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ENTREVISTA (/ENTREVISTA/)

A história da desigualdade no Brasil, segundo


este autor
José Roberto Castro 21 de jul de 2019 (atualizado 29/07/2019 às 15h46)

Na mais completa pesquisa sobre distribuição de renda no país, pesquisador Pedro Ferreira
de Souza analisa nove décadas de concentração entre os muito ricos

FOTO: CÍCERO R. C. OMENA/FLICKR/CREATIVE COMMONS


NEXOEDU (/EDU)

TEMAS

ECONOMIA
(/TEMA/ECONOMIA)

BRASIL
(/TEMA/BRASIL)

 DESIGUALDADE SOCIAL É FATOR QUE INFLUENCIA PERCEPÇÃO DE FELICIDADE

O Brasil é um país extremamente desigual, mas nunca foi muito


melhor ou pior do que é hoje. Esta é uma das conclusões de
“Uma história de desigualdade”, livro do pesquisador do Ipea
Pedro Ferreira de Souza que analisa a concentração de renda no
país entre 1926 e 2013.

A obra é a adaptação da tese de doutorado


(https://www.capes.gov.br/images/stories/download/pct/2017/
Teses-Premiadas/Sociologia-Pedro-Herculano-Guimaraes-
Ferreira-de-Souza.PDF) do pesquisador, premiada pela Capes
(Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior)
e pela Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Ciências Sociais) em 2017 e aclamada entre
estudiosos do tema. O sociólogo Celso Rocha de Barros, por
exemplo, chamou “Uma história de desigualdade” de “o melhor
trabalho
(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/06/livro-
sobre-desigualdade-e-o-melhor-em-anos-diz-celso-rocha-de-
barros.shtml) produzido pelas ciências sociais no país nos
últimos anos”.

Além de analisar a desigualdade no Brasil por um longo período,


a obra de Ferreira de Souza tem inovações. O pesquisador seguiu
uma tendência recente no mundo de utilizar dados do imposto
de renda para ajudar a medir a concentração de renda entre os
muito ricos - o principal foco do estudo.
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apenas neste mês.
pesquisas por amostragem como
a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), que têm
dificuldades de medir a renda no topo da pirâmide.

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“Quando uma pessoa entra em
uma casa e pergunta quanto a
outra ganha, não
necessariamente a resposta é a
constrangimento, por não saber.
Então a gente sempre soube que
essas pesquisas subestimam os
rendimentos dos mais ricos, têm
limitações nisso”
Pedro Ferreira de Souza
pesquisador do Ipea

Um levantamento de um período tão longo utilizando também


dados do imposto de renda é inédito no Brasil. E algumas das
conclusões a que o pesquisador chegou contrariam o que se
pensava antes. Para Ferreira de Souza, a concentração no Brasil
“não obedeceu modelos pré-definidos: não houve a história de
primeiro crescer pra depois distribuir, nem é verdade que a
desigualdade está sempre piorando”.

Uma das polêmicas do estudo é afirmar que a desigualdade não


caiu drasticamente durante o governo Lula, mesmo que os
programas de transferência de renda tenham tirado milhões da
pobreza.

A pesquisa também percebeu que o país vive ondas de


concentração de renda e que os dois piores períodos para a
desigualdade aconteceram nas duas ditaduras do período
analisado: o Estado Novo e a ditadura militar. Durante todo o
período, a renda do 1% mais rico variou em torno dos 25% do
total. Já o 0,1% mais rico ficou com algo próximo de 10% da
renda nacional.

ONDAS DE CONCENTRAÇÃO

Pedro Ferreira de Souza conversou com o Nexo sobre as


conclusões do livro, sobre a influência do Estado na
concentração de renda e sobre as possibilidades de o Brasil se
tornar um país menos desigual no futuro. A seguir, os principais
trechos.

Qual a origem histórica da desigualdade no Brasil?


PEDRO FERREIRA DE SOUZA

A gente aprende desde muito cedo que a colonização é o que


determina o que a gente é, que a gente está até hoje pagando o
preço de ser fundado na escravidão e na grande propriedade.
Você ainda tem 4passou
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a se perceber que nomês.
início do século 20 a
desigualdade da América Latina era muito parecida com a da
Europa e lá mudou muito rapidamente.

