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WEBER BOURDIEU MARX

A compreensão As desigualdades A superação das


das estruturas, forças sociais, suas origens divisões de classes
e condicionamentos e principais questões pela revolução
da sociedade no mundo moderno socialista
página 42 página 46 página 52

SOCIOLOGIA
GRANDES TEMAS DO CONHECIMENTO

ESPECIAL

Por que existe a


desigualdade?
Como romper com os padrões que segregam jovens, negros,
pobres e mulheres numa sociedade em transformação

RAÇA-SOCIEDADE-JUVENTUDE-BRASIL-CLASSESECONÔMICAS-GÊNERO-SEXUALIDADE
3 Notas
Mythos Editora
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13 Marcadores Sociais
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Educação e a Diminuição da
19
Desigualdade no Brasil
Revisão:
Giacomo Leone Neto

Produtor Gráfico:

25 Classes Sociais
Ailton Alipio
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Redação:

31 Max Weber e a divisão da sociedade


Maysa Rodrigues

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Coordenação de Consignação:
Mônica A. Silva
36 A Teoria do Capital de Bourdieu
42 Karl Marx e as classes sociais
Números Atrasados:
Fabiana Dionísio

Circulação:

46 A igualdade entre os homens é possível?


Antonia B. Coelho

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49 Desigualdade de gênero
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55 Cinema e desigualdade
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2 SOCIOLOGIA ESPECIAL
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NOTAS

Dez anos de Bolsa Família


Programa federal faz evento para avaliação de seus resultados em seu
aniversário de dez anos.

O
papel do Bolsa Família no desenvolvimento
econômico e na redução das desigualdades
regionais foi o tema do 4º Ciclo de Debates
10 anos do Programa Bolsa Família, realizado em
Fortaleza (CE). Com investimento anual de R$ 24
bilhões, equivalentes a 0,46% do Produto Interno
Bruto (PIB) brasileiro, o programa tem como objetivo
movimentar a economia de muitos municípios, além
de aliviar a pobreza do ponto de vista monetário e
de impactar diretamente na saúde e na educação
das famílias beneficiárias.
Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(Ipea), o balanço do programa é favorável: cada real
investido se reverte em R$ 1,78 no PIB. Além disso, o
Bolsa Família também teria um efeito multiplicador de
R$ 2,40 sobre o consumo final das famílias atendidas.
Neste contexto, a secretária-adjunta de Renda de
Cidadania do Ministério do Desenvolvimento Social
e Combate à Fome (MDS), Letícia Bartholo, afirma
que, nos últimos dez anos, o programa foi o principal
instrumento para diminuir a desigualdade.
Nesse sentido, Paula Montagner, secretária adjunta
de Avaliação e Gestão da Informação do MDS, afirma
que os resultados obtidos pelo Bolsa Família estão
vinculados a uma lógica de intervenção articulada
em diversos setores, como saúde, educação,
transferência de renda, acesso a serviços, qualificação
profissional, incentivo ao empreendedorismo e
inclusão produtiva.

FONTE: Ministério do Desenvolvimento Social


http://www.mds.gov.br/saladeimprensa/
noticias/2013/novembro/bolsa-familia-contribui-
para-o-desenvolvimento-regional-e-a-reducao-das-
desigualdades

3 SOCIOLOGIA ESPECIAL
As 85 pessoas mais ricas do mundo ganham mais
que 3,5 bilhões de pessoas juntas
Organização humanitária Oxfam compara os extremos do desequilíbrio social
no XXI, evidenciando cenários profundos de desigualdade.

U
m informe da organização humanitária Oxfam Ricardo Fuentes-Nieva, chefe de pesquisa da Oxfam,
(Comitê de Oxford de Combate à Fome) afirma que, desde a década de 1970, a carga tributária
desenvolveu um comparação que revela a diminuiu para os ricos em 29 dos 30 países onde existem
profunda desigualdade de renda, em pleno século dados disponíveis. Esta é uma política impulsionada
XXI. Segundo os cálculos da organização, metade da pelo crescente poder dos mais ricos e pelo desequilíbrio
população mundial – cerca de 3,5 bilhões de pessoas – em favor das corporações na distribuição dos lucros
ganha, somadas as suas rendas, o mesmo que as 85 econômicos entre trabalhadores e o capital. Fuentes-Nieva
pessoas mais ricas do planeta. Para melhorar esse também argumenta que a América Latina, apesar de ter
cenário, a Oxfam sugere terminar com os paraísos fiscais, sido um dos lugares mais desiguais do planeta por muito
promover um sistema tributário progressista e salários. tempo, tem melhorado de situação a partir de programas
Além dessas informações alarmantes, o relatório sociais como o Bolsa Família no Brasil, o Trabalhar na
da Oxfam também fornece outros dados também Argentina, o Chile Solidário, e Oportunidades no México,
preocupantes. Assim, em 24 dos 26 países mundiais que colocaram o continente na vanguarda de políticas de
que informam estatísticas econômicas foi possível intervenção estatal para lidar com a desigualdade. Apesar
observar que nos últimos 30 anos a desigualdade de reconhecer que ainda há muito por fazer, Fuentes-
aumentou, ou seja, sete de cada dez pessoas do Nievas afirma que tendência é animadora na América
mundo vivem em um lugar mais desigual do que Latina e muito melhor do que em outras partes do mundo.
viviam há 30 anos. Para aprofundar essa situação,
foi possível observar que os ricos têm uma crescente FONTE: Carta Maior
http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/
influência nos processos políticos, o que coloca sérios
Pesquisa-da-Oxfam-expoe-desigualdade-escandalosa-no-
problemas de legitimidade. planeta/6/30075

4 SOCIOLOGIA ESPECIAL
NÚMEROS PARA PENSAR O BRASIL
Quando pensamos em termos de desigualdade, sempre temos em mente a noção de
pobreza e miséria em oposição à ostentação e a riqueza desmedidas. No entanto, a
desigualdade também se dá em outros números, como o fato de que 10% dos mais ricos
do Brasil concentrarem 42% de toda a riqueza produzida
no país, mas temos hoje o fato de que 53% da população
economicamente ativa sustenta 44% de pessoas que não
querem e não buscam emprego, e, dessas, muitas estão
matriculadas em programas nacionais de renda mínima
(como o Bolsa Família), sendo assim, podemos afirmar que,
no contexto atual, há mais zonas cinza do que a simplici-
dade confortadora da ideia de luta de classes clássica
pode nos fazer acreditar.

