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© desta edição:
2024, Penguin Random House Grupo Editorial, Unipessoal, Lda.
Publicada por acordo com
Jane Rotrosen Agency, LLC, através de International Editors & Yañez’Co, S.L.
ISBN: 978-989-787-818-3
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Índice
Créditos
Dedicatória
Epígrafe
O Livro Secreto de Flora Lea
Nota da Autora
Agradecimentos
Sobre este livro
Não há muito tempo e não muito longe daqui, existiu e ainda existe um
lugar invisível que está mesmo ao nosso lado. Se nasceres ciente disso,
encontrarás o teu caminho pelo bosque até às portas cintilantes que abrem
para o mundo que foi criado única e exclusivamente para ti.
HAZEL MERSEY LINDEN, 1939
Outubro de 1940
Binsey, Oxfordshire
Março de 1960
Setembro de 1939
Março de 1960
Março de 1960
Londres, 1957
Setembro de 1939
E no verso da etiqueta.
DESTINO:
Nesta parte havia três linhas, uma para o condado, uma para a
freguesia e uma para a localidade. Estavam em branco porque
ninguém sabia onde elas iriam parar.
Uma onda de pessoas levantou-se atrás delas. Hazel sentiu-se
a cair para a linha férrea. Agarrou o casaco da mãe, que por sua
vez lhe agarrou o braço. Hazel olhou para as ervas daninhas que
cresciam por entre os carris de metal cinzento brilhante e, logo a
seguir, o comboio chegou com um clamor violento, por entre
guinchos, avanços e baforadas de fumo branco, como se
estivesse a arder.
A mãe soltou um grito, mas levou rapidamente a mão à boca.
— Todos a bordo! — gritou uma voz grave de homem.
Era chegada a altura da partida.
— Para onde vai este comboio? — quis saber Hazel.
— Não sei — respondeu-lhe a mãe, com a voz embargada. —
Mas, Hazel, envia-me o vosso postal assim que chegarem.
Preciso de saber que estão bem.
A voz da professora Plink fez-se ouvir:
— Subam a bordo! Meninos, subam!
Um a um, os colegas da turma de Hazel, e respetivos irmãos
mais novos, subiram as escadas da plataforma para o vagão. A
mãe abraçou as filhas e nem sequer tentou esconder as lágrimas
que lhe corriam pela cara.
— Não vou descansar enquanto não tiver notícias vossas.
— Adoro-te — disse Hazel, ciente de que aquela podia ser a
última coisa que diria à mãe.
A mãe abraçou as filhas enquanto sentiam os encontrões das
outras pessoas.
— Para onde vamos? — insistiu Hazel.
A professora Plink estava no topo das escadas e estendeu a
mão para puxar Hazel.
— Só saberemos quando chegarmos lá — disse ela. — O
destino é segredo para que não haja registos. É uma questão de
segurança. Podes enviar um postal assim que chegares.
O comboio avançou, por entre silvos do apito. Já estava outro a
chegar. Hazel pensou no acaso e na sorte, e em como outras
crianças entrariam noutro comboio a caminho de um lugar
diferente. Teria mais sorte neste comboio ou no próximo?
Impossível de saber?
Hazel e Flora cambalearam pelo corredor e encontraram dois
lugares vazios quando o comboio já ganhava velocidade. O
cabelo de Flora tinha-se soltado da fita cor-de-rosa que a mãe lhe
tinha posto e Hazel tirou o laço do cabelo da irmã e guardou-o no
bolso do casaco.
O comboio estava abafado. Havia demasiadas pessoas a
enchê-lo com a sua respiração. Hazel apertou a mão de Flora. Os
seus olhos estavam tão arregalados, enquanto olhava para as
outras crianças assustadas, as malas e mochilas esfarrapadas, as
fronhas cheias de roupas.
— Hazel, vamos encontrar um rio de estrelas? — perguntou-lhe
a irmã.
— Claro que sim — disse Hazel, com a autoridade de um adulto
que conta mentiras.
Flora adormeceu no colo de Hazel enquanto esta olhava pela
janela. As estações de comboio passavam sem nomes. Os
letreiros haviam sido removidos para confundir o inimigo que
procurasse orientações. Trocaram de linhas e Hazel ficou confusa
quanto à direção que seguiam. Por fim, fechou os olhos, mas não
conseguiu adormecer. Até que sentiu o comboio a parar.