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Então a questão não é só entender os motivos pelos quais a
América Latina é assim, mas também os motivos pelos quais ela
continua assim, por que perdeu o bonde da história. Os
resultados da tese dão algum apoio a essa hipótese de que não
Claro que há ressalvas, estimativas de distribuição de renda são
complicadas em uma sociedade em que uma parte grande da
população é escrava. É uma desigualdade qualitativamente
diferente que não pode ser ignorada. Mas o que a gente consegue
ver é que mesmo países que naquele momento eram muito
desiguais e que pareciam que não mudariam, conseguiram ser
diferentes em 20 anos.

Então no Brasil podemos dizer que a desigualdade foi


estruturada muito alta a partir desse processo de colonização,
mas também o país perdeu diversas oportunidades de entrar
numa via diferente. A origem pode estar lá atrás, mas as saídas
que a gente não tomou foram muitas. A própria interrupção da
normalidade democrática contribuiu para isso.

Há alguma relação entre democracias e ditaduras


com a concentração de renda no topo?
PEDRO FERREIRA DE SOUZA Há uma relação. Acho que a história é
mais complexa do que simplesmente dizer que democracia é
menos desigualdade e ditadura é mais. Mas em última instância
tem sim uma relação.

No Brasil, e em outros países a gente também vê isso, a ditadura


foi bem mais eficiente em piorar a desigualdade do que a
democracia foi boa para reduzir. No geral, o aumento rápido em
períodos de ditadura é muito nítido. Na Alemanha nazista, no
Chile de Pinochet também houve aumento de concentração no
topo.

Mas há outros fatores. No caso do Estado Novo, acho que a


guerra foi muito importante para aquele aumento da
desigualdade. Na ditadura militar, o aumento é contínuo nos dez
primeiros anos, mas até ali houve um limite, o que mostra que
em nenhum lugar a desigualdade seguiu crescendo para sempre.
No governo Geisel começa inclusive uma preocupação com a
redução da desigualdade.

Nos anos 1980, com crise e inflação, a desigualdade inclusive


piora. Nos anos 90 tem uma queda provavelmente associada ao
controle da inflação. Mas nos últimos anos, olhando só a
concentração de renda no topo, na melhor das hipóteses ela está
estável.

É possível identificar como o Estado brasileiro


operou no aumento ou redução da desigualdade?
PEDRO FERREIRA DE SOUZA O Estado é um agente central da vida
em sociedade. Justamente dessa coincidência de flutuação da
desigualdade conforme eventos políticos marcantes veio o
empurrão para eu tentar interpretar os resultados sob essa luz.
Obviamente não dá para avaliar empiricamente tudo, mas dá
para tentar entender quais foram as políticas e quais os efeitos
plausíveis sobre a distribuição de renda.

São abundantes exemplos de políticas que obviamente


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favorecem mais alguns grupos do que outros. Nas duas
ditaduras, há exemplos caros. No Estado Novo, o fechamento
total do regime foi um fechamento à direita, anticomunista, e
com uma aliança muito forte com fatias do empresariado -
Já é assinante? Entre aqui (/conta/login/) . restrição de manifestação fora do aval do regime.
aliado a severa
A CLT foi promulgada sem os trabalhadores rurais, que eram a
maioria. E mesmo assim, com vários direitos trabalhistas já
efetivados, durante a guerra houve a suspensão desses direitos
em várias indústrias que seriam estratégicas.
No fundo, era um momento de complicação no comércio
mundial, não tinha como importar matéria prima, mas tinha
demanda até por manufaturados. A solução foi explorar ao
máximo a capacidade instalada, inclusive a força de trabalho,
com arrocho salarial.

Assim como em 1964 houve um movimento parecido.


Perseguição a todos os movimentos de oposição, uma
interferência profunda no mercado de trabalho determinando
regras de reajuste de salário mínimo e de acordos coletivos. A
política oficial, reconhecida só depois de forma meio
envergonhada, era dar reajustes bem abaixo até mesmo da
inflação.

