Você está na página 1de 144

Copyright © 2021 by Editora Corvus

Copyright do texto © 1894 by Arthur Machen

Todos os direitos reservados. Não é permitida a reprodução total ou parcial


desta edição - em qualquer meio ou forma - sem a expressa autorização da
editora.

Curadoria: Henrique Morais

Tradução: Thais Rocha

Preparação de texto: João Pedroso

Revisão: Jadeh Rodrigues e Bruny Guedes

Posfácio: Rodrigo Kmiecik

Projeto gráfico e diagramação: Henrique Morais

Ilustrações: Rafael Antonio

E-book: André Caniato

1ª edição, 2021.

Catalogação na fonte

Bibliotecária Catarina Jenifer de Oliveira Martins CRB-4/2266

M149g

Machen, Arthur

O Grande Deus Pã / Arthur Machen; Thaís Rocha (trad.); Rafael Antônio


(Il.). – 1. ed. – Feira de Santana, Bahia: Editora Corvus, 2021.

2.400 kb.: il. (Preto e branco); Epub3.


Pósfacio by: Rodrigo Kmiecik.

ISBN: 978-65-990768-2-4.

1. Horror. 2. Literatura Inglesa. 3. Ficção. I. Antônio, Rafael. II. Rocha,


Thaís. III. Titulo

821.111.2(82)-31 CDU

823 CDD

www.editoracorvus.com.br
SUMÁRIO

Introdução (por Arthur Machen)


O experimento
As memórias do Sr. Clarke
A cidade das ressurreições
A descoberta na Rua Paul
A carta de aconselhamento
Os suicídios
O encontro no Soho
Os fragmentos
Posfácio (por Rodrigo Kmiecik)
O clube perdido
Fora da Terra
Agradecimentos
INTRODUÇÃO [1 ]
por Arthur Machen

O grande deus Pã foi publicado pela primeira vez em dezembro de 1894.


Sendo assim, o livro já atingiu a maioridade, e fico feliz em aproveitar a
oportunidade de uma nova edição para relembrar o início dos anos 1890,
época em que a história foi escrita e publicada — aqueles anos 90 dos quais
não fui nem mesmo uma pequena parte, não fiz parte alguma. Pois aqueles
eram os dias do The Yellow Book , do Keynotes e do Keynotes Series , de
Aubrey Beardsley e do The Woman Who Did , de muitas coisas portentosas
nos ramos da escrita, do desenho e da publicação. O grande deus Pã teve a
sorte de ser publicado pela The Bodley Head, que era o centro deste
movimento, e sem dúvidas o livro se beneficiou do barulho que o
movimento fazia. Mas esse benefício, de certa forma, foi ilegítimo; já que a
história foi concebida e escrita em isolamento, e se originou de dias
afastados e solitários passados em uma terra longe de Londres e das
sociedades e confrarias literárias. Logo, se representa alguma coisa, não é a
efervescência dos anos 1890, mas sim as visões que um garotinho teve no
início dos anos 1860 e 1870.

Todos conhecemos o ditado: “SI JEUNESSE SAVAIT” [2 ]. Eu a respeito


há alguns anos e só recentemente comecei a ter sérias dúvidas quanto à
veracidade da declaração implícita. “Se ao menos a juventude
entendesse”… mas tenho uma forte suspeita de que, se a juventude
entendesse, seria tão desvantajosa e infrutífera quanto os anos mais estéreis
da velhice. Acredito que o que a juventude alcança, o faz simplesmente
porque não tem conhecimento. O entendimento lógico é a prisão da ode
suprema e magistral de Wordsworth; é a casa do artifício prudente, dos
cálculos dos meios para atingir o fim; é a região onde as coisas podem ser
feitas seguindo uma receita, onde os efeitos são todos previstos e
pretendidos. É a casa da matéria e do mecanismo. E quando os jovens
fazem algo bem ou muito bem, é porque não foram totalmente encobertos
pelas sombras das paredes dessa prisão; o fazem porque não entendem.
Não… Isso ocorre mesmo com o avançar da idade. Cervantes entendeu
muito bem que escreveria uma versão burlesca e engenhosa dos romances
de cavalaria, que faria as pessoas rirem com uma boa dose de comédia
vulgar, uma ampla farsa e situações engraçadas; ele compreendeu também
que deveria resgatar seu livro da acusação de pura vulgaridade, inserindo
aqui e ali alguma literatura real, na forma de certas passagens elegantes de
sentimento e de paixão. Ele entendeu tudo isso; mas não entendeu de forma
alguma que faria algo infinitamente maior do que tudo isso; e, então, ele o
fez, tornando Dom Quixote uma obra-prima imortal. Esta foi a conquista de
um jovem restaurado; é o exemplo mais claro que conheço da lei que diz
que os jovens são bem-sucedidos porque não compreendem.

Aqui, uma descida horrível precisa ser feita; então façamo-la rapidamente.
É preciso descer dos picos altos, brilhantes e remotos até as colinas
caseiras, em outras palavras, explicar como acabei escrevendo O grande
deus Pã . Descobri, muitos anos depois, como foi feito, como meus efeitos
eram produzidos; mas tenho certeza de que nada entendi sobre as
verdadeiras origens e essências da história enquanto a escrevia. Tudo veio
de uma casa solitária na encosta de uma colina, sob um grande bosque,
acima de um rio na região onde nasci.

Llanddewi Rectory [3 ], onde fui criado, tem vistas para uma região
maravilhosa e encantadora. A colina em que a casa se encontra desce
através de pomares de macieiras até uma área selvagem onde crescem
vegetação rasteira e samambaias; no coração desta pequena floresta há uma
nascente cujas águas correm para o riacho de Soar [4 ]. Além do terreno
novamente inclinado, a Igreja Landdewi se ergue, antiquíssima, entre teixos
escuros; as colinas ficam mais altas à direita e à esquerda dela, as da direita
repleta de árvores. Muitas vezes passei tardes passeando no bosque durante
o verão, vendo o brilho do sol e o agitar do vento nas árvores mais
próximas, pensando no que Ulisses disse de seu querido Zacynthus “coberto
de árvores, tiritando de folhas”. Então, mais além, outra elevação,
Llanhenocm, e a distância era diminuída pela vasta parede verde de
Wentwood, um remanescente, ainda grande, da Floresta de Gwent que
outrora cobrira todo a margem do baixo Usk e do Wye. Visível, embaixo
desta floresta, ficavam as paredes brancas de uma casa, que me disseram se
chamar Bertholly.

Por alguma razão, ou sem razão alguma, esta casa que ficava nas fronteiras
das paredes verdejantes do mundo de minha juventude tornou-se um objeto
de misteriosa atração para mim. Tornou-se um dos muitos símbolos do
mundo das maravilhas que me foram oferecidos; tornou-se, por assim dizer,
uma grande palavra na linguagem secreta pela qual os mistérios eram
comunicados. Sempre pensava nela com algum espanto, até mesmo certo
pavor. Sua aparência representava… eu não sabia o quê. Assim foi por
muitos anos. Mas acredito que eu deveria ter 12 ou 13 anos quando vi
Bertholly de perto. Meu pai me levou para ver um clérigo vizinho que
morava em um lugar chamado Tredonoc, e Tredonoc desce até as margens
do Usk. No caminho, passamos por um labirinto de colinas e vales, por
bosques, por trilhas profundas, por caminhos sobre terras submersas; não
podíamos ver distâncias. Mas depois que a chamada ao reitor foi feita, nós
avançamos um pouco e, no topo de uma pequena colina, vimos de repente
diante de nós um sonho de beleza mística — o vale do Usk [5 ]. Ainda,
mesmo depois de muitos anos terem se passado, depois de muitas coisas
terem sido quebradas para sempre, lembro de como isso me subjugou e
possuiu, de como a alma é subjugada e possuída pelo primeiro beijo da
pessoa amada.

E lá, sob o vasto verde da floresta, bem acima das místicas e prateadas
curvas do rio, estava Bertholly, que era mais inexplicável, mais maravilhosa
e mais significativa quanto mais de perto era contemplada.

Stevenson [6 ], acredito, conhecia essas emoções que estou tentando


expressar. Para ele, o assunto se apresentava assim: há certas paisagens,
certas colinas, vales e bosques de pinheiros que exigem que uma história
seja escrita sobre eles. Eu refinaria o pensamento: diria que as emoções
despertadas por essas coisas externas que reverberam no coração, são de
fato a história; ou tudo o que significa algo na história. Mas, sendo nosso
ofício o das letras, devemos expressar o que sentimos por meio das
palavras. E uma vez que as palavras são concedidas, caímos na região do
entendimento lógico, somos forçados a imaginar incidentes e circunstâncias
e tramas, a “inventar uma história”; traduzimos uma colina em conto,
concebemos amores para explicar um riacho, transformamos o perfeito em
imperfeito. O músico deve ser mais feliz em sua arte, se não for um escravo
miserável dessas lamentáveis loucuras que imitam o mugido do gado por
algum grande chifre de bronze. O verdadeiro músico exerce uma arte
perfeita: para ele, não há descidas para as lógicas da trama.

Para mim, esses pensamentos sobre Bertholly, a admiração pela floresta e


pelo correr do rio sinuoso permaneceram por muitos anos, como algo a ser
expresso. E a esses se juntaram o sonho que criei para mim mesmo quanto à
Carleon-on-Usk, a cidade onde nasci, um lugar muito antigo, que já fora lar
das legiões, o centro de uma cultura romana exilada no coração das terras
celtas. Eu tinha visto um homem olhando para uma moeda de ouro brilhante
que seu jardineiro trouxe para ele ao fazer um novo canteiro de frutas. Ela
brilhava sob a luz do sol; mas 1.800 anos pesavam nela. Eu tinha visto um
vaso de vidro, iridescente, maravilhoso como uma opala, após aqueles
longos séculos de permanência na terra, que, como dizem, exalava aromas
ricos e doces ao sair de sua profunda sepultura aônica. Eu ficara parado,
sonhando sob as ruínas da muralha da cidade romana enquanto o sol se
punha vermelho sobre Twyn Barwm, e observei os traços maliciosos do
Fauno construído como um ornamento na parede de uma casa moderna em
Caerlon. Em suma, sempre houve um sonho que me acompanhou, com a
cidade antiga e os ritos anteriores por ela testemunhados; com as velhas
colinas e os velhos bosques fazendo um círculo verde profundo ao redor
dela. Essas, acredito, foram as fontes de minha história. Claro, deixo de fora
o centro de tudo, que é o coração do autor; mas esse é um segredo
escondido dele e revelado aos críticos, alguns dos quais me proponho a
citar.

Bem, encontrava-me no ano de 1890, aos 27 anos de idade, de certa forma,


um homem das letras. Deixe que eu me apresse a dizer que ninguém que
tivesse alguma importância sabia alguma coisa sobre mim ou sobre o que
eu fazia. Eu não tinha nenhum tipo de conexão literária. Mas havia
traduzido o Heptaméron de Margaret de Navarra e o Moyen de Parvenir de
Beroalde de Verville. Também tinha escrito um volume de contos à maneira
da Renascença, um livro chamado The Chronicle of Clemendy . Num geral,
eu adquirira esse mau hábito de escrever, aquela coceira esquisita que tanto
faz que o paciente, se não estiver escrevendo ou pensando em algo para
escrever, fica entediado, nervoso e infeliz. Então, eu escrevia.

Comecei, como muitos escritores melhores do que eu, com pequenos textos
para o The Globe . The Globe pagava um guinéu, mas descobri que o St.
James’s Gazette pagava duas libras pelo mesmo número de palavras, então
escrevi o máximo que pude para eles. Esses escritos eram, a princípio,
“ensaios” ou artigos sobre coisas em geral, livros, paisagens campestres,
dias de verão ou estradas nevadas no inverno, canções antigas, provérbios
antigos — ou qualquer coisa que me passasse pela cabeça. Então, por um
acaso, conheci Oscar Wilde, e jantei com ele. No jantar, ele me contou o
enredo de uma história escrita por um amigo dele, que ele descreveu como
“maravilhoso”. Não me pareceu tão maravilhoso assim. Não via por que eu
não poderia pensar em um enredo tão bom ou quase tão bom — sempre
reservando, é claro, meu primeiro princípio, que tem sido um conforto em
toda a minha vida literária: que nada do que escrevi, estou escrevendo, ou
escreverei pode ter a menor utilidade ou lucro para mim ou para qualquer
outra pessoa. Contudo, de qualquer forma, tentei minha mão em uma
história ligeiramente extravagante (sobre um famoso baronete que adorava
dar jantares e que acabou sendo seu próprio cozinheiro) e a enviei para o St.
James’s . Para minha alegria, eles a publicaram, então comecei a escrever
histórias. Minhas histórias eram, estranhamente, contos sobre a
“sociedade”. Estranhamente porque sei tanto sobre a “sociedade” quanto
sobre os hábitos do corujão-orelhudo.

Por que não enviei O grande deus Pã para o St. James’s Gazette , isso eu
não sei. Porém, no verão de 1890 um novo jornal semanal foi lançado, o
The Whirlwind . Ele defendia os princípios jacobitas e imprimia contos,
então, quando pensei no que hoje é o primeiro capítulo de O grande deus
Pã , enviei para o The Whirlwind , e lá ele apareceu. Eu não tinha noção de
que haveria algo depois deste primeiro capítulo; e foi muitos meses depois,
em algum momento em janeiro de 1891, que comecei a escrever um de
meus curtos contos de “sociedade”, A Cidade das Ressurreições , que agora
é o terceiro capítulo do livro. Terminei a história e descobri que nunca daria
certo; o horror oculto sugerido nela não combinava com a estrutura
“social”. De repente, me dei conta de que esse conto era uma continuação
da história publicada no The Whirlwind ; que havia muitos outros capítulos
para escrever: em resumo, que, de alguma forma, eu me deparara com uma
ideia. Fiquei feliz por uma noite inteira, enquanto pensava na coisa curiosa
e bela que estava prestes a inventar. Pensei nessa coisa curiosa e bela
quando li as provas do livro finalizado pela primeira vez, e então
resmunguei, percebendo o grande abismo que se estabeleceu (para mim)
entre a ideia e o fato.

Mas isso está indo rápido demais. Escrevi, com uma dificuldade terrível,
com desespero doentio, com o coração apertado, com a esperança sempre
me fugindo, todos — com exceção do último — os capítulos do livro.
Claro, eu havia planejado tudo cuidadosamente no papel e, à medida que
prosseguia, história após história, meu castelo de cartas caiu em ruínas; esse
dispositivo, descobri, não me serviria de forma alguma; aquele incidente
jamais transmitiria o significado pretendido. Contudo, de alguma forma, a
coisa foi feita. Todos, exceto o último capítulo; e este eu não conseguia
fazer de jeito nenhum. Não pude evitar: deixei o manuscrito de lado e havia
me resignado muito bem a deixá-lo inacabado para sempre. Foi só no mês
de junho seguinte que me ocorreu uma possível maneira de encerrar o livro
e, assim, em junho de 1891, estava tudo concluído. Enviei o manuscrito aos
Srs. Blackwood de Edimburgo; e eles o declinaram muito civilizadamente,
elogiando sua inteligência — o livro não é nada inteligente — mas
“recuando”, se bem me lembro, “da ideia central”. Não lembro se tentei em
vão outros editores; mas O grande deus Pã foi aceito pelo Sr. John Lane, do
Bodley Head, e publicado por ele em 1894.

Então as críticas começaram a sair, e foi aí que a diversão começou [7 ]. E


devo confessar que me diverti bastante, pois eu encontrava esse tipo de
coisa esperando por mim à mesa do café.

Não é culpa do Sr. Machen, mas seu infortúnio, que o leitor trema de tanto
rir e não de medo ao contemplar seu monstro psicológico.
— Observer.

Seu horror, lamentamos dizer, nos deixou bastante decepcionados.


Cavalheiros galantes suicidam-se com a simples visão da coisa maldita;
aqui há assassinatos, inquéritos, alarmes e excursões — e nossos pelos
obstinadamente se recusam a se arrepiar. Por quê? Possivelmente porque
nos cansamos dessa recente taumaturgia mórbida e “além da compreensão”.

— Chronicle.

Nas mãos de um estudante de ocultismo pode se tornar algo poderoso. Da


forma como está, não funciona.

— Sunday Times.

Se o objetivo do Sr. Arthur Machen era nos arrepiar, só podemos falar por
nós mesmos e dizer que lemos o livro sem sentir coisa alguma… A história
é, de fato, elaboradamente absurda… Tão sem sentido quanto uma alegoria,
pois é absurda de qualquer outro ponto de vista.

— Westminster.

Nem mesmo uma remota sensação de arrepio essa história causará na mente
de qualquer um que a leia.

— Echo.

Seus monstros não assustam. Na próxima tentativa, no entanto, pode ser


que acerte.

— Sketch.

“Em verdade”, riu a Anfitriã, “o Yellow Book é uma doença?” [8 ]…


“Sim”, continuou o Filósofo, meditativamente… “e quanto ao ‘The House
of Shame’ [A Casa da Vergonha] e ‘O grande deus Pã’… Bom, existem
alguns tipos de doenças que não são mencionados fora dos tratados
médicos.

— W. L. Courtney, The Daily Telegraph.


Lamentamos dizer que ele só é bem-sucedido em ser ridículo. O livro é, de
forma geral, o mais aguda e intencionalmente desagradável que já vimos
em língua inglesa. Poderíamos dizer mais, mas vamos nos abster de fazer
isso por receio de propagandear tal obra.

— Manchester Guardian.

Apesar de toda a glória das artes do encadernador e do impressor, temos


duas histórias sem grande distinção.

— National Observer.

Este livro é horrível, medonho e enfadonho… a maioria dos leitores o


abandonará com absoluto nojo.

— Lady’s Pictorial.

Esses truques também têm seu lado ridículo.

— Guardian.

É um pesadelo incoerente de sexo e dos supostos mistérios horríveis por


trás dele, tais como poderia concebivelmente possuir um homem dado à
meditação mórbida sobre esses assuntos, mas que logo seria levado à
insanidade se não fosse contido… inócuo por ser absurdo.

— Westminster (Segunda notícia).

Como as pessoas se preocupavam umas com as outras antigamente! Passei


as páginas do álbum de recortes em que preservo religiosamente esses
trechos com uma terna melancolia, que, no entanto, não é de todo triste. Na
verdade, me senti mais como um homem que encontra uma flor ou uma
folha amassada em um livro antigo que ele raramente abre, que não lê há
anos. Ele se lembra do caso, seja o que for; reconhece que tudo acabou há
muito tempo, que foi uma coisa boba, na melhor das hipóteses; e, no
entanto, a florzinha murcha traz de volta aquela noite de primavera e o faz
se sentir um menino de novo. Ele é mais sábio agora; mas, na época, os
ramos brancos de maio pairavam logo acima das paredes do Paraíso. Assim,
li mais uma vez essas florzinhas desbotadas da fala e me sinto um menino
novamente. Ou melhor, uma espécie de menino, um menino de trinta anos
que quase morreu de fome em uma pensão em Londres, que labutou e se
desesperou com a alquimia impossível das letras, não encontrando nada
além de cinzas em seu cadinho, que dedicou muitos anos solitários ao
trabalho. Esse menino, eu o reencontro nas páginas de meu velho álbum de
recortes. Eu aceno para ele do outro lado da grande ponte dos anos e lhe
dou adeus.
1. Essa introdução apareceu na edição de O grande deus Pã de 1916,
publicada em Londres pela Simpkin & Marshall. Meus agradecimentos
ao Mark Valentine, que me permitiu acesso ao texto através de uma
exemplar da sua coleção, e ao Alcebíades Diniz Miguel, que me
auxiliou em contatar o sr. Valentine. Todas as notas que se seguem são,
como esta, do prefaciador deste livro. ↩
2. A frase inteira de Henri Estienne II diz: si jeunesse savait, si vieillesse
pouvait! Em português: “se a juventude soubesse, se a velhice
pudesse!”. Sublinhando o problema da falta de experiência e sobra de
possibilidades da juventude, ao lado da sobra de experiência mas falta
de possibilidades da velhice. ↩
3. Também conhecida como “The Old Rectory” ou “Llandewi Fach
Rectory”, é a casa paroquial em que Arthur Machen cresceu junto do
pai, que era vigário. ↩
4. O nome do riacho também faz referência ao vilarejo de Soar, que fica a
leste de Llandefaelog Fach. ↩
5. O rio Usk, um dos maiores rios do País de Gales. Hoje o vale do Usk é
um local de grande importância histórica e turística, guardando
diversas ruínas do tempo em que Caerleon era domínio romano. ↩
6. Robert Louis Stevenson (1850–1894), grande influência literária para
Machen. ↩
7. Arthur Machen sempre respondeu às muitas críticas com acidez e
ironia. Na introdução de sua coletânea The House of Souls (1922),
Machen citou alguns dos trechos aqui coletados e declarou: “Vários
jornais, eu me lembro, declararam que O grande deus Pã era
simplesmente uma repetição estúpida e incompetente de Là-Bas e À
Rebours de Joris-Karl Huysmans. Eu não tinha lido esses livros, então
comprei os dois. E assim percebi que meus críticos também não os
haviam lido.” ↩
8. The Yellow Book foi um famoso periódico britânico que publicou
majoritariamente literatura fantástica, decadentista e simbolista.
Grandes autores da ficção sobrenatural publicaram nas páginas do The
Yellow Book , como Henry James, H. G. Wells e Vernon Lee, grandes
poetas como William Butler Yeats e Arthur Symons, além de
ilustradores notáveis como John Singer Sargent e Aubrey Beardsley.

I

O EXPERIMENTO
— Fico feliz que tenha vindo, Clarke, de verdade. Não tinha certeza se você
teria tempo.

— Consegui me programar para alguns dias. As coisas não estão lá muito


animadas agora. Mas você não está receoso, Raymond? É realmente
seguro?

Os dois homens circulavam devagar pela varanda na frente da casa do Dr.


Raymond. O sol ainda pairava sobre as montanhas a oeste, mas brilhava em
um tom opaco de vermelho que não projetava sombras, e o ar à volta estava
silencioso. Um sopro doce vinha dos bosques adiante, trazendo consigo o
arrulhar suave dos pombos selvagens. Abaixo, no longo e adorável vale, o
rio serpenteava entre as colinas solitárias e, enquanto o Sol pairava e
desaparecia a oeste, uma névoa fraca e branquíssima começava a se erguer.
O Dr. Raymond virou-se abruptamente para seu amigo.

— Seguro? Mas é claro! Não há segredo com essa operação, qualquer


cirurgião poderia realizá-la.

— E não há nenhum perigo em qualquer outro estágio?

— Nenhum. Absolutamente nenhum perigo físico, eu garanto. Você é


sempre receoso, Clarke, sempre; mas conhece minha história. Dediquei-me
à medicina transcendental pelos últimos vinte anos. Já fui chamado de
curandeiro, charlatão e impostor, mas sempre soube que estava no caminho
certo. Cinco anos atrás, atingi meu objetivo e, desde então, todos os dias
foram uma preparação para o que faremos hoje à noite.

— Queria acreditar que é tudo verdade. — Clarke franziu as sobrancelhas e


olhou com dúvida para o Dr. Raymond. — Raymond, você tem certeza de
que sua teoria não é uma fantasmagoria? Uma visão esplêndida, sem
dúvidas, mas nada além disso, uma visão ?
Dr. Raymond parou de andar e virou-se bruscamente. Ele era um homem de
meia idade, magro, esguio e com uma pele amarelada, mas enquanto
respondia Clarke, encarando-o, um rubor tomou suas bochechas.

— Olhe à sua volta, Clarke. Você vê as montanhas, e colina após colina,


como ondas sobre ondas, vê o bosque e o pomar, os campos com trigo
pronto para ser colhido e os prados encontrando os canaviais à beira do rio.
Você me vê aqui ao seu lado e escuta minha voz, mas lhe digo: todas essas
coisas, desde aquela estrela que acabou de aparecer no céu até o chão sob
nossos pés, não passam de sonhos e sombras. Sombras que escondem o
verdadeiro mundo dos nossos olhos. Existe um mundo real, mas ele está
além desse encanto e dessa visão, dessa busca por algo maior, que o
esconde como se fossem um véu. Não sei se algum ser humano já
conseguiu erguer esse véu, mas o que sei, Clarke, é que você e eu o
veremos levantado hoje mesmo, bem à nossa frente. Você deve achar que
isso não passa de um delírio. Pode até ser, mas é verdade, e os antigos
sabiam o que significava. Eles chamavam isso de ver o deus Pã.

Clarke estremeceu. A névoa branca que se amontava sobre o rio era fria.

— De fato, parece maravilhoso — disse ele. — Se o que você diz é


verdade, Raymond, estamos à beira de um mundo desconhecido. Devo
acreditar que a faca seja mesmo indispensável?