As irmãs Linden desceram do comboio para uma plataforma de
madeira, de mochilas às costas. Flora trazia o Berry pela mão. O
sol da tarde estava alto e refulgente. Hazel não sabia quanto
tempo tinha demorado a viagem. Tinha sido uma hora… ou cinco?
Talvez até um dia.
Ficaram paradas juntamente com os colegas de turma, todos
juntos, de braço dado, as mochilas a baterem umas nas outras,
mas ninguém disse palavra. Num silêncio sinistro, seguiram a
professora Plink até ao interior da estação.
Uma placa preta com letras brancas esmaltadas estava
pendurada na parede: OXFORD.
Oxford, Inglaterra, era um lugar do qual Hazel já tinha ouvido
falar bastante. Foi onde o papá fez os seus estudos, em Christ
Church, e onde a mãe o visitara, vinda de Londres, durante os
tempos de faculdade. Era um cenário tão lendário como o Bosque
dos Sussurros, e sempre lhe parecera igualmente imaginário. Até
então, Bloomsbury tinha sido o único sítio real.
Tinha sido em Oxford que a mãe e o papá se tinham
apaixonado.
Porém, aquilo que Hazel via agora não era nada como havia
imaginado Oxford. As crianças todas amontoadas. Flora chorou
baixinho e Hazel deu-lhe a mão. Precisava de ser corajosa. Não
havia mais ninguém a quem recorrer.
Hazel nunca se sentira tão sozinha. Era um sentimento que a
consumia por dentro. Se a sobrevivência das irmãs ao tempo de
guerra dependesse dela, estavam condenadas.
— Vamos ficar aqui? — perguntou Flora.
Hazel respondeu com sinceridade.
— Não sei. — Tentou esboçar um sorriso. — Vamos comer a
merenda que a mãe preparou para nós.
Flora acenou com a cabeça e enxugou as lágrimas com as
costas da mão. Hazel beijou-lhe a cara e provou o medo salgado.
Ao seu lado, um menino chorava, com a virilha e a parte interna
das calças manchadas de urina. Hazel aproximou-se e tocou-lhe
no ombro, mas ele não prestou atenção, isolado no seu desgosto.
No outro lado da estação, a professora Plink falava com um
homem de farda azul rígida. Hazel não desviou o olhar da
professora enquanto guiava Flora até um caixote de madeira para
se sentarem. Abriram o embrulho que a mãe havia preparado:
dois ovos cozidos, um pedaço de queijo, dois nacos de pão. Havia
ainda um bilhete dobrado três vezes, formando um retângulo.
Flora olhou para Hazel.
— Lê.
— Vamos guardar para mais tarde, quando soubermos onde
vamos ficar.
Flora pegou no bilhete e enfiou-o no bolso da gabardina.
— Não o percas! — disse-lhe Hazel numa voz muito severa. O
lábio de Flora estremeceu.
— Não vou perder — garantiu-lhe.
Em silêncio, comeram o queijo, o pão, os ovos e, por fim,
saborearam lentamente dois pequenos quadrados de chocolate.
— Turma da professora Plink, sigam-me! — gritou uma voz
masculina com um forte sotaque cockney.
Outro colega de turma, um rapaz alto chamado Padraig Logan,
levantou a mão como se estivessem numa sala de aula e a
professora Plink tivesse pedido para resolverem o problema de
matemática no quadro.
— Sim, Padraig? — perguntou a professora.
— Para onde vamos? — A sua voz trémula assustou Hazel,
porque Padraig era o brincalhão da turma. Com o seu cabelo
escuro desgrenhado e os seus olhos azuis que pareciam
pequenos globos, era ele que sempre os fazia rir.
— Vamos seguir para a câmara municipal, no centro da cidade.
Quando lá chegarmos, serão escolhidos por uma família
encantadora que vos vai levar para casa. Vai correr tudo bem.
Hazel não acreditou na professora Plink, e ficou parada a olhar
para a palavra que sobressaía contra o negro da placa: OXFORD.
CAPÍTULO 7
Março de 1960
Março de 1960
Setembro de 1939
Março de 1960
Desculpa, tive de sair a correr. Tenho uma aula de orientação cedo e não
quis acordar-te. Encontramo-nos às 10h30, no Legrain.
Amo-te, B.
