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1ª edição, 2021.
Catalogação na fonte
M149g
Machen, Arthur
ISBN: 978-65-990768-2-4.
821.111.2(82)-31 CDU
823 CDD
www.editoracorvus.com.br
SUMÁRIO
Aqui, uma descida horrível precisa ser feita; então façamo-la rapidamente.
É preciso descer dos picos altos, brilhantes e remotos até as colinas
caseiras, em outras palavras, explicar como acabei escrevendo O grande
deus Pã . Descobri, muitos anos depois, como foi feito, como meus efeitos
eram produzidos; mas tenho certeza de que nada entendi sobre as
verdadeiras origens e essências da história enquanto a escrevia. Tudo veio
de uma casa solitária na encosta de uma colina, sob um grande bosque,
acima de um rio na região onde nasci.
Llanddewi Rectory [3 ], onde fui criado, tem vistas para uma região
maravilhosa e encantadora. A colina em que a casa se encontra desce
através de pomares de macieiras até uma área selvagem onde crescem
vegetação rasteira e samambaias; no coração desta pequena floresta há uma
nascente cujas águas correm para o riacho de Soar [4 ]. Além do terreno
novamente inclinado, a Igreja Landdewi se ergue, antiquíssima, entre teixos
escuros; as colinas ficam mais altas à direita e à esquerda dela, as da direita
repleta de árvores. Muitas vezes passei tardes passeando no bosque durante
o verão, vendo o brilho do sol e o agitar do vento nas árvores mais
próximas, pensando no que Ulisses disse de seu querido Zacynthus “coberto
de árvores, tiritando de folhas”. Então, mais além, outra elevação,
Llanhenocm, e a distância era diminuída pela vasta parede verde de
Wentwood, um remanescente, ainda grande, da Floresta de Gwent que
outrora cobrira todo a margem do baixo Usk e do Wye. Visível, embaixo
desta floresta, ficavam as paredes brancas de uma casa, que me disseram se
chamar Bertholly.
Por alguma razão, ou sem razão alguma, esta casa que ficava nas fronteiras
das paredes verdejantes do mundo de minha juventude tornou-se um objeto
de misteriosa atração para mim. Tornou-se um dos muitos símbolos do
mundo das maravilhas que me foram oferecidos; tornou-se, por assim dizer,
uma grande palavra na linguagem secreta pela qual os mistérios eram
comunicados. Sempre pensava nela com algum espanto, até mesmo certo
pavor. Sua aparência representava… eu não sabia o quê. Assim foi por
muitos anos. Mas acredito que eu deveria ter 12 ou 13 anos quando vi
Bertholly de perto. Meu pai me levou para ver um clérigo vizinho que
morava em um lugar chamado Tredonoc, e Tredonoc desce até as margens
do Usk. No caminho, passamos por um labirinto de colinas e vales, por
bosques, por trilhas profundas, por caminhos sobre terras submersas; não
podíamos ver distâncias. Mas depois que a chamada ao reitor foi feita, nós
avançamos um pouco e, no topo de uma pequena colina, vimos de repente
diante de nós um sonho de beleza mística — o vale do Usk [5 ]. Ainda,
mesmo depois de muitos anos terem se passado, depois de muitas coisas
terem sido quebradas para sempre, lembro de como isso me subjugou e
possuiu, de como a alma é subjugada e possuída pelo primeiro beijo da
pessoa amada.
E lá, sob o vasto verde da floresta, bem acima das místicas e prateadas
curvas do rio, estava Bertholly, que era mais inexplicável, mais maravilhosa
e mais significativa quanto mais de perto era contemplada.
Comecei, como muitos escritores melhores do que eu, com pequenos textos
para o The Globe . The Globe pagava um guinéu, mas descobri que o St.
James’s Gazette pagava duas libras pelo mesmo número de palavras, então
escrevi o máximo que pude para eles. Esses escritos eram, a princípio,
“ensaios” ou artigos sobre coisas em geral, livros, paisagens campestres,
dias de verão ou estradas nevadas no inverno, canções antigas, provérbios
antigos — ou qualquer coisa que me passasse pela cabeça. Então, por um
acaso, conheci Oscar Wilde, e jantei com ele. No jantar, ele me contou o
enredo de uma história escrita por um amigo dele, que ele descreveu como
“maravilhoso”. Não me pareceu tão maravilhoso assim. Não via por que eu
não poderia pensar em um enredo tão bom ou quase tão bom — sempre
reservando, é claro, meu primeiro princípio, que tem sido um conforto em
toda a minha vida literária: que nada do que escrevi, estou escrevendo, ou
escreverei pode ter a menor utilidade ou lucro para mim ou para qualquer
outra pessoa. Contudo, de qualquer forma, tentei minha mão em uma
história ligeiramente extravagante (sobre um famoso baronete que adorava
dar jantares e que acabou sendo seu próprio cozinheiro) e a enviei para o St.
James’s . Para minha alegria, eles a publicaram, então comecei a escrever
histórias. Minhas histórias eram, estranhamente, contos sobre a
“sociedade”. Estranhamente porque sei tanto sobre a “sociedade” quanto
sobre os hábitos do corujão-orelhudo.
Por que não enviei O grande deus Pã para o St. James’s Gazette , isso eu
não sei. Porém, no verão de 1890 um novo jornal semanal foi lançado, o
The Whirlwind . Ele defendia os princípios jacobitas e imprimia contos,
então, quando pensei no que hoje é o primeiro capítulo de O grande deus
Pã , enviei para o The Whirlwind , e lá ele apareceu. Eu não tinha noção de
que haveria algo depois deste primeiro capítulo; e foi muitos meses depois,
em algum momento em janeiro de 1891, que comecei a escrever um de
meus curtos contos de “sociedade”, A Cidade das Ressurreições , que agora
é o terceiro capítulo do livro. Terminei a história e descobri que nunca daria
certo; o horror oculto sugerido nela não combinava com a estrutura
“social”. De repente, me dei conta de que esse conto era uma continuação
da história publicada no The Whirlwind ; que havia muitos outros capítulos
para escrever: em resumo, que, de alguma forma, eu me deparara com uma
ideia. Fiquei feliz por uma noite inteira, enquanto pensava na coisa curiosa
e bela que estava prestes a inventar. Pensei nessa coisa curiosa e bela
quando li as provas do livro finalizado pela primeira vez, e então
resmunguei, percebendo o grande abismo que se estabeleceu (para mim)
entre a ideia e o fato.
Mas isso está indo rápido demais. Escrevi, com uma dificuldade terrível,
com desespero doentio, com o coração apertado, com a esperança sempre
me fugindo, todos — com exceção do último — os capítulos do livro.
Claro, eu havia planejado tudo cuidadosamente no papel e, à medida que
prosseguia, história após história, meu castelo de cartas caiu em ruínas; esse
dispositivo, descobri, não me serviria de forma alguma; aquele incidente
jamais transmitiria o significado pretendido. Contudo, de alguma forma, a
coisa foi feita. Todos, exceto o último capítulo; e este eu não conseguia
fazer de jeito nenhum. Não pude evitar: deixei o manuscrito de lado e havia
me resignado muito bem a deixá-lo inacabado para sempre. Foi só no mês
de junho seguinte que me ocorreu uma possível maneira de encerrar o livro
e, assim, em junho de 1891, estava tudo concluído. Enviei o manuscrito aos
Srs. Blackwood de Edimburgo; e eles o declinaram muito civilizadamente,
elogiando sua inteligência — o livro não é nada inteligente — mas
“recuando”, se bem me lembro, “da ideia central”. Não lembro se tentei em
vão outros editores; mas O grande deus Pã foi aceito pelo Sr. John Lane, do
Bodley Head, e publicado por ele em 1894.
Não é culpa do Sr. Machen, mas seu infortúnio, que o leitor trema de tanto
rir e não de medo ao contemplar seu monstro psicológico.
— Observer.
— Chronicle.
— Sunday Times.
Se o objetivo do Sr. Arthur Machen era nos arrepiar, só podemos falar por
nós mesmos e dizer que lemos o livro sem sentir coisa alguma… A história
é, de fato, elaboradamente absurda… Tão sem sentido quanto uma alegoria,
pois é absurda de qualquer outro ponto de vista.
— Westminster.
Nem mesmo uma remota sensação de arrepio essa história causará na mente
de qualquer um que a leia.
— Echo.
— Sketch.
— Manchester Guardian.
— National Observer.
— Lady’s Pictorial.
— Guardian.
O EXPERIMENTO
— Fico feliz que tenha vindo, Clarke, de verdade. Não tinha certeza se você
teria tempo.
Clarke estremeceu. A névoa branca que se amontava sobre o rio era fria.
— Sim, mas só para uma minúscula lesão na massa cinzenta, nada além
disso. Um rearranjo insignificante de células, uma alteração tão
microscópica que passaria despercebida por 99 de 100 especialistas em
neurologia. Não quero incomodá-lo com pormenores, Clarke. Eu poderia
lhe dizer um monte de detalhes técnicos que soariam imponentes, mas que
não lhe deixariam menos confuso do que você está agora. Mas suponho que
tenha lido, casualmente, em algum canto do seu jornal, que avanços
imensos foram feitos recentemente quanto à fisiologia do cérebro. Vi um
parágrafo outro dia sobre a teoria de Digby e as descobertas de Browne
Faber. Teorias e descobertas! Onde eles estão agora, eu estive quinze anos
atrás, e nem preciso dizer que não estive parado esse tempo todo. Será
suficiente dizer que passei dez anos acreditando que havia atingido meu
objetivo, mas apenas há cinco fiz a real descoberta à qual me referia.
Depois de anos de trabalho e suor, tateando no escuro, de dias e noites de
decepções e desespero, nas quais eu, por vezes, ficava estarrecido com a
ideia de que talvez houvesse outros procurando o que eu buscava.