— Sim, mas só para uma minúscula lesão na massa cinzenta, nada além
disso. Um rearranjo insignificante de células, uma alteração tão
microscópica que passaria despercebida por 99 de 100 especialistas em
neurologia. Não quero incomodá-lo com pormenores, Clarke. Eu poderia
lhe dizer um monte de detalhes técnicos que soariam imponentes, mas que
não lhe deixariam menos confuso do que você está agora. Mas suponho que
tenha lido, casualmente, em algum canto do seu jornal, que avanços
imensos foram feitos recentemente quanto à fisiologia do cérebro. Vi um
parágrafo outro dia sobre a teoria de Digby e as descobertas de Browne
Faber. Teorias e descobertas! Onde eles estão agora, eu estive quinze anos
atrás, e nem preciso dizer que não estive parado esse tempo todo. Será
suficiente dizer que passei dez anos acreditando que havia atingido meu
objetivo, mas apenas há cinco fiz a real descoberta à qual me referia.
Depois de anos de trabalho e suor, tateando no escuro, de dias e noites de
decepções e desespero, nas quais eu, por vezes, ficava estarrecido com a
ideia de que talvez houvesse outros procurando o que eu buscava.
Finalmente, depois de todo esse tempo, uma pontada súbita de alegria
tomou minha alma, e soube que a longa jornada estava no fim. Pelo que
pareceu então, e ainda parece, um simples acaso, um pensamento
involuntário seguiu por caminhos familiares, pelos quais eu já tinha seguido
centenas de vezes. A grande verdade explodiu sobre mim e vi, mapeado em
linhas de visão, um mundo inteiro, uma esfera desconhecida; continentes,
ilhas e grandes oceanos nos quais nenhum navio jamais navegou desde que
o Homem levantou os olhos pela primeira vez e encarou o Sol e as estrelas
do firmamento, bem como a silenciosa terra sob seus pés, assim acredito.
Você pensará que estou apenas fazendo floreios linguísticos, Clarke, mas é
difícil ser literal. Além disso, não sei se tudo que estou sugerindo pode ser
apresentado em termos simples, concisos. Por exemplo, nosso mundo está
bem envolto por fios e cabos de telégrafo. O pensamento, com velocidade
menor que a dele próprio, viaja do nascer ao pôr-do-sol, de norte a sul,
através de inundações e lugares desertos. Imagine um eletricista de hoje em
dia percebendo, de repente, que ele e seus amigos estiveram apenas
brincando com pedrinhas e confundindo-as com as fundações do mundo.
Imagine esse homem vendo o verdadeiro espaço se abrir diante de seus
olhos, e as palavras humanas indo até Sol e para além dele, em direção a
outros sistemas, e a voz da humanidade ecoando no vazio desolado que
limita nosso pensamento. No que diz respeito a analogias, esta é uma
bastante boa para explicar o que fiz. Agora, você poderá entender um pouco
do que senti, parado aqui certa noite. Era verão, e os vales não estavam
muito diferentes de como estão hoje . Eu estava aqui e vi diante de mim o
indizível, o impensável abismo que se abre profundamente entre dois
mundos: o da matéria e o do espírito. Vi esse grande e profundo vazio
escurecer à minha frente e, então, uma ponte de luz saltou da terra até a
costa desconhecida, e o abismo foi cruzado. Você pode olhar no livro de
Browne Faber, se quiser, e encontrará que, até hoje, os cientistas não foram
capazes de explicar a presença ou de especificar as funções de um certo
grupo de células nervosas no cérebro. Esse grupo está, por assim dizer,
dando sopa , não passa de um mero desperdício de espaço para teorias
fantasiosas. Não estou na posição de Browne Faber e dos especialistas, sou
perfeitamente bem instruído quanto às possíveis funções desses centros
nervosos no grande esquema das coisas. Com um toque, posso colocá-los
em ação, com um toque, afirmo, posso liberar a corrente, com um toque,
posso completar a comunicação entre esse mundo dos sentidos e…
Poderemos terminar essa frase mais tarde. Sim, a faca é necessária, mas
pense no efeito que ela trará. Nivelará por completo a sólida parede do
sentido e, provavelmente, pela primeira vez desde que o homem foi criado,
um espírito contemplará um mundo espiritual. Clarke, Mary verá o deus Pã!

— Mas você se lembra do que me escreveu? Pensei que fosse necessário


que ela…

Ele sussurrou o restante ao ouvido do médico.

— De forma alguma, de forma alguma. Isso é besteira, posso garantir. De


fato, é melhor como está, tenho certeza absoluta.

— Pense bem nisso, Raymond. É uma grande responsabilidade. Algo pode


dar errado. Você seria um homem infeliz até o fim de seus dias.

— Não, acho que não, mesmo se o pior acontecesse. Como sabe, resgatei
Mary da sarjeta, e certamente da fome, quando ela era criança. Creio que a
vida dela é minha, para usar da forma que eu ache melhor. Venha, está
ficando tarde. É melhor entrarmos.

Dr. Raymond guiou o caminho para dentro da casa, passando pela sala e
seguindo por um longo corredor escuro. Tirou uma chave do bolso e abriu a
pesada porta, indicando que Clarke entrasse em seu laboratório. O cômodo
já fora um salão de bilhar e era iluminado por um domo de vidro ao centro
do teto, de onde uma triste luz cinza ainda iluminava a silhueta do médico
enquanto ele acendia uma luminária de sombra ampla e a colocava sobre
uma mesa no meio da sala.

Clarke olhou em volta. Pouquíssimos centímetros de parede estavam


vazios; havia prateleiras por todos os lados, lotadas de garrafas e frascos de
todas as formas e cores, e em um dos cantos erguia-se uma estante
Chippendale. Raymond apontou para ela.

— Sabe esse pergaminho de Oswald Crollius? Foi um dos primeiros a me


mostrar o caminho, embora creia que nem ele mesmo o tenha encontrado.
Há uma estranha citação dele: “Em todo grão de trigo, esconde-se a alma de
uma estrela”.

Não havia muita mobília no laboratório. Uma mesa ao centro, uma placa de
pedra com um ralo em um canto, as duas poltronas nas quais Raymond e
Clarke estavam sentados. Era tudo, exceto por uma cadeira de aparência
estranha, no extremo mais afastado do cômodo. Clarke olhou para ela e
levantou as sobrancelhas.

— Sim, essa é a cadeira — disse Raymond. — Já podemos colocá-la na


posição correta.

Ele se levantou e empurrou a cadeira até a luz. Começou a levantá-la e


abaixá-la, descendo o assento, ajustando o encosto em vários ângulos e
acertando o apoio dos pés. Parecia confortável o suficiente, e Clarke passou
a mão pelo suave veludo verde enquanto o médico manipulava as
alavancas.

— Agora, Clarke, fique à vontade. Preciso trabalhar por mais algumas


horas, pois precisei deixar certos assuntos para depois.

Raymond foi até a placa de pedra, e Clarke observou-o, entediado,


enquanto ele se curvava sobre uma fileira de frascos e acendia a chama sob
o crisol. O médico colocou uma pequena lamparina, tão intensa quanto
luminária, em uma saliência acima de seu equipamento, e Clarke, sentado à
sombra, observou o grande cômodo sombrio, ponderando sobre os efeitos
bizarros da luz brilhante e da escuridão indefinida que se contrastavam.
Logo percebeu um odor estranho no cômodo, muito fraco de início, e,
conforme foi ficando mais pungente, ele se surpreendeu por não associá-lo
a farmácias nem consultórios. Clarke percebeu que estava tentando, sem
sucesso, analisar a sensação e, involuntariamente, começou a lembrar de um
dia, quinze anos antes, em que passou o dia inteiro vagando pelos bosques e
campos perto de sua casa. Era um dia quente no começo de agosto, o calor
havia embaraçado os contornos de todas as coisas distantes, e as pessoas
que observavam o termômetro falavam de registros anormais, de uma
temperatura que era quase tropical. Estranhamente, aquele maravilhoso dia
quente dos anos 1850 emergiu na imaginação de Clarke. A sensação da
deslumbrante e onipresente luz do sol parecia apagar as sombras e as luzes
do laboratório, e ele sentiu novamente o ar quente soprando em rajadas em
seu rosto, viu o brilho subindo da relva e ouviu a miríade de murmúrios do
verão.

— Espero que o cheiro não o incomode, Clarke. Não há nada de prejudicial


nele. Pode deixá-lo um pouco sonolento, apenas isso.

Clarke ouviu as palavras claramente e sabia que Raymond estava falando


com ele, mas não conseguia despertar de sua letargia, nem se sua vida
dependesse disso. Conseguia apenas pensar na solitária caminhada que
fizera quinze anos atrás. Foi a última vez que viu os campos e bosques que
conhecia desde criança, e tudo agora se destacava com uma luz brilhante à
sua frente, como uma fotografia. Acima de tudo, chegou a suas narinas o
cheiro do verão, o aroma das flores e o odor do bosque, de lugares
sombreados e frescos nas profundezas verdes, isolados pelo calor do sol; e o
cheiro da boa terra, prostrada como se estivesse com os braços estendidos e
os lábios sorridentes, dominou tudo. Suas fantasias o fizeram perambular
dos campos ao bosque, como fizera muito tempo atrás, andando pelo
pequeno caminho entre a vegetação brilhante das faias. O gotejar da água
pingando das pedras de calcário soavam como uma melodia nítida no
sonho. Os pensamentos começaram a vagar e a se misturar com outros. O
caminho das faias se transformou em um atalho entre árvores de azevinho,
e, aqui e ali, uma videira escalava de galho em galho, estendendo gavinhas
ondulantes e cachos de uvas roxas, e as esparsas folhas verde-acinzentadas
de uma oliveira selvagem se destacavam entre as sombras escuras do
azevinho. Clarke, nas profundezas do sonho, estava consciente de que o
caminho da casa de seu pai o levara a uma terra desconhecida, e ele se
perguntava sobre a estranheza de tudo aquilo, quando, de repente, no lugar
do zumbido e do murmúrio do verão, um silêncio infinito pareceu dominar
tudo. O bosque se aquietou, e por um momento ele ficou cara a cara com
uma presença, que não era nem homem nem besta, nem vivo nem morto,
mas todas as coisas de uma vez, a forma de tudo e de nada ao mesmo
tempo. Naquele momento, o sacramento do corpo e da alma se dissolveu, e
uma voz parecia gritar “Vamos embora daqui”, e, então, a escuridão da
escuridão além das estrelas, a escuridão da eternidade.
Quando Clarke acordou, sobressaltado, viu Raymond derramando algumas
gotas de um fluido oleoso em um frasco verde, que ele rolhou com firmeza.

— Você cochilou — disse dele. — A viagem deve tê-lo cansado. Está


pronto. Vou buscar Mary. Devo voltar em dez minutos.

Pensativo, Clarke recostou-se em sua cadeira. Parecia que ele havia apenas
passado de um sonho a outro. Parte dele esperava ver as paredes do
laboratório derreterem e desaparecerem, para então acordar em Londres,
estremecendo com suas próprias fantasias oníricas. Porém, a porta enfim se
abriu, e o médico retornou. Atrás dele vinha uma moça com cerca de 17
anos, toda vestida de branco. Ela era tão linda que Clarke não questionou o
que o médico lhe escrevera. Um rubor se espalhava por seu rosto e pescoço,
mas Raymond parecia impassível.

— Mary — ele disse —, é chegada a hora. Você tem uma escolha. Está
disposta a confiar sua existência a mim por completo?

— Claro, querido.

— Ouviu isso, Clarke? Você é minha testemunha. Aqui está a cadeira,


Mary. É bem simples. Apenas sente-se e incline-se para trás. Está
preparada?

— Estou preparada, meu amor. Dê-me um beijo antes de começar.

O médico ser curvou e beijou-a na boca, com bastante gentileza.

— Agora, feche os olhos — disse ele.

A moça fechou as pálpebras, como se estivesse cansada e ansiasse por


dormir, e Raymond levou o frasco verde a suas narinas. O rosto dela
empalideceu e ficou mais branco do que o vestido. Ela lutou fracamente e,
então, com um forte sentimento de submissão dentro de si, cruzou os braços
sobre o peito, como uma criança prestes a fazer suas orações. A luz clara da
luminária caiu sobre ela, e Clarke observou mudanças fugazes em seu rosto,
como as mudanças das colinas quando as nuvens de verão passam pelo sol.
Então, aquietou-se, pálida e imóvel, e o médico levantou uma de suas
pálpebras. Ela estava inconsciente. Raymond puxou com força uma das
alavancas, e a cadeira imediatamente desceu. Clarke observou-o cortar um
círculo do cabelo de Mary, como uma tonsura, e a luminária foi movida
para mais perto. Raymond pegou um instrumento pequeno e brilhante de
um estojo, e Clarke se virou, estremecendo. Quando voltou a olhar, o
médico estava enfaixando a lesão que ele mesmo fizera.

— Ela acordará em cinco minutos. — Raymond permanecia perfeitamente


calmo. — Não há mais nada a fazer, só esperar.

Os minutos passaram devagar. Eles ouviam um tiquetaquear lento e pesado.


Havia um relógio antigo no corredor. Clarke sentia-se enjoado e fraco, e
seus joelhos tremiam. Ele mal conseguia manter-se de pé.

De repente, enquanto observavam, ouviram um longo suspiro. A cor que


havia deixado as bochechas da menina prontamente retornou, e seus olhos
subitamente se abriram. Clarke vacilou frente a eles. Brilhavam com uma
luz terrível, com o olhar perdido, e uma grande admiração dominou seu
rosto. Suas mãos se esticaram, como se quisessem tocar o que era invisível,
mas, em um instante, a admiração desapareceu e deu lugar ao mais
horrendo terror. Os músculos do seu rosto convulsionaram horrivelmente, e
ela tremia dos pés à cabeça. A alma parecia lutar e estremecer dentro de sua
casa de carne. Era uma visão terrível, e Clarke avançou enquanto ela caía
no chão, gritando.

Três dias depois, Raymond levou Clarke à cama de Mary. Ela estava
deitada, de olhos bem abertos, virando a cabeça de um lado para o outro,
sorrindo para o nada.

— Sim — disse o médico, ainda muito calmo. — É uma pena, ela está
irremediavelmente perdida. Mas não havia o que fazer. Além do mais, ela
viu o Grande Deus Pã.
II
AS MEMÓRIAS DO SR.
CLARKE
Sr. Clarke, o cavalheiro escolhido pelo Dr. Raymond para testemunhar o
estranho experimento do deus Pã, era uma pessoa cujo caráter, cautela e
curiosidade estranhamente se misturavam. Em seus momentos de
sobriedade, ele pensava sobre o incomum e o excêntrico sem disfarçar sua
aversão, mas mesmo assim, no fundo de seu coração, havia um interesse
ansioso pelo que dizia respeito aos elementos mais incógnitos e esotéricos
da natureza dos homens. Esta tendência prevalecera quando ele aceitou o
convite de Raymond, pois, embora seu julgamento ponderado tenha sempre
repudiado as teorias do médico, considerando-as o mais selvagem dos
absurdos, ainda assim ele secretamente abraçava uma crença na fantasia e
se alegraria de vê-la confirmada. Os horrores que testemunhou no lúgubre
laboratório foram, até certo ponto, proveitosos. Sabia que se envolvera em
uma questão não muito respeitável, e, por muitos anos depois do
acontecido, ele se agarrou corajosamente ao lugar comum, rejeitando todas
as oportunidades de investigação do oculto. De fato, por um princípio
homeopático, frequentou por um tempo as sessões de médiuns famosos, na
esperança de que os truques desajeitados desses cavalheiros o deixassem
completamente indignado com todo tipo de misticismo. Contudo, esse
remédio, embora causticante, não foi eficaz. Clarke sabia que ainda ansiava
pelo oculto e, pouco a pouco, a antiga paixão voltou a se afirmar, enquanto
o rosto de Mary, tremendo e convulsionando com um terror desconhecido,
lentamente começava a desvanecer de sua memória. Ocupado o dia todo
com atividades sérias e lucrativas, a tentação de relaxar à noite era grande
demais, especialmente nos meses de inverno, quando o fogo lançava um
brilho caloroso em seu agradável apartamento de solteiro, e uma garrafa de
vinho de sua escolha estava a postos, ao alcance de suas mãos. Com o jantar
digerido, ele fingiria, por um momento, ler o jornal da noite, mas as notícias
triviais logo o faziam perder o interesse, e Clarke se via lançando olhares de
desejo caloroso para uma antiga escrivaninha japonesa, que ficava a uma
distância aprazível da lareira. Como um menino à frente de um armário no
qual guardavam doces, ele pairaria indeciso por alguns minutos, mas o
desejo sempre prevalecia, e Clarke acabava puxando sua cadeira,
acendendo uma vela e sentando-se diante da escrivaninha. Em seus
escaninhos e gavetas, abundavam documentos sobre os mais mórbidos
assuntos, e em uma reentrância descansava um grande volume manuscrito,
no qual ele penosamente havia posto as joias de sua coleção. Clarke tinha
um belo desprezo pela literatura publicada; a história mais fantasmagórica
não lhe despertava mais interesse se tivesse sido impressa. Seu único prazer
era ler, compilar e reorganizar o que ele chamava de “Memórias para provar
a Existência do Diabo”, e, envolvido nessa busca, a noite voou e a
madrugada pareceu curta demais.

Numa noite em particular, uma terrível noite de dezembro, escura devido à


névoa e dura pela geada, Clarke apressou-se no jantar e mal se dignou a
cumprir seu ritual costumeiro de pegar o jornal e devolvê-lo. Ele andou
duas ou três vezes pela sala e abriu a escrivaninha, ficou parado um
momento e se sentou. Recostou-se, absorto em um daqueles sonhos aos
quais estava sujeito, e por fim retirou seu livro e o abriu no último registro.
Havia duas ou três páginas inteiramente cobertas pela caligrafia redonda e
bem definida de Clarke, e no início ele escrevera com uma letra um pouco
maior:

“Uma Narrativa Singular contada a mim por meu amigo, o Dr. Phillips. Ele
me garante que todos os fatos relatados aqui são estrita e completamente
verdadeiros, mas se recusa a contar o sobrenome dos envolvidos ou onde
esses eventos extraordinários ocorreram.”

Sr. Clarke começou a ler o relato pela décima vez, olhando vez ou outra
para as anotações a lápis que fizera enquanto seu amigo o narrava. Era um
de seus caprichos, orgulhar-se de uma certa habilidade literária. Gostava do
seu estilo e tinha bastante trabalho organizando as circunstâncias em uma
ordem dramática. Ele leu a seguinte história:

“As pessoas envolvidas neste relato são Helen V., que, se ainda está viva,
deve agora ser uma mulher de 23 anos; Rachel M., falecida, que era um ano
mais nova que Helen; e Trevor W., um estúpido de dezoito anos. Na época
desta história, essas pessoas eram habitantes de um vilarejo na fronteira do
País de Gales, um lugar de certa importância nos tempos da ocupação
romana, mas agora é uma aldeia dispersa com não mais que cinco mil
almas. Está situada em um terreno elevado, a cerca de dez quilômetros do
mar, e é protegido por uma grande e pitoresca floresta.

Há cerca de onze anos, Helen chegou ao vilarejo sob circunstâncias


bastante peculiares. Sabe-se que ela, sendo órfã, foi adotada ainda bebê por
um parente distante, que a criou em sua própria casa até os doze anos de
idade. Contudo, pensando que seria melhor para a criança ter amiguinhos de
sua idade, ele anunciou em vários jornais locais que estava à procura de um
bom lar em uma casa de interior para uma menina de doze anos. Esse
anúncio foi respondido pelo Sr. R., um fazendeiro próspero do vilarejo
mencionado. Suas referências provaram-se satisfatórias, então o cavalheiro
enviou sua filha adotiva para o Sr. R., com uma carta na qual determinava
que a menina deveria ter um quarto para si e declarava que os guardiões não
deveriam se preocupar com a questão da educação, já que ela já fora
educada o suficiente para a posição que ocuparia na vida. Na verdade, ficou
subentendido que a menina poderia encontrar suas próprias ocupações e
gastar seu tempo quase que como quisesse. Assim, o Sr. R. foi buscá-la na
estação mais próxima, em uma cidade a pouco mais de dez quilômetros de
sua casa, e pareceu não notar nada de extraordinário na criança, apenas que
ela tinha dúvidas quanto à sua antiga vida e seu pai adotivo. No entanto, ela
era bem diferente dos habitantes do vilarejo, sua pele era bronzeada, de um
marrom pálido e claro, e seus traços eram fortemente marcados, de um
caráter quase estrangeiro. Ela pareceu se acostumar facilmente à vida na
fazenda, e se tornou a favorita das crianças, que por vezes a acompanhavam
em seus passeios pela floresta, pois esta era seu passatempo. O Sr. R. afirma
que ela tinha o costume de sair sozinha depois do café da manhã, bem cedo,
e não retornava até o entardecer, e que, sentindo-se apreensivo com uma
menina tão jovem andando sozinha por tanto tempo, ele entrou em contato
com seu pai adotivo, que lhe respondeu com um breve bilhete dizendo que
Helen deveria fazer o que achasse melhor. No inverno, quando os caminhos
da floresta ficavam intransponíveis, ela passava a maior parte do tempo em
seu quarto, onde dormia sozinha, de acordo com as instruções de seu
parente.

Foi em uma dessas expedições para a floresta que o primeiro dos incidentes
singulares aos quais essa menina está conectada ocorreu, cerca de um ano
depois de sua chegada ao vilarejo. O inverno anterior havia sido
extraordinariamente severo, a neve assentou-se em grande profundidade, e a
geada continuou por um período nunca antes visto. O verão seguinte, por
sua vez, também ficou marcado por seu calor extremo. Em um dos dias
mais quentes dessa estação, Helen saiu da fazenda para um de seus passeios
na floresta, levando consigo, como de costume, um pouco de pão e carne
para o almoço. Alguns homens no campo a viram passar em direção à
antiga estrada romana, uma calçada verde que atravessava as partes mais
altas do bosque, e ficaram perplexos ao ver que ela havia tirado seu chapéu,
embora o calor fosse quase tropical. Por acaso, um trabalhador, chamado
Joseph W., estava trabalhando na floresta próximo à estrada, e ao meio-dia
seu pequeno filho, Trevor, levou para ele seu almoço de pão e queijo. Após
a refeição, o menino, com cerca de sete anos de idade na época, deixou seu
pai no trabalho, e, como ele disse, foi procurar flores no bosque. O homem,
que conseguia ouvir as exclamações de alegria do menino em suas
descobertas, não sentiu qualquer preocupação. De repente, entretanto,
aterrorizou-se ao ouvir os gritos mais medonhos, evidentemente resultado
de grande terror, vindos da direção em que seu filho estava, e ele
apressadamente largou suas ferramentas e correu para ver o que havia
acontecido. Guiando-se pelo som, ele encontrou o menininho, que corria,
afobado, e estava evidentemente aterrorizado. Ao questioná-lo, o homem
descobriu que, depois de colher um ramo de flores, ele se sentiu cansado,
deitou-se na grama e adormeceu. Contou que foi acordado de repente por
um barulho peculiar, ele chamou de uma espécie de canto, e, espreitando
pelos galhos, viu Helen brincando na grama com um “estranho homem nu”,
que ele não conseguiu descrever com mais detalhes. Disse que se sentiu
muito aterrorizado e saiu correndo, gritando por seu pai. Joseph W. seguiu
na direção indicada pelo filho e encontrou Helen sentada na grama, no meio
de uma clareira ou espaço aberto por queimadores de carvão. Furioso, ele a
acusou de amedrontar seu menino, mas ela negou completamente a
acusação e riu da história do menino sobre um “homem estranho”, a qual
ele mesmo não dava muito crédito. Joseph chegou à conclusão de que o
menino acordara com um medo súbito, como crianças às vezes fazem, mas
Trevor insistiu na história, e continuava tão evidentemente aflito que,
enfim, seu pai o levou para casa, na esperança de que a mãe fosse capaz de
acalmá-lo. Por muitas semanas, no entanto, o menino deixou os pais muito
ansiosos. Tornou-se nervoso e estranho em suas maneiras, recusando-se a
deixar o chalé sozinho e constantemente alarmando os moradores da casa
ao acordar no meio da noite gritando: “O homem da floresta! Pai! Pai!”.

Porém, com o passar do tempo, a impressão pareceu desvanecer, e cerca de


três meses depois, ele acompanhou o pai até a casa de um cavalheiro da
vizinhança, para quem Joseph W. trabalhava de vez em quando. Ele foi
levado ao escritório, e o menininho foi deixado sentado na entrada. Alguns
minutos depois, enquanto o cavalheiro dava a W. suas instruções, os dois
ficaram horrorizados com um grito agudo e um som de queda. Saíram
apressados e encontraram a criança deitada inconsciente no chão, com o
rosto contorcido de terror. Chamaram o médico imediatamente, que, depois
de alguns exames, declarou que a criança estava em algum tipo de surto,
aparentemente provocado por um choque repentino. O menino foi levado
para um dos quartos e recobrou a consciência depois de algum tempo, mas
apenas para passar a uma condição descrita pelo médico como de histeria
violenta. O médico aplicou um sedativo potente e, após duas horas,
anunciou que ele estava apto a andar de volta para casa. Ao passar pela sala
de espera, porém, os ataques de terror retornaram, ainda mais violentos. O
pai percebeu que a criança apontava para um objeto, e escutou o antigo
grito, “O homem da floresta. Olhando para a direção indicada, viu uma
cabeça de pedra de aparência grotesca, que havia sido construída na parede
acima de uma das portas. Parecia que o dono da casa havia recentemente
feito alterações em suas dependências, e, ao cavar as fundações para
construir alguns escritórios, encontrara uma curiosa cabeça, evidentemente
do período romano, que havia sido posicionada daquela forma. A cabeça
fora descrita pelos mais experientes arqueólogos do distrito como
pertencente a um fauno ou sátiro. [Dr. Phillips me disse que viu a cabeça
em questão, e me garantiu nunca ter testemunhado uma representaçao tão
vívida de um mal intenso.]

Independente da causa, esse segundo choque pareceu muito forte para o


menino Trevor e, atualmente, ele sofre de uma fraqueza do intelecto, com
pouca perspectiva de correção. O assunto causou grande furor na época, e
Helen, a menina, foi rigorosamente interrogada pelo Sr. R., mas de nada
adiantou, pois ela negou firmemente ter assustado ou incomodado Trevor.
O segundo acontecimento conectado ao nome dessa menina ocorreu seis
anos atrás, e é ainda mais extraordinário.

No começo do verão de 1882, Helen fez uma amizade peculiarmente íntima


com Rachel M., filha de um fazendeiro próspero das redondezas. Embora
os traços de Helen tivessem suavizado bastante ao ficar mais velha, essa
outra menina, um ano mais nova que Helen, era considerada pela maioria
das pessoas como a mais bonita das duas. Elas, que estavam sempre juntas a
qualquer oportunidade, apresentavam um singular contraste, uma com a
pele pouca coisa mais escura, de aparência quase italiana, e a outra com os
proverbiais vermelho e branco dos distritos rurais. Deve-se menciosar que
os pagamentos feitos ao Sr. R. para que cuidasse de Helen eram conhecidos
no vilarejo por sua excessiva generosidade, e a impressão geral era de que
um dia ela herdaria uma grande quantia de dinheiro de seu parente. Sendo
assim, os pais de Rachel não eram avessos à amizade da filha com a menina
e, embora agora arrependam-se amargamente, até encorajavam a
intimidade. Helen ainda mantinha seu carinho fora do comum pela floresta,
e Rachel a acompanhou diversas vezes. As duas amigas saíam cedo e
ficavam na floresta até o entardecer. Uma ou duas vezes, após essas
excursões, a Sra. M. achou as maneiras de sua filha um pouco peculiares.
Ela parecia lânguida e sonhadora, e até mesmo expressou que estava
“diferente do que costumava ser”, mas essas peculiaridades parecem ter
sido consideradas insignificantes demais para serem dignas de preocupação.
No entanto, certa noite, depois que Rachel voltou para casa, sua mãe ouviu
um barulho como de choro reprimido vindo do quarto da menina e, ao
entrar, encontrou-a deitada, seminua, na cama, evidentemente muito
angustiada. Assim que viu a mãe, ela exclamou:

— Ah, mãe, mamãe, por que você me deixou ir para floresta com Helen?

