Está a trabalhar no mercado —
informou Iris. — O meu marido, o Martin, e o meu pai trabalham
juntos. Temos o único mercado da vila.
A conversa continuou até o bebé Toby cair no chão de tijoleira e
começar a chorar. Em seguida, levantaram-se para as
despedidas.
Já no alpendre, Iris embalava Toby ao colo enquanto Imogene
limpava a cozinha.
— Lamento que a minha mãe não tenha podido ajudar muito.
Aqueles dias foram terríveis para ela. Agora, tenta salvar tudo o
que vê, desde plantas mortas a animais feridos. Mas nada
substitui aqueles pobres rapazes que ela recebia no hospital.
Nada.
— Lamento muito por ela — disse Hazel. — E obrigada por nos
receber em sua casa. Lamento muito tudo o que aconteceu
naqueles dias.

De volta ao comboio, Hazel proferiu as palavras que


borbulhavam por baixo da sua desilusão.
— Foi mais um tiro no escuro entre milhões de tiros no escuro.
É como… uma doença. Tenho de esquecer isto, mas não consigo.
— Hazel.
— Tenho de ter cuidado, Harry. Estou prestes a perder tudo em
busca de uma resposta que nunca irei encontrar.
Ele recostou-se no lugar da janela.
— Tudo, o quê, Hazel?
— O meu novo emprego. O Barnaby. O amor. Estou prestes a
perder tudo isso. A Flora deve ter contado a história a alguém que
contou a alguém. Tenho de esquecer isto.
— E como tencionas fazer isso? — perguntou Harry. — Como é
que se esquece? Agora, sabes que existe um livro intitulado O
Bosque dos Sussurros e… sabes que eu existo, que nós
existimos.
— Harry, para. Não há nenhum «nós».
— É impossível ignorar que as coisas existem, Hazel. Não
podes deixar de as ver. Não podes desviar o olhar de tudo o que
te foi mostrado. É impossível.
Ela bateu com a mão na perna.
— Estás a dizer-me um monte de coisas que não posso fazer.
Mas posso. Posso pôr para trás das costas coisas que não fazem
sentido para tentar salvar a minha vida.
— Salvar que vida, Hazel? Que tipo de vida estás a salvar?
— Harry, o que estás a fazer?
— Estou a tentar explicar-te que não vais perder nada.
— Claro que vou. Queria que uma coisa fosse verdade, e
estraguei outras coisas ao tentar que fosse verdade. Magoei o
Barnaby. Magoei o meu patrão na livraria, o Edwin Hogan, que
adoro como se fosse meu pai. Acabou.
— Libertarmo-nos daquilo que nos prende nem sempre é
gracioso ou indolor, sabes disso melhor do que ninguém.
Hazel recostou-se no banco, exasperada.
— Harry, quer fosse a conjugar a porcaria dos verbos em latim,
a fazer contas de multiplicar ou a fazer saltar pedras no rio, tu
nunca me deixaste desistir. — Hazel deu-lhe um encontrão. — É
um traço de personalidade muito irritante.
Ele riu-se e sentou-se para trás.
— Sempre adorei azucrinar-te. — Piscou o olho. — Significa
que te preocupas.
— Mas tens 14 anos, ou quê?
Harry ficou sério, de repente.
— Quem me dera, Hazel. Se tivesse, tudo seria diferente.
— Eu sei — concordou ela. — Eu sei.

A coberto da luz crepuscular, Harry parou à entrada do


apartamento de Hazel, mas ela não abriu a porta.
— Harry, não podes entrar. — Ele recuou um passo, ainda
agarrado ao portão de ferro. — Não posso fazer isto contigo,
mesmo que uma parte de mim queira convidar-te a entrar.
Perdemos a nossa oportunidade, Harry. Tu sabes disso. Eu sei
disso.
— Eu não sei disso. Ouvi o que disseste sobre a autora
americana. Sobre o facto de ter alterado o meio das histórias. Nós
podemos fazer a mesma coisa.
— Não — sentenciou Hazel enquanto pegava na chave e abria
a porta da rua. — Nós não podemos. Eu não posso. — Pousou a
mão na maçaneta de latão.
— Vais simplesmente virar costas?
— Não vou destruir mais nada na minha vida. Não vou trair o
Barnaby. Por favor, deixa-me entrar sozinha, porque se não o
fizeres, vou cometer outro erro contigo, e isso é algo que não me
posso dar ao luxo de fazer. — Com isto, Hazel abriu a porta,
entrou e fechou-a sem olhar para trás.
Lá dentro, Hazel pousou a mala no banco da entrada e
pendurou o chapéu no cabide. Estava sozinha. Aquele
apartamento em Bloomsbury já tinha testemunhado outras
perdas: duas irmãs enviadas para o campo, outros homens a
quem Hazel tinha apontado a porta da rua, guerra, demolição e
desgosto, um pai que nunca voltou.
Caminhou à beira das lágrimas até à cozinha. Como poderia
deixar Harry Aberdeen virar costas? Como poderia permitir que
ele ficasse?
Foi então que reparou que, em cima da mesa de pinho, no
caderno aberto, estava a sua lista manuscrita de pessoas que
podiam ter ouvido falar do seu mundo mágico.
Olhou para os nomes, em busca de ligações, quando se
recordou de fragmentos das palavras de Harry.
Harry: Às vezes, a vida causa-nos desgostos para que deles
possa surgir a melhor arte.
Bridie junto à fogueira do Imbolc: As melhores histórias são
aquelas que elevam a alma.
Hazel sentou-se.
E se, antes de partir para Paris, ela permitisse que o
extraordinário voltasse a permear a realidade? E se deixasse a
coruja piar durante a noite?
Mais uma vez.
E se nasceres ciente disso…
CAPÍTULO 38

Setembro de 1940

Depois de viajar de Binsey para a estação de Russell Square,


Hazel pensou que ela e a mãe tinham saído no sítio errado. O
cenário estava alterado apenas o suficiente para ser ao mesmo
tempo familiar e desconhecido. Passaram por uma bandeira
britânica esfarrapada, que balançava ao vento presa a um varão
que emergia de uma pilha de entulho, tijolos, betão, madeira
carbonizada e fragmentos de móveis: uma gaveta, a perna de
uma mesa perdida, um poste de cama.
Diante de Hazel estava uma casa sem fachada. A sala de estar
era claramente visível, com um sofá por baixo de um lustre de
cristal. Era uma casa de bonecas em tamanho real, imperturbada
do lado de dentro, mas com vidros espalhados no chão do lado de
fora. O betão e os tijolos estavam empilhados como num jogo de
blocos. Passaram por uma mãe com um vestido cáqui
esfarrapado e três filhos pequenos. Estavam à porta de uma casa,
abraçados uns aos outros, a olhar para uma pilha de entulho e
madeira. O menino apontava para algo que Hazel não conseguia
ver. A mais nova chorava por causa de uma gata perdida
chamada Sandy e a mais velha, talvez com 10 anos, tentava
manter-se firme apesar de estar a tremer.
— Ficaram sem casa — disse Hazel.
— Sim — confirmou a mãe. — Tal como muitos outros. Até ver,
nós temos tido sorte.
Até ver.
Havia poeira por todo o lado, a cobrir postes de iluminação e
carros estacionados nas bermas, nos peitoris das montras com
janelas estilhaçadas e cortinas pretas a esvoaçar nos espaços
destruídos. Hazel viu um talho intacto ao lado de um café
destruído. Era tudo aleatório. Casas intactas ao lado de casas
destruídas; o pavimento intacto abatia em crateras onde cabia um
ser humano, nos locais onde a terra e o betão desmoronavam.
O autocarro vermelho de dois andares número 77, com KINGS
CROSS gravado atrás e um anúncio da Picture Post nas laterais,
espreitava com a dianteira para cima numa cratera gigante. A
parte de trás do veículo tinha sido engolida.
— Esta zona foi atingida há duas noites, Hazel. Já percebes que
não estou a brincar quando digo que é perigoso.
— Nunca pensei que estivesses a brincar. Eu não… pensei…
A mãe estancou a meio do caminho e virou-se para Hazel.
Estavam as duas da mesma altura, e a mãe segurou na cara de
Hazel com as duas mãos.
— Se achas que queres estar aqui, se achas que vir para aqui
ou fugir como a Kelty é algo que tens necessidade de fazer…
quero que saibas a verdade. — Hazel acenou com a cabeça
enquanto uma mulher passava com uma mala e a cara suja de
terra. A voz da mãe ecoou alto e bom som. — Os bombardeiros
surgem rio acima, Hazel. Usam o nosso amado Tamisa como um
mapa da cidade. Conseguimos ouvir o ranger dos motores, depois
o silvo agudo de uma bomba a ser lançada, depois o estrondo
com que atinge o solo, arrasando casas, incendiando catedrais,
bibliotecas e museus. Atacam assim que anoitece. — A mãe
estremeceu. — Nunca sabemos quando vai chegar o próximo. O
céu treme como uma trovoada. Ao longe ou mais ao perto, vemos
um clarão de luz branca, seguido de uma chama amarela.
Hazel sentiu o medo de que isso pudesse acontecer naquele
momento a invadir o seu corpo. Como é que a mãe dormia à
noite, ciente de que eles voltariam a atacar?
— Ficamos encurralados em plataformas subterrâneas. Já vi
pessoas a escavar a terra para conseguirem sair de um abrigo
antiaéreo, todas vivas, graças a Deus, mas da próxima vez…
— Mãe, para! — Hazel não conseguia respirar. As palavras
saíam da boca da mãe como bombas. — Vem viver connosco em
Binsey.
— Não posso, Hazel. Mas isto vai acabar, e tu e a Flora vão
poder voltar um dia. A Kelty pode ter sido poupada, mas se
alguma coisa vos acontecesse…
— Não precisas de me proteger.
— Preciso, sim. É essa a minha função. É só isso que importa.
Não interessa se estou feliz ou satisfeita. A minha função é cuidar
de vocês. — Não desviou o olhar de Hazel. — Tive muita sorte
por a Bridie ter escolhido as minhas meninas. Vocês têm de ficar
em segurança. Eles acham que podem destruir-nos. Bom, podem
destruir as nossas casas e prédios, barcos e carros, mas não
conseguem destruir os britânicos e o seu moral. Nem a nós. Nem
a ti, Hazel. Nem a mim.
— Compreendo, mãe. Vou voltar para Binsey, prometo. Deixa-
me só ver a Kelty e a minha casa. Depois volto para junto da
Bridie.
A mãe abraçou Hazel e puxou-a para si.
— Não te posso perder, minha querida Hazel. Não vou correr
esse risco.

Todos vestiam de branco. Esse foi o primeiro pormenor em que


Hazel reparou quando a mãe as conduziu pela porta de madeira
do Hospital Great Ormond Street. Seguiu a mãe até à receção,
onde uma enfermeira com uma touca alva e um avental branco
sobre um vestido também ele branco lhes deu indicações para o
quarto de Kelty.
— Ao fundo do corredor, à direita, Ala C. — Aquela enfermeira
parecia tão cansada como as que viviam atrás da igreja paroquial.
O seu carrapito baixo, enfiado debaixo da touca, começava a
desfazer-se, e madeixas de cabelo oleoso caíam-lhe sobre o
ombro. O telefone tocou com um som quebrado, e a enfermeira
ergueu o queixo, indicando o corredor que deviam seguir, antes
de atender. — Great Ormond Street.
A enfermaria onde Kelty estava tinha janelas retangulares com
molduras de ferro que ocupavam toda a parede, manchadas e
sujas. A divisão estava preenchida com fileiras de camas e berços
brancos, de ferro. Um rapaz sentado ouvia uma enfermeira a ler
para ele. Uma mulher baixa com uma touca de enfermeira de
renda, diferente das outras, estava debruçada sobre uma criança
que dormia num berço a dar-lhe palmadinhas nas costas.
Candeeiros brancos derramavam feixes de luz brilhante,
rodeados de sombras, nas mesas de cabeceira, onde havia vasos
com flores murchas e papéis espalhados com anotações
rabiscadas. Fitas coloridas pendiam de algumas camas,
esvoaçando quando uma enfermeira passava por elas. Uma
rapariga de olhos fechados passou os dedos pelas fitas.
Hazel procurou por Kelty e deu com ela numa ponta da divisão.
As grades da cama de ambos os lados estavam levantadas,
aprisionando-a. Quando se aproximou, Hazel viu que os olhos de
Kelty estavam fechados e que uma ligadura lhe enfaixava o braço
e a testa. Soltou um grito e correu para junto dela.
— Kelty!
A amiga abriu os olhos e sorriu.
— Eu disse-lhes que virias, mas elas não acreditaram em mim.
— Oh, Kelty… — Hazel estendeu a mão para pegar na mão da
amiga, mas havia um tubo enfiado numa veia, fixo por uma
ligadura com uma mancha de sangue seco. — Lamento tanto
tudo o que aconteceu.
— A minha mãe morreu. — A face esquerda de Kelty estava
distorcida por um hematoma verde-amarelado que espreitava por
baixo da ligadura na testa, mas os seus olhos estavam secos. —
Ela estava mesmo ao meu lado. E depois deixou de estar. — A
voz de Kelty estava embargada pela emoção e a jovem fechou os
olhos. — Vão mandar-me para junto da minha tia Bernice, em
Lancashire. Só a vi algumas vezes, Hazel. Deixa-me voltar para
Binsey contigo. Por favor.
— Mãe, podemos? — A mãe não respondeu, e o olhar de Hazel
fixou-se nas fitas esvoaçantes. — O que é isto?
Kelty olhou para o lado, e deixou descair o rosto.
— Algumas raparigas trocam fitas. Os pais trazem-nas e elas
fazem trocas entre si para terem todas as cores. As mães fazem-
lhes tranças no cabelo e depois trazem mais.
— Mãe! — gritou Hazel. — Tens de trazer fitas para a Kelty.
— Claro que sim, querida.
— A Kelty tem de voltar comigo — insistiu. Ergueu o olhar para
a mãe, que estava agora do outro lado da cama, a acariciar o
braço de Kelty.
— Ela não vai a lado nenhum — disse uma voz austera atrás de
si. A enfermeira com a touca de renda tinha chegado à cabeceira
da cama da criança que estava ao lado de Hazel. A menina, de
olhos fechados, teria a idade de Flora, e tinha letras pretas
escritas na testa: M ¼. A enfermeira era suficientemente baixa
para parecer uma criança, não fosse essa hipótese desmentida
pelo cabelo grisalho e pela bata. Era evidente que se tratava da
enfermeira-chefe. Leu a ficha ao fundo da cama da criança e
depois virou-se para Hazel e para a mãe.
— Sou a enfermeira Lane, e esta jovem ainda não vai a lado
nenhum.
Hazel olhou para a menina que estava na outra cama.
— O que é aquilo que ela tem escrito na cabeça?
A enfermeira olhou para Hazel como se estivesse a decidir o
que dizer, e depois disse-lhe com brandura:
— Numa situação de emergência, é a forma mais rápida que
temos de comunicar. Aqueles escritos significam que ela tomou
um quarto de morfina. — A enfermeira Lane colocou a mão sobre
as grades da cama de Kelty. — Estás melhor da dor de cabeça?
— Muito melhor — disse Kelty. — Não me dói nada. Já posso ir-
me embora?
— Ainda não. — A enfermeira olhou para a mãe. — São da
família?
— Sim — respondeu Hazel —, somos da família.
A enfermeira Lane esboçou um sorriso cansado a Hazel e
repetiu a pergunta à mãe.
— São da família? — A mãe abanou a cabeça. A enfermeira
Lane tocou levemente na ligadura na testa de Kelty. — Ela vai
ficar bem. Ficará internada mais um dia para termos a certeza de
que recuperou as forças e para a tia ter tempo de vir buscá-la.
São dias terríveis.
— Ela é como minha irmã — disse Hazel. — Por favor, deixe-a
vir para casa comigo.
Os olhos de Kelty estavam marejados de lágrimas quando olhou
para cima. Tentou ser corajosa e disse:
— Hazel, voltaremos a encontrar-nos.

Flora enroscou-se na curva do corpo de Hazel, com as costas


encostadas à barriga da irmã. Bridie disse a Hazel que Flora tinha
passado o dia enfiada no quarto, à sua espera, agarrada ao Berry.
Naquela noite, não havia sinais da lua.
— Conta-me — pediu Flora.
— Estou demasiado cansada para inventar seja o que for —
confessou Hazel, já quase a dormir, pressentindo os contornos
reconfortantes do esquecimento.
— Não, conta-me como foi com a Kelty.
Hazel decidiu ocultar a parte do hospital, das ligaduras, das fitas
ou da criança com escritos na testa.
— A Kelty está bem. A tia dela, Bernice, vai levá-la para casa
amanhã. — Hazel respirou fundo. Era difícil dizer aquilo, mas
tinha de ser. — Não podemos sair daqui. Este é o nosso lar, e
temos de ficar em segurança. Enquanto isto não acabar, não
podemos ir a lado nenhum.
— Nem mesmo ao Bosque dos Sussurros? — A voz de Flora
estava trémula.
— Não.
Foi então que veio o choro, e Flora afastou-se de Hazel e
curvou-se sobre si mesma, agarrada com força ao Berry. Hazel
aproximou-se e esfregou as costas da irmã. Depois das coisas
horríveis que tinha visto naquele dia, sabia que o seu mundo era
uma mera ilusão. O Bosque dos Sussurros e o seu rio cintilante
feito de estrelas. Claro que nada daquilo era real e verdadeiro.
Devaneios de criança. Não havia estrelas no rio; era apenas água
barrenta que corria para o mar, como sempre fora e sempre seria.
Ela tinha 15 anos, e a guerra era real. Já chegava de contos de
fadas, de rainhas falsas e de portas cintilantes. Ela tinha de
proteger a irmã, ajudar Bridie e mantê-las em segurança.
O fim do Bosque dos Sussurros não era culpa de Hazel; tinham
sido as bombas, a guerra e o homem mau de bigode a pôr fim à
história delas.
CAPÍTULO 39

19 de outubro de 1940
Dia de Santa Frideswide

A temperatura estava excecionalmente alta para outubro. Bridie


disse a Hazel que aquele seria provavelmente o último dia quente
em Binsey, antes que o inverno cravasse as suas garras no solo
frio e duro. Já tinha podado o jardim, e as árvores junto ao chalé
já tinham perdido as folhas.
A música de Bridie já não se ouvia com tanta frequência. Agora,
era a voz de Churchill que ecoava pela casa com as notícias. A
BBC fazia atualizações, enquanto Harry e Hazel faziam os
possíveis para se concentrarem nos trabalhos de casa, de modo a
cumprirem o desejo tanto de Bridie como de Churchill: «Nunca se
rendam.»
Os meses foram passando e Harry e Hazel nunca mais falaram
sobre o beijo e a noite sob as estrelas, mas mesmo assim o
silêncio não fez com que o sucedido fosse menos importante, pois
sempre que a sua mente vagava, Hazel pensava no toque de
Harry. Lembrava-se da sua cabeça no ombro dele, da forma como
o braço de Harry apoiava o seu pescoço e do seu cheiro a fumo e
a sabão. O desejo que sentia por ele consumia-a nas horas mais
estranhas: ao jantar, enquanto corria pelo bosque, quando ia à
cidade fazer recados com Flora e Bridie. O seu toque. Os seus
lábios. Ela não percebia o que tinha acontecido, mas queria que
voltasse a acontecer.
Uma e outra vez.
Reparou que quanto mais o desejava, mais brusca e agressiva
se tornava com ele. Gritava com Harry quando ele lhe fazia uma
pergunta; ignorava-o quando ele perguntava se gostava do novo
gorro que a mãe tinha tricotado para ela; comia a última fatia de
bolo e não partilhava. A raiva era um escudo que a impedia de
implorar a Harry que lhe tocasse novamente.
Entretanto, Flora aprendia as letras, pronunciando-as uma a
uma. Havia um alfabeto pintado à mão pendurado em quadrados
de papel na parede do fundo da sala de estar, junto à mesa onde
todos os dias faziam os trabalhos de casa. Harry desenhara as
letras com cores diferentes, e cada uma tinha uma imagem por
baixo cujo nome começava com a respetiva letra. A de «asa», B
de «balão». Não escolheu as palavras normais usadas no
infantário; escolheu as suas próprias palavras ou palavras
sugeridas por Flora. R de «rio». E de «estrela». B de «bosque». C
de «coruja». Estas palavras eram pistas do seu mundo secreto e,
no entanto, o Bosque dos Sussurros tinha desaparecido.
Agora, tinham cortinas opacas que Bridie tinha costurado na
máquina Singer, no canto do seu quarto, e as novas senhas de
racionamento obrigavam Bridie a esperar na fila por carne que
chegasse para os quatro. Os jornais anunciavam manchetes de
morte e destruição.
Ainda assim, no Dia de Santa Frideswide, Bridie preparou um
cesto de piquenique com queijo e fatias de fiambre. Cantou uma
canção com as palavras tisket e tasket enquanto dobrava
guardanapos e metia no cesto três pratos de porcelana branca
com o emblema da Universidade de Oxford estampado no meio.
Em cima, colocou a manta de lã vermelha que já tinham estendido
nas margens do rio vezes sem conta, cuidadosamente dobrada.
Os rituais repetidos faziam as crianças sentirem-se seguras.
— Hoje, tenho de ir a Oxford — anunciou Bridie nessa manhã
de outubro, enquanto ajeitava a manta vermelha e fechava o
tampo de vime do cesto. — Vou comprar um telefone. Precisamos
de ter um, para o caso de haver… notícias.
Manteve os olhos no cesto para não revelar o medo que lhe ia
na alma.
Mas Hazel sabia o que ela queria dizer com aquilo: notícias de
ferimentos ou da morte da mãe, ou qualquer outra notícia horrível.
Bridie ia conduzir até Oxford para comprar um telefone e mandar
instalar as linhas através dos seus campos de cultivo só para
receber um tipo de notícias: más notícias.
Deu uma última palmada no cesto e olhou para cima com
aquele sorriso brilhante que lhe enrugava as faces. Bridie pegou
na mala preta com o fecho prateado, deu um beijo na testa a
Harry, Hazel e Flora e saiu porta fora, gritando para trás de si:
— Agora, aproveitem o dia e cuidem uns dos outros.
Cuidem uns dos outros.

As urzes dançavam ao sabor da brisa enquanto Hazel e Flora


corriam pelo caminho que os seus pés já tinham calcorreado
várias vezes. Harry corria atrás delas, levando o farnel que Bridie
havia preparado.
O rio corria veloz naquele dia, como se estivesse atrasado para
chegar ao seu destino.
As crianças chegaram à margem do rio e estancaram. Flora
chocou com Hazel e quase a fez cair à água.
— Flora!
— Desculpa.
Quando Harry chegou ao pé delas, deixou cair o cesto de vime
nas ervas. Tinha as faces rosadas de tanto correr. Hazel tentou
não reparar que os seus músculos dos braços estavam maiores
desde há um mês. Era como se um homem adulto estivesse a
perder a pele de menino. Hazel estendeu a manta vermelha e os
três sentaram-se de pernas cruzadas.
Nos últimos meses, Hazel esforçava-se sempre para que uma
parte do seu corpo tocasse no corpo de Harry. O cotovelo,
enquanto faziam os trabalhos de casa e ele lia, os seus lábios a
pronunciarem as palavras em silêncio; um joelho, enquanto
estavam sentados à beira-rio; uma mão durante as orações. Ela
sentia um estranho frémito quando as suas peles se tocavam,
mesmo através de camisolas, luvas e meias. Simultaneamente,
ela sentia que conseguia respirar mais profundamente e que
ficava sem fôlego. Ficava atenta ao rosto dele para ver se Harry
sentia o mesmo, por mais discreto que fosse o indício.
Nos seus sonhos noturnos, ele pegava-lhe na mão, tocava-lhe
na cara ou abraçava-a enquanto lá fora uma tempestade uivava
furiosa. Chegava a criar histórias sobre eles na sua cabeça, mas
nada que alguma vez escrevesse, com medo de que ele ou Bridie
as descobrissem. Porém, nas suas histórias, ela e Harry viviam
sozinhos no chalé. Vagueavam não só pelos bosques,
vagueavam pela vida. Ele beijava-a ao acordar e antes de
adormecer. Partilhavam um quarto — não se sabia ao certo o que
se passava no quarto, mas a porta estava fechada com eles lá
dentro.
No lugar das histórias do Bosque dos Sussurros — como se o
coração e a mente de Hazel não conseguissem suportar a
ausência de histórias — surgiram novas histórias sobre ela e
Harry.
À beira-rio, com ele ao lado, Flora começava a cair no sono da
sesta da tarde.
— Só mais uma das nossas histórias…
— Chiu — admoestou Hazel, sentindo o calor do seu segredo
enquanto Harry tratava de tirar a comida do cesto. Esfregou as
costas da irmã até ela cair num sono ligeiro. Harry apoiou-se nos
cotovelos e sorriu.
— Então, conta-me uma das tuas histórias.
— Como é que tu… Como? — O tom da sua voz era agudo.
Ele foi apanhado de surpresa, como se ela lhe tivesse dado
uma bofetada na cara.
— Disse alguma coisa de mal? — perguntou, ajeitando-se na
manta e olhando para ela e para os seus cílios longos, que
brilhavam à luz do Sol.
Hazel levantou-se e pensou de que forma é que ele teria tido
conhecimento do Bosque dos Sussurros.
— Estiveste a espiar-nos? — O seu coração batia
descompassado, como um dos martelos que Bridie usava nas
cercas.
— Não. Eu nunca faria tal coisa! — Harry corou por baixo das
sardas. Levantou-se e eles ficaram frente a frente.
— Então, como é que sabes das nossas histórias? — tornou
ela.
Flora estava deitada de lado, com o seu ursinho de peluche por
perto. O vestido com flores cor-de-rosa e azuis rodeava-a como
uma nuvem. Os olhares de Harry e Hazel cruzaram-se e ela
sentiu-se envergonhada. Ter falado no seu mundo imaginário foi
como se Harry a tivesse visto nua.
— Eu não espio ninguém — disse ele. — Não sei se sabes, mas
vivemos num chalé.
Hazel deu dois passos para ele, pousou-lhe as mãos no peito e
empurrou-o. Ele tropeçou para trás.
— Não ouças as nossas conversas! — gritou. — São privadas.
— Porque estás tão zangada? — indagou Harry, aproximando-
se mais, tal como ela sempre quis que ele fizesse.
— Essa história é nossa. É o nosso mundo secreto. Nem a
minha mãe sabe.
De repente, fez-se silêncio. Os dois ficaram ali parados, naquela
tarde de outono. Harry aclarou a garganta e baixou o gorro de lã.
— Vocês têm um mundo secreto?
— Nunca saberás — disse Hazel.
— Conta-me, vá lá. — Ele sorriu com aquele olhar que fazia
com que Hazel desejasse que ele só olhasse para ela e para mais
ninguém. Mas ele tinha tantas coisas: uma mãe que cantava
canções e que os levava em aventuras, um chalé no meio de um
grande campo de urze, amigos que iam procurá-lo e que o
adoravam. Hazel nunca lhe entregaria a única coisa que
partilhava com Flora. Hazel aproximou-se mais dele.
— Nunca! É nosso e não teu!
Ela desatou a correr, como sempre fazia quando se via
encurralada, sem saber para onde ir ou porquê. O caminho para a
árvore rachada e para o espaço cavernoso do Bosque dos
Sussurros já estava bem batido. Chegou à árvore e esgueirou-se
lá para dentro, encostando-se ao espaço escuro, de modo a ficar
apoiada no interior da árvore, como tantas vezes acontecera.
Quanto tempo esteve ali de olhos fechados, com a confusão, as
lágrimas e a frustração a correrem-lhe pelo sangue? Haveria de
fazer essa pergunta até ao fim dos seus dias. O seu corpo
palpitava, enquanto tudo se precipitava ao mesmo tempo: raiva e
desejo, anseio e medo, perda. O seu pai morto. A sua mãe
maltratada; a mãe de Kelty; bombas, guerra e medo.
Pensou que tinha matado o Bosque dos Sussurros quando
privou Flora de lá ir.
E depois sentir falta de Harry, do seu toque, de algo mais do
que aquilo que ela tinha, algo que a mantinha acordada à noite.
Por fim, ouviu um barulho no exterior, e o seu nome a ser
chamado. Era Harry, e ela respondeu.
— Estou aqui dentro.
A cara dele apareceu na abertura da árvore; baixou-se e
rastejou lá para dentro, para junto de Hazel.
— Olha só o que tu encontraste. Isto é mágico. — Hazel não
respondeu. — Não queria que ficasses chateada.
Harry aproximou-se e tocou-lhe na face, tão suavemente que
mais parecia a brisa. Ela fechou os olhos. Sentiu que estava a
cair, a afundar, a cair… e tudo se passou como sempre desejara.
Os braços dele à volta dela, puxando-a para junto de si. Pousou a
cabeça no ombro dele, e encaixava como se tivesse sido feito
para ela.
Sentia-se em casa.
Passou os dedos pelos cabelos embaraçados de Hazel, e o
formigueiro que ela sentiu no couro cabeludo acalmou-a.
Levantou a cara para o que viesse a seguir. Ele encostou a sua
testa à dela; ela sentiu o cheiro do chá da manhã. Beijou-a, e
todos os seus pensamentos desvaneceram-se. O beijo começou
por ser suave. A seguir, os seus braços e pernas enlaçaram-se e
a dor da saudade transformou-se em algo sobre o qual ela tinha
menos controlo: desejo.
Ele mordiscou-lhe a ponta da orelha, e murmurou:
— A minha mãe disse para cuidarmos uns dos outros. Não vou
parar agora.
— Cuidarmos uns dos outros.
Um zumbido penetrou nos ouvidos de Hazel, um som agudo
que a fez empurrar Harry para longe e que fez com que os seus
pés se movessem em direção ao rio, em direção a Flora, em
direção à manta vermelha no chão frio.
Harry seguiu no seu encalço, fazendo o chão tremer. Chegaram
à margem do rio. Ali estava a manta com o cesto e um pedaço de
queijo; uma quietude vazia.
Flora tinha desaparecido.
CAPÍTULO 40