Finalmente, depois de todo esse tempo, uma pontada súbita de alegria
tomou minha alma, e soube que a longa jornada estava no fim. Pelo que
pareceu então, e ainda parece, um simples acaso, um pensamento
involuntário seguiu por caminhos familiares, pelos quais eu já tinha seguido
centenas de vezes. A grande verdade explodiu sobre mim e vi, mapeado em
linhas de visão, um mundo inteiro, uma esfera desconhecida; continentes,
ilhas e grandes oceanos nos quais nenhum navio jamais navegou desde que
o Homem levantou os olhos pela primeira vez e encarou o Sol e as estrelas
do firmamento, bem como a silenciosa terra sob seus pés, assim acredito.
Você pensará que estou apenas fazendo floreios linguísticos, Clarke, mas é
difícil ser literal. Além disso, não sei se tudo que estou sugerindo pode ser
apresentado em termos simples, concisos. Por exemplo, nosso mundo está
bem envolto por fios e cabos de telégrafo. O pensamento, com velocidade
menor que a dele próprio, viaja do nascer ao pôr-do-sol, de norte a sul,
através de inundações e lugares desertos. Imagine um eletricista de hoje em
dia percebendo, de repente, que ele e seus amigos estiveram apenas
brincando com pedrinhas e confundindo-as com as fundações do mundo.
Imagine esse homem vendo o verdadeiro espaço se abrir diante de seus
olhos, e as palavras humanas indo até Sol e para além dele, em direção a
outros sistemas, e a voz da humanidade ecoando no vazio desolado que
limita nosso pensamento. No que diz respeito a analogias, esta é uma
bastante boa para explicar o que fiz. Agora, você poderá entender um pouco
do que senti, parado aqui certa noite. Era verão, e os vales não estavam
muito diferentes de como estão hoje . Eu estava aqui e vi diante de mim o
indizível, o impensável abismo que se abre profundamente entre dois
mundos: o da matéria e o do espírito. Vi esse grande e profundo vazio
escurecer à minha frente e, então, uma ponte de luz saltou da terra até a
costa desconhecida, e o abismo foi cruzado. Você pode olhar no livro de
Browne Faber, se quiser, e encontrará que, até hoje, os cientistas não foram
capazes de explicar a presença ou de especificar as funções de um certo
grupo de células nervosas no cérebro. Esse grupo está, por assim dizer,
dando sopa , não passa de um mero desperdício de espaço para teorias
fantasiosas. Não estou na posição de Browne Faber e dos especialistas, sou
perfeitamente bem instruído quanto às possíveis funções desses centros
nervosos no grande esquema das coisas. Com um toque, posso colocá-los
em ação, com um toque, afirmo, posso liberar a corrente, com um toque,
posso completar a comunicação entre esse mundo dos sentidos e…
Poderemos terminar essa frase mais tarde. Sim, a faca é necessária, mas
pense no efeito que ela trará. Nivelará por completo a sólida parede do
sentido e, provavelmente, pela primeira vez desde que o homem foi criado,
um espírito contemplará um mundo espiritual. Clarke, Mary verá o deus Pã!
— Não, acho que não, mesmo se o pior acontecesse. Como sabe, resgatei
Mary da sarjeta, e certamente da fome, quando ela era criança. Creio que a
vida dela é minha, para usar da forma que eu ache melhor. Venha, está
ficando tarde. É melhor entrarmos.
Dr. Raymond guiou o caminho para dentro da casa, passando pela sala e
seguindo por um longo corredor escuro. Tirou uma chave do bolso e abriu a
pesada porta, indicando que Clarke entrasse em seu laboratório. O cômodo
já fora um salão de bilhar e era iluminado por um domo de vidro ao centro
do teto, de onde uma triste luz cinza ainda iluminava a silhueta do médico
enquanto ele acendia uma luminária de sombra ampla e a colocava sobre
uma mesa no meio da sala.
Não havia muita mobília no laboratório. Uma mesa ao centro, uma placa de
pedra com um ralo em um canto, as duas poltronas nas quais Raymond e
Clarke estavam sentados. Era tudo, exceto por uma cadeira de aparência
estranha, no extremo mais afastado do cômodo. Clarke olhou para ela e
levantou as sobrancelhas.
Pensativo, Clarke recostou-se em sua cadeira. Parecia que ele havia apenas
passado de um sonho a outro. Parte dele esperava ver as paredes do
laboratório derreterem e desaparecerem, para então acordar em Londres,
estremecendo com suas próprias fantasias oníricas. Porém, a porta enfim se
abriu, e o médico retornou. Atrás dele vinha uma moça com cerca de 17
anos, toda vestida de branco. Ela era tão linda que Clarke não questionou o
que o médico lhe escrevera. Um rubor se espalhava por seu rosto e pescoço,
mas Raymond parecia impassível.
— Mary — ele disse —, é chegada a hora. Você tem uma escolha. Está
disposta a confiar sua existência a mim por completo?
— Claro, querido.
Três dias depois, Raymond levou Clarke à cama de Mary. Ela estava
deitada, de olhos bem abertos, virando a cabeça de um lado para o outro,
sorrindo para o nada.
— Sim — disse o médico, ainda muito calmo. — É uma pena, ela está
irremediavelmente perdida. Mas não havia o que fazer. Além do mais, ela
viu o Grande Deus Pã.
II
AS MEMÓRIAS DO SR.
CLARKE
Sr. Clarke, o cavalheiro escolhido pelo Dr. Raymond para testemunhar o
estranho experimento do deus Pã, era uma pessoa cujo caráter, cautela e
curiosidade estranhamente se misturavam. Em seus momentos de
sobriedade, ele pensava sobre o incomum e o excêntrico sem disfarçar sua
aversão, mas mesmo assim, no fundo de seu coração, havia um interesse
ansioso pelo que dizia respeito aos elementos mais incógnitos e esotéricos
da natureza dos homens. Esta tendência prevalecera quando ele aceitou o
convite de Raymond, pois, embora seu julgamento ponderado tenha sempre
repudiado as teorias do médico, considerando-as o mais selvagem dos
absurdos, ainda assim ele secretamente abraçava uma crença na fantasia e
se alegraria de vê-la confirmada. Os horrores que testemunhou no lúgubre
laboratório foram, até certo ponto, proveitosos. Sabia que se envolvera em
uma questão não muito respeitável, e, por muitos anos depois do
acontecido, ele se agarrou corajosamente ao lugar comum, rejeitando todas
as oportunidades de investigação do oculto. De fato, por um princípio
homeopático, frequentou por um tempo as sessões de médiuns famosos, na
esperança de que os truques desajeitados desses cavalheiros o deixassem
completamente indignado com todo tipo de misticismo. Contudo, esse
remédio, embora causticante, não foi eficaz. Clarke sabia que ainda ansiava
pelo oculto e, pouco a pouco, a antiga paixão voltou a se afirmar, enquanto
o rosto de Mary, tremendo e convulsionando com um terror desconhecido,
lentamente começava a desvanecer de sua memória. Ocupado o dia todo
com atividades sérias e lucrativas, a tentação de relaxar à noite era grande
demais, especialmente nos meses de inverno, quando o fogo lançava um
brilho caloroso em seu agradável apartamento de solteiro, e uma garrafa de
vinho de sua escolha estava a postos, ao alcance de suas mãos. Com o jantar
digerido, ele fingiria, por um momento, ler o jornal da noite, mas as notícias
triviais logo o faziam perder o interesse, e Clarke se via lançando olhares de
desejo caloroso para uma antiga escrivaninha japonesa, que ficava a uma
distância aprazível da lareira. Como um menino à frente de um armário no
qual guardavam doces, ele pairaria indeciso por alguns minutos, mas o
desejo sempre prevalecia, e Clarke acabava puxando sua cadeira,
acendendo uma vela e sentando-se diante da escrivaninha. Em seus
escaninhos e gavetas, abundavam documentos sobre os mais mórbidos
assuntos, e em uma reentrância descansava um grande volume manuscrito,
no qual ele penosamente havia posto as joias de sua coleção. Clarke tinha
um belo desprezo pela literatura publicada; a história mais fantasmagórica
não lhe despertava mais interesse se tivesse sido impressa. Seu único prazer
era ler, compilar e reorganizar o que ele chamava de “Memórias para provar
a Existência do Diabo”, e, envolvido nessa busca, a noite voou e a
madrugada pareceu curta demais.
“Uma Narrativa Singular contada a mim por meu amigo, o Dr. Phillips. Ele
me garante que todos os fatos relatados aqui são estrita e completamente
verdadeiros, mas se recusa a contar o sobrenome dos envolvidos ou onde
esses eventos extraordinários ocorreram.”
Sr. Clarke começou a ler o relato pela décima vez, olhando vez ou outra
para as anotações a lápis que fizera enquanto seu amigo o narrava. Era um
de seus caprichos, orgulhar-se de uma certa habilidade literária. Gostava do
seu estilo e tinha bastante trabalho organizando as circunstâncias em uma
ordem dramática. Ele leu a seguinte história:
“As pessoas envolvidas neste relato são Helen V., que, se ainda está viva,
deve agora ser uma mulher de 23 anos; Rachel M., falecida, que era um ano
mais nova que Helen; e Trevor W., um estúpido de dezoito anos. Na época
desta história, essas pessoas eram habitantes de um vilarejo na fronteira do
País de Gales, um lugar de certa importância nos tempos da ocupação
romana, mas agora é uma aldeia dispersa com não mais que cinco mil
almas. Está situada em um terreno elevado, a cerca de dez quilômetros do
mar, e é protegido por uma grande e pitoresca floresta.