A Sra. M. ficou atônita com a estranheza do questionamento, e interrogou-


a. Rachel contou-lhe uma história inacreditável. Ela disse…

Clarke fechou o livro abruptamente e virou sua cadeira para a lareira.


Quando seu amigo se sentara, certa noite, naquela mesma cadeira e lhe
contara sua história, Clarke o interrompera pouco depois dessa parte e
interrompera a narrativa em um acesso de horror.
— Meu Deus! — exclamara ele. — Pense, pense no que está dizendo. É
inacreditável demais, monstruoso demais. Coisas como essa não podem
ocorrer nesse mundo tranquilo, onde homens e mulheres vivem e morrem,
se esforçam e conquistam, ou talvez falhem, e caem em tristeza ou luto e
sofrem destinos estranhos por muitos anos. Mas isso não, Phillips, algo
assim, não. Deve haver alguma explicação, alguma forma de escapar desse
terror. Pois, camarada, se um caso desse fosse possível, nosso mundo seria
um pesadelo.

Mesmo assim, Phillips contara sua história até o fim, concluindo:

— Sua fuga permanece um mistério até hoje. Ela sumiu em plena luz do
dia, viram-na caminhando em uma campina e poucos momentos depois ela
não estava mais lá.

Sentado em frente à lareira, Clarke tentou compreender novamente e, mais


uma vez, sua mente estremeceu e se encolheu, horrorizada diante da visão
de elementos tão horríveis e indescritíveis, glorificados, por assim dizer, e
triunfantes na carne humana. Diante dele, estendia-se a longa e sombria
vista da calçada verde na floresta, como seu amigo a descrevera. Ele viu as
folhas balançando e as sombras trêmulas na grama, viu a luz do sol e as
flores e, muito muito longe, as duas figuras moveram-se em sua direção.
Uma era Rachel, mas e a outra?

Clarke havia se esforçado para desacreditar tudo, mas, ao fim do relato,


como escrevera em seu livro, ele registrara a inscrição:

ET DIABOLUS INCARNATUS EST. ET HOMO FACTUS EST [1 ].


III
A CIDADE DAS
RESSURREIÇÕES
— Herbert! Por Deus! É mesmo você?

— Sim, meu nome é Herbert. Acredito que conheço seu rosto, também, mas
não me lembro de seu nome. Minha memória é muito esquisita.

— Você não se lembra de Villiers de Wadham?

— Ah, é mesmo, é mesmo. Peço desculpas, Villiers, não achei que eu


estivesse mendigando a um antigo amigo de faculdade. Tenha uma boa
noite.

— Meu querido colega, essa pressa é desnecessária. Meus aposentos ficam


aqui perto, mas não iremos até lá ainda. Podemos subir um pouco pela
Avenida Shaftesbury? Mas como, por Deus, você chegou a esse estado,
Herbert?

— É uma longa história, Villiers, e bem estranha também, mas você pode
ouvir, se quiser.

— Vamos, então. Apoie-se em meu braço, você não parece muito forte.

O estranho par se moveu devagar pela Rua Rupert; um com trapos de


aparência horrível, o outro vestido com o uniforme regular dos homens que
passeavam pelo centro da cidade, bem aparado, brilhante e evidentemente
bem de vida. Villiers saiu de seu restaurante após um excelente jantar de
vários pratos, que foi assistido por uma pequena taça de Chianti, e, naquele
estado de espírito que o acompanhava de forma quase crônica, demorou-se
um momento na porta, espiando pela escuridão da rua mal iluminada em
busca daqueles incidentes e pessoas misteriosas com as quais as ruas de
Londres fervilham a cada quarteirão e a cada hora. Villiers se orgulhava de
ser um explorador experiente desses labirintos e desvios obscuros da vida
londrina, e demonstrava uma assiduidade digna de um emprego mais sério
para com essa busca infrutífera. Assim, ele ficou parado ao lado do poste,
analisando os transeuntes com franca curiosidade, e com essa gravidade
conhecida apenas pelo comensal sistemático, acabara de declarar em sua
mente a máxima: “Londres é chamada de a cidade dos encontros. Mas é
mais do que isso, é a cidade das Ressurreições”. De repente, suas reflexões
foram interrompidas por um resmungo digno de pena na altura de seus
cotovelos, seguido por um apelo deplorável por esmola. Virou-se, irritado, e
com um súbito choque, deu-se conta de que estava sendo confrontado com
a prova encarnada de suas fantasias um tanto empolgadas. Ali, próximo
dele, com o rosto alterado e desfigurado pela pobreza e a desgraça, o corpo
parcamente coberto por trapos oleosos e desajustados, estava seu velho
amigo Charles Herbert, que havia se matriculado no mesmo dia que ele,
com o qual fora feliz e sábio por doze semestres. Ocupações diferentes e
interesses variados haviam interrompido a amizade, e seis anos haviam se
passado desde a última vez que Villiers vira Herbert. E agora ele olhava
para esse homem arruinado pelo luto e pela tristeza com certa curiosidade
sobre a série sombria de circunstâncias o arrastara a uma condição tão triste.
Villiers sentia, somada à compaixão, toda o prazer do amante de mistérios,
e se parabenizava por suas especulações vagarosas do lado de fora do
restaurante.

Andaram em silêncio por um tempo, e mais de um transeunte encarou-os


com espanto, desacostumados que estavam com o espetáculo de um homem
bem vestido acompanhado por, inconfundivelmente, um mendigo, aparado
em seu braço. Observando isso, Villiers mudou o caminho para uma rua
escura em Soho. Lá, repetiu a pergunta.

— Como isso aconteceu, Herbert? Sempre achei que você conseguiria uma
excelente posição em Dorsetshire. Seu pai o deserdou? Não pode ter sido
isso, pode?

— Não, Villiers. Herdei toda a propriedade quando meu pai faleceu, um ano
depois que deixei Oxford. Ele foi um bom pai para mim, e eu chorei sua
morte de forma bastante sincera. Mas você sabe como são os jovens.
Poucos meses depois, vim para a cidade e frequentei bastante a sociedade.
Certamente tive excelentes apresentações e consegui me divertir bastante de
forma inofensiva. Joguei um pouco, isso não posso negar, mas nunca com
alto risco, e as poucas apostas que fiz em corridas me trouxeram dinheiro.
Apenas algumas libras, você sabe, mas o suficiente para pagar por charutos
e outros prazeres insignificantes. Foi em minha segunda temporada que a
maré virou. Você certamente soube de meu casamento?

— Não, nunca fiquei sabendo sobre o assunto.

— Sim, eu me casei, Villiers. Conheci uma garota, com a mais maravilhosa


e curiosa beleza, na casa de uns conhecidos meus. Não sei lhe dizer a idade
dela; nunca soube, mas imagino que ela devia ter dezenove anos quando a
conheci. Meus amigos a conheceram em Florença. Ela disse a eles que era
órfã, filha de pai inglês e mãe italiana, e ela os encantou como me encantou.
A primeira vez que a vi foi em uma festa à noite. Eu estava próximo à
porta, conversando com um amigo, quando, de repente, acima do
burburinho da conversa, escutei uma voz que pareceu estremecer meu
coração. Ela cantava uma música italiana. Fomos apresentados naquela
noite, e três meses depois me casei com Helen. Villiers, essa mulher, se é
que posso chamá-la de mulher, corrompeu minha alma. Na noite do
casamento, eu me vi sentado no quarto dela no hotel, ouvindo-a falar. Ela
estava sentada, ereta, na cama, e eu a escutava enquanto ela falava com sua
linda voz, sobre coisas que nem agora eu ousaria sussurrar no escuro da
noite, nem se estivesse no meio da natureza. Villers, você, pode achar que
conhece a vida, e Londres, e o que ocorre noite e dia nessa terrível cidade.
Pelo que eu saiba, pode ser que você tenha ouvido falar das coisas mais vis,
mas lhe digo, você não conseguiria nem conceber as coisas que eu sei, nem
mesmo nos seus mais fantásticos e horríveis sonhos você pode ter tido
sequer um vislumbre do que ouvi… E vi. Sim, vi. Eu vi o inacreditável.
Tamanhos horrores que até eu às vezes paro no meio da rua e me pergunto
se é possível que um homem tenha contemplado coisas como aquelas e
permanecido vivo. Em um ano, Villiers, eu me tornei um homem arruinado,
de corpo e alma. De corpo e alma.

— Mas e sua propriedade, Herbert? Você tinha terras em Dorset.

— Vendi tudo: os campos e o bosque, a querida e antiga casa. Tudo.

— E o dinheiro?
— Ela me tomou tudo.

— E depois o abandonou?

— Abandonou. Ela desapareceu certa noite. Não sei para onde foi, mas
tenho certeza de que vê-la novamente me mataria. O resto de minha história
não é interessante. Miséria, e nada além disso. Você pode pensar, Villiers,
que exagerei e narrei em busca de um efeito, mas não lhe disse nem a
metade. Eu poderia lhe contar certas coisas que o convenceriam, mas, se o
fizesse, você jamais teria um dia feliz novamente. Passaria o resto de sua
vida como eu passo a minha, um homem assombrado, um homem que viu o
inferno.

Villiers levou o desafortunado homem para seus aposentos e deu-lhe uma


refeição. Herbert conseguiu comer um pouco, mas mal tocou na taça de
vinho posta à sua frente. Taciturno e silencioso, ele se manteve sentado em
frente ao fogo e pareceu aliviado quando Villiers o mandou embora com um
pouco de dinheiro como presente.

— Aliás, Herbert — disse Villiers enquanto se despediam à porta —, qual


era o nome de sua esposa? Você disse Helen, acredito? Helen de quê?

— O nome que ela utilizava quando a conheci era Helen Vaughan, mas seu
verdadeiro nome eu não saberia dizer. Não acho que ela tivesse um. Não,
não, não dessa forma. Apenas seres humanos têm nomes, Villiers. Não
posso dizer mais nada. Adeus. Sim, vou lhe chamar se descobrir alguma
forma de como você pode me ajudar. Boa noite.

O homem partiu para a noite cruel, e Villiers retornou para a frente de sua
lareira. Algo em Herbert o chocara de uma forma que não conseguia
expressar. Não foram seus pobres trapos ou as marcas que a pobreza pusera
em seu rosto, mas sim o terror indefinido que o envolvia como uma névoa.
Ele admitia que não era desprovido de culpa. Confessara que a mulher o
corrompera em corpo e alma, e Villiers sentia que esse homem, outrora seu
amigo, desempenhara um papel em cenas perversas que estavam além do
poder das palavras. Sua história não carecia de confirmação: ele mesmo era
prova viva dela. Villiers meditou curiosamente sobre a narrativa que ouvira
e imaginou se a teria escutado pela primeira e última vez. “Não”, pensou,
“certamente não foi a última vez. É provável que tenha sido apenas o
começo. Um caso assim é como um conjunto de caixas chinesas. Você abre
uma após a outra, apenas para encontrar um acabamento pitoresco em cada
uma delas. O mais provável é que o pobre Herbert seja apenas uma das
caixas de fora; outras mais estranhas aparecerão”.

Villiers não conseguia afastar a mente de Herbert e sua história, que parecia
ficar cada vez mais intensa conforme a noite passava. O fogo na lareira
pareceu diminuir, e o ar frio da manhã esgueirou-se pelo quarto. Villiers se
levantou, olhou de soslaio por cima dos ombros e, estremecendo, foi para a
cama.

Alguns dias depois, ele viu em seu clube um cavalheiro conhecido seu
chamado Austin, famoso por seu conhecimento íntimo da vida londrina,
tanto em seus momentos sombrios quanto nos luminosos. Villiers, ainda
com a cabeça cheia de seu encontro no Soho, bem como suas
consequências, achou que Austin fosse talvez capaz de elucidar um pouco a
história de Herbert. Então, após uma conversa casual, fez a seguinte
pergunta:

— Por acaso você sabe alguma coisa sobre um homem chamado Herbert,
Charles Herbert?

Austin virou-se bruscamente e encarou Villiers com algum espanto.

— Charles Herbert? Você não estava na cidade três anos atrás? Não ouviu
falar do caso da Rua Paul? Foi uma grande sensação à época.

— Que caso foi esse?

— Bom, um cavalheiro, um homem de ótima posição, foi encontrado


morto, bem morto, no terreno de uma certa casa na Rua Paul, não muito
longe da estrada Tottenham Court. É claro que a polícia não foi a
responsável pela descoberta. Se por acaso você ficar a noite inteira
acordado com uma luz acesa à janela, um policial vai bater na sua porta,
mas se for encontrado morto próximo à propriedade de alguém, não será
incomodado.
“Nessa ocasião, como em muitas outras, o alerta foi dado por algum tipo de
vagabundo. Não era um mendigo comum, ou um vadio morador das casas
públicas, mas um cavalheiro cujo negócio ou prazer, talvez ambos,
tornaram-no espectador das ruas londrinas às cinco da manhã. Esse
indivíduo estava, como alegou, “voltando para casa”, não revelou de onde
vinha ou para onde exatamente se dirigia, e por acaso calhou de passar pela
Rua Paul entre quatro e cinco da manhã. Alguma coisa chamou sua atenção
no número 20. Ele disse, por mais absurdo que pareça, que a casa possuía a
fisionomia mais desagradável que ele já vira, mas, em algum momento,
olhou a área ao redor dela e ficou muito surpreso ao ver um homem deitado
nas pedras, com os membros todos amontoados e a cabeça virada para
cima. Nosso cavalheiro pensou que seu rosto parecia particularmente
pavoroso, então saiu correndo à procura de um policial. Este, num primeiro
momento, não parecia querer tratar o assunto com seriedade, achando que
era apenas um caso comum de embriaguez. Contudo, foi até o local e, após
olhar para o rosto do homem, mudou de tom rapidamente. O madrugador,
que havia encontrado esta situação singular, foi mandado para um médico, e
o policial bateu na porta e tocou a campainha até que uma criada desleixada
apareceu, parecendo ainda estar dormindo. O policial indicou o conteúdo da
área para a criada, que gritou alto o suficiente para acordar toda a rua, mas
ela não sabia nada sobre o homem, nunca o tinha visto na casa etc.
Enquanto isso, o descobridor original retornou com um homem da
medicina, e a próxima tarefa era adentrar a área. O portão estava aberto,
portanto o quarteto desceu pelos degraus. O médico mal precisou de um
minuto para seu exame. Afirmou que o pobre camarada estava morto há
muitas horas, e foi aí que o caso começou a ficar interessante. O defunto
não havia sido roubado, e em um de seus bolsos havia papéis identificando-
o como… bom, como um homem de boa família e recursos, um favorito da
sociedade, sem qualquer inimigo, pelo menos pelo que se sabia. Não darei o
nome, Villiers, porque não tem nada a ver com a história e porque não é
bom ficar remexendo nos assuntos dos mortos quando não há parentes
vivos. O próximo ponto curioso é que os médicos não concordavam sobre a
causa da morte. Havia alguns hematomas leves em seus ombros, mas eram
tão claros que parecia que ele havia sido empurrado bruscamente para fora
da cozinha e não jogado para a sarjeta ou mesmo arrastado escada abaixo.
Mas não havia qualquer outra marca de violência nele, certamente nenhuma
que explicasse sua morte. E, ao fazerem uma autópsia, nenhum traço de
veneno foi encontrado. Obviamente, a polícia queria descobrir tudo o que
podia sobre os moradores do número 20, e novamente, como ouvi de
algumas fontes privadas, um ou dois pontos interessantes foram levantados.
Parecia que os moradores da casa eram o Sr. e a Sra. Charles Herbert.
Dizia-se que ele era um proprietário de terras, embora a maioria das pessoas
achasse que a Rua Paul não era exatamente um lugar onde nobres do campo
seriam encontrados. No que tange à Sra. Herbert, ninguém parecia saber
quem ou o que ela era e, cá entre nós, aqueles que foram atrás de sua
história acabaram encontrando-se em águas misteriosas. É claro que ambos
negaram saber qualquer coisa sobre o falecido, e automaticamente qualquer
evidência contra eles foi desconsiderada. Porém coisas bem estranhas sobre
eles vieram à tona. Embora fosse entre cinco e seis da manhã quando o
homem morto foi removido, uma multidão se reuniu, e vários vizinhos
correram para ver o que estava acontecendo. Eles não tiveram problema em
falar, de forma alguma, e, a partir dos comentários, parecia que o número 20
estava em maus lençóis na Rua Paul. Os detetives tentaram rastrear esses
rumores para encontrar fundações sólidas para os fatos, mas não
conseguiram achar nada. As pessoas balançavam as cabeças, e levantavam
as sobrancelhas, e consideravam os Herbert “estranhos”, e “prefeririam não
ser vistos entrando na casa deles”, e por aí vai, mas não havia nada tangível.
As autoridades estavam moralmente certas de que o homem encontrou sua
morte de uma maneira ou de outra na casa e que fora jogado pela porta da
cozinha, mas não conseguiam provar, e a ausência de qualquer indicação de
violência ou envenenamento os deixou impotentes. Um caso estranho, não?
Mas, curiosamente, há mais que ainda não lhe contei. Eu, por acaso,
conheço um dos médicos que foi consultado sobre a causa da morte, e
algum tempo depois do inquérito eu o encontrei e perguntei sobre o caso.
“Então o que você quer dizer”, falei, “é que está perplexo com o caso e
realmente não sabe do que ele morreu?”. “Perdoe-me”, respondeu ele, “sei
perfeitamente bem a causa da morte. Morreu de choque, de total e completo
terror. Nunca vi feições tão hediondamente contorcidas em todo meu tempo
de profissão, e olha que já vi os rostos de uma profusão de mortos”. O
médico era normalmente muito calmo, porém uma certa veemência em seus
trejeitos me impressionou, mas não consegui fazê-lo dizer mais nada sobre
o assunto. Acredito que as autoridades não encontraram uma forma de
processar os Herberts por assustar um homem até a morte. De qualquer
forma, nada foi feito, e o caso desapareceu da mente dos homens. Por acaso
você sabe de algo sobre Herbert?

— Bom — respondeu Villiers —, ele era um antigo amigo dos tempos da


faculdade.

— Não me diga! Já viu sua esposa alguma vez?

— Não, nunca a vi. Perdi contato com Herbert anos atrás.

— É estranho, não é? Despedir-se de um homem aos portões da


universidade ou em Paddington, não vê-lo por anos a fio e, então, encontrá-
lo de repente em uma situação tão incomum. Mas eu gostaria de ter
conhecido a Sra. Herbert. Já me contaram coisas extraordinárias sobre ela.

— Que tipo de coisas?

— Olha, nem sei como lhe dizer. Todos que a viram no tribunal de polícia
disseram que ela era, ao mesmo tempo, a mulher mais linda e mais
repulsiva que já viram na vida. Conversei com um homem que a viu e juro
que ele estremeceu enquanto tentava descrever a mulher, mas não sabia por
quê. Ela parece ter sido uma espécie de enigma, e acredito que, se o homem
morto pudesse contar histórias, ele teria contado algumas
extraordinariamente estranhas. E aí está você novamente com outro quebra-
cabeça: o que um cavalheiro respeitável como o Sr. Blank (vamos chamá-lo
assim, se você não se importar) iria querer em uma casa tão estranha como
a do número 20? De todos os pontos de vista, é um caso bem esquisito, não
acha?

— De fato é, Austin. Um caso extraordinário. Não imaginei que, ao


perguntar sobre meu velho amigo, eu me depararia com algo assim. Bom,
preciso ir. Tenha um bom dia.

Villiers se afastou, pensando em seu próprio conceito das caixas chinesas.


De fato, um objeto curioso.
IV
A DESCOBERTA NA RUA PAUL
Alguns meses após o encontro de Villiers com Herbert, o Sr. Clarke estava
sentado, como de costume, próximo à lareira depois do jantar, concentrado,
tentando impedir sua imaginação de viajar até a escrivaninha. Por mais de
uma semana, ele fora bem sucedido em se manter afastado das “Memórias”
e acalentava esperanças de uma transformação pessoal completa. Porém,
apesar de seus esforços, ele não conseguia abafar o fascínio e a estranha
curiosidade que o último caso que havia registrado despertara. Ele
apresentara o caso, ou melhor, um delineamento dele, de forma hipotética, a
um amigo cientista, que balançou a cabeça e achou que Clarke não estava
falando coisa com coisa. Portanto, naquela noite em específico, Clarke
estava se esforçando para racionalizar a história, quando, de repente,
alguém bateu à sua porta e despertou-o de suas reflexões.

— O Sr. Villiers veio vê-lo, senhor.

— Minha Nossa! Villiers, é muita bondade sua vir me procurar, há meses


não o vejo, creio que faz quase um ano. Entre, entre. E como tem passado?
Precisa de conselhos sobre investimentos?

— Não, obrigado, acredito que tudo que possuo neste ramo esteja bastante
seguro. Não, Clarke, eu vim, na verdade, para consultá-lo sobre um assunto
curioso que me chamou a atenção recentemente. Acredito que você achará
tudo um pouco absurdo quando eu contar minha história. Às vezes eu
mesmo acho, e foi por isso que resolvi vir aqui, pois sei que você é um
homem prático.

O Sr. Villiers não sabia da existência das “Memórias para provar a


Existência do Diabo”.

— Bom, Villiers, ficarei feliz em aconselhá-lo da melhor maneira possível.


Qual é a natureza do caso?
— Algo completamente extraordinário. Você conhece meu jeito; sempre
ando de olhos bem abertos nas ruas, e, nessa vida, já me deparei com alguns
clientes estranhos e casos estranhos também, mas este, acredito, supera a
todos. Eu estava saindo de um restaurante numa desagradável noite de
inverno cerca de três meses atrás. Havia tido um jantar agradável e bebera
uma garrafa de Chianti e fiquei parado por um momento na calçada,
pensando sobre os mistérios que as ruas de Londres guardam e as pessoas
que por elas vagam. Uma garrafa de vinho tinto encoraja esse tipo de
reflexão, Clarke, e ouso dizer que teria conseguido escrever uma página
sobre o assunto, mas fui interrompido por um mendigo que se aproximou
por trás de mim, e fez os apelos usuais. Claro que me virei, e esse mendigo,
na verdade, era o que restara de um velho amigo meu, um homem chamado
Herbert. Perguntei-lhe como chegara um estado tão deplorável, e ele me
contou. Andamos por uma dessas ruas escuras compridas de Soho, e foi lá
que escutei sua história. Ele me disse que havia se casado com uma linda
garota, alguns anos mais nova que ele, e, segundo relatou, ela o corrompeu,
de corpo e alma. Ele não me deu detalhes, disse que não podia, que o que
vira e ouvira o aterrorizava dia e noite, e quando olhei para seu rosto, soube
que estava falando a verdade. Algo naquele homem me fez estremecer, mas
não sei o que, exatamente. Dei a ele um pouco de dinheiro e mandei-o
embora, e garanto a você que eu estava sem ar quando ele partiu. A
presença dele pareceu ser capaz de congelar o sangue.

— Isso não é tudo muito fantasioso, Villiers? Talvez o coitado só tenha sido
imprudente ao se casar e, falando com todas as letras, as coisas terminaram
mal.

— Bom, escute isso.

Villiers contou a Clarke a história que ouvira de Austin.

— Como você pode ver — ele concluiu —, há pouquíssima dúvida de que


esse Sr. Blank, seja lá quem tenha sido, morreu de puro terror. Ele viu algo
tão impressionante, tão terrível, que encurtou sua vida. E o que viu
certamente estava nessa casa, que, de uma forma ou outra, tinha uma
reputação ruim na vizinhança. Tive a curiosidade de ir ver o lugar com
meus próprios olhos.
“É uma ruazinha bem triste, as casas são velhas o suficiente para serem
feias e lúgubres, mas não antigas o bastante para serem pitorescas. Pelo que
pude ver, a maioria é alugada, mobiliadas ou não, e quase todas as portas
têm três sinos. Aqui e ali, os térreos foram transformados em lojas dos tipos
mais comuns. É uma rua depressiva em todos os sentidos. Descobri que o
número 20 estava disponível para alugar, então fui até o corretor e peguei a
chave. É claro que não haveria mais sinal nenhum da família Herbert
naquele quarteirão, mas perguntei ao homem, sem rodeios, há quanto tempo
eles haviam deixado a casa e se houve outros inquilinos depois disso. Ele
me olhou com estranheza por um minuto e disse que os Herbert haviam
deixado a casa logo depois do aborrecimento, como ele colocou, e a casa
ficara desocupada desde então.”

O Sr. Villiers parou por um momento.

— Sempre gostei muito de visitar casas desocupadas. Tenho certo fascínio


pelos cômodos vazios e desolados, com os pregos aparecendo nas paredes e
a poeira pesada no peitoril das janelas. Mas não gostei nem um pouco de
explorar o número 20 da Rua Paul. Mal tinha colocado um pé na entrada
quando percebi que havia um sentimento estranho e pesado no ar da casa. É
claro que todas as residências vazias são abafadas e assim por diante, mas
foi diferente. Não consigo descrever, mas parecia que a casa me impedia de
respirar. Fui ao cômodo da frente e o dos fundos, bem como à cozinha no
andar debaixo. Estavam todos sujos e bastante empoeirados, como era de se
esperar, mas havia algo estranho. Não conseguiria explicar para você,
apenas achei estranho. Um dos quartos do primeiro andar, no entanto, era o
pior de todos. Era um cômodo amplo, e tenho certeza de que algum dia o
papel de parede fora alegre, mas a tinta, o papel e tudo mais só me
transmitiram certo sentimento lúgubre. Porém o cômodo estava repleto de
horror. Senti meus dentes rangerem ao colocar a mão na porta e quando
entrei, pensei que caíria no chão, desmaiado. Entretanto, recompus-me e me
apoiei na parede dos fundos, perguntando-me o que diabos havia naquele
cômodo que fez meu corpo estremecer e meu coração acelerar como se eu
estivesse à beira da morte. Em um canto, havia uma pilha de jornais
espalhados no chão, e comecei a analisá-los. Eram jornais de três ou quatro
anos atrás, alguns rasgados, outros amassados como se tivessem sido
usados para empacotar coisas. Remexi a pilha inteira e no meio dela
encontrei um desenho curioso, que logo lhe mostrarei. Não consegui ficar
no quarto, senti que ele me subjugava. Fiquei grato ao sair para o ar livre,
são e salvo. As pessoas me encaravam enquanto eu andava pela rua, e um
homem alegou que eu estava bêbado. Cambaleei de um lado para o outro da
calçada e foi com grande esforço que levei a chave de volta ao corretor e
voltei para casa. Fiquei de cama por uma semana, sofrendo do que meu
médico chamou de choque nervoso e exaustão. Um dia desses eu estava
lendo o jornal da noite e por acaso reparei num parágrafo com a manchete:
“Morto de Fome”. Era o mesmo de sempre: uma hospedaria modelo em
Marylebone, uma porta trancada por vários dias, e um homem morto em
sua cadeira quando arrombaram a porta. “O falecido”, dizia o parágrafo,
“era conhecido como Charles Herbert, e acredita-se que outrora fora um
próspero cavalheiro com propriedades no interior. Seu nome era conhecido
do público três anos atrás, associado à misteriosa morte da Rua Paul, na
estrada Tottenham Court. Ele era inquilino da casa número 20, propriedade
na qual um cavalheiro de boa posição fora encontrado morto em
circunstâncias não desprovidas de suspeita”. Um fim trágico, não? Mas
afinal, se o que ele me disse é verdade, que tenho certeza de que é, a vida
do homem foi toda uma tragédia, e uma tragédia pior do que sabemos.