Março de 1960

— Pegs, qual é a diferença entre os contos de fadas e A


História do Pedrito Coelho ou As Viagens de Gulliver, por
exemplo? — perguntou Wren.
Estavam ambos enroscados numa cama de dossel no Hotel
Savoy, em Londres, e mesmo quando a mão de Wren afagou a
sua perna e ele a puxou mais para si, Peggy teve dificuldade em
acreditar que aquilo era real. Tinha tudo acontecido tão depressa:
um encontro à meia-noite no jardim atrás da casa dele, a viagem
apressada para o aeroporto, um dia passado no aeroporto de
Boston, uma viagem de avião mal dormida que durou a noite toda
e, pouco depois, um taxista a tagarelar com sotaque britânico.
Respondeu-lhe o melhor que pôde, ainda com a sensação
desconexa de quem desconfia de que pode estar a sonhar.
— As histórias de Esopo são contos com animais. Gulliver é um
conto de viagens. E o outro… As Aventuras de Alice no País das
Maravilhas é um conto onírico.
— Alguém categorizou esses contos? O nome das histórias é
importante?
— Só para os académicos que precisam de acabar o
doutoramento. — Ela afagou-lhe o peito com os dedos. — A Alice
sempre foi o meu preferido. Só o encarei como um conto onírico
quando ouvi alguém descrevê-lo dessa maneira. Já tive sonhos
sobre o sonho dela, o que parece coisa de loucos, eu sei.
Esta discussão sobre contos de fadas e histórias durava desde
que o avião levantou voo, desde que a cabeça dela pousou no
ombro dele e se elevaram acima das nuvens para, por fim,
pousarem num país diferente. Era uma conversa contínua
pontuada por toques e beijos e uma sensação de se
transformarem noutras pessoas, à semelhança de Proteu, o deus
metamórfico.
Lá bem no alto, ela perguntara:
— Wren, podes contar-me porque foste expulso de Harvard?
Ele afastou-se dela. Peggy não devia ter perguntado.
— Houve um incidente de copianço na nossa turma de Química
— disse ele, calmamente. — Recusei-me a denunciar o meu
colega e eles suspenderam-nos a todos. O que a tua mãe não te
disse foi que o meu colega confessou e fomos todos ilibados. A
suspensão foi revogada. Não faço ideia de como é que ela soube
disso. Ela é… enfim.
— Sim, é mesmo. — Peggy aconchegou-se mais, ainda
admirada por poder fazê-lo.
E agora, na cama de um hotel de luxo, longe da mãe como
nunca estivera, esticou os braços languidamente enquanto Wren
repetia:
— Sonhos sobre sonhos. — Aproximou-se e puxou-a
gentilmente para si. Ela acenou com a cabeça apoiada no seu
peito, um lugar macio com pelos da cor das algas marinhas.
— O que um conto de fadas deve fazer — continuou ela —, se é
que deve fazer alguma coisa, como nos diz Tolkien, é dar-nos
uma nova perspetiva do nosso mundo, o consolo de um final feliz.
Uma espécie de recobro. Como se saíssemos desse mundo de
fantasia com uma nova visão do nosso mundo real. Faz sentido?
— Como quando te deixo, e tudo é diferente; ou quando estou
contigo e sinto que o mundo e tudo o que nele existe está vivo e
me pertence?
Uma onda de calor percorreu o seu corpo. As palavras dele
eram como água para a terra ressequida.
— Eu dou-te uma nova perspetiva? — perguntou Peggy,
aproximando a sua anca do corpo dele, enquanto Wren passava a
perna sobre as dela, os seus corpos novamente juntos.
— Tu és o meu conto de fadas. Sempre foste.
CAPÍTULO 41

19 de outubro de 1940

— Quando foi a última vez que viste a Flora? — De pé na


margem do rio, Aiden Davies fez a mesma pergunta a Hazel,
depois a Harry e depois a Bridie, com uma expressão tão calma
no rosto que Hazel sentiu um grito a crescer dentro de si e a
querer sair em catadupa.
— Eu vi-a ao fim da manhã — disse-lhe Bridie. — Quando
deixei as crianças para ir a Oxford pedir uma linha de telefone.
— Ela estava aqui a dormir tranquilamente, como faz todas as
tardes. — Hazel bateu com os pés na manta a poucos metros do
rio lamacento. As galochas amassavam a terra, formando sulcos
do tamanho dos seus pés.
O rosto de Harry estava tão pálido que Hazel pensou que ele
poderia desmaiar.
— Eu fui procurar a Hazel — disse. — Não quis acordar a Flora.
Aiden Davies escreveu num caderno que tinha tirado do bolso.
As suas faces estavam ásperas com a barba que estava a
começar a crescer.
Quando Hazel e Harry viram que Flora tinha desaparecido, este
correu de volta para casa para contar a Bridie, enquanto Hazel
percorria a margem do rio a gritar «Flora Lea!», tantas vezes que
sentia agora o ardor da garganta em carne viva.
Poucos minutos depois, Harry estava de volta, e também ele
gritava por Flora. Bridie foi a casa do padre Fenelly para chamar a
polícia e, depois, todos juntos, encetaram buscas no rio.
Espalharam-se pelas margens e pelo bosque ao redor, até ao
Bosque de Wytham e mais além. Alguns procuraram na casa dos
barcos, onde o rio se dividia antes de voltar a juntar-se do outro
lado.
Flora Lea!
A polícia chegou com estrondo e num piscar de olhos, com as
sirenes a bradar ao longo de Binsey Lane. Hazel, Bridie e Harry
cobriram o máximo de terreno possível, com Bridie a fazer
perguntas à irmã mais velha. Não estava a acusá-la, foi até muito
complacente.
Onde estavas? Porque ficou ela sozinha? Por quanto tempo? O
que estava ela a fazer?
Foi Harry quem respondeu à mãe:
— A Hazel ficou chateada porque eu disse uma parvoíce
qualquer, e fugiu, mas só até à clareira. Eu fui atrás dela. Não
demorámos nem cinco minutos.
— Até onde é que uma menina pode ir em cinco minutos? —
perguntou Bridie, com uma expressão de medo estampada no
rosto.
Hazel não tinha tanta certeza de terem sido apenas cinco
minutos. Queria recuar até ao momento em que fugiu de Harry.
Ela nunca deixava a irmã. Nunca. O que tinha ela feito?
Os pensamentos emaranhavam-se na sua cabeça; todos muito
céleres, acompanhados por um gosto metálico na parte de trás da
língua.
À beira-rio, o pé de Hazel escorregou. A água estava barrenta,
agitada, o caudal furioso, as margens difusas com sombras que
se estendiam em manchas escuras, a corrente mais forte
alimentada pela tempestade da noite anterior.
Hazel viu o pelo enlameado e gritou. A cabeça e o braço direito
do Berry estavam nos baixios do rio, o corpo e as pernas no lodo
macio, quase engolidos pelos juncos castanhos e verdes. Ela
agarrou no braço do ursinho de peluche.
— Aqui! — gritou. Todos correram para junto dela; os dois
polícias, Bridie e Harry olharam para o rio como se contassem ver
Flora a boiar e a acenar-lhes.
Aiden Davies soltou um gemido e olhou para Hazel.
— É dela?
— Sim. Ela não vai a lado nenhum sem o Berry.
A notícia espalhou-se rapidamente, e o Sr. Nolan e a Sra. Slife,
os gémeos Baldwin e algumas crianças da escola com os
respetivos pais não tardaram a chegar. A multidão correu para as
margens do rio e Aiden teve de gritar:
— Não vão para aí. Temos de procurar pegadas. — O grupo
estancou enquanto Aiden percorria metodicamente a margem,
abrindo caminho pelos juncos, espreitando para dentro das
cavidades aquosas que se escondiam sob os ramos dobrados
das árvores. — Não vejo nenhuma pegada — anunciou, como se
fosse uma boa notícia. Mas Hazel sabia o que aquilo significava:
Flora tinha entrado no rio e não tinha saído.
Ela sabia o que tinha de fazer. Hazel sentou-se na terra, macia
e fria, descalçou as galochas e as meias grossas de lã e atirou-as
para o chão. Antes que alguém pudesse travá-la, atirou-se ao rio,
ignorando o frio, a rapidez e a obscuridade das águas.
Hazel conhecia aqueles baixios, tinha estado ali no verão com
Harry, enquanto Imogene tomava conta de Flora. Tinham entrado
para se refrescar; a água um refrigério exuberante, os pés
enterrados no lodo a permitir a passagem do rio como um afago
suave por entre as pernas.
O rio estava gelado e mais alto do que quando ela tinha nadado
com Harry, e Hazel sentiu a água pela cintura e os pés assentes
no lodo escorregadio e instável do leito do rio. Com uma
inspiração profunda que atravessou a sua garganta dorida,
mergulhou, abriu os olhos e tateou o leito com as palmas das
mãos. Não encontrou nada além de pedras. Levantou-se e voltou
a mergulhar.
Ignorou os gritos pelo seu nome, que lhe dissessem para parar,
para sair dali, a voz de Harry a elevar-se acima dos demais. Foi
então que sentiu uma dor no ombro — alguém que a puxava pelo
braço. Debateu-se, mas foi inútil. Aiden Davies era maior, mais
forte, feito de aço.
— Para com isso, Hazel — admoestou-a. — Nós vamos
encontrá-la. Para!
O inspetor tinha os dedos cravados à volta do seu braço
dormente, num aperto que lhe amassou a pele e certamente
deixaria marca. As pessoas ali reunidas olhavam para ela. Hazel
só percebeu que estava com frio porque o seu corpo começou a
tremer e os dentes a bater, porém ela não sentia o frio, não da
forma a que estava habituada. Sentia apenas um desespero
semelhante àquele que sentira quando soube que o papá tinha
morrido, só que ainda maior.
— Onde está a bruxa? — gritou ela. Tentou livrar-se do braço do
inspetor, mas ele não a largou. Ela deu-lhe um estalo, bateu-lhe.
— Não percebe? A Sra. Marchman é a única que não está cá. Ela
levou a Flora, tenho a certeza. Ela levou a Flora para substituir a
Kelty.
Aiden soltou Hazel e pegou na manta, o último lugar onde Flora
tinha estado, e enrolou-a à volta de Hazel.
— Vai para casa. Aquece-te. Deixa-nos fazer o nosso trabalho.
Hazel olhou para ele, e em vez de acenar com a cabeça em
concordância, fugiu a toda a velocidade. Pensariam que ela
estava a ir para casa, mas ela lembrava-se do caminho para casa
da Sra. Marchman. Os seus pés descalços percorreram o solo
macio, e depois a estrada de terra batida. Passou pelo The Perch,
que tinha a porta aberta porque o Sr. Nolan tinha saído a correr
para o rio para ir ajudar nas buscas. Passou pelo edifício da
escola, com o seu telhado de colmo, pela enfermeira americana
que seguia de bicicleta com o cesto cheio de flores de cenouras-
bravas, que balançavam ao vento com as suas coroas brancas.
Hazel tinha de salvar Flora.
Aquele não era um conto mágico; era a sua irmã.
Era a vida real.
Ouviu Harry a correr atrás de si. Não chamou por ela, mas
estava lá. Juntos, iriam libertar Flora das garras da bruxa. A Sra.
Marchman, com o seu cabelo desgrenhado, unhas amarelas e
cheiro a álcool e suor, que devia ter estado a observá-los no
bosque à espera para poder raptar Flora e substituir Kelty.
Aiden Davies podia acreditar que Flora tinha caído ao rio e que
se tinha afogado, mas Hazel haveria de provar que ele estava
errado.
O jardim em frente à casa da Sra. Marchman era um
aglomerado de vestígios de um mundo em ruínas: um pneu vazio
deitado de lado, com ervas a brotar no meio, uma enxada partida
com dentes tortos e enferrujados, uma cerca branca tombada
sobre um jardim morto. A tinta verde da porta da rua tinha sido
descascada e empolada pelo tempo, e quando Hazel parou diante
dela, bateu com força com o punho. Harry chegou pouco depois,
ofegante.
A Sra. Marchman abriu a porta com o vestido puído que usava
habitualmente. Os seus longos cabelos estavam presos numa
trança. Pestanejou perante a luz do Sol e ergueu uma mão
enrugada para tapar os olhos.
— O que querem? — perguntou ela.
Hazel sentiu o cheiro a bolor que vinha do interior da sua casa
imunda; um fedor semelhante ao de uma cave ou de um depósito
de cimento.
— Devolva-me a Flora! — gritou Hazel.
A Sra. Marchman encarou-os e estreitou os olhos, perplexa.
Hazel percebeu de imediato que estava enganada. Aquela triste
mulher não seria capaz de raptar ninguém. Estava atónita,
confusa e completamente a leste do drama que se desenrolava
nas margens do rio Tamisa.
As pernas de Hazel cederam sob o seu peso, mas Harry
amparou-a quando ela caiu. Pousou-a no chão e abraçou-a
enquanto a Sra. Marchman olhava para eles, friamente. Harry
ignorou a bruxa e puxou Hazel para perto de si.
— Nós vamos encontrá-la.
Hazel fechou os olhos e desejou que tudo desaparecesse. Mas
lembrou-se de um pesadelo que tivera em que Flora caíra no
poço de melaço de Frideswide, junto ao cemitério.
O poço.
O poço de melaço da Alice.
Hazel rangeu os dentes. Agarrou a gola da camisola de Harry.
— O poço.
Se Hazel não permitia que Flora entrasse pela porta cintilante
no bosque, era possível que ela tivesse ido para o poço, onde o
Arganaz falou a Alice das três irmãs que viviam no fundo.
Harry ajudou Hazel a pôr-se de pé. Olhou para a Sra.
Marchman.
— Se tiver telefone, por favor, ligue para a polícia e diga para
irem ter à capela.
Ela acenou com a cabeça e bateu com a porta enquanto Hazel
e Harry corriam em direção à igreja. Harry conhecia um atalho
pelos campos de Oxfordshire. As urzes rasparam-lhe as calças de
bombazina e as pernas nuas de Hazel; as urtigas pegavam-se às
solas dos pés à medida que o chão macio ia cedendo. O dia
começava a dar lugar à noite. Hazel viu o campanário da capela,
que perfurava o sol poente como uma agulha num balão cor de
rosa. Inclinadas e rachadas, as lápides no cemitério brilhavam à
luz do sol minguante.
Hazel estava apavorada com a possibilidade de o dia terminar
sem ter Flora ao seu lado, de a escuridão cobrir tudo à sua volta.
Flora nunca tinha ficado sozinha no escuro, acabava sempre por
se enroscar ao lado de Hazel.
Quando chegaram ao poço, Aiden Davies já lá estava com o
padre Fenelly e um punhado de pessoas da vila. Ethan Baldwin
estava a espreitar para o buraco escuro, demasiado estreito para
uma criança entrar, mas a sua atração era fascinante até para ele.
— Hoje é o dia da festa de Santa Frideswide — disse o padre
Fenelly, em voz baixa. — É o dia em que Oxford celebra a sua
morte.
Hazel, enjoada e tonta, virou-se para o padre.
— Não quero saber. Não quero saber de uma princesa estúpida.
Onde está a Flora?
— Disseste para virmos? — perguntou Aiden com brandura,
com as mãos unidas junto ao peito, num gesto de oração.
— Sim. Se a Flora tivesse fugido, teria vindo para aqui. Achava
que era um lugar mágico…
— Mágico? — Outro agente da polícia, um novo que ela nunca
tinha visto, cuspiu a palavra com desprezo, virando-se para Hazel
e Harry. O seu rosto estava marcado por uma doença antiga e os
seus olhos tão cavados sob as dobras das pálpebras que
pareciam moldados em massa. O homem pôs o chapéu na
cabeça e olhou para Aiden. — Vir aqui foi uma perda de tempo. É
óbvio que ela está no rio.
Aiden tirou o casaco de lã azul-escuro com grandes botões de
latão e colocou-o nos ombros de Hazel.
— Vais ficar doente se não fores para casa e te aqueceres.
A corrida, o medo, a certeza de que tudo aquilo era culpa sua
deixou Hazel tonta. Auras de luz solar cintilavam à volta de todas
as caras no poço; a água reluzente na borda da rocha escura
como cristais de melaço — tudo aquilo nadava diante dela, a
derreter. Era ela que estava no rio, a afogar-se, a arfar, a afundar-
se.
CAPÍTULO 42

Março de 1960

Na noite anterior à partida para Paris com Barnaby, Hazel


sonhou com Harry. Ele estava à beira do rio, cercado por flores
silvestres que cresciam tão depressa que ele conseguia vê-las a
brotar da terra. Ria-se enquanto as flores vermelhas, amarelas e
alaranjadas abriam as pétalas para o céu cerúleo. Hazel chamava
por ele, mas Harry não a ouvia.
Chamou repetidamente o seu nome até acordar. Sentiu uma dor
no pescoço e a cara esmagada contra a mesa da cozinha onde
tinha adormecido. Barnaby sacudia-a ao de leve.
— Hazel. — Ela sentou-se e gemeu. Barnaby pairava sobre ela,
com o seu fato e gravata, o logótipo da universidade no bolso. —
Estás bem? — Ele fez um esgar. — Estavas a chamar pelo nome
daquele rapaz.
Ela esfregou a cara e virou o pescoço para a esquerda e para a
direita, antes de olhar para Barnaby.
— Tive um pesadelo. Ninguém me conseguia ouvir. Eu estava
no rio e…
Barnaby pegou no caderno dela, folheou as páginas e ergueu o
sobrolho.
— Estás a escrever a tua história? É por isso… Estás a reviver
tudo? Porquê?
Ela levantou-se com uma dor aguda na anca. Tinha pousado a
cabeça na mesa algures a meio da noite, a meio da escrita. A que
horas teria sido?
— Preciso de chá — anunciou. Sentiu que ele a observava,
enquanto se dirigia para a chaleira e para o fogão. Esfregou a
cabeça e tentou acordar. Virou-se para ele. — Eu queria acabar a
história, mas não consegui.
— As nossas histórias nunca estão acabadas — disse ele, com
um sorriso débil.
— Eu quero terminar esta. — A sua voz estalou com a verdade.
— Estou ansiosa para que aqueles dias façam finalmente parte do
nosso passado. Queria escrever tudo o que aconteceu até agora,
mas adormeci a escrever sobre o dia em que a Flora
desapareceu. — Esfregou a cara para afastar o cansaço. —
Tenho de te pedir desculpa por estas duas semanas. Tenho
andado tão distraída e distante e…
— Anda cá, meu amor. — Estendeu os braços e ela foi ter com
ele. Esfregou-lhe as costas e sussurrou: — Vai correr tudo bem.
— Só queria deitar tudo cá para fora. Sinto que aqueles dias
estão presos dentro de mim. — O seu corpo estremeceu contra o
dele. — Vivem comigo à minha revelia.
— Tira isso da tua cabeça. Tira-o da tua cabeça. — Beijou-lhe o
pescoço e ela levantou a cabeça, olhando para ele com um ar
inquisitivo. — Refiro-me ao Harry. Esquece-o, por favor.
Hazel caminhou até à chaleira que fumegava, preparou uma
chávena de chá e não disse mais nada.
— Não é ele o problema. É tudo o resto.
— Está tudo bem — sossegou-a. — Resolvi tudo com os meus
pais. Expliquei quem era o Harry e porque é que tu estavas lá.
Eles compreenderam.
— Obrigada — disse ela, mecanicamente. — Mas,
sinceramente, os teus pais são a menor das minhas
preocupações.
— Sabes que partimos esta noite — disse, olhando para o
relógio. — Daqui a dez horas.
Ela virou-se para ele com um sorriso forçado.
— A bordo do Night Ferry. Há tanto tempo que ando a pensar
nisso. Atravessar o canal da Mancha durante a noite, num
comboio dentro de um ferry! Chique a valer.
Do bolso interior do casaco, Barnaby tirou dois bilhetes.
— Apanhamos o comboio em Charing Cross até Victoria e
embarcamos no vagão-dormitório. Têm serviço de catering a
bordo. Quando o comboio chegar a Dover, desacopla-se dos
carris e toda a carruagem entra no navio. Acordamos em Paris!
— Que sonho. — Beijou-o.
— Sim. Daí seguimos para o Hotel Le Meurice, depois
macarons, Louvre, vinho tinto e… — Barnaby empurrou-a para
trás como se estivessem a dançar, e ela desejou sentir-se tão livre
e leve como fingia ser. Ele levantou-a e deu-lhe um beijo. — Só
que, até lá, tenho de trabalhar e tu, minha querida, tens de fazer
as malas. Mas espero não te ver sempre vestida. Beijou-a mais
uma vez e piscou-lhe o olho antes de se ir embora.

O relógio preto da estação de Charing Cross, posicionado por


cima dos horários dos comboios, marcava 18h00. Barnaby
empurrou o carrinho com uma mão e usou a outra para segurar
na bagagem empilhada que ameaçava tombar. Ele e Hazel
correram em direção à plataforma 7. A cada passo que dava,
Hazel sentia que algo a puxava para trás, uma corda que cortaria
de bom grado se soubesse como. O melhor que podia fazer era
ignorá-la.
Caminhava ao lado de Barnaby com o seu melhor fato de
viagem: uma saia de tweed vermelha e um casaco a condizer
com grandes botões pretos. O conjunto era rematado por sabrinas
pretas e um chapéu pillbox. Queria chegar a Paris com todo o
glamour.
O céu pardacento do final da tarde era visível por cima da treliça
aberta que se estendia sobre a estação. Havia cartazes a
anunciar roupas da Moss Bros. e cerveja Guinness, bandeiras
vermelhas e brancas da Union Jack que se agitavam no telhado,
carregadores com chapéus pretos que empurravam carrinhos de
bagagem titubeantes e crianças que seguiam atrás dos seus pais
exaustos, tudo isto no cenário ruidoso dos silvos e baforadas dos
comboios que chegavam.
As duas malas de Hazel estavam cheias com o seu melhor
guarda-roupa, desde vestidos de seda com chapéus a combinar
até lingerie que ela havia comprado só para a viagem — as alças
das camisas de noite e dos sutiãs de renda ainda não tinham
perdido as etiquetas.
Barnaby fez malabarismos para tirar as malas do carrinho, e
praguejou quando a mala preta pequena lhe caiu em cima do pé.
Talvez Hazel devesse meter-se num avião para a América,
localizar a autora e exigir uma explicação. Diga-me! Quem é
você? Como soube desta história? Estão a esconder a minha
irmã? Tinha ido o mais longe possível em Inglaterra, procurado
todas as fontes de que se lembrou, mas tinha batido com a
cabeça em becos sem saída tão sólidos como paredes de tijolo.
E se ela lhe agarrasse no braço e lhe dissesse: «Barnaby, meu
amor, devíamos mudar de planos e, em vez de uma viagem a
Paris, devíamos voar até Boston. Seria maravilhoso!»
Que absurdo. Que loucura. Se quisesse dar cabo da sua vida
em comum e da sua relação, se quisesse acabar com tudo tal
como acabara com todas as relações que teve antes dele, esse
seria o plano perfeito. Mas não era isso que ela queria. Queria
preservar a relação; queria um amor que durasse; queria viver a
vida com alguém que a amasse e que ela amasse também.
Se continuasse a regressar ao passado, nunca seria capaz de
seguir em frente. Mesmo que tivesse acontecido um milagre e
Flora tivesse sobrevivido para contar a história do outro lado do
oceano, a Flora de 6 anos já não existia. Mesmo que Hazel
encontrasse a irmã, não encontraria a irmã que perdeu.
A sua obsessão por motivos e explicações, assim como a sua
necessidade desesperada de dar significado àquilo que não tinha
sentido, estavam a destruir a sua vida atual. Viu Barnaby a
avançar para o comboio e seguiu-o. A carruagem cor de azeitona
entrou na plataforma, com fumo a sair da chaminé e guinchos de
travões. Ele sorriu-lhe.
— Cá vamos nós.
A porta abriu-se e Hazel seguiu-o pela escada de metal do
vagão-dormitório da primeira classe. Barnaby estendeu a mão
para a ajudar a subir. No comboio, por cima de Hazel, estava uma
mulher com um alfinete em forma de coruja no casaco azul.
— Oh, perdão — disse, afastando-se para o lado para dar
espaço a Hazel.
Uma coruja.
Bosque dos Sussurros.
— Hazel! — A voz de Kelty, ou estaria a imaginar coisas? E
novamente. — Hazel! Para.
Barnaby virou-se, soltou a mão de Hazel e ela tropeçou na
escada. Recuperou rapidamente o equilíbrio e desceu para a
plataforma, onde viu Kelty a correr na sua direção, com Midge
logo atrás.
— Mas que raio? — disse Barnaby, olhando fixamente para
Kelty.
— Midge! — Hazel baixou-se e abraçou a afilhada, que trazia
um casaco azul-claro com uma gola peter pan de renda, e já
parecia uma senhorinha bem-comportada. — Como está a minha
menina?
— Queria ir contigo a Paris, mas a mãe disse que não posso.
— Da próxima vez, sim? — prometeu Hazel.
Midge acenou com a cabeça e olhou para a mãe, que estava
sem fôlego, com o suor a cair-lhe na testa e o cabelo ruivo revolto
como as chamas de uma lareira. Kelty falou tão depressa que era
difícil percebê-la:
— Fui ao apartamento para me despedir, para vos dizer que se
divertissem muito. Eu e a Midge temos um presente para vocês. É
uma caixa de chocolates para comerem no comboio.
— Saímos cedo por precaução — informou Barnaby. — E vieste
à estação só por causa dos chocolates? — A voz dele encheu-se
de esperança, mesmo que Hazel sentisse que o que estava em
causa não era a caixa de doces.
— Não. — Kelty estendeu um pedaço de papel. — E embora eu
tenha mudado de ideias dez vezes no caminho para cá…
— É verdade — confirmou Midge. — Voltámos duas vezes para
trás.
— Mas eu sabia que não me perdoarias, Hazel — disse Kelty.
— Nem eu me perdoaria a mim mesma.
Hazel pegou no papel que estava nas mãos de Midge. A
mensagem era concisa:

Estou aqui em Londres. Gostaria de me encontrar consigo no átrio do


Savoy, amanhã de manhã, às nove horas, se assim o entender. Peggy
Andrews.

Hazel agarrou no braço de Barnaby para se apoiar.


— O que diz? — perguntou.
— É a Peggy. Ela está aqui. Em Londres.
Ele pegou no bilhete e leu-o, com os dentes cerrados.
— Hazel… — Barnaby pousou a mão em cima da pilha de
bagagem, e ela percebeu o significado daquele gesto.
Escolhe. Eu ou ela? Eu ou o passado? Eu ou o mundo mágico
da tua infância?
Ela não podia ter as duas coisas.
CAPÍTULO 43

19 de outubro de 1940

— Hazel! — A voz da mãe perfurou um longo túnel forrado


com mantas grossas.
Por alguns instantes plácidos, Hazel, de 15 anos, esqueceu a
realidade e julgou que estava deitada numa cama macia e quente
com Flora. A mãe tinha vindo visitá-las a Binsey e trazia: um novo
brinquedo giratório, possivelmente uma corda para saltarem ou,
se tivessem sorte, um novo saco de pano com berlindes ou um
pião que Flora pudesse fazer girar.
Hazel abriu os olhos. Confusa, deu por si deitada no banco de
trás de um carro, com a cabeça no colo de Harry. A porta do carro
estava aberta aos seus pés, e ela empurrou Harry para longe,
aturdida e confusa. Sentou-se e viu a mãe junto à porta do carro.
O que é que a mãe estava a fazer ali?
Que carro era aquele?
Porque estava descalça?
As perguntas assolaram-na num manto nebuloso.
A resposta veio do seu próprio coração: ela tinha perdido Flora.
Hazel tropeçou para fora do carro; estavam diante do chalé de
Bridie. Atirou-se para os braços da mãe, que tinha vestido o seu
casaco mais macio e luvas de caxemira camel. Acariciou o cabelo
de Hazel, mas não disse que estava tudo bem. A ausência de
palavras doces confirmava que Flora estava mesmo
desaparecida.
Depois de um caldo quente que não a aqueceu e de mantas
macias que não a consolaram, Hazel ficou sozinha na cama do
pequeno quarto contíguo à cozinha. Tinha uma botija de água
quente na barriga e mantas empilhadas à sua volta, que a
manietavam, mas cujo calor não substituía o da irmã. Os outros
estavam agora a fazer o trabalho dos adultos: a planear grupos de
busca e a enviar pessoas para as aldeias vizinhas para fazerem
chamadas e alertarem a imprensa para afixar fotografias dela em
várias aldeias e em Oxford.
Com o corpo a tremer, quente e fria ao mesmo tempo, Hazel
afastou as mantas. A botija de água quente caiu ao chão com um
baque, e ali ficou a balançar.
Ela não merecia consolo.
O Dia de Santa Frideswide — hoje — era o dia em que a
princesa morreu. Hazel não permitiria que Flora partilhasse o dia
da morte de Frideswide. Levantou-se da cama. Sentiu o pijama de
flanela como areia áspera contra a sua pele queimada, enquanto
os seus chinelos se moviam silenciosamente pelo chão de
madeira. Abriu a última gaveta da cómoda. As suas histórias do
Bosque dos Sussurros estavam empilhadas por ordem, umas em
cima das outras, ao lado de uma pilha de desenhos de Harry.
Pegou nas páginas que havia escrito e leu as palavras à luz da
Lua. Aquela era a história que lhe havia roubado Flora.
Na sua alma, a culpa e a vergonha lutavam pela primazia. Tinha
levado a irmã para um rio caudaloso, em busca de algo que não
existia. Nunca ninguém poderia ler aquelas páginas ou aquelas
palavras.
A febre ardia-lhe atrás dos olhos e no pescoço, mas Hazel só
pensava em destruir aquelas histórias. Reunidos à volta da mesa
da cozinha, junto à porta, os adultos vê-la-iam se saísse.
No quarto iluminado pela lua, encheu a mochila com as páginas,
empurrando-as para o fundo do saco onde, apenas um ano antes,
a mãe havia colocado a sua camisa, as senhas de racionamento,
as suas meias e sapatilhas. Hazel lembrava-se de tudo com tanta
clareza como se estivesse a acontecer naquele momento.
Destrancou a janela, e a fechadura de latão deslizou facilmente
para cima e para fora. Colocou os dedos gretados sob a borda do
peitoril e puxou para cima lentamente e com toda a sua força,
criando uma abertura suficientemente grande para o seu corpo
passar. No exterior, aterrou suavemente na terra com os dois pés;
os seus chinelos brancos de lã absorveram a humidade.
A lua cheia escondia-se atrás de nuvens baixas e planas.
Orientou-se no caminho, mesmo no escuro, e chegou à margem
do rio onde tinha encontrado o Berry, onde tinha perdido Flora,
onde o mundo tinha desabado sobre si mesmo.
Hazel pousou a mochila no chão e abriu as fivelas; as mãos
moviam-se com propósito. Pegou nas páginas e descalçou os
chinelos.
Os seus pés descalços pisaram urtigas que picavam, mas Hazel
só teve noção disso mais tarde, já os vergões se tinham tornado
mais salientes e ela viu ser-lhe aplicada uma compressa nos pés
quando já ardia em febre. Uma enfermeira pairava sobre ela
emitindo sons de comiseração.
Mas, por ora, caminhava ao longo do rio sem escorregar lá para
dentro. Na sua mente, via imagens horríveis de Flora a cair na
água. Porque não a teria chamado? Porque não chamou Flora por
Hazel? Ou será que tinha chamado?
Hazel abriu a mão e deixou as páginas voarem, asas brancas
com a sua caligrafia rabiscada nas linhas. Os papéis caíram e
afundaram, um a um. Observou enquanto o peso da culpa e da
vergonha de existirem os arrastava para o fundo do rio que corria
em direção ao mar.
Hazel rezava para que o mesmo não tivesse acontecido a Flora,
mas se assim fosse, então as histórias deveriam ir com ela.
Quando as páginas desapareceram, caminhou noite dentro,
com um vazio crescente dentro de si, que aumentava e
transbordava. O mundo sem Flora era impossível.
A tremer, mas sem se importar com isso, chegou à Igreja de
Santa Margarida. Desta vez, não se dirigiu ao poço. Hazel
empurrou as portas de madeira maciça e entrou.
Mesmo no escuro, sabia o caminho até ao altar, até ao
genuflexório de madeira com as imagens dos santos tricotadas
pelas mulheres da igreja. Ficou de pé e encarou o crucifixo que
estava mais acima: Jesus, a sangrar da coroa de espinhos, com o
sangue a escorrer-lhe pela cara.
Olhou fixamente para Jesus e ajoelhou-se.
— Por favor, devolve-me a minha irmã.
Hazel olhou em volta à procura de algo com que pudesse cortar
a pele e trazer um pouco de sangue à superfície, pois essa seria a
única solução. Olhou e não viu nada com que pudesse fazer
sangue, mas lembrou-se dos pés descalços e olhou para baixo. O
tornozelo sangrava com os arranhões do percurso pelo bosque.
Coçou a ferida, deixando que o sangue saísse fresco e vermelho.
Passou o dedo pela pele e esfregou o sangue no altar de
mármore.
— Pelo meu sangue — disse. — Juro nunca mais contar uma
história falsa, inventada, nem fugir para o Bosque dos Sussurros.
Devolve-me a Flora e eu nunca mais verei o Harry Aberdeen.
Nunca mais farei nenhuma dessas coisas. Juro pela minha vida.
Em seguida, os gritos encheram a igreja. Seriam seus ou da
coruja? Os gritos ecoaram contra as pedras húmidas. Repetiu a
promessa três vezes; as três vezes dos encantamentos mágicos.
Aquela era uma angústia em tudo semelhante à que Hazel
sentiu quando a mãe lhe mostrou a ordem de retirada no quintal,
em Bloomsbury. Afinal, não tinha sido a guerra a maior ameaça à
sua vida; tinha sido o desaparecimento de Flora. De certa forma,
ela sabia que algo de horrível iria acontecer, e que a culpa seria
dela. Um fio tinha sido puxado, e Hazel estava a começar a
desfazer-se.
A única coisa a fazer era encontrar Flora. E Hazel não desistiria.
Por mais tempo que demorasse, ou por mais coisas que perdesse
pelo caminho.