53%
da população economicamente ativa trabalha e paga os impostos
que sustentam o governo, os serviços (saúde, educação e etc),
programas governamentais e toda a máquina estatal.

PIB: R$ 4,84 trilhões 03%


da população economicamente ativa procura emprego e não consegue,
ficando desempregada, segundo os dados oficiais.

44%
IMPOSTOS EQUIVALEM
A 36% DO PIB:
R$ 1,7 TRILHÃO ›2013)

DEFICIT EM CONTA É DE:


R$ 157,55 BILHÕES ›2013) da população economicamente ativa não quer e não procura emprego,
muitos desses estão em programas como o Bolsa Família, pois, em
QUE DEVE SER FINANCIADO regiões que o salário é equivalente ao benefício, não há sentido em se
COM TÍTULOS DA DÍVIDA PÚBLICA buscar emprego. Outros que compõem esse conjunto de pessoas são
QUE RESULTARAM EM GASTOS DE jovens entre 14 e 18 anos, aposentados/pensionistas da Previdência
R$ 230 BILHÕES EM JUROS ›2013ª Social e quaisquer pessoas que tenham desistido de procurar emprego
por qualquer razão, mas, para o governo brasileiro, elas
não estão “desempregadas”.

Infografia e Texto: Alex Alprim

Fontes:
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
Ministério do Desenvolvimento Social
Banco Central do Brasil (Ministério da Fazenda)
Tesouro Nacional (Ministério da Fazenda)
Secretaria de Assuntos Econômicos da Presidência da República

5 SOCIOLOGIA ESPECIAL
Uma mulher no comando
A ministra Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha é a primeira mulher a
presidir o Superior Tribunal Militar.

A
ministra Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Luiz Inácio da Silva. Eleita no ano passado como vice-
Rocha tomou posse no dia 16 de junho na presidente da corte para o biênio 2013-2015, ela agora
presidência do Superior Tribunal Militar (STM). É a vai substituir o general de exército Raymundo Nonato
primeira vez em 206 anos de existência da corte que uma de Cerqueira Filho, que se aposentou. A vice-presidência
mulher a preside. Maria Elizabeth terá um mandato de será ocupada pelo ministro Fernando Fernandes.
curta duração, com apenas nove meses, e disse que agirá Maria Elizabeth também criticou a posição do presidente
em favor da igualdade de gênero e contra a discriminação do Supremo Tribunal Federal (STF), Joaquim Barbosa,
aos homossexuais nas Forças Armadas. que recentemente defendeu a extinção da Justiça Militar
Em seu discurso de posse, falou sobre o desafio de
nos Estados. Ela afirma que conter homens armados é
comandar a mais alta corte militar do país e reiterou seu
fundamental para se preservar o Estado Democrático
objetivo de lutar pelo empoderamento e pela ampliação
de Direito e a estabilidade do regime político, e por isso,
da presença da mulher nos espaços públicos, já que,
homens que portam as armas da nação devem ser
segundo Maria Elizabeth, a democracia sem mulheres é
controlados com rigor.
uma democracia incompleta.
Doutora em direito constitucional pela Universidade
FONTE: Agência Brasil
Federal de Minas Gerais (UFMG), Maria Elizabeth, 54 http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2014-06/primeira-
anos, foi indicada ao STM em 2007 pelo ex-presidente mulher-presidir-o-stm-diz-que-vai-defender-igualdade-de-genero

6 SOCIOLOGIA ESPECIAL
DESIGUALDADE
RACIAL
7 SOCIOLOGIA ESPECIAL
//
Uma forma de evidenciar os contornos
das desigualdades é abordar as categorias
históricas que os recobrem. A raça é uma
dessas categorias mutáveis, e a dinâmica
racial contemporânea da sociedade
brasileira pode oferecer boas pistas sobre
como a percepção da desigualdade vem se
redesenhando.
Benno Warken Alves*

D
esigualdade é a distribuição diferenciada de bens
entre os indivíduos, as categorias ou os grupos.
Mais precisamente, é a distribuição diferenciada de
custos e vantagens; pois os bens não são apenas as posses
materiais, mas tudo aquilo cujo acesso é mediado pela
vida social e que podemos desejar ou, ao contrário, querer
evitar. Seguindo a exposição do sociólogo Charles Tilly, cuja
definição decido tomar emprestada, entre esses bens estão,
obviamente, riqueza e renda, mas também, por exemplo,

