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O que faz os ricos ricos?

Rubens R. Sawaya

S DISCUSSÕES sobre distribuição de de renda per capita são importantes para


A renda são sempre bem-vindas, dada as famílias. Apesar de considerar dividen-
a radicalidade da situação no Brasil. Em dos (participação nos lucros das empre-
qualquer aspecto que se tome, a distân- sas), juros, aluguéis e rendas transferidas
cia entre ricos e pobres chega a ser uma pelo governo, percebe que a remunera-
questão quase imoral. Torna difícil a cons- ção central, por esses dados, é basicamente
trução de uma sociedade verdadeiramente aquela resultante do trabalho, tanto para
democrática, na qual os cidadãos devem os ricos como para os não-ricos. Como
estar em uma situação mínima de igualda- aponta, a renda do trabalho constitui 75%
de econômica para conseguir fazer valer da renda total considerada recebida pela
seus pontos de vista. Essa disparidade re- população classificada rica, e 79% do rece-
sulta também em problemas econômicos, bido pelos não-ricos, o que o leva a con-
debate apontado pelo autor ao recuperar cluir que as outras formas de remunera-
em parte Celso Furtado, uma vez que a ção são pouco importantes na sociedade
péssima distribuição de renda é um en- brasileira. Ou seja, conclui que as famílias
trave à criação de um modelo de cresci- ricas não vivem de dividendos, juros e alu-
mento endógeno, de um fluxo de pro- guéis. São ricos porque recebem muito
dução e consumo autônomo interno ao pelo trabalho.
país. A partir disso, realiza um significativo
Ciente dessas questões, o autor pene- esforço estatístico para analisar algumas
tra nesse debate sobre a desigualdade com hipóteses de distribuição dessas diversas
um enfoque inovador. Em vez de traba- fontes de renda entre esses grupos com o
lhar com os pobres, busca captar e tentar objetivo de verificar como seria possível
demonstrar quem são os ricos no Brasil, eliminar o problema da pobreza. De-
e quais os motivos que os fazem ricos. monstra que não seria possível melhorar
Realiza essa tarefa definindo o grupo de a situação a partir de uma distribuição
ricos relativamente aos pobres a partir do mais igualitária dos juros, dividendos, alu-
que os especialistas chamam “linha de po- guéis, e mesmo dos benefícios criados pe-
breza”. Constrói assim uma linha relati- lo Estado, dada a pequena importância
va de riqueza – a renda mínima per capita dessas fontes para cada grupo. Propõe,
para uma família ser considerada rica –, portanto, que a única solução para aca-
com base no volume de recursos que se- bar com a pobreza é a transferência de
riam necessários para retirar os pobres da recursos do trabalho das famílias ricas para
situação em que se encontram por trans- as pobres, retirando-as da linha de po-
ferência de renda dos estratos mais ricos. breza. O único problema que encontra é
Definido o grupo de ricos, utilizan- que os ricos teriam que diminuir de ma-
do-se dos dados de renda recebida pelas neira radical sua renda para tal.
famílias levantada pela Pesquisa Nacional Essa conclusão é resultado do fato de
por Amostras de Domicílios (PNAD) do trabalhar apenas com uma parte da Ren-
IBGE, o autor procura separar que tipos da Nacional em sua análise, basicamente