Quando Hazel chegou ao chalé, esgueirou-se novamente pela


janela e dali para a cama vazia. Ao início da manhã, acordou com
a mãe a sacudi-la.
— Hazel, acorda. Não consigo pegar-te ao colo. Tens de ir ao
hospital.
Ela tremia de febre. A língua e a cara ardiam e os seus
pensamentos estavam confusos, mas obedeceu à mãe, saiu a
cambalear do quarto, ainda de pijama de flanela, atravessou a
sala de estar e saiu pela porta da rua.
Pouco antes de chegar junto ao táxi que a aguardava, o dia e a
noite anteriores explodiram numa memória estrondosa. Hazel
virou-se e viu Harry e Bridie no alpendre, desolados, apoiando-se
mutuamente. Aiden Davies estava ao lado deles com um caderno
e uma expressão perdida.
Hazel lembrou-se de que Harry tinha perguntado pela história,
depois recordou o beijo na árvore oca e a promessa que fez na
capela, sob o olhar do Jesus crucificado, de não voltar a ver Harry
ou a falar com ele. Esta jura podia trazer Flora de volta. Libertou-
se da mão da mãe e gritou para a névoa do medo e da perda:
«Nunca mais vos quero ver!»
CAPÍTULO 44

Outubro de 1940

Quando Hazel despertou finalmente no hospital, viu a mãe


sentada à sua cabeceira.
— Estás aqui — disse.
— Sim, querida.
Um frasco de vidro com um líquido transparente estava
pendurado num gancho de metal e ligado ao seu braço por um
tubo. Hazel ouviu o farfalhar de batas rígidas, o tilintar de
carrinhos que iam avançando pelo piso, vozes abafadas e um
grito de dor vindo do fundo do corredor. O cheiro era enjoativo,
álcool e urina misturados.
— Há quanto tempo estou aqui?
— Três dias.
Hazel havia sucumbido à areia movediça do desespero; até
respirar era um tormento. Tivera longos sonhos distorcidos com o
Bosque dos Sussurros, com corujas falantes e rainhas sentadas
em silêncio no trono, com afogamentos e poços transbordantes.
Hazel gemeu, sentindo a garganta áspera e ressequida.
— E a Flora?
— O Blitz está a captar todas as atenções — disse a mãe, com
o rosto magro, a pele fina à volta dos olhos. — O mundo está a
arder, mas o inspetor Davies diz que continuam à procura dela.
Afixei cartazes e fotografias dela em todas as montras de Oxford.
— Eu vou encontrá-la — Hazel prometeu, com um quebranto
em cada palavra proferida.
— Meu amor, tens uma pneumonia e não podes sair desta
cama. Ainda não.
— Quando me levantar, vou encontrá-la. — Puxou o cobertor
fino para si. — Sei que me vais odiar enquanto não a encontrar.
— Não! — O grito da mãe soou tão alto que uma enfermeira
acorreu prontamente, fechando logo em seguida e em silêncio a
cortina que as separava de uma mulher inconsciente que
repousava na cama ao lado. A mãe tomou Hazel nos seus braços.
— A culpa não é tua. Não te atrevas a pensar em tal coisa.
Promete-me.
— Não prometo nada — declarou Hazel —, apenas que vou
encontrá-la. E que nunca mais vou ver o Harry ou a Bridie
Aberdeen.
— Oh, Hazel. Nunca devia ter-vos mandado embora. Devia ter-
vos mantido em Bloomsbury. Devia ter ido convosco.
— Mãe, fizeste o que te disseram que era melhor. E nós
adorámos estar lá. Não tiveste culpa nenhuma. Eu é que não tive
cuidado.
— Oh, querida, isso que estás a dizer não faz sentido.
— A Bridie e o Harry também me devem odiar. — Hazel sentiu
aquela perda com a intensidade de um membro amputado; a mão
esquerda perdida, o coração, que julgava incapaz de sentir mais
dor, agora em colapso.
— Claro que eles não te odeiam.
— Isso é uma mentira para me fazer sentir melhor. É escusado,
mãe. — Seguiu-se um longo silêncio, antes de Hazel perguntar:
— O que diz o inspetor Davies?
— Acredita que ela se afogou. Diz que, se assim não fosse,
alguém já a teria visto, estão muitas pessoas à procura da Flora.
Só encontraram o ursinho de peluche na margem do rio.
— Ela não se afogou — declarou Hazel.
— Rezo para que tenhas razão, querida. Rezo para que tenhas
razão.

Aiden Davies enviou grupos de busca de Binsey para Oxford e


Godstow; pessoas que se juntavam em grupos para vasculhar
minuciosamente as margens do rio e os bosques de Shotover Hill.
Foram arrastadas redes ao longo do fundo do rio.
Durante dois meses, Hazel e a mãe ficaram em Oxford, num
apartamento de um quarto, onde partilhavam uma cama e
passavam os dias a vaguear de loja em loja, de porta em porta, a
pendurar cartazes a anunciar o desaparecimento da menina e a
irromper pelo Oxford Mail para implorar que publicassem uma
fotografia e uma história sobre Flora na primeira página.
O Blitz foi implacável durante oito meses. Os jornais, os
repórteres e a polícia estavam soterrados por uma avalanche de
catástrofes. Que importância podiam atribuir a mais uma criança
que obviamente tinha sido deixada sozinha e que se tinha
afogado?
Manhãs havia em que a mãe não conseguia levantar-se da
cama. Outras vezes, ficava acordada dias a fio. Hazel não ia à
escola; vagueava pelas ruas e pelos bosques de Oxfordshire, à
procura da irmã. Cada uma carregava a sua própria dor, umas
vezes de costas voltadas, outras numa comunhão de sofrimento
que as fazia agarrarem-se uma à outra para conseguirem manter-
se à tona. O que as surpreendia a ambas era o medo, e a forma
casual como este se aproximava sorrateiramente, agarrando-as
pela garganta ou pelo peito. O medo de que ela estivesse viva e
com outra pessoa; o medo de que estivesse morta; o medo de
terem de viver toda a vida sem ela; o medo de que uma delas
fosse culpada.
A mãe temia perder Hazel para o mesmo destino de Flora e do
marido. Por fim, no Ano Novo, com a quadra ignorada por
completo, a mãe levou Hazel para a sua casa, em Bloomsbury.
Para o diabo com as bombas e o medo. Em Londres havia uma
casa, um emprego e vizinhos que podiam ajudá-las.
Hazel procurou desesperadamente alguém a quem atribuir
culpas: Deus, Bridie, o plano de retirada do Flautista de Hamelin,
mas acabava sempre por se culpar a si mesma. Sabia que os
boatos e os jornais apontavam o dedo a Bridie e Harry. Hazel
sentiu que podia ter alterado essa perceção se tivesse contado a
verdade sobre o Bosque dos Sussurros, explicando que Flora
devia ter ido procurá-lo, e porque é que ela e Harry não estavam a
vigiar a irmã. Mas não o fez.
Considerava-se uma cobarde.
Hazel e a mãe instalaram-se numa Londres lúgubre, onde
imperavam as esperas em filas enormes para poderem obter todo
o tipo de bens, desde carne enlatada a vegetais murchos.
Aos 17 anos, em 1942, Hazel saiu de Londres para ir para a
universidade, numa tentativa de deixar para trás memórias de
acontecimentos que não podia mudar. Com a guerra em curso,
fez os exames de admissão e deu entrada numa residência da
Newnham College. Estudou Literatura na Universidade de
Cambridge. Os sonhos não cessaram: o pânico e a busca por
algo perdido, o pavor que tomava conta de si sempre que se
lembrava. Avançava pelos dias sentindo o fardo da memória
como uma pedra que se recusava a largar.
A 7 de maio de 1945, Hazel, já formada, estava em Londres a
trabalhar na Hogan’s quando ouviu o dobre dos sinos da igreja,
que anunciavam o fim da guerra. Mesmo assim, nunca deixou de
procurar uma menina de caracóis loiros, que continuava a rir nos
bosques da sua imaginação.
CAPÍTULO 45

19 de março de 1960

Peggy Andrews levantou-se silenciosamente da cama de dossel;


os candeeiros com abajures de tecido vermelho lançavam um
brilho semelhante ao nascer do Sol. Wren dormia profundamente
deitado de lado, com as pernas esticadas e os dedos dos pés a
espreitarem pela ponta dos lençóis. Ao olhar para ele, Peggy
percebeu que o amava.
Meu Deus, o que a mãe lhe tinha sonegado durante tantos
anos, assustando-a com os perigos dos rapazes e do sexo; da
gravidez e da maldade de Wren.
Peggy tentou sentir raiva e ódio da mãe, mas percebeu que só
sentia pena. O perigo que a mãe tinha vivido, a perda dilacerante
do pai, abatido em Pearl Harbor, a mudança para a outra ponta do
país para estar com a irmã, que depois perdeu. Não admirava que
a mãe valorizasse a segurança acima de tudo.
Hoje, ela iria conhecer a mulher que afirmava que o Bosque dos
Sussurros era a sua história, e isso era tudo menos «seguro».
A primeira coisa que Peggy e Wren tinham feito depois de
aterrarem em Londres e de fazerem o check-in no hotel tinha sido
apanhar um táxi para a Biblioteca Britânica, na zona norte de
Londres, e pedir acesso aos arquivos dos jornais. Solicitaram os
jornais de Oxford de finais de 1940 e, em silêncio, leram os
artigos sobre Flora Lea Linden. Peggy sentiu-se dominada pela
tristeza e pelo mistério desta perda, do desaparecimento
irresolúvel de uma menina que tinha sido profundamente amada
pela família. As lágrimas caíram-lhe sobre os papéis enrolados e
amarelados.
— Como é que elas aguentaram? — perguntara a Wren.
— Não sei se é algo que se aguente. Mas isto explica as cartas,
os telefonemas e os telegramas dela. Se fosse comigo, também
não desistiria. Não de uma coisa destas. Nunca.
Os contos de fadas, e este em particular, tinham-lhe consumido
a vida e a educação. Agora, estava a viver dentro da sua própria
história real, um fôlego de cada vez, demorando-se até que Wren
acordasse para poder vestir o seu vestido florido e ir conhecer
Hazel Linden.

Hazel estava junto à bancada da cozinha a bebericar chá


enquanto esperava que a mãe e Kelty chegassem. Tentou
esvaziar a mente de expetativas, mas isso era como tentar travar
o sol que nascia agora do lado de fora da janela, pintando de
dourado o dia até então cinzento.
Oito e meia da manhã.
Por esta altura, Hazel deveria estar a acordar num vagão-
dormitório de primeira classe ao lado de Barnaby, o navio a
chegar à doca enquanto se levantavam para beber um chá e
vislumbrar Paris pela primeira vez. Sentiu-se tomada pela culpa
sob a forma de um suor húmido. Deixara-o na plataforma, a cara
fechada numa expressão de raiva. Ela compreendia-o — se ele
tivesse feito o mesmo com ela, teria ficado igualmente furiosa.
Kelty ajudara Hazel com a bagagem, sob o olhar confuso de
Midge, que só queria saber se já podiam comer os chocolates.
Hazel tentou desculpar-se com Barnaby, explicar que não tinha
alternativa, mas ele demoveu-a. Ainda tentou perguntar se
podiam adiar a viagem apenas um dia e ele fuzilou-a com o olhar.
Tinha-o deixado ali com a bagagem. Teria ele seguido viagem
sem ela?
Hazel abriu a janela da cozinha e deixou entrar a brisa húmida
da primavera, carregada com o cheiro a lodo que indiciava que o
solo estava a rebentar com vida nova; um aroma a verde. Ouviu
os pássaros a chilrear, cantar e trinar. Pensou que passaria a
noite em claro, mas dormiu, e profundamente.
A ideia, que se apoderara dela lentamente, de que aquela
autora poderia ser Flora transformou-se em esperança.

No quarto do hotel, revigorada pelo café, Peggy parou em frente


ao espelho de corpo inteiro do quarto e avaliou a sua imagem,
tentando ver-se como Hazel o faria.
Atrás de si, Wren correu o fecho das calças e passou os dedos
pelo cabelo, antes de a abraçar por trás, puxando-a para si de
uma forma que lhe esvaziava a mente, fazendo com que todos os
pensamentos se esvaíssem pelo ralo do seu interminável tanque
de preocupações. Juntos, olharam para o reflexo um do outro no
espelho.
— Olha para nós — disse Wren. — Fazemos um belo par.
— Em Inglaterra — disse ela, com um sorriso que começava a
ver e a sentir com mais frequência no seu rosto.
— Está na altura — anunciou ele.
Peggy virou-se e abraçou Wren, como se aquele fosse um
gesto habitual, como se fosse sempre assim que se tocavam e
falavam.
— Ainda não sei o que vou dizer quando a vir. Apesar de ter
passado quase toda a noite a pensar nisso.
Wren deu um passo atrás e tocou-lhe na testa.
— Esta cabecinha não para.
Ela riu-se e ele beijou-a, antes de saírem do quarto e
percorrerem a alcatifa verde do longo corredor. Peggy carregou
no botão do elevador.

Hazel fechou o seu fino casaco amarelo com um cinto que atou
num laço elegante. A mãe e Kelty estavam à espera na entrada.
Hazel fechou a porta e trancou-a.
— Muito bem, podemos ir.
Saíram da parte de trás do táxi a um quarteirão do hotel. Por
cima de si, um céu azul, alto e límpido, sem nuvens. Kelty
perguntou:
— Acham que reconheceriam a Flora se a vissem?
A mãe respondeu prontamente:
— Reconhecê-la-ia assim que a visse. Se ela fosse minha filha.
Hazel sentiu um arrepio de amor. A mãe podia ter casado,
encontrado o amor e ter agora outro filho, mas reconheceria a sua
própria filha num piscar de olhos. A perda era companheira das
duas, a diferença era que a mãe tinha voltado a amar.
— Acho que sim — disse Hazel. — Quando olhei para a Iris,
tentei encontrar nela a Flora, mas não consegui. Claro que podia
ter-lhe pedido para me mostrar o pulso para ver se ela tinha as
orelhas de coelho.
Camellia interveio.
— As asas de borboleta.
— As asas de anjo — corrigiu Kelty. E sorriram uma para a
outra, ao reavivarem aquela velha piada. — Sabemos como é a
tal Peggy Andrews?
— Só sei que tem 24 anos. Não faço ideia de qual será o seu
aspeto. — Olhou para a entrada. — Ela sugeriu encontrarmo-nos
no átrio.
— Estou ansiosa por saber o que esta mulher pode ter para nos
dizer — confessou Kelty quando já estavam diante da fachada do
Savoy, com o seu letreiro vermelho, a rotunda cheia de táxis a
entrar e a sair, e o porteiro de cartola preta com uma rosa branca
na lapela a abrir a porta com um movimento treinado. — Espero
que valha a pena, porque não estou interessada em ouvir
histórias fantasiosas de magia a flutuar no ar.
Mesmo dominada pela preocupação, Hazel riu-se da melhor
amiga enquanto entravam no átrio refulgente e florido do hotel.

Peggy olhou à sua volta. O restaurante do hotel abria para o


átrio. Uma entrada em mármore com uma mesa redonda e um
arranjo de rosas, narcisos, hortênsias, ranúnculos, verdura e
tulipas caía de uma urna de porcelana branca. Peggy parou para
olhar para as flores, tocou na extremidade de um narciso amarelo
para se certificar de que tudo aquilo era real: o hotel, o dia, as
flores. A pétala caiu-lhe na mão, ela fechou os dedos à volta da
textura sedosa e meteu-a na mala.
O restaurante encheu-se rapidamente, numa cacofonia de
vozes de onde sobressaía uma ou duas frases que Peggy
conseguia captar. Olhou para o átrio.
— Não sei como é a Hazel Linden. Como é que ela vai saber
quem somos? — perguntou a Wren.
— Acho que ela vai perguntar na receção e será encaminhada
para nós.
— Mas eu usei o teu apelido, não o meu.
— Acho que não será difícil encontrarem dois americanos, um
deles chamado Peggy. Vamos esperar no átrio, como disseste no
bilhete. Se ela não chegar entretanto, vou perguntar na receção
se alguém anda à nossa procura.
— Obrigada, Wren. Obrigada por estares aqui. Obrigada por me
trazeres.
— Por ti — disse ele. — Obrigado por ti.
O rubor subiu-lhe às faces, o calor dele ali tão próximo. Passou
apenas um minuto até que a concierge, fardada de vermelho-vivo,
se aproximou.
— É a Peggy Andrews?
— Sou. — Peggy colocou a mão esquerda sobre o coração,
como se isso pudesse impedi-lo de bater no peito.
— Umas senhoras estão a perguntar por si.
— Senhoras? Mais do que uma?
— Sim, são três. — A concierge apontou para o outro lado do
grande átrio.
— Provavelmente, ela não quis fazer isto sozinha — aventou
Wren.
— E se ela trouxer a mãe? E se armarem um escândalo? E se
trouxerem a polícia ou um advogado?
Wren sorriu.
— E se nada disso for verdade?
Peggy pegou na mão de Wren e, juntos, atravessaram o átrio.

Hazel e Kelty estavam no meio do átrio, a olhar para trás e para


a frente, entre os elevadores e o restaurante. Camellia, tomada
pelo nervosismo, tinha ido retocar a maquilhagem. As flores do
arranjo disposto sobre a mesa redonda soltavam uma fragrância
tão exuberante que Hazel quase ficou tonta.
Um homem e uma mulher aproximaram-se delas. O cabelo
castanho da mulher estava apanhado num nó na base do
pescoço. Trazia um vestido verde e um casaco de malha a
condizer, rematado por um colar de pérolas, o que a fazia parecer
uma criança a brincar aos adultos.
Hazel examinou o rosto da mulher, em busca de indícios de
Flora na sua maneira de andar e de se agarrar ao braço do
homem. Ele era alto, com o cabelo loiro ainda húmido nas pontas,
e vestia calças de tweed e uma camisola creme. Parecia acabado
de sair de um barco de pesca. Os seus olhares cruzaram-se.
— Senhora Linden? — perguntou a mulher.
— Sim. — Apesar de todas as dúvidas em relação ao que dizer,
Hazel simplesmente estendeu a mão e disse: — Olá, sou a Hazel
Linden.
Quando apertaram as mãos, Hazel antecipou o tremor, o
reconhecimento, o formigueiro que confirmariam que aquela era a
sua irmã.
Talvez. Sim, era possível. O nariz arrebitado, o corpo delgado,
os olhos castanhos a atirar para o dourado. E, no entanto, faltava
algo essencial. Algo caraterístico de Flora.
— Muito prazer — disse Peggy, calmamente.
Camellia dobrou a esquina e aproximou-se de Hazel. Olhou
para Peggy Andrews e, com uma voz forte e segura, proferiu:
— Não é ela.
— Não, não é — confirmou Hazel.
Peggy olhou para Wren.
— Do que está ela a falar?
Wren sorriu com tristeza.
— Acho que a Sra. Linden estava à espera de que fosses a irmã
dela. A irmã perdida.
CAPÍTULO 46

19 de março de 1960

Estavam todos reunidos nas traseiras do hotel, nos Victoria


Embankment Gardens, que davam para o rio Tamisa, onde quase
todos julgavam que Flora tinha caído. Mais além, o Big Ben
marcava as horas, os pináculos do Parlamento perfuravam o céu
e a Ponte de Waterloo debruçava-se sobre o rio. Estavam ali os
cinco — Hazel e Kelty ladeavam Camellia, de frente para Wren e
Peggy, que tinha atrás de si a estátua de ferro de Robert Burns
sentado e com o olhar fixo.
— Lamento o que aconteceu à sua irmã — disse Peggy. —
Muito sinceramente. — Mexeu nos botões do casaco de malha. —
Eu quero ajudar. Em parte, foi por isso que vim. Também quero
descobrir porque é que a minha mãe não me está a contar a
verdade toda sobre o Bosque dos Sussurros.
— A sua mãe deve saber — disse Hazel. — Alguém lhe contou
a história, e ela depois contou-a a si. A sua mãe é a chave.
— Não foi ela quem escreveu o livro. — Peggy agigantou-se e
atirou os ombros para trás. — Fui eu.
— Eu sei, e é espantoso. Não estou a acusá-la de roubar algo
que eu escrevi. Não é disso que se trata. Pegou num mundo que
criei e transformou-o numa série de histórias encantadoras e
belas cuja autoria não estou a reivindicar. Só preciso de saber
como ficaram a par de tudo, porque isso pode significar que a
minha irmã está viva. Não quero as vossas histórias. Quero saber
de onde elas vieram.
— A única pessoa que pode contar a verdade é a minha… —
Peggy parou abruptamente, com os olhos postos por cima do
ombro de Hazel. — Mãe?
Havia algo na respiração exalada de Peggy, no medo que
sublinhou a palavra «mãe», que fez com que todos se virassem.
Uma mulher com longos cabelos de ébano que esvoaçavam
como um véu escuro avançava a passos largos na direção deles
por cima da relva verdejante, com a raiva a emanar do corpo
como uma aura cinzenta cintilante.
— Esta é a minha mãe — anunciou Peggy.
O casaco preto aberto da mulher só parou de se agitar quando
ela se aproximou do grupo que estava reunido no jardim. No céu,
as nuvens deslocaram-se rapidamente para cobrir o sol, criando
longas sombras sobre a relva. Ainda antes de chegar ao pé deles,
a mulher gritou:
— Peggy Maria Andrews, o que é que fizeste?
Peggy deu um passo à frente e perguntou:
— Mãe, como é que tu… O que fazes aqui?
— Eu sei sempre quando estás em perigo. — Apontou para
Wren. — E, normalmente, este aqui está metido ao barulho.
A sua voz ecoou pelo parque, e um grupo de turistas com
mapas e máquinas fotográficas parou para olhar, mas Linda
Andrews não prestou atenção, concentrando-se apenas na filha.
— Vieste de avião? Não acredito. — A voz de Peggy era agora
muito ténue, um sussurro. — Mas como soubeste onde eu
estava?
— Chegou uma carta depois de teres saído de casa a meio da
noite. Uma carta de uma mulher louca chamada Hazel Linden;
veio através da editora. Não foi preciso muito para te encontrar
depois disso. Fui ter com a mãe do Wren. Ao contrário de ti, ele
disse-lhe onde estavas.
Hazel olhou fixamente para a mulher. Céus, a carta que ela
tinha enviado para a América há duas semanas tinha chegado e
convocado a mulher. Hazel esforçou-se para ver se havia algo
familiar no seu rosto esculpido.
Linda Andrews pousou as mãos nos ombros de Peggy.
— Sou capaz de tudo por ti, até de voar numa engenhoca que
pode muito bem matar-me. Tudo. — Linda olhou para o resto do
grupo e abanou a cabeça. — Qual de vocês é a Hazel?
— Sou eu — disse Hazel, dando um passo em frente. — Fui eu
que escrevi à sua filha.
— Perseguiu e localizou a minha filha, atraindo-a para aqui? —
Linda parecia estar à beira das lágrimas.
— Não — disse Hazel. — Ao que tudo indica, a senhora vendeu
uma primeira edição do livro dela, com as ilustrações originais,
que veio parar às minhas mãos.
— Mãe! — A voz de Peggy mais audível. — Vendeste as
ilustrações?
— Fi-lo por nós, querida. Por nós e pelo nosso futuro. Era muito
dinheiro. — A mãe virou-se para Hazel. — Perdeu a sua irmã?
Era o que dizia a carta.
Peggy interveio.
— Mãe, é verdade. Eu li os artigos e é horrível. Está na altura
de dizeres a verdade. — A voz de Peggy era calma e firme. —
Conta-lhes o que aconteceu. Elas estão a sofrer. Tens de lhes
dizer o que sabes. Ou o que fizeste.
— Eu não fiz nada. — A mulher virou-se para encarar Hazel,
Kelty e Camellia, repetindo: — Eu não fiz nada.
Camellia deu um passo em direção à mãe de Peggy.
— Imagine, por um instante, que a sua filha de 6 anos tinha
desaparecido. E imagine que toda a sua vida procurou essa filha,
sempre com os ouvidos atentos ao riso dela ou com os olhos
abertos para a sua menina.
Linda Andrews soltou um grito.
— Não!
Camellia prosseguiu, aproximando-se ainda mais.
— Foi isso que nos aconteceu. Por isso, por favor, não leve a
mal que queiramos saber, desesperadamente, onde ouviu esta
história, na hipótese de a minha filha Flora, que é irmã da Hazel,
ter sobrevivido quando todos pensavam o contrário.
Depois de limpar a cara com as duas mãos, Linda deixou-se
cair no banco de ferro preto que estava atrás de si.
— Eu não fiz nada, juro.
Camellia sentou-se ao seu lado. Agora, era uma conversa entre
mães.
— Lamento que a sua filha tenha fugido para Inglaterra sem lhe
dar satisfações. Eu ficaria muito chateada se a minha filha tivesse
feito o mesmo.
— É aquele rapaz. — Linda apontou para Wren. — É ele que a
faz perder o rumo.
— Lamento — confortou-a Camellia. — Tive de ver a minha filha
a perder o rumo em busca da irmã, a sofrer e a recriminar-se. Tem
sido horrível. Isso definiu as nossas vidas. Se souber de alguma
coisa que nos possa ajudar, seja o que for.
Linda olhou para a filha e os seus olhos encheram-se de
lágrimas.
— Tudo o que fiz ou disse foi para o teu bem.
Peggy agachou-se à frente dela.
— Está tudo bem, mas diz-nos o que sabes para podermos
ajudar estas pessoas.
— A tua tia Maria…
— A que inventou a história?
— Sim, mas não foi ela quem a inventou. Ela trouxe-a até nós.
Durante um ano… — Linda olhou em volta, para Wren, Hazel e
Kelty.
— Mãe, continua.
— Durante a guerra, a minha irmã Maria quis fazer parte da
solução, contribuir significativamente para a vitória, por isso
apresentou-se como voluntária numa organização que enviava
mulheres para o estrangeiro, para ajudar os filhos das viúvas de
guerra. Maria foi enviada para Newcastle, em Inglaterra, onde,
durante algum tempo, tomou conta de uma menina que, nas
palavras da Maria, usava esta história como uma chupeta, para se
acalmar.
Depois de se aproximar a cada palavra que ouvia, Hazel estava
agora em cima de Linda e Camellia, a ouvir tudo com atenção.
Linda prosseguiu.
— Quando a Maria voltou para casa depois daquele ano, o teu
querido pai já tinha sido abatido por aqueles selvagens em Pearl
Harbor. Eu não sabia como te acalmar, como te manter segura.
Mudámo-nos para Cape Cod para estarmos perto da tua tia, que
costumava contar-te a história. Depois… — Linda parou e sentou-
se mais direita. — Decidimos desenvolvê-la juntas como se fosse
a nossa própria história.
— Oh, mãe. Porque não me contaste isto antes?
— A Maria nunca me disse o nome da menina e isso não me
interessava. — A sua voz tornou-se mais audível. — Que
interessava que tivesse sido uma menina em Inglaterra a contar à
Maria? Ela contou-no-la e tornámo-la nossa. — Linda bateu com a
mão na perna para dar mais ênfase às palavras. — Nossa.
Hazel interrompeu, num tom de voz mais elevado do que o
pretendido, com a brisa do Tamisa a espalhar as suas palavras.
— Não! Quis torná-la sua.
Linda abanou a cabeça.
— Isso não é verdade. — Virou-se no banco para encarar a
filha. — Agora, é nossa. Foi nossa toda a nossa vida. Eu e a
minha filha não tínhamos nada, absolutamente nada. Perdi a
minha irmã. Perdi o meu marido. A Maria deixou-nos uma coisa,
esta história. Que interessa de onde veio?
Peggy levantou-se e abanou a cabeça.
— Mãe, para de dizer que é nossa. Para. E se a rapariga de
Newcastle que contou a história for esta filha perdida? Esta irmã
perdida?
Linda Andrews levou a mão à boca, mas não conseguiu travar o
choro que irrompeu.
— Oh, meu Deus. — Agarrou no braço da filha e apertou-o.
— Sabe algum nome? — instou Camellia. — O apelido da
família? O nome da menina?
Linda encostou os dedos médios às pálpebras e abanou a
cabeça.
— A Maria nunca mo disse. — Abriu os olhos e encarou
Camellia. — É verdade. A Maria ajudou muitas famílias, mas esta
história ficou-lhe na memória. Ela sentiu que… salvou aquela
menina. E pouco depois de ter voltado, perdemos a Maria. Três
anos, para ser precisa. Esta história faz tanto parte do passado da
nossa família como do vosso.
— Mãe! — gritou Peggy.
Linda abanou a cabeça.
— Sinto muito. O que quero dizer é que perdi a Maria e que esta
história veio dela. É tudo o que vos posso dizer. Ela nunca me
falou de uma menina desaparecida. Nada que se parecesse. —
Fez uma pausa. — Era só uma história.
Hazel quase desatou a rir.
— Nunca é só uma história.
Peggy acenou com a cabeça.
— Sim, eu sei.
Camellia levantou-se.
— Sabe o nome da organização que aceitou a sua irmã como
voluntária?
Linda fez uma careta.
— Talvez tenha isso na papelada lá de casa, não sei.
Camellia encarou a filha.
— Sei que não queres, Hazel, mas talvez esteja na hora de falar
com a Dorothy Bellamy. Se a deixarmos escrever o artigo, talvez
alguém reconheça a família ou a menina de Newcastle.
— Mãe, eu podia ir a Newcastle fazer umas indagações.
— Já passaram vinte anos. Achas mesmo que ainda lá estão?
Uma revista chega a milhares, não apenas a alguns moradores
locais.
Hazel não ouvia aquele tipo de desespero na voz da mãe há
muito tempo; era um eco dos anos que se seguiram ao
desaparecimento de Flora.
— Mãe, a Dorothy Bellamy vai contar toda a história daquele dia
horrível numa revista. E as pessoas vão culpar-nos, a mim, à
Bridie e ao Harry mais uma vez. Ela vai desenterrar tudo…
— E se isso significar que vamos encontrar a menina que
contou a história? Um artigo sobre uma menina de Newcastle
pode levar a que alguém que o leia venha dizer que a conhecia.
A mãe tinha razão. Estava na altura de falar com a jornalista
que escrevia artigos para «a mulher jovem e inteligente».