//
“propriedade da terra, exposição a doenças, respeito
A desigualdade molda a própria
das outras pessoas, suscetibilidade a ter que prestar
estrutura social e se reproduz,
serviço militar, risco de homicídio, posse de ferramentas
independente da nossa vontade
e disponibilidade de parceiros sexuais” (TILLY, 1998, p. 25). expressa...
Não é difícil imaginar como a distribuição diferenciada de
bens como esses influencia a vida das pessoas. assim independentemente de as pessoas considerarem a
Tampouco é um mistério que as sociedades, até hoje, igualdade uma coisa boa e desejável, como de fato muitas
foram desiguais. Se pensarmos em algo como a “civilização consideram. Uma maneira de compreender o aspecto
ocidental”, é fácil ver que, por mais produtivas que estrutural da desigualdade, para o sociólogo David Grusky,
tenham se tornado as sociedades, nenhuma eliminou as é descrever seus contornos e sua distribuição e “tentar
desigualdades. A sociedade brasileira, mesmo, já chegou explicar sua persistência apesar dos modernos valores
a ser uma das mais desiguais do mundo – e apenas igualitários” (GRUSKY, 2000, p. 3).
lentamente vem escalando esse ranking. A definição que emprestei de Tilly, no início do texto,
A desigualdade molda a própria estrutura social e se coloca-nos em bom terreno para encarar o problema dos
reproduz, independentemente da nossa vontade expressa, contornos da desigualdade. Os economistas utilizam,
na medida em que a própria estrutura se reproduz. Ou seja, geralmente, como indicadores desses contornos, critérios
conforme seguimos o curso “natural” das nossas vidas. E é como renda e consumo. Trata-se de uma forma bastante
8 SOCIOLOGIA ESPECIAL
//
insuspeitos, ao longo da história. Assim, um romance, um
A raça tem aquele caráter estrutural que
documento governamental ou eclesiástico ou, ainda, um
destaquei há pouco: ela é relativamente
independente das nossas opiniões relato menos formal de acontecimentos podem fornecer
expressas. Mesmo que as pessoas se pistas para compreender os contornos históricos da
declarem contrárias ao preconceito e à desigualdade; bem como para compreender as relações
discriminação racial, atitudes racistas não entre processos e eventos do passado e do presente.
deixam de ocorrer com frequência. A raça é uma dessas categorias. Na nossa sociedade,
ela marca diferenças e ajuda a revelar os contornos da
recorrente de tentar enxergá-los, e que permeia o senso desigualdade. A raça tem aquele caráter estrutural que
comum que mobilizamos ao pensar a desigualdade. A destaquei há pouco: ela é relativamente independente
representação das classes sociais pelas letras A, B, C, D e das nossas opiniões expressas. Mesmo que as pessoas
E, imagem que vem à mente com facilidade, é construída se declarem contrárias ao preconceito e à discriminação
pelos analistas usando, fundamentalmente, critérios racial, atitudes racistas não deixam de ocorrer com
de renda e consumo. Mas, para Tilly, os aspectos mais frequência. E não é de hoje que temos consciência disso.
“duráveis” das desigualdades se expressam melhor nas O “racismo cordial”, às vezes descrito como sendo
categorias do que em representações como essa. “velado”, alçou-se ao debate nacional com a pesquisa
As categorias exprimem cristalizações das desigualdades divulgada pelo jornal Folha de São Paulo em 1995; dos
sociais, muitas vezes incorporadas na própria linguagem 5 mil entrevistados, 89% afirmaram haver preconceito
como termos opostos: “negro/branco, masculino/ contra negros no país, mas apenas 10% admitiram ter
feminino, cidadão/estrangeiro” (TILLY, 1998, p. 7). Uma algum preconceito (TURRA; VENTURI, 1995, p. 11). Há
das vantagens de observar a desigualdade por meio alguns dias, ficou muito evidente que o repúdio ao racismo
delas é que, por serem duráveis e de uso corrente, foram é praticamente um consenso nacional – e que, portanto,
sistematicamente registradas, mesmo em suportes valorizamos a igualdade racial, em algum sentido –
9 SOCIOLOGIA ESPECIAL
quando se tornaram públicos os últimos episódios de Américas, a formação das colônias e, depois, das nações,
racismo no mundo do futebol, entre os quais o do árbitro foi determinada pelas migrações que constituíram as
Márcio Chagas aqui no Brasil; o do jogador Tinga no Peru; populações e pelas acomodações que criaram as sociedades.
e mais recentemente Daniel Alves (o caso da banana) na Os processos determinantes, de forma geral, foram o
Espanha. tráfico de milhões de africanos, ao longo de algo em torno
Mas não apenas as atitudes racistas são persistentes. de três séculos, para o trabalho escravizado; o massacre e
A desigualdade racial também é. E, quanto a ela, é mais a assimilação dos indígenas nativos; e a contínua imigração
difícil encontrar consenso. Para muitas pessoas, incluindo de europeus livres das mais variadas origens, mas, também,
acadêmicos, não é correto combater a desigualdade racial, em tempos mais recentes, de asiáticos.
baseando-se em categorias raciais. Isso seria, em si mesma, Essa, vale notar, é uma visão muito centrada na história
uma atitude racista e, portanto, condenável. Quando afirmo do Brasil (mesmo que retrate bem outros casos, em linhas
que a raça ajuda a evidenciar os contornos da desigualdade, gerais, como o dos Estados Unidos). Para um país como a
discordo implicitamente dessa posição, porque não acho Bolívia, por exemplo, qualquer análise teria que focar, muito
que todos os aspectos do problema da desigualdade racial provavelmente, as relações entre espanhóis, indígenas e
possam ser resumidos a outro tipo de problema, como criollos (americanos – do continente americano, e não dos
o da desigualdade de classe social. Assim, combater a Estados Unidos –, descendentes de espanhóis); quer dizer,
desigualdade racial requer pensar e agir especificamente os grupos que, por meio de relações contínuas e desiguais,
sobre ela. É claro que sem deixar de lado as outras formas formaram aquela sociedade.
da desigualdade; não é preciso escolher uma ou outra. Ao tratar da história é preciso fazer uma ressalva. A
desigualdade racial – e, até mesmo, a nossa capacidade para
O que é raça, afinal? reconhecer diferenças raciais, tais como existem em nossa
sociedade – não é simplesmente “herança da escravidão”,
O assunto provoca-me a esclarecer o que muitos conforme às vezes se diz. Dois trabalhos já considerados
sociólogos, incluindo eu mesmo, entende por raça. Raça clássicos da sociologia brasileira mostraram, cada um à sua
é um conjunto de ideias e, enquanto tal, uma forma maneira, que a desigualdade racial se reproduz no presente
particular de estabelecer diferenças – e as diferenças se por meio da discriminação. Portanto, ela se renova; e
relacionam estreitamente com as desigualdades. A raça superar a desigualdade racial não exige apenas superar o
tem existência concreta, sociologicamente falando, na passado escravista, mas também superar o presente. É
medida em que as pessoas pensam e agem com base significativo que os autores de ambos tenham apontado
nela. Isto é, a existência de raças não tem fundamento que a prática capaz de arrebentar essa máquina é a política
biológico (embora já tenha sido defendida biologicamente, (FERNANDES, 2008 [1964]; HASENBALG, 2005 [1979]).
no passado), mas, sim, sociológico – é um produto da vida Não obstante sua reprodução cotidiana (que poderíamos,
social, das relações entre as pessoas. Mesmo assim, o é bom lembrar, considerar estrutural), a desigualdade e as
racismo não deixa de se apoiar em uma “biologia vulgar” diferenças raciais ligam-se, na origem, por meio da história
(GUIMARÃES, 1999, p. 30); pois associa diferenças sociais daquele encontro de povos, ele mesmo desigual desde o
a diferenças biológicas – hereditárias – as quais, via de início, que é a história da ocupação moderna das Américas.
regra, são consideradas identificáveis por intermédio de
características físicas evidentes. Sistema de classificação racial
A abordagem conceitual pode parar por aí. Nem a distribuição
das desigualdades de acordo com os contornos das categorias As particularidades de como se desenvolveu essa
raciais nem sequer os conjuntos de características físicas por história, em cada lugar, forjaram não apenas padrões
meio dos quais somos capazes de distinguir essas categorias distintos de desigualdade, mas também percepções
– as “raças”, propriamente – poderiam ser deduzidos de distintas sobre raça – duas coisas, aliás, intimamente
conceitos. Ambos são produto histórico e apenas de olho na ligadas. Uma vez que, conforme vimos, a própria
história é que é possível compreendê-los. existência de “raças” deve-se à nossa forma socialmente
O racismo moderno é, sobretudo, produto da expansão construída de pensar e perceber as diferenças, não é
e da conquista europeias sobre o resto do mundo. Nas exagero afirmar que tais percepções distintas produzem,
10 SOCIOLOGIA ESPECIAL
//
[…] as duas nações [EUA e Brasil] se ergueram no
novo continente sob grandes empreendimentos
escravagistas [...] sustentados por trabalhadores
africanos....