Foi em uma dessas expedições para a floresta que o primeiro dos incidentes
singulares aos quais essa menina está conectada ocorreu, cerca de um ano
depois de sua chegada ao vilarejo. O inverno anterior havia sido
extraordinariamente severo, a neve assentou-se em grande profundidade, e a
geada continuou por um período nunca antes visto. O verão seguinte, por
sua vez, também ficou marcado por seu calor extremo. Em um dos dias
mais quentes dessa estação, Helen saiu da fazenda para um de seus passeios
na floresta, levando consigo, como de costume, um pouco de pão e carne
para o almoço. Alguns homens no campo a viram passar em direção à
antiga estrada romana, uma calçada verde que atravessava as partes mais
altas do bosque, e ficaram perplexos ao ver que ela havia tirado seu chapéu,
embora o calor fosse quase tropical. Por acaso, um trabalhador, chamado
Joseph W., estava trabalhando na floresta próximo à estrada, e ao meio-dia
seu pequeno filho, Trevor, levou para ele seu almoço de pão e queijo. Após
a refeição, o menino, com cerca de sete anos de idade na época, deixou seu
pai no trabalho, e, como ele disse, foi procurar flores no bosque. O homem,
que conseguia ouvir as exclamações de alegria do menino em suas
descobertas, não sentiu qualquer preocupação. De repente, entretanto,
aterrorizou-se ao ouvir os gritos mais medonhos, evidentemente resultado
de grande terror, vindos da direção em que seu filho estava, e ele
apressadamente largou suas ferramentas e correu para ver o que havia
acontecido. Guiando-se pelo som, ele encontrou o menininho, que corria,
afobado, e estava evidentemente aterrorizado. Ao questioná-lo, o homem
descobriu que, depois de colher um ramo de flores, ele se sentiu cansado,
deitou-se na grama e adormeceu. Contou que foi acordado de repente por
um barulho peculiar, ele chamou de uma espécie de canto, e, espreitando
pelos galhos, viu Helen brincando na grama com um “estranho homem nu”,
que ele não conseguiu descrever com mais detalhes. Disse que se sentiu
muito aterrorizado e saiu correndo, gritando por seu pai. Joseph W. seguiu
na direção indicada pelo filho e encontrou Helen sentada na grama, no meio
de uma clareira ou espaço aberto por queimadores de carvão. Furioso, ele a
acusou de amedrontar seu menino, mas ela negou completamente a
acusação e riu da história do menino sobre um “homem estranho”, a qual
ele mesmo não dava muito crédito. Joseph chegou à conclusão de que o
menino acordara com um medo súbito, como crianças às vezes fazem, mas
Trevor insistiu na história, e continuava tão evidentemente aflito que,
enfim, seu pai o levou para casa, na esperança de que a mãe fosse capaz de
acalmá-lo. Por muitas semanas, no entanto, o menino deixou os pais muito
ansiosos. Tornou-se nervoso e estranho em suas maneiras, recusando-se a
deixar o chalé sozinho e constantemente alarmando os moradores da casa
ao acordar no meio da noite gritando: “O homem da floresta! Pai! Pai!”.
— Ah, mãe, mamãe, por que você me deixou ir para floresta com Helen?
— Sua fuga permanece um mistério até hoje. Ela sumiu em plena luz do
dia, viram-na caminhando em uma campina e poucos momentos depois ela
não estava mais lá.
— Sim, meu nome é Herbert. Acredito que conheço seu rosto, também, mas
não me lembro de seu nome. Minha memória é muito esquisita.
— É uma longa história, Villiers, e bem estranha também, mas você pode
ouvir, se quiser.
— Vamos, então. Apoie-se em meu braço, você não parece muito forte.
— Como isso aconteceu, Herbert? Sempre achei que você conseguiria uma
excelente posição em Dorsetshire. Seu pai o deserdou? Não pode ter sido
isso, pode?
— Não, Villiers. Herdei toda a propriedade quando meu pai faleceu, um ano
depois que deixei Oxford. Ele foi um bom pai para mim, e eu chorei sua
morte de forma bastante sincera. Mas você sabe como são os jovens.
Poucos meses depois, vim para a cidade e frequentei bastante a sociedade.
Certamente tive excelentes apresentações e consegui me divertir bastante de
forma inofensiva. Joguei um pouco, isso não posso negar, mas nunca com
alto risco, e as poucas apostas que fiz em corridas me trouxeram dinheiro.
Apenas algumas libras, você sabe, mas o suficiente para pagar por charutos
e outros prazeres insignificantes. Foi em minha segunda temporada que a
maré virou. Você certamente soube de meu casamento?
— E o dinheiro?
— Ela me tomou tudo.
— E depois o abandonou?
— Abandonou. Ela desapareceu certa noite. Não sei para onde foi, mas
tenho certeza de que vê-la novamente me mataria. O resto de minha história
não é interessante. Miséria, e nada além disso. Você pode pensar, Villiers,
que exagerei e narrei em busca de um efeito, mas não lhe disse nem a
metade. Eu poderia lhe contar certas coisas que o convenceriam, mas, se o
fizesse, você jamais teria um dia feliz novamente. Passaria o resto de sua
vida como eu passo a minha, um homem assombrado, um homem que viu o
inferno.
— O nome que ela utilizava quando a conheci era Helen Vaughan, mas seu
verdadeiro nome eu não saberia dizer. Não acho que ela tivesse um. Não,
não, não dessa forma. Apenas seres humanos têm nomes, Villiers. Não
posso dizer mais nada. Adeus. Sim, vou lhe chamar se descobrir alguma
forma de como você pode me ajudar. Boa noite.
O homem partiu para a noite cruel, e Villiers retornou para a frente de sua
lareira. Algo em Herbert o chocara de uma forma que não conseguia
expressar. Não foram seus pobres trapos ou as marcas que a pobreza pusera
em seu rosto, mas sim o terror indefinido que o envolvia como uma névoa.
Ele admitia que não era desprovido de culpa. Confessara que a mulher o
corrompera em corpo e alma, e Villiers sentia que esse homem, outrora seu
amigo, desempenhara um papel em cenas perversas que estavam além do
poder das palavras. Sua história não carecia de confirmação: ele mesmo era
prova viva dela. Villiers meditou curiosamente sobre a narrativa que ouvira
e imaginou se a teria escutado pela primeira e última vez. “Não”, pensou,
“certamente não foi a última vez. É provável que tenha sido apenas o
começo. Um caso assim é como um conjunto de caixas chinesas. Você abre
uma após a outra, apenas para encontrar um acabamento pitoresco em cada
uma delas. O mais provável é que o pobre Herbert seja apenas uma das
caixas de fora; outras mais estranhas aparecerão”.
Villiers não conseguia afastar a mente de Herbert e sua história, que parecia
ficar cada vez mais intensa conforme a noite passava. O fogo na lareira
pareceu diminuir, e o ar frio da manhã esgueirou-se pelo quarto. Villiers se
levantou, olhou de soslaio por cima dos ombros e, estremecendo, foi para a
cama.
Alguns dias depois, ele viu em seu clube um cavalheiro conhecido seu
chamado Austin, famoso por seu conhecimento íntimo da vida londrina,
tanto em seus momentos sombrios quanto nos luminosos. Villiers, ainda
com a cabeça cheia de seu encontro no Soho, bem como suas
consequências, achou que Austin fosse talvez capaz de elucidar um pouco a
história de Herbert. Então, após uma conversa casual, fez a seguinte
pergunta:
— Por acaso você sabe alguma coisa sobre um homem chamado Herbert,
Charles Herbert?
— Charles Herbert? Você não estava na cidade três anos atrás? Não ouviu
falar do caso da Rua Paul? Foi uma grande sensação à época.
— Olha, nem sei como lhe dizer. Todos que a viram no tribunal de polícia
disseram que ela era, ao mesmo tempo, a mulher mais linda e mais
repulsiva que já viram na vida. Conversei com um homem que a viu e juro
que ele estremeceu enquanto tentava descrever a mulher, mas não sabia por
quê. Ela parece ter sido uma espécie de enigma, e acredito que, se o homem
morto pudesse contar histórias, ele teria contado algumas
extraordinariamente estranhas. E aí está você novamente com outro quebra-
cabeça: o que um cavalheiro respeitável como o Sr. Blank (vamos chamá-lo
assim, se você não se importar) iria querer em uma casa tão estranha como
a do número 20? De todos os pontos de vista, é um caso bem esquisito, não
acha?
— Não, obrigado, acredito que tudo que possuo neste ramo esteja bastante
seguro. Não, Clarke, eu vim, na verdade, para consultá-lo sobre um assunto
curioso que me chamou a atenção recentemente. Acredito que você achará
tudo um pouco absurdo quando eu contar minha história. Às vezes eu
mesmo acho, e foi por isso que resolvi vir aqui, pois sei que você é um
homem prático.
— Isso não é tudo muito fantasioso, Villiers? Talvez o coitado só tenha sido
imprudente ao se casar e, falando com todas as letras, as coisas terminaram
mal.
— Olha, Villiers, sendo muito sincero, não sei bem o que dizer. Sem
dúvida, há circunstâncias no caso que parecem peculiares, a descoberta do
homem morto próximo à casa de Herbert, por exemplo, e a extraordinária
opinião do médico quanto à causa da morte. Mas, no fim das contas, é
possível que os fatos possam ser explicados de maneira simples. Quanto ao
que sentiu quando você foi ver a casa, eu diria que foram fruto de uma
imaginação vívida. Você devia estar refletindo, de forma semiconsciente,
sobre o que ouvira. Não sei mais o que se pode dizer ou fazer sobre esse
assunto. É claro que você acredita que há um mistério para resolver, mas
Herbert está morto. Onde você sugere investigar?
— Acho que vou fumar um cigarro — disse, por fim, e colocou a mão no
bolso, procurando pela cigarreira. — Ah! — exclamou, um pouco exaltado.
— Esqueci que tinha algo para lhe mostrar. Lembra que falei que encontrei
um esboço curioso no meio da pilha de jornais velhos na casa da Rua Paul?
Aqui está.
Villiers tirou um pequeno e fino pacote do bolso. Estava coberto por papel
pardo e amarrado por um barbante com nós confusos. Contrariando-se,
Clarke ficou curioso. Debruçou-se na cadeira enquanto Villiers
vagarosamente desfazia os nós e desdobrava o papel do pacote. Dentro
havia um segundo embrulho de tecido. Villiers o removeu e, sem dizer
nada, entregou o pequeno pedaço de papel a Clarke.