— E essa é a história? — perguntou Clarke, pensativo.

— Sim, essa é a história.

— Olha, Villiers, sendo muito sincero, não sei bem o que dizer. Sem
dúvida, há circunstâncias no caso que parecem peculiares, a descoberta do
homem morto próximo à casa de Herbert, por exemplo, e a extraordinária
opinião do médico quanto à causa da morte. Mas, no fim das contas, é
possível que os fatos possam ser explicados de maneira simples. Quanto ao
que sentiu quando você foi ver a casa, eu diria que foram fruto de uma
imaginação vívida. Você devia estar refletindo, de forma semiconsciente,
sobre o que ouvira. Não sei mais o que se pode dizer ou fazer sobre esse
assunto. É claro que você acredita que há um mistério para resolver, mas
Herbert está morto. Onde você sugere investigar?

— Sugiro procurar a mulher com a qual ele se casou. Ela é o mistério.


Os dois homens ficaram em silêncio, sentados perto da lareira. Clarke se
vangloriava, em segredo, por ter conseguido manter seu caráter de defensor
do lugar comum, e Villiers estava envolto em seus devaneios sombrios.

— Acho que vou fumar um cigarro — disse, por fim, e colocou a mão no
bolso, procurando pela cigarreira. — Ah! — exclamou, um pouco exaltado.
— Esqueci que tinha algo para lhe mostrar. Lembra que falei que encontrei
um esboço curioso no meio da pilha de jornais velhos na casa da Rua Paul?
Aqui está.

Villiers tirou um pequeno e fino pacote do bolso. Estava coberto por papel
pardo e amarrado por um barbante com nós confusos. Contrariando-se,
Clarke ficou curioso. Debruçou-se na cadeira enquanto Villiers
vagarosamente desfazia os nós e desdobrava o papel do pacote. Dentro
havia um segundo embrulho de tecido. Villiers o removeu e, sem dizer
nada, entregou o pequeno pedaço de papel a Clarke.

Por cinco minutos ou mais, a sala ficou em completo silêncio. Os dois


homens estavam tão imóveis em suas cadeiras que conseguiam ouvir o
tiquetaquear do alto e antigo relógio que ficava no corredor, e, na mente de
um deles, a lenta monotonia do som acordou uma memória longínqua. Ele
olhava com atenção o esboço do busto da mulher, feito com pena e tinta.
Era evidente que fora feito com esmero e por um verdadeiro artista, pois a
alma da mulher parecia transbordar de seus olhos enquanto os lábios se
separavam em um estranho sorriso. Clarke examinou, paralisado, aquele
rosto. Ele trazia em sua memória uma noite de verão, tempos atrás. Viu
novamente o extenso e adorável vale, o rio serpenteando entre as colinas, os
campos e as plantações de trigo, o pálido sol vermelho e a fria névoa branca
que se levantava da água. Ele ouviu uma voz falando com ele através das
ondas dos anos passados, dizendo: “Clarke, Mary verá o deus Pã!”. E então
ele estava na sala escura ao lado do médico, ouvindo o pesado tiquetaquear
do relógio, esperando e observando, observando a figura deitada na cadeira
verde sob a luz da lamparina. Mary se levantou, ele a olhou nos olhos e seu
coração pareceu esfriar.

— Quem é essa mulher? — perguntou, por fim. Sua voz estava seca e
rouca.
— É a mulher com quem Herbert se casou.

Clarke olhou mais uma vez para o esboço. Não, não era Mary. Certamente
era o rosto dela, mas havia algo mais, algo que ele não vira no semblante de
Mary quando ela, toda vestida de branco, entrara no laboratório junto ao
médico, nem em seu terrível despertar, ou quando ela se deitara, sorrindo,
na cama. O que quer que fosse, o olhar que vinha daqueles olhos, o sorriso
nos lábios carnudos, ou a expressão em todo o rosto, fez a alma de Clarke
estremecer, e ele se lembrou, inconscientemente, das palavras do Dr.
Phillip: “a representação mais vívida possível do mal”. Ele virou o papel
mecanicamente em suas mãos e olhou para o verso.

— Meu Deus! Clarke, qual é o problema? Você está pálido como um


fantasma.

Villiers levantou-se de supetão de sua cadeira, ao mesmo tempo que Clarke


vacilou, gemendo, e deixou o papel cair de suas mãos.

— Não estou me sentindo muito bem, Villiers, tenho tendência a sofrer


esses ataques. Sirva-me um pouco de vinho. Obrigado, já basta. Ficarei
melhor em alguns minutos.

Villiers recolheu o esboço e virou-o, como Clarke fizera.

— Você viu isso? — disse. — Foi assim que eu o identifiquei como sendo o
retrato da esposa de Herbert, ou devo dizer, da falecida esposa. Como você
está se sentindo agora?

— Melhor, obrigado, foi apenas uma fraqueza passageira. Não acho que
entendi o que você quis dizer. O que foi que lhe permitiu identificar a foto?

— Esta palavra escrita no verso, “Helen”. Não lhe disse que o nome dela
era Helen? Sim. Helen Vaughan.

Clarke gemeu. Não havia sombra de dúvida.

— Você não concorda comigo? — disse Villiers. — Que nesta história que
contei hoje, e no papel desempenhado por essa mulher, há vários pontos
muito estranhos?

— Sim, Villiers — Clarke balbuciou. — É de fato uma história estranha,


uma história bem estranha. Dê-me um tempo para refletir a respeito. Talvez
eu consiga ajudá-lo, ou talvez não. Você já tem que partir agora? Bom, boa
noite, Villiers, boa noite. Venha me ver daqui a uma semana.
V

A CARTA DE
ACONSELHAMENTO
— Sabe, Austin — disse Villiers enquanto os dois amigos passeavam
tranquilamente por Piccadilly em uma agradável manhã de maio. —, estou
convencido de que o que você me disse sobre a Rua Paul e os Herbert não
passa de um episódio de uma história extraordinária. Devo confessar que
quando perguntei sobre Herbert alguns meses atrás, eu havia acabado de me
encontrar com ele.

— Você o encontrou? Onde?

— Ele estava mendigando na rua, uma noite dessas. Estava num estado
deplorável, mas reconheci o homem e o fiz me contar sua história, ou ao
menos uma síntese. Em suma, resumia-se a: ele foi arruinado por sua
esposa.

— De que maneira?

— Ele não quis dizer. Só falou que ela o destruiu, de corpo e alma. Ele está
morto agora.

— E o que aconteceu com a esposa?

— Ah, isso é o que eu gostaria de saber, e pretendo encontrá-la, mais cedo


ou mais tarde. Conheço um homem chamado Clarke, um sujeito austero, na
verdade, um homem de negócios, mas bastante perspicaz. Você entendeu.
Não perspicaz apenas nos negócios, mas um sujeito que realmente sabe
algo sobre os homens e a vida. Bom, eu apresentei o caso, e ele ficou
claramente impressionado. Disse que precisava fazer algumas
considerações e me pediu para retornar depois de uma semana. Alguns dias
depois, recebi uma carta extraordinária.
Austin pegou o envelope, tirou a carta de dentro e leu, com curiosidade.
Dizia o seguinte:

“MEU QUERIDO VILLIERS, pensei no assunto sobre o qual você me


consultou no outro dia, e meu conselho é este: jogue o retrato no fogo,
apague a história da sua mente. Nunca mais pense sobre ela, Villiers, ou se
arrependerá. Você, sem dúvida, pensará que possuo alguma informação
secreta, e de certa forma, esse é mesmo o caso. Mas sei apenas um pouco.
Sou como um viajante que espiou por sobre um abismo e se retirou
completamente aterrorizado. O que sei é estranho e horrível, mas, para além
de meu conhecimento, há profundezas e terrores ainda mais medonhos,
mais inacreditáveis que quaisquer histórias contadas em volta da lareira em
noites de inverno. Resolvi, e nada mudará essa decisão, não dar mais
nenhum passo nessa busca, e se você valoriza sua felicidade, fará o mesmo.

Por favor, venha me ver. Mas conversaremos sobre assuntos mais alegres do
que esse”.

Austin dobrou metodicamente a carta e a devolveu a Villiers.

— Certamente, é uma carta extraordinária — ele disse. — O que ele quis


dizer com “o retrato”?

— Ah! Esqueci de lhe dizer que estive na Rua Paul e fiz uma descoberta.

Villiers contou sua história como a contara para Clarke, e Austin escutou
em silêncio. Ele parecia intrigado.

— Que curioso que você tenha experimentado uma sensação tão


desagradável naquele cômodo! — disse ele, por fim. — Eu diria que foi
apenas sua imaginação. Uma sensação de repulsa, em suma.

— Não. Foi mais físico que mental. Foi como se, a cada respiração, eu
estivesse inalando vapores mortais, que pareciam penetrar cada nervo, osso
e músculo do meu corpo. Senti-me atormentado dos pés à cabeça, minha
visão escureceu. Era como a entrada para a morte.
— Sim, sim. Certamente, muito estranho. Veja, seu amigo confessou que há
alguma história bem sombria associada a essa mulher. Você notou alguma
emoção específica nele quando você contou sua narrativa?

— Notei, sim. Ele ficou bastante pálido, mas me garantiu que era apenas
um ataque passageiro que ele sofre às vezes.

— E você acreditou?

— Na hora, sim, mas agora, não mais. Ele ouviu o que eu tinha a dizer com
uma boa dose de indiferença, até que mostrei o retrato. Então ele foi tomado
pelo ataque que mencionei. Parecia horrorizado, eu juro.

— Então ele já deve ter visto a mulher antes. Mas pode ser que haja outra
explicação. Pode ter sido o nome, e não o rosto, que lhe era familiar. O que
você acha?

— Não saberia dizer. Na minha opinião, foi depois que ele virou o retrato
em suas mãos que quase caiu da cadeira. O nome, você sabe, estava escrito
no verso.

— Sei, sei. Afinal, é impossível chegar a qualquer resolução num caso


como esse. Odeio melodrama, e nada me parece mais comum e tedioso do
que as histórias de fantasma comerciais que correm por aí. Mas Villiers,
parece mesmo que há algo muito estranho nisso tudo.

Os dois homens, sem perceber, haviam chegado à Rua Ashley, que seguia
na direção norte a partir de Piccadilly. Era uma rua longa e bastante escura,
mas, aqui e ali, focos de luz mais alegres iluminavam as casas sombrias
com flores, cortinas estampadas e tintas vibrantes nas portas. Villiers
levantou os olhos quando Austin parou de falar e olhou para uma dessas
casas; gerânios, vermelhos e brancos, pendiam de todos os peitoris, e
cortinas da cor de narcisos foram penduradas em cada janela.

— Parece alegre, não é? — perguntou ele.

— Sim, e o interior é ainda mais alegre. Uma das casas mais agradáveis da
temporada, pelo que ouvi. Eu mesmo ainda não a frequentei, mas encontrei
vários homens que o fizeram, e me disseram que ela é incomumente alegre.

— De quem é a casa?

— De uma tal Sra. Beaumont.

— E quem é ela?

— Não sei dizer. Ouvi dizer que veio da América do Sul, mas no fim das
contas, não importa muito. É uma mulher bastante rica, disso não há
dúvidas, e algumas das melhores pessoas a acolheram. Ouvi dizer que ela
tem um clairet maravilhoso, um vinho realmente magnífico, que deve ter
lhe custado uma quantia fabulosa. Foi Lorde Argentine me contou, ele
esteve aqui na noite do último domingo. Assegurou-me que nunca tomou
um vinho igual, e você sabe que Argentine é um especialista. Aliás, isso me
lembra que ela deve ser um tipo estranho de mulher, essa Sra. Beaumont.
Argentine perguntou a ela a idade do vinho, e o que você acha que ela
respondeu? “Uns mil anos, acredito”. Lorde Argentine achou que ela
estivesse brincando, mas quando ele riu, ela disse que estava falando sério e
ofereceu mostrar-lhe a garrafa. Evidentemente, ele ficou sem palavras
depois disso. Mas parece antigo demais para uma bebida, não acha? Ora,
aqui são meus aposentos. Entre, por favor.

— Obrigado, entrarei sim. Faz tempo que não vejo a loja de antiguidades.

O cômodo era ricamente mobiliado, embora de forma incomum, no qual


cada jarro, estante e mesa, cada tapete e ornamento destacava-se por si só,
de forma independente, cada um com sua própria individualidade.

— Alguma novidade? — perguntou Villiers depois de um tempo.

— Não, acredito que não. Você viu esses jarros diferentes, não viu?
Imaginei que sim. Acho que não encontrei nada de novo nas últimas
semanas.

Austin observou a sala ao redor, de armário em armário, prateleira em


prateleira, procurando por alguma esquisitice nova. Por fim, seus olhos
repousaram em um baú estranho, agradável e singularmente esculpido, em
um canto escuro.

— Ah! — ele disse. — Quase me esqueci, tenho algo para lhe mostrar.

Austin destrancou o baú, tirou de dentro dele um grosso volume, colocou-o


em cima da mesa e voltou a fumar seu charuto.

— Villiers, você conheceu Arthur Meyrick, o pintor?

— Um pouco. Encontrei-o duas ou três vezes na casa de um amigo. O que


aconteceu com ele? Já faz um tempo que não ouço falar dele.

— Ele morreu.

— Não diga! Mas era tão jovem, não era?

— Era. Tinha apenas 30 anos quando morreu.

— Do que ele morreu?

— Não sei. Ele era meu amigo íntimo e eu o considerava um sujeito muito
bom. Ele costumava vir aqui e conversava comigo por horas. Era um dos
melhores conversadores que já conheci. Conseguia até mesmo conversar
sobre pintura, o que não é o caso da maioria dos pintores. Cerca de dezoito
meses atrás, ele estava se sentindo sobrecarregado e, em parte uma sugestão
minha, partiu em uma expedição itinerante, sem muitas definições ou
objetivos. Acredito que Nova Iorque seria seu primeiro destino, mas não
tive notícias dele. Três meses atrás, recebi um livro, acompanhado de uma
carta bastante educada de um médico inglês que estava trabalhando em
Buenos Aires, afirmando que cuidara do Sr. Meyrick durante sua doença, e
que o falecido expressara seu ardente desejo de que o pacote que
acompanhava a carta fosse mandado a mim depois de sua morte. Isso foi
tudo.

— E você não escreveu pedindo mais detalhes?

— Estive pensando em fazer isso. Você me aconselharia a escrever para o


médico?
— Certamente. E o livro?

— Estava selado quando o recebi. Não acho que o médico o tenha visto.

— É um volume raro? Meyrick era um colecionador, talvez?

— Não, acho que não. Não era um colecionador. Diga-me, o que você acha
desses jarros Ainu?

— São peculiares, mas gosto deles. Mas você não ia me mostrar a herança
do pobre Meyrick?

— Sim, sim, ia mesmo. O fato é: é algo bem peculiar, e não mostrei a


ninguém. Não comentaria nada sobre isso, se fosse você. Aqui está.

Villiers pegou o livro e abriu-o em uma página aleatória.

— Não é um volume impresso, então? — disse.

— Não. É uma coleção de desenhos em preto e branco feitos por meu pobre
amigo Meyrick.

Villiers voltou à primeira página, que estava em branco. Na segunda, havia


uma breve inscrição que dizia:

Silet per diem universus, nec sine horrore secretus est; lucet nocturnis
ignibus, chorus Aegipanum undique personatur: audiuntur et cantus
tibiarum, et tinnitus cymbalorum per oram maritimam. [2 ]

Na terceira página, havia um desenho que surpreendeu Villiers e o fez


encarar Austin, que olhava distraidamente pela janela. Villiers virou página
após página, muito a contragosto, absorto na terrível Noite de Santa
Valburga, de um estranho mal monstruoso, que o artista morto expusera em
implacáveis tons de preto e branco. Figuras de faunos, sátiros e Egipãs
dançavam, a escuridão do bosque, a dança no topo da montanha, as cenas
em praias solitárias, em vinhedos verdes, próximas a rochas e lugares
desertos passaram diante dele: um mundo diante do qual a alma humana
parecia recuar e estremecer. Villiers passou rapidamente pelas páginas
restantes. Tinha visto o bastante, mas o desenho da última folha chamou sua
atenção antes que fechasse o livro.

— Austin!

— Ora, o que foi?

— Você sabe quem é ela?

Era o rosto de uma mulher, sozinho na página branca.

— Se sei quem é ela? Não, claro que não.

— Eu sei.

— Quem é?

— É a Sra. Herbert.

— Você tem certeza?

— Absoluta! Pobre Meyrick! Ele é mais um capítulo na história dela.

— Mas o que você acha dos desenhos?

— São aterradores. Tranque este livro mais uma vez, Austin. Eu o


queimaria, se fosse você. Deve ser um companheiro terrível, mesmo dentro
de um baú.

— Sim, são desenhos singulares. Mas eu fico imaginando que conexão


pode haver entre Meyrick e a Sra. Herbert, ou qual é a relação entre ela e
esses desenhos?

— E quem pode dizer? É possível que o assunto acabe aqui, e nunca


saberemos, mas, na minha opinião, essa Helen Vaughan, ou Sra. Herbert, é
apenas o começo. Ela voltará a Londres, Austin. Eu garanto, ela voltará, e,
quando isso acontecer, ouviremos falar mais sobre ela. E duvido que serão
notícias agradáveis.
VI
OS SUICÍDIOS
Lorde Argentine era uma importante figura da sociedade londrina. Aos
vinte anos, era um homem pobre, enfeitado com o sobrenome de uma
família ilustre, mas forçado a ganhar seu sustento da melhor maneira
possível, e nem o mais especulativo dos agiotas lhe teria confiado cinquenta
libras pela chance de transformar seu sobrenome em um título, e sua
pobreza em uma grande fortuna. Seu pai estivera perto o suficiente da fonte
de boas coisas para garantir um sustento para a família, mas o filho, mesmo
que tivesse recebido ordens, dificilmente teria conseguido fazer o mesmo.
Além disso, não sentia nenhuma vocação para um cargo eclesiástico.
Assim, ele enfrentou o mundo com fraca armadura: a beca de formando e a
perspicácia de um neto do filho mais novo — equipamentos com os quais
conseguiu travar uma luta bastante aceitável. Aos 25, o Sr. Charles
Aubernon ainda era um homem de batalhas e em guerra contra o mundo,
mas dos sete que se colocavam entre ele e as posições altas de sua família,
restavam apenas três. Esses três, no entanto, tinham “vida boa”, mas não
eram imunes às lanças Zulu ou à febre tifoide, então, certa manhã,
Aubernon acordou e descobriu que agora era Lorde Argentine, um homem
de trinta anos que enfrentou dificuldades na vida e saiu vitorioso. A
situação o divertiu imensamente, e ele decidiu que a riqueza deveria ser tão
prazerosa como a pobreza sempre o fora. Argentine, depois de pouca
consideração, chegou à conclusão de que jantares, considerados uma bela
arte, fossem talvez o passatempo mais agradável para a humanidade
desmoralizada. Assim, seus jantares tornaram-se famosos em Londres, e
convites para sua mesa eram avidamente desejados. Depois de dez anos
com seu título e dando jantares, Argentine ainda recusava a fadiga e insistia
em aproveitar a vida, e, a notícia de que causava alegria nos outros
espalhou-se como uma doença contagiosa, em suma, como a melhor das
companhias. Sua trágica e súbita morte, portanto, causou uma ampla e
profunda comoção. As pessoas mal podiam acreditar, mesmo que o jornal
estivesse logo à frente de seus olhos, e o grito de “Morte Misteriosa de um
Nobre” ressoasse pela rua. Porém lá estava o breve parágrafo: “Lorde
Argentine foi encontrado morto esta manhã por seu valete sob
circunstâncias perturbadoras. Afirma-se que não há dúvidas que o lorde
cometeu suicídio, embora não se possa apontar nenhum motivo para o ato.
O falecido nobre era amplamente conhecido na sociedade e muito adorado
por seus modos aprazíveis e hospitalidade suntuosa. Ele será sucedido
por…” etc. etc.

Pouco a pouco, os detalhes foram sendo elucidados, mas o caso ainda


permaneceu um mistério. A principal testemunha do inquérito era o valete
do falecido, que alegava que, na noite anterior à sua morte, Lorde Argentine
havia jantado com uma dama de boa posição, cujo nome fora suprimido das
reportagens jornalísticas. Por volta das onze da noite, Lorde Argentine
havia retornado e informou a seu funcionário que não precisaria mais de
seus serviços até a manhã seguinte. Pouco depois, o valete por acaso passou
pela entrada e ficou meio surpreso ao ver seu mestre saindo silenciosamente
pela porta da frente. Ele havia tirado suas roupas noturnas e trajava um
casaco ao estilo de Norfolk, calças curtas e um chapéu marrom baixo. O
valete não tinha nenhum motivo para achar que Lorde Argentine o tivesse
visto, e, embora seu mestre raramente saísse de madrugada, ele não pensou
muito sobre o ocorrido até a manhã seguinte, quando bateu à porta do
quarto faltando quinze minutos para as nove, como de costume. Não obteve
resposta e, depois de bater duas ou três vezes, entrou, e foi então que viu o
corpo de Lorde Argentine inclinado para frente perto de uma das
extremidades da cama. Descobriu que seu mestre havia amarrado uma
corda firmemente a um dos suportes curtos da cama e, depois de fazer um
nó corrediço e colocá-lo em volta do pescoço, o infeliz deve ter caído para a
frente e morreu vagarosamente por estrangulamento. Estava vestido com as
roupas leves com as quais o valete o vira sair, e o médico convocado
constatou que sua vida acabara há mais de quatro horas. Todos os
documentos, cartas e afins pareciam em perfeita ordem, e nada do que foi
descoberto apontava, nem remotamente, para qualquer tipo de escândalo,
grande ou pequeno. As provas acabaram ali, não se descobriu mais nada.
Várias pessoas estiveram presentes no jantar ao qual Lorde Argentine
compareceu, e todos disseram que ele parecia cordial como de costume. De
fato, o valete disse que achou que seu mestre parecia um pouco animado ao
retornar para casa, mas confessou que essa alteração em sua conduta era
muito sutil, quase imperceptível. Parecia inútil buscar por qualquer pista, e
a suposição de que Lorde Argentine foi subitamente tomado por uma grave
mania suicida foi amplamente aceita.
O contrário ocorreu, porém, quando, em três semanas, mais três
cavalheiros, um nobre e os outros dois de boa posição e fortuna, pereceram
miseravelmente quase que da mesma maneira. Lorde Swanleigh foi
encontrado uma manhã em seu vestiário, pendurado em um gancho afixado
à parede; e os Srs. Collier-Stuart e Herries haviam escolhido morrer como
Lorde Argentine. Não havia explicação em nenhum dos casos, apenas um
fato corriqueiro: um homem que estava vivo à noite e tornou-se um cadáver
com um rosto escuro e inchado pela manhã. A polícia fora forçada a admitir
sua impotência para prender ou explicar os sórdidos assassinatos de
Whitechapel [3 ]. Mas estavam assustados diante dos horríveis suicídios no
Piccadilly e no Mayfair, pois nem a crueldade que serviu para explicar os
crimes de East End poderia ser utilizada nos casos de West End. Cada um
desses homens que decidira morrer de forma atormentada e vergonhosa era
rico, próspero e, aparentemente, apaixonado pela vida, e nem mesmo as
mais aguçadas pesquisas conseguiam trazer à tona uma sombra sequer de
um possível motivo. Havia um horror no ar, e os homens se encaravam,
imaginando se o outro seria vítima de uma quinta tragédia inominável. Os
jornalistas procuraram em vão em seus álbuns de recortes por materiais para
compor artigos de memórias, e o jornal da manhã foi desdobrado em muitas
casas com um sentimento de assombro. Ninguém sabia quando ou onde o
próximo golpe ocorreria.

Pouco tempo depois do último desses terríveis acontecimentos, Austin foi


visitar o Sr. Villiers. Ele estava curioso para saber se Villiers conseguira
descobrir alguma nova pista sobre a Sra. Herbert, fosse através de Clarke ou
de outras fontes, e o questionou assim que se sentou.

— Não — respondeu Villiers. — Escrevi para Clarke, mas ele permanece


inflexível. Tentei até mesmo outros canais, mas sem resultado. Não sei o
que aconteceu com Helen Vaughan depois que ela deixou a Rua Paul, mas
acho que ela deve ter ido para o exterior. Mas para ser sincero, Austin, não
dei muita atenção a esse assunto essas últimas semanas. Eu conhecia o
pobre Herries intimamente, e sua morte terrível foi um grande choque para
mim, um grande choque.

— Eu acredito — respondeu Austin, sério. — Você sabe que Argentine era


meu amigo. Se me lembro bem, falávamos sobre ele naquele dia que você
foi aos meus aposentos.

— Sim. Tinha a ver com aquela casa na Rua Ashley, a casa da Sra.
Beaumont. Você disse algo sobre Argentine ter jantado lá.

— Exatamente. Claro que você já sabe que foi lá que Argentine jantou na
noite anterior… à sua morte.

— Não, não sabia disso.

— Sim. O nome foi mantido fora das reportagens para poupar a Sra.
Beaumont. Argentine era um de seus favoritos, e dizem que ela ficou num
estado lamentável por um tempo.