de fato, realidades raciais particulares. Podemos abordar o


problema em termos concretos comparando os sistemas
de classificação racial, que são essas realidades mesmas,
mas consolidadas como modelos, como padrões.
Tornou-se um lugar-comum, acadêmico bem como
leigo, tentar compreender o sistema de classificação
racial brasileiro em contraste com o dos Estados Unidos.
A comparação coloca-se em terreno mais ou menos
equivalente, pois as duas nações se ergueram no novo
continente sob grandes empreendimentos escravagistas
controlados por imigrantes europeus e seus descendentes
e sustentados por trabalhadores africanos e seus
descendentes; e em ambas a principal diferença racial que
se estabeleceu, e que perdura até hoje, foi branco/negro.
Mas o sistema de classificação racial baseado nela não foi
igual lá e cá. Oracy Nogueira traduziu o contraste entre
os sistemas em dois conceitos simples: preconceito racial
de origem e preconceito racial de marca (NOGUEIRA, 2006
[1955], p. 291-292).
O de origem, típico dos Estados Unidos, seria inflexível;
as pessoas, lá, conceberiam o pertencimento racial em
função da ascendência do indivíduo, sendo os indivíduos
mestiços classificados no grupo subordinado – ou seja,
como negros (idem, p. 293). O preconceito de marca, por
sua vez, típico no Brasil, operaria a classificação a partir
da aparência racial, mediada, entretanto, por aspectos
circunstanciais, como a relação pessoal existente entre
quem classifica e quem é classificado (ibidem).
A simplificação ajuda a ilustrar o contraste entre
sistemas. Mas é claro que as coisas não são assim tão
simples. Podemos começar questionando: o que significa
“aparência racial”? Com a ideia, Nogueira quer dizer que
o limite entre as duas categorias principais do sistema é
incerto e, até mesmo, fluido. Mas será que é mesmo só a
aparência que determina como uma pessoa é classificada
e se classifica em termos de identidade racial?
Para Antonio Sérgio Guimarães, os estudos de
“relações raciais” no Brasil mostraram que o grande
critério que organiza o nosso sistema de classificação
racial é a “cor”. Não se trata simplesmente de cor da pele,
mas de um critério composto que funciona através de
uma espécie de cálculo. Assim, quando uma pessoa se
11 SOCIOLOGIA ESPECIAL
classifica ou é classificada como “parda”, a categorização podemos esquecer, também, das lutas pela valorização
envolve considerações simultâneas sobre aparência da identidade cultural. Em suma, enfraqueceram-se os
física (cor da pele e outros traços físicos) e sobre indícios incentivos para as pessoas preferirem ser brancas.
de posição social (maneiras, cultura, apresentação) Esse processo, sem dúvida, deve ainda ser considerado
(GUIMARÃES, 2011, p. 267). em relação com a melhoria das condições socioeconômicas
Nogueira estava certo sobre a importância da da população brasileira nas últimas décadas. Inclusive
flexibilidade da classificação no nosso sistema. A ideia com a diminuição da desigualdade em geral. Políticas
da nação brasileira, como sendo formada por um povo de cunho universalista, redistributivas, por exemplo,
mestiço, foi construída apoiando-se fortemente no impactaram mais fortemente sobre os mais pobres, onde
trânsito aberto entre as categorias raciais. Mas a fluidez se concentram especialmente os negros.
não é neutra. Ela incorpora as desigualdades que marcam Em sua obra sobre a dinâmica racial na sociedade
as relações entre as categorias: “no grupo branco nunca se estadunidense na segunda metade do século XX, os
hesitaria em classificar alguém de pele escura, mas traços sociólogos Michael Omi e Howard Winant propuseram
finos (europeus) e boa educação” (ibidem). Quer dizer, o que a conquista dos direitos civis nos anos 1960 pode
trânsito é regulado por outro aspecto da nossa construção ser compreendida como parte de um processo de
nacional: o ideal do embranquecimento, segundo o qual é transformação da ideologia racial dominante. E, para eles,
sempre melhor ser branco (ibidem). desafiar essa ideologia envolveu reformular o próprio
significado de raça (OMI; WINANT, 1986, p. 86). Assim,
Ação política e mudanças na percepção dessegregação dos espaços e mudança de percepção
andaram juntos, alçando a luta por igualdade racial nos
Apesar de ser um sistema durável, há indícios de que Estados Unidos a um novo estágio. Talvez as mudanças
ele vem se transformando. Guimarães apresenta dois atuais no nosso durável sistema de classificação racial
principais. Primeiro, pesquisas recentes mostram que as apontem transformações em uma direção semelhante.