— Quem é essa mulher? — perguntou, por fim. Sua voz estava seca e
rouca.
— É a mulher com quem Herbert se casou.
Clarke olhou mais uma vez para o esboço. Não, não era Mary. Certamente
era o rosto dela, mas havia algo mais, algo que ele não vira no semblante de
Mary quando ela, toda vestida de branco, entrara no laboratório junto ao
médico, nem em seu terrível despertar, ou quando ela se deitara, sorrindo,
na cama. O que quer que fosse, o olhar que vinha daqueles olhos, o sorriso
nos lábios carnudos, ou a expressão em todo o rosto, fez a alma de Clarke
estremecer, e ele se lembrou, inconscientemente, das palavras do Dr.
Phillip: “a representação mais vívida possível do mal”. Ele virou o papel
mecanicamente em suas mãos e olhou para o verso.
— Você viu isso? — disse. — Foi assim que eu o identifiquei como sendo o
retrato da esposa de Herbert, ou devo dizer, da falecida esposa. Como você
está se sentindo agora?
— Melhor, obrigado, foi apenas uma fraqueza passageira. Não acho que
entendi o que você quis dizer. O que foi que lhe permitiu identificar a foto?
— Esta palavra escrita no verso, “Helen”. Não lhe disse que o nome dela
era Helen? Sim. Helen Vaughan.
— Você não concorda comigo? — disse Villiers. — Que nesta história que
contei hoje, e no papel desempenhado por essa mulher, há vários pontos
muito estranhos?
A CARTA DE
ACONSELHAMENTO
— Sabe, Austin — disse Villiers enquanto os dois amigos passeavam
tranquilamente por Piccadilly em uma agradável manhã de maio. —, estou
convencido de que o que você me disse sobre a Rua Paul e os Herbert não
passa de um episódio de uma história extraordinária. Devo confessar que
quando perguntei sobre Herbert alguns meses atrás, eu havia acabado de me
encontrar com ele.
— Ele estava mendigando na rua, uma noite dessas. Estava num estado
deplorável, mas reconheci o homem e o fiz me contar sua história, ou ao
menos uma síntese. Em suma, resumia-se a: ele foi arruinado por sua
esposa.
— De que maneira?
— Ele não quis dizer. Só falou que ela o destruiu, de corpo e alma. Ele está
morto agora.
Por favor, venha me ver. Mas conversaremos sobre assuntos mais alegres do
que esse”.
— Ah! Esqueci de lhe dizer que estive na Rua Paul e fiz uma descoberta.
Villiers contou sua história como a contara para Clarke, e Austin escutou
em silêncio. Ele parecia intrigado.
— Não. Foi mais físico que mental. Foi como se, a cada respiração, eu
estivesse inalando vapores mortais, que pareciam penetrar cada nervo, osso
e músculo do meu corpo. Senti-me atormentado dos pés à cabeça, minha
visão escureceu. Era como a entrada para a morte.
— Sim, sim. Certamente, muito estranho. Veja, seu amigo confessou que há
alguma história bem sombria associada a essa mulher. Você notou alguma
emoção específica nele quando você contou sua narrativa?
— Notei, sim. Ele ficou bastante pálido, mas me garantiu que era apenas
um ataque passageiro que ele sofre às vezes.
— E você acreditou?
— Na hora, sim, mas agora, não mais. Ele ouviu o que eu tinha a dizer com
uma boa dose de indiferença, até que mostrei o retrato. Então ele foi tomado
pelo ataque que mencionei. Parecia horrorizado, eu juro.
— Então ele já deve ter visto a mulher antes. Mas pode ser que haja outra
explicação. Pode ter sido o nome, e não o rosto, que lhe era familiar. O que
você acha?
— Não saberia dizer. Na minha opinião, foi depois que ele virou o retrato
em suas mãos que quase caiu da cadeira. O nome, você sabe, estava escrito
no verso.
Os dois homens, sem perceber, haviam chegado à Rua Ashley, que seguia
na direção norte a partir de Piccadilly. Era uma rua longa e bastante escura,
mas, aqui e ali, focos de luz mais alegres iluminavam as casas sombrias
com flores, cortinas estampadas e tintas vibrantes nas portas. Villiers
levantou os olhos quando Austin parou de falar e olhou para uma dessas
casas; gerânios, vermelhos e brancos, pendiam de todos os peitoris, e
cortinas da cor de narcisos foram penduradas em cada janela.
— Sim, e o interior é ainda mais alegre. Uma das casas mais agradáveis da
temporada, pelo que ouvi. Eu mesmo ainda não a frequentei, mas encontrei
vários homens que o fizeram, e me disseram que ela é incomumente alegre.
— De quem é a casa?
— E quem é ela?
— Não sei dizer. Ouvi dizer que veio da América do Sul, mas no fim das
contas, não importa muito. É uma mulher bastante rica, disso não há
dúvidas, e algumas das melhores pessoas a acolheram. Ouvi dizer que ela
tem um clairet maravilhoso, um vinho realmente magnífico, que deve ter
lhe custado uma quantia fabulosa. Foi Lorde Argentine me contou, ele
esteve aqui na noite do último domingo. Assegurou-me que nunca tomou
um vinho igual, e você sabe que Argentine é um especialista. Aliás, isso me
lembra que ela deve ser um tipo estranho de mulher, essa Sra. Beaumont.
Argentine perguntou a ela a idade do vinho, e o que você acha que ela
respondeu? “Uns mil anos, acredito”. Lorde Argentine achou que ela
estivesse brincando, mas quando ele riu, ela disse que estava falando sério e
ofereceu mostrar-lhe a garrafa. Evidentemente, ele ficou sem palavras
depois disso. Mas parece antigo demais para uma bebida, não acha? Ora,
aqui são meus aposentos. Entre, por favor.
— Obrigado, entrarei sim. Faz tempo que não vejo a loja de antiguidades.
— Não, acredito que não. Você viu esses jarros diferentes, não viu?
Imaginei que sim. Acho que não encontrei nada de novo nas últimas
semanas.
— Ah! — ele disse. — Quase me esqueci, tenho algo para lhe mostrar.
— Ele morreu.
— Não sei. Ele era meu amigo íntimo e eu o considerava um sujeito muito
bom. Ele costumava vir aqui e conversava comigo por horas. Era um dos
melhores conversadores que já conheci. Conseguia até mesmo conversar
sobre pintura, o que não é o caso da maioria dos pintores. Cerca de dezoito
meses atrás, ele estava se sentindo sobrecarregado e, em parte uma sugestão
minha, partiu em uma expedição itinerante, sem muitas definições ou
objetivos. Acredito que Nova Iorque seria seu primeiro destino, mas não
tive notícias dele. Três meses atrás, recebi um livro, acompanhado de uma
carta bastante educada de um médico inglês que estava trabalhando em
Buenos Aires, afirmando que cuidara do Sr. Meyrick durante sua doença, e
que o falecido expressara seu ardente desejo de que o pacote que
acompanhava a carta fosse mandado a mim depois de sua morte. Isso foi
tudo.
— Estava selado quando o recebi. Não acho que o médico o tenha visto.
— Não, acho que não. Não era um colecionador. Diga-me, o que você acha
desses jarros Ainu?
— São peculiares, mas gosto deles. Mas você não ia me mostrar a herança
do pobre Meyrick?
— Não. É uma coleção de desenhos em preto e branco feitos por meu pobre
amigo Meyrick.
Silet per diem universus, nec sine horrore secretus est; lucet nocturnis
ignibus, chorus Aegipanum undique personatur: audiuntur et cantus
tibiarum, et tinnitus cymbalorum per oram maritimam. [2 ]
— Austin!
— Eu sei.
— Quem é?
— É a Sra. Herbert.
— Sim. Tinha a ver com aquela casa na Rua Ashley, a casa da Sra.
Beaumont. Você disse algo sobre Argentine ter jantado lá.
— Exatamente. Claro que você já sabe que foi lá que Argentine jantou na
noite anterior… à sua morte.
— Sim. O nome foi mantido fora das reportagens para poupar a Sra.
Beaumont. Argentine era um de seus favoritos, e dizem que ela ficou num
estado lamentável por um tempo.
Villiers exibiu um olhar curioso. Parecia indeciso sobre falar ou não. Austin
continuou:
— Conheci. Ela tinha uma corte e tanto a seu redor. Poderia ser considerada
bonita, suponho, mas há algo em seu rosto que não me agrada. Os traços
são primorosos, mas a expressão é estranha. E, enquanto eu olhava para ela,
e até mesmo depois, quando estava indo para casa, senti que aquela
expressão, de algum jeito, não me era estranha.
— Não. Tenho certeza de que nunca a vi antes, e é isso que me intriga. Pelo
que saiba, nunca vi ninguém como ela. O que senti era como uma memória
apagada e longínqua, vaga, porém persistente. Só comparar essa sensação
àquele sentimento estranho que às vezes temos em sonhos, quando cidades
fantásticas, terras maravilhosas e personagens fantasmas parecem-nos
familiares e corriqueiros.
— Sim. Escrevi pedindo por detalhes sobre sua doença e morte. Não
acredito que deva receber uma resposta pelas próximas três ou quatro
semanas. Pensei que poderia também perguntar se Meyrick conhecia uma
inglesa chamada Herbert e, caso a resposta fosse positiva, se poderia me dar
alguma informação sobre ela. Mas é bem possível que Meyrick tenha
encontrado com ela em Nova Iorque, no México, ou em São Francisco. Não
faço ideia do quanto ele perambulou em suas viagens.
Austin correu escada abaixo para comprar um jornal e leu em voz alta o
parágrafo para Villiers, enquanto o burburinho na rua aumentava e
diminuía. A janela estava aberta, e o ar parecia repleto de barulho e terror.
— Foi, acredito que foi. Vou olhar mais uma vez. Sim, é isso mesmo.
— Pois bem. Posso contradizer essa afirmação por completo. Crashaw foi
visto depois disso, bem mais tarde.