Villiers exibiu um olhar curioso. Parecia indeciso sobre falar ou não. Austin
continuou:

— Nunca experimentei um sentimento de horror tão grande como quando li


a reportagem sobre a morte de Argentine. Na hora não a entendi, e não
sei… Eu o conhecia bem e não consigo compreender que motivo ele, ou
qualquer um dos outros, na verdade, teria para decidir a sangue frio morrer
de maneira tão horrenda. Você sabe como os homens fofocam sobre o
caráter uns dos outros em Londres, pode ter certeza de que qualquer
escândalo ou segredo obscuro teria aparecido em um caso como esse, mas
nada do tipo ocorreu. Quanto à teoria de que ele tinha uma mania, pode até
funcionar bem para o júri do magistrado, mas todo mundo sabe que é um
disparate. Uma mania suicida não é como a varíola.

Austin caiu a um silêncio sombrio. Villiers também se manteve calado e


observou o amigo. A expressão de indecisão ainda corria por seu rosto.
Parecia pesar seus pensamentos em uma balança, e as considerações que
fazia deixaram-no quieto. Austin tentou afastar as memórias das tragédias
tão confusas e sem solução quanto o labirinto de Dédalo, e começou a falar
em uma voz indiferente sobre os acontecimentos e histórias mais agradáveis
da estação.

— Essa Sra. Beaumont — disse ele — de quem estávamos falando está


fazendo muito sucesso, cativou toda Londres. Eu a conheci uma noite
dessas em Fulham. É, de fato, uma mulher notável.

— Você conheceu a Sra. Beaumont?

— Conheci. Ela tinha uma corte e tanto a seu redor. Poderia ser considerada
bonita, suponho, mas há algo em seu rosto que não me agrada. Os traços
são primorosos, mas a expressão é estranha. E, enquanto eu olhava para ela,
e até mesmo depois, quando estava indo para casa, senti que aquela
expressão, de algum jeito, não me era estranha.

— Você deve tê-la visto na Rotten Row [4 ].

— Não. Tenho certeza de que nunca a vi antes, e é isso que me intriga. Pelo
que saiba, nunca vi ninguém como ela. O que senti era como uma memória
apagada e longínqua, vaga, porém persistente. Só comparar essa sensação
àquele sentimento estranho que às vezes temos em sonhos, quando cidades
fantásticas, terras maravilhosas e personagens fantasmas parecem-nos
familiares e corriqueiros.

Villiers assentiu e passou a olhar sem rumo pelo cômodo, provavelmente


buscando algo sobre o que pudesse falar, para mudar o assunto. Seus olhos
pousaram em um antigo baú, parecido com aquele onde o estranho livro
deixado pelo artista estava escondido, debaixo de um escudo gótico.

— Você escreveu sobre o podre Meyrick ao médico? — perguntou.

— Sim. Escrevi pedindo por detalhes sobre sua doença e morte. Não
acredito que deva receber uma resposta pelas próximas três ou quatro
semanas. Pensei que poderia também perguntar se Meyrick conhecia uma
inglesa chamada Herbert e, caso a resposta fosse positiva, se poderia me dar
alguma informação sobre ela. Mas é bem possível que Meyrick tenha
encontrado com ela em Nova Iorque, no México, ou em São Francisco. Não
faço ideia do quanto ele perambulou em suas viagens.

— Sim. E é bem possível que a mulher tenha mais de um nome.

— Exatamente. Eu devia ter lembrado e pedido emprestado o retrato dela


que você possui. Poderia tê-lo anexado à carta que enviei ao Dr. Matthews.
— Poderia mesmo, isso não me ocorreu. Podemos mandá-lo agora. Escute!
O que aqueles meninos estão gritando?

Enquanto os dois conversavam, um confuso som de gritos foi


gradativamente ficando mais alto. O barulho foi crescendo a partir do leste
e tomou Piccadilly, uma verdadeira torrente de som que foi se aproximando
cada vez mais, subindo pelas ruas geralmente silenciosas e transformando
todas as janelas em uma moldura para um rosto curioso ou empolgado. Os
gritos e vozes ecoavam pela rua silenciosa onde Villiers morava, e ficavam
mais nítidos à medida que avançavam. E quando Villiers falou, uma
resposta veio da calçada:

— Os Horrores de West End! Outro Suicídio Horrível! Todos os Detalhes!

Austin correu escada abaixo para comprar um jornal e leu em voz alta o
parágrafo para Villiers, enquanto o burburinho na rua aumentava e
diminuía. A janela estava aberta, e o ar parecia repleto de barulho e terror.

“Outro cavalheiro foi vítima da terrível epidemia de suicídios que tomou


West End no último mês. O Sr. Sidney Crashaw, de Stoke House, Fulham, e
King’s Pomeroy, Devon, foi encontrado, após extensa busca, pendurado em
um galho de árvore em seu jardim à uma hora da tarde de hoje. O falecido
cavalheiro jantou na noite passada no Carlton Club e parecia estar com a
saúde e animação de sempre. Deixou o clube às dez e, pouco depois, foi
visto passeando sem pressa pela Rua St. James. Depois disso, seus
movimentos são desconhecidos. Quando o corpo foi descoberto, ajuda
médica foi imediatamente convocada, mas ele já estava morto há muito
tempo. Até onde se sabe, o Sr. Crashaw não tinha qualquer problema de
ansiedade. Como se sabe, o doloroso suicídio é o quinto do tipo a ocorrer
no último mês. As autoridades da Scotland Yard [5 ] não foram capazes de
dar qualquer explicação para esses terríveis acontecimentos”.

Austin largou o jornal em silêncio, chocado.

— Deixarei Londres amanhã — ele disse. — É uma cidade de pesadelos.


Isso é horrível, Villiers!
O Sr. Villiers estava sentado ao lado da janela em silêncio, olhando para a
rua. Ele ouvira a reportagem do jornal com atenção, e a indecisão
desaparecera de seu rosto.

— Espere um momento, Austin — ele respondeu. — Decidi mencionar


algo que me ocorreu ontem à noite. Foi dito que Crashaw foi visto com vida
pela última vez na Rua St. James pouco depois das dez, certo?

— Foi, acredito que foi. Vou olhar mais uma vez. Sim, é isso mesmo.

— Pois bem. Posso contradizer essa afirmação por completo. Crashaw foi
visto depois disso, bem mais tarde.

— Como você sabe?

— Porque por acaso eu mesmo o vi por volta das duas da manhã.

— Você viu Crashaw? Você, Villiers?

— Sim, eu o vi, bem distintamente. Na verdade, estávamos a uma distância


de poucos metros um do outro.

— Onde, por Deus, você o viu?

— Não muito longe daqui. Eu o vi na Rua Ashley. Ele estava saindo de uma
casa.

— Você viu qual era a casa?

— Sim. Era a casa da Sra. Beaumont.

— Villiers! Pense no que está dizendo. Deve haver algum engano. Como é
possível que Crashaw estivesse na casa da Sra. Beaumont às duas da
manhã? Certamente você estava sonhando, Villiers; você sempre teve uma
imaginação fértil.

— Não. Eu estava bem acordado. Mesmo que estivesse sonhando, como


você alega, o que vi teria me acordado, com certeza.
— O que você viu? O quê? Havia algo de estranho em Crashaw? Não posso
acreditar, é impossível.

— Bom, se você quiser, eu contarei o que vi ou, se preferir, o que acredito


ter visto, e você pode julgar por si mesmo.

— Que assim seja, Villiers.

O barulho e o tumulto na rua já haviam morrido, embora de vez em quando


ainda fosse possível ouvir um grito distante, e o silêncio pesado e carregado
assemelhava-se à calmaria depois de um terremoto ou tempestade. Villiers
afastou-se da janela e começou a falar.

— Eu estava em uma casa no Parque Regent ontem à noite e quando fui


embora, tive vontade de andar ao invés de pedir uma carruagem. Era uma
noite clara e agradável, e, depois de alguns minutos, eu era o único andando
pelas ruas. É algo bem curioso, Austin, estar sozinho à noite em Londres,
quando os postes a gás se estendem em perspectiva, o silêncio é absoluto e,
de vez em quando, há o barulho de uma carruagem correndo pelas ruas de
pedra, e faíscas acendendo-se sob as ferraduras dos cavalos.

“Andava rapidamente, pois estava um pouco cansado por ter saído à noite e,
quando os relógios bateram duas horas, virei na Rua Ashley, que, como
você sabe, fica no meu caminho. Estava mais silencioso do que nunca lá, e
havia poucos postes acessos. Na verdade, a rua toda parecia escura e
sombria como uma floresta no inverno. Eu tinha percorrido cerca de metade
da rua quando ouvi uma porta se fechando de modo suave, e, naturalmente,
virei-me para ver quem estava na rua assim tão tarde, como eu. Por acaso,
há um poste de luz perto da casa em questão, e vi um homem parado à
soleira. Ele tinha acabado de fechar a porta, e seu rosto estava virado na
minha direção, então reconheci Crashaw imediatamente. Não o conhecia
bem o suficiente a ponto de conversar, mas o via com frequência, e tenho
certeza de que não me confundi. Olhei para seu rosto por um momento e,
então, devo confessar, saí correndo, e continuei assim até estar em frente à
minha própria porta.”

— Por quê?
— Por quê? Porque meu sangue gelou ao ver o rosto daquele homem. Eu
jamais poderia ter imaginado que uma mistura infernal de paixões pudesse
brilhar no olhar de qualquer pessoa daquele jeito. Quase desmaiei quando o
vi. Sabia que havia olhado nos olhos de uma alma perdida, Austin. O
exterior do homem permanecia, mas o inferno inteiro estava por dentro
dele. Uma luxúria intensa e um ódio tal qual fogo, assim como a perda de
toda esperança e um horror que parecia gritar alto para a noite, embora seus
dentes estivessem cerrados; e a escuridão profunda do desespero. Tenho
certeza de que ele não me viu. Ele não via nada que eu ou você somos
capazes de enxergar, mas espero que nunca vejamos o mesmo que ele. Não
sei quando ele morreu. Suponho que tenha sido uma ou duas horas depois
disso, mas quando passei pela Rua Ashley e ouvi a porta se fechando,
aquele homem não pertencia mais a esse mundo. Foi a face de um demônio
que eu contemplei.

Houve um momento de silêncio na sala quando Villiers parou de falar. A


luz falhava, e todo o tumulto de uma hora atrás já estava bastante abafado.
Austin baixara a cabeça ao fim da história, e suas mãos cobriam seus olhos.

— O que isso significa? — perguntou, devagar.

— Quem sabe, Austin, quem sabe? É um assunto macabro, mas acho que é
melhor guardarmos isso para nós mesmos, ao menos por enquanto. Vou ver
se consigo descobrir alguma coisa sobre essa casa pelos meus canais de
informação, e se descobrir algo, contarei a você.
VII
O ENCONTRO NO SOHO
Três semanas depois, Austin recebeu um bilhete de Villiers, pedindo que o
encontrasse naquela tarde ou na próxima. Ele escolheu a data mais próxima,
e encontrou Villiers sentado, como de costume, à janela, aparentemente
absorto em meditações acerca do tráfego sonolento da rua. Havia uma mesa
de bambu a seu lado, uma peça fantástica, enriquecida com pinturas de
cenas enfeitadas e fascinantes, e em cima dela havia uma pequena pilha de
papéis arrumados e guardados de modo tão organizado quanto os outros
itens no escritório do Sr. Clarke.

— E então, Villiers, descobriu alguma coisa nessas últimas três semanas?

— Acredito que sim. Tenho aqui um ou dois memorandos que me


pareceram singulares, e há uma declaração que merece sua atenção.

— E esses documentos estão relacionados à Sra. Beaumont? Era mesmo


Crashaw quem você viu naquela noite, na porta da casa da Rua Ashley?

— Quanto a esse assunto, minhas opiniões permanecem inalteradas, mas


meus inquéritos e os resultados não têm qualquer relação com Crashaw.
Mas minhas investigações revelaram um fato curioso. Descobri quem a Sra.
Beaumont é!

— Quem é ela? O que você quer dizer?

— Quero dizer que eu e você a conhecemos melhor por outro nome.

— E que nome é esse?

— Herbert.

— Herbert! — Austin repetiu a palavra, atordoado pelo espanto.

— Sim, a Sra. Herbert da Rua Paul é Helen Vaughan de outras aventuras


que desconheço. Você tinha motivos para reconhecer a expressão do rosto
dela. Quando for para casa, olhe para o rosto desenhado no livro de horrores
de Meyrick, e você descobrirá a fonte de sua lembrança.

— E você tem provas?

— Sim, a melhor prova. Eu vi a Sra. Beaumont, ou devo dizer a Sra.


Herbert?

— Onde você a viu?

— Não em um lugar onde se esperaria ver uma senhora que vive na Rua
Ashley, em Piccadilly. Vi-a entrando em uma casa em uma das ruas mais
cruéis e duvidosas do Soho. Na verdade, marquei um encontro, embora não
com ela, e a Sra. Beaumont foi assídua quanto ao horário e ao local.

— Tudo isso parece muito fantasioso, mas não posso dizer que é
inacreditável. Villiers, você deve se lembrar que vi esta mulher, em nas
ocorrências cotidianas da sociedade londrina, conversando, rindo e tomando
café em uma sala comum com pessoas comuns. Mas você sabe o que está
dizendo.

— Sei. Não me permiti ser levado por suposições ou fantasias. Não foi
pensando em encontrar Helen Vaughan que pesquisei sobre a Sra.
Beaumont nas escuras águas da vida londrina, mas foi o que encontrei.

— Você deve ter ido a lugares estranhos, Villiers.

— Sim, eu estive em lugares estranhos. Como sabe, teria sido inútil ir à Rua
Ashley e pedir à Sra. Beaumont breves relatos sobre sua história passada.
Não. Pressupondo, como tive que pressupor, que seu histórico não era dos
mais limpos, seria bem provável que ela, em algum tempo passado, tenha
frequentado círculos não tão refinados quanto os que frequenta agora.

“Se você vê lama no topo de um riacho, pode ter certeza de que ela esteve
no fundo dele antes. Eu fui ao fundo. Sempre gostei de frequentar a Rua
Queer, para me divertir, e descobri que meu conhecimento sobre o local e
seus habitantes seria bastante útil. Talvez seja desnecessário dizer que meus
amigos nunca tinham ouvido falar do nome Beaumont, e como eu ainda não
tinha visto a senhora e não poderia descrevê-la, precisei começar o trabalho
de forma indireta. As pessoas de lá me conhecem, já prestei alguns serviços
aqui e ali para eles, portanto, não foi difícil fazê-los me dar as informações
que possuíam. Eles sabem que não tenho comunicação, nem direta nem
indireta, com a Scotland Yard. Contudo tive que dar uma pincelada aqui e
ali na história antes de conseguir o que queria, e quando consegui uma
informação importante, não pensei nem por um momento que fosse a que
eu procurava. Mas escutei o que me diziam, pois tenho um apreço natural
por informações inúteis, e acabei vendo-me em posse de uma história
bastante curiosa, embora não fosse a que eu procurava. Ela se deu da
seguinte forma: uns cinco ou seis anos atrás, uma mulher cujo sobrenome
era Raymond apareceu de repente nessa vizinhança a que me refiro. Ela foi
descrita como bem jovem, provavelmente com não mais do que dezessete
ou dezoito anos, muito bonita e com aparência campestre. Eu estaria errado
se dissesse que ela encontrou seu nível nesse bairro, ou associando-se a
essas pessoas, pois, pelo que me disseram, sou levado a crer que o pior
antro londrino ainda seria bom demais para ela. A pessoa que me deu essa
informação, como você pode supor, não é uma puritana, mas estremeceu e
ficou enojada ao me contar as infâmias inomináveis atribuídas àquela
mulher. Depois de morar lá por um ano, ou talvez um pouco mais, ela
desapareceu tão subitamente como havia surgido, e eles não a viram mais
até a época do caso da Rua Paul. No começo, ela foi a seus lugares
preferidos apenas ocasionalmente, depois com mais frequência, até que,
enfim, ficou morando por lá como antes, permanecendo de seis a oito
meses. Não preciso entrar em detalhes sobre a vida que essa mulher levou.
Se você quiser pormenores, pode olhar o livro deixado por Meyrick.
Aqueles desenhos não foram fruto da imaginação dele. Ela sumiu mais uma
vez, e as pessoas daquele lugar não a viram mais até alguns meses atrás.
Meu informante disse que ela alugara alguns cômodos em uma casa, que ele
me mostrou, e que ela tinha o hábito de visitá-los duas ou três vezes na
semana, sempre às dez da manhã. Fizeram-me crer que uma dessas visitas
seria feita em um dia específico cerca de uma semana atrás, então consegui
ficar de olho, na companhia do meu guia às quinze para as dez. Tanto a hora
quanto a dama chegaram com igual pontualidade. Meu amigo e eu
estávamos parados sob um arco, mais para o início da rua, mas ela nos viu e
me lançou um olhar que demorarei a esquecer. Aquele olhar por si só me foi
suficiente. Soube que a Srta. Raymond era a Sra. Herbert. Quanto à Sra.
Beaumont, ela já havia desaparecido de minha mente. Ela entrou na casa, e
observei-a até às quatro da tarde, quando saiu, e, então, eu a segui. Foi uma
caçada longa, e tive que tomar bastante cuidado para me manter à distância
e, ao mesmo tempo, não perdê-la de vista. Ela me levou a Strand, depois a
Westminster, e, então, para a Rua St. James e Piccadilly acima. Senti-me
estranho ao vê-la virar na Rua Ashley. A ideia de que a Sra. Herbert e a Sra.
Beaumont eram a mesma pessoa me veio à mente, mas parecia impossível
de ser verdade. Esperei na esquina, mantendo um olho nela o tempo todo, e
prestei atenção especial à casa na qual ela parou em frente. Era a casa das
cortinas alegres, o lar das flores, a casa que Crashaw havia frequentado na
noite em que se enforcou em seu jardim. Eu estava prestes a ir embora com
minha descoberta quando vi uma carruagem vazia se aproximar e parar na
frente da casa, então cheguei à conclusão de que a Sra. Herbert sairia para
um passeio, e estava certo. Por acaso, encontrei um conhecido por lá, e
ficamos conversando não muito longe da via das carruagens, para a qual eu
estava de costas. Nem dez minutos haviam se passado quando meu amigo
tirou o chapéu, e virei-me a tempo de ver a senhora que eu perseguira o dia
todo. “Quem é essa?”, perguntei, e sua resposta foi: “A Sra. Beaumont, ela
mora na Rua Ashley”. É claro que não tive mais dúvidas depois disso. Não
sei se ela me viu, mas acredito que não. Fui para casa de uma vez e, depois
de alguma consideração, pensei ter um caso bom o suficiente para ir até
Clarke.

— Por que Clarke?

— Porque tenho certeza de que Clarke tem informações sobre essa mulher,
fatos que desconheço.

— Bom, e então?

O Sr. Villiers se recostou na cadeira e olhou pensativo para Austin por um


momento antes de responder:

— Minha ideia é que Clarke e eu deveríamos visitar a Sra. Beaumont.

— Você não iria a uma casa como aquela, iria? Não, não, Villiers, você não
pode ir. Até porque, reflita, que resultado…
— Irei lhe contar em breve. Mas eu ia dizer que minhas informações não
terminam por aqui. Elas foram completadas de maneira extraordinária. Veja
este pequeno e elegante manuscrito. Veja, ele está paginado, e até me
entreguei à tendência da fita vermelha. Tem um ar quase oficial, não acha?
Dê uma olhada, Austin. É um registro das atividades que a Sra. Beaumont
providenciou aos convidados escolhidos. O homem que o escreveu escapou
com vida, mas não acho que viverá por muitos anos. Os médicos lhe
disseram que ele deve ter sofrido um choque severo aos nervos.

Austin pegou o manuscrito, mas nunca o leu. Abrindo as páginas bem


arrumadas ao acaso, seus olhos foram atraídos por uma palavra e a frase
que vinha em seguida. E, enjoado até o âmago, com os lábios brancos e
suor frio vertendo como uma torrente de suas têmporas, ele jogou o papel
no chão.

— Leve isso daqui, Villiers, e não fale mais disso. Por acaso você é feito de
pedra, homem? Ora, o pavor e o horror da própria morte, os pensamentos
do homem que parado, no ar agudo da manhã, na plataforma sombria,
amarrado, com barulho dos sinos retumbando em seus ouvidos e
aguardando o som estridente do raio não são nada comparados a isso. Não
lerei. Caso contrário, nunca mais conseguirei dormir.

— Muito bem. Posso imaginar o que você viu. Sim, é horrível. Mas, no fim
das contas, é uma história antiga, um velho mistério que se mantém até
hoje, nas escuras ruas de Londres ao invés de entre vinhedos e jardins de
oliveiras. Sabemos o que aconteceu com aqueles que encontraram o Grande
Deus Pã, e os que são sábios entendem que todos os símbolos são símbolos
de alguma coisa, e não de nada.

“Era, de fato, um símbolo extraordinário sob o qual os homens esconderam


há muito tempo seu conhecimento sobre as forças mais perversas e secretas
que habitam o coração de tudo aquilo que existe; forças diante das quais as
almas dos homens devem murchar, morrer e escurecer, assim como seus
corpos escurecem com a corrente elétrica. Tais forças não podem ser
nomeadas, não podem ser faladas, nem imaginadas a não ser sob um véu e
um símbolo, que, para a maioria de nós, parece uma fantasia exótica e
poética, para outros, uma fábula tola. Todavia, você e eu, conhecemos, em
todo esse caso, um pouco do terror que pode habitar o lugar secreto da vida,
que se manifesta sob a carne humana. Aquilo que não tem forma e que
procura uma para si. Ah, Austin, como é possível? Como é possível que a
própria luz do sol não escureça frente a essa coisa, que a terra dura não
derreta e ferva diante de tal fardo?”

Villiers andava para cima e para baixo no cômodo, com gotas de suor
destacando-se em sua testa. Austin ficou em silêncio por um tempo, mas
Villiers o viu fazer um gesto sobre o peito.

— Vou repetir, Villiers, você não entrará numa casa como essa, certo? Você
jamais sairia vivo.

— Sim, Austin, eu sairei vivo. Eu e Clarke, juntos.

— Como assim? Você não pode, não ousaria…

— Espere um momento. O ar estava muito agradável e fresco essa manhã,


havia uma brisa, mesmo nessa rua tão parada, e pensei em dar uma volta.
Piccadilly se estendia à minha frente, uma vista clara e iluminada, e o sol
brilhava nas carruagens e nas folhas trêmulas no parque.

“Era uma manhã alegre, homens e mulheres olhavam para o céu e sorriam
enquanto se encaminhavam para seus trabalhos ou prazeres, e o vento
soprava como em campinas e sobre juncos perfumados. Mas, de algum
jeito, superei a agitação e a felicidade e fui andando devagar por uma rua
silenciosa e sem graça, onde parecia não haver nem sol nem ar, e onde os
poucos transeuntes sofriam enquanto andavam e demoravam-se, incertos,
em esquinas e arcos. Continuei andando, mal sabendo para onde me dirigia
ou o que estava fazendo ali, mas me sentindo impelido, como às vezes nos
sentimos, a explorar mais a fundo, com uma ideia vaga de alcançar algum
objetivo desconhecido. Então prossegui pela rua, notando o pouco tráfego
na leiteria, e pensando sobre a mistura contraditória de cachimbos baratos,
tabaco negro, doces, jornais e músicas divertidas que aqui e ali
acotovelavam-se na pequena área de uma única janela. Acho que foi um
calafrio que senti repentinamente que me indicou que eu havia encontrado o
que queria. Olhei para cima, para além da calçada, e parei em frente a uma
loja velha, cujo letreiro já desvanecia, onde tijolos vermelhos de duzentos
anos atrás desbotaram-se e enegreceram, e cujas janelas haviam juntado a
sujeira de inúmeros invernos. Vi o que precisava, mas acredito que cinco
minutos se passaram até que eu me controlasse e conseguisse entrar e pedir,
com uma voz calma e o semblante tranquilo. Acho que mesmo assim havia
um tremor em minhas palavras, pois o velho senhor que apareceu dos
fundos da loja e remexeu vagarosamente sua mercadoria me olhou de um
jeito estranho enquanto amarrava o pacote. Paguei o valor exigido e fiquei
parado no balcão, relutando em pegar o pacote e ir embora. Perguntei sobre
os negócios e soube que o comércio andava mal e que os lucros haviam
caído bastante. Mas, na verdade, a rua não era mais como fora antes do
tráfego ser desviado, o que ocorrera quarenta anos atrás, “pouco antes do
meu pai falecer”, ele disse. Enfim me retirei e andei a passos rápidos. Era
de fato uma rua triste, e me senti feliz de voltar ao tumulto e ao barulho.
Você gostaria de ver o que adquiri?

Austin não disse nada, mas assentiu com a cabeça levemente. Ele ainda
estava pálido e abatido. Villiers abriu uma gaveta da mesinha de bambu e
mostrou a Austin um longo rolo de corda, rígido e novo. Em uma das
pontas, havia um nó corredio.

— É a melhor corda de cânhamo — disse Villiers. — O senhor falou que é


exatamente como costumavam fazer antigamente. Nem mesmo um único
centímetro de juta, de uma ponta a outra.

Austin cerrou os dentes com força e encarou Villiers, ficando mais e mais
pálido.

— Você não faria isso — murmurou, enfim. — Não sujaria as mãos de


sangue. Meu Deus! — exclamou, com uma intensidade repentino. —
Villiers, você não pode realmente dizendo que se transformaria em um
carrasco?

— Não. Darei a ela uma escolha, e deixarei Helen Vaughan sozinha com
esta corda em um quarto trancado por quinze minutos. Se, quando
entrarmos, ela não tiver feito nada, chamarei o policial mais próximo. Isso é
tudo.

— Preciso ir agora. Não posso permanecer aqui. Não consigo suportar tudo
isso. Boa noite.
— Boa noite, Austin.

A porta se fechou, mas logo voltou a se abrir, e Austin parou, pálido e


lívido, na entrada.

— Estava me esquecendo — ele disse — que eu também tenho algo a


contar. Recebi uma carta do Dr. Harding, de Buenos Aires. Ele disse que
cuidou de Meyrick por três semanas antes da morte do meu amigo.

— E ele disse o que levou Meyrick no auge de vida? Não foi uma febre?

— Não, não foi uma febre. De acordo com o médico, foi um colapso total
de todo o sistema, provavelmente causado por algum choque severo. Mas
ele afirma que o paciente se recusava a lhe revelar detalhes, e que, portanto,
ficou sem as devidas condições para tratar do caso.

— Há mais alguma coisa?