pessoas têm usado critérios “estranhos” ao nosso sistema
na hora de se autoidentificar; em especial, a ancestralidade. * Benno Warken Alves é bacharel em Ciências Sociais pela Universidade
Isso diminui o peso dos critérios mais flexíveis. Segundo, Federal do Paraná (UFPR), Curitiba-PR, e mestrando do Programa
de Pós-Graduação em Sociologia do Departamento de Sociologia da
as últimas pesquisas demográficas do IBGE mostram que Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
a população autodeclarada branca vem diminuindo, de São Paulo (DS-FFLCH-USP), São Paulo-SP.
pesquisa para pesquisa, a uma velocidade que não pode
ser explicada por simples tendência demográfica. Apenas Referências bibliográficas:
FERNANDES, Florestan (2008 [1964]). A integração do negro na sociedade
a reclassificação, fruto de uma mudança de percepção
de classes. São Paulo: Global, 2 v.
sobre o pertencimento racial, pode explicar o movimento. HASENBALG, Carlos (2005 [1979]). Discriminação e desigualdades raciais
E o autor acrescenta: “nosso sistema tradicional de no Brasil. Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Editora UFMG; IUPERJ.
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo (1999). Racismo e antirracismo
classificação está sendo modificado pela perda de sentido
no Brasil. São Paulo: Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo;
do ideal de embranquecimento” (idem, p. 269). Editora 34.
Se a hipótese se confirma, cabe indagar sobre as razões ______ (2011). “Raça, cor, cor da pele e etnia”, Cadernos de Campo, São
Paulo, v. 20, jan-dez, p. 265-271.
para a perda de sentido desse ideal, até agora tão arraigado.
GRUSKY, David (2000). “The past, present and future of social inequality”
Eu apostaria na sugestão de Florestan Fernandes e de In: ______ (ed.). Social stratification: class, race and gender in sociological
Carlos Hasenbalg: o nó da questão é a política e, aí, o papel perspective. Boulder, EU: Westview Press.
NOGUEIRA, Oracy (2006 [1955]). “Preconceito racial de marca e
dos movimentos sociais tem sido central – em especial, do preconceito racial de origem: sugestão de um quadro de referência para a
movimento negro. De um lado, aliados aos acadêmicos, os interpretação do material sobre relações raciais no Brasil”, Tempo Social,
movimentos conseguiram construir uma pauta de luta por São Paulo, v. 19, n. 1.
OMI, Michael; WINANT, Howard (1986). Racial formation in the United
igualdade racial. De outro, conquistando espaços na política States: from the 1960s to the 1980s. Londres; Nova York: Routledge &
institucional, conseguiram propor e materializar conquistas Kegan Paul.
efetivas que atacam a desigualdade racial, como as ações TILLY, Charles (1998). Durable inequality. Berkeley, EUA: University of
California Press.
afirmativas. Ou seja, a ação política produziu mudanças TURRA, Cleusa; VENTURI, Gustavo (orgs.) (1995). Racismo cordial: a mais
no domínio da percepção e no domínio da estrutura. Não completa análise sobre o preconceito de cor no Brasil. São Paulo: Ática.
12 SOCIOLOGIA ESPECIAL
marcadores
sociais
V
árias formas de diferença e desigualdade convivem Neste artigo, pretende-se apresentar uma breve introdução
na sociedade contemporânea. Ao longo de suas aos marcadores sociais da diferença, uma perspectiva teórica
trajetórias de vida, os indivíduos se identificam e se sobre tais questões.
diferenciam dos outros das mais diversas maneiras - ao Marcadores sociais da diferença são sistemas de
mesmo tempo em que podem ser classificados de diversos classificação que organizam a experiência ao identificar
modos e sofrer processos de discriminação e desigualdade. certos indivíduos com determinadas categorias sociais.

13 SOCIOLOGIA ESPECIAL
// Um modo de olhar para as diversas formas
de diferença e desigualdade presentes na
sociedade contemporânea.
Marcio Zamboni*

Em termos de raça, por exemplo, os indivíduos podem ser gênero (homens e mulheres, machões e princesas, travestis
classificados como negros ou brancos, morenos ou mulatos, e transexuais), sexualidade (hétero e homossexuais, gays
asiáticos ou indígenas. Cada uma dessas categorias de e lésbicas, bissexuais e sadomasoquistas), classe (ricos e
classificação está associada a uma determinada posição pobres, classe média e proletariado, profissionais liberais
social, possui uma história e atribui certas características em e moradores de rua) e geração (jovens e idosos, adultos e
comum aos indivíduos nela agrupados. O mesmo vale para adolescentes, coroas e crianças), entre outros.