Apenas meia hora mais tarde, Hazel entrou em casa de


rompante e foi buscar a carta amarrotada que ainda estava no
caixote do lixo. Deu com ela debaixo de alguns dias de
correspondência. Marcou o número rapidamente.
— Dorothy Bellamy — disse a voz cortada do outro lado da
linha.
— Senhora Bellamy — disse Hazel. — Fala Hazel Linden.
Um sobressalto denunciou a surpresa da jornalista.
— Senhora Linden. É um prazer ouvi-la.
Não sabia ao certo porque esperava ouvir a voz de uma mulher
mais velha, talvez uma voz enrouquecida pelo fumo do tabaco e
pela idade.
— Pois, bem, espero que possa encontrar-se comigo em
Binsey. Há lá um pub chamado The Perch. Chego lá em duas
horas. Gostava de falar consigo.
— Estou na zona norte de Londres e consigo chegar mais ou
menos à mesma hora, sim. Como vou reconhecê-la?
— Estarei de casaco vermelho. — Hazel fez uma pausa. — E a
Dorothy? — Alterou as suas expetativas em relação a Dorothy
Bellamy de uma jornalista corcunda devido ao excesso de tempo
passado à máquina de escrever para uma mulher que poderia
muito bem estar na capa da revista chique para a qual escrevia
artigos sobre crianças perdidas.
— Eu encontro-a — disse Dorothy, antes de desligar.
Hazel olhou para o auscultador na mão, o fio esticado na
cozinha, e perguntou-se o que raio tinha acabado de fazer. Que
caixa de Pandora tinha ela aberto com a esperança ténue de que
o artigo daquela mulher pudesse atrair alguém com informações
sobre uma menina de Newcastle que falava de um mundo mágico
em 1940?
Mas uma menina naquela vila nortenha tinha falado do Bosque
dos Sussurros a uma voluntária americana chamada Maria, que
levou a história para Cape Cod, no Massachusetts, como uma
joia, um prémio de consolação para outra menina que tinha
perdido o seu pai.
Hazel atravessou a cozinha e pousou o auscultador. Seria
sincera. Se contar toda a brutal verdade da sua história àquela
repórter trouxesse a sua irmã de volta, era isso que ela faria.
A mãe tinha voltado para casa, e Kelty também. Peggy e Wren
estavam com Linda Andrews em algum sítio de Londres, e Hazel
imaginou o teor da conversa deles: falariam de perdão, de culpa
ou possivelmente de raiva? Mas isso não lhe dizia respeito.
Agora, a sua preocupação era Dorothy Bellamy, a possível tábua
de salvação para «a menina de Newcastle».
CAPÍTULO 47

19 de março de 1960

Pouca coisa tinha mudado em vinte anos. The Perch, em


Binsey, ficava situado junto ao rio Tamisa, que cintilava em tons
de azul e prateado, sob um céu cinzento da cor do algodão. Uma
mesa de ferro com duas cadeiras de vime e uma jarra de vidro
com duas rosas vermelhas que começavam a perder as pétalas
tinha sido posta à sombra de um salgueiro, cujos ramos
sussurravam ao sabor da brisa. Havia mesas de piquenique
espalhadas pela zona relvada no exterior do pub, e um pequeno
jardim florescia viçoso por entre sebes cortadas.
Hazel sentou-se e tirou o casaco vermelho, desnecessário sob o
sol quente do meio-dia. Tinha dito à mãe que queria fazer aquilo
sozinha, mas já estava arrependida. Gostava de ter a mãe ao seu
lado.
Pouco depois, viu uma mulher a entrar no jardim das traseiras.
Hazel adivinhou que era Dorothy Bellamy pela saia travada,
chapéu de abas largas e casaco justo — tudo em diferentes tons
de verde-azeitona, à exceção da camisa branca com um laço
elegante no colarinho. Trazia uma mala preta de pele envernizada
e olhava à sua volta.
A mulher cruzou olhares com Hazel e aproximou-se.
Depois de todas as recusas em falar com a jornalista, agora
aquela mulher poderia muito bem ser a chave para encontrar
Flora. Hazel percebeu que estava disposta a fazer o que fosse
preciso. Tinha virado as costas a Barnaby numa estação de
comboios e tinha roubado um livro a Edwin. E, se fosse preciso,
iria ainda mais longe. Tinha agora a noção de que, fosse qual
fosse o propósito da sua vida antes de Flora ter, aparentemente,
entrado pela porta de um mundo invisível e desaparecido, a sua
missão agora era só uma: emendar o seu erro, encontrar Flora, e
devolver o sentido ao seu mundo.
O coração de Hazel bateu mais forte com a expetativa. O
caminho levara-a até ali e ela tencionava ser verdadeira e sincera.
Dorothy chegou à mesa com passadas largas e Hazel levantou-se
para a encarar.
— Hazel Linden?
— Sim. Dorothy?
— Pode tratar-me por Dot. — A jornalista olhou à sua volta para
o jardim, com a sombra do chapéu de abas largas a esconder-lhe
o rosto, de modo que Hazel ainda não conseguia ver bem como
ela era. — Pensava que nunca tinha estado aqui, mas acho que
estive. Estranho. — Abanou a cabeça e abriu a mala, tirou um
caderno e colocou-o em cima da mesa. — Muito obrigada por
falar comigo. Esta é uma história muito importante e compreendo
a sua hesitação. Prometo tratar a sua irmã com todo o respeito.
Hazel observou os lábios vermelhos de Dot enquanto esta
falava. As variações no seu tom de voz causavam-lhe arrepios
que lhe subiam e desciam pelas pernas e braços, deixando-a
inquieta com uma estranha sensação de familiaridade. O corpo
tomou conhecimento de algo antes mesmo de ela própria
encontrar as palavras, como quando a mãe lhe mostrou a ordem
de retirada no quintal, em Bloomsbury, ou quando abriu o pacote
com O Bosque dos Sussurros nas traseiras da Hogan’s, ou
quando Harry a beijou naquele instante furtivo, e ela soube que
tinha de ir a correr para junto de Flora, que tinha desaparecido da
margem do rio.
Uma consciência. Era aquele o seu destino desde sempre:
contar a verdade para trazer Flora de volta. Afinal de contas, nada
mais seria necessário além da verdade.
Dot tirou o casaco e pendurou-o nas costas da cadeira de ferro.
Esboçou um sorriso trémulo.
— Importa-se que nos sentemos para poder entrevistá-la?
Fez um gesto em direção à mesa, arregaçando a manga da
camisa de linho branco e expondo o pulso. Pulseiras de prata
tilintaram umas contra as outras. E por baixo delas, Hazel viu a
marca de nascença. No pulso de Dot Bellamy, dois ou três
centímetros acima da articulação, a sombra de duas orelhas de
coelho apontadas para leste e oeste. Orelhas de coelho, dissera a
mãe. Asas de anjo, declarara Hazel.
Ela sentiu o tremor resultante da colisão de dois mundos: o real
e o imaginário, o visível e o invisível, o desejado e o negado.
Ponderou a possibilidade; a concretização da mais absurda das
probabilidades. Agora, tudo é possível, pensou. Tudo. E disse:
— Não há muito tempo e não muito longe daqui, existiu e ainda
existe um lugar invisível que está mesmo ao nosso lado.
Dot piscou os olhos na direção do sol e fixou o seu olhar em
Hazel.
— Se nasceres ciente disso… — Emudeceu. — O que é isto?
— Se nasceres ciente disso — continuou Hazel, a voz mais
firme a cada palavra —, e, verdade seja dita, todos nascemos,
encontrarás o teu caminho pelo bosque até às portas cintilantes
que abrem para o mundo que foi criado única e exclusivamente
para ti.
Hazel observou Dot Bellamy. Era ali que a esperança se fundia
com o desespero? Que o passado embatia no presente? Que a
alegria substituía a agonia dos perdidos?
Hazel sempre procurara por Flora nos rostos dos prováveis, e
agora ali estava ela, inesperadamente materializada na jornalista
que tinha passado um ano a evitar.
— Tu — disse Hazel, levando a mão à boca para calar o grito
que emergiu célere e pleno.
Dot afastou-se.
— Eu?
— És a minha irmã — disse Hazel, sustendo a respiração com a
última palavra, as lágrimas a escorrerem-lhe pela cara. — Meu
Deus, estás aqui. — Hazel só queria abraçar Dot, puxá-la para
junto de si e encontrar no seu rosto cada dia que haviam perdido.
Mas Dot Bellamy parecia aterrorizada e afastou-se de Hazel.
Tirou o chapéu e depois os óculos de sol, pousando-os
lentamente sobre a mesa.
— Sente-se bem?
Hazel pegou-lhe na mão e passou suavemente o polegar por
cima da marca de nascença. Sentiu-a retrair-se, mas Dot não se
afastou.
— Tu és a menina que procuras. És tu a Criança do Rio.
Hazel observou o rosto de Dot. Esperança, meu Deus, que
palavra tão estranha, tão maior do que um desejo. A esperança
tinha-se tornado a própria vida, pois descobrir a verdade sobre
Flora tinha sido a missão de vida de Hazel e agora essa
esperança cintilava nos olhos hesitantes de uma mulher que não
fazia ideia de quem Hazel era. — Não sentes quem és?
— Sou a Dorothy May Bellamy — disse Dot. — Eu sei quem
sou.
Aquelas palavras perfuraram a alma de Hazel, mas ela não
soltou o pulso de Dot.
— Diz-me que não é tarde demais — desejou. — Que o tempo
e as mentiras não me substituíram. Olha para mim. Vê-me. — O
reconhecimento assomava ao rosto de Dot em vagas. Os seus
olhos fixaram o olhar intenso de Hazel, e a sua mão começou a
tremer. — Procurei-te durante vinte anos.
— A mim?
— És a minha irmã perdida. E eu sou a tua.
Dot estendeu a mão livre para trás para agarrar na borda da
mesa do café. Hazel segurou na mão da irmã com firmeza. Não
tencionava soltá-la; não desta vez, nem nunca mais.
Hazel foi tomando consciência de que Flora estava escondida
na agitação das mãos de Dot, na vulnerabilidade dos seus dedos
instáveis, no seu olhar. Hazel ansiava, ou melhor, desejava
ardentemente poder abraçar Dot.
Dot deu um grito, e a sua voz ecoou e ficou presa nas folhas por
cima de ambas.
— Tu não és um sonho. Tu… tu és a minha irmã. — Dot atirou-
se a Hazel e ambas caíram nos braços uma da outra.
Todos os cenários anteriormente imaginados por Hazel não
eram nada comparados com aquele momento de pura e
imerecida graça. Flora estava nos seus braços. Depois de tudo o
que lhes fora roubado, ali estavam elas de volta a Binsey. Hazel
agarrou-se ao corpo adulto da irmã.
Dot foi a primeira a soltar-se do abraço. Limpou as lágrimas com
as costas da mão e o rímel preto manchou-lhe a face direita. Não
desviou o olhar de Hazel, que a fixava em ânsias.
— Sei tudo sobre a Flora Lea Linden. Conheço a história da sua
infância; tenho andado obcecada com ela. E eu conheço-te.
Como é isso possível?
— Nunca deixaste de procurar por ti mesma e eu nunca deixei
de te procurar — disse Hazel. Dot fechou os olhos por instantes e
depois abriu-os.
— O que aconteceu?
Hazel quase desatou a rir por cima das lágrimas.
— Estava à espera de que tu me contasses.

Algo dentro de Dot estalou como uma rolha, uma libertação,


uma porta que se abriu.
Durante dois anos, tinha tentado saber os pormenores da
história de Flora Lea Linden para a sua série Flautista de Hamelin,
e agora ali estava ela, abraçada a uma mulher com quem tinha
sonhado, à medida que as imagens na sua mente se
desdobravam como pétalas de uma flor, uma após outra.
Um rio que serpenteava por entre dois campos planos cor de
esmeralda.
Um chalé de pedra com uma lareira de tijolo manchada de
fuligem na cozinha.
Uma fogueira, que crepitava com faíscas semelhantes a
estrelas numa noite fria.
Um poço onde a magia era possível.
Dot estremeceu. Sentiu-se zonza. Um arrepio tomou conta dos
seus braços e pernas.
E tanto Dot como Hazel estavam em lágrimas.
Não conseguia imaginar ser outra pessoa que não a que
sempre conhecera: Dorothy May Bellamy, nascida em Newcastle,
Inglaterra, filha de Claire e William Bellamy, com quatro irmãos e
inúmeros primos e primas. Esposa de Russel McCallister, mãe de
um filho de 4 anos, jornalista. Não era uma criança perdida.
Mas havia mais alguém dentro dela. E essa outra pessoa, uma
menina, começava a emergir impulsionando as suas memórias.
As imagens na mente de Dot fundiram-se numa longa grinalda
de flores, como aquelas que fazia nos campos quando era
pequena — margarida, dente-de-leão, margarida — até ter flores
suficientes para três longas grinaldas. Uma para Hazel. Uma para
a mulher do chalé. E uma para si mesma, para Flora.
— Eu sou a Flora. Eu sou a Criança do Rio. — Dot oscilava com
aquela verdade. Sentia-se leve como uma pena, flutuando ao
sabor do vento. Olhou em direção ao salgueiro. — Acho que
estou a ver uma porta cintilante ali mesmo. — A sua voz era
agora mais suave, mais pueril, simples na sua crença.
Os outros clientes do The Perch, com as suas cervejas
espumosas e pratos gordurentos de peixe e batatas fritas,
olhavam para as duas mulheres a chorar.
Nos artigos que Dot tinha escrito sobre as crianças perdidas do
Flautista, não havia nenhuma que tivesse sido levada e a quem
tivessem dado uma nova identidade. Tal desfecho nunca tinha
ocorrido a Dot. À semelhança da polícia e dos jornais, sempre
partira do princípio de que Flora Lea Linden se tinha afogado no
rio Tamisa. Essa era a história da Criança do Rio.
— O que somos hoje? — perguntou Dot.
— O que tu quiseres — respondeu Hazel, com uma gargalhada
de puro prazer.
— Um coelho — disse a irmã. — Tu nunca queres que sejamos
coelhos.
Olharam uma para a outra, outra vez com 14 e 5 anos, a sair de
Londres de comboio e depois separadas pelo rio, antes de
voltarem a encontrar-se em Binsey.
Dot já sabia a verdade. Ela era a Criança do Rio, a menina que
tinha procurado durante tanto tempo.
— Li algures que o pai da Flora tinha morrido, mas que a mãe
dela… a minha mãe ainda está viva?
— A nossa mãe está bem viva — confirmou Hazel —, e também
nunca deixou de te procurar.
— Não compreendo. — Dot não sabia o que fazer, como agir.
Devia desmoronar-se e permitir que a criança dentro de si a
revirasse do avesso e mudasse tudo o que pensava saber sobre
si própria? — Quando eu era pequena, tinha sonhos muito reais
com a tua voz, com uma árvore oca, com bosques e um poço. —
Abanou a cabeça e o cabelo caiu-lhe do coque sobre os ombros,
encaracolado. — A minha mãe dizia-me que era tudo da minha
cabeça. É a tua criatividade desabrida, dizia-me. E dizia ainda que
os sonhos de afogamento eram pesadelos deixados pela guerra.
Cresci em Newcastle. Sempre vivi lá.
— Mas eu nunca deixei de te procurar — disse Hazel.
Dot colocou as mãos dos dois lados da cabeça.
— Meu Deus, pensei que estava a perseguir crianças perdidas,
quando eram elas que me perseguiam. — Parou e olhou em volta,
como se pudesse encontrar uma. — Sou uma delas.
— Temos uma vida inteira para pensar nisso — disse Hazel. —
O mais importante é que nos encontrámos.
— Contavas-me histórias, não era? De mundos mágicos. Eras
tu.
— Sim. Chamávamos-lhe Bosque dos Sussurros.
— Sim. — Dot estava sentada na cadeira com Hazel à sua
frente. — Isso mesmo. Bosque dos Sussurros. Tinha-me
esquecido do nome. Como é que isso aconteceu?
— Não sei, mas uma coisa é certa, tornaste-te a pessoa que
eles disseram para seres. Podem ter-te ocultado a tua vida, mas
ela esteve sempre aqui, à tua espera. Eu estive sempre aqui à tua
procura e à tua espera.
Dot sentiu a memória tão visceral e real como se, naquele
preciso momento, estivesse num campo com o Berry, orgulhosa
das suas novas galochas verdes, ansiosa por se tornar um
coelho. Logo a seguir, um rio, um declive lamacento. Flora
escorregou sem ter nada a que se agarrar além das ervas
molhadas e da lama.
— Caí ao rio. — Tentou afastar a imagem, mas ela tornou-se
mais nítida e engoliu-a por completo. — Afundei-me. Não
conseguia respirar. — Estendeu a mão como se procurasse luz e
ar à superfície da água. Foi então que teve noção de que, na sua
essência, não era a pessoa que sempre julgou ser. Nem por
sombras.
Hazel sossegou-a.
— Desta vez, estou aqui. Não te vais afundar.
CAPÍTULO 48

19 de março de 1960

Depois de Hazel perguntar à empregada do The Perch se podia


usar o telefone, ligou à mãe e disse-lhe para ir ter com ela a
Binsey.
Já.
— Porquê? Estou de saída com o Tenny — disse a mãe,
apressada, com o barulho de papéis a serem remexidos e a voz
de alguém a chamar em pano de fundo.
— Mãe — disse Hazel com toda a seriedade possível. — Vem
cá ter, agora.
Um compasso de espera, seguido de um grito rápido e curto.
— Hazel, encontraste a Flora?
— Mãe, estou à tua espera.
— Diz-me já. Ela está viva?
— Sim. Despacha-te.
Hazel voltou para junto de Dot — Flora —, que a esperava na
mesa debaixo do salgueiro. Dot olhava para o rio, atordoada.
Hazel seria paciente. Flora Lea Linden estava escondida dentro
das memórias de Dot, e só agora começava a vir lentamente à
superfície.
Hazel sentou-se em frente ao milagre que era a irmã.
— Pergunta-me o que quiseres.
Dot não olhou para Hazel, apenas para o rio.
— Quanto tempo vivemos aqui? Em Binsey?
— Um ano. Uma vida inteira.
As mulheres conversaram, inclinadas uma para a outra.
Beberam vinho branco fresco, e Hazel percorreu meticulosamente
o caminho das velhas histórias: a ocasião em que Bridie as
escolheu na câmara municipal empoeirada, a sua mãe linda e a
perda do pai, o comboio para Oxfordshire, o bosque e o poço,
Harry e a aprendizagem da leitura, as enfermeiras atrás da casa
paroquial e as viagens à biblioteca em Oxford. Dot abanou a
cabeça.
— Não me lembro de nada. Mas, ao mesmo tempo, lembro-me.
Não faz sentido. Será que temos memórias de quando tínhamos 6
anos?
— Temos. As tuas estão enterradas, mas garanto-te que estão
lá, e são verdadeiras.
— Além dos artigos, como é que demos uma com a outra
agora? — perguntou Dot.
— Recebi um livro na livraria onde trabalhava — esclareceu
Hazel.
— Que tipo de livro?
— Chama-se O Bosque dos Sussurros e o Rio das Estrelas.
Dot recostou-se na cadeira de vime e balançou a cabeça.
— Quem o escreveu?
— Pensei que tivesses sido tu.
— Não.
— Agora, sei disso. — Hazel contou-lhe a história do livro de
Peggy Andrews e das ilustrações de Pauline Baynes. Dot ouviu
sem dizer uma palavra. Bebeu o resto do vinho e pediu mais.
— É uma história muito estranha — disse Dot, com uma risada
trémula, enquanto levantava o copo de vinho para mais um gole.
— Sabes, a minha tia avisou-me para não contar essas histórias
de crianças perdidas.
— A tua tia?
— Sim, a minha tia Imogene.
Hazel arquejou e sentou-se na cadeira.
— Meu Deus, a tua tia é a Imogene? A enfermeira?
Dot estreitou os olhos.
— Como é que sabes?
— Foi ela quem te levou. Meu Deus, foi a Imogene.
— Não percebo.
— Ela era enfermeira em Binsey quando vivíamos aqui. Tomava
conta de ti. Ficou de olho em ti e parece que te levou.
— Isso não é possível — contrapôs Dot. — Não sei como fui
parar a Newcastle, mas não pode ter sido a minha tia.
Foram interrompidas pelo som de uma mulher a chamar e
viraram-se para ver a mãe a correr, vacilante nos seus saltos
altos, para o jardim das traseiras do The Perch.
Dot levantou-se e a mãe parou diante dela, hesitou, e depois
tocou no rosto da filha, colocando a palma da mão
carinhosamente na sua face direita.
— Minha querida filha.
Hazel ficou a ver Dot a absorver aquele momento, com a dúvida
ainda a tremeluzir dentro de si como uma chispa. Ela não se
lembrava da mãe — pelo menos, para já, e Hazel conseguia ver a
hesitação de Dot. A mãe estava a chorar e uma auréola de luz
solar rodeou-as. A mãe estendeu a mão e abraçou a sua filha
perdida.
— Eu nunca perdi a esperança, nunca — disse a mãe.
Dot permitiu o abraço, mas depois afastou-se com um sorriso
triste.
— É um prazer conhecer-te.
A mãe soltou um grito.
— Conhecer-me? Oh, meu Deus, não te lembras.
— Lembro-me. Parcialmente, sim, mas é muita coisa para
absorver. Não estava à espera disto. De todo. Estou perdida.
— Não, minha querida, foste encontrada. — A mãe cruzou as
mãos à sua frente como se as palavras seguintes fossem uma
oração. — Estamos aqui quando estiveres pronta. Há tanto para
te contar, tanto amor guardado ao longo dos anos, que não quero
sobrecarregar-te com ele nos primeiros minutos.
Dot sorriu com bonomia.
— Preciso de ver a minha família. Preciso de descobrir o que
me aconteceu. Não percebo nada disto.
A mãe acenou com a cabeça e olhou para Hazel. Os seus olhos
suplicantes pediam-lhe que fizesse aquela mulher compreender.
— Dot. — Hazel levantou-se e juntou-se à mãe e à irmã debaixo
da sombra do salgueiro. — Como podemos ajudar?
— Eu sei que vocês podem ser a minha família, mas, nos
últimos vinte anos, eu tive outra. Preciso de saber… mais. Preciso
de falar com a Imogene.
— Não te vás embora — disse a mãe, com a voz de uma
criança a pedir a um familiar querido que não partisse. — Ainda
não.
Dot pegou no chapéu que estava em cima da mesa e colocou-o
na cabeça, ajeitando-o de modo que a sombra cobrisse os seus
olhos. Colocou os óculos escuros na pasta e endireitou os
ombros.
— Eu sei que têm de contar ao inspetor o que aconteceu hoje,
mas, por favor, deem-me esta tarde para falar com Imogene.
— Está bem — acedeu Hazel. — Só ligo ao Aiden Davies
amanhã. Tudo o que precisares.
Dot sorriu para as duas, mas Hazel percebeu a dúvida e o medo
que a irmã sentia ao tentar conciliar o facto de ser duas pessoas
diferentes. Qual delas era a verdadeira e como é que ela poderia
saber? Como era possível que outra menina vivesse dentro de si?
Seria ela também uma criança que tinha outra irmã e outra mãe?
Enquanto Dot atravessava o relvado, instável e sem olhar para
trás, com a mala a bater-lhe na anca, a mãe aterrou na cadeira de
vime.
— Não posso perdê-la duas vezes, Hazel. Não posso.
— Não vamos perder — disse Hazel. — Não vamos.
— Como é que sabes?
— O Bosque dos Sussurros, mãe. Ele trouxe-a de volta e vai
mostrar-nos o caminho. Eu acredito nisso.
CAPÍTULO 49

Março de 1960

Eram duas da manhã. Sob as luzes amarelas tremeluzentes dos


postes de iluminação, Peggy e Wren regressavam ao hotel,
vindos do Ronnie Scott’s Jazz Club, no West End. O nevoeiro
tinha subido do rio enquanto ouviam música ao vivo, bebiam gin
fizz e dançavam tão perto um do outro que se moviam como se
fossem uma só pessoa, ao som de uma banda de cinco
elementos. Homens negros que refulgiam de suor enquanto
sopravam nos seus saxofones, uma mulher de cabelo platinado a
cantar com a boca tão perto do microfone que Peggy não
conseguia parar de olhar para ela. Canções de saudade e desejo;
de perda e de amor. Peggy tinha sido consumida por tudo isso,
pelo toque de Wren, pela quantidade de mundo que tinha perdido
enquanto vivia na pequena casa amarela à beira-mar.
Amar Wren tinha sido uma pulsão sentida desde que eram
crianças. Ele representava aventura e bondade e, no entanto, em
todos os dias que passaram ao lado um do outro,
independentemente da atenção que ele lhe votava, o amor nunca
tinha parecido possível. Mas ali estavam eles, em Londres, corpo
a corpo. Mesmo que ele partisse amanhã, mesmo que o seu
toque fosse tão fugaz como um pôr do sol, ela tinha este
momento.
E tudo por causa de uma história.
Antes de deixarem a mãe no hotel — a chorar para a chávena
de chá enquanto repetia que não tinha feito nada de mal, que
nunca quisera roubar uma história, que tudo o que fizera na vida
tinha sido pela sua única filha —, Peggy recebeu uma mensagem
da receção.

Encontrámo-la. Conseguimos encontrar a minha irmã porque a Peggy deu


continuidade à nossa história. Obrigada. Com estima, Hazel.