E esse tipo de arranjo também é possível em determinados


momentos até em democracias. O Estado está o tempo todo
dando vantagens e desvantagens para diferentes grupos, não é à
toa que o Brasil dos últimos anos é uma grande fila de
empresários batendo na porta de gabinete.

Sua tese conclui que a desigualdade se mexeu muito


pouco nas últimas décadas. Mas falando sobre a
renda e sobre as condições de vida dos mais pobres,
houve alterações?
PEDRO FERREIRA DE SOUZA Houve mudanças, é importante separar
as coisas. O que entusiasmou todo mundo era que o Brasil estava
tendo um momento de crescimento, com redução da pobreza e
redução da desigualdade. Uma coisa inédita e que parecia
fantástica.

O que aconteceu foi que tivemos crescimento de renda, com


certeza a pobreza diminuiu bastante. Em medidas de
desigualdade a mudança até existe, mas ela é bem mais fraca do
que a gente imaginava. É uma mudança modesta.

Quem avançou muito foram os mais pobres e os muito ricos, o


topo e a base da pirâmide avançaram mais do que quem está no
meio. Então quem está no meio, no sentido estatístico mesmo do
termo, acabou sendo apertado. Viu os pobres chegarem mais
perto e os ricos ficarem um pouco mais longe. Embora, em
termos absolutos, em real no bolso, todo mundo tenha tido
algum ganho.

A pobreza diminuiu muito até o início da crise, com políticas


desde os anos 1990, nos anos 2000 mais ainda. É uma melhora
significativa, é muito importante. Na desigualdade é que a
mudança é menor do que se imaginava antes.

Há algum tipo de indício sobre os efeitos da crise de


2014 na desigualdade no Brasil?
PEDRO FERREIRA DE SOUZA A resposta definitiva vai demorar
alguns anos, até por um certo azar de não podermos comparar
períodos diferentes porque o IBGE fez uma mudança
metodológica nas pesquisas, já estava prevista há anos.
Interrompe a série, não se compara 2017 com 2011.
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Mesmo antes da crise, mesmo nos dados mais otimistas que não
contavam o Imposto de Renda, já havia uma queda mais lenta da
Já é assinante? Entre aqui (/conta/login/) . uma leve estacionada. Com a crise, o cenário mais
desigualdade,
provável é que houve algum aumento da desigualdade e
certamente um aumento da pobreza. Mas a desigualdade não
deve ser também explosivo porque todo mundo empobreceu
com essa crise, foi muito pesada. Catastrófica é a queda da renda
Para desigualdade, mais do que os efeitos do auge da crise, pode
ser importante ver como vai se dar a recuperação dessa crise.
Sobre isso a gente não sabe nada ainda e isso vai ditar as
perspectivas dos próximos anos, do que vai ser o novo normal.

Taxar mais os mais ricos seria o principal


mecanismo de diminuição da desigualdade? Quais
seriam os parâmetros e os mecanismos adequados?
PEDRO FERREIRA DE SOUZA A tributação é a bola da vez do debate.
O Brasil tem problema fiscal, precisa aumentar a arrecadação ou
cortar gastos, pode pelo menos distribuir de um jeito mais justo
o fardo da arrecadação. Para tentar diminuir a desigualdade, a
reforma tributária é a ferramenta mais óbvia - desde que a gente
entenda que não vai ser isso que vai resolver magicamente
nossos problemas de distribuição de renda.

Se fizer uma boa reforma - que aumente tributação de renda e


patrimônio, que desonere o consumo dos mais pobres e diminua
as distorções econômicas causadas pelos impostos indiretos -
provavelmente o país vai melhorar. Mas isso sozinho não
transforma o Brasil na França.

O governo federal poderia mexer no imposto de renda, que


funciona muito bem, mas os parâmetros podem ser muito
melhorados para fazer do imposto mais progressivo. Aumentar a
base do que é rendimento tributável é a primeira coisa. Hoje há
uma anomalia de que o tributável é a menor parte da renda dos
mais ricos - esses têm muito rendimento isento ou muito
rendimento que é tributado na fonte numa alíquota muito
menor, como investimentos financeiros. Os rendimentos de
capital são cada vez mais importantes para os mais ricos.