14 SOCIOLOGIA ESPECIAL
//
…os marcadores sociais da diferença nunca
aparecem de forma isolada, eles estão sempre
articulados na experiência dos indivíduos, no
discurso e na política.

Não existe uma lista fechada e definitiva dizendo quais Diferença e Desigualdade
são os marcadores sociais da diferença. Os mencionados
no último parágrafo têm sido frequentemente estudados Os seres humanos se mostram como diferentes uns dos
e se mostrado fundamentais para compreender a outros das mais diversas formas e em múltiplas dimensões.
sociedade brasileira contemporânea. Mostram-se diferentes nos formatos, cores e proporções
Enumeremos alguns aspectos que caracterizam corporais, nos usos do corpo e da linguagem, nas maneiras de
esta perspectiva de análise. Em primeiro lugar, as se alimentar, de se vestir e de consumir bens e nos meios de
diferenças e desigualdades entre os homens não são se relacionar com outros - seja em esportes, seja em brigas
naturais. Elas são construídas socialmente e precisam ou em práticas sexuais. Cada indivíduo compartilha com
ser contextualizadas em termos de tempo e espaço. outros algumas dessas características e não as compartilha
Em segundo lugar, os marcadores sociais da diferença com outros.
nunca aparecem de forma isolada, eles estão sempre Entre essas características, algumas têm um peso
articulados na experiência dos indivíduos, no discurso profundo na definição da experiência dos indivíduos. Elas
e na política. Finalmente, os sistemas de classificação estão ligadas a relações de poder e sistemas de dominação
estão intimamente ligados às relações de poder. Estão, mais amplos, sendo responsáveis pela produção e
portanto, sempre em disputa - das relações pessoais à reprodução de desigualdades. É para refletir sobre esse
política internacional. A seguir, desenvolveremos melhor tipo de diferença que a perspectiva dos marcadores sociais
cada um desses aspectos. da diferença foi elaborada.
15 SOCIOLOGIA ESPECIAL
O significado de ser classificado socialmente como negro, e hierarquização de comportamentos sexuais) é um
por exemplo, não é o mesmo se olharmos para o Brasil marcador social da diferença.
do século XIX ou no século XXI. No século XIX, a pele negra Nesses dois exemplos, vimos também como as categorias
remetia diretamente à escravidão e ao trabalho braçal (fosse de diferença nunca andam sozinhas. Elas sempre implicam
ele na plantação ou na casa-grande). As diferenças eram outras. Ou, poderíamos dizer, elas se constroem umas
asseguradas por um sistema de dominação que tratava através das outras. Não é possível falar de racismo sem falar
negros como objetos, negando direitos políticos e perpetrando das condições de trabalho a que são submetidos mulheres e
castigos físicos. Mais de um século depois, grande parte da homens negros e, portanto, da classe social a que pertencem.
desigualdade permanece, mas seus significados são muito Nem é possível discutir a homofobia (discriminação de
distintos. O racismo é vivido dentro de um sistema capitalista homossexuais) sem considerar o que se espera de homens e
e a desigualdade é em grande parte traduzida em termos de mulheres na nossa sociedade, ou seja, as relações de gênero.
disparidades de acesso ao mercado de trabalho e a bens de
consumo. A discriminação convive também com movimentos Articulações
sociais que valorizam a cultura e a identidade afro-brasileiras,
alterando os significados da classificação. Para desenvolver essa questão, analisemos rapidamente
Se a cor da pele é um aspecto da diversidade humana, a o debate que acompanhou a aprovação do projeto de lei
raça (efeito de uma dinâmica de classificação atravessada por que regulamentava o trabalho doméstico no Brasil no ano
relações de poder) é um marcador social da diferença. Não há de 2013. Tratava-se, a princípio, de uma questão de classe:
nada na cor da pele em si que a associe a um ou outro tipo de os direitos de uma determinada categoria de trabalhadores.
trabalho, à pobreza ou à riqueza, a uma ou outra expressão Mas em todas as notícias sobre o tema, emerge também a
cultural. É preciso sempre entender que relações sociais estão questão de gênero: pelo menos 90% do trabalho doméstico
em jogo em um determinado momento histórico, dando é realizado por mulheres. Não é à toa que a lei ficou
sentido a essas características. Vejamos outro exemplo. popularmente conhecida como “PEC das domésticas”,
O desejo de fazer sexo com homens é considerado um independentemente do fato de que o texto da lei não
sentimento completamente normal para uma mulher de 30 especifica o sexo dos trabalhadores beneficiados. Trata-se,
anos de classe média em um grande centro urbano. Para também, de uma questão racial: não apenas a maior parte
uma jovem de uma família tradicional do interior do Brasil na dos trabalhadores domésticos é negra, mas também o
década de 1950, no entanto, este poderia ser um pecado ou próprio trabalho doméstico é visto como um “trabalho de
uma mania perigosa - que justificaria uma vigilância cuidadosa negros”. Essa associação é em grande parte uma herança
dos familiares e das autoridades religiosas. Para um senhor dos tempos da escravidão, quando o este tipo de trabalho era
inglês de meia-idade do começo do século XX, então, um majoritariamente realizado por escravos de origem africana.
desejo como esse seria sintoma de uma doença gravíssima, A polêmica gerada por outra categoria profissional
ou até mesmo um crime - já que em muitos países, as práticas alguns meses depois pode nos ajudar a entender melhor
homossexuais foram tratadas como tal (e em outros ainda é). essa complicada dinâmica de interação entre marcadores
Não há nada nessa atitude (se imaginar fazendo sexo sociais da diferença: trata-se do caso do programa “Mais
com um homem) que leve naturalmente a nenhuma Médicos”. Nesse episódio, o Governo Federal decidiu
dessas reações. As formas como os eventos se encadeiam importar médicos formados em Cuba para enfrentar a