— Sim. O Dr. Harding conclui a carta dizendo o seguinte: “Acredito que


isso seja tudo que posso lhe informar sobre seu pobre amigo. Ele não estava
há muito tempo em Buenos Aires e não conhecia praticamente ninguém,
exceto por uma pessoa que não possui o melhor dos caráteres, e que já saiu
da cidade: uma Sra. Vaughan”.
VIII
OS FRAGMENTOS
[Entre os papéis do renomado médico que morreu de repente de uma
convulsão apoplética no início de 1892, o Dr. Robert Matheson, da Rua
Ashley, Piccadilly, uma folha manuscrita foi encontrada, coberta de
anotações a lápis. Essas notas estavam em latim, bastante abreviadas, e
claramente foram feitas com muita pressa. O manuscrito foi decifrado com
dificuldade, e algumas palavras até o presente momento continuam a
escapar da compreensão dos especialistas. A data, “XXV Jul. 1888” está
grafada no canto superior direito. Segue-se uma tradução do manuscrito do
Dr. Matheson.]

“Se a ciência se beneficiaria dessas breves notas, caso pudessem ser


publicadas, eu não sei, mas duvido que seja esse o caso. Porém eu
certamente jamais assumiria a responsabilidade de publicar ou divulgar uma
palavra do que está aqui escrito, não apenas por causa ao juramento que fiz
livremente às duas pessoas aqui presentes, mas também porque os detalhes
são demasiadamente abomináveis. É provável que eu, depois de reflexões
maduras e de pesar os prós e contras, venha a destruir este papel um dia, ou
ao menos entregá-lo lacrado a meu amigo D., confiando em sua discrição,
para usá-lo ou queimá-lo, o que achar melhor.

“Como era apropriado, fiz tudo o que meu conhecimento indicava, para
garantir que não sofria de qualquer ilusão. A princípio, estava espantado,
mal conseguia pensar, mas, em um minuto, eu tinha certeza de que meu
pulso estava estável e normal, e que eu estava em posse de meus sentidos
reais e verdadeiros. Silenciosamente, fixei os olhos no que estava à minha
frente.

“Embora tenha sentido horror e uma náusea repulsiva, e um odor pútrido


sufocasse minha respiração, permaneci firme. Eu era, então, privilegiado ou
amaldiçoado, não ouso dizer qual, por ver aquilo que estava na cama,
deitado ali tão escuro quanto tinta, transformar-se na frente de meus olhos.
A pele, a carne, os músculos e os ossos, até mesmo a firme estrutura do
corpo humano que eu julgava imutável e permanente como diamante,
começou a derreter e se dissolver.

“Sei que o corpo pode ser separado em seus elementos por agentes
externos, mas eu teria me recusado a acreditar no que vi. Porque lá estava
alguma força interna, sobre a qual eu nada sabia, que causava a dissolução e
a mudança.

“Ali também estava todo o trabalho a partir do qual o homem fora feito,
repetindo-se diante de mim. Vi a forma oscilar de um gênero a outro,
dividindo-se e, então, unindo-se mais uma vez. Então vi o corpo regredir à
monstruosidade enquanto ascendia, e aquilo que estava no topo cair para as
profundezas, até o próprio abismo de todo ser. O princípio da vida, que
forma organismos, sempre permanecia, enquanto a forma externa se
modificava.

“A luz no quarto se tornou escura, não como a escuridão da noite, na qual


objetos podem ser vistos vagamente, pois eu conseguia enxergar claramente
e sem dificuldades. Era uma negação da luz. Objetos apresentavam-se a
meus olhos, se posso assim dizer, sem qualquer intermediação, de tal forma
que se houvesse um prisma no quarto, eu não teria visto qualquer uma das
cores representadas nele.

“Observei, e, por fim, não vi nada além de uma substância parecida com
geleia. Então a escada foi levantada novamente [aqui o manuscrito é
ilegível] … por um momento, vi uma Forma, delineada na penumbra diante
de mim, que não descreverei em mais detalhes. Mas o símbolo dessa forma
pode ser visto em esculturas antigas e em pinturas que sobreviveram sob a
lava, abomináveis demais para se falar sobre elas… Quando a forma
horrível e inominável, nem homem nem besta, metamorfoseou-se para uma
forma humana, a morte finalmente chegou.

“Eu, que testemunhei tudo isso, não sem grande horror e repugnância na
alma, escrevo aqui meu nome, declarando que as coisas que escrevi neste
papel são verdadeiras.

“ROBERT MATHESON, Med. Dr.”


… Esta, Raymond, é a história do que sei e do que vi. É um fardo pesado
demais para que eu carregue sozinho, mas eu não poderia confiá-lo a mais
ninguém além de você. Villiers, que esteve comigo no fim, não sabe nada
sobre o terrível segredo da floresta, de como aquilo que nós vimos morrer
repousou sobre a suave e doce relva entre as flores veranis, parte do corpo
ao sol, parte à sombra, e, segurando a mão da menina Rachel, chamou e
invocou aqueles companheiros, e, sobre a terra onde pisamos, tornou real o
horror que podemos apenas vislumbrar, que só podemos nomear por meio
de imagens. Eu não contaria a Villiers sobre isso, nem sobre a semelhança
que me atingiu como um golpe no coração quando vi o retrato, que encheu
a taça do horror ao fim. Não me atrevo a fazer suposições sobre o que isso
pode significar. Sei que o que vi perecer não era a Mary, mas mesmo assim,
em seu último suspiro, foram os olhos de Mary que me encararam. Se há
alguém capaz de revelar o último elo dessa cadeia de terríveis mistérios, eu
não sei, mas se há de fato alguém que possa fazê-lo, então esse homem é
você, Raymond. E se você sabe o segredo, é escolha sua contar ou não,
como preferir.

Escrevo esta carta para você logo após retornar à cidade. Estive no campo
pelos últimos dias, talvez você seja capaz de adivinhar onde. Enquanto o
horror e o espanto de Londres estavam em seu ápice — já que a “Sra.
Beaumont”, como eu disse, era bem conhecida na sociedade — escrevi a
meu amigo, o Dr. Phillips, dando a ele um breve relato sobre o que havia
acontecido, e pedindo para que me contasse o nome do vilarejo onde os
eventos que ele me relatara haviam ocorrido. Assim ele fez, sem hesitar,
pois o pai e a mãe de Rachel já morreram, e o restante da família se mudou
para a casa de um parente no Estado de Washington, seis meses antes. Os
pais, ele disse, sem dúvida pereceram devido ao pesar e ao horror causados
pela terrível morte da filha, e pelos eventos que ocorreram antes da morte.
Na noite do dia em que recebi a carta de Phillips, eu estava em Caermaen,
parado embaixo das ruínas do muro romano, branco dos invernos de mil e
setecentos anos. Olhei para a campina onde outrora se erguera o templo do
“Deus das Profundezas” e vi uma casa cintilando sob a luz do sol. Era a
casa onde Helen vivera. Permaneci em Caermaen por muitos dias. As
pessoas do lugar, descobri, sabiam pouco e faziam pouca questão de dar
palpites. Aqueles com quem conversei sobre o assunto pareciam surpresos
que um dono de antiquário (como aleguei ser) se importasse com uma
tragédia de um vilarejo, sobre a qual contaram uma versão bastante banal.
Mas, como você pode imaginar, não falei nada do que sabia. Passei a maior
parte do tempo na grande floresta que se ergue acima do vilarejo, sobe pela
colina e desce pelo rio que corta o vale, que é longo e adorável, Raymond,
como aquele que observamos em certa noite de verão, andando para cima e
para baixo na frente de sua casa. Por horas, vaguei pelo labirinto que é essa
floresta, às vezes virando à direita, às vezes à esquerda, andando devagar
pelos longos caminhos de vegetação rasteira, frescos e umbrosos, mesmo
sob a luz do sol do meio-dia, parando debaixo de grandes carvalhos.
Deitado na relva de uma clareira, o leve perfume doce de rosas selvagens
veio até mim, carregado pelo vento, misturado com o perfume pesado do
sabugueiro, cujo odor misturado é como o da sala dos mortos, um vapor de
incenso e putrefação. Parei no limite da floresta, observando toda a pompa e
o cortejo das dedaleiras elevando-se em meio às samambaias e brilhando
vermelhas sob o sol, e além delas, em densos matagais de vegetação
rasteira, onde nascentes brotam da rocha e nutrem as ervas daninhas da
água, úmidas e más. Mas em todas as minhas andanças, evitei uma parte da
floresta. Foi apenas ontem que subi até o topo da colina e parei na antiga
estrada romana que se destaca na parte mais elevada do bosque. Elas
andaram aqui, Helen e Rachel, ao longo desse caminho silencioso, na
estrada de relva verde, presa em ambos os lados por altas margens de terra
vermelha e altas sebes de faia brilhante, e eu segui seus passos, olhando, de
vez em quando, através de bifurcações nos galhos, e vendo, de um lado, o
movimento da floresta estendendo-se para a direita e esquerda, afundando-
se no amplo nível, e além, no mar amarelo e na terra sobre o mar. Do outro
lado, ficava o vale e o rio, e colina após colina, como onda após onda, e
bosque e campina, e os campos de trigo, bem como casa brancas reluzentes,
uma enorme parede de montanhas e longínquos picos azuis ao norte. Então,
enfim, cheguei ao local. A trilha subiu um declive suave e se alargou para
um espaço aberto, com uma parede de vegetação ao seu redor, e depois,
estreitando-se novamente, perdia-se na distância e na fraca névoa azul do
calor do verão. E nessa agradável clareira veranil, Rachel adentrou como
uma menina, mas deixou-a como, quem poderá dizer? Não permaneci por
muito tempo ali.

Em uma cidade pequena perto de Caermaen há um museu que tem, em sua


maior parte, resquícios romanos encontrados nas vizinhanças em momentos
diversos. No dia após minha chegada em Caermaen, andei pela cidade em
questão e aproveitei a oportunidade para inspecionar o local. Depois de já
ter visto a maior partes das pedras esculpidas, túmulos, anéis, moedas e
fragmentos de mosaicos que o lugar guardava, fui levado a um pequeno
pilar quadrado, feito de pedra branca, que fora recentemente descoberto na
floresta sobre a qual falei e, como descobri ao perguntar, justamente
naquele espaço aberto onde a estrada romana se alarga. Em um lado do
pilar, havia uma inscrição que chamou minha atenção. Algumas das letras
haviam sido desgastadas, mas não creio que haja dúvidas quanto às que
transcrevi aqui. A inscrição é a seguinte:

DEVOMNODENT—I—

FLA—V—IVSSENILISPOSSV-

—IT—

PROPTERNVP—TIA

—QUA—SVIDITSVBVMB—RA—

“Ao grande deus Nodens (o deus das Grandes Profundezas ou Abismo),


Flavius Senilis ergueu este pilar em consideração ao casamento que viu sob
a sombra”.

O curador do museu me informou que os antiquários locais ficaram muito


intrigados, não pela inscrição ou qualquer dificuldade para traduzi-la, mas
quanto à circunstância ou rito aludido por ela.

… E agora, meu querido Clarke, quanto ao que você me disse sobre Helen
Vaughan, que você diz ter visto morrer sob circunstâncias de um horror
máximo e quase incrível: fiquei interessado em seu relato, mas grande parte
do que você me contou, quase tudo, eu já sabia. Posso compreender a
estranha semelhança que você observou entre o retrato e o rosto; você viu a
mãe de Helen. Você se lembra daquela noite silenciosa de verão tantos anos
atrás, quando conversei com você sobre o mundo além das sombras, e sobre
o deus Pã. Você se lembra de Mary. Ela era mãe de Helen Vaughan, que
nasceu nove meses após aquela noite.
Mary nunca recobrou voltou a si. Ela permaneceu deitada, como você viu, o
tempo todo na cama, e poucos dias depois do nascimento da criança, ela
faleceu. Imagino que, perto do fim, ela me reconheceu. Eu estava de pé ao
lado da cama, e seu antigo olhar surgiu por um segundo, mas então ela
estremeceu, gemeu e morreu. Foi um trabalho doentio o que fiz naquela
noite, quando você esteve presente. Eu quebrei a porta da casa da vida, sem
saber ou me importar com o que poderia ocorrer se eu fosse adiante e
entrasse. Lembro-me de você me dizendo naquela época, bastante
categórico e com razão, de certo modo, que eu havia arruinado a
consciência de um ser humano por um experimento tolo, baseando-me em
uma teoria absurda. Você fez bem em me culpar, mas minha teoria não era
totalmente absurda. O que eu disse que Mary veria, ela viu, mas me esqueci
que nenhum olho humano poderia contemplar tal visão sem consequências.
E me esqueci, como acabei de dizer, que quando as portas da casa da vida
são escancaradas, aquilo para o qual não temos nome pode entrar, e a carne
humana pode se tornar o véu de um horror que ninguém ousaria expressar.
Brinquei com energias que não compreendia, e você viu como tudo
terminou. Embora tenha sido uma morte horrível, Helen Vaughan fez bem
ao pôr a corda em seu pescoço e morrer. O rosto escurecido, a forma
hedionda sob a cama, metamorfoseando e derretendo diante de seus olhos,
de mulher para homem, de humano à besta, e de besta a algo pior, todos
esses horrores estranhos que você testemunhou, não me surpreendem muito.
As coisas que você diz que o médico chamado viu e ficou apavorado diante
delas, eu percebi muito tempo atrás. Soube o que fiz assim que a criança
nasceu, e quando ela mal tinha cinco anos, surpreendi-me ao vê-la, não uma
ou duas, mas muitas vezes, brincando com um coleguinha, e você pode
imaginar de que tipo estou falando. Era para mim uma constante, um horror
encarnado, e, depois de alguns anos, senti que não podia mais suportar,
então mandei Helen Vaughan embora. Agora você sabe o que assustou o
menino na floresta. O restante dessa história estranha, e tudo o mais que
você me conta, como seu amigo descobriu, consegui saber de tempos em
tempos, quase até o último capítulo. E agora Helen está com seus
companheiros…
NOTAS
1. N.T.: Em tradução literal: “E o diabo se fez carne. E se fez homem”.
Uma corrupção irônica de uma frase semelhante da fé cristã referente a
Jesus Cristo. ↩
2. N.T.: Citação de Gaio Júlio Solino (c. 400 d.C.). Em tradução livre: “O
universo é silencioso durante o dia e os terríveis pensamentos
permanecem secretos. Seu fogo arde à noite e o coro de Egipã soa por
todos os lados, declarando, e músicas podem ser ouvidas, o som de
flautas e o tilintar de címbalos na beira do mar”. (Best Horror Short
Stories , Andrew Barger. Bottletree Classics, 2016). ↩
3. N.T.: Referência aos famosos assassinatos de Jack, o Estripador, todos
ocorridos em Whitechapel, que permanecem sem solução. ↩
4. N.T.: Rotten Row, no Hyde Park, era um lugar onde os ricos da era
vitoriana passeavam. (Late Victorian Gothic Tales , Roger Luckhurst.
Oxford University Press, 2005). ↩
5. A Scotland Yard é a sede central ou quartel general da Polícia
Metropolitana de Londres. O nome deriva da sua antiga localização, na
Great Kew Scotland Yard , uma rua situada em Whitehall. ↩
ET DIABOLUS INCARNATUS
EST
O HORROR DECADENTISTA DE ARTHUR MACHEN

por Rodrigo Kmiecik

No fundo do vale, ao longe, estava Caerleon-on-Usk; sobre a colina, em


algum lugar nas encostas mais baixas da floresta, estava Caerwent, outra
cidade romana tragada pela terra, e que agora despontava dela e revelava
estranhas relíquias — fragmentos do templo de “Nodens, deus das
profundezas”. Vi uma casa solitária entre a floresta escura e o rio
prateado, e anos depois escrevi “O grande deus Pã”, um esforço para
transmitir a vaga e indefinível sensação de espanto, mistério e terror que
eu havia provado.

Essas linhas pertencem ao livro Far Off Things (1922), o primeiro de dois
volumes autobiográficos escritos por Arthur Machen. No início dessas
memórias, o autor relembra sua infância nos ermos rurais do País de Gales.
Essas paisagens de bosques profundos, riachos antigos e ruínas quase
ignotas causaram grande impacto no jovem Machen, e gestaram lembranças
que o acompanhariam ao longo de toda a sua vida. O fascínio pelo mistério
desses lugares deu corpo às imagens vívidas que, com prosa inigualável,
Machen imortalizou em sua ficção.

Arthur Llewelyn Jones nasceu em 3 de março de 1862 na cidade de


Caerleon, Monmouthshire, no País de Gales. O local se encontra à beira do
rio Usk e era cercada por vastas florestas, das quais brotavam pedras
antigas, feito os ossos de um gigante há muito caído, revelando parte dos
mistérios do mundo habitado por celtas e romanos na antiguidade. Além
das névoas dessa terra antiga, Machen cresceu cercado por livros. Seu pai,
John Edward Jones, foi um pároco em Llandegveth, nas redondezas de
Caerleon. Desde muito jovem, Machen teve acesso à biblioteca do pai, na
qual, aos oito anos de idade, aprofundou seus contatos com a literatura nas
páginas das irmãs Brontë Sir Walter Scott, Thomas DeQuincey, Miguel de
Cervantes e d’As Mil e Uma Noites .

Uma vez em Londres, mais velho, Machen tentou diferentes ofícios sempre
conectados pela escrita. Estreou como escritor com a publicação do poema
Eleusinia (1881), trabalhou como jornalista e viveu em relativa pobreza,
morando em um quarto tão pequeno que comportava apenas uma cama e
uma escrivaninha, de modo que os pertences de Machen, como suas roupas,
ficavam em um baú no corredor, em frente ao cubículo. Ao longo da década
de 1880 e adiante, Machen também trabalhou como tradutor, vertendo para
o inglês as obras de Margurite de Navarre, Béroalde de Verylle e Giacomo
Casanova. Em 1887, Machen casou-se com Amelia Hogg, uma professora
de música que frequentava a sociedade boêmia de Londres. Nesses círculos,
Machen tornou-se amigo de A. E. Waite, escritor e ocultista que, anos mais
tarde, o introduziria na Ordem Hermética da Aurora Dourada, da qual
também fizeram parte o místico Aleister Crowley e os escritores William
Butler Yeats e Algernon Blackwood.

Depois do casamento, Machen dedicou mais tempo à escrita. Nos primeiros


anos da década de 1890 compôs alguns de seus grandes trabalhos de ficção.
Entre eles, a novela O grande deus Pã , publicada originalmente em 1894.
Nessa e em outras obras, ao longo de toda a sua carreira, Machen dedicou-
se ao misticismo e à temas sobrenaturais, todos ligados ao que o próprio
autor chamava de “êxtase”. Essa palavra, uma das favoritas de Machen,
seria usada por ele em seu ensaio Hieroglyphics (1902), um estudo sobre o
êxtase na literatura. De acordo com Machen, o êxtase é o instrumento
infalível pelo qual a literatura pode ser diferenciada da leitura, pelo qual a
arte pode ser diferenciada do artifício. Esse instrumento funciona como uma
espécie de intuição artística, e tal condição quase metafísica justifica a
escolha do termo “êxtase”. É o tipo de coisa que é apenas sentida,
experienciada, contemplada, e consequentemente difícil de ser explicada. É
como a própria natureza e o próprio sobrenatural. Esse senso de percepção
perpassa desde os lampejos macabros de O grande deus Pã (1894) e O
Povo Branco (1904), às visões sublimes de The Great Return (1915) e The
Secret Glory (1922), além do romance em que Machen atingiu seu ápice
estilístico, The Hill of Dreams (1907).
Nas primeiras décadas do século XX, o escritor cobriu acontecimentos da
Primeira Guerra Mundial como jornalista, publicou romances e contos
inéditos, republicou alguns de seus contos na coletânea The House of Souls
(1907), além de seus dois livros autobiográficos, Far Off Thins (1922) e
Things Near and Far (1923). Também nessa época, Machen teve suas
primeiras publicações nos Estados Unidos pelos esforços de seu
correspondente e amigo, o bibliófilo Vincent Starrett, que, em 1918,
publicou o pequeno ensaio Arthur Machen: A Novelist of Ecstasy and Sin ,
no qual exaltava a obra de Machen e o comparava a Hawthorne e Tolstói
como um “ficcionista da alma”.

De meados de 1920 em diante a popularidade de Machen diminuiu


consideravelmente, mas o prestígio e admiração de outros escritores
permaneceu até o fim de sua vida. Em seus últimos anos, Arthur Machen
foi salvo da miséria pelo esforço comum de homens como T. S. Elliot,
Walter de la Mare e Algernon Blackwood, seus admiradores, que
asseguraram algum apoio financeiro em 1943, quando Machen completava
oitenta anos de vida. Esse amparo garantiu-lhe uma vida confortável até 15
de dezembro de 1947, quanto Machen morreu aos 84 anos.

O “outro lado da realidade” sempre teve forte impacto sobre a percepção de


mundo de Arthur Machen. Nos primeiros parágrafos do conto O Povo
Branco , Machen sintetiza essa visão com uma de suas frases mais
poderosas, através do personagem Ambrose: “penso que você está se
deixando levar pelo erro frequente de limitar o mundo espiritual ao bem
supremo; mas o mal supremo tem, necessariamente, sua parte nesse
mundo.” O ominoso e o numinoso são contrastes necessários nesse terreno,
e o mal, a feitiçaria e outros êxtases profanos, o sumo perverso do ser
humano, desponta livre nas ficções que Machen compôs, especialmente em
O grande deus Pã.

Uma das sagazes observações de H. P. Lovecraft foi reconhecer as origens


do imaginário de horror como tão antigas quanto o próprio pensamento
humano, sua capacidade de abstração e figuração, e, logo posteriormente,
da linguagem. E no percurso da epopeia humana os horrores floresceram
sob muitas formas, desde os primeiros textos sagrados às narrativas mito-
poéticas, perpassando pela Idade Média e sua vastidão de fantasmas, e
desenvolvendo-se ao longo de toda a era moderna e contemporânea em
diversas ramificações, como o gótico e o decadentismo.

Como afirmou Lovecraft no seu famoso ensaio Supernatural Horror in


Literature (1927), “nesse solo fértil medraram tipos e personagens de
lendas e mitos sombrios que persistiram na literatura de mistério até os
nossos dias, mais ou menos disfarçados ou alterados pelas técnicas
modernas”. A analogia, instrumento natural de nossa cognição, ganha
forma literária pela metáfora, e é através dela que boa parte dos horrores
antigos reverberam na literatura moderna. Evidentemente, O grande deus
Pã lida com toda uma imagética prévia, manipulada e ressignificada aos
propósitos artísticos de Machen.

Cristão e estudioso, mais interessado nos mistérios do que nos dogmas do


sobrenatural, Arthur Machen desenvolveu um senso de fascínio e horror,
opostos mas complementares, que impregnam suas páginas. A analogia
mais evidente em O grande deus Pã é a gravidez entre uma mulher e uma
entidade cósmica, pertencente à outra realidade que não a nossa, que
culmina em resultados terríveis. No Ocidente, uma das histórias mais
antigas a respeito desse tipo de prodígio é a concepção de Jesus Cristo,
narrada na Bíblia . O paralelo vai mais fundo, visto que a personagem de
Machen também se chama Maria. Tudo isso se prova correto quando lemos
a anotação de Clarke, um dos personagens, dizendo:

Et Diabolus Incarnatus Est. Et Homus Factus Est.

Do latim, lê-se: “E o Diabo encarnou. E tornou-se homem”. Essa frase é


uma corruptela de um trecho do Symbolum Nicaenum (Credo Niceno),
importante texto de profissão de fé (oração) cristã do império Bizantino,
datado do século IV, que diz: Et incarnatus est de Spiritu Sancto. Ex Maria
Virgine, et homo factus est. Do latim, lê-se: “O Espírito Santo encarnou. Da
Virgem Maria, tornou-se homem.”

Motivos narrativos semelhantes, envolvendo o nascimento profano entre ser


humano e monstro — de matriz cristã ou não —, são alicerce de outras
obras-primas do horror como os contos O Horror de Dunwich (1929), de H.
P. Lovecraft, e The School Friend (1964), de Robert Aickman, o romance
Rosemary’s Baby (1967), de Ira Levin, e sua adaptação fílmica dirigida por
Roman Polanski no ano seguinte.

No caso de O grande deus Pã , o contato e a fetação são desencadeados por


um procedimento cirúrgico no cérebro, como uma lobotomia — também
análoga a um estupro —, no qual a intrusão sobrenatural investe como uma
consequência, e não como causa. Alguns pesquisadores interpretam esse
elemento do enredo como uma possível significação dos sentimentos de
Machen em relação ao seu contexto histórico; um homem religioso e de
inclinações místicas, de intelecto interessado nos enigmas do mundo, que
possivelmente desconfiava dos avanços científicos do século XIX, temendo
a morte dos mistérios etéreos frente à luz da ciência e do materialismo. Mas
essa interpretação se mostra questionável ao compreendermos a ideia de
Machen sobre o que era realmente frutífero à ficção fantástica de sua época,
através de suas próprias palavras:

Devemos vincular nossas maravilhas a algum fundamento, método ou fato


científico ou pseudocientífico. Se Stevenson tivesse escrito sua grande
obra-prima por volta de 1590-1650, o Dr. Jekyll teria feito um pacto com o
Diabo; em 1886, o Dr. Jekyll compra algumas drogas raras dos químicos
de Bond Street.

Assim Machen mostra-se como um escritor finissecular em suma essência,


que sedimentava, com sua obra, as bases da ficção weird que Lovecraft e os
autores estadunidenses da literatura pulp desenvolveriam ao longo do início
do século XX. A ficção de Machen não se estrutura apenas em termos
folclóricos ou fantásticos, mas ganha contornos ligados à ciência e à
decadência do fim de século, criando um novo tipo de literatura de horror, e
assim concordará com as palavras de Lovecraft: de que o verdadeiro conto
weird deve ter algo além de “um assassinato secreto, ossos ensanguentados,
ou um vulto coberto com lençol agitando correntes”, ou seja, uma grande
quebra com a literatura gótica setecentista e com as tradicionais histórias de
fantasma vitorianas e edwardianas.