— Não muito longe daqui. Eu o vi na Rua Ashley. Ele estava saindo de uma
casa.
— Villiers! Pense no que está dizendo. Deve haver algum engano. Como é
possível que Crashaw estivesse na casa da Sra. Beaumont às duas da
manhã? Certamente você estava sonhando, Villiers; você sempre teve uma
imaginação fértil.
“Andava rapidamente, pois estava um pouco cansado por ter saído à noite e,
quando os relógios bateram duas horas, virei na Rua Ashley, que, como
você sabe, fica no meu caminho. Estava mais silencioso do que nunca lá, e
havia poucos postes acessos. Na verdade, a rua toda parecia escura e
sombria como uma floresta no inverno. Eu tinha percorrido cerca de metade
da rua quando ouvi uma porta se fechando de modo suave, e, naturalmente,
virei-me para ver quem estava na rua assim tão tarde, como eu. Por acaso,
há um poste de luz perto da casa em questão, e vi um homem parado à
soleira. Ele tinha acabado de fechar a porta, e seu rosto estava virado na
minha direção, então reconheci Crashaw imediatamente. Não o conhecia
bem o suficiente a ponto de conversar, mas o via com frequência, e tenho
certeza de que não me confundi. Olhei para seu rosto por um momento e,
então, devo confessar, saí correndo, e continuei assim até estar em frente à
minha própria porta.”
— Por quê?
— Por quê? Porque meu sangue gelou ao ver o rosto daquele homem. Eu
jamais poderia ter imaginado que uma mistura infernal de paixões pudesse
brilhar no olhar de qualquer pessoa daquele jeito. Quase desmaiei quando o
vi. Sabia que havia olhado nos olhos de uma alma perdida, Austin. O
exterior do homem permanecia, mas o inferno inteiro estava por dentro
dele. Uma luxúria intensa e um ódio tal qual fogo, assim como a perda de
toda esperança e um horror que parecia gritar alto para a noite, embora seus
dentes estivessem cerrados; e a escuridão profunda do desespero. Tenho
certeza de que ele não me viu. Ele não via nada que eu ou você somos
capazes de enxergar, mas espero que nunca vejamos o mesmo que ele. Não
sei quando ele morreu. Suponho que tenha sido uma ou duas horas depois
disso, mas quando passei pela Rua Ashley e ouvi a porta se fechando,
aquele homem não pertencia mais a esse mundo. Foi a face de um demônio
que eu contemplei.
— Quem sabe, Austin, quem sabe? É um assunto macabro, mas acho que é
melhor guardarmos isso para nós mesmos, ao menos por enquanto. Vou ver
se consigo descobrir alguma coisa sobre essa casa pelos meus canais de
informação, e se descobrir algo, contarei a você.
VII
O ENCONTRO NO SOHO
Três semanas depois, Austin recebeu um bilhete de Villiers, pedindo que o
encontrasse naquela tarde ou na próxima. Ele escolheu a data mais próxima,
e encontrou Villiers sentado, como de costume, à janela, aparentemente
absorto em meditações acerca do tráfego sonolento da rua. Havia uma mesa
de bambu a seu lado, uma peça fantástica, enriquecida com pinturas de
cenas enfeitadas e fascinantes, e em cima dela havia uma pequena pilha de
papéis arrumados e guardados de modo tão organizado quanto os outros
itens no escritório do Sr. Clarke.
— Herbert.
— Não em um lugar onde se esperaria ver uma senhora que vive na Rua
Ashley, em Piccadilly. Vi-a entrando em uma casa em uma das ruas mais
cruéis e duvidosas do Soho. Na verdade, marquei um encontro, embora não
com ela, e a Sra. Beaumont foi assídua quanto ao horário e ao local.
— Tudo isso parece muito fantasioso, mas não posso dizer que é
inacreditável. Villiers, você deve se lembrar que vi esta mulher, em nas
ocorrências cotidianas da sociedade londrina, conversando, rindo e tomando
café em uma sala comum com pessoas comuns. Mas você sabe o que está
dizendo.
— Sei. Não me permiti ser levado por suposições ou fantasias. Não foi
pensando em encontrar Helen Vaughan que pesquisei sobre a Sra.
Beaumont nas escuras águas da vida londrina, mas foi o que encontrei.
— Sim, eu estive em lugares estranhos. Como sabe, teria sido inútil ir à Rua
Ashley e pedir à Sra. Beaumont breves relatos sobre sua história passada.
Não. Pressupondo, como tive que pressupor, que seu histórico não era dos
mais limpos, seria bem provável que ela, em algum tempo passado, tenha
frequentado círculos não tão refinados quanto os que frequenta agora.
“Se você vê lama no topo de um riacho, pode ter certeza de que ela esteve
no fundo dele antes. Eu fui ao fundo. Sempre gostei de frequentar a Rua
Queer, para me divertir, e descobri que meu conhecimento sobre o local e
seus habitantes seria bastante útil. Talvez seja desnecessário dizer que meus
amigos nunca tinham ouvido falar do nome Beaumont, e como eu ainda não
tinha visto a senhora e não poderia descrevê-la, precisei começar o trabalho
de forma indireta. As pessoas de lá me conhecem, já prestei alguns serviços
aqui e ali para eles, portanto, não foi difícil fazê-los me dar as informações
que possuíam. Eles sabem que não tenho comunicação, nem direta nem
indireta, com a Scotland Yard. Contudo tive que dar uma pincelada aqui e
ali na história antes de conseguir o que queria, e quando consegui uma
informação importante, não pensei nem por um momento que fosse a que
eu procurava. Mas escutei o que me diziam, pois tenho um apreço natural
por informações inúteis, e acabei vendo-me em posse de uma história
bastante curiosa, embora não fosse a que eu procurava. Ela se deu da
seguinte forma: uns cinco ou seis anos atrás, uma mulher cujo sobrenome
era Raymond apareceu de repente nessa vizinhança a que me refiro. Ela foi
descrita como bem jovem, provavelmente com não mais do que dezessete
ou dezoito anos, muito bonita e com aparência campestre. Eu estaria errado
se dissesse que ela encontrou seu nível nesse bairro, ou associando-se a
essas pessoas, pois, pelo que me disseram, sou levado a crer que o pior
antro londrino ainda seria bom demais para ela. A pessoa que me deu essa
informação, como você pode supor, não é uma puritana, mas estremeceu e
ficou enojada ao me contar as infâmias inomináveis atribuídas àquela
mulher. Depois de morar lá por um ano, ou talvez um pouco mais, ela
desapareceu tão subitamente como havia surgido, e eles não a viram mais
até a época do caso da Rua Paul. No começo, ela foi a seus lugares
preferidos apenas ocasionalmente, depois com mais frequência, até que,
enfim, ficou morando por lá como antes, permanecendo de seis a oito
meses. Não preciso entrar em detalhes sobre a vida que essa mulher levou.
Se você quiser pormenores, pode olhar o livro deixado por Meyrick.
Aqueles desenhos não foram fruto da imaginação dele. Ela sumiu mais uma
vez, e as pessoas daquele lugar não a viram mais até alguns meses atrás.
Meu informante disse que ela alugara alguns cômodos em uma casa, que ele
me mostrou, e que ela tinha o hábito de visitá-los duas ou três vezes na
semana, sempre às dez da manhã. Fizeram-me crer que uma dessas visitas
seria feita em um dia específico cerca de uma semana atrás, então consegui
ficar de olho, na companhia do meu guia às quinze para as dez. Tanto a hora
quanto a dama chegaram com igual pontualidade. Meu amigo e eu
estávamos parados sob um arco, mais para o início da rua, mas ela nos viu e
me lançou um olhar que demorarei a esquecer. Aquele olhar por si só me foi
suficiente. Soube que a Srta. Raymond era a Sra. Herbert. Quanto à Sra.
Beaumont, ela já havia desaparecido de minha mente. Ela entrou na casa, e
observei-a até às quatro da tarde, quando saiu, e, então, eu a segui. Foi uma
caçada longa, e tive que tomar bastante cuidado para me manter à distância
e, ao mesmo tempo, não perdê-la de vista. Ela me levou a Strand, depois a
Westminster, e, então, para a Rua St. James e Piccadilly acima. Senti-me
estranho ao vê-la virar na Rua Ashley. A ideia de que a Sra. Herbert e a Sra.
Beaumont eram a mesma pessoa me veio à mente, mas parecia impossível
de ser verdade. Esperei na esquina, mantendo um olho nela o tempo todo, e
prestei atenção especial à casa na qual ela parou em frente. Era a casa das
cortinas alegres, o lar das flores, a casa que Crashaw havia frequentado na
noite em que se enforcou em seu jardim. Eu estava prestes a ir embora com
minha descoberta quando vi uma carruagem vazia se aproximar e parar na
frente da casa, então cheguei à conclusão de que a Sra. Herbert sairia para
um passeio, e estava certo. Por acaso, encontrei um conhecido por lá, e
ficamos conversando não muito longe da via das carruagens, para a qual eu
estava de costas. Nem dez minutos haviam se passado quando meu amigo
tirou o chapéu, e virei-me a tempo de ver a senhora que eu perseguira o dia
todo. “Quem é essa?”, perguntei, e sua resposta foi: “A Sra. Beaumont, ela
mora na Rua Ashley”. É claro que não tive mais dúvidas depois disso. Não
sei se ela me viu, mas acredito que não. Fui para casa de uma vez e, depois
de alguma consideração, pensei ter um caso bom o suficiente para ir até
Clarke.
— Porque tenho certeza de que Clarke tem informações sobre essa mulher,
fatos que desconheço.
— Bom, e então?
— Você não iria a uma casa como aquela, iria? Não, não, Villiers, você não
pode ir. Até porque, reflita, que resultado…
— Irei lhe contar em breve. Mas eu ia dizer que minhas informações não
terminam por aqui. Elas foram completadas de maneira extraordinária. Veja
este pequeno e elegante manuscrito. Veja, ele está paginado, e até me
entreguei à tendência da fita vermelha. Tem um ar quase oficial, não acha?