dependem de representações sociais, do lugar social dos escassez de profissionais em algumas áreas de atuação
indivíduos envolvidos e de um determinado contexto (particularmente aquelas ligadas à saúde da população
(histórico e político). Um desejo semelhante pode levar carente). A medida provocou indignação de parte da
indivíduos diferentes a um bar, ao confessionário ou à cela classe médica brasileira (especialmente dos estudantes),
de uma prisão. Tudo depende se o universo social no qual se majoritariamente branca e proveniente da elite.
está inserido o vê como homem ou mulher, como criança ou Em meio à atmosfera geral de desqualificação desses
adulto, como normal, criminoso ou doente. profissionais, uma jornalista afirmou nas redes sociais
Se o desejo sexual por corpos masculinos é uma que “essas médicas cubanas tem uma cara de empregada
experiência possível para qualquer ser humano, a doméstica!”. É importante notar que maior parte delas,
sexualidade (efeito de uma dinâmica de classificação assim como a maior parte da população de Cuba, era negra. A
16 SOCIOLOGIA ESPECIAL
mesma jornalista dizia, em seguida, que “Médico, geralmente, Esse tipo de movimento já existia, evidentemente, há
tem postura, tem cara de médico, se impõe a partir da muito tempo. Pelo menos, desde o início do século XIX,
aparência”. Fica claro nesse caso que a medicina (assim mulheres e negros têm formado organizações para lutar
como o trabalho doméstico) tem gênero (masculino), classe pela igualdade de direitos, e podemos ver, ao longo de todo
(postura) e raça (aparência). o século XX, homossexuais combatendo a discriminação.
O que está em jogo quando se opõe um “médico com cara Os levantes de maio de 1968 marcam, no entanto, um
e postura de médico” e uma “médica com cara de empregada momento de proliferação sem precedentes - que colocaria
doméstica”? Trata-se de uma disputa de poder que pretende essa multiplicidade de demandas e sujeitos de ação no
colocar “cada um em seu lugar”. Quem é digno de ser médico e centro da vida política.
quem é digno de ser empregada? Não se trata apenas de uma De forma semelhante ao que ocorreu com o marxismo
questão profissional. Vários marcadores sociais da diferença desde finais do século XIX, as demandas desses movimentos
estão envolvidos nessa disputa. A articulação entre esses foram entrando na pauta dos debates acadêmicos - o que se
marcadores é tão profunda nesse jogo que as categorias deve em grande parte à atuação política de militantes dentro
profissionais só ganham sentido quando articuladas a raça e das universidades. A produção intelectual se alimentava
gênero - ao mesmo tempo em que essas categorias podem dos movimentos sociais e vice-versa. A perspectiva dos
ser usadas para falar de gênero e raça. marcadores sociais da diferença surge justamente nesse rico
A dinâmica de classificação e de articulação entre universo de trocas, a partir da articulação entre pesquisadores
diversas formas de classificação é, portanto, uma questão do campo das relações raciais com pesquisadores da área de
fundamental para produção e reprodução de desigualdades gênero e sexualidade.
sociais. Vejamos como os movimentos sociais que buscam A multiplicidade de sujeitos e demandas tem
combater essas desigualdades têm atuado para colocar potencialidades e problemas particulares. Ela permite, por
esses temas na agenda política. um lado, colocar um leque mais amplo de pautas na agenda
política: não discutimos apenas o problema da distribuição
Disputas políticas de renda, mas também os problemas do racismo, do
machismo, da homofobia, etc. Por outro lado, vemos que as
Desde o século XIX, as desigualdades de caráter pautas dos movimentos sociais podem não confluir e até
econômico (diferenças de classe) ocupam um lugar central mesmo entrar em conflito. São desafios constantes, por
nos movimentos sociais que questionam a ordem social exemplo, as acusações de machismo no movimento negro,
vigente. Essa centralidade se deve, em grande medida, à a dificuldade do feminismo em incorporar mulheres trans
influência da tradição de pensamento marxista e à força e as demandas específicas de mulheres negras e pobres e
dos movimentos socialista e comunista. Por muito tempo a relativa invisibilidade de mulheres lésbicas e de pessoas
outras formas de desigualdade, como as diferenças de trans no movimento LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais,
raça e de gênero, foram pensadas como secundárias, como Travestis, Transexuais e Transgêneros). A experiência de um
subprodutos da dominação capitalista que tenderiam a tipo de discriminação por um grupo infelizmente não previne
desaparecer com o sucesso de uma revolução socialista. a prática de outros tipos de discriminação.
Na linguagem da luta de classes, havia pouco espaço para O Brasil apresenta um cenário particular nesse sentido.
pensar, por exemplo, as formas de discriminação contra A coordenação da luta pelo fim da Ditadura Militar acabaria
mulheres, negros e homossexuais. por criar diversas formas de aliança entre os movimentos
As manifestações que irromperam ao redor do mundo sindicais, negros, feministas e o emergente movimento
a partir de maio de 1968 (tendo como centro os levantes homossexual. Especialmente a partir dos anos 1980, os
realizados na França) são considerados um marco na valores da Democracia e da Igualdade emergiram como ideais
emergência dos chamados Novos Movimentos Sociais. capazes de aglutinar atores muito diversos. A campanha
Esses se caracterizam por questionar a centralidade da “Diretas Já” é talvez a expressão mais emblemática dessa
identidade de classe como base da organização política - mobilização.
passam a ter como foco a questão da mulher, da liberdade De forma semelhante, a onda de protestos que irrompeu
sexual, do meio ambiente, da igualdade racial e dos direitos no país em junho de 2013 (e que ainda reverbera) parece ter
dos aposentados, entre outros. criado um novo momento de articulação possível entre as
17 SOCIOLOGIA ESPECIAL
homens negros e mulheres, mulheres brancas e homens