Setembro de 1939
Março de 1960
Março de 1960
Cape Cod, Massachusetts
Março de 1960
Setembro de 1939
Setembro de 1939
Querida mãe,
Estamos num chalé acolhedor, em Binsey, com a família Aberdeen: uma
mãe, Bridgette, e o seu filho, Harry, que nos escolheram para viver com
eles. Por favor, vem visitar-nos. Estamos em segurança. Já temos muitas
saudades tuas. As tuas filhas que te adoram, Hazel e Flora.
Março de 1960
Março de 1960
Março de 1960
Março de 1960
Setembro de 1939
Setembro de 1939
Março de 1960
Setembro de 1939
Março de 1960
Novembro de 1946
Querida Hazel,
Espero que esta carta chegue até ti. Há muitos anos que quero escrever-
te, mas não sabia o que dizer ou como encontrar-te. O Ethan disse-me que
te viu em Cambridge e que estás a estudar em Newnham. Por isso, se
esta carta chegar até ti, bravo, Ethan!
Março de 1960
Março de 1960
1 de fevereiro de 1940
Março de 1960
Março de 1960
Março de 1960
Março de 1960
Fevereiro de 1940
Março de 1960
8 de setembro de 1940
Março de 1960
Setembro de 1940
19 de outubro de 1940
Dia de Santa Frideswide
Março de 1960
19 de outubro de 1940
Março de 1960
19 de outubro de 1940
Outubro de 1940
19 de março de 1960
Hazel fechou o seu fino casaco amarelo com um cinto que atou
num laço elegante. A mãe e Kelty estavam à espera na entrada.
Hazel fechou a porta e trancou-a.
— Muito bem, podemos ir.
Saíram da parte de trás do táxi a um quarteirão do hotel. Por
cima de si, um céu azul, alto e límpido, sem nuvens. Kelty
perguntou:
— Acham que reconheceriam a Flora se a vissem?
A mãe respondeu prontamente:
— Reconhecê-la-ia assim que a visse. Se ela fosse minha filha.
Hazel sentiu um arrepio de amor. A mãe podia ter casado,
encontrado o amor e ter agora outro filho, mas reconheceria a sua
própria filha num piscar de olhos. A perda era companheira das
duas, a diferença era que a mãe tinha voltado a amar.
— Acho que sim — disse Hazel. — Quando olhei para a Iris,
tentei encontrar nela a Flora, mas não consegui. Claro que podia
ter-lhe pedido para me mostrar o pulso para ver se ela tinha as
orelhas de coelho.
Camellia interveio.
— As asas de borboleta.
— As asas de anjo — corrigiu Kelty. E sorriram uma para a
outra, ao reavivarem aquela velha piada. — Sabemos como é a
tal Peggy Andrews?
— Só sei que tem 24 anos. Não faço ideia de qual será o seu
aspeto. — Olhou para a entrada. — Ela sugeriu encontrarmo-nos
no átrio.
— Estou ansiosa por saber o que esta mulher pode ter para nos
dizer — confessou Kelty quando já estavam diante da fachada do
Savoy, com o seu letreiro vermelho, a rotunda cheia de táxis a
entrar e a sair, e o porteiro de cartola preta com uma rosa branca
na lapela a abrir a porta com um movimento treinado. — Espero
que valha a pena, porque não estou interessada em ouvir
histórias fantasiosas de magia a flutuar no ar.
Mesmo dominada pela preocupação, Hazel riu-se da melhor
amiga enquanto entravam no átrio refulgente e florido do hotel.
19 de março de 1960
19 de março de 1960
19 de março de 1960
Março de 1960
20 de março de 1960
20 de março de 1960
20 de março de 1960
Março de 1960
— Tenho frio — disse a Criança do Rio, com o corpo a tremer tanto que
os dentes batiam uns nos outros.
— Oh, minha menina!
A enfermeira despiu o casaco cinzento e embrulhou a criança nele. Sob
o casaco, tinha vestida a bata branca e engomada, com sangue na manga,
uma nódoa cor de ferrugem.
Pegou em Flora ao colo e abraçou-a contra o peito e contra o rosto. A
enfermeira, a sua ama chamada Imogene, cheirava a lavado. Com Flora
nos braços, Imogene pôs-se a correr, disparou pelo campo fora, para longe
da irmã de Flora, Hazel, e em direção à igreja. Flora conhecia o caminho
de casa, pelos campos de erva dourada, e sabia que estavam a ir na
direção errada. Tentou apontar para o chalé, para a sua casa, mas estava
demasiado embrulhada no casaco grosso.