Dê uma olhada, Austin. É um registro das atividades que a Sra. Beaumont
providenciou aos convidados escolhidos. O homem que o escreveu escapou
com vida, mas não acho que viverá por muitos anos. Os médicos lhe
disseram que ele deve ter sofrido um choque severo aos nervos.
— Leve isso daqui, Villiers, e não fale mais disso. Por acaso você é feito de
pedra, homem? Ora, o pavor e o horror da própria morte, os pensamentos
do homem que parado, no ar agudo da manhã, na plataforma sombria,
amarrado, com barulho dos sinos retumbando em seus ouvidos e
aguardando o som estridente do raio não são nada comparados a isso. Não
lerei. Caso contrário, nunca mais conseguirei dormir.
— Muito bem. Posso imaginar o que você viu. Sim, é horrível. Mas, no fim
das contas, é uma história antiga, um velho mistério que se mantém até
hoje, nas escuras ruas de Londres ao invés de entre vinhedos e jardins de
oliveiras. Sabemos o que aconteceu com aqueles que encontraram o Grande
Deus Pã, e os que são sábios entendem que todos os símbolos são símbolos
de alguma coisa, e não de nada.
Villiers andava para cima e para baixo no cômodo, com gotas de suor
destacando-se em sua testa. Austin ficou em silêncio por um tempo, mas
Villiers o viu fazer um gesto sobre o peito.
— Vou repetir, Villiers, você não entrará numa casa como essa, certo? Você
jamais sairia vivo.
“Era uma manhã alegre, homens e mulheres olhavam para o céu e sorriam
enquanto se encaminhavam para seus trabalhos ou prazeres, e o vento
soprava como em campinas e sobre juncos perfumados. Mas, de algum
jeito, superei a agitação e a felicidade e fui andando devagar por uma rua
silenciosa e sem graça, onde parecia não haver nem sol nem ar, e onde os
poucos transeuntes sofriam enquanto andavam e demoravam-se, incertos,
em esquinas e arcos. Continuei andando, mal sabendo para onde me dirigia
ou o que estava fazendo ali, mas me sentindo impelido, como às vezes nos
sentimos, a explorar mais a fundo, com uma ideia vaga de alcançar algum
objetivo desconhecido. Então prossegui pela rua, notando o pouco tráfego
na leiteria, e pensando sobre a mistura contraditória de cachimbos baratos,
tabaco negro, doces, jornais e músicas divertidas que aqui e ali
acotovelavam-se na pequena área de uma única janela. Acho que foi um
calafrio que senti repentinamente que me indicou que eu havia encontrado o
que queria. Olhei para cima, para além da calçada, e parei em frente a uma
loja velha, cujo letreiro já desvanecia, onde tijolos vermelhos de duzentos
anos atrás desbotaram-se e enegreceram, e cujas janelas haviam juntado a
sujeira de inúmeros invernos. Vi o que precisava, mas acredito que cinco
minutos se passaram até que eu me controlasse e conseguisse entrar e pedir,
com uma voz calma e o semblante tranquilo. Acho que mesmo assim havia
um tremor em minhas palavras, pois o velho senhor que apareceu dos
fundos da loja e remexeu vagarosamente sua mercadoria me olhou de um
jeito estranho enquanto amarrava o pacote. Paguei o valor exigido e fiquei
parado no balcão, relutando em pegar o pacote e ir embora. Perguntei sobre
os negócios e soube que o comércio andava mal e que os lucros haviam
caído bastante. Mas, na verdade, a rua não era mais como fora antes do
tráfego ser desviado, o que ocorrera quarenta anos atrás, “pouco antes do
meu pai falecer”, ele disse. Enfim me retirei e andei a passos rápidos. Era
de fato uma rua triste, e me senti feliz de voltar ao tumulto e ao barulho.
Você gostaria de ver o que adquiri?
Austin não disse nada, mas assentiu com a cabeça levemente. Ele ainda
estava pálido e abatido. Villiers abriu uma gaveta da mesinha de bambu e
mostrou a Austin um longo rolo de corda, rígido e novo. Em uma das
pontas, havia um nó corredio.
Austin cerrou os dentes com força e encarou Villiers, ficando mais e mais
pálido.
— Não. Darei a ela uma escolha, e deixarei Helen Vaughan sozinha com
esta corda em um quarto trancado por quinze minutos. Se, quando
entrarmos, ela não tiver feito nada, chamarei o policial mais próximo. Isso é
tudo.
— Preciso ir agora. Não posso permanecer aqui. Não consigo suportar tudo
isso. Boa noite.
— Boa noite, Austin.
— E ele disse o que levou Meyrick no auge de vida? Não foi uma febre?
— Não, não foi uma febre. De acordo com o médico, foi um colapso total
de todo o sistema, provavelmente causado por algum choque severo. Mas
ele afirma que o paciente se recusava a lhe revelar detalhes, e que, portanto,
ficou sem as devidas condições para tratar do caso.
“Como era apropriado, fiz tudo o que meu conhecimento indicava, para
garantir que não sofria de qualquer ilusão. A princípio, estava espantado,
mal conseguia pensar, mas, em um minuto, eu tinha certeza de que meu
pulso estava estável e normal, e que eu estava em posse de meus sentidos
reais e verdadeiros. Silenciosamente, fixei os olhos no que estava à minha
frente.
“Sei que o corpo pode ser separado em seus elementos por agentes
externos, mas eu teria me recusado a acreditar no que vi. Porque lá estava
alguma força interna, sobre a qual eu nada sabia, que causava a dissolução e
a mudança.
“Ali também estava todo o trabalho a partir do qual o homem fora feito,
repetindo-se diante de mim. Vi a forma oscilar de um gênero a outro,
dividindo-se e, então, unindo-se mais uma vez. Então vi o corpo regredir à
monstruosidade enquanto ascendia, e aquilo que estava no topo cair para as
profundezas, até o próprio abismo de todo ser. O princípio da vida, que
forma organismos, sempre permanecia, enquanto a forma externa se
modificava.
“Observei, e, por fim, não vi nada além de uma substância parecida com
geleia. Então a escada foi levantada novamente [aqui o manuscrito é
ilegível] … por um momento, vi uma Forma, delineada na penumbra diante
de mim, que não descreverei em mais detalhes. Mas o símbolo dessa forma
pode ser visto em esculturas antigas e em pinturas que sobreviveram sob a
lava, abomináveis demais para se falar sobre elas… Quando a forma
horrível e inominável, nem homem nem besta, metamorfoseou-se para uma
forma humana, a morte finalmente chegou.
“Eu, que testemunhei tudo isso, não sem grande horror e repugnância na
alma, escrevo aqui meu nome, declarando que as coisas que escrevi neste
papel são verdadeiras.
Escrevo esta carta para você logo após retornar à cidade. Estive no campo
pelos últimos dias, talvez você seja capaz de adivinhar onde. Enquanto o
horror e o espanto de Londres estavam em seu ápice — já que a “Sra.
Beaumont”, como eu disse, era bem conhecida na sociedade — escrevi a
meu amigo, o Dr. Phillips, dando a ele um breve relato sobre o que havia
acontecido, e pedindo para que me contasse o nome do vilarejo onde os
eventos que ele me relatara haviam ocorrido. Assim ele fez, sem hesitar,
pois o pai e a mãe de Rachel já morreram, e o restante da família se mudou
para a casa de um parente no Estado de Washington, seis meses antes. Os
pais, ele disse, sem dúvida pereceram devido ao pesar e ao horror causados
pela terrível morte da filha, e pelos eventos que ocorreram antes da morte.
Na noite do dia em que recebi a carta de Phillips, eu estava em Caermaen,
parado embaixo das ruínas do muro romano, branco dos invernos de mil e
setecentos anos. Olhei para a campina onde outrora se erguera o templo do
“Deus das Profundezas” e vi uma casa cintilando sob a luz do sol. Era a
casa onde Helen vivera. Permaneci em Caermaen por muitos dias. As
pessoas do lugar, descobri, sabiam pouco e faziam pouca questão de dar
palpites. Aqueles com quem conversei sobre o assunto pareciam surpresos
que um dono de antiquário (como aleguei ser) se importasse com uma
tragédia de um vilarejo, sobre a qual contaram uma versão bastante banal.
Mas, como você pode imaginar, não falei nada do que sabia. Passei a maior
parte do tempo na grande floresta que se ergue acima do vilarejo, sobe pela
colina e desce pelo rio que corta o vale, que é longo e adorável, Raymond,
como aquele que observamos em certa noite de verão, andando para cima e
para baixo na frente de sua casa. Por horas, vaguei pelo labirinto que é essa
floresta, às vezes virando à direita, às vezes à esquerda, andando devagar
pelos longos caminhos de vegetação rasteira, frescos e umbrosos, mesmo
sob a luz do sol do meio-dia, parando debaixo de grandes carvalhos.
Deitado na relva de uma clareira, o leve perfume doce de rosas selvagens
veio até mim, carregado pelo vento, misturado com o perfume pesado do
sabugueiro, cujo odor misturado é como o da sala dos mortos, um vapor de
incenso e putrefação. Parei no limite da floresta, observando toda a pompa e
o cortejo das dedaleiras elevando-se em meio às samambaias e brilhando
vermelhas sob o sol, e além delas, em densos matagais de vegetação
rasteira, onde nascentes brotam da rocha e nutrem as ervas daninhas da
água, úmidas e más. Mas em todas as minhas andanças, evitei uma parte da
floresta. Foi apenas ontem que subi até o topo da colina e parei na antiga
estrada romana que se destaca na parte mais elevada do bosque. Elas
andaram aqui, Helen e Rachel, ao longo desse caminho silencioso, na
estrada de relva verde, presa em ambos os lados por altas margens de terra
vermelha e altas sebes de faia brilhante, e eu segui seus passos, olhando, de
vez em quando, através de bifurcações nos galhos, e vendo, de um lado, o
movimento da floresta estendendo-se para a direita e esquerda, afundando-
se no amplo nível, e além, no mar amarelo e na terra sobre o mar. Do outro
lado, ficava o vale e o rio, e colina após colina, como onda após onda, e
bosque e campina, e os campos de trigo, bem como casa brancas reluzentes,
uma enorme parede de montanhas e longínquos picos azuis ao norte. Então,
enfim, cheguei ao local. A trilha subiu um declive suave e se alargou para
um espaço aberto, com uma parede de vegetação ao seu redor, e depois,
estreitando-se novamente, perdia-se na distância e na fraca névoa azul do
calor do verão. E nessa agradável clareira veranil, Rachel adentrou como
uma menina, mas deixou-a como, quem poderá dizer? Não permaneci por
muito tempo ali.