O desvelar do mal ganha roupagens pagãs na figura do deus Pã, que dá


título à novela. Algumas interpretações superficiais, de hoje ou de quando o
livro foi publicado originalmente, apontam a obra de Machen como um
elogio ao paganismo e à feitiçaria, ou mera perversão. Mas Machen as
compreende como um êxtase oposto ao da santidade, uma perspectiva
decadente, e os resultados desses contatos, tanto em O grande deus Pã
quanto em outras obras do autor, são sempre propensos ao macabro, à
degeneração e à morte, representando o que mais havia de vil sob a
epiderme da sociedade vitoriana de sua época. O desconhecido, apesar das
roupagens pagãs — pois, de uma forma ou de outra, o horror acaba
significado através de símbolos conhecidos —, é a suma de uma treva
muito maior e incompreensível, que seria a queda do véu, aqui equivalente
a “ver o Pã”.

Além da clara relação à gênese judaico-cristã do filho de Maria, outros


elementos da hermenêutica bíblica reverberam ao longo da construção
dessa ficção, que culminarão no caráter da figura central de O grande deus
Pã , a misteriosa Helen Vaughan. No primeiro capítulo da novela, intitulado
“O experimento”, existe a descrição de uma paisagem fruto das fantasias e
memórias do personagem Clarke:

Os pensamentos começaram a vagar e a se misturar com outros; o caminho


das faias se transformou em um atalho entre árvores de azevinho, e aqui e
ali uma videira escalava de galho em galho, estendendo gavinhas
ondulantes e cachos de uvas roxas, e as esparsas folhas verde-acinzentadas
de uma oliveira selvagem se destacavam entre as sombras escuras do
azevinho.

Não apenas no imaginário cristão, mas também em outras culturas, como a


greco-romana, a oliveira é sempre tida como um símbolo de paz, ou mesmo
de luz. No Velho Testamento, a pomba branca retorna à Noé trazendo um
ramo de oliveira no bico, de terras verdejantes após o Dilúvio. Na
iconografia católica, do medievo à atualidade, o Espírito Santo figurado
como a pomba branca com o ramo de oliveira no bico é uma das
representações vistas com mais frequência. Por outro lado, as vinhas são um
símbolo fortemente atrelado à cultura greco-romana e, consequentemente,
ao paganismo, especialmente depois do Renascimento. Além disso, as
vinhas podem ser associadas à ruína e à decadência. Ainda, apesar de serem
um símbolo de prosperidade e abundância até mesmo no texto bíblico, as
uvas também são significadas como símbolo de luxuria e pecado quando
associadas ao paganismo. Na grande literatura, nenhuma imagem é pintada
em vão. O trecho é muito mais que uma descrição de cenário ou uma
memória: é uma síntese metafórica de toda a essência de O grande deus Pã
.

Isso se comprova ao passo que compreendemos a figura de Helen como


uma representação do anticristo, no sentido mais radical possível desse
termo. Perversão, sexo e horror alastrando uma onda de loucura e suicídios
por Londres empregam o viés diabólico de Helen como um completo
oposto à qualquer noção bondosa do messias, apesar de compartilharem
uma gênese semelhante, mas de essência antagônica. Tal paralelo se
manifesta de diversas maneiras na novela, como no vinho com mais de mil
anos de idade que é apreciado por Argentine, um dos personagens, além das
sugestões que são dadas sobre a vida de Helen Vaughan, que aludem aos
tempos em que Londres era cercada de vinhedos e jardins de oliveiras, uma
analogia à bucólica Bretanha pagã ou à Arcádia. Além disso, consoante à
ideia de anticristo, a personagem central em O grande deus Pã traça uma
analogia de sentido apocalíptico; a chegada de um agente diabólico ao
mundo, ressignificada ao fin de siècle na Inglaterra de Arthur Machen.

Assim, o autor mescla os misticismos do cristianismo e do paganismo em


uma amálgama que revela o mundo real oculto pelas sombras, pelos sonhos
e pela fachada hígida e moral vitoriana. Apesar das diversas associações
desta obra com o filme de Guilhermo Del Toro, a fantasia de El laberinto
del fauno tece uma espécie de elogio às sombras, enquanto o livro de
Machen encontra nas sombras a fonte de seu horror, que desvela a
decadência e a loucura frente a manifestação do sobrenatural. Tais como as
vinhas escuras sobre a oliveira luminosa, se faz noite eterna nas mentes
daqueles que vislumbram o Pã além do véu. Toda essa rica simbologia e
imaginação ímpares, envoltas pelo estilo e pela beleza incomparável da
prosa de Arthur Machen, fazem de O grande deus Pã uma das maiores joias
macabras que a arte já concebeu.
Referencial bibliográfico:
Boyiopoulos, K. “Esoteric Elements”: The Judeo-Christian Scheme in
Arthur Machen’s The Great God Pan. Neophilologus , 94 (2), 2009, p. 363–
374.

Lovecraft, H. P; Joshi, S. T (ed). The annotated supernatural horror in


literature. New York: Hippocampus Press, 2012.

Machen, A. Far Off Things . London: Martin Secker, 1922.

Machen, A. Hieroglyphics . London: Grant Richards, 1902.

Machen, A; Worth, Aaron (ed.). The Great God Pan and other horror
stories. Oxford: Oxford University Press, 2018.

Machin, James. Weird fiction in Britain 1880-1939 . Cham: Palgrave


Macmillan, 2018.

Starrett, V. Arthur Machen: a novelist of Ecstasy and Sin. Chicago: Walter


M. Hill, 1918.
Em uma tarde quente de agosto, um jovem e lindo cavalheiro, diria-se que o
último de sua espécie em Londres, saiu ao fim do Circus e prosseguiu,
passeando pela solitária extensão de Piccadilly Deserta. Seguindo as
tradições de sua espécie, fiel mesmo na selva, ele não havia modificado
nem um único fio do equipamento regulamentar; uma gloriosa flor
vermelha e amarela em sua sobrecasaca de lã primorosamente cortada
proclamava-o um verdadeiro filho do cravo; chapéu, botas e queixo foram
todos polidos para brilhar; embora não houvesse chovido por muitas
semanas, as pontas das calças estavam devidamente arregaçadas, e o porte
da bengala com punhal em ouro era por si só uma exibição liberal. Mas ah!
As grandes mudanças ocorridas desde junho, quando as folhas brilhavam
verdes no ar ensolarado, as janelas do clube estavam cheias, os cabriolés
passavam em longas procissões pelas ruas e as garotas sorriam de todas as
carruagens. O jovem suspirou; ele pensava nas quietas noites passadas em
Phœnix, nos encontros no Row, na corrida para Hurlingham, e em muitos
jantares agradáveis divididos com alegre companhia. Então ele olhou para
cima e viu um ônibus, meio vazio, movendo-se lenta e pesadamente no
meio da rua, e em frente ao “White Horse Cellars” um veículo de quatro
rodas havia parado (o motorista estava dormindo em seu assento), e no
“Badminton” as cortinas estavam cerradas. Ele meio que esperava ver Briar
Rose se arrastando graciosamente sobre o Hotel Cosmopole; certamente a
Bela, se houvesse algo assim em Piccadilly, estava dormindo
profundamente.

Absorvido por essas reflexões tristes, o infeliz Johnny continuou


caminhando sem perceber que uma duplicata exata de si mesmo avançava
na mesma calçada na direção oposta; salvo que o cravo inevitável era
salmão e a bengala tinha o punho prateado, seriam necessários instrumentos
de grande poder de ampliação para distingui-los. Os dois se encontraram;
cada um ergueu os olhos simultaneamente à estranha visão de um homem
bem vestido e cada um conjurou a mesma divindade do velho mundo.

— Por Jove! Meu velho, que diabos você está fazendo aqui?

O cavalheiro que vinha da direção do Hyde Park Corner foi o primeiro a


responder.
— Bom, para dizer a verdade, Austin, estou retido na cidade por conta de
um… ah… assunto de teor jurídico. Mas por que você não está na Escócia?

— Bom, é curioso; mas a verdade é que também tenho assuntos jurídicos


para tratar na cidade.

— Não diga! Um verdadeiro aborrecimento, não é? Mas é preciso resolver


essas coisas, ou o sujeito pode acabar no meio de uma confusão
interminável, você sabe.

— Certamente, por Jove! Foi isso que pensei.

O sr. Austin voltou a ficar em silêncio por alguns momentos.

— E para onde está indo, Phillipps?

A conversa transcorreu com extrema gravidade de ambos os lados; à


menção conjunta de negócios jurídicos, é verdade, um leve brilho passou
pelos olhos de ambos, muito embora um observador comum dissesse que
apenas o peso das idades repousava sobre aquelas sobrancelhas
imperturbáveis.

— Eu realmente não saberia dizer. Pensei num jantar tranquilo no Azario’s.


O Badminton está fechado, você sabe, para reformas ou algo assim, e não
suporto o Junior Wilton. Venha comigo e jantemos juntos.

— Por Jove! Acho que aceitarei. Pensei em chamar meu procurador, mas
ouso dizer que ele pode esperar.

— Ah! Acredito que ele possa, sim. Beberemos um pouco daquele vinho
italiano, engarrafado naqueles frascos de óleo para salada, sabe do que
estou falando.

A dupla girou solenemente e caminhou em direção ao Circus, meditando,


sem dúvida, sobre muitas coisas. O jantar no pequeno restaurante os
agraciou com grande prazer, assim como o Chianti, do qual beberam muito.

— Um vinho bastante leve, você sabe — disse Phillipps, e Austin


concordou. Esvaziaram um frasco de um litro entre eles e finalizaram com
dois copos para cada de Chartreuse verde.

Quando saíram para a rua tranquila, fumando charutos enormes, os dois


escravos do dever e dos “negócios jurídicos” sentiram um prazer sonhador
em todas as coisas; a rua parecia cheia de fantasia à luz fraca das lâmpadas
e a única estrela que brilhava no céu claro acima parecia a Austin
exatamente da mesma cor que o Chartreuse. Phillipps concordou.

— Sabe, meu velho — disse ele —, há ocasiões em que um camarada sente


toda sorte de coisas estranhas… Você sabe, o tipo de coisa que colocam em
revistas, você sabe, e em romances. Por Jove, Austin, meu velho, sinto
como se eu mesmo pudesse escrever um romance.

O par seguiu vagando sem rumo, sem saber bem para onde iam, virando de
rua em rua e discursando em tom piegas. Uma grande nuvem vinha
lentamente do sul, escurecendo o céu, e de repente começou a chover, a
princípio devagar, com grandes gotas pesadas, e então cada vez mais rápido
em uma chuva impiedosa e sibilante; as calhas inundaram, e as gotas
furiosas dançaram nas pedras do pavimento. Os dois Johnnies andaram o
mais rápido que puderam, assoviando e chamando por um cabriolé; pois
estavam se molhando muito.

— Onde diabos nós estamos? — perguntou Phillipps. — Confundi-me todo,


não sei. Deveríamos estar na rua Oxford.

Eles caminharam ainda mais um pouco, quando, de repente, para sua


grande alegria, encontraram um arco seco que conduzia a uma passagem ou
pátio escuro. Abrigaram-se ali silenciosamente, gratos e molhados demais
para dizer alguma coisa. Austin verificou seu chapéu — estava em
frangalhos — e Phillipps se sacudiu debilmente, como um terrier cansado.

— Que aborrecimento gigantesco, esse — resmungou ele. — Só queria que


passasse um cabriolé.

Austin olhou para a rua; a chuva ainda caía torrencialmente; ele olhou para
a passagem e percebeu pela primeira vez que levava a uma grande casa, que
se erguia sombriamente contra o céu. Parecia toda escura e misteriosa,
exceto pela fenda de uma veneziana, da qual uma luz brilhou. Ele apontou-a
para Phillipps, que o encarou vagamente e então exclamou:

— Espere! Sei onde estamos agora. Quer dizer, não sei exatamente, mas
uma vez passei por aqui com Wylliams, e ele me disse que havia um clube
ou algo assim depois dessa passagem; não lembro o que ele disse
exatamente. Olá! Ora, lá vem o Wylliams. Wylliams, nos conte onde
estamos!

Um cavalheiro passou por eles na escuridão e andava rápido pela passagem.


Ouviu seu nome e então se virou, parecendo bastante irritado.

— Ora, Phillipps, o que você quer? Boa noite, Austin; vocês parecem um
tanto molhados, os dois.

— É de se esperar que estejamos molhados; fomos pegos pela chuva. Você


não me disse certa vez que havia um clube por aqui? Gostaria que você nos
levasse para dentro, se for membro.

O sr. Wylliams olhou fixamente para os dois jovens desamparados por um


momento, hesitou e disse:

— Ora, cavalheiros, podem entrar se quiserem. Mas devo impor uma


condição: vocês dois devem me dar palavra de honra de que nunca
mencionarão o clube ou qualquer coisa que vejam nele, a qualquer
indivíduo que seja.

— Com certeza — respondeu Austin. — Nunca nem sonharíamos em fazê-


lo, não é, Phillipps?

— Não, não. Prossiga, Wylliams, vamos manter tudo na obscuridade.

O grupo se moveu vagarosamente pela passagem até chegaram na casa. Era


muito grande e muito antiga; parecia poder ter sido uma embaixada do
século passado. Wylliams assoviou, bateu duas vezes na porta e assoviou
novamente. A porta foi aberta por um homem de preto.

— Amigos seus, sr. Wylliams?


Wylliams assentiu enquanto passavam.

— Agora, prestem atenção — sussurrou ele, enquanto paravam à porta —,


vocês não devem reconhecer ninguém, e ninguém os reconhecerá.

Os dois amigos assentiram, a porta se abriu e eles adentraram um cômodo


vasto, brilhantemente iluminado com lâmpadas elétricas. Havia homens de
pé em cantos, andando para cima e para baixo e fumando em mesinhas; era
como qualquer sala de fumo de um clube. Havia conversas, mas em
murmúrios baixos e de vez em quando alguém parava de falar e olhava
ansiosamente para a porta do outro lado do cômodo, e então se voltava a dar
as costas para ela. Era evidente que estavam esperando por alguma coisa ou
alguém. Austin e Phillipps se sentaram em um sofá, perdidos em espanto;
quase todos os rostos lhe eram familiares. A nata do Row estava naquela
estranha sala de clube: vários jovens aristocratas, um jovem que acabara de
ganhar uma enorme fortuna, três ou quatro artistas da moda e homens das
letras, um ator ilustre e um cônego bem conhecido. O que isso poderia
significar? Todos eles deveriam estar muito bem espalhados mundo afora e,
mesmo assim, cá estavam. De repente, uma batida alta na porta soou e
todos os homens ficaram em alerta. Os que estavam sentados se puseram de
pé. Um criado apareceu.

— O Presidente os aguarda, cavalheiros — disse ele, e desapareceu.

Um por um, os membros formaram uma fila, com Wylliams e os dois


convidados encerrando-a. Encontraram-se em uma sala ainda maior que a
primeira, mas quase toda escura. O presidente estava sentado a uma mesa
longa e à sua frente queimavam duas velas, que quase não iluminavam seu
rosto. Era o famoso Duque de Dartington, o maior detentor de terras da
Inglaterra. Assim que os membros entraram na sala, ele disse em uma voz
fria e austera:

— Cavalheiros, vocês conhecem nossas regras. O livro está preparado.


Quem o abrir na página preta estará à disposição do comitê e à minha. É
melhor começarmos.

Alguém começou a ler em voz alta os nomes, em um tom baixo e distinto,


fazendo uma pausa depois de cada um. O homem chamado ia até a mesa e
abria aleatoriamente uma página do enorme volume manuscrito disposto
entre as duas velas. A luz fraca tornava difícil distinguir traços, mas
Phillipps ouviu um lamento a seu lado e reconheceu um velho amigo. O
rosto do homem se contorcia, amedrontado; ele estava evidentemente
sofrendo de terror. Um por um, os membros abriram o livro; cada vez que
um o fazia, saía da sala por outra porta. Enfim, faltava apenas um: o amigo
de Phillipps. Havia espuma em seus lábios quando ele se aproximou da
mesa e suas mãos tremiam ao passar as páginas. Wylliam passara sua vez
após sussurrar algo ao presidente e voltara para perto dos amigos. Ele mal
pôde segurá-los quando o desafortunado homem gemeu de agonia e se
apoiou na mesa: abrira o livro na página preta.

— Acompanhe-me, por favor, sr. D’Aubigny — disse o presidente e eles


saíram juntos da sala.

— Podemos ir agora — disse Wylliams. — Acho que a chuva passou.


Lembrem-se de sua promessa, cavalheiros. Vocês estiveram em uma
reunião do Clube Perdido. Vocês nunca mais verão aquele jovem. Boa
noite.

— Não é assassinato, é? — arquejou Austin.

— Não, não, de forma alguma. O sr. D’Aubigny irá, espero, viver por
muitos anos; ele desapareceu, meramente desapareceu. Boa noite; cá está
um cabriolé que servirá a vocês.

Os dois amigos seguiram para casa em silêncio absoluto. Não voltaram a se


encontrar por três semanas e cada um achou que o outro parecia doente e
abalado. Estavam caminhando tristemente, com os rostos sérios, olhando
em direções opostas, por Piccadilly, cada um com medo de relembrar do
terrível clube. De repente, Phillipps parou como se tivesse levado um tiro.

— Olhe ali, Austin — murmurou ele. — Olhe para aquilo.

Os pôsteres dos jornais noturnos estavam espalhados ao lado da calçada, e


em um deles Austin leu, em grandes letras azuis, “Misterioso
desaparecimento de cavalheiro”. Austin comprou um exemplar e virou as
folhas com os dedos trêmulos até encontrar o breve parágrafo: “O sr. St.
John D’Aubigny, de Stoke D’Aubigny, em Sussex, desapareceu sob
circunstâncias misteriosas. O sr. D’Aubigny estava em Strathdoon, na
Escócia, e foi a Londres, a negócios, como anunciado, em 16 de agosto. Foi
confirmado que ele chegou em segurança a King’s Cross e depois dirigiu
até o Piccadilly Circus, onde desceu. Diz-se que foi visto pela última vez na
esquina da rua Glass House, que leva de Regent ao Soho. Desde a data
acima informada, o infeliz cavalheiro, muito bem quisto pela sociedade
londrina, não foi mais visto. O sr. D’Aubigny estava com casamento
marcado para setembro. A polícia está extremamente reticente.

— Meu Deus! Austin, isso é terrível. Você se lembra da data. Pobre


homem, pobre homem!

— Phillipps, acho que vou para casa, estou enjoado.

Não se ouviu mais de D’Aubigny. Contudo, a parte mais estranha da


história ainda não foi contada. Os dois amigos chamaram Wylliams e o
acusaram de ser membro do Clube Perdido e um cúmplice do destino de
D’Aubigny. O plácido sr. Wylliams, primeiramente, encarou os dois rostos
pálidos e sérios e, por fim, caiu na gargalhada.

— Meus queridos, do que vocês estão falando? Nunca ouvi tal baboseira na
minha vida. Como você diz, Phillipps, certa vez apontei-lhe uma casa que
dizem ser um clube, enquanto andávamos pelo Soho; mas era um clube de
apostas rasteiro, frequentado por garçons alemães; Sinto dizer que o Chianti
do Azario’s foi forte demais para vocês. Entretanto, tentarei convencê-los
de que estão errados.

Wylliams imediatamente convocou seu funcionário, que jurou que ele e seu
mestre estiveram no Cairo durante todo o mês de agosto, e se ofereceu para
apresentar as contas do hotel. Phillipps balançou a cabeça e então se
afastou. O próximo passo era tentar encontrar o arco onde haviam se
abrigado, e depois de bastante trabalho, conseguiram. Bateram à porta da
sombria casa, assoviando como Wylliams fizera. Foram recebidos por um
mecânico respeitável, vestindo um avental branco, verdadeiramente
surpreso pelo assovio; na verdade, ele estava inclinado a suspeitar da
influência de certa embriaguez. O lugar era uma fábrica de mesas de bilhar,
e assim o fora (souberam pela vizinhança) por muitos anos. Os cômodos
certamente um dia foram largos e magníficos, mas a maioria deles fora
dividido em três ou quatro oficinas com partições de madeira.

Phillipps suspirou. Não havia mais o que pudesse fazer por seu amigo, mas
tanto ele como Austin permaneceram não convencidos. Em justiça ao sr.
Wylliams, deve ser declarado que Lorde Henry Harcourt garantiu a
Phillipps que vira Wylliams no Cairo em meados de agosto — ele pensava,
mas não tinha certeza, que no dia 16, inclusive — e também que os recentes
desaparecimentos de alguns homens bem conhecidos pela cidade são
passíveis de explicações que excluiriam a agência do Clube Perdido.
Houve uma espécie de reclamação confusa em agosto passado sobre o mau
comportamento das crianças em certos balneários galeses. É difícil rastrear
esses relatos e rumores vagos até suas fontes e origens; ninguém tem
melhor razão para saber disso do que eu. Não preciso ir além das antigas
bases aqui, mas temo que muitas pessoas desejam, a esta altura, nunca ter
ouvido meu nome; mais uma vez, um número considerável de pessoas
estimáveis está preocupando-se de maneira bastante sombria, do meu ponto
de vista, com meu eterno bem-estar. Elas me escrevem cartas, algumas em
amável protesto, implorando-me que não prive as pobres almas de coração
doente do pouco conforto que possuem em meio a suas tristezas. Outros me
enviam panfletos e folhetos rosa com alusões à “filha de um conhecido
cônego”; outros são violentos e anonimamente abusivos. E então, em
imprensa aberta, na justa forma de um livro, o sr. Begbie lidou comigo de
forma correta, porém dura, como não posso deixar de pensar.

Mesmo assim, foi tudo tão inocente, se não casual, de minha parte. Em uma
pobre linha de prosa, fiz apenas encenar meu indiferente sibilo no “Evening
News” porque queria fazê-lo, porque senti que a história d’“O arqueiro”
deveria ser contada. Um inventor de fantasias é uma criatura miserável, só
Deus sabe, quando o mundo todo está em guerra; mas pensei que nenhum
dano seria feito, de qualquer forma, se eu testemunhasse, à maneira da arte
fantástica, minha crença na glória heroica da legião inglesa que voltou de
Mons lutando e triunfando.

E então, de uma forma ou de outra, foi como se eu tivesse apertado um


botão e colocado em ação um mecanismo terrível e complicado de rumores
que fingiam ser verdadeiros, de fofocas que se apresentavam como
evidências, de fuxicos selvagens nos quais bons homens acreditavam
firmemente. O suposto testemunho dessa “filha de um conhecido cônego”
tomou as revistas locais de assalto e desfrutou também da fé de teólogos
dissidentes. A “filha” negou qualquer conhecimento sobre o assunto, mas as
pessoas ainda citavam suas supostas palavras acertadas; e as questões foram
confundidas com contos, provavelmente verdadeiros, de alucinações
dolorosas e delírios de nossos soldados em retirada, homens fatigados e
estilhaçados à beira da morte. Tudo ficou pior do que os mitos russos, e
como nas fábulas dos russos, parecia impossível seguir as correntes de
ilusões até sua fonte — ou fontes. Quem foi que disse que a “Senhorita M.
conhecia dois oficiais que… etc. etc.”? Suponho que jamais conheceremos
o nome desse mentiroso.

Assim, ouso dizer, será com este estranho caso das crianças problemáticas
da cidade litorânea galesa, ou melhor, de um grupo de pequenas cidades e
vilas situadas dentro de uma certa “seção” ou zona, que não indicarei com
mais precisão do que posso, uma vez que amo aquele país, e com minhas
experiências recentes com “O arqueiro” que aprendi que nenhuma história é
boba demais para ser acreditada. E, claro, para começo de conversa,
ninguém sabia como essa fofoca estranha e maliciosa se originara. Até onde
eu saiba, assemelhava-se mais ao mito russo do que à história d’“Os anjos
de Mons”. Ou seja, o rumor precedeu a impressão; a coisa era falada aqui e
ali e passada de carta em carta muito antes que os jornais ficassem cientes
de sua existência. E — aqui muito se assemelha ao caso de Mons —
Londres e Manchester, Leeds e Birmingham murmuravam coisas vagas e
desagradáveis, enquanto os pequenos vilarejos em questão se aqueciam
inocentemente ao sol de uma prosperidade incomum.

Nesta última circunstância, como alguns acreditam, deve-se buscar a raiz da


questão. É bem sabido que certas cidades da Costa Leste sofriam com o
pavor dos ataques aéreos e que boa parte de seus visitantes habituais rumou
para o oeste pela primeira vez. Portanto, há uma teoria de que a Costa Leste
foi mesquinha o suficiente para circular relatórios contra a Costa Oeste por
pura malícia e inveja. Pode ser verdade; não finjo saber. Mas aqui está uma
experiência pessoal, tal como é, que ilustra a maneira como o rumor
circulou. Eu estava almoçando um certo dia na minha taverna da rua Fleet
— isto ocorreu no início de julho — quando um amigo meu, um
procurador, da Serjeants’ Inn, entrou e se sentou à minha mesa. Começamos
a conversar sobre férias e meu amigo Eddis me perguntou para onde eu iria.

— Ao mesmo lugar de sempre — respondi. — Manavon. Você sabe que


sempre vamos para lá.

— Mesmo? — disse o advogado. — Pensava que essa costa tinha mudado


bastante. Minha esposa tem uma amiga que ouviu dizer que o lugar não é
mais como antes.
Fiquei surpreso de ouvir isso, incapaz de perceber como uma vila como
Manavon poderia ter “mudado”. Eu a conhecia há dez anos e, nesse tempo,
sempre houve acomodações para cerca de 20 visitantes, e eu não acreditava
que fileiras inteiras de casas de hospedagem tivessem aparecido desde
agosto de 1914. Mesmo assim, fiz a pergunta para Eddis:

— Turistas? — perguntei, sabendo, primeiramente, que os turistas odiavam


a solidão do campo e do mar; em segundo lugar que não há cidades
industriais a uma distância barata e fácil; e, em terceiro, que as ferrovias
não estavam emitindo bilhetes de excursão durante a guerra.

— Não, não exatamente turistas — respondeu o advogado. — Mas a amiga


de minha esposa conhece um clérigo que diz que a praia de Tremaen não é
mais nem um pouco agradável, e Tremaen fica há apenas alguns
quilômetros de Manavon, não?

— Não agradável de que forma? — continuei minha observação. —


Palhaços, performances, e coisas assim?

Eu sentia que não podia ser isso, pois as pedras solenes de Tremaen teriam
petrificado o mais animado dos palhaços. Ele teria congelado em um
penhasco na praia, e as gaivotas carregariam sua canção e a tornariam um
lamento pelas solitárias cavernas estrondosas de frente para Avalon. Eddis
disse que não tinha ouvido nada sobre artistas; mas compreendia que, desde
a guerra, as crianças de todo o distrito haviam ficado totalmente fora de
controle.