Resolvido isso, há espaço para mexer nas alíquotas. A primeira


aproximação seria manter as alíquotas atuais e criar novas acima
de 27,5%. Outros países parecidos com o Brasil têm alíquotas
entre 35% e 40%, não seria nada revolucionário chegar nisso.

Outra possibilidade seria mexer nas deduções, dedução ilimitada


com saúde, por exemplo. Há pessoas que só de dedução de plano
de saúde têm mais do que o Estado gasta com dez famílias. Os
estados podem mexer na tributação de heranças, os municípios
podem criar progressividade no IPTU, que alguns já tentaram e
a Justiça barrou. É politicamente difícil, mas poderia fazer o
imposto ser mais bem usado.

Arrecada-se menos com IPTU do que com IPVA no Brasil, tem o


ITR que praticamente não existe em um país que tem um
agronegócio extremamente produtivo. São debates às vezes
muito técnicos e politicamente difíceis.

O seu estudo afirma que ‘não há casos bem


conhecidos de países que tenham partido de um
grau tão alto de concentração de renda no topo
[caso do Brasil] e avançado de forma tranquila e
gradual até percentuais próximos aos de um país
europeu
Você típico
ainda tem ’. E, ainda,
4 conteúdos queneste
grátis ‘é razoável
mês. postular
que a democracia pode servir mais para conter um
aumento da nossa desigualdade do que para reduzi-
lo’. Por meio de que mecanismos então você acha
que pode ocorrer
Já é assinante? Entre aqui (/conta/login/) . uma mudança relevante nesse
quadro geral?
PEDRO FERREIRA DE SOUZA Não sei se sou pessimista ou cético
demais. Mas dado que a gente não quer que nenhuma catástrofe
aconteça, óbvio, é muito difícil um cenário em que a gente
tipo de coalizão política capaz de juntar interesses que são tão
diversos no eleitorado numa única direção de reduzir muito a
desigualdade. Isso parece muito pouco provável, considerando
os grupos mais organizados no Congresso, por exemplo. São
ligados a setores específicos da economia, corporações, grupos
de interesse que não têm nenhuma receptividade a uma pauta
dessas.

E isso é dificultado pela própria desigualdade. A força de


trabalho é tão heterogênea, é difícil achar bandeiras comuns
muito explícitas. Por isso, toda eleição é promessa de genérica,
não se vê alguém dizendo que vai defender um interesse
específico e quem vai perder é o outro grupo. E isso não é uma
exclusividade da democracia brasileira.

Aqui parece um jogo de soma zero. Se por um lado se cria um


programa que tem um bom resultado para uma clientela mais
pobre aqui, por outro um outro grupo que se sente prejudicado
vai lá e consegue reverter alguma regulação acolá. E assim vai
seguindo. Não vejo o Brasil saindo do patamar de hoje e
chegando daqui 30 anos num nível europeu, que também é
desigual. Não é realista, pelo menos nada sugere que isso vá
acontecer.

As grandes transformações que o mundo viu no século 20


aconteceram em cenários extremos, como nas duas guerras.
Essas mudanças não têm a ver só com a destruição que a guerra
causa, com a inflação e destruição de capital. Tem a ver também
com o fato de que os governos precisaram chamar boa parte da
população para ir para o campo de batalha e morrer, mobilizar.
E isso tem um preço, precisa de compensação.

Os próprios impostos sobre renda e herança nasceram


basicamente ligados a uma ideia de que todos tinham que
contribuir para o esforço de guerra. Em alguns países houve
limitação de quanto as empresas podiam lucrar durante a
guerra. E essa era também acabou, com a tecnologia uma guerra
não demanda de 10% a 15% da população.

VEJA TAMBÉM
EXPRESSO (/EXPRESSO/)
Como o brasileiro vê as
chances de ascensão social e a
desigualdade
(/expresso/2019/04/09/Como-
o-brasileiro-vê-as-chances-de-
ascensão-social-e-a-
desigualdade)

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