— Vai correr tudo bem — tranquilizou-a Imogene. — Respira. Respira.
— O Berry! — gritou Flora, enquanto chocalhava nos braços de
Imogene.
A irmã de Flora, Hazel, tinha-a avisado: Se entrares no rio ou tentares
transformar-te no rio, nunca mais poderás voltar para junto da Bridie, nem
do Harry, e nem sequer de mim.
Mas Flora não tinha entrado no rio de propósito; a enfermeira tinha-a
assustado e ela escorregara.
— Bosque dos Sussurros, Bosque dos Sussurros, Bosque dos
Sussurros — balbuciou, na esperança de que as palavras mágicas
fizessem com que Imogene voltasse para trás e levasse Flora de volta
para junto de Bridie, de Hazel e de Harry.
Mas, em vez disso, chegaram à casa onde viviam as quatro
enfermeiras, e ficaram a sós. Lá dentro, na sala escura e fria, Imogene
sentou Flora numa cadeira da cozinha, descalçou-lhe as galochas e
despejou a água no lava-loiça. Imogene calçou umas meias de lã
enormes, de adulto, nos pés gelados de Flora, e sentou-a junto à lareira
quase apagada, onde reluziam brasas pretas.
— Leve-me para casa — implorou Flora, a tremer de frio, a precisar de
Bridie, de Hazel e de Harry, e da lareira quente da cozinha.
— Eles não tomam bem conta de ti. Nunca terás de voltar para aquela
família que não quer saber de ti.
— Eles amam-me — disse Flora, ciente da verdade.
— Não, não amam. Senão, tinham ficado a olhar por ti. Sem mim, ter-te-
ias afogado. Deixaram-te sozinha.
Flora fechou os olhos e sussurrou vezes sem conta: Bosque dos
Sussurros. Bosque dos Sussurros. Bosque dos Sussurros. Tinha de voltar.
Tinha de encontrar a irmã. As palavras não eram mágicas?
— O que é o Bosque dos Sussurros? — perguntou a enfermeira,
baixinho.
Flora abanou a cabeça. Hazel tinha-lhe dito para nunca, mas nunca
contar a ninguém sobre o Bosque dos Sussurros. Foi por isso que
deixaram Flora sozinha. Foi por isso que Flora acabou com o Berry à beira
do rio, porque quase contou a Harry sobre o seu mundo mágico. Não
contaria a Imogene, que cheirava a sabonete, mas tinha sangue na
manga.
Imogene desapareceu para um quarto das traseiras e voltou com um
cobertor de lã.
— Vou arranjar-te roupa e comida. Mas, por agora, temos de te
esconder.
— Porquê?
Sem responder, Imogene enfiou a mão no bolso e retirou um pequeno
comprimido branco.
— Abre a boca, minha querida menina. Isto vai fazer-te sentir melhor.
Flora abanou a cabeça e cerrou os lábios. Imogene fez-lhe cócegas por
baixo dos braços, beijou-lhe o pescoço e, quando Flora riu, enfiou-lhe o
comprimido amargo debaixo da língua, onde ficou a derreter. Voltou a
pegar em Flora, que pensou que talvez agora fosse finalmente voltar para
casa, para junto de Hazel, que a levaria ao Bosque dos Sussurros; para
junto de Bridie, que fazia papas de aveia quentes e cantarolava; para junto
de Harry, que estava a ensinar-lhe letras que faziam palavras.
Em vez disso, Flora foi levada alguns metros de distância, pelo cemitério
por trás da casa, passando as lápides inclinadas e cobertas de musgo, até
à Igreja de Santa Margarida e ao poço escuro, onde a princesa Frideswide
tinha, em tempos, curado os outros.
Flora sentia-se assoberbada com medo, frio e desespero. Precisava de
algo de Frideswide e do Bosque dos Sussurros — precisava de Hazel.
Rezou aos dois, porém Imogene levou-a para o interior da igreja escura,
com um rio de luz a atravessar as janelas. Flora sentiu que estava outra
vez debaixo de água e, no entanto, conseguia respirar.
Imogene ficou de pé com Flora diante do altar. Em seguida, avançou
uns passos e Imogene abriu uma pequena porta escondida, e entraram na
divisão mais minúscula que Flora alguma vez tinha visto. Tinha uma janela
tão pequena que a luz que a atravessava parecia uma lanterna acesa.