— Boca suja, sabe — disse ele. — E todo esse tipo de coisa, piores do que
as crianças das áreas pobres de Londres. Ninguém quer que sua esposa ou
seus filhos ouçam conversas de baixo calão em qualquer hora que seja,
menos ainda durante as férias. E estão dizendo que Castell Coch anda
impossível; nenhuma mulher decente seria vista lá!

Eu disse:

— Realmente, uma grande pena. — E mudei de assunto.


Mas não consegui entender de forma alguma. Eu conhecia Castell Coch
bem — uma pequena enseada protegida pelas dunas de falésias de arenito
vermelho, ricas em vegetação. Um riacho de água fria corre por lá,
descendo até o mar; há as ruínas de um castelo normando, uma igreja antiga
e a aldeia dispersa; é, de todo, um lugar de paz, tranquilidade e grande
beleza. As pessoas ali, tanto as crianças como os adultos, não eram apenas
pessoas decentes, mas corteses: se alguém agradecesse a uma criança por
abrir um portão, seguiria-se a inevitável resposta:

— Pois disponha, senhor.

Eu não conseguia mesmo entender. Não acreditei nas histórias do


advogado; pela minha vida, não consegui ver aonde ele queria chegar. E,
para evitar todo mistério desnecessário, posso também dizer que minha
esposa, meu filho e eu fomos a Manavon em agosto passado e tivemos
férias maravilhosas. Na época, certamente não tivemos nenhum tipo de
aborrecimento e nem percebemos nada de desagradável. Depois, confesso,
ouvi uma história que me intrigou e ainda me intriga, e essa história, se for
aceita, pode dar sua própria interpretação a uma ou duas circunstâncias que
pareciam, em si mesmas, bastante insignificantes.

Porém, durante todo o mês de julho, deparei-me com traços de rumores


malignos afetando este canto mais gracioso da terra. Alguns desses rumores
eram repetições da fofoca de Eddis; outros ampliavam a vaga história que
ele me contara e a tornava mais definitiva. É claro, nenhuma evidência em
primeira mão estava disponível. Nunca há evidências de primeira mão
nesses casos. Mas A conhecia B que tinha ouvido de C que a filhinha de seu
primo de segundo grau tinha sido atacada e espancada por uma matilha de
jovens galeses selvagens. Então, as pessoas citavam “um médico que tinha
um consultório em uma cidade conhecida nas Midlands”, que confirmava
que Tremaen era um poço de depravação juvenil. Diziam que a evidência de
um médico responsável era final e convincente; mas não se preocupavam
em descobrir quem era o médico, ou se havia mesmo algum médico — ou
qualquer médico relevante para o assunto. Então, a coisa começou a sair
nos jornais de uma maneira meio oblíqua e indireta. As pessoas citavam o
caso dessas crianças más imaginárias de forma a apoiar suas visões
educacionais. Um disse que “esses infelizes pequeninos” teriam se
comportado muito bem se não tivessem tido qualquer educação; a oposição
declarou que as escolas de educação especial os reformariam rapidamente e
os tornariam cidadãos admiráveis. Então, as pobres crianças de Arfonshire
pareceram se envolver em disputas sobre a Desestabilização Galesa e na
questão dos mineiros; e o tempo todo eles estavam se comportando de
maneira educada e admirável, como sempre se comportaram. O tempo todo
eu soube que era tudo bobagem, mas não conseguia entender o que
significava, ou quem estava puxando os fios dos rumores, ou por que o
faziam. Comecei a me perguntar se a pressão, a ansiedade e o suspense de
uma guerra terrível haviam perturbado a opinião pública, a ponto de estar
pronta para acreditar em qualquer fábula, para debater as razões de
acontecimentos que nunca haviam ocorrido. Por fim, coisas bastante
incríveis começaram a ser sussurradas: os filhos dos visitantes não só
haviam sido espancados, mas também torturados; um menino foi
encontrado empalado em uma estaca em um campo solitário perto de
Manavon; outra criança foi atraída para a destruição nas falésias de Castell
Coch. Um jornal londrino enviou, sem alardes, um bom homem a Arfon
para investigar. Ele ficou lá por uma semana e, no final desse período,
voltou ao escritório e, em suas próprias palavras: “jogou a história toda
fora”. Não havia uma palavra de verdade, disse ele, em nenhum desses
rumores; nenhum vestígio de uma base para as formas mais brandas de toda
essa fofoca. Ele nunca tinha visto um país tão bonito; nunca conhecera
homens, mulheres ou crianças mais agradáveis; não havia um único caso de
alguém que ficara aborrecido ou perturbado de forma alguma.

Mesmo assim, a história se alargou e cresceu de forma ainda mais


monstruosa e inacreditável. Eu estava ocupado demais observando o
progresso do meu próprio monstro mitológico para prestar atenção. O
escrivão municipal da cidade de Tremaen, onde a lenda finalmente tinha
chegado, escreveu uma breve carta à imprensa negando com indignação que
houvesse o mais leve fundamento para “os rumores desagradáveis” que, ele
sabia, estavam circulando; foi nessa época que fomos para Manavon e,
como eu disse, nos divertimos muito. O clima estava perfeito: azuis do
paraíso nos céus, os mares todos uma maravilha cintilante, verde-oliva e
esmeralda, roxos ricos, safiras vítreas brilhando pelas rochas; ao longe, uma
névoa de luzes e cores mágicas onde o mar encontrava o céu. O trabalho e a
ansiedade me atormentavam. Não podia imaginar nada melhor do que
descansar à beira da costa, encontrando um bálsamo infinito e refrescando-
me no grande mar diante de mim, nas flores minúsculas ao meu lado. Ou
então descansávamos toda a tarde de verão em uma “plataforma” no alto
das falésias cinzentas e observávamos a maré subindo e descendo sobre as
rochas e ouvíamos seu estrondo nas depressões e cavernas abaixo. Depois,
como eu disse, houve uma ou duas coisas que me impressionaram. Mas
durante as férias, elas não foram nada. Você vê um homem com um chapéu
branco estranho passar e pensa pouco ou nada a respeito. Depois, quando
você ouve que um homem usando exatamente esse chapéu cometeu um
assassinato na rua seguinte cinco minutos antes, dá àquele chapéu um certo
interesse e significado. “Crianças engraçadas”, foi a frase que meu filho
usou; e comecei a achar que elas eram de fato “engraçadas”.

Se há alguma chave para compreender esse estranho assunto, acho que ela
pode ser encontrada em uma conversa que tive há pouco tempo com um
amigo meu chamado Morgan. Ele é galês e um sonhador, e algumas pessoas
dizem que ele é como uma criança que cresceu mas que não o fez como os
outros filhos dos homens. Embora eu não soubesse, enquanto eu estava em
Manavon, ele passava suas férias em Castell Coch. Ele era um homem
solitário e gostava de lugares solitários, e quando nos encontramos no
outono, ele me contou como, dia após dia, ele carregava pão, queijo e
cerveja em uma cesta até um promontório remoto naquela costa, conhecido
como o Velho Acampamento. Lá, muito acima das águas, estão solenes
paredes antigas, cobertas de turfa; circunvalações arredondadas, suavizadas
com o passar de muitos milhares de anos. Em uma das extremidades deste
lugar tão antigo há um túmulo, uma torre de observação, talvez, e embaixo
dele se esconde uma vala verde enganadora que parece serpentear até o
coração do acampamento, mas na realidade desce para uma rocha íngreme e
um precipício sobre as águas.

A esse lugar Morgan ia diariamente, como ele disse, para sonhar com
Avalon, para se purificar da corrupção fumegante das ruas.

E assim, como me disse, foi com um horror singular que uma tarde,
enquanto ele cochilava e sonhava e abria os olhos de vez em quando para
assistir ao milagre e à magia do mar, enquanto ouvia os murmúrios das
ondas, sua meditação foi interrompida por uma explosão repentina de gritos
horríveis e estridentes — e gritos de crianças também, mas crianças do tipo
mais rasteiro. Morgan disse que o próprio tom de voz deles o fizeram
estremecer — “Eles eram para os ouvidos o que o lodo é para o toque” — e,
então, as palavras: toda a baixeza, toda abominação imunda da fala;
blasfêmias que nos atingem como golpes sob aquele céu, que afundaram
nas profundezas puras e brilhantes, contaminando-os! Ele ficou perplexo.
Espiou por cima da parede verde do forte e lá na vala viu um enxame de
crianças fedorentas, criaturinhas horríveis e atrofiadas, com rostos de
velhos, inchados, olhinhos encovados e maliciosos. Foi pior do que
descobrir um ninho de cobras ou vermes.

Não, ele não descreveria o que elas estavam fazendo.

— Leia sobre a Bélgica — disse Morgan. — E pense que eles não poderiam
ter mais do que cinco ou seis anos.

Não havia infâmia, ele disse, que eles não tivessem perpetrado. Não se
privaram de nenhum dos horrores da crueldade.

— Vi sangue escorrendo como de uma fonte enquanto gritavam e riam, mas


não consegui encontrar a marca desse sangue na grama mais tarde.

Morgan disse que os observara e que não conseguira emitir uma palavra que
fosse. Era como se uma mão tivesse tapado sua boca. Mas, enfim, ele
encontrou sua voz e gritou com eles, e eles explodiram em uma gargalhada
obscena e gritaram de volta para ele, e se espalharam para fora da vista. Ele
não conseguiu localizá-los; acredita que tenham se escondido nas
samambaias profundas atrás do Velho Acampamento.

— Às vezes não consigo entender meu senhorio em Castell Coch —


Morgan continuou. — Ele é o dono do correio local e tem uma pequena
fazenda; é um sujeito decente, agradável e bem comum. Mas, de vez em
quando, ele fala de um jeito esquisito. Eu estava contando a ele sobre essas
crianças bestiais e me perguntando quem elas poderiam ser quando ele
começou a falar em galês, algo como “a batalha dura para todo o sempre; e
as pessoas se deleitam com isso”.
Foi o que disse Morgan, e estava evidente que ele não compreendia nada.
Mas essa estranha história trouxe de volta uma ou duas circunstâncias
incomuns de que me lembrei: a questão do meu filho se afastando mais de
uma vez, se perdendo entre as dunas de areia e voltando gritando,
evidentemente muito assustado, e balbuciando sobre “crianças engraçadas”.
Não demos atenção, não nos preocupamos, eu acho, em ver se havia
crianças vagando pelas dunas ou não. Estávamos acostumados às invenções
do menino.

Mas depois de ouvir a história de Morgan, fiquei interessado e escrevi um


relato sobre o assunto para meu amigo, o velho doutor Duthoit, de
Hereford. E ele me respondeu:

“Eles eram apenas visíveis e audíveis às crianças ou aqueles que agem


como crianças. Assim, aqui reside a explicação para o que primeiro te
intrigou: os rumores, de onde surgiram? Surgiram das fofocas dos
infantários, de pedaços das conversas meio articuladas das crianças sobre
horrores que não entendiam, sobre palavras que envergonhavam suas babás
e mães.

Estes pequeninos que vem da terra se erguem e se alegram nestes nossos


tempos. Pois ficam contentes, como disse o galês, quando descobrem que
os homens seguem seus passos.”
AGRADECIMENTOS
A publicação desse livro e o início dessa coleção só foram possíveis graças
às 506 pessoas que acreditaram no projeto e não só apoiaram a campanha
no Catarse como nos ajudaram a tornar essa a edição mais completa de O
grande deus Pã já publicada no Brasil. Somos eternamente gratos a todos
vocês!

Nossos agradecimentos também a Mark Valentine, que nos concedeu acesso


à introdução do autor, texto raríssimo nunca antes traduzido, através de uma
exemplar da sua coleção, e ao Alcebíades Diniz Miguel, que nos auxiliou
em contatar o sr. Valentine.

Nossos agradecimentos a:

Ada Chivers

Adam Henrique Novaes

Adelle Voller

Ademilson Angelo Cabral

Adolfo Colen

Adrianna Alberti

Adrielli de Almeida

Ágata Rodrigues

Alexandre de Oliveira Moitinho

Alexandre Oliveira

Alexandre Savaris
Alexandro Figueiredo Lopes

Alexia Rodriguez

Aline Aparecida Matias

Allie Kovacs

Allison Serafim

Amanda Aguiar

Amanda Santos Oliveira

Amanda Villa Correia

Ana Cristina Guimarães Moreira

Ana Marchioli

Ana Paula Farias Waltrick

Anderson Costa Soares

Anderson Costa Soares

André Caniato

André LDC

André Luís de Andrade Danelon

André Luiz Petermann

Andre Molina Borges

Andrea F Felippi

Andressa Ledesma
Angelica Vanci da Silva

Angie Marinho

Anne Beatriz Cardoso de Sousa

Anne Liberton

Anny Kássio de Sousa Oliveira

Anouk

Antonio Lucio Fonseca

Anya Tristão

Ariadne Erica Mendes Moreira

Ariane Thiele

Ariel Juhny Duarte

Arthur Magnum Mariano

Arthur Thierry Cabral

Bárbara Campos Diniz

Bárbara de Lima Morais

Bárbara de Melo Aguiar

Beatriz D’Oliveira

Beatriz Helena Peixoto Brandão

Berenice Thais Mello Ribeiro dos Santos

Bernardo Salles Malamut


Bianca Mendes da Silva

Brena Gentil Resende

Bruna Castro

Bruna Traversaro

Bruno Godoi

Bruno Machado Brandão

Bruno Moulin

Bruno Rauber

Bruno Rios

Caio Henrique Amaro

Caio Ries de Siqueira

Caique Luiz Maciel

Caleb Henrique

Camila Atan Morgado Dias

Camila Loricchio Veiga

Carlos Eduardo Silva Feitosa

Carlos Eric Novello

Carlos Franco Pedreira da Silva

Carol DerMond

Cassia Pergentino
Cassia Silva

Catarina S. Wilhelms

Cecilia Lorena Zen Ribeiro

Cecília Rauscher

Cesar Lopes Aguiar

Cicero de Souza Júnior

Cirilo de Jesus Santos

Clara Vaitiekunas

Cláudia Fusco Ferraz de Oliveira

Cláudia Trigo

Claudio Amado

Claudio Augusto Martins de Almeida

Clayton Varela Feital

Cleverson Arenhart Júnior

Conrado De Biasi

Coral Daia

Cristiane Tiemi

Cristiano de Andrade Carneiro

Cristiano Vaniel

Cyleno Reis Guimarães


D. R. Laucsen

Daniel A. De Jesus Figueiredo

Daniel Cruz

Daniel do Vale Gonçalves Pereira

Daniel Mendonça Acorroni

Daniel Prestes da Silva

Daniel Queiroz Torno

Danieli Sayuri Hakoyama

Danielle Moreira

Danilo Kapp

Danilo Palma

Davi Henrique Alves do Nascimento

David Orlando Acevedo Rojas

David Orlando Acevedo Rojas

David Sant’Ana

Débora Mendes Pizzio

Debora Mille

Déborah Araújo

Déborah Colares

Deborah Xavier
Delson Neto

Denys Schmitt

Dessa Morango

Deyselene Barros de Assunção

Diana Dall’Ovo

Diego José Ribeiro

Diego Toledo

Dinastia Geek

Dinei J. R. Nascimento

Diogo Almeida Ferreira Leite

Diogo Gomes

Diogo José Ramos Ferraz

Diogo Oliveira

Douglas Brandão

Edenilson Junior

Edinei Chagas

Edson Diego Silva Barbosa

Eduardo da Silva Cardoso

Eduardo Dias

Eduardo Henrique Maziero


Eduardo Luís Anselmo Batista

Eduardo Maciel Ribeiro

Eduardo Menescal

Eduardo Menescal

Eduardo Munaro Rodrigues

Elenilson Filho

Eliana Maria de Oliveira

Eliane Barbosa Delcolle

Ellias Matheus

Elora Mota Ribeiro

Emma Pereira

Erica Bombardi

Erwinn Lincoln

Esdra Esdra

Evaldo Sagioro Bego

F.T. Rossi

Fabiana Ferraz Nogueira

Fabio Eduardo Di Pietro

Fabio F Abreu Jr.

Fábio Martins
Fábio Pedreira

Fabio Pessoa

Fabíola C A C de Queiroz

Felipe Aragão

Felipe Gustavo Lopes

Fernanda Alves

Fernanda Godoy

Fernando de Azevedo Alves Brito

Fernando Junior

Fernando Lopes

Fernnando Henrique Pires Reis Sussmann

Gabriel Aleksander de Moura Sousa

Gabriel Benigno

Gabriel da Silva Pessine

Gabriel Farias Lima

Gabriel Farias Lima

Gabriel Felipe Pereira

Gabriel Ferreira Da Cunha

Gabriel Fonseca

Gabriel Guedes Souto


Gabriel Helmuth Sprung Sasse

Gabriel Lange

Gabriel Meireles

Gabriel Monezi

Gabriel Nunes

Gabriel Okazaki

Gabriel Santos

Gabriel Uchôa

Gabriel Yared

Gabriela Colicigno

Gabriela Guedes Maia

Gabriella Regina Santanna

Gabrielly Courty

Geraldo Nunes Gonçalves Junior

Gilberto Nascimento Jr.

Giordano Lima

Giorgia Chiarella

Giovana Lopes de Paula

Giovanna Romiti

Giulia Martins
Glauber Lopes Mariano

Glauco Henrique Santos Fernandes

Grazielle de Medeiros Silva

Guardião das Letras

Guilherme Adriani da Silva

Guilherme Albuquerque de Oliveira

Guilherme Arthur Fasolo Marxreiter

Guilherme Dobrychtop

Guilherme Festozo

Guilherme L. Carneiro

Gustavo de Oliveira Santos

Gustavo Gualda Pereira Contage

Gustavo Tenório

Heitor Krüger de Freitas

Helder Gonçalves Costa

Helena Coutinho

Hella

Heloisy Tínel

Henrique Simões de Oliveira

Heveline Arcanjo
Hevellyn Coutinho do Amaral

Hiago da Silva Lacerda

Hiago de Oliveira Gomes

Ícaro Medeiros de França

Igor Eduardo Cabral

Igor Soares

Igor Souza Miranda

Inês Barreto

Ingrid Rodrigues

Irene Bogado Diniz

Íris Danielli Batista de Oliveira

Isabela Graziano

Isabella Czamanski

Iury Domingues de Souza

Ivan Yuri Sikorski

Ivana Batista Marinho

Jaciara de Jesus Lemos Oliveira

Jacqueline Freitas

Jadeh Araújo

Jan Santos
Jana Bianchi

Jaqueline Rezende

Jayme da Silva Portes

Jennifer Pereira Baptista

Jessica Ferreira

Jéssica Reinaldo Pereira

Jessica Tamara dos Santos Silva

Jéssika e Denise

Jo França

João Carlos de Oliveira

João Costa

João de Souza Neto

João Eduardo Herzog

João Pedro Carvalho Marques

João Pedro Fiorin

João Pedro Matos

João Pedro Ocanha Krizek

John Braga

Jônatas Fernando Pires Souza

Jorge Henrique Correa


José Rinaldo Oliveira

Julia Dias

Julia do Passo ramalho

Juliana Poggi

Julio Anastacio Pereira Neto

Julio Cesar Dias

Julio Sergio Mendes Machado

Kalil Kabiam Vasconcelos Junior

Kami Girão

Karen Alvares

Karine Dagort

Karine Lemes Buchner

Karly Cazonato Fernandes

Kayo Tessari

Kevynyn Onesko

Kirllyan Klennyo Sabino de Souza

L. Cangussu

Lady Sybylla

Lais Braga

Lais de Souza Rosas


Laís Gallier

Laís Ramos

Lais Silva Rodrigues

Laisa Couto

Landiele Chiamenti de Oliveira

Lara Campos

Lara Elisabeth Bicalho de Lima

Larissa Allegro

Larissa Cardozo Rodolfo

Larissa da Costa Barboza

Larissa Paula Domingues Pereira

Lauro da Silva Nascimento

Lays Bender de Oliveira

Leandro Padilha da Silveira

Leandro Rogerio Isquierdo Gonçalves

Leonardo José Farias de Souza Martins

Leonardo Jun Natsumeda

Leonardo Pereira Teixeira

Leonardo Schmidt Borges

Leonardo Viani
Letícia Camperoni

Leticia de Oliveira Cavalcante

Leticia Lessio

Lívia dos Santos Melo Bomfim

Lourenço Romano Junior

Luana Cabral Holanda

Luana Freitas

Luana Wanderley T. C. Gomes

Lucas Batista

Lucas Cordeiro

Lucas dos Reis

Lucas Fernandes Gonçalves Silva

Lucas Lopes Grischke

Lucas Martins

Lucas Oliveira Falcão

Lucas Palmeira da Silva

Lucas S. Barros

Lucas Santiago Barbosa

Lucas Tezotto

Lucas Yashima Tavares


Luigi Favorito

Luis Felipe Belgini

Luís Henrique Gonçalves dos Santos

Luísa Druzik de Souza

Luiz Carlos Gomes Santiago

Luiz Eduardo Neves Peret

Luiz Felipe Mota

Luiz Fernando Cardoso

Luiza Pimentel de Freitas

Lvpvs Voltolini

Macedo

Maia

Maikhon Reinhr

Malena Regina

Marcelle Abreu

Marcello Chijo

Marcelo Miranda

Marcelo Seixas Pinto

Marcelo Trigueiros

Marcielle Pires Brito


Márcio da Silva Barros

Marco Antônio Baptista

Marcos Apoitia

Marcos Contente

Marcos Nogas

Marcos Paulo Silva Morais

Marcos Roberto Piaceski da Cruz

Marcos V M Brandt

Marcus Antonius S Silva

Maria Batista

Maria Elisa Ferreira Portella do Amaral

Maria Helena Lima de Oliveira

Maria Luiza Leal

Mariana Cardoso

Mariana Cotta

Mariana G Santos

Mariana Gonçalves Guimarães

Mariana Reis Marques

Mariane Bertoli

Marie Pessoa
Marília Garcia Salto

Marina Dantas Bezerra

Marina de Castro Firmo

Marina Mastrangelo Franconeti

Marina Sampaio Goes

Marisa Telo

Matheus Arend de Moura

Matheus Assis Xavier

Matheus Ceotto Souza

Matheus Yudi Matsubara

Maurício da Fonte Filho

Maurício Marcelo Costa

Mauricio Simões

Mauro Francisco Pinheiro Martins

Maxwell Rocha Santos

Mazzotti

Meg Mendes

Mia Sodré

Michel Barros Silva

Michel Miretzki
Michele Zanetti

Michelle Bertolazi Gimenes

Midiã Lia

Miguel Mendes

Miguel Peters

Mih Lestrange

Morgana Feijão

Nabiki Yamada

Natália Mussato

Natália Zanatta Stein

Natasha Ribeiro Hennemann

Náthaly Inacio Matias

Nayara de Castro Chaves

Nicholas Bittencourt

Nícolas Gibran Marques Brasil

Nina Ladeia

Norberto Alves

Odilon Volkmann Junior

Omar Geraldo Lopes Diniz

Otávio Ceni Coin


Oziel Herbert de Araújo Pereira

Pablo Praxedes

Pablo Rudah Pinheiro Ribeiro

Pacheco Pacheco

Patrícia Ferreira Magalhães Alves

Patty Souza

Paulo Hortelan Ribeiro

Paulo Junior

Paulo Pholux

Pedro Henrique Duarte Nascimento

Pedro Henrique Gomes da Silva

Priscila Davino

Priscila de La Rocque Ormonde

Rafael Aguiar

Rafael Alvares Bianchi

Rafael Bandol

Rafael de Carvalho Moura

Rafael Flocco

Ranulpho Souza

Raoni De Lucia
Raphael Polimanti

Raquel Alves da Cruz

Rayane Silva

Rayra Vieira Alencar

Raysa Cerqueira Silva

Rebecka Cerqueira dos Santos

Regiane Winarski

Regina Andrade de Souza

Renan Albino da Cunha

Renan Barcellos

Renan Oliveira Santana

Renan Salgado

Renata Nogueira Costa

Ricardo Antonio Megger

Ricardo Blank P. de Cordis

Ricardo Carvalho

Ricardo Strowitzki

Rildo Augusto Valois Laurentino

Roberto Belgoni

Roberto José de Araújo


Rodrigo Bobrowski - GOTYK

Rodrigo Carneiro

Rodrigo Giesta Figueiredo

Rodrigo Ortiz Vinholo

Rodrigo Rocha

Ronaldo Bordin

Ronaldo Bordin

Rosana Yamaguti

Rugles Gomes

Rui Carodi

Sabrina de Souza Almeida

Sajunior Maranhão

Sara Larissa

Sofia Lobo C Meskó

Sophia Gaspar Leite

Soraya Liliane F. Gusmão

Sr. Costas Peludas

Su Fernandes

Suellen Cordovil da Silva

Tácio R C Correia
Taís Coppini

Taissa Rodrigues Reis

Talita Porto Neves

Tânia Maria Florencio

Tatiana Jimenez Inda

Tatiane Hannisdal

Taylane Lima Cordeiro

Thais Messora

Thais Rocha

Thais S. Souza

Thaissa Medeiros Maciel

Thamy Adriana dos Santos

Thays Bonato

Theonas de Albuquerque

Thiago D. Guesso

Thiago Massimino Suarez

Thiago Souza Araujo

Thiago Tonoli Boldo

Thomas Jotz

Tomás Varallo Ribeiro de Sousa


Vamberto Junior

Vanádio José Rezende da Silva Vidal

Vanessa de Oliveira

Vanessa Ramalho Martins Bettamio

Vanessa Regina Andrade dos Santos

Vanylla Vieira

Varna Bini Banhara

Verônica S. Freitas

Vicent Bernardo Alves Santos

Victor “MinVic” Pereira

Victor Almeida

Victor Otávio Tenani

Victor Ruiz

Victória Elisa

Vinícius da Silva Paiva

Vinícius Dias Villar

Vinícius Reis Lima

Vinicius Silveira de Oliveira

Vinícius

o Acólito Obscurecido
Vitor Emanuel da Costa Bouças

Vítor Jucá Policarpo

Vitor Melo

Vitória Rugieri

Viviane Ventura e Silva Juwer

Walber Nogueira

Wallisson Oliveira

Wenceslau Teodoro Coral

Will Junior

Willian Gabriel de Jesus

Witold Nagorski Neto

Yago Medeiros

Yann Cerri

Yuri Costa

Yuri Rebêlo

ZeGui

1.000ton Diogo
www.editoracorvus.com.br

Você também pode gostar