Hazel tinha deixado o número de telefone do seu apartamento


em Bloomsbury, uma zona de Londres que Peggy tinha estudado
na escola. Estudara o grupo de Bloomsbury, todos eles muito
românticos e artísticos e, para ser sincera, sensuais. Era ali que
vivia a mulher que criara o Bosque dos Sussurros. Pareceu-lhe
apropriado. Mas, verdade seja dita, Peggy também tinha
tendência para tornar tudo um pouco fantasioso.
Já perto do Savoy, Peggy perguntou a Wren:
— Como achas que encontraram a Flora? Onde é que ela
esteve este tempo todo?
— Espero que nos contem, mas aposto que teve algo que ver
com a tal jornalista.
— Bem, foi muito rápido. — Peggy ponderou por instantes. —
Achas que a jornalista era a irmã dela?
Wren encolheu os ombros.
— Duvido.
Peggy pensou no que todos tinham feito depois de se terem
separado nos Embankment Gardens. Depois de terem deixado a
mãe a meio da tarde, tinham vagueado pelas ruas: foram às
compras e não compraram nada, sentaram-se num café a beber
um café expresso tão amargo que Peggy pensou que nunca mais
beberia outro, e depois foram a um salão de beleza, onde Peggy
mostrou a um cabeleireiro com brilhantina no cabelo uma
fotografia de Jackie Kennedy numa revista e disse:
— Quero este corte de cabelo.
A mãe certamente detestaria, mas Peggy não queria saber.
Ficou radiante ao perceber que podia muito bem viver com a
desilusão da mãe. Era uma nova e maravilhosa forma de estar no
mundo! Afinal, o seu cabelo escuro e ondulado era perfeito para o
bob. Com um gancho de pérolas a prender o lado esquerdo do
penteado, Peggy sentiu-se livre, mais leve e até um pouco mais
corajosa. O que não fazia muito sentido, uma vez que era apenas
um penteado.
Peggy e Wren aproximaram-se das portas do Savoy e ela tirou
o chapéu. O seu novo bob roçava na gola virada para cima do
casaco azul-celeste que Wren lhe tinha comprado na manhã
anterior à ida à Biblioteca Britânica. Entraram pela porta giratória
e sentiram o ar quente na cara. Os gin fizzes que tinha bebido no
clube de jazz deixaram-lhe a cabeça leve e tonta.
No átrio, viram uma mulher sentada numa cadeira, as mãos
com luvas brancas cruzadas no colo. Era a mãe, sentada no
mesmo sítio onde a tinham deixado há quase onze horas, com o
mesmo vestido, e o casaco preto sobre as pernas. Olhou para
eles e as lágrimas caíram. Peggy foi ter com a mãe.
— Mãe, estás bem? O que estás a fazer?
— Pensei que tinhas morrido — disse ela, sem se mexer um
centímetro, só o rosto trémulo dava sinais de vida.
— Por que raio haverias de pensar tal coisa?
— O mundo é um sítio perigoso, Peggy.
Peggy estendeu a mão e a mãe pegou nela, levantando-se com
rigidez.
— Mãe, também é um sítio maravilhoso.
— Não via isso há muito, muito tempo.
— Talvez porque não tenhas andado a prestar atenção.
A mãe descalçou lentamente as luvas brancas e estendeu a
mão para tocar nas pontas do cabelo de Peggy.
— Cortaste o cabelo — constatou.
— Sim.
— Fica-te tão bem — disse a mãe.
O comentário inesperado era uma graça que Peggy desejava há
muito tempo — a aprovação da vontade de Peggy sobre a
vontade da mãe, que agora chorava sem pudor, enquanto tapava
a cara com as mãos.
— Perdoa-me. Nunca quis fazer nada de mal. Tudo o que
sempre fiz foi por ti.
— Mãe, talvez esteja na altura de fazeres algo por ti.
A mãe olhou para Wren.
— Tenho sido horrível para ti.
Wren acenou com a cabeça e pegou na mão de Peggy.
— Eu amo-a, minha senhora.
— Eu sei que sim.
— Mãe. — Peggy olhou para o átrio, vazio, à exceção de um
porteiro noturno com uma cartola preta, que se afastou
discretamente da conversa. — Estás aqui sentada desde que te
deixámos esta tarde?
— Sim.
— Porquê?
— Pensei que se esperasse aqui, se não me mexesse, tu
ficarias bem. É um disparate, eu sei. Mas aqui estás tu.
— Mãe, estou aqui hospedada, claro que estou aqui.
— Posso ficar contigo esta noite? — A mãe fez uma pausa,
enquanto mexia nos botões do casaco de malha. — Depois
prometo que vou para casa.
Peggy ruborizou, e depois disse a verdade.
— Não tenho um quarto só para mim. Estou num quarto com o
Wren. — Preparou-se para uma discussão, que afinal não
chegou.
— Não faz mal, eu peço um quarto para mim. — A mãe deu
alguns passos hesitantes em direção à receção e depois parou.
— Vais conseguir perdoar-me?
— Já perdoei — disse Peggy. — E sabes que mais?
A mãe agarrou nas bordas da mala preta pendurada no
cotovelo, com as costas tão direitas como as da rainha no retrato
atrás de si.
— Diz.
— Elas encontraram a Flora.
— Oh! Ela está viva?
— Sim, mas não sei pormenores. Estou ansiosa para saber
mais. Mas tenho estado a pensar nisto o dia todo e percebi uma
coisa.
— O quê?
— Independentemente das tuas intenções quando ocultaste as
origens desta história, conseguiste mantê-la viva e permitiste que
ela chegasse até à Hazel. Preservaste uma história e, graças a ti,
uma irmã perdida foi encontrada.
A mãe quase se riu e depois abanou a cabeça, num quase
comprazimento.
— Então, parece que não sou assim tão má pessoa.
— Ninguém é mau — disse Peggy.
A mãe deu três passos largos na direção dela e abraçou-a com
força.
— Adoro-te, meu amor. Adoro-te.
Peggy sentiu o corpo da mãe a tremer, depois afastou-se e
olhou para os seus olhos castanhos, para as marcas de lágrimas
que manchavam o rímel nas suas faces.
— Eu também te adoro.
CAPÍTULO 50

20 de março de 1960

Na manhã após a grande descoberta de Dot Bellamy, no


primeiro dia de primavera, Hazel estava de pé na cozinha, de
madrugada. Na noite anterior, sonhara com corujas e bosques
verdejantes, com longos trilhos e árvores ocas. Acordara com um
pensamento penetrante e espantoso: encontrei a Flora.
Na noite anterior, quando voltou para casa, Hazel telefonara a
Kelty e contara-lhe tudo. Kelty chorou ao telefone, proclamando
que sempre soubera que a encontrariam. Perguntou:
— E agora?
— Prometi à Dot que lhe dava uma noite para falar com a
família. Depois ligo ao Aiden Davies. Está na hora de obtermos
respostas.
Kelty soltou um grito.
— Não! E se estás a dar tempo à Imogene para fugir?
— Tem 50 anos. Achas mesmo que vai deixar a filha e o neto?
Eu acho que não, mas vou correr esse risco para ter a Flora de
volta.
— A Imogene mentiu-te descaradamente.
— Claro que mentiu. Roubou a minha irmã. O que esperavas
que me dissesse?
Kelty concordou.
— Estou aqui para o que precisares. Mal posso esperar por
abraçar a Flora. Isto — disse Kelty enquanto a voz de Midge
chamava por ela lá ao fundo —, isto é melhor do que qualquer
livro que já tenha lido. É maravilhoso.
— Sim — disse Hazel, e desligou.
Agora, sob a luz da manhã, Hazel imaginou cada um deles a
agarrar-se à nova história, mal compreendida e desconhecida. A
mãe. Dot. Harry e Bridie. Porque quase todas as pessoas que
alguma vez amara ficariam certamente mudadas por isto.
E Barnaby? Estava em Paris? Teria ido sem ela?
Hazel estava a pôr a chaleira ao lume quando ouviu a porta da
rua abrir e fechar, e de repente Barnaby estava à porta da
cozinha.
Vestia o mesmo fato que usara na estação, agora amarrotado e
com a bainha do casaco rasgada. O rosto dele estava amassado,
com uma expressão que ela reconheceu como exaustão.
Tresandava a cigarros e ao cheiro amargo de um pub aberto até
tarde.
— Valeu a pena? — perguntou, com um toque de raiva. —
Valeu a pena deixares-me numa estação com dois bilhetes na
mão?
Hazel permaneceu muito quieta, como se ele fosse um animal
selvagem e perigoso que ela nunca tinha visto.
— Sim. — Agora, só a verdade. — Encontrámos a Flora.
A boca dele, até agora cerrada, abriu-se, e soltou um grito:
— Oh, Hazel! Era a autora americana?
— Não. — Sorriu com a ironia. — Afinal é a jornalista que tenho
andado a evitar há um ano.
Ele aproximou-se dela, mas não chegou a abraçá-la.
— Meu Deus, tens de me contar tudo.
— Estás com péssimo aspeto, Barnaby. Onde tens andado?
Andas há dois dias com esse fato? Meteste-te nalguma zaragata?
Ele abanou a cabeça.
— Não importa. Conta-me.
E ela contou. Quando terminou, ele disse:
— Meu Deus, Hazel, estou quase sem palavras. É um mistério
que está sempre a desenrolar-se, mas que nunca te dá
verdadeiramente respostas.
— É como se fossem migalhas que conduzem a mais migalhas.
— No Hansel e Gretel, as migalhas são…
— Eu sei, são comidas pelos pássaros, e as crianças acabam
com a bruxa. Foi uma má metáfora.
Ela quase sorriu.
Barnaby levantou-se e espreguiçou-se.
— Quero falar contigo sobre isto. Mas, primeiro, vou tomar um
duche longo antes do pequeno-almoço, se não te importares.
Ela acenou com a cabeça.
— Sim, claro.
A água ferveu, e ela colocou dois ovos na panela, ficando a ver
bolhas a formarem-se nas cascas brancas, e os ovos a oscilarem
na água. O telefone tocou e, embora lhe apetecesse ignorá-lo,
pensou que podia ser a irmã.
Sorriu com essa possibilidade: a irmã. Atendeu.
— Senhora Linden?
— Sim. — Reconheceu a voz de Lorde Arthur Dickson, da
Sotheby’s.
— Estou a ligar-lhe para confirmar que o seu emprego está
garantido. Falei com o Edwin Hogan e com o Meldon Yardley, e
ambos manifestaram muita confiança no seu caráter. Estamos
ansiosos por tê-la na família da Sotheby’s.
Hazel torceu o fio do telefone, enrolou-o nos dedos e voltou a
soltá-lo. Ouviu o seu batimento cardíaco a ecoar, acelerado, nos
ouvidos. Confiança no caráter dela? Quem era aquele homem
para a julgar? Pensou em Poppy, a viver na rua, e no facto de
Edwin a ter contratado apesar disso. Pensou no aconchego da
Hogan’s, e depois pensou no pai de Barnaby, que fizera uma
chamada em seu benefício para provar a Lorde Dickson que ela
era merecedora. Ao expirar, disse a verdade.
— Obrigada — disse —, mas decidi recusar o emprego.
— Como assim?
Tinham passado quase duas semanas desde que abrira aquele
embrulho na sala das traseiras da Hogan’s, mas parecia uma vida
inteira.
— Quando peguei naquele livro e naquelas ilustrações, abri os
olhos para aquilo que quero para a minha vida. E lamento dizer
que este emprego não faz parte do que quero.
— Acho que se vai arrepender desta decisão, senhora Linden. E
tenho a certeza de que o Meldon Yardley não ficará nada
contente. Ele defendeu-a.
— Sim, senhor, eu sei. — Sim, tinha a certeza de que Meldon
Yardley não ficaria contente com ela por muitas razões. — Sei
que vai encontrar alguém à altura. Obrigada pelo seu tempo e
generosidade. Adeus.
Hazel largou o auscultador no descanso.
Que raio tinha ela acabado de fazer? Dissera a verdade, foi isso
que fizera. Não tinha sido assim tão difícil, pois não?
Tirou os ovos da água a ferver e colocou-os nas taças para
ovos de porcelana azul, tirou o pão da torradeira e colocou tudo
nos seus pratos preferidos, com as bordas de flores verdes.
Barrou manteiga nas torradas quentes, acrescentou um pouco de
compota de framboesa na borda de cada prato e colocou-os na
mesa da cozinha. Era esta a vida dela, familiar e agradável. Em
grande medida, queria preservá-la.
Barnaby entrou na cozinha vestido com uma camisa escura e as
calças cinzentas que deixava em casa de Hazel.
— Ouvi bem? Não aceitaste o teu emprego de sonho? — Fitou-
a, com os olhos bem abertos, as pupilas dilatadas pela
combinação da ressaca com a luz matinal a irromper pela
cozinha. — Vais deitar fora um bom emprego? Tudo aquilo para
que trabalhaste? Estás a pensar com clareza?
Aproximou-se e colocou as mãos nos ombros dela, abanando-a
ao de leve, calorosamente.
— Vou.
— Conta-me o que se passa… — A voz dele era serena, mas
os olhos saltitavam pela cozinha como se estivesse à procura de
perigos.
Sentaram-se os dois à mesa, de frente um para o outro.
— Estou simultaneamente perdida e encontrada, Barnaby. Não
sei para onde me virar, nem o que fazer a seguir.
Ele olhou para os ovos e para a torrada, sem os provar.
— Não consigo perceber nada disto. Um livro e uns desenhos
fruto de fantasias infantis e a minha vida inteira implode?
— Fantasias infantis?
— Não era isso que eram? — Colocou as palmas das mãos
abertas na mesa e inclinou-se para a frente.
— Sim, suponho que sim, mas eram muito mais do que isso. Eu
também estou a tentar perceber isto tudo. Ouve, eu também não
sei porque está tudo a acontecer ao mesmo tempo.
— Ouvi o que disseste ao telefone. Ouvi-te dizer à Sotheby’s
que tinhas aberto os olhos para aquilo que queres da vida. O que
queres, Hazel?
— A verdade, e a liberdade que vem com ela. Não quero evitar
as coisas por medo, nem viver só para coisas que parecem boas,
por vaidade. Como aquele emprego. Eu gosto muito do meu outro
emprego. Porque achei que tinha de mudar para outro sítio
melhor ou mais chique? Porque ainda não tentei escrever o meu
próprio livro? Do que tenho medo?
— Tantas perguntas, Hazel.
— Eu sei, e não tenho todas as respostas, mas sei que não
quero um emprego que o teu pai me ajudou a conseguir. Não
quero simplesmente trabalhar com histórias; quero escrevê-las.
Não quero viver na periferia das coisas, na sua sombra. —
Fechou os olhos e procurou centrar-se, porém vacilou. — Quero
deixar de sentir medo, mas também não quero fazer escolhas só
porque são seguras.
— Não percebo nada. Amo-te tanto, e parece que estás a dizer
que já não me queres.
— Não foi isso que eu disse. Não te quero magoar. Mantive-te a
uma certa distância, com medo de amar demasiado alguma coisa
ou alguém. Não me permiti viver como verdadeiramente quero,
nem amar, e isso magoou-te, ao homem que amo. Lamento
muito.
Ele descontraiu.
— É muita coisa para absorver. Sabes o que aconteceu? — Ela
arqueou as sobrancelhas. — Abriste a porta ao Bosque dos
Sussurros — disse ele. — Foi isso que aconteceu.
Ela olhou para ele para ver se aquelas palavras continham
alguma malícia ou crueldade, mas viu apenas tristeza.
— Se o Bosque dos Sussurros tem algum propósito, é o de
fazer as pessoas regressarem mais fortes, não mais fracas. Dá-
me a coragem que me torna um pouco melhor, uma pessoa que
se conhece melhor. Tinha deixado de explorar isso por medo;
acreditei que a história tinha causado a perda da Flora, que o
desejo tinha causado a perda da Flora, e isso fez com que
deixasse uma grande parte de quem sou naquele bosque.
Barnaby acenava, o rosto a lutar contra as emoções.
— O desejo tinha causado a perda da Flora?
Contaria ela a verdade? Libertá-la-ia? Não estava certa disso.
— Eu estava com o Harry quando ela desapareceu.
— Com o Harry?
Se a traição tinha um tom de voz, era este, e Hazel sentiu-se
agoniada com a consciência do que lhe tinha escondido. A
verdade não era assim tão fácil.
— Sim, ele beijou-me, mas o problema é que eu estava feliz por
estar sozinha com ele e, por um breve instante, esqueci-me das
minhas responsabilidades. Nunca mais me permiti… voltar a
sentir-me assim.
— Deixa ver se percebi. Preciso de compreender, porque estás
a despejar muita informação para cima de mim. Estavas a beijar o
Harry com que idade, 13 anos…
— Não! Tinha 15 anos.
— Pronto. Estavas a beijar o Harry, o rapaz com quem vivias,
aos 15 anos, e esqueceste-te da tua irmã por um ou dois minutos.
E isso fez com que esmagasses o teu desejo? Por essa lógica,
significa que nunca me desejaste? Que isto foi uma fachada?
— Não, não é isso que quero dizer. De todo. Desejei-te; amo-te.
Não sei fingir isso. Estou a tentar dizer-te que tenho tido pavor de
sentir demasiado, de sentir aquilo que quero realmente porque, a
certa altura, naquele dia de outubro de 1940, perdi o que mais
importava por querer algo com tanta intensidade. — Hazel mexeu
no guardanapo de linho pousado ao lado do prato, torceu-o entre
os dedos e depois devolveu o olhar intenso de Barnaby. — O
Bosque dos Sussurros não me deixou. Eu tinha-me convencido
de que a única coisa real é a vida que vemos. O Bosque dos
Sussurros já não fazia sentido. Era apenas uma ilusão, uma
fantasia, a minha imaginação desenfreada. Mas a minha
imaginação trouxe sinais ao mundo real que eu ignorei.
— O que — disse ele, baixinho — significa que tenho de te
perguntar. O que queres verdadeiramente, Hazel? Tenho a
sensação de que não sou eu.
— Eu quero-te — disse ela.
— Tens a certeza?
— Sim, tenho.
— Queres-me o suficiente? Talvez seja essa a pergunta certa.
Hazel queria ser cautelosa, avançar com cuidado por estas
areias movediças.
— O que é suficiente? Eu não sei. Tu sabes?
Ele tinha lágrimas nos olhos.
— Talvez nunca te tenhas libertado verdadeiramente de quem
amaste antes de mim, Hazel.
— Libertado? — perguntou ela. — Tens caixotes e sacos
amontoados em tua casa há três anos. Caixotes e sacos da tua
ex-mulher.
— Só me posso livrar deles quando ela for buscá-los. — Ele
cerrou e descerrou os dentes, com o maxilar a tremer.
— Não podes ou não queres? — perguntou ela, e dobrou o
guardanapo num quadrado. Ele não soube responder. —
Liberdade, Barnaby? Não sei se estamos livres ou presos ao
passado, só sei o que preciso de fazer agora. Tenho de ligar ao
Aiden Davies e contar-lhe tudo sobre a Imogene Wright. Quero ir
com ele a casa dela. Não vou deixar-lhe escolha. Quanto à Dot,
talvez ela não queira ter nada que ver connosco. Talvez nos odeie
por darmos cabo da vida que tem agora. Mas tenho de levar isto
até ao fim. — Fez uma pausa. — Vais cá estar quando eu voltar?
— Não, meu amor, não vou. — Ele levantou-se e o tremor na
voz dele fez Hazel sentir-se desorientada. — Tens de ser tu a vir
ter comigo, Hazel. Se queres que fiquemos juntos, vem ter
comigo. Mas tens uma escolha a fazer.
Ela voltou-se de frente para ele, e sentiu o impulso de lhe
implorar que ficasse. Ele, porém, voltou costas e afastou-se. Ela
ficou a observá-lo, a camisa escura justa às omoplatas, até
contornar o corredor. A porta abriu-se e fechou-se com estrondo.
Talvez devesse ir atrás dele, chamar por ele, segui-lo.
Em vez disso, Hazel pegou no telefone e marcou o número de
Aiden na esquadra de Thames Valley.
CAPÍTULO 51

20 de março de 1960

— Não devias ter vindo, Hazel. Não é seguro — disse Aiden


Davies. — Não faço ideia do que esta Imogene Mulroney é capaz.
O dia estava frio, como se a primavera hesitasse em chegar a
Henley-on-Thames. Hazel estava com Aiden junto ao portão de
estacas brancas onde tinha estado à espera dele. Ele nunca a
teria deixado vir, por isso ela decidiu vir sozinha, antes dele. Aiden
queria que ela ficasse lá fora enquanto ele tocava à porta. Não ia
acontecer.
Hazel aconchegou o cachecol de lã verde junto ao pescoço e
enterrou o queixo no seu calor.
— Aiden, pode não ser seguro, mas tenho direito a isto. Vivi
esta história de terror durante vinte anos, e não vai impedir-me de
viver o final.
Aiden tirou o chapéu de polícia e esfregou a cabeça naquele
gesto familiar, voltou a colocar o chapéu e acenou com a cabeça.
Avançaram juntos para a porta de uma casa de estuque creme,
com um telhado de colmo que se curvava junto às janelas da
frente da casa. Não havia luzes acesas por detrás das janelas,
nem fumo a sair da chaminé, como se a casa estivesse deserta. A
porta estava pintada de verde-vivo. Após baterem à porta, Dot
Bellamy abriu.
— Olá, sou o inspetor Davies — disse. Ela esboçou um sorriso
triste, dirigido a Hazel, e voltou a olhar para Aiden.
— A minha tia não está.
— Onde está ela, Dot? — perguntou ele.
Dot tirou um casaco forrado a pelo dos ganchos da parede,
junto à porta, e enfiou os braços nele de modo letárgico,
abotoando o casaco quase em câmara lenta, como se tivesse
acabado de acordar. De dentro da casa, o som de pelo menos
três cães, a ladrar em sintonia. Um gato tricolor tentou escapar-se
por entre as pernas de Dot, e ela afugentou-o para dentro. Cruzou
a porta e fechou-a. Com os sapatos castanhos poeirentos e o
cabelo solto e embaraçado, parecia mais a mãe de uma criança
pequena e menos a profissional elegante que fora ainda ontem. A
voz dela parecia exausta.
— Foi contar à filha, Iris, que vive ao cimo da rua. Diz que não
demora muito.
— Contar-lhe? — perguntou Aiden.
— Disse-me que quando a Hazel lhe apareceu à porta, na
semana passada, percebeu que tinha os dias contados. Está
pronta a enfrentar as consequências, mas quer explicar tudo à
filha.
— Onde mora a Iris?
Aiden afastou-se, como se se preparasse para correr para um
lugar que ainda não conhecia.
— Por favor, não faça isso — pediu Dot, com a voz embargada.
— Não há necessidade de a envergonhar.
Aiden fez que não com a cabeça.
— Dou-lhe um quarto de hora, e depois vou a casa da filha.
Dot anuiu, estoica.
— Sim. Querem entrar?
Aiden e Hazel abanaram a cabeça e Aiden respondeu:
— Esperamos aqui fora. Quinze minutos, não mais.
— Posso juntar-me a ti? — perguntou Dot. — Posso sentar-me
aqui contigo?
— Sim, por favor — respondeu Hazel, procurando na mulher
sinais da criança que tinha dentro de si, procurando a sua irmã.
Num banco de cimento no quintal da casa de Imogene Mulroney,
sentaram-se lado a lado, ambas cabisbaixas.
— Como passaste a noite? — quis saber Hazel. — Imagino que
isto te custe.
Dot sorriu, tristemente.
— Estou confusa. Tens de perceber, Hazel, estou a descobrir o
que me fizeram, mas, ao mesmo tempo, são a minha família, as
pessoas que amei durante o que achei ter sido a minha vida toda.
Não posso simplesmente virar-lhes as costas. Não sei fazer isso.
— Não estou a pedir… Não estamos a pedir que faças nada
disso.
Dot aproximou-se de Hazel.
— A minha irmã — disse ela. — Estou a lembrar-me de ti. Mas
a tia Imogene vai ser presa e…. — Voltou-se para o outro lado. —
Nem consigo pensar nisso.
Hazel permaneceu em silêncio, intuindo que Dot tinha mais para
dizer e não querendo adiantar-se às suas palavras.
— Sabes, muitas das pessoas que entrevistei quase não se
lembram da época em que estiveram deslocadas. Bloqueiam as
memórias. Entrevistei centenas, algumas até experimentaram
hipnoterapia. Eu tive sorte. Vivia numa aldeia perto de Newcastle,
chamada Wallsend. É um sítio para onde enviavam as crianças,
não de onde as tiravam. Nem consigo imaginar como teria sido se
me tivessem enviado para longe da minha família.
Hazel reteve a respiração, à espera de que Dot percebesse o
que acabara de dizer, e como estava errado. Foi o que aconteceu.
Dot susteve a respiração e levou a mão à boca.
— Meu Deus. Eu fui enviada para longe. Eu sou uma das que
não se lembram…
Hazel acenou com a cabeça.
— Sei que não te lembras, mas prometo-te que te vais lembrar.
O corpo de Dot pareceu paralisar, olhava fixamente em frente,
respirava a custo. Os minutos passaram, atingindo o quarto de
hora, até que Aiden voltou e berrou:
— Onde fica a casa da Iris?
Hazel olhou para ele e revelou a morada que tinha do dia em
que viera ali com Harry. Aiden dirigiu-se para lá, a duas ruas de
distância, enquanto Dot e Hazel ficaram à espera. Por fim, Dot
levantou-se e olhou para Hazel.
— As crianças que foram enviadas para longe nunca mais
foram as mesmas. Conversei com elas. Ouvi-as. Algumas acham
que perderam completamente a infância. Outras eram tão felizes
que nem sequer queriam voltar para casa. Algumas estavam
ansiosas por voltar a estar com as famílias. Mas,
independentemente de tudo, independentemente de ter sido bom
ou mau, nunca mais foram as mesmas. A experiência reformulou
as suas vidas. Meu Deus, como foi possível que as tenha
escutado a todas e não me tenha apercebido de que eu era uma
delas?
— Não sei, Dot. Mas vamos descobrir.
Dot abanava a cabeça e andava para trás e para a frente no
jardim, à medida que a suspeita de Hazel crescia: Imogene fugira.
Aiden irrompeu pelo portão, o rosto vermelho e manchado.
— Desapareceu. A Iris está inconsolável. Para onde raio foi a
sua tia? Diga-me imediatamente, Dot.
Dot soltou um grito.
— Oh, não… — Olhou para ele. — Não faço ideia. Juro. Pensei
mesmo que ela só queria contar a verdade à filha. — Dot
levantou-se e voltou-se para Aiden. — Não estou a mentir.
— Deu-lhe tempo para fugir? — A voz de Aiden soou zangada e
tensa, os dentes cerrados, as palavras saíam-lhe a custo.
— Não. Eu não sabia. Até agora mesmo, à medida que os
minutos passavam, não sabia que ela seria capaz de fugir. —
Hazel levantou-se e Dot olhou para os dois, com uma expressão
de luta contra as emoções que fervilhavam. — O que a tia
Imogene fez foi horrível. Terrível. Mas não sabemos porquê.
Tenho uma certidão de nascimento. Chamo-me Dorothy May
Bellamy.
— Vou encontrá-la — disse Aiden. — Não pode simplesmente
ter desaparecido.
Dot sorriu para Aiden, muito triste.
— Aconteceu comigo. Eu desapareci.
Nesse momento, ouviu-se uma voz por trás deles, aguda na sua
fúria:
— Olha só quem é ele, o guarda de Binsey, sempre galante,
mas incapaz de encontrar um coelho dentro da própria toca.
Voltaram-se todos e viram Imogene a contornar a casa,
dirigindo-se para o quintal. Dot correu para Imogene e abraçou-a.
—Querida tia! Não te foste embora. Que bom!
— Não, não fui. — Ela sorriu para Dot e deu-lhe palmadinhas no
braço, porém o rosto de Imogene tornou-se sério ao olhar para
Hazel. — Nunca te deixaria como esta aqui te deixou.
— Desculpe? — Hazel deu um passo em frente, com o calor a
subir-lhe ao rosto. Aiden segurou-a pelo braço.
— Deixa-a falar — disse ele baixinho, de forma que só Hazel
conseguisse ouvir.
Hazel percebeu o que ele quis dizer: ela que cavasse a própria
sepultura com as suas palavras. Que a fúria e a raiva
autojustificadas explodissem, podia ser que saísse também
alguma verdade.
— Senhora Mulroney — disse Aiden, com a mão no cinto de
cabedal de onde pendiam algemas do lado esquerdo, reluzentes
e prateadas à luz do Sol. — Sabemos que raptou a criança que
dava pelo nome de Flora Lea Linden, agora Dorothy May Bellamy.
— Raptei-a? Salvei-a! O que fiz foi salvá-la! Se não fosse eu,
ela teria morrido — gritou Imogene.
A mulher que Hazel tinha achado tão querida, sentada à mesa
com a filha e o neto, a comer biscoitos e chá, angelical no seu
amor, estava agora feroz e cheia de raiva. O seu casaco de lã
creme estava desabotoado, mas ela não parecia sentir frio. O
rosto contorcia-se.
— Salvou-a? — perguntou Aiden, enquanto abria as algemas.
— Tu! — exclamou Imogene, e apontou para Hazel. — A tua
mãe é que deixou a filha linda e perfeita ir viver para o campo sem
ela. Que tipo de pessoa é que dá a filha assim a alguém? Que
tipo de pessoa põe assim as filhas no comboio, para irem viver
com estranhos num sítio que nem sequer conhecem?
— Uma mãe a tentar proteger e salvar as filhas da guerra e das
bombas — disse Hazel, com as mãos cerradas em punhos. A
mulher parecia completamente louca, com os olhos a serpentear
entre Hazel e Dot.
— Querida tia — interrompeu Dot —, o que aconteceu? Conta-
lhes o que aconteceu para que saibam que não fizeste nada de
errado.
— Ali estavas tu, minha querida menina, com 6 aninhos. —
Imogene estendeu o braço para alcançar a mão de Dot, segurou-
a e encostou-a à cara. — Seis anos e sozinha, sentada numa
manta junto a um rio com uma corrente fortíssima enquanto esta
aqui — apontou o dedo a Hazel — fugia para a mata com aquele
rapaz, para fazer sabe Deus o quê, com aquela idade — tremeu.
— E deixou-te sozinha. — Largou a mão de Dot. — Depois, o teu
ursinho caiu ao chão, aquele peluche sujo com que te deixavam
andar.
— O Berry — disse Dot.
— Deixaste-o cair à beira do rio e baixaste-te para o apanhar. E
lá foste tu, desamparada. Caíste ao rio. Ficaste debaixo de água,
minha querida. Ficaste debaixo de água, só se viam os teus
caracóis loiros a flutuar à superfície. Corri em teu socorro. Entrei
naquela água gelada, agarrei-te, e depois, sim, levei-te para
Newcastle. Salvei-te.
— Então, como é que me tornei filha da minha mãe?
— A minha irmã, Claire, a minha pobre irmã linda, tinha perdido
a filha dela, da tua idade, que tinha morrido de tuberculose. E
Deus trouxe-te até nós para a substituíres. O teu nome, Dorothy,
significa dádiva divina.
Um grito monstruoso e obstinado cresceu dentro de Hazel, e ela
soltou-o.
— Usou a minha irmã para substituir uma criança morta? Deu a
Flora à sua irmã como se fosse um prémio de consolação pela
morte da filha dela? É louca?
— Não, sou perfeitamente sã e compreendi o que Deus queria
de mim. E tu? Sabes o que Deus quer de ti? — Imogene deu um
passo em frente e cuspiu para o chão junto aos pés de Hazel. —
Duvido muito.
Hazel sentia a fúria a queimar-lhe o peito. Esteve quase para
agarrar Imogene, abaná-la por causa da dor, da perda e das
mentiras.
— Por isso, como vês — disse Imogene —, salvei-a, não a
roubei. Se não fosse eu, teria morrido afogada. — E olhou para
Dot com tanta adoração que, por momentos, Hazel sentiu pena
dela. — Vês, minha Dot? És a única coisa boa. Tu.
— Mas depois, levou-a — disse Hazel. Ela tinha de fazer com
que a mulher continuasse a falar, a confessar, a desabafar na sua
loucura.
— Sim, levei-a. Vocês, que abandonam os filhos e perdem os
maridos, não eram de confiança. Vocês, que não rezavam na
paróquia e que tinham as vossas próprias cerimónias, que nem
sequer iam à escola… Salvei-a de todos vocês.
— Querida tia — disse Dot —, obrigada por me salvares.
Obrigada. Mas, ainda assim, devias ter contado à polícia.
— À polícia? Estás a falar a sério? Ao incapaz do Aiden Davies,
do vilarejo? — Lançou-lhe um olhar cruel. — Tu, minha querida.
Se não fosse por ti, eu não conseguiria suportar todas as vidas
que perdi, todos os rapazes que não consegui salvar.
Aiden avançou e abriu as algemas, mas Imogene estava focada
em Hazel.
Hazel não conseguiu ficar calada, o pesadelo da noite em que
perdera Flora ressurgia-lhe em imagens tenebrosas.
— Como é que a escondeu? — perguntou Hazel. —
Procurámos por todo o lado.
— Vocês são todos uns cretinos. Ela estava na igreja, comigo.
— Não — contrapôs Hazel. — Não pode ser. Eu fui à igreja.
Continua a mentir.
— Eu não minto.
— Não mente? O quê? Rapta, mas não mente? Que absurdo. E
como é que as outras enfermeiras não souberam?
Aiden interveio, com as algemas penduradas na mão.
— Interrogámos-vos a todas. A Flora não estava lá.
Dot disse:
— Escondeu-me numa igreja?
Tremeu, fitou ao longe, como se estivesse à procura daquela
imagem, de uma memória que pudesse estar por perto. Imogene
acariciou o ombro de Dot.
— Oh, Dot, estiveste lá muito pouco tempo, querida. Mesmo
muito pouco tempo. Foi só o tempo de eu fazer as malas. Só
queria manter-te em segurança até conseguir levar-te para
Newcastle, para a tua mãe.
— Eu quero compreender, tia. Salvaste-me do rio, depois
escondeste-me numa igreja, e depois levaste-me para Newcastle
para substituir a filha da minha mãe que tinha morrido? Tornei-me
essa filha? Estou a ouvir bem?
— Dito dessa maneira, é horrível, mas foi lindo, Dot. Lindo. —
Voltou a tocar no rosto de Dot. — Pensa na tua vida, nos teus pais
e na tua família, em quem te tornaste por minha causa. Nos teus
irmãos e tios.
Aiden disse:
— Onde está a sua mãe, Dot?
— Morreu de cancro da mama há três anos. — Dot olhou para
Aiden. — O meu pai morreu anos antes. Levaram esta mentira
para a sepultura? — Dot abanou a cabeça. — Que loucura é
esta?
— Sim. — A expressão de Imogene estava agora tresloucada,
como se estivesse a desfazer-se, com a máscara a cair. — Foste
a dádiva da minha irmã por ter suportado tanto sofrimento. Eras e
és o nosso tesouro encontrado na provação. — Olhou para as
estrelas. — A beleza em troca das cinzas.
Aiden observava em silêncio, mas Hazel não conseguiu conter-
se.
— Ela não foi uma dádiva; foi o vosso… saque. Achavam que
ela era um tesouro encontrado? O lugar dela era junto da mãe e
da irmã. Junto de mim. — Hazel debruçou-se, e colocou as mãos
nos joelhos para recuperar o fôlego.
Imogene soltou um riso irónico.
— Aí é que te enganas. O lugar dela sempre foi junto de nós.
Olha só para a vida que lhe demos.
Foi aí que Hazel se apercebeu, como um murro no peito. Não
tinha sido uma coruja, nem imaginação sua, o som de choro que
escutara na noite em que tremia de febre e chorou no altar da
igreja, e em que jurou nunca mais voltar a ver Harry nem escrever
mais nenhuma história. Tinha ouvido o choro de Flora. Ali tão
perto. Flora estivera mesmo ali, a centímetros de distância.
— Eu ouvi-te — disse Hazel, sentindo uma força a invadi-la. —
Eu estava lá. Pensei que era uma coruja, ou os meus próprios
soluços, mas ouvi-te. Fui à igreja a meio da noite. Jurei encontrar-
te. Podia ter-te salvado! Eu estava… ali mesmo.
Imogene riu-se, de forma grosseira e áspera.
— Agora, sai do meu jardim. Sai da minha propriedade e deixa-
nos em paz.
Ao ouvir isto, Aiden aproximou-se rapidamente de Imogene,
segurando as algemas, soltas e sonantes ao vento.
— Estive muito tempo à espera para dizer isto — disse Aiden.
— Imogene Mulroney, está presa pelo rapto de Flora Lea Linden,
a 19 de outubro de 1940. Não é obrigada a dizer nada. Mas pode
prejudicar a sua defesa se, quando for interrogada, não
mencionar algo que utilizar posteriormente em tribunal. Tudo o
que fizer ou disser pode ser utilizado como prova.
— Está a prender a pessoa errada — gritou Imogene. — A
minha sobrinha estaria morta se não fosse eu.
Deu uns passos atrás, tropeçou, endireitou-se e depois correu
para a porta das traseiras.
Aiden alcançou-a em três passos largos, colocou-lhe
bruscamente as mãos atrás das costas e trancou as algemas.
Hazel assistia, horrorizada, com uma sensação crescente de que
estava a escorregar, como se fosse ela que estava a cair ao rio.
Dot e Hazel ficaram a ver Aiden Davies levar Imogene. Ouviram
a porta do carro da polícia a bater e a sirene quando partiram.
Dot deixou-se cair no banco.
— Porque é que eu tinha de fazer isto? Ela implorou-me para
não escrever as histórias. Avisou-me que iam trazer à tona feridas
antigas. E eu não lhe dei ouvidos.
Hazel sentou-se ao lado da irmã e sentiu a criança dentro de
Dot a refugiar-se, a esconder-se por detrás das histórias falsas
que Imogene tinha lançado ao ar matinal. Hazel sentiu Flora, com
6 anos, escondida debaixo das mentiras de Imogene para que Dot
não descobrisse nem se tornasse quem tinha sido antes.
— Lamento mesmo muito — consolou-a Hazel. — Foi terrível
teres de assistir a isto. Sei que a amas, mas é importante que
saibas que aquilo que ela disse sobre mim, sobre a Bridie, o Harry
e a mãe, nada daquilo é verdade. Nunca ninguém te deixou;
ninguém era mau; ninguém te abandonou. Eras, e ainda és,
profundamente amada.
— Não sei em que acreditar — disse Dot, endireitando-se,
afastando o cabelo do rosto e mordendo o lábio. — Porque me
levaria se não estivesse a ajudar-me?
— O luto é um sentimento terrível e corrosivo, leva-nos a fazer
coisas que nunca faríamos de outra forma. É evidente que ela se
convenceu de que o que tinha feito era bom e justo, quando na
verdade…
Dot ergueu a mão para interromper Hazel.
— Deixaste-me sozinha?
Hazel hesitou, mas não ia empilhar mais mentiras em cima de
mentiras, porque se afundaria sob o seu peso.
— Sim — reconheceu Hazel. — Deixámos. Deixámos-te
sozinha.
— Deixámos?
— Eu e o Harry. O rapaz de quem te falei ontem, o que vivia
connosco. Deixámos-te sozinha por uns minutos. Estavas a
dormir.
— Então, talvez a tia tenha feito bem em salvar-me?
— Talvez. Talvez te tenha salvado do rio, só que depois levou-
te, Flora. Levou-te para uma vida nova, longe da tua mãe e da tua
irmã.
— O meu nome é Dot.
— Sim — concordou Hazel.
— Levou-me por amor — disse Dot. — Ela disse que foi por
amor.
— Amor? — questionou Hazel, tentando abafar a sua raiva. —
Isso é um disparate pegado.
Dot abanou a cabeça.
— Tens de tentar compreender. Eu não fazia ideia. Ideia
nenhuma. Como é que eu posso ter sido duas pessoas durante
este tempo todo? E nem sequer posso perguntar aos meus pais,
porque também já não estão cá. Também esconderam isto de
mim? Os meus irmãos são mais novos, não têm como saber. Mas
a Imogene e os meus pais? Os outros familiares que eram vivos
antes de eu chegar? Esses esconderam isto de mim.
— As famílias têm segredos. Todas têm — disse Hazel. — Mas
tens uma mãe aqui mesmo, neste mundo, que chorou por ti e
esperou pelo teu regresso durante vinte anos.
Dot baixou a cabeça.
— Não sei em que acreditar. Tenho tido uma boa vida, Hazel.
Uma vida ótima. Não suporto a ideia de ter sido tudo mentira.
— Percebo o que estás a dizer, e tenho a certeza de que
grande parte dela não foi mentira. Mas as origens, a verdade
sobre de onde vens, isso era mentira. E pode ter sido uma vida
perfeita, porém não era verdadeira. Havia outra vida sempre
contigo, a correr ao teu lado. Sei que sentes isso.
Hazel estava agora desesperada, precisava de fazer Dot
compreender que tudo aquilo que tinha acabado de jorrar da boca
de Imogene era sujo e falso, corrompido por uma loucura
sobranceira.
Dot tremeu e enfiou as mãos nos bolsos, voltando a refugiar-se.
— Preciso de tempo. A tia deu à irmã aquilo que achou que
Deus lhe tinha enviado: a mim. Foi uma escolha terrível, mas ela
amou-me e cuidou de mim a minha vida toda. É impossível
conciliar as duas coisas.
Hazel colocou a mão sobre a perna de Dot, e Dot afastou-se. A
dor pela possibilidade de Flora voltar a desaparecer inundou
Hazel de infelicidade. Ela não podia perder a irmã duas vezes.
— Vem comigo, Dot. Agora mesmo, vem comigo a Binsey. Ter
com a Bridie.
— Não, tenho de ir para casa. Tenho de ir ter com a Iris e tentar
corrigir o que foi feito.
— Não é possível desfazer isto. Acredita em mim. Tenho
tentado corrigir o dia em que desapareceste ao longo de vinte
anos. Por favor, vem comigo, mesmo que seja só para o teu
artigo. Vamos visitar a Bridie.
Dot tremeu, abotoou o casaco até cima, e aconchegou o
cachecol cinzento à volta do pescoço, como se estivesse a
proteger-se. Levantou-se, e Hazel levantou-se também. Dot deu
dois passos para trás e Hazel disse a única coisa que lhe veio à
cabeça, no seu pânico.
— Existiu outrora e ainda existe um lugar invisível que está
mesmo ao nosso lado.
Dot parou e virou-se para Hazel, abraçando-se e esfregando os
braços com as mãos.
— Está bem. Leva-me a Binsey.
CAPÍTULO 52