Continha apenas um banco e uma almofada para ajoelhar com uma fronha
bordada com videiras verdes. Havia um crucifixo de madeira pendurado na
parede, com o rosto de Jesus contorcido de dor, e sangue a escorrer-lhe
pela cara.
Flora gritou:
— Leva-me para casa!
— Eu sou a tua casa. Salvei-te, tal como Jesus me salvou. Agora, fica
aqui caladinha e quieta, eu volto para te buscar. Diz-me só uma coisa,
querida menina, o que é o Bosque dos Sussurros?
Uma onda de medo invadiu Flora quando a enfermeira a sentou no
pequeno banco e se baixou para a olhar de frente. E, apesar de Flora
saber que trairia a irmã, acreditou que a salvaria, que a enviaria de volta
para junto de Hazel.
— É o nosso mundo secreto.
A enfermeira sorriu e era tão bonita que Flora achou que ela não podia
fazer mal a ninguém.
— Então, vais poder ficar com o teu mundo. Agora, se ficares caladinha,
podes ficar com o teu mundo. Eu já volto com roupa seca e comida
quente. Descansa.
Flora ficou novamente sozinha quando a porta se fechou e foi trancada.
Fez o possível por ficar calada, mas quando voltou a ter frio e depois fome,
chorou, chamou por Bridie, por Hazel e por Harry, e até pelo Berry,
encharcado. Enrolou-se numa bola dentro do cobertor de lã, porém já não
conseguia aquecer-se.
Imogene dissera que ia voltar com roupa quente, mas, à medida que as
horas passavam, Flora ia ficando cada vez mais confusa. Será que se
tinha enganado no caminho e tinha atravessado a porta cintilante? Será
que se tinha afogado e agora estava presa algures do outro lado? Tremia e
entrava e saía de uma espécie de delírio até que finalmente entrou num
sonho agitado, e caiu do banco estreito para o chão de pedra, batendo
dolorosamente com a cabeça.
Muito mais tarde, depois de a janela de lanterna se ter apagado e
voltado a acender, Imogene regressou, com roupas quentes e macias que
não pertenciam a Flora. A enfermeira vestiu-a e deu-lhe uma sopa quente
de batata. À entrada do quarto estava uma mala de viagem florida, com
pegas de cabedal.
— Aonde vamos? — perguntou Flora, apercebendo-se de que Hazel
tivera razão: Flora nunca poderia regressar a casa porque entrara no rio,
traíra a irmã.
— Para o Bosque dos Sussurros — disse a enfermeira, com um sorriso
muito terno.
CAPÍTULO 54
Abril de 1960
Caro leitor,
«Não há muito tempo e não muito longe daqui, existiu e ainda
existe um lugar invisível. Se nasceres ciente disso, encontrarás o
teu caminho pelo bosque até às portas cintilantes que abrem para
o mundo que foi criado única e exclusivamente para ti.»
Assim começa O Livro Secreto de Flora Lea, um livro que vem
lembrar-nos de que somos um povo que cria mitos; é assim que
damos significado ao que não tem significado e sentido ao que
não tem sentido. É por isso que contamos histórias.
Para mim, muitas vezes as histórias que importam nascem do
acaso, e este romance não foi diferente. Enquanto pesquisava
para outro romance, fiquei impressionada com um pormenor da
história britânica de 1939. Ao abrigo da Operação Flautista de
Hamelin, as crianças das grandes cidades britânicas foram
enviadas para longe das famílias, de modo a ficarem a salvo dos
iminentes bombardeamentos alemães. Com etiquetas de
bagagem à volta do pescoço, máscaras de gás penduradas nas
mochilas e um envelope carimbado que seria enviado aos pais
assim que soubessem onde iam ficar, estas crianças foram
enfiadas em comboios e navios e enviadas para locais
desconhecidos.
Sinto arrepios só de pensar em enviar qualquer um dos meus
três filhos para longe. Como foram estes pais capazes de o fazer?
Será que as autoridades britânicas da altura não conheciam a
temível lenda do Flautista de Hamelin? A história original remonta
à Idade Média, à Alemanha do século XIV. Como a maioria das
lendas, mudou e transformou-se com o tempo. Mas, em traços
gerais, O Flautista de Hamelin tem como cenário uma pequena
cidade alemã chamada Hamelin. As crianças da história são
seduzidas pelos sons da flauta de um flautista bem vestido que as
leva a afogarem-se no rio Wesser. Ao longo do tempo, surgiram
muitas versões desta história, desde um poema de 1803, da
autoria de Johann Wolfgang von Goethe, passando pelo conto
dos Irmãos Grimm, até ao poema de 1842 de Robert Browning.