DEVOMNODENT—I—
FLA—V—IVSSENILISPOSSV-
—IT—
PROPTERNVP—TIA
—QUA—SVIDITSVBVMB—RA—
… E agora, meu querido Clarke, quanto ao que você me disse sobre Helen
Vaughan, que você diz ter visto morrer sob circunstâncias de um horror
máximo e quase incrível: fiquei interessado em seu relato, mas grande parte
do que você me contou, quase tudo, eu já sabia. Posso compreender a
estranha semelhança que você observou entre o retrato e o rosto; você viu a
mãe de Helen. Você se lembra daquela noite silenciosa de verão tantos anos
atrás, quando conversei com você sobre o mundo além das sombras, e sobre
o deus Pã. Você se lembra de Mary. Ela era mãe de Helen Vaughan, que
nasceu nove meses após aquela noite.
Mary nunca recobrou voltou a si. Ela permaneceu deitada, como você viu, o
tempo todo na cama, e poucos dias depois do nascimento da criança, ela
faleceu. Imagino que, perto do fim, ela me reconheceu. Eu estava de pé ao
lado da cama, e seu antigo olhar surgiu por um segundo, mas então ela
estremeceu, gemeu e morreu. Foi um trabalho doentio o que fiz naquela
noite, quando você esteve presente. Eu quebrei a porta da casa da vida, sem
saber ou me importar com o que poderia ocorrer se eu fosse adiante e
entrasse. Lembro-me de você me dizendo naquela época, bastante
categórico e com razão, de certo modo, que eu havia arruinado a
consciência de um ser humano por um experimento tolo, baseando-me em
uma teoria absurda. Você fez bem em me culpar, mas minha teoria não era
totalmente absurda. O que eu disse que Mary veria, ela viu, mas me esqueci
que nenhum olho humano poderia contemplar tal visão sem consequências.
E me esqueci, como acabei de dizer, que quando as portas da casa da vida
são escancaradas, aquilo para o qual não temos nome pode entrar, e a carne
humana pode se tornar o véu de um horror que ninguém ousaria expressar.
Brinquei com energias que não compreendia, e você viu como tudo
terminou. Embora tenha sido uma morte horrível, Helen Vaughan fez bem
ao pôr a corda em seu pescoço e morrer. O rosto escurecido, a forma
hedionda sob a cama, metamorfoseando e derretendo diante de seus olhos,
de mulher para homem, de humano à besta, e de besta a algo pior, todos
esses horrores estranhos que você testemunhou, não me surpreendem muito.
As coisas que você diz que o médico chamado viu e ficou apavorado diante
delas, eu percebi muito tempo atrás. Soube o que fiz assim que a criança
nasceu, e quando ela mal tinha cinco anos, surpreendi-me ao vê-la, não uma
ou duas, mas muitas vezes, brincando com um coleguinha, e você pode
imaginar de que tipo estou falando. Era para mim uma constante, um horror
encarnado, e, depois de alguns anos, senti que não podia mais suportar,
então mandei Helen Vaughan embora. Agora você sabe o que assustou o
menino na floresta. O restante dessa história estranha, e tudo o mais que
você me conta, como seu amigo descobriu, consegui saber de tempos em
tempos, quase até o último capítulo. E agora Helen está com seus
companheiros…
NOTAS
1. N.T.: Em tradução literal: “E o diabo se fez carne. E se fez homem”.
Uma corrupção irônica de uma frase semelhante da fé cristã referente a
Jesus Cristo. ↩
2. N.T.: Citação de Gaio Júlio Solino (c. 400 d.C.). Em tradução livre: “O
universo é silencioso durante o dia e os terríveis pensamentos
permanecem secretos. Seu fogo arde à noite e o coro de Egipã soa por
todos os lados, declarando, e músicas podem ser ouvidas, o som de
flautas e o tilintar de címbalos na beira do mar”. (Best Horror Short
Stories , Andrew Barger. Bottletree Classics, 2016). ↩
3. N.T.: Referência aos famosos assassinatos de Jack, o Estripador, todos
ocorridos em Whitechapel, que permanecem sem solução. ↩
4. N.T.: Rotten Row, no Hyde Park, era um lugar onde os ricos da era
vitoriana passeavam. (Late Victorian Gothic Tales , Roger Luckhurst.
Oxford University Press, 2005). ↩
5. A Scotland Yard é a sede central ou quartel general da Polícia
Metropolitana de Londres. O nome deriva da sua antiga localização, na
Great Kew Scotland Yard , uma rua situada em Whitehall. ↩
ET DIABOLUS INCARNATUS
EST
O HORROR DECADENTISTA DE ARTHUR MACHEN
Essas linhas pertencem ao livro Far Off Things (1922), o primeiro de dois
volumes autobiográficos escritos por Arthur Machen. No início dessas
memórias, o autor relembra sua infância nos ermos rurais do País de Gales.
Essas paisagens de bosques profundos, riachos antigos e ruínas quase
ignotas causaram grande impacto no jovem Machen, e gestaram lembranças
que o acompanhariam ao longo de toda a sua vida. O fascínio pelo mistério
desses lugares deu corpo às imagens vívidas que, com prosa inigualável,
Machen imortalizou em sua ficção.
Uma vez em Londres, mais velho, Machen tentou diferentes ofícios sempre
conectados pela escrita. Estreou como escritor com a publicação do poema
Eleusinia (1881), trabalhou como jornalista e viveu em relativa pobreza,
morando em um quarto tão pequeno que comportava apenas uma cama e
uma escrivaninha, de modo que os pertences de Machen, como suas roupas,
ficavam em um baú no corredor, em frente ao cubículo. Ao longo da década
de 1880 e adiante, Machen também trabalhou como tradutor, vertendo para
o inglês as obras de Margurite de Navarre, Béroalde de Verylle e Giacomo
Casanova. Em 1887, Machen casou-se com Amelia Hogg, uma professora
de música que frequentava a sociedade boêmia de Londres. Nesses círculos,
Machen tornou-se amigo de A. E. Waite, escritor e ocultista que, anos mais
tarde, o introduziria na Ordem Hermética da Aurora Dourada, da qual
também fizeram parte o místico Aleister Crowley e os escritores William
Butler Yeats e Algernon Blackwood.
Machen, A; Worth, Aaron (ed.). The Great God Pan and other horror
stories. Oxford: Oxford University Press, 2018.
— Por Jove! Meu velho, que diabos você está fazendo aqui?
— Por Jove! Acho que aceitarei. Pensei em chamar meu procurador, mas
ouso dizer que ele pode esperar.
— Ah! Acredito que ele possa, sim. Beberemos um pouco daquele vinho
italiano, engarrafado naqueles frascos de óleo para salada, sabe do que
estou falando.
O par seguiu vagando sem rumo, sem saber bem para onde iam, virando de
rua em rua e discursando em tom piegas. Uma grande nuvem vinha
lentamente do sul, escurecendo o céu, e de repente começou a chover, a
princípio devagar, com grandes gotas pesadas, e então cada vez mais rápido
em uma chuva impiedosa e sibilante; as calhas inundaram, e as gotas
furiosas dançaram nas pedras do pavimento. Os dois Johnnies andaram o
mais rápido que puderam, assoviando e chamando por um cabriolé; pois
estavam se molhando muito.
Austin olhou para a rua; a chuva ainda caía torrencialmente; ele olhou para
a passagem e percebeu pela primeira vez que levava a uma grande casa, que
se erguia sombriamente contra o céu. Parecia toda escura e misteriosa,
exceto pela fenda de uma veneziana, da qual uma luz brilhou. Ele apontou-a
para Phillipps, que o encarou vagamente e então exclamou:
— Espere! Sei onde estamos agora. Quer dizer, não sei exatamente, mas
uma vez passei por aqui com Wylliams, e ele me disse que havia um clube
ou algo assim depois dessa passagem; não lembro o que ele disse
exatamente. Olá! Ora, lá vem o Wylliams. Wylliams, nos conte onde
estamos!
— Ora, Phillipps, o que você quer? Boa noite, Austin; vocês parecem um
tanto molhados, os dois.
— Não, não, de forma alguma. O sr. D’Aubigny irá, espero, viver por
muitos anos; ele desapareceu, meramente desapareceu. Boa noite; cá está
um cabriolé que servirá a vocês.
— Meus queridos, do que vocês estão falando? Nunca ouvi tal baboseira na
minha vida. Como você diz, Phillipps, certa vez apontei-lhe uma casa que
dizem ser um clube, enquanto andávamos pelo Soho; mas era um clube de
apostas rasteiro, frequentado por garçons alemães; Sinto dizer que o Chianti
do Azario’s foi forte demais para vocês. Entretanto, tentarei convencê-los
de que estão errados.
Wylliams imediatamente convocou seu funcionário, que jurou que ele e seu
mestre estiveram no Cairo durante todo o mês de agosto, e se ofereceu para
apresentar as contas do hotel. Phillipps balançou a cabeça e então se
afastou. O próximo passo era tentar encontrar o arco onde haviam se
abrigado, e depois de bastante trabalho, conseguiram. Bateram à porta da
sombria casa, assoviando como Wylliams fizera. Foram recebidos por um
mecânico respeitável, vestindo um avental branco, verdadeiramente
surpreso pelo assovio; na verdade, ele estava inclinado a suspeitar da
influência de certa embriaguez. O lugar era uma fábrica de mesas de bilhar,
e assim o fora (souberam pela vizinhança) por muitos anos. Os cômodos
certamente um dia foram largos e magníficos, mas a maioria deles fora
dividido em três ou quatro oficinas com partições de madeira.