20 de março de 1960

A porta azul do chalé estava aberta e Bridie estava a ver Hazel e


Dot percorrerem a estrada. Hazel abriu o portão e Bridie desceu
as escadas para o carreiro. O cabelo dela, grisalho e castanho,
pendia-lhe solto sobre os ombros.
— Olá! — chamou enquanto pisava de laje em laje, como se
estivesse a atravessar um rio de pedra em pedra, e encontraram-
se a meio do caminho. — Hazel, que bela surpresa!
Bridie parou de repente, fitou Dot Bellamy, levou ambas as
mãos ao peito e inspirou fundo. Quando expirou, soltou um grito,
a expressão reluzente de reconhecimento e alívio. Em vez de
abraçar Dot, como Hazel achou que ela faria, pegou-lhe nas mãos
e beijou a palma de cada uma.
— Flora, é claro que vieste hoje, porque hoje é o primeiro dia de
primavera.
O rosto de Dot vacilou, mas ela permaneceu quieta e direita.
— Na última semana, sonhei com isto duas vezes — disse
Bridie, e olhou para Hazel. — Pensei que era porque a Hazel me
tinha vindo visitar, mas não, era porque estavas a caminho. Devia
ter adivinhado. Como chegaste até aqui?
— Isso é uma longa história — replicou Dot, com hesitação. —
Estava a tentar escrever um artigo para uma série que estão a
fazer sobre as crianças perdidas do Flautista de Hamelin —
continuou, sem tirar os olhos de Bridie. — Não sabia a verdade
sobre quem era, ou sobre quem podia ser, até ontem.
Bridie não tentou esconder as lágrimas, olhou diretamente para
Dot.
— Encontraste-te — disse.
— Ainda não sei bem — respondeu Dot. — As minhas
memórias estão baralhadas. Estou confusa, mas sim, sei que já
me chamei Flora. Só que, ao mesmo tempo, não sou a Flora
porque sou a Dorothy May Bellamy. — Sorriu, desconfortável. —
Na verdade, sou a Dorothy McCallister, porque sou casada, mas
uso o meu nome de solteira na revista.
— Ao que parece — Hazel dirigiu-se agora a Bridie —, a
Imogene Wright raptou a Flora naquela tarde, na festa de Santa
Frideswide.
Bridie fechou os olhos e abriu muito os braços, erguendo o rosto
para o sol.
— Obrigada por a trazeres para casa. E agora — disse para as
duas —, entrem. Vamos beber um chá. Deixemos as memórias a
apurar um pouco.
O ruído da gravilha, o rugido baixo de um motor, e todas se
voltaram e viram a carrinha Volkswagen vermelha de Harry a subir
a estrada, com demasiada velocidade, envolta em pó e gravilha
como se fossem fumo. Carregou a fundo nos travões, que
guincharam alto. Saiu pela porta do condutor, que deixou aberta,
e pulou em direção a elas.
— Harry — disse Dot, baixinho, acenando a cabeça na direção
do homem que corria para junto delas. — Sim, este é o Harry.
Vestido de calças de ganga pintalgadas de tinta e uma T-shirt
preta, um boné cinzento a tapar-lhe os caracóis, chegou ao lado
delas e olhou-as com interesse. Primeiro, deu um beijo na
bochecha da mãe e depois na de Hazel. Ela sentiu a excitação
única do toque dele, ainda que breve. Ele olhou para Dot.
— Olá, sou o Harry Aberdeen. — Estendeu-lhe a mão.
Dot sorriu.
— Eu sei. — Ela apertou-lhe a mão. — Eu sou a… — Hesitou, e
depois disse, com convicção: — Sou a Dorothy Bellamy, da
revista Vanity Fair.
— Ah, a mulher que está a escrever os artigos. — Harry olhou
para Hazel, à procura de respostas.
— Sim — respondeu Dot.
— Quer entrevistar-nos? — perguntou ele.
Hazel sorriu para Harry, e apontou com o queixo para Dot.
— Harry, olha. Olha com atenção.
Harry voltou a olhar para Dot, e Hazel viu o reconhecimento
iluminar-lhe o rosto, invadir-lhe a consciência, como se estivesse
a assistir a um pôr do Sol.
— Flora.
— Sim — disse Dot, com um sorriso, o primeiro pleno e
verdadeiro que Hazel via.
Com ele, a esperança cresceu.
— Voltaste — disse Harry, com a voz a falhar. Abraçou Dot. Ao
princípio, ela ficou rígida como uma tábua, mas depois
descontraiu e devolveu-lhe o abraço com um riso desconfortável.
— Bem, não há dúvida de que tu és o exuberante da família.
Ela tem graça, pensou Hazel. Tanto para aprender sobre uma
mulher que já foi uma criança que Hazel conhecia tão
intimamente como a si mesma.
Harry deu um passo atrás.
— É o milagre que todos esperámos e pelo qual todos rezámos
ao longo destes vinte anos. Como?
Hazel olhou para Harry, intrigada.
— E porque estás tu aqui?
— A minha mãe ligou-me hoje de manhã, disse-me que
precisava de me ver.
Bridie encolheu os ombros.
— Só não sabia porque precisava dele aqui, agora é que
percebi.
Harry abanou a cabeça, tirou o boné e segurou-o nas mãos.
— Pensei que era para levar o cortador de relva avariado para o
celeiro.
— Sim, se não te importares. Bem me parecia que havia mais
qualquer coisa. — E beijou a cara do filho.

Dot Bellamy escutava e observava estas pessoas que devia


conhecer conversarem umas com as outras com alegria pelo seu
regresso. Observou o chalé, o pasto verde, o celeiro vermelho e o
cortador de relva avariado e ferrugento no relvado. Viu o freixo e o
tojo a rebentar com pequenas flores amarelas à beira do caminho
de lajes. Ali estava Hazel, com os caracóis castanhos apanhados
num carrapito baixo, e olhos castanho-dourados que Dot
reconhecia, de alguma forma. Ali estava Bridie, com o seu sorriso
caloroso e a sua voz doce. E sim, ela conhecia Harry; sentiu-o
assim que ele saltou da carrinha velha aos pulos e com aquele
sorriso aberto. Qual o significado disto tudo?
Na noite anterior, não tinha conseguido contar a Russel o que
tinha descoberto sobre o seu passado e a sua identidade, ainda
não. Com o filho de 4 anos, Connor, a saltitar à volta dos dois, a
implorar que um deles o ajudasse a montar o puzzle dos
dinossauros, Russel tinha perguntado distraidamente a Dot como
tinha corrido a entrevista sobre a Criança do Rio com a mulher de
Londres. Ela respondeu que estava com uma dor de cabeça
terrível e que tinha de ir para a cama cedo. Não era mentira.
Quando Russel se foi deitar, fingiu estar a dormir, mas não tinha
dormido nada. Antes do nascer do sol, levantou-se e esgueirou-se
de casa para ir até Henley-on-Thames confrontar a tia Imogene.
Como é que Dot podia dizer ao marido e ao filho que era outra
pessoa quando ela própria ainda não tinha conseguido
compreender?
É verdade que a tia Imogene sempre fora um pouco estranha, a
acolher os feridos e perdidos no jardim e em casa, desde plantas
até animais, com o marido a doar coisas quando a apanhava de
costas. Mas nunca fora mesmo maluca, nunca louca. Ou será que
sim? A tia Imogene nunca tinha gritado sobre salvar crianças,
nem sobre rios nem igrejas. Dot nunca tinha visto, nem pelo canto
do olho, nada parecido com o que se passara no dia anterior. Dot
nunca tinha imaginado que o único segredo que Imogene
guardara tinha sido ela. Que ela, Dot Bellamy, era o objeto salvo
que impedia que Imogene se tornasse verdadeiramente louca.
Agora, em casa de Bridie, recuou e colocou uma mão sobre o
poste da cerca. Sim, o lugar era-lhe familiar da mesma forma que
imagens fragmentadas lhe tinham surgido no The Perch no dia
anterior, mas os seus pensamentos estavam desorganizados. A
sua querida Imogene tinha sido presa, a sua infância roubada ou
salva — como poderia ela saber?
Harry sorriu-lhe.
— Estás bem?
— Não. — Dot procurou um sítio para se sentar e encontrou um
fardo de palha. Hazel sentou-se ao seu lado. Mas Dot precisava
de ar e de espaço. Precisava de tentar lembrar-se do passado
sem aquelas pessoas todas a olharem para ela, as mesmas
pessoas que diziam que a amavam e que a conheciam. Voltou a
levantar-se e pôs-se a andar de um lado para o outro. — Preciso
de… Não sei.
— Demora o tempo que precisares — disse Bridie. — Queres
algo para beber?
— Sim — respondeu Dot. — Por favor.
Ao longe, ou talvez ao perto, uma coruja soltou um longo pio,
uma canção lamentosa e saudosa. Bridie parou e voltou-se:
— Um canto diurno — observou ela. — Que lindo.
A voz de Bridie instalou-se algures no íntimo de Dot e ela olhou
para o pasto onde restos de madeira queimada de várias cores,
de uma fogueira apagada, brilhavam ao sol do meio-dia. Uma
fogueira.
Harry deu resposta à confusão que sentia.
— O rio fica mesmo ali, por trás daquele monte. Corríamos até
lá quase todos os dias.
Dot acenou com a cabeça, mas não olhou para ele. Sentia-se
arrebatada pela sensação ondulante, estonteante, de queda, de
escorregar para outra vida. A coruja piou novamente, o seu canto
a quebrar os alicerces das mentiras, as memórias a emergirem
como fumo das fissuras.
Agora, tem 6 anos, está deitada numa manta vermelha e
alguém está a chamá-la pelo nome. Não o nome que usa agora, e
sim o seu primeiro nome: Flora.
— Flora!
Está a dormir ao sol da tarde, com uma manta de lã axadrezada
a tapá-la, e o Berry aninhado debaixo do braço, com o pelo a
roçar-lhe a cara, quando uma voz familiar a acorda de uma sesta
profunda.
Acorda, levanta-se e caminha na direção da voz. Mas depara-se
com o rio estrelado, o rio do qual a irmã nunca a deixa aproximar-
se demasiado. O rio do seu mundo mágico do Bosque dos
Sussurros. Aproxima-se ligeiramente, tropeça, e o Berry cai perto
da água.
Aquela voz volta a chamar por ela, e ela tropeça, as galochas
verdes não conseguem agarrar o chão.
Frio! O som do corpo a cair à água, o choque das águas de
outubro, o baque do rio contra o peito. Está a rolar, pedras atrás
de pedras, lisas e arredondadas, debaixo de água. Sustém a
respiração até queimar e pensa que talvez consiga tomar fôlego,
sabendo que a água é feita de estrelas.
Em vez disso, levanta a mão e uma outra mão puxa-a para cima
e para fora da água. Suga o ar, tosse e cospe, confusa e com frio.
Está deitada de costas, a ver o céu.
Dot Bellamy arfou, ao lembrar-se, e virou-se de repente para
Harry e Hazel, com as mãos entrelaçadas com tanta força que
chegavam a doer.
— Ela chamou por mim. Chamou-me pelo nome. Foi a voz da
Imogene que me surpreendeu e me fez caminhar até ao rio.
Bridie voltou e ofereceu a Dot um copo de água fresca com um
raminho de alecrim. Dot deu um grande gole.
Todos a observavam, em silêncio, deixando-a encontrar o
caminho.
— Não caí por acaso. A tia Imogene chamou-me. — Dot fechou
os olhos e oscilou no sonho febril em que se afogava. — Meu
Deus, os sonhos que eu tenho sobre estar presa num quarto
pequeno. Essas imagens não saíram dos contos de fadas, esses
sonhos não saíram das lendas do Barba Negra nem de
pesadelos, nem da mitologia, como me diziam a minha mãe e a
minha tia. Esses sonhos saíram da minha vida. Da minha vida
muito real.
— Vamos para dentro? — perguntou Harry, preocupado.
— Não — disse Dot. — A verdade está ali, na paisagem, na
geografia deste lugar.
— Sim — concordou Bridie.
Dot voltou a sentar-se no fardo de palha.
— A minha vida foi uma mentira.

Hazel permaneceu muito quieta enquanto Dot falava, porque


tudo aquilo que pensava ter acontecido estava agora do avesso.
Ela e Harry não tinham perdido Flora. O beijo deles não tinha
causado o seu desaparecimento. O Bosque dos Sussurros não
tinha arrastado Flora na corrente do rio. O mundo mágico que
Hazel tinha ocultado durante todos aqueles anos — o mundo que
ela achava que tinha destruído a sua vida, a vida da sua mãe, a
vida dos Aberdeens — afinal tinha preservado a sua magia,
aproximando-os cada vez mais, até este dia, em que se
encontravam no terreno de Bridie e Harry Aberdeen.
Um peso que Hazel carregara durante mais de metade da sua
vida evaporou-se das omoplatas, das fendas do seu coração.
Dot olhou diretamente para Hazel e, como se soubesse que
eram estas as palavras que Hazel precisava de ouvir, falou
devagar, pronunciando cuidadosamente cada palavra:
— Ela raptou-me. Acordou-me e chamou-me para junto do rio.
Sei que só tinha 6 anos, mas essa memória é clara. Nada do que
se passou em torno disso faz sentido ainda, mas essa noite…
Sempre achei que era um pesadelo recorrente, só que agora vejo
que era verdade.
Bridie sentou-se ao lado de Dot no fardo de palha.
— Naquela época, todas as enfermeiras andavam sempre com
codeína, aspirina e Nembutal no bolso das batas. Acho que
foste…
— Não precisa de dizer — interrompeu Dot. — Sim, ela deu-me
o comprimido branco e amargo, que pica. Sim.
Hazel e Harry entreolharam-se e, na sua linguagem secreta,
ambos perceberam. Não a perderam. Em vez disso, Flora tinha
sido atraída para longe, como se Imogene Wright tivesse tocado
flauta e usado um chapéu vermelho de flautista. Olharam um para
o outro com compaixão.
— Devia andar atrás de ti — disse Harry, ainda com os olhos
em Hazel. — Seguiu-nos.
Dot olhou para Hazel.
— Porque é que aquela americana escreveu sobre o Bosque
dos Sussurros? Porque não foste… tu?
— Tinha voltado as costas à história — respondeu Hazel. — Já
tinha escrito quase tudo, mas na noite em que a Flora… em que
tu desapareceste, atirei as páginas ao rio, e pedi às águas que
levassem a história para longe de mim e te trouxessem para casa.
— Casa — repetiu Dot, como se estivesse a experimentar a
palavra na língua pela primeira vez. Uma brisa varreu o ar e uma
nuvem baixa moveu-se; o sol ficou exposto, enviando calor e luz
ao pasto.
Bridie sorriu para Hazel.
— O invisível aqui tornou-se visível.
Hazel fitou Bridie, precisava que ela compreendesse.
— Pensava que tinha sido a minha imaginação a condenar-nos.
— Não foi — disse Harry.
Hazel sentiu as lágrimas a subir.
— Agora, percebo isso. Não foi o meu amor que a perdeu, e
não foi a minha história sobre o Bosque dos Sussurros que a
mandou embora. Durante todo este tempo, acreditei que essas
duas coisas estavam no centro do desaparecimento dela.
— Amor? — perguntou Harry.
— Por ti, pelo Bosque dos Sussurros. Pelos dois — disse ela, e
voltou-se para Dot. — Mas não foi o meu amor pelo Harry que te
perdeu; foste literalmente raptada por uma enfermeira perturbada
pela guerra, de cabeça perdida, que perseguiu e raptou uma
menina.
— Como? — perguntou Dot. — Como é que amor e imaginação
poderiam ter causado a minha perda?
— Não causaram — disse Hazel. — Eu é que pensei o
contrário.
Dot levantou-se, deu alguns passos na direção de Hazel e fitou-
a, olhos nos olhos, cara a cara, e depois fez aquilo que Hazel
tinha desejado, almejado e com que tinha sonhado durante mais
de vinte anos: Flora Lea Linden pôs os braços à volta da irmã e
abraçou-a com força.

Mais tarde, depois de Dot ter percorrido a casa com lágrimas a


escorrer pela cara, parou em frente à porta do pequeno quarto
que tinham em tempos partilhado, ao lado da cozinha, e disse:
— Há outras imagens, mas não sei como reconstruí-las.
Sinceramente, depois do rio, só me lembro de Newcastle, da
universidade, do Russel e do Connor e, depois, de procurar as
crianças perdidas da Operação Flautista de Hamelin. — Dot
entrou no quarto de infância e afagou a cómoda de pinho com a
mão. — Ela roubou-me, escondeu-me numa sala escura da igreja,
sozinha, e depois levou-me para Newcastle. Não conseguiria ter
imaginado esta narrativa, apesar de todas as histórias que escrevi
sobre crianças perdidas. Meu Deus, sou uma delas. Estava tão
certa de conhecer a minha família. Quatro irmãos. Uma mãe e um
pai, que já partiram, mas que me amavam.
Voltou-se para Harry, Hazel e Bridie.
— Tenho uma família grande e alargada, incluindo a tia
Imogene. Sou uma Bellamy, tão orgulhosa da minha família que
assinava com o meu nome de solteira. Que loucura é esta? —
perguntou Dot, com a voz a subir de tom, a falhar-lhe. — Eu não
era uma dádiva divina. Era… O que era eu?
— Eras a Flora Lea Linden — respondeu Hazel.
— Nunca desististe. Cumpriste a tua promessa.
Ao ouvirem o apito da chaleira, seguiram Bridie até à cozinha e
sentaram-se à mesa, a lareira pintalgada com as cinzas de um
fogo apagado. As janelas estavam abertas, o canto dos pássaros
enchia a cozinha. Estavam sentados muito juntos, com os joelhos
a tocarem-se, e inclinaram-se mais para a frente com a chegada
das chávenas de chá a fumegar e bolinhos com cobertura glacé,
tal como quando eram crianças.
Hazel estava sentada ao lado de Harry, atarantada com a
consciência de que a irmã estava sentada defronte dela. Durante
todos aqueles anos, Flora tinha estado apenas a algumas horas
de distância de Londres, numa aldeia remota, com uma outra
mãe.
Dot olhou em volta.
— Parte de mim compreende o motivo por que ela fez o que fez,
embora não lhe perdoe. Ela estava traumatizada. Sinto-me muito
triste por ela. Perdeu tanto, e acredita verdadeira, mas
erradamente, que me salvou. A minha pobre tia tem passado a
vida toda a tentar salvar coisas.
— Ela não te salvou. — Hazel apertou a borda da mesa.
— Eu sei, porém convenceu-se do contrário. Mas fala-me mais
do nosso mundo imaginário — disse Dot. — O Bosque dos
Sussurros.
— Sim — acedeu Hazel.
Dot fechou os olhos.
— Bosque dos Sussurros. Bosque dos Sussurros. Bosque dos
Sussurros. — Abriu os olhos. — Vocês percebem o que a história
fez, não percebem? — Dot fez uma pausa. — A história trouxe-
me até aqui, de volta a todos vocês.
— Sim — disse Hazel, com algo dentro dela a mover-se, como
se estivesse à procura de um novo lugar onde assentar.
— Todos estes anos — continuou a irmã, inclinando-se para a
frente —, tenho escrito sobre as crianças perdidas do Flautista de
Hamelin. Um rapaz que foi atropelado por um carro durante a
retirada, outros que fugiram…
— Como a Kelty — interrompeu Hazel. — Ela fugiu.
— Kelty… — Dot abanou a cabeça. — Conheço-a, não
conheço? Pelo menos o nome?
— Conheces, sim — disse Hazel. — Vais conhecê-la.
— Escrevi sobre aquelas pobres crianças no navio que foi
atacado por um torpedo a caminho dos Estados Unidos. A seguir,
queria escrever sobre a Flora, sobre…
— Sobre a tua própria vida — disse Bridie. — Sobre uma
criança perdida… agora encontrada.
Dot voltou-se para Bridie.
— Eu sonhava com crianças perdidas, estava obcecada com
escrever sobre elas. O meu marido, o Russel, diz que me
preocupo demasiado com elas. Diz que me rouba tempo com ele
e com o nosso filho de 4 anos, o Connor. Talvez ele tenha razão,
não sei. Mas algo dentro de mim não conseguia deixar-me parar
de escrever sobre elas e de as procurar.
— No fundo, sabias — disse Hazel.
— Tens um filho? — perguntou Bridie.
— Sim. Ele é incrível.
— A tua mãe tem um neto — disse Bridie a Hazel. — Que
maravilha.
Dot ergueu a chávena de chá e segurou-a na mão, sem beber
um gole.
— Quando a Hazel começou a contar-me o início do Bosque
dos Sussurros ontem, no The Perch, lembrei-me de fragmentos
soltos daquele dia. Continuo sem perceber tudo, mas prometo
chegar lá. — Dot voltou-se para Hazel. — Como é que a história
foi parar aos Estados Unidos?
— Lembras-te de uma mulher chamada Maria, que ajudou a tua
mãe e outras mães durante a guerra? Uma mulher que ajudava a
tomar conta das crianças e a ensiná-las?
— Lembro-me de que havia algumas voluntárias americanas,
mas não me lembro de nenhuma chamada Maria.
— Bom, parece que havia uma. Contaste-lhe a história e
usaste-a para te acalmares, para te confortares. Essa mulher, a
Maria, levou a história para os Estados Unidos e contou-a à irmã,
Linda, para a ajudar a acalmar a filha dela, Peggy, que também
tinha perdido o pai na guerra.
— Que maravilha — disse Dot. — Que coisa maravilhosa. Uma
história que me contaste ajudou-me quando eu estava triste e
confusa, e depois atravessou o oceano para nos voltar a juntar.
— Hazel, querida — disse Bridie —, podes ter-te afastado do
Bosque dos Sussurros, mas o bosque encontrou-te, manteve-se
incansável na sua procura por ti, para voltar a trazer-nos a todos
para casa.
Hazel acenou com a cabeça; por muito que adorasse histórias,
havia coisas que estavam para além das palavras. Ficaram ali
sentados, em silêncio, enquanto a cozinha de Bridie resplandecia
com a luz da tarde e, lá fora, a primavera irrompia do chão,
renascida. Um novo começo para tudo.