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aquela recebida pelo trabalho. Não leva semprego. Apesar de estruturas familia-
em conta o aspecto macroeconômico da res diferentes entre os estratos da popu-
distribuição. Parte substancial da Renda lação, afirma que “mesmo se os não-ri-
Nacional está na verdade em lucros não cos tivessem a mesma composição e orga-
distribuídos, resultado da produção ou nização familiar dos ricos, as desigualda-
de aplicações financeiras de empresas e des entre os estratos persistiriam”.
bancos que não acabam nas mãos das A separação, portanto, entre ricos e não-
pessoas como indivíduos, portanto não é ricos está especificamente na diferença de
captada por seus dados. Segundo dados remunerações pelo trabalho. Analisa en-
do IBGE, estima-se que a participação do tão a hipótese de se os ricos ganham mais
trabalho na Renda Nacional seja inferior por trabalharem mais ou por serem mais
a 40%. Por exemplo, tomando apenas os produtivos que os não-ricos. Conclui que
juros, estudos demonstram como as apli- esses também não são motivos para ta-
cações no mercado financeiro (em gran- manha diferença. Os ricos simplesmente
de medida em títulos públicos) engorda- ganham muito mais por hora trabalhada.
vam os lucros das empresas e bancos nos Pergunta-se, então, se isso não se deve
anos 1980 (Belluzzo & Almeida, 2002) às diferenças nos níveis educacionais.
e, nos anos 90, dos bancos (Jacob, 2003). Embora concorde que a educação é rele-
Por conta disso, chega à conclusão de vante para explicar diferenças nas remu-
que os ricos são ricos porque abocanham nerações, uma vez que o retorno em ren-
uma parte significativa da renda oriunda da a cada ano adicional de estudo é cres-
do trabalho, tomando essa como a verda- cente, conclui que “maiores credenciais
deira fonte de desigualdade. Decide as- educacionais não são suficientes para ex-
sim aprofundar-se em sua pesquisa entran- plicar por que algumas famílias são ricas e
do em aspectos ainda mais interessantes. outras não [...] mesmo que todos os traba-
Sua pergunta central passa a ser: por que lhadores do País tivessem credenciais de
os ricos ganham tanto por seu trabalho e nível educacional superior completo, os
os não-ricos, tão pouco? O que faz que ricos continuariam sendo uma fração da
os ricos ocupem as melhores posições no população”. A mesma conclusão é alcan-
mercado de trabalho? Procura analisar as çada na análise dos outros atributos como
tradicionais justificativas para essa ques- raça, cor ou mesmo região do país.
tão: perfil demográfico, formação esco- Assim, os diferenciais de remuneração
lar, produtividade (horas trabalhadas), não se justificam pelas hipóteses tradicio-
raça, cor e aspectos regionais. Assim como nais. Infere, pois, que essas diferenças po-
fez com as fontes de renda, calcula o im- dem resultar de outros atributos dos ri-
pacto na distribuição se cada uma dessas cos, como o que denomina “condição de
fontes de desigualdade fosse eliminada. elite” que se materializa em redes de rela-
Em primeiro lugar, descarta os fatores cionamento pessoal, capital cultural, ele-
demográficos como fundamento das de- mentos de difícil mensuração que, segun-
sigualdades. Analisa o tamanho das famí- do o autor, necessitariam de estudos mais
lias e as taxas de ocupação entre ricos e profundos. Os ricos são ricos porque per-
não-ricos. Conclui que os pobres não es- tencem a uma elite que se auto-reproduz
tão nessa condição em razão de terem como tal, abocanhando os melhores em-
muitos filhos ou sofrerem mais com o de- pregos e posições no trabalho.

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Se os resultados das análises são extre- Uma das explicações para essas dife-
mamente interessantes, são também um renças de remuneração talvez esteja na
tanto quanto perigosos. questão do controle, uma das formas de
Por exemplo, conduzem o autor a afir- poder. Os executivos têm o poder de con-
mar que as trole sobre as empresas, o que significa
políticas convencionais de combate a de- que definem em parte sua própria remu-
sigualdade, como as de redução da dis- neração, enquanto os outros trabalhado-
criminação ou massificação da educação, res não o têm. Historicamente, esses úl-
mesmo as que sejam capazes de expan- timos apenas conquistaram esse poder
dir substancialmente o acesso ao ensino pelo fortalecimento dos sindicatos que
superior de qualidade intermediária, pro- pressionaram as empresas a elevar os sa-
vavelmente não seriam suficientes para lários. Assim, quando se fala em salários
abrir a toda a população a oportunidade mais altos de trabalhadores não ricos está-
de ascensão ao estrato dos ricos. se baixando os lucros das empresas, como
Dessa forma, ao tomar a questão da já apontava Ricardo. Por isso, hoje, na
educação por seu aspecto apenas micro- Europa, a grande pressão das empresas é
econômico (remuneração), deixa de lado justamente pela redução da remuneração
sua importância crucial como criadora de dos trabalhadores, não para elevar os salá-
cidadãos que podem atuar politicamente rios dos administradores, mas para au-
diante do fato de que o problema está na mentar os lucros (que serão apenas distri-
“condição de elite”. buídos em pequeno porcentual) e a com-
No mesmo sentido, sua defesa incon- petitividade. Mesmo que os trabalhado-
teste de que a única solução para resolver res ricos no Brasil tenham salários muito
o problema seria transferir riqueza dos elevados (apesar de estarem próximos da
estratos mais ricos aos pobres, apesar de média mundial – pesquisa da Consultoria
extremamente instigante, acaba por des- Towers Perrin (Valor, 16.1.2006, p.D6) –,
locar o conflito tradicional entre capital e o que ocorre aqui é que os trabalhadores
trabalho para o âmbito apenas das rela- nos cargos mais baixos ganham extrema-
ções de trabalho, entre a elite de traba- mente mal.
lhadores bem remunerados e a massa de Políticas sociais públicas e as lutas sin-
trabalhadores mal remunerados. O princi- dicais são, no capitalismo, as chaves para
pal perigo em deixar os lucros do capital diminuição dessa diferença, como ocor-
fora da questão distributiva e levar em rido na Europa com a implantação de um
conta apenas a renda do trabalho é elimi- Estado de Bem-Estar. São políticas que
nar o verdadeiro conflito, preocupação taxam tanto os ricos como os lucros das
central de Smith, Ricardo, Marx e Weber, empresas e bancos, resultado de lutas so-
para citar apenas alguns autores centrais ciais históricas (Przeworski, 1989). Como
abordados em seu capítulo terceiro. O lu- Medeiros aponta, é clara e urgente a ne-
cro não é a remuneração do capitalista cessidade de se alterar esse padrão de dis-
como indivíduo, fato claro em um capita- tribuição. Mas isso deve ocorrer princi-
lismo de grandes empresas. Dessa forma, palmente do ponto de vista macroeco-
acaba por restringir o conflito a apenas nômico, pela elevação da participação dos
uma parte da renda nacional a ser dispu- não-ricos na Renda Nacional. É funda-
tada entre os trabalhadores. mental não perder o alvo.