Phillipps suspirou. Não havia mais o que pudesse fazer por seu amigo, mas
tanto ele como Austin permaneceram não convencidos. Em justiça ao sr.
Wylliams, deve ser declarado que Lorde Henry Harcourt garantiu a
Phillipps que vira Wylliams no Cairo em meados de agosto — ele pensava,
mas não tinha certeza, que no dia 16, inclusive — e também que os recentes
desaparecimentos de alguns homens bem conhecidos pela cidade são
passíveis de explicações que excluiriam a agência do Clube Perdido.
Houve uma espécie de reclamação confusa em agosto passado sobre o mau
comportamento das crianças em certos balneários galeses. É difícil rastrear
esses relatos e rumores vagos até suas fontes e origens; ninguém tem
melhor razão para saber disso do que eu. Não preciso ir além das antigas
bases aqui, mas temo que muitas pessoas desejam, a esta altura, nunca ter
ouvido meu nome; mais uma vez, um número considerável de pessoas
estimáveis está preocupando-se de maneira bastante sombria, do meu ponto
de vista, com meu eterno bem-estar. Elas me escrevem cartas, algumas em
amável protesto, implorando-me que não prive as pobres almas de coração
doente do pouco conforto que possuem em meio a suas tristezas. Outros me
enviam panfletos e folhetos rosa com alusões à “filha de um conhecido
cônego”; outros são violentos e anonimamente abusivos. E então, em
imprensa aberta, na justa forma de um livro, o sr. Begbie lidou comigo de
forma correta, porém dura, como não posso deixar de pensar.
Mesmo assim, foi tudo tão inocente, se não casual, de minha parte. Em uma
pobre linha de prosa, fiz apenas encenar meu indiferente sibilo no “Evening
News” porque queria fazê-lo, porque senti que a história d’“O arqueiro”
deveria ser contada. Um inventor de fantasias é uma criatura miserável, só
Deus sabe, quando o mundo todo está em guerra; mas pensei que nenhum
dano seria feito, de qualquer forma, se eu testemunhasse, à maneira da arte
fantástica, minha crença na glória heroica da legião inglesa que voltou de
Mons lutando e triunfando.
Assim, ouso dizer, será com este estranho caso das crianças problemáticas
da cidade litorânea galesa, ou melhor, de um grupo de pequenas cidades e
vilas situadas dentro de uma certa “seção” ou zona, que não indicarei com
mais precisão do que posso, uma vez que amo aquele país, e com minhas
experiências recentes com “O arqueiro” que aprendi que nenhuma história é
boba demais para ser acreditada. E, claro, para começo de conversa,
ninguém sabia como essa fofoca estranha e maliciosa se originara. Até onde
eu saiba, assemelhava-se mais ao mito russo do que à história d’“Os anjos
de Mons”. Ou seja, o rumor precedeu a impressão; a coisa era falada aqui e
ali e passada de carta em carta muito antes que os jornais ficassem cientes
de sua existência. E — aqui muito se assemelha ao caso de Mons —
Londres e Manchester, Leeds e Birmingham murmuravam coisas vagas e
desagradáveis, enquanto os pequenos vilarejos em questão se aqueciam
inocentemente ao sol de uma prosperidade incomum.
Eu sentia que não podia ser isso, pois as pedras solenes de Tremaen teriam
petrificado o mais animado dos palhaços. Ele teria congelado em um
penhasco na praia, e as gaivotas carregariam sua canção e a tornariam um
lamento pelas solitárias cavernas estrondosas de frente para Avalon. Eddis
disse que não tinha ouvido nada sobre artistas; mas compreendia que, desde
a guerra, as crianças de todo o distrito haviam ficado totalmente fora de
controle.
— Boca suja, sabe — disse ele. — E todo esse tipo de coisa, piores do que
as crianças das áreas pobres de Londres. Ninguém quer que sua esposa ou
seus filhos ouçam conversas de baixo calão em qualquer hora que seja,
menos ainda durante as férias. E estão dizendo que Castell Coch anda
impossível; nenhuma mulher decente seria vista lá!
Eu disse:
Se há alguma chave para compreender esse estranho assunto, acho que ela
pode ser encontrada em uma conversa que tive há pouco tempo com um
amigo meu chamado Morgan. Ele é galês e um sonhador, e algumas pessoas
dizem que ele é como uma criança que cresceu mas que não o fez como os
outros filhos dos homens. Embora eu não soubesse, enquanto eu estava em
Manavon, ele passava suas férias em Castell Coch. Ele era um homem
solitário e gostava de lugares solitários, e quando nos encontramos no
outono, ele me contou como, dia após dia, ele carregava pão, queijo e
cerveja em uma cesta até um promontório remoto naquela costa, conhecido
como o Velho Acampamento. Lá, muito acima das águas, estão solenes
paredes antigas, cobertas de turfa; circunvalações arredondadas, suavizadas
com o passar de muitos milhares de anos. Em uma das extremidades deste
lugar tão antigo há um túmulo, uma torre de observação, talvez, e embaixo
dele se esconde uma vala verde enganadora que parece serpentear até o
coração do acampamento, mas na realidade desce para uma rocha íngreme e
um precipício sobre as águas.
A esse lugar Morgan ia diariamente, como ele disse, para sonhar com
Avalon, para se purificar da corrupção fumegante das ruas.
E assim, como me disse, foi com um horror singular que uma tarde,
enquanto ele cochilava e sonhava e abria os olhos de vez em quando para
assistir ao milagre e à magia do mar, enquanto ouvia os murmúrios das
ondas, sua meditação foi interrompida por uma explosão repentina de gritos
horríveis e estridentes — e gritos de crianças também, mas crianças do tipo
mais rasteiro. Morgan disse que o próprio tom de voz deles o fizeram
estremecer — “Eles eram para os ouvidos o que o lodo é para o toque” — e,
então, as palavras: toda a baixeza, toda abominação imunda da fala;
blasfêmias que nos atingem como golpes sob aquele céu, que afundaram
nas profundezas puras e brilhantes, contaminando-os! Ele ficou perplexo.
Espiou por cima da parede verde do forte e lá na vala viu um enxame de
crianças fedorentas, criaturinhas horríveis e atrofiadas, com rostos de
velhos, inchados, olhinhos encovados e maliciosos. Foi pior do que
descobrir um ninho de cobras ou vermes.
— Leia sobre a Bélgica — disse Morgan. — E pense que eles não poderiam
ter mais do que cinco ou seis anos.
Não havia infâmia, ele disse, que eles não tivessem perpetrado. Não se
privaram de nenhum dos horrores da crueldade.
Morgan disse que os observara e que não conseguira emitir uma palavra que
fosse. Era como se uma mão tivesse tapado sua boca. Mas, enfim, ele
encontrou sua voz e gritou com eles, e eles explodiram em uma gargalhada
obscena e gritaram de volta para ele, e se espalharam para fora da vista. Ele
não conseguiu localizá-los; acredita que tenham se escondido nas
samambaias profundas atrás do Velho Acampamento.
Nossos agradecimentos a:
Ada Chivers
Adelle Voller
Adolfo Colen
Adrianna Alberti
Adrielli de Almeida
Ágata Rodrigues
Alexandre Oliveira
Alexandre Savaris
Alexandro Figueiredo Lopes
Alexia Rodriguez
Allie Kovacs
Allison Serafim
Amanda Aguiar
Ana Marchioli
André Caniato
André LDC
Andrea F Felippi
Andressa Ledesma
Angelica Vanci da Silva
Angie Marinho
Anne Liberton
Anouk
Anya Tristão
Ariane Thiele
Beatriz D’Oliveira
Bruna Castro
Bruna Traversaro
Bruno Godoi
Bruno Moulin
Bruno Rauber
Bruno Rios
Caleb Henrique
Carol DerMond
Cassia Pergentino
Cassia Silva
Catarina S. Wilhelms
Cecília Rauscher
Clara Vaitiekunas
Cláudia Trigo
Claudio Amado
Conrado De Biasi
Coral Daia
Cristiane Tiemi
Cristiano Vaniel
Daniel Cruz
Danielle Moreira
Danilo Kapp
Danilo Palma
David Sant’Ana
Debora Mille
Déborah Araújo
Déborah Colares
Deborah Xavier
Delson Neto
Denys Schmitt
Dessa Morango
Diana Dall’Ovo
Diego Toledo
Dinastia Geek
Dinei J. R. Nascimento
Diogo Gomes
Diogo Oliveira
Douglas Brandão
Edenilson Junior
Edinei Chagas
Eduardo Dias
Eduardo Menescal
Eduardo Menescal
Elenilson Filho
Ellias Matheus
Emma Pereira
Erica Bombardi
Erwinn Lincoln
Esdra Esdra
F.T. Rossi
Fábio Martins
Fábio Pedreira
Fabio Pessoa
Fabíola C A C de Queiroz
Felipe Aragão
Fernanda Alves
Fernanda Godoy
Fernando Junior
Fernando Lopes
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Gabriel Monezi
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Gabriel Santos
Gabriel Uchôa
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Gabriela Colicigno
Gabrielly Courty
Giordano Lima
Giorgia Chiarella
Giovanna Romiti
Giulia Martins
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Guilherme Festozo
Guilherme L. Carneiro
Gustavo Tenório
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Hella
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Heveline Arcanjo
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Ingrid Rodrigues
Isabela Graziano
Isabella Czamanski
Jacqueline Freitas
Jadeh Araújo
Jan Santos
Jana Bianchi
Jaqueline Rezende
Jessica Ferreira
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João Costa
John Braga
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Thais S. Souza
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