Depois de Dot sair para apanhar o comboio para casa, Harry e


Hazel ficaram no exterior da casa de Bridie. A noite estava fresca
e limpa, o céu cor de índigo, salpicado de estrelas com os seus
padrões fixos. Corria uma brisa, aromática com as rosas de Bridie
a florir ao longo da trepadeira da vedação.
Hazel sentiu o corpo de Harry junto a si, o desejo por ele tão
forte como naquela tarde de 19 de outubro, na festa de Santa
Frideswide, quando o beijo dele a tinha feito esquecer a razão e
as responsabilidades. E, no entanto, este desejo, embora
igualmente forte, era também diferente. Porque tinha sido forjado
pelo tempo e por outros homens, por erros e sofrimento e perda.
Enquanto Hazel perscrutava o coração em busca do que dizer,
ou de como se despedir, Harry falou primeiro.
— O dia de hoje. É um milagre, não é?
— Eu acho que sim — respondeu ela. — Embora não saiba
bem como definir um milagre. Uma menina conta uma história a
uma voluntária americana. Essa mulher leva consigo essa história
para o outro lado do oceano até à sobrinha, outra criança que
perdeu o pai. Essa criança cresce, escreve a história e adorna-a,
fá-la crescer para se tornar mais do que alguma vez tinha sido.
— E depois — acrescenta Harry —, essa mesma história vai
parar a uma mesa precisamente na livraria da qual estavas a sair
naquele dia.
— Sim. É possível que hoje seja um milagre. Tens razão.
— Nunca desististe, Hazel. Nunca te rendeste à ideia de
ninguém sobre em quem devias acreditar e sobre o que devias
fazer.
Hazel deixou a dádiva daquelas palavras caírem sobre ela.
— Harry, abdiquei de tantas coisas na minha vida. A sério.
Perdi-me em muitas coisas que não me faziam bem, mas desta
crença, de que podia encontrar a Flora, nunca desisti.
— E de nós? — perguntou ele.
— Nós?
— Desististe de nós? Deixaste de acreditar em nós?
Ela não estava certa de perceber o que ele queria dizer.
— Como assim? — perguntou ela. E voltou-se para ele. —
Acreditar? Acreditar em quê? Perdemo-nos um do outro.
— Pensávamos que não tínhamos escolha — disse ele. —
Partimos do princípio de que nunca poderíamos ter-nos um ao
outro, mas estávamos enganados.
A voz dele falhou. O olhar dele estava tão focado no dela, como
se estivesse à procura de algo que não conseguia encontrar. Ela
queria dar-lho; fosse o que fosse que ele procurava, queria
desesperadamente dar-lho, porém ainda não sabia o que era.
— Escolha — repetiu ela, sentindo as possibilidades entre eles
finalmente aproximarem-se o suficiente para serem reais.
— O que queres, Hazel? O que é verdadeiro para ti?
— Não sei. Mas uma coisa é certa: acredito que sempre
busquei o sentimento que tivemos.
Seria sincera, só lhe restava isso agora.
— Sim — disse ele.
Os seus olhares cruzaram-se.
— Só que não é possível recuperar o que tínhamos, Harry.
Agora, temos a Dot, mas ela não é a Flora com 6 anos; não
podemos recuperá-la.
— Não sei se se trata de recuperar seja o que for. — Ele olhou
para o céu e depois voltou a olhar para Hazel. — Trata-se de ter
aquilo que está aqui mesmo, agora mesmo, e não desperdiçar o
que resta.
Hazel escutou aquelas palavras como se fossem uma canção, a
essência de uma verdade que ela não tinha visto. Naquele
momento, Bridie saiu de casa e entregou o casaco a Hazel.
— Estás pronta, querida? Eu levo-te à estação.
— Sim. — Sorriu para Bridie. — Estou pronta.
Harry beijou Hazel na cara e ficou a vê-la afastar-se com a mãe
dele.
Uma escolha? Era isso a liberdade, pensou ela, a possibilidade
de fazer uma escolha que nunca pensou vir a ter a oportunidade
de fazer. Mas tinha de ter cuidado. A liberdade, por muito
fascinante que fosse, também tinha um preço.
CAPÍTULO 53

Março de 1960

Uma semana depois de descobrir a verdade sobre o seu


passado, Dot Bellamy estava sentada na biblioteca da sua casa,
na zona norte de Londres; um candeeiro de mesa de bronze
emitia uma poça de luz sobre a máquina de escrever, uma
Underwood castanho-acinzentada pousada sobre uma secretária
de mogno escuro. Dot escrevia ao ritmo que os seus dedos
conseguiam acompanhar. Russel e Connor estavam a dormir
profundamente e o relógio pousado em cima da lareira de pedra
indicava duas da manhã. Mas ela não estava nada cansada.
Aiden tinha pedido a uma psiquiatra para ir a casa de Dot, a
Dra. Maisel, uma especialista em traumas de guerra na infância.
Ela explicou-lhe que as pessoas bloqueavam memórias horríveis,
que uma mentira contada vezes sem conta se tornava a verdade
sobre o passado, mas também que o cérebro retém essa
verdade, e que o subconsciente de Dot tinha tentado avisá-la
vezes sem conta, em sonhos, alusões e imagens, até ela dar
ouvidos. Os especialistas chamavam-lhe reenquadramento da
memória, e aquilo acontecera quando Dot ainda era
suficientemente pequena para um adulto conseguir mentir e
alterar os alicerces e fundamentos da sua primeira infância.
Se Dot voltasse a sonhar que estava a afogar-se ou presa,
saberia o que era: uma mensagem para se lembrar, e não uma
premonição do futuro. Apercebeu-se de que a família Bellamy
deve ter-lhe permitido contar a história do Bosque dos Sussurros
para a reconfortar e, com o tempo, deixá-la-iam desvanecer;
deixariam a sua família verdadeira e a história do Bosque dos
Sussurros desaparecer num passado nebuloso.
A sua vida tinha sido boa, vivida numa pequena vila nos
arredores de Newcastle, uma infância passada ao ar livre, na
natureza, com uma família divertida e barulhenta. Mas a sua vida
também tinha sido uma mentira. Ainda estava a tentar perceber
se o embuste invalidava as partes genuínas da sua vida.
Dot ainda não tinha contado a Hazel e a Camellia, mas estava a
escrever todas as memórias dispersas de que se lembrava, para
construir uma história coesa do dia do seu desaparecimento.
Escrever era a única forma que ela encontrava de dar algum
sentido à loucura do mundo em que se encontrava. O marido e o
filho estavam confusos; os seus irmãos estavam perturbados; a
tia Imogene estava presa, com um julgamento pela frente.
Quando imaginava perder o filho, o seu adorado Connor, a dor era
avassaladora, contudo a sua mãe tinha sobrevivido a isso. Como?
Só conhecia uma forma de superação: escrever o artigo sobre a
Criança do Rio. Contaria tudo o que lhe acontecera, tudo o que
fora feito à menina perdida de Binsey.
O artigo começava assim: «Não há muito tempo e não muito
longe daqui…»
A editora de Dot na Vanity Fair, Mia Hardingham, aguardava
ansiosamente a versão final, e todas as noites Dot escrevia à
máquina até muito tarde. Coseu os pedaços rasgados das
versões de Hazel e de Imogene para fazer um tecido da história.
Imogene tinha-lhe dado os contornos do que acontecera à menina
de 6 anos à beira do rio, e Dot usou a sua imaginação para
preencher os espaços em branco. Afinal de contas, era a história
dela, e ela tinha de encontrar o seu próprio caminho, mesmo que
tivesse de preencher as incógnitas com pormenores criativos.
Naquela semana, tinha percorrido a pé os trilhos de Binsey
sozinha. Deambulou pela escola caiada, com duas salas, pelo
pub à beira-rio chamado The Perch, e pelos chalés de pedra e
estuque espalhados como pedrinhas brancas pela estrada de
terra batida. Entrou no cemitério coberto de musgo junto à Igreja
de Santa Margarida e ajoelhou-se à beira do poço. Passou os
dedos pela inscrição da parede interior: Poço de Santa Margarida.
Mas Dot conhecia esta entrada por outro nome: Poço de
Frideswide.
Tal como o poço, Dot também tinha dois nomes. A Dorothy May
Bellamy tinha sido a Flora Lea Linden. O poço pertencia tanto a
Santa Margarida como a Santa Frideswide, mas esta chegara
primeiro, tendo construído a igreja saxónica para curar os outros.
Posteriormente, a Igreja Anglicana dera outro nome ao local. No
entanto esta renomeação não tinha alterado o caráter essencial
do santuário e do poço, da mesma forma que a mudança de Flora
para Dorothy não tinha alterado a verdade essencial de quem ela
era. A Igreja e Imogene podiam mudar o nome de quem ou do
que quisessem, mas aquilo que já lá estava permanecia. Alguém
trazia sempre consigo o primeiro nome, a primeira verdade, a
primeira história.
Dot dirigiu-se até à grande porta de madeira da igreja,
empurrou-a e entrou. Sentiu-se quase a pairar enquanto
percorreu a nave da igreja e se ajoelhou junto do altar para
encontrar a pequena porta de madeira escondida. Deixou as
imagens e o medo invadirem-na, ciente de que não podiam e que
não iriam afogá-la, mesmo que ela sentisse o contrário.
Russel tinha-lhe perguntado se podia acompanhá-la, e ela sabia
que Hazel e Camellia teriam feito o mesmo, mas há viagens que
têm de ser feitas a sós.
Entre o comprimido, a hipotermia e o trauma de infância, era
possível que Dot nunca se viesse a lembrar inteiramente —
muitas crianças deslocadas nunca chegavam a lembrar-se —,
mas pegaria nos pedaços dissipados da memória e contaria a
verdade.
Enquanto escrevia, às duas da manhã, Dot chegou
precisamente à parte em que a mulher que respondia por muitos
nomes — tia Imogene, enfermeira, ama — a chamara pelo nome,
pelo seu primeiro nome, Flora, e a tirara do rio.
Dot batia agora à máquina rapidamente, sentindo a história a
surgir como uma maré em lua cheia.

— Tenho frio — disse a Criança do Rio, com o corpo a tremer tanto que
os dentes batiam uns nos outros.
— Oh, minha menina!
A enfermeira despiu o casaco cinzento e embrulhou a criança nele. Sob
o casaco, tinha vestida a bata branca e engomada, com sangue na manga,
uma nódoa cor de ferrugem.
Pegou em Flora ao colo e abraçou-a contra o peito e contra o rosto. A
enfermeira, a sua ama chamada Imogene, cheirava a lavado. Com Flora
nos braços, Imogene pôs-se a correr, disparou pelo campo fora, para longe
da irmã de Flora, Hazel, e em direção à igreja. Flora conhecia o caminho
de casa, pelos campos de erva dourada, e sabia que estavam a ir na
direção errada. Tentou apontar para o chalé, para a sua casa, mas estava
demasiado embrulhada no casaco grosso.
— Vai correr tudo bem — tranquilizou-a Imogene. — Respira. Respira.
— O Berry! — gritou Flora, enquanto chocalhava nos braços de
Imogene.
A irmã de Flora, Hazel, tinha-a avisado: Se entrares no rio ou tentares
transformar-te no rio, nunca mais poderás voltar para junto da Bridie, nem
do Harry, e nem sequer de mim.
Mas Flora não tinha entrado no rio de propósito; a enfermeira tinha-a
assustado e ela escorregara.
— Bosque dos Sussurros, Bosque dos Sussurros, Bosque dos
Sussurros — balbuciou, na esperança de que as palavras mágicas
fizessem com que Imogene voltasse para trás e levasse Flora de volta
para junto de Bridie, de Hazel e de Harry.
Mas, em vez disso, chegaram à casa onde viviam as quatro
enfermeiras, e ficaram a sós. Lá dentro, na sala escura e fria, Imogene
sentou Flora numa cadeira da cozinha, descalçou-lhe as galochas e
despejou a água no lava-loiça. Imogene calçou umas meias de lã
enormes, de adulto, nos pés gelados de Flora, e sentou-a junto à lareira
quase apagada, onde reluziam brasas pretas.
— Leve-me para casa — implorou Flora, a tremer de frio, a precisar de
Bridie, de Hazel e de Harry, e da lareira quente da cozinha.
— Eles não tomam bem conta de ti. Nunca terás de voltar para aquela
família que não quer saber de ti.
— Eles amam-me — disse Flora, ciente da verdade.
— Não, não amam. Senão, tinham ficado a olhar por ti. Sem mim, ter-te-
ias afogado. Deixaram-te sozinha.
Flora fechou os olhos e sussurrou vezes sem conta: Bosque dos
Sussurros. Bosque dos Sussurros. Bosque dos Sussurros. Tinha de voltar.
Tinha de encontrar a irmã. As palavras não eram mágicas?
— O que é o Bosque dos Sussurros? — perguntou a enfermeira,
baixinho.
Flora abanou a cabeça. Hazel tinha-lhe dito para nunca, mas nunca
contar a ninguém sobre o Bosque dos Sussurros. Foi por isso que
deixaram Flora sozinha. Foi por isso que Flora acabou com o Berry à beira
do rio, porque quase contou a Harry sobre o seu mundo mágico. Não
contaria a Imogene, que cheirava a sabonete, mas tinha sangue na
manga.
Imogene desapareceu para um quarto das traseiras e voltou com um
cobertor de lã.
— Vou arranjar-te roupa e comida. Mas, por agora, temos de te
esconder.
— Porquê?
Sem responder, Imogene enfiou a mão no bolso e retirou um pequeno
comprimido branco.
— Abre a boca, minha querida menina. Isto vai fazer-te sentir melhor.
Flora abanou a cabeça e cerrou os lábios. Imogene fez-lhe cócegas por
baixo dos braços, beijou-lhe o pescoço e, quando Flora riu, enfiou-lhe o
comprimido amargo debaixo da língua, onde ficou a derreter. Voltou a
pegar em Flora, que pensou que talvez agora fosse finalmente voltar para
casa, para junto de Hazel, que a levaria ao Bosque dos Sussurros; para
junto de Bridie, que fazia papas de aveia quentes e cantarolava; para junto
de Harry, que estava a ensinar-lhe letras que faziam palavras.
Em vez disso, Flora foi levada alguns metros de distância, pelo cemitério
por trás da casa, passando as lápides inclinadas e cobertas de musgo, até
à Igreja de Santa Margarida e ao poço escuro, onde a princesa Frideswide
tinha, em tempos, curado os outros.
Flora sentia-se assoberbada com medo, frio e desespero. Precisava de
algo de Frideswide e do Bosque dos Sussurros — precisava de Hazel.
Rezou aos dois, porém Imogene levou-a para o interior da igreja escura,
com um rio de luz a atravessar as janelas. Flora sentiu que estava outra
vez debaixo de água e, no entanto, conseguia respirar.
Imogene ficou de pé com Flora diante do altar. Em seguida, avançou
uns passos e Imogene abriu uma pequena porta escondida, e entraram na
divisão mais minúscula que Flora alguma vez tinha visto. Tinha uma janela
tão pequena que a luz que a atravessava parecia uma lanterna acesa.
Continha apenas um banco e uma almofada para ajoelhar com uma fronha
bordada com videiras verdes. Havia um crucifixo de madeira pendurado na
parede, com o rosto de Jesus contorcido de dor, e sangue a escorrer-lhe
pela cara.
Flora gritou:
— Leva-me para casa!
— Eu sou a tua casa. Salvei-te, tal como Jesus me salvou. Agora, fica
aqui caladinha e quieta, eu volto para te buscar. Diz-me só uma coisa,
querida menina, o que é o Bosque dos Sussurros?
Uma onda de medo invadiu Flora quando a enfermeira a sentou no
pequeno banco e se baixou para a olhar de frente. E, apesar de Flora
saber que trairia a irmã, acreditou que a salvaria, que a enviaria de volta
para junto de Hazel.
— É o nosso mundo secreto.
A enfermeira sorriu e era tão bonita que Flora achou que ela não podia
fazer mal a ninguém.
— Então, vais poder ficar com o teu mundo. Agora, se ficares caladinha,
podes ficar com o teu mundo. Eu já volto com roupa seca e comida
quente. Descansa.
Flora ficou novamente sozinha quando a porta se fechou e foi trancada.
Fez o possível por ficar calada, mas quando voltou a ter frio e depois fome,
chorou, chamou por Bridie, por Hazel e por Harry, e até pelo Berry,
encharcado. Enrolou-se numa bola dentro do cobertor de lã, porém já não
conseguia aquecer-se.
Imogene dissera que ia voltar com roupa quente, mas, à medida que as
horas passavam, Flora ia ficando cada vez mais confusa. Será que se
tinha enganado no caminho e tinha atravessado a porta cintilante? Será
que se tinha afogado e agora estava presa algures do outro lado? Tremia e
entrava e saía de uma espécie de delírio até que finalmente entrou num
sonho agitado, e caiu do banco estreito para o chão de pedra, batendo
dolorosamente com a cabeça.
Muito mais tarde, depois de a janela de lanterna se ter apagado e
voltado a acender, Imogene regressou, com roupas quentes e macias que
não pertenciam a Flora. A enfermeira vestiu-a e deu-lhe uma sopa quente
de batata. À entrada do quarto estava uma mala de viagem florida, com
pegas de cabedal.
— Aonde vamos? — perguntou Flora, apercebendo-se de que Hazel
tivera razão: Flora nunca poderia regressar a casa porque entrara no rio,
traíra a irmã.
— Para o Bosque dos Sussurros — disse a enfermeira, com um sorriso
muito terno.
CAPÍTULO 54

Abril de 1960

Hazel acordou em casa, duas semanas após a revelação do


primeiro dia de primavera, quando Imogene Mulroney fora presa.
Ao longo desses últimos dias, Hazel, Dot e a mãe tinham passado
as tardes juntas. Por vezes, passeavam ao longo dos trilhos de
Kensington Gardens e ficavam a ver os patos a chapinhar na
borda do lago prateado; outras vezes, ficavam sentadas no jardim
de inverno da mãe, a beber chá forte e a comer bolos cheios de
creme.
Conversavam sem parar para preencher lacunas na memória,
construindo a arquitetura perdida das suas vidas: as histórias
eram os tijolos, o amor, a argamassa. A mãe e Hazel mostraram a
Dot fotografias da sua infância enquanto Flora, e tentavam ajudá-
la a lembrar-se para além do dia do seu desaparecimento. Aos
poucos, a criança que existia dentro de Dot começou a assomar
por entre risos e a subjugar a dúvida do seu coração apreensivo.
O seu marido, Russel, e o filho deles, Connor, passavam essas
tardes juntos para que ela pudesse tentar encontrar o seu
caminho para a verdade do seu passado.
Porque, apesar de terem encontrado a irmã perdida em adulta,
tinham perdido Flora, a criança. Nunca poderiam tê-la de volta.
Num final de tarde, enquanto o sol entrava pelo jardim de
inverno da mãe e as três estavam voltadas umas para as outras,
sentadas no sofá forrado a chita, Hazel confidenciou a Dot:
— Não consigo perdoar a tua tia por todos estes anos que perdi.
Pelos dias e pelas horas da minha vida em que chorei por ti, pelo
sofrimento que ela nos causou. Sei que sentes pena dela, mas
pelo menos por enquanto não consigo sentir nenhuma empatia
pela tua tia ou pela sua vida destruída, agora que é obrigada a
deixar todas as pessoas que ama.
Dot, na sua elegância discreta, tinha dito à duas:
— Tenho de encontrar forma de conciliar as memórias e o amor
com algo novo, encontrar forma de compreender que, debaixo de
todas as coisas boas na minha infância e na minha vida, estava a
podridão fétida de uma escolha imoral que eu não conseguia ver
nem cheirar. Tenho a certeza de que vou demorar a vida toda a
compreender.
Dot terminara o seu artigo para a Vanity Fair e deixou Hazel e a
mãe lê-lo, com lágrimas nos olhos, não só porque elas tinham
sofrido a perda de Flora, como também porque Dot tinha vivido
com as memórias reprimidas de quase se afogar e de ter sido
drogada e escondida num quarto frio durante uma noite inteira.
Também estava a reconstruir a vida, a reaprender os alicerces da
sua infância, há muito perdida.
Passar tempo com Dot e a aproximação entre as duas tinha
ajudado Hazel a não pensar demasiado em Barnaby. Mas sentia a
sua falta: a solidão, um ruído baixo; a ausência dele em sua casa,
um buraco aberto. Contudo, sabia que, se fosse ter com ele ou se
lhe telefonasse, poderia haver outra separação mais à frente. Ela
tinha de ter a certeza.
A questão era clara: Hazel passara tantos anos a preocupar-se
com quem a amava, que se tinha esquecido de considerar quem
ela amava. Tinha-se preocupado tanto em descobrir se os
homens que conhecia a queriam, que quase se esquecera de
ponderar se os desejava. Mas Barnaby não fora justo ao acusá-la
de nunca ter sido realmente livre — ele também nunca tinha
estado verdadeiramente desimpedido; os caixotes e os detritos da
ex-mulher mantinham Hazel afastada de algo mais do que apenas
a casa dele. Disse que Hazel teria de ir ter com ele, e ela sabia
que isso era verdade. Na última semana, quase tinha ido, por
duas vezes; uma necessidade desesperada de consertar o que
partira, de lhe dizer que o amava, o que era verdade.
Porém, o amor não era tão simples como uma palavra proferida
por lábios casuais. Quando pensava em Barnaby e, claro, em
Harry, não conseguia encontrar um lugar tranquilo para assentar o
seu coração. Afinal, era possível amar dois homens, porque ela
amava. Mas, naquele momento, o que não era possível era ver
claramente através do nevoeiro turvo do passado, que ia subindo
do rio. Estaria a confundir o calor e o conforto da inocência da
infância com amor?
Tens uma escolha a fazer, dissera Barnaby.
E tinha razão.
E Harry. Tinha pegado no telefone mais do que uma vez para
lhe ligar, mas tinha voltado a pousá-lo. Queria-o por perto; queria
recuperar o tempo perdido; queria ter outra vez 15 anos e nunca
deixar Flora a dormir; queria voltar a encontrar o caminho para a
inocência. Contudo não podia ter nada disso, o que havia a dizer?
Ensaiava frases que nunca pareciam verdadeiras, frases que
pareciam uma versão barata daquilo que sentia.
Hazel levantou-se da cama e foi até à cozinha: o chá, a torrada
e o ovo malcozido. Colocou o bloco de notas e a caneta Woolf
sobre a mesa, ligou o barroco rádio inglês e começou onde tinha
parado na manhã em que adormecera à mesa da cozinha, na
manhã antes da viagem para Paris com Barnaby.
Na manhã do dia em que tudo mudou.
Nesse dia, também foi confrontada com uma escolha: partir
para Paris ou tentar mais uma vez descobrir a verdade sobre a
origem do romance do Bosque dos Sussurros. Agora que sabia,
escreveria as suas próprias palavras. Permitiria que a história se
libertasse do sarcófago da vergonha. Revisitaria cada momento
da melhor forma que soubesse.
Claro que a história nunca poderia ser rigorosa; nenhuma
história alguma vez recontada era narrada na perfeição. Mas seria
verdadeira.
A caneta avançava no papel, o seu coração abria-se, a
respiração equilibrava-se, e Hazel regressou ao seu primeiro
amor, ao amor que abandonara por medo e por culpa: ao amor
das histórias.

Nessa mesma tarde, pousou a caneta e deu um longo passeio


sozinha por Kensington Gardens, passando pela estátua
encantadora de Peter Pan. Já tinha atingido o máximo de dias
que conseguia sem emprego e sem salário. As suas aptidões
contabilísticas não eram perfeitas, mas sabia que só lhe restavam
mais dois meses para as despesas básicas. Podia pedir dinheiro
à mãe, porém não o faria. Não demorou muito a perceber para
onde se dirigia neste passeio, e isso fê-la sorrir. Caminhava agora
com um propósito e, no espaço de meia hora, atravessara o limiar
de pedra azul da Hogan’s Rare Book Shoppe e empurrara a porta,
com o acolhimento familiar do sino a tilintar.
— Olá — chamou.
Tim e Poppy estavam sentados em banquinhos por trás do
balcão, a livraria estava vazia. Levantaram os olhos dos livros que
estavam a ler.
— Hazel! Tivemos tantas saudades tuas — disse Poppy, e
levantou-se de repente.
— Muitas mesmo — concordou Tim.
Poppy pousou o romance de Graham Greene que estava a ler.
— Cheira-me que tens muito para contar. Estas duas semanas
de afastamento desde O Grande Assalto aos Livros não foram
férias?
Hazel riu-se.
— Não propriamente — respondeu. — O Edwin está lá atrás?
Tim acenou que sim, com um sorriso de compreensão.
Ao entrar na sala, Hazel viu Edwin sentado à secretária
manchada de tinta, diante de uma jovem vestida com um elegante
fato de tweed azul-claro, com o cabelo castanho preso num
carrapito ao nível da nuca.
— Qual foi o seu último local de trabalho? — inquiriu Edwin
asperamente, enquanto cofiava a barba com ar compenetrado.
— Na Foyles. Mas creio que o meu diploma em Literatura
Inglesa faz com que eu me encaixe melhor nesta livraria.
Hazel pigarreou e Edwin levantou os olhos, abrindo um sorriso.
Ela assimilou a sala: o livro de registo no centro da mesa de
pinho, as prateleiras a abarrotar de documentos por arquivar, uma
pilha de caixotes por abrir que lhe causavam ânsias de arrancar a
fita-cola do cartão. Não tinham passado nem duas semanas, e
sem ela estava tudo num pandemónio.
— Olá, Edwin. Será que posso dar-lhe uma palavrinha?
Ele bateu de leve na mesa.
— As únicas palavras que quero ouvir são: «Esta é a minha
casa.»
— Então, parece que estou em casa — disse ela, dirigindo-se
diretamente à pilha periclitante de caixotes e pegando no primeiro
antes de o colocar em cima da mesa de pinho. Abriu o livro de
registo.
A jovem levantou-se e olhou para Edwin e Hazel.
— Suponho que o emprego já não esteja disponível.
Edwin acenou em concordância e levantou-se, segurando a
bengala.
— Mas obrigado por ter vindo. A chegada da Hazel constitui um
acaso imprevisto que alterou o estatuto da vaga de emprego.
Hazel abafou uma gargalhada, mas sorriu para a jovem.
— Lamento. Eu sei que há uma vaga na Sotheby’s.
A jovem esboçou um grande sorriso.
— A sério?
— A sério.
Ainda a sorrir, a jovem empurrou a porta vaivém e saiu.
— Com que então, sou um acaso imprevisto? — perguntou
Hazel, a rir-se.
— Deveras — respondeu Edwin. — A propósito, sabe que vou
ter de descontar do seu salário até me ressarcir por quaisquer
artigos danificados ou roubados.
— Com certeza — disse ela, tentando não sorrir.
— Então, Hazel, o que a trouxe de volta para junto de nós?
— O Bosque dos Sussurros.
— Ah. Um dia, tem de me contar o resto — disse ele, com um
sorriso ainda mais aberto.
Uma hora depois, de volta ao trabalho, a voz de Edwin ecoava
num telefonema ao canto da sala, e Hazel arrancava a fita-cola de
mais um caixote. Como é que ela pensou que era boa ideia deixar
este sítio? Em que outro lugar é que ela deveria estar? Tinha
outras escolhas pela frente, sem dúvida. Mas, por enquanto, seria
esta livraria; seria Tim, Edwin, Poppy e livros raros.
Sabia que não ficaria aqui para sempre. Sentia a sua vida
crescer com cada palavra que escrevera naquela manhã no seu
bloco de notas, com cada novo relato dos dias horríveis, lindos,
terríveis e encantadores de Binsey. Mas haveria melhor lugar para
dar tempo ao tempo do que a Hogan’s?
Edwin pegou na bengala e cambaleou para a mesa de receção.
Ela observava-o a caminhar lentamente, de olhos nela. Tinha algo
a dizer e fá-lo-ia com calma. Estava agora diante de Hazel.
— Era uma ilustradora ao telefone.
— Desculpe? — Hazel fitou Edwin. Os seus olhos remelentos
estariam a encher-se de lágrimas?
— Uma tal de Pauline Baynes.
— Sim?
Edwin acenou e a pele solta do pescoço acenou com ele.
— Leu o artigo no Oxford Mail sobre a sua história, sobre as
ilustrações roubadas e sobre o facto de terem conduzido à
resolução do caso da sua irmã perdida, a Criança do Rio, como
lhe chamaram.
— E? — A voz de Hazel saiu mais aguda.
— Ela gostaria de desenhar duas novas ilustrações para
substituir as que se estragaram, e mais uma para tornar o volume
ainda mais apelativo para um comprador.
Hazel engoliu um grande grito de felicidade e limitou-se a sorrir
para Edwin.
— Bem, parece que o pacote que me pertence vale muito mais
do que eu tinha pensado.
— Sim, vale. Talvez alguém na Sotheby’s possa querer comprá-
lo para leilão… — Edwin reprimiu um sorriso. — Um seu
conhecido?
Hazel desatou a rir e abanou a cabeça.
— Acredite em mim quando digo que um certo Lorde Arthur
Dickson não precisa nem quer ouvir falar de mim,
independentemente dos tesouros que possa possuir. — Hazel
sorriu-lhe.
Edwin respondeu com um enorme sorriso e, depois, pela
primeira vez desde que se conheceram, contornou a mesa e
abraçou-a durante uns momentos, envolto no aroma de pó e tinta.
Soltou-a e deu-lhe umas palmadinhas na cara, e embora Hazel
pensasse que ele fosse falar, não falou. Voltou-se e cambaleou
para fora da sala.
Hazel ficou ali quieta, e pensou no dia em que encontrara o
embrulho, em tudo o que acontecera ao longo daquelas semanas
e em como algo tão simples como uma história podia mudar o
mundo. O Bosque dos Sussurros tinha voltado para lhe devolver
uma vida fechada à imaginação e à beleza. O Bosque dos
Sussurros tinha enriquecido a sua vida no mesmo momento em
que ela lhe tinha voltado costas.
Mas e agora? O que se seguia?
Ela sabia que não havia como prever.
Depois de registar os conteúdos do último caixote — uma
primeira edição autografada de Vorazmente Teu —, voltou a
entrar na sala principal da livraria. Parecia não haver clientes,
porque Poppy e Tim estavam atrás do balcão, junto à caixa
registadora.
— Acabaste por hoje? — perguntou Tim.
— Acho que sim. Vamos fechar cedo. Parece que isto está
lento. — Hazel olhou em volta para a livraria vazia. — Que tal um
copo no The Plough?
— Estou à procura de algo que não encontro. — Uma voz
surgiu por detrás das prateleiras dos livros policiais. A voz de
Harry. Hazel voltou-se.
Poppy não o conhecia, por isso levantou-se do banco e dirigiu-
se a Harry.
— Posso ajudá-lo? O que procura?
— Procuro algo raro — disse, com aquele maldito sorriso.
— Estou a ver — replicou Poppy. — Veio ao sítio certo.
Os olhos de Harry não estavam focados em Poppy, e Poppy
voltou-se e viu que ele estava a olhar com adoração para Hazel.
— Sim — continuou ele. — Estou à procura de algo raro e
verdadeiro.
Deu uns passos na direção de Hazel.
— Ah — disse Poppy. — Já não está a falar comigo, pois não?
— E voltou para junto do balcão.
Hazel aproximou-se, não havia mais nada ali exceto Harry.
— Isso parece-me um pouco vago. Pode dizer-me o que
procura exatamente?
Harry sorriu.
— Procuro imaginação e bondade, bosques e criaturas
mágicas, e um rio onde as estrelas correm para o mar.
Desde o dia em que encontrara o embrulho, Hazel acreditara
que a sua missão era encontrar Flora, mas durante todo aquele
tempo tivera uma escolha a fazer. E agora compreendia — ela já
a tinha feito, porque há muito tempo ela tomara a sua decisão no
tronco oco de um carvalho, onde se contavam histórias.
CAPÍTULO 55