Através de inúmeras adaptações, musicais, óperas, peças de
teatro e livros, chegamos aos dias de hoje, onde até um romance
gráfico para jovens adultos de Jay Asher foi publicado em 2017. É
uma lenda contada de diferentes formas, vezes sem conta.
Porque daria o Governo ao seu plano de retirada o nome de
uma lenda infantil que dá conta do afogamento e
desaparecimento de crianças? Quero acreditar que se deve ao
facto de não conhecerem verdadeiramente a história, de terem
escolhido o nome sem analisarem o conteúdo da lenda.
Diz-se que este projeto foi uma decisão difícil e emotiva do
Governo britânico. O objetivo era retirar as crianças das zonas
onde era mais provável haver bombardeamentos e transferi-las
para locais de baixo risco. Algumas crianças foram enviadas para
o campo (como as minhas irmãs fictícias, Hazel e Flora, foram
enviadas para Oxfordshire), e outras foram enviadas para países
estrangeiros, tais como África do Sul, Austrália, Estados Unidos
da América e Canadá.
Após a declaração de setembro de 1939, mais de três milhões
de crianças foram transferidas em apenas quatro dias. No final,
mais de três milhões e meio de crianças foram realojadas. Houve
histórias extraordinárias de crianças que encontraram lares
encantadores no campo, mas também houve histórias horríveis.
Nem todos os deslocados ficaram a salvo. Setenta e sete crianças
morreram quando um navio que transportava refugiados para o
Canadá foi torpedeado e afundado por um submarino alemão.
A cena do meu romance em que Hazel e Flora estão a ser
escolhidas pelas famílias de Oxfordshire foi uma reconstituição
fictícia de um cenário muito real que se repetiu vezes sem conta
nos anos que mediaram 1939 e 1944, com a declaração de
vontade «Escolho esta criança» a ecoar de costa a costa. Por
toda a Inglaterra foram afixados cartazes a incentivar as mães a
mandarem os seus filhos para longe, e outras famílias foram
instadas a cumprir o seu dever para com a Coroa e a alojar os
deslocados.
Enquanto lia sobre este plano do Governo, também encetei uma
pesquisa sobre contos de fadas, o que significam para nós e
porque nos afetam tanto. A história dos contos de fadas é longa,
bela e complicada. Está relacionada com a mitologia, mas difere
dela. Fiquei fascinada com a afirmação de J. R. R. Tolkien de que
os contos de fadas têm uma importância vital para a vida interior
das crianças e que oferecem aquilo a que ele chama «o consolo
de um final feliz».
Enquanto ponderava sobre uma operação em tempo de guerra
a que foi dado o nome de uma lenda fatal e sobre o mundo dos
contos de fadas que acalentou tantas crianças ao longo do tempo,
imaginei duas irmãs, Hazel e Flora, de Bloomsbury, em Londres.
Imaginei que seriam enviadas para um abrigo na zona rural de
Oxford. Ouvi Hazel a consolar a irmã mais nova com uma terra de
conto de fadas a que chamou Bosque dos Sussurros, um lugar
mítico, fruto da sua própria imaginação, que ganhava vida no
tronco oco de um carvalho. Ali, as meninas estavam em
seguras… até deixarem de estar, quando Flora, de 6 anos,
desaparece.
Sempre senti um enorme fascínio pelo mundo invisível, pelo
mundo natural como bálsamo e escape, e pela capacidade que as
crianças têm de sobreviver através das histórias num mundo
caótico. A metáfora do rio, com o seu destino final e a sua
nascente, é algo que sempre me cativou.
Com O Livro Secreto de Flora Lea, quis contar uma história que
tivesse como pano de fundo uma paisagem mítica, onde
reverberasse o encanto da narração de uma história de laços
fraternos e de um primeiro amor ingénuo; de inocência perdida e
de preservação da esperança contra todas as probabilidades.
Quis que as meninas habitassem um mundo mágico, imaginário e
telúrico, e coloquei-as em Binsey (uma aldeia com os seus
próprios mitos e lendas), nos arredores de Oxford.
Mas, acima de tudo, quis contar uma história onde ressoassem
estas palavras de Mary Oliver: «E disse o rio: imagina tudo o que
conseguires imaginar, e depois vai mais além.»