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Nada pode justificar tamanha diferen- [em todas as arenas da vida social] está
ça entre as remunerações daqueles que ausente, pois os poderosos terão sempre
estão próximos ao controle e dos traba- a tendência para triunfar em um sistema
lhadores controlados. Como demonstra desigual” (Wallerstein, 2004, p.174).
o autor, essa diferença é a prova visível da
enorme injustiça social no Brasil. Mas de-
ve-se ressaltar a contradição ai envolvida:
microeconomicamente isso resulta em lu-
cros mais elevados às empresas para as quais
os salários são apenas custos e, macroeco-
nomicamente, salários baixos garantem a
competitividade internacional do país.
Um dos elementos mais importantes
do livro é colocar às claras que a distri-
buição de renda no Brasil parece ser mui-
to mais o resultado de um problema polí-
tico do que econômico, ao apontar para
a existência de uma classe de “elite” que
ocupa sempre os postos-chave. A partir
daí pode-se perguntar se essas elites não MEDEIROS, M. O que faz os ricos ricos :
ocupam essa posição por não existir dispu- o outro lado da desigualdade brasileira.
São Paulo: Hucitec, 2005.
ta política. Certamente essas elites são res-
ponsáveis pela manutenção dessa situa-
ção, não exatamente por ganharem mui- Referências bibliográficas
to, mas porque estão do lado da mesa que BELLUZZO, L. G.; ALMEIDA, J. G. Depois
tem por função defender determinados da queda: a economia brasileira da crise da dí-
interesses que perpetuam a desigualda- vida aos impasses do Real. Rio de Janeiro: Ci-
de. “É extremamente rara uma classe diri- vilização Brasileira, 2002.
gente pensar em si mesma em termos de JACOB, C. A. Crédito bancário no Brasil, uma
responsabilidade social. Na maioria das interpretação heterodoxa. Campinas, 2003. Tese
vezes, as oligarquias tradicionais atribuem- (Doutorado) – Universidade Estadual de Cam-
pinas.
se [...] a manutenção de privilégios e cliente-
PRZEWORSKI, A. Capitalismo e social-demo-
las num dado território” (Tourlaine, 2005).
cracia. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.
Será que existe alguma outra forma de
TOURLAINE, A. O Brasil em desenvolvimen-
modificar politicamente os rumos de uma to. In: LICHA, A.; PINTO JUNIOR, H. Q.;
sociedade que não seja a partir de uma SABÓIA, J. (Org.) O Brasil em desen-
igualdade básica que permita ao grupo volvimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasi-
social menos favorecido atuar politica- leira, 2005.
mente para interferir nos rumos da socie- WALLERSTEIN, I. O declínio do poder ame-
dade? É possível fazer isso sem as igual- ricano. São Paulo: Contraponto, 2004.
dades básicas defendidas até por Amartya
Sen? Será que a educação não deve ocu- Rubens R. Sawaya é doutor em Ciência Polí-
par uma posição central por esse aspecto? tica, mestre em Economia Política e professor
“A liberdade não existe onde a igualdade do Departamento de Economia da PUC-SP.

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