Dois anos depois

Em março de 1962, precisamente dois anos depois de o pacote


embrulhado em papel pardo e atado com fita vermelha esgaçada
ter chegado à Hogan’s Rare Book Shoppe, o mar Celta de St.
Ives, na Cornualha, brilhava manso e calmo, um espelho
uniforme. Uma luz de candeeiro paira no ar como uma lua caída.
Eles vivem aqui agora, neste lugar de mitos e lendas, de
penhascos ventosos e mares de fitas azuis, de telhados cobertos
de líquen amarelo e longas estradas sinuosas que sussurram
entre casas de pedra e estúdios caiados.
Hazel e Harry Aberdeen estão junto à janela aberta do seu
apartamento no segundo andar, a ver o dia a dar lugar à noite, a
aproveitar um momento a sós antes do caos da grande festa de
inauguração da galeria no andar de baixo. Uma brisa salgada faz
esvoaçar as cortinas de gaze creme e Hazel inspira o cheiro do
mar. Harry abraça Hazel junto a si, e tem a mão livre pousada
sobre a barriga dela onde, agora no sétimo mês, a gravidez
cresce por baixo do vestido florido de algodão.
— Conseguimos — diz Harry.
Hazel coloca o rosto ao nível do dele e beijam-se.
— O que foi que conseguimos?
— Escrevemos um final melhor.
— E muito mais do que isso.
Ela faz uma pausa e descansa a cabeça no ombro dele.
— Sabes quando foi a primeira vez que te amei? — pergunta
ela.
— Não. Conta-me. — A voz dele contém tanta alegria.
— Quando apanhaste as coisas que tinham caído da minha
mochila no meio da rua.
— Então, meu amor, apaixonámo-nos no mesmo momento.
Do andar de baixo surge o som de um guitarrista a afinar o
instrumento, a testar um microfone. Depois, alguém a chamar do
lado de fora da janela.
— Tia, vem cá abaixo e abraça-me, agora mesmo.
Hazel e Harry inclinam-se e veem Midge, agora com 10 anos,
com Fergus e Kelty no passeio. Os três agitam as mãos como se
estivessem a tentar parar um navio.
— Vou já! — grita Hazel. Alisa o vestido com as mãos. — Estou
bem ou pareço uma baleia num saco florido?
— Pareces a nova proprietária radiante de um atelier de livros
raros e ilustrações na costa da Cornualha.
— Pela descrição, parece chique, não? — Hazel levanta a
cabeça para mais um beijo. — Muito chique.
Porém, ela sabe que está longe de ser chique. Viveu com o pó,
a sujidade e as longas horas extenuantes que foram necessárias
para abrir a nova galeria por baixo do seu apartamento: a H2:
Arte, Livros e Ilustrações Originais. Harry e Hazel é igual a H2.
Conjugaram os trabalhos dele e as obras de arte locais com livros
raros e a especialidade deles: ilustrações originais de romances e
contos de fadas conhecidos.
Hazel desce cuidadosamente as escadas gastas de pedra
talhada, do século XVIII, que conduzem à sala das traseiras, onde
o sol envia raios cor de mel através das janelas. Aqui fica o atelier
de arte de Harry, longe do resto da galeria. Umas portas de
celeiro, que recuperaram e pintaram de azul-vivo, separam os
dois espaços. Ela abre as portas deslizantes e entra na galeria
principal.
O pessoal do catering anda atarefado de um lado para o outro,
um barman dispõe os copos, e o guitarrista arranha uma canção
vagarosa. As portas para a rua continuam fechadas. Hazel faz
uma pausa para assimilar a cena e depois apressa-se a ir
cumprimentar os amigos. Se tivesse sonhado com uma galeria
personalizada, teria sonhado com isto. Em prateleiras flutuantes
de madeira, penduradas meticulosamente por Harry, estão
dispostas contra a parede ilustrações a cores em molduras de
madeira dourada. Cada uma delas é um desenho de Pauline
Baynes, da coleção do Bosque dos Sussurros de Peggy Andrews.
Distribuídos em conjuntos, vemos peças de joalharia feitas à
mão, desenhos, pinturas, gravuras, almofadas, peças de
cerâmica, e quaisquer outros artigos que os amigos de Harry
possam trazer para vender naquele espaço amplo e luminoso.
E, no meio de tudo aquilo, numa mesa redonda de madeira,
uma pilha de livros da autoria de Hazel Mersey Linden. A Criança
do Rio: Um Livro de Memórias do Bosque dos Sussurros. Na
capa, o rio de estrelas sinuoso a correr ao longo de um bosque
encantado, e cada livro atado com uma fita de seda vermelha, tal
como o embrulho original que surgira na mesa das traseiras da
Hogan’s Rare Book Shoppe.
Hazel coloca a mão sobre a pilha de livros e sorri; sente-se
invadida pelo aconchego quando sente a filha a dar pontapés
dentro dela, como se soubesse do que trata o livro. Não, Hazel
não tem a certeza absoluta de que o bebé seja uma menina, mas
desconfia. E embora ainda não tenha contado a Harry, adorava
que chamassem à filha Flora Lea Aberdeen.
Hazel vai até à porta trancada e ri-se quando vê a cara de
Midge esmagada contra o vidro das janelas de caixilhos de ferro,
com as palmas das mãos de cada lado dos olhos. Hazel desliza o
trinco de ferro das portas duplas e abre-as para que Midge possa
cair-lhe nos braços.
— Tia!
Hazel abraça Midge e põe os braços em torno de Kelty, com
Midge esmagada entre elas.
— Oh, olha só para ti! — Kelty coloca uma mão na barriga de
Hazel. — Só passou um mês desde que nos vimos. Tens a
certeza de que não são gémeos?
— Retira já o que disseste — diz Hazel. — Ainda bem que
vieram mais cedo. Podem ajudar-me a terminar os preparativos.
Kelty olha em volta da galeria e os olhos enchem-se de
lágrimas.
— Estou tão orgulhosa de ti. Tão orgulhosa.
— Bem, espero que as pessoas apareçam hoje! Sabes o que o
Edwin costumava dizer. — Ela faz uma breve pausa e pensa nos
estalidos da bengala dele, na sua pele fina e olhos bondosos. —
Que Deus o tenha. Costumava dizer que há os colecionadores e
há aqueles que não conseguem perceber o entusiasmo. Estou
com esperança de que hoje apareçam os da primeira categoria.
— Também costumava dizer que vivia para a grande descoberta
— afirma Kelty. — Também me lembro de ele dizer isso.
Hazel sente uma onda de tristeza por a filha nunca vir a
conhecer Edwin, juntamente com uma grande gratidão por ela
própria o ter conhecido.
A porta de celeiro das traseiras abre-se e Harry entra na galeria.
— Olhem só quem chegou primeiro. — Corre para Midge e
pega-lhe ao colo.
Ele vai ser um pai maravilhoso, pensa Hazel. Para alguém que
nunca chegou a descobrir o que aconteceu ao próprio pai, é o
melhor homem que ela já conheceu. Mesmo quando era mais
novo, já era o melhor homem que ela tinha conhecido.
Uma hora depois, a galeria estava cheia de clientes, amigos e
família. Em grupos de dois e três, entravam mais rápido do que
Hazel conseguia cumprimentá-los. A sua mãe e Alastair estavam
vestidos a rigor para uma exposição de arte e sessão de
autógrafos de um livro numa cidade costeira. Tenny trouxe uma
namorada, uma rapariga jovem que está a tentar parecer-se com
a famosa fotografia de Jean Shrimpton, com um laço de veludo e
franja. Dot e o marido, Russel, e o filho deles, Connor, de 6 anos,
estão juntos diante das ilustrações de Baynes. Visitaram St. Ives
pelo menos de dois em dois meses desde que Hazel e Harry se
mudaram para lá, no ano anterior. Dot e Hazel são agora mais do
que irmãs; são melhores amigas.
Em Londres, a mãe e Dot construíram uma nova relação feita
de longos passeios e chás demorados. E sempre que a mãe olha
para Dot, Hazel vê o rosto daquela a iluminar-se com o puro
milagre da existência de Flora no mundo. Está aqui com elas,
viva, uma mulher com o seu próprio filho.
Peggy e Wren são recebidos com alguns aplausos por aqueles
que sabem quem ela é: a autora da coleção do Bosque dos
Sussurros. Vão diretos a Harry e Hazel, e todos se abraçam e
beijam. Peggy está muito sofisticada, com um vestido de corte a
direito, de crepe amarelo-vivo, com uma écharpe a cair-lhe pelas
costas em camadas. Peggy coloca as mãos nos ombros de Hazel
e afasta-se para olhar bem para ela.
— Estás deslumbrante.
— Também tu — diz Hazel.
Passou mais de um ano desde que o segundo volume do
Bosque dos Sussurros chegou de barco a Inglaterra com grande
alarido, e a editora enviou Peggy a Londres para uma viagem
prolongada de promoção do livro. Desde então, Hazel e Peggy só
trocaram cartas e breves telefonemas, mas há uma profunda
ligação entre as histórias de ambas.
— Como está a correr o próximo? — pergunta Hazel, segurando
as mãos de Peggy.
— Devagar. Mas a bom ritmo. Tenho andado um pouco
ocupada… a planear. — Levanta a mão esquerda e um anel de
diamante rodeado de esmeraldas brilha à luz das velas.
— Parabéns! — Hazel abraça Peggy e dá um beijo na cara de
Wren. — E a tua mãe? Como está a lidar com a tua mudança
para Boston?
Peggy suspira.
— Está a adaptar-se.
Hazel ri-se. Há muito que decidiu perdoar Linda. Ela não tem
culpa que uma pobre jovem enfermeira, não sendo capaz de
salvar aqueles mais feridos pela guerra, tenha «salvado» uma
menina que não precisava de ser salva. Nos seus melhores
momentos, Hazel sente pena de Imogene Wright, cuja mente
ficou vergada e transtornada pelo sangue e pela carnificina de
rapazes que não conseguiu salvar. Mas, nos piores momentos,
quando o medo que a invade a meio da noite a acorda de um
sonho em que está a correr pela beira lamacenta do rio, a gritar
por Flora, sente tudo menos pena de Imogene; sente apenas uma
raiva feroz e lancinante. O sentimento passa, passa sempre, mas
a raiva ainda sobrevive nos recessos do coração de criança de
Hazel, e visita-a no breu da noite.
Bridie e o Sr. Nolan entram e Hazel corre pela multidão para os
abraçar com força.
— Estás radiante — diz Bridie.
— Foi isso que disse o Harry! — Hazel beija a sogra e pega na
mão do Sr. Nolan. — Estou tão feliz por estarem os dois aqui.
O Sr. Nolan olha para Bridie.
— Queres contar-lhe?
Bridie acena com a cabeça e um sorriso traquina levanta-lhe os
cantos da boca.
— Não só estamos aqui, como só nos vamos embora depois de
teres o bebé. Estamos aqui para ajudar e para estarmos contigo e
com o Harry.
— Oh, Bridie! — grita Hazel. — É a melhor notícia da noite.
— Não. — Bridie aponta para a mesa dos livros de Hazel. —
Aquela é que é a melhor notícia da noite. Agora, vai cumprimentar
os teus fãs.
Mesmo que estas fossem as únicas pessoas que viessem à
inauguração e à sessão de autógrafos, o coração de Hazel estaria
a transbordar. Mas vêm muitas mais. Aiden Davies compareceu,
com o chapéu de feltro na mão e a olhar em volta, com espanto.
Segura num copo de whisky com gelo e anda atrás de Dot como
se não quisesse perdê-la de vista.
Amigos de St. Ives, incluindo Ethan, outros artistas, donos de
lojas que fecharam mais cedo e turistas que passam por ali
enchem a galeria de conversa enquanto contemplam os produtos
feitos à mão.
A agente literária de Hazel, Meg, irrompe porta adentro com um
sorriso brilhante como o nascer do sol, vestindo um cafetã azul-
vivo comprido, que flutua atrás dela.
— Longe de mim armar-me em sabichona — diz, enquanto se
aproxima de Hazel e a segura pelos ombros —, mas eu bem te
disse. — Aponta para o livro.
— Não me importo nada que tenhas razão — diz Hazel com
uma gargalhada.
Harry sobe para uma plataforma de madeira que construiu na
semana passada e trouxe para este fim. Estende a mão a Hazel,
que se junta a ele. Com o cabo de um pincel, bate levemente no
copo de cristal.
— Um brinde — propõe.
O ruído na sala diminui gradualmente até ficar suficientemente
silencioso para Harry continuar.
— Eu e a Hazel queremos dar-vos as boas-vindas à
inauguração da H2 e à sessão de autógrafos da minha linda
mulher. — Vira-se para ela. — Tudo o que é bom veio das tuas
histórias, e amo-te muito.
— E eu a ti. — Ela sorri-lhe. — E tu és uma das minhas histórias
prediletas.
Cruza olhares com Dot e pisca-lhe o olho, porque sabe que é
ela, e o seu regresso, a melhor história de todas.
Hazel ergue o copo e a sala enche-se de vivas. A meio do
brinde, enquanto Harry agradece a cada pessoa de que se
lembra, chegam Tim e Poppy.
Hazel levanta o copo à dupla da Hogan’s e sorri. Pressentindo
uma pausa, Dot levanta a mão e diz, entre risos:
— Uma pergunta da Dorothy Bellamy, da Vanity Fair. Hazel,
porque decidiu abrir esta galeria em St. Ives?
Hazel ri-se e coloca a mão na barriga, onde parece que a
criança dentro dela ouvira a alegria na voz de Dot, na voz de
Flora.
— Os celtas falam de lugares ténues — diz Hazel. E se um
desses lugares existe fora do Bosque dos Sussurros, é aqui. Esta
terra é liminar, transportadora… mística. — Sorri. — E dentro de
cada embrulho que aqui chega, pode existir outra aventura, outra
missão, outro mistério. Sei que outra pessoa pode ver o embrulho
como algo simples: um livro raro ou uma ilustração assinada. Mas
eis o segredo: nada é simples. — Hazel faz um compasso de
espera e parece que a maré lá fora, a respiração dentro dela e a
multidão à sua volta estão todos à espera daquilo que se segue.
— Porque quando vemos que o mundo brilha tal como os
contornos das portas do Bosque dos Sussurros, sabemos que o
mistério e o encanto estão por todo o lado, à espera de serem
descobertos. No reino sem mapa das vossas próprias almas,
espero que encontrem o mundo feito única e exclusivamente para
vocês.
NOTA DA AUTORA

Caro leitor,
«Não há muito tempo e não muito longe daqui, existiu e ainda
existe um lugar invisível. Se nasceres ciente disso, encontrarás o
teu caminho pelo bosque até às portas cintilantes que abrem para
o mundo que foi criado única e exclusivamente para ti.»
Assim começa O Livro Secreto de Flora Lea, um livro que vem
lembrar-nos de que somos um povo que cria mitos; é assim que
damos significado ao que não tem significado e sentido ao que
não tem sentido. É por isso que contamos histórias.
Para mim, muitas vezes as histórias que importam nascem do
acaso, e este romance não foi diferente. Enquanto pesquisava
para outro romance, fiquei impressionada com um pormenor da
história britânica de 1939. Ao abrigo da Operação Flautista de
Hamelin, as crianças das grandes cidades britânicas foram
enviadas para longe das famílias, de modo a ficarem a salvo dos
iminentes bombardeamentos alemães. Com etiquetas de
bagagem à volta do pescoço, máscaras de gás penduradas nas
mochilas e um envelope carimbado que seria enviado aos pais
assim que soubessem onde iam ficar, estas crianças foram
enfiadas em comboios e navios e enviadas para locais
desconhecidos.
Sinto arrepios só de pensar em enviar qualquer um dos meus
três filhos para longe. Como foram estes pais capazes de o fazer?
Será que as autoridades britânicas da altura não conheciam a
temível lenda do Flautista de Hamelin? A história original remonta
à Idade Média, à Alemanha do século XIV. Como a maioria das
lendas, mudou e transformou-se com o tempo. Mas, em traços
gerais, O Flautista de Hamelin tem como cenário uma pequena
cidade alemã chamada Hamelin. As crianças da história são
seduzidas pelos sons da flauta de um flautista bem vestido que as
leva a afogarem-se no rio Wesser. Ao longo do tempo, surgiram
muitas versões desta história, desde um poema de 1803, da
autoria de Johann Wolfgang von Goethe, passando pelo conto
dos Irmãos Grimm, até ao poema de 1842 de Robert Browning.
Através de inúmeras adaptações, musicais, óperas, peças de
teatro e livros, chegamos aos dias de hoje, onde até um romance
gráfico para jovens adultos de Jay Asher foi publicado em 2017. É
uma lenda contada de diferentes formas, vezes sem conta.
Porque daria o Governo ao seu plano de retirada o nome de
uma lenda infantil que dá conta do afogamento e
desaparecimento de crianças? Quero acreditar que se deve ao
facto de não conhecerem verdadeiramente a história, de terem
escolhido o nome sem analisarem o conteúdo da lenda.
Diz-se que este projeto foi uma decisão difícil e emotiva do
Governo britânico. O objetivo era retirar as crianças das zonas
onde era mais provável haver bombardeamentos e transferi-las
para locais de baixo risco. Algumas crianças foram enviadas para
o campo (como as minhas irmãs fictícias, Hazel e Flora, foram
enviadas para Oxfordshire), e outras foram enviadas para países
estrangeiros, tais como África do Sul, Austrália, Estados Unidos
da América e Canadá.
Após a declaração de setembro de 1939, mais de três milhões
de crianças foram transferidas em apenas quatro dias. No final,
mais de três milhões e meio de crianças foram realojadas. Houve
histórias extraordinárias de crianças que encontraram lares
encantadores no campo, mas também houve histórias horríveis.
Nem todos os deslocados ficaram a salvo. Setenta e sete crianças
morreram quando um navio que transportava refugiados para o
Canadá foi torpedeado e afundado por um submarino alemão.
A cena do meu romance em que Hazel e Flora estão a ser
escolhidas pelas famílias de Oxfordshire foi uma reconstituição
fictícia de um cenário muito real que se repetiu vezes sem conta
nos anos que mediaram 1939 e 1944, com a declaração de
vontade «Escolho esta criança» a ecoar de costa a costa. Por
toda a Inglaterra foram afixados cartazes a incentivar as mães a
mandarem os seus filhos para longe, e outras famílias foram
instadas a cumprir o seu dever para com a Coroa e a alojar os
deslocados.
Enquanto lia sobre este plano do Governo, também encetei uma
pesquisa sobre contos de fadas, o que significam para nós e
porque nos afetam tanto. A história dos contos de fadas é longa,
bela e complicada. Está relacionada com a mitologia, mas difere
dela. Fiquei fascinada com a afirmação de J. R. R. Tolkien de que
os contos de fadas têm uma importância vital para a vida interior
das crianças e que oferecem aquilo a que ele chama «o consolo
de um final feliz».
Enquanto ponderava sobre uma operação em tempo de guerra
a que foi dado o nome de uma lenda fatal e sobre o mundo dos
contos de fadas que acalentou tantas crianças ao longo do tempo,
imaginei duas irmãs, Hazel e Flora, de Bloomsbury, em Londres.
Imaginei que seriam enviadas para um abrigo na zona rural de
Oxford. Ouvi Hazel a consolar a irmã mais nova com uma terra de
conto de fadas a que chamou Bosque dos Sussurros, um lugar
mítico, fruto da sua própria imaginação, que ganhava vida no
tronco oco de um carvalho. Ali, as meninas estavam em
seguras… até deixarem de estar, quando Flora, de 6 anos,
desaparece.
Sempre senti um enorme fascínio pelo mundo invisível, pelo
mundo natural como bálsamo e escape, e pela capacidade que as
crianças têm de sobreviver através das histórias num mundo
caótico. A metáfora do rio, com o seu destino final e a sua
nascente, é algo que sempre me cativou.
Com O Livro Secreto de Flora Lea, quis contar uma história que
tivesse como pano de fundo uma paisagem mítica, onde
reverberasse o encanto da narração de uma história de laços
fraternos e de um primeiro amor ingénuo; de inocência perdida e
de preservação da esperança contra todas as probabilidades.
Quis que as meninas habitassem um mundo mágico, imaginário e
telúrico, e coloquei-as em Binsey (uma aldeia com os seus
próprios mitos e lendas), nos arredores de Oxford.
Mas, acima de tudo, quis contar uma história onde ressoassem
estas palavras de Mary Oliver: «E disse o rio: imagina tudo o que
conseguires imaginar, e depois vai mais além.»

Com amor e imaginação,


Patti

Se tiver interesse em ler mais sobre a Operação Flautista de


Hamelin, deixo aqui algumas recomendações de livros e websites.

When the Children Came Home, Julie Summers


Torpedoed, Deborah Heiligman
Evacuees: Children’s Lives on the WW2 Home Front, Gillian
Mawson
Out of Harm’s Way, Jessica Mann
Don’t Forget to Write: The True Story of an Evacuee and Her
Family, Pam Hobbs
The British Evacuees Association
AGRADECIMENTOS

Um romance escreve-se a sós, mas nunca em isolamento: um


paradoxo, sem dúvida. Foram muitas as pessoas que tornaram
este romance possível, e quero aqui saudá-las com humildade e
gratidão.
Quero agradecer à minha agente, Meg Ruley, que tem tanto de
visionária como de aliada indefetível. É uma sorte poder ter-te ao
meu lado nesta viagem incrível! As tuas ideias, humor,
companheirismo bem-humorado, assim como as alterações que
fizeste a esta história, foram inestimáveis. Aos génios da Jane
Rotrosen Agency, a começar por Jane Rotrosen Burky, Andrea
Cirillo, Jessica Errera, Rebecca Scherer, Annelise Roby, Chris
Prestia e toda a equipa da JR Agency. Curvo-me perante os
vossos conhecimentos e entusiasmo. À Dana Isaacson. Já o
disse e volto a dizer, és uma encantadora de livros. Obrigada por
teres lido as primeiras páginas e por teres impulsionado a história
para novas direções de forma gentil, amável e firme.
À equipa da Simon & Schuster Atria. Vocês são notáveis. É uma
honra fazer parte do vosso manancial de criatividade, diversão
inteligente e destreza narrativa. À minha revisora, Trish Todd.
Estou muito feliz por nos termos encontrado neste mundo louco.
O teu olhar perspicaz e o teu sábio contributo levaram esta
história a novos patamares e, por isso, devo-te e minha gratidão
eterna. À minha editora, Libby McGuire, obrigada por me teres
trazido para este mundo criativo e por apoiares este livro. À
extraordinária equipa de Flora Lea, composta por Lindsay
Sagnette, Dana Trocker, Lisa Sciambra, Megan Rudloff, Morgan
Hoit, Dayna Johnson, Karlyn Hixson, Paige Lytle, Jade Hui, Sean
Delone, e à artista Kwan Laywan, que concebeu uma capa
maravilhosa. A vossa imaginação e ideias criam novos mundos.
O projeto Friends and Fiction foi lançado no início da pandemia
e, ao longo destes anos, tornou-se uma âncora num mar de
incertezas. Como escrevo na dedicatória, é coapresentado por
Mary Kay Andrews, Kristy Woodson Harvey e Kristin Harmel (e
Mary Alice Monroe, que ajudou a fundar o grupo em 2020!). Num
dia de escrita nas montanhas, disse a Mary Kay Andrews: «Quero
que o mundo dos contos de fadas se situe no bosque e que seja
secreto.» Ela disse apenas: «Bosque dos Sussurros.» Só isso
bastou para que a história começasse a correr. Além dos amigos
que vemos no ecrã, contamos com o apoio dos menos visíveis
bibliotecário Ron Block, diretora-geral Meg Walker e guru do
audiovisual Shaun Hettinger, que têm mantido os remos na água
e o humor face ao caos.
Meg Walker, da Tandem Literary — a nossa miúda de Jersey —,
é a minha guru de marketing há vários anos e o seu entusiasmo,
palavras sábias, capacidade de organização, sentido de humor e
ideias criativas são uma força da natureza. A Judy Collins gere o
meu website e a minha newsletter com mestria. A sua atenção
aos pormenores é espantosa. Obrigada!
Quero agradecer aos meus amigos autores, que disseram: «Tu
consegues fazer isto», que acreditaram em mim, que me ouviram
e que psicanalisaram as personagens comigo. Àqueles cujos
conselhos estão plasmados nas próprias vidas: vidas de
integridade, honestidade e vulnerabilidade. Vocês sabem quem
são. Estou-vos grata e não conseguiria fazer isto sem a vossa
ajuda. À Paula McLain, que me ajudou a superar as alturas mais
difíceis. À Kristin Hannah, que me ajudou a preservar a sanidade
inúmeras vezes, enquanto fazia grandes mudanças.
Seria negligente se não mencionasse os autores que tanto
admiro e que apoiaram este romance com os seus comentários,
tempo e energia, antes de o romance ser lançado: Christina Baker
Kline, Jamie Ford, Sarah Penner, Sadequa Johnson, Fiona Davis
e Janet Skeslian Charles.
Aos meus amigos mais queridos, aqueles que ouvem falar de
um mundo imaginário e continuam a abanar a cabeça com
interesse. Amo-vos a todos. De paixão.
A todos aqueles que, nos bastidores, me abriram o seu coração
e a sua vida quando precisei de entrevistas, visitas guiadas ou
informações. À Jan Pardy, a extraordinária criança deslocada que
me deixou entrar no seu mundo privado, e à sua sobrinha, Jane
Pennell. Ao Tim Byars, o livreiro antiquário de Londres, que nunca
se fartou das minhas perguntas ou do manuseamento dos seus
preciosos livros. À minha guia Tabby Lucas, que me levou pelo
mundo mágico da verdadeira Binsey e que partilha o meu fascínio
por Santa Frideswide. Obrigada por me levares ao seu santuário.
À minha guia turística em Londres, Ann Marie, por me ter
mostrado jardins, bibliotecas e livrarias, enquanto me encantava
com histórias de lendas perdidas. Estou muito grata a todos vós.
Este livro seria muito diferente sem o vosso contributo.
Um agradecimento especial a vós, àqueles para quem escrevo:
leitores, bibliotecários, livreiros, bloggers, podcasters e toda a
comunidade literária. Este livro é vosso.
À Pat Henry, à Meagan, ao Evan, à Bridgette e à Beatrix Rock,
ao Thomas Henry e ao Rusk Henry, à minha família alargada, a
todos vós. À Bonnie e ao George Callahan, que apoiaram todas
as palavras que escrevi, quer elas merecessem ou não, e às
minhas irmãs, Barbi Burris e Jeannie Cunnion. Amo-vos muito.
Obrigada por me aturarem enquanto alterno a minha vida entre
dois mundos. Serei eternamente vossa.
Sobre este livro

1939. Numa Londres arrasada pela guerra, Hazel, de 14 anos, e


Flora, de 5, são transportadas para uma zona rural para escapar
aos horrores do conflito. Vivendo agora com a gentil Bridie
Aberdeen e o seu filho adolescente, Harry, numa encantadora casa
de pedra na margem do Tamisa, Hazel preenche os dias com
passeios e jogos para distrair a irmã mais nova, entre os quais um
conto de fadas sobre uma terra mágica, um lugar secreto, só delas,
a que chamam Bosque dos Sussurros. Um dia, porém, a pequena
Flora desaparece repentinamente junto ao rio. Destruída, Hazel
culpa-se pelo sucedido e carrega essa culpa para a vida adulta
como um fardo que sente merecer.
Vinte anos depois, Hazel encontra-se em Londres, pronta para
deixar o seu trabalho numa acolhedora livraria de livros raros e
seguir carreira na Sotheby’s. Com um namorado maravilhoso e um
elegante apartamento em Bloomsbury, o futuro de Hazel parece
estar bem encaminhado. A sua vida, todavia, é voltada do avesso
quando recebe um livro ilustrado chamado O Bosque dos Sussurros
e o Rio das Estrelas — referências ao mundo imaginário que criara
para Flora. Poderá esse livro revelar algo sobre o desaparecimento
da irmã? Ou ser um sinal de que ainda esteja viva?

Um romance arrebatador e original sobre o vínculo


entre irmãs, as dificuldades do amor e a magia
duradoura das histórias.

«Uma história encantadora que combina conto de fadas,


mistério e valor histórico com um toque virtuoso de amor.»
New York Journal of Books
Sobre Patti Callahan Henry

Patti Callahan Henry é uma autora bestseller do New York Times e


do USA TODAY, vencedora do Christy Award, do Harper Lee Award
e do Alabama Library Association Book of the Year. É
coapresentadora e cocriadora do podcast e web show Friends and
Fiction. Escreveu dezassete romances, entre os quais O Livro
Secreto de Flora Lea, bestseller imediato do New York Times e do
Globe and Mail e escolha de clubes de leitura da Barnes & Noble,
Indie Next, Publishers Weekly, Library Journal, entre outros. Foi
ainda considerado um dos melhores livros do ano para a revista
Real Simple, e nomeado para os She Reads Best of 2023 Awards e
para os Goodreads Choice Awards do mesmo ano.

A autora vive no Alabama com a sua família.

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