// A perspectiva dos marcadores sociais da


diferença oferece um instrumental útil para
pobres, homens gays e travestis). Para além de questões
para cientistas sociais e acadêmicos, esses são problemas
entender a complexidade desse momento, do interesse de todos aqueles preocupados em transformar
tanto em termos de seu potencial quanto de a realidade.
seus desafios.
*Marcio Zamboni é antropólogo, desenhista e pesquisador do Núcleo de
pautas de muitos movimentos. É o caso dos problemas do Estudos de Marcadores Sociais da Diferença da Universidade de São Paulo
aumento do custo de vida nas cidades e da mobilidade urbana. (NUMAS-USP), São Paulo-SP.
Site pessoal: http://www.marciozamboni.com.br.
Um dos gritos que marcou as manifestações na cidade do Rio
Página do NUMAS no Facebook: https://www.facebook.com/numasusp.
de Janeiro era justamente: “A luta unificou travesti, Black Block
e professor!”. Esse grito, ao mesmo tempo em que reconhece Referências bibliográficas:
ALMEIDA, Heloísa Buarque de; SZWAKO, José (Orgs.). Diferenças, Igualdade.
as diferenças internas entre as categorias de manifestantes,
São Paulo: Berlendis & Vertecchia Editores, 2012.
afirma que há causas comuns (uma luta) capazes de produzir CARRARA, Sérgio; SIMOES, Júlio Assis. Sexualidade, cultura e política: a
identificação e mobilização política. trajetória da identidade homossexual masculina na antropologia brasileira.
Cad. Pagu, Campinas, n. 28, 2007.
A perspectiva dos marcadores sociais da diferença oferece
MOUTINHO, Laura. “Negociando com a adversidade: reflexões sobre “raça”,
um instrumental útil para entender a complexidade desse (homos)sexualidade e desigualdade social no Rio de Janeiro”. Rev. Estud.
momento, tanto em termos de seu potencial quanto de Fem. 2006, vol. 14, no. 1, pp. 103-116.
SALLUM, Brasílio. Classes, cultura e ação coletiva. Lua Nova. Revista de
seus desafios. Ela aponta, por um lado, para a semelhança
Cultura e Política, São Paulo, v. 65, p. 11-42, 2005.
entre os diversos processos de produção de desigualdade e SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e
para as possibilidades de aliança entre os atores que lutam questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
Senado aprova mais direitos aos trabalhadores domésticos. Estado de São
contra eles. Ela nos alerta, por outro, para as articulações
Paulo, 26/03/2013. Link: http://topicos.estadao.com.br/pec-domesticas.
perversas entre formas de desigualdade e sobre os conflitos Jornalista diz que médicas cubanas tem “cara de empregada doméstica”.
entre sujeitos de discriminações distintas (como entre Folha de São Paulo, 27/08/2013. Link: http://folha.com/no1332962.

18 SOCIOLOGIA ESPECIAL
ã o da
i n u i ç
a d i m a s i l
ç ão e n o B r
a e
significativa.

u c
ed iguald a d
s
Paralelamente a esses avanços quantitativos, as

d e
desigualdades associadas a uma gama de indicadores
de oportunidades e resultados educacionais também
Leticia Marteleto* cederam. Esses são processos importantes cujos

O
benefícios se estendem para além das salas de aula.
Brasil passou por importantes
transformações sociais,
econômicas e demográficas Avanços
nas últimas décadas. Uma das mais cruciais mudanças
atravessadas pelo país é a expansão educacional. Nos últimos O acesso de crianças e adolescentes ao Ensino
trinta anos, houve um aumento contundente do acesso à escola Fundamental e Médio aumentou de maneira significativa
e da média de anos de escolaridade das crianças e adolescentes nas últimas décadas (Marteleto et al., 2012). Em 1976, 77%
brasileiros. Da mesma forma, a trajetória educacional de das crianças de 10 anos estavam matriculadas na escola;
nossas crianças e adolescentes é hoje mais linear, porque tanto em 2012 essa proporção chega a 98%. Atualmente, as
a evasão escolar quanto a repetência diminuíram de maneira taxas de matrícula de crianças de 7 a 14 anos chegam a
19 SOCIOLOGIA ESPECIAL
80%
20%
10%
dos mais pobres
tiveram um cresci- dos munícipios
mento de renda 4 no Brasil tiveram
detêm 42% de todas
vezes maior do que o aumento de renda e
as riquezas produ-
crescimento dos 10% queda da desigual-
zidas no Brasil, no
mais ricos, os 20% dade, mas em 2013
entanto...
mais pobres incre- os índices voltaram
mentaram sua renda a se estagnar.
média em 217%.

20 SOCIOLOGIA ESPECIAL
//
Paralelamente ao crescimento do acesso à
escola no país, houve também um aumento
mais jovens havia uma grande proporção de crianças
apresentando atraso escolar significativo. Por exemplo,
dos anos de escolaridade completados com aos 14 anos uma criança que entrasse na escola na
sucesso. idade adequada e permanecesse de maneira contínua
quase 100%, demonstrando a tendência de universalização e sem repetir uma série, deveria já ter completado seis
do acesso ao Ensino Fundamental. Entre os adolescentes ou sete anos de escolaridade. Em 1976, essas crianças
de 15 a 18 anos ainda existe uma proporção importante completavam em média apenas três anos de escolaridade,
fora da escola, embora também seja verificado um aumento refletindo uma combinação de repetência, evasão escolar e
significativo do acesso e permanência na escola durante as entrada na escola com atraso. No início dos anos 2010, essa
últimas décadas. Se apenas 46% dos adolescentes entre 15 média chega a cinco anos e meio de escolaridade.
e 18 anos estavam matriculados na escola em 1976, 80% São muitas as razões para esses avanços. Entre as mais
estavam frequentando a escola em 2012 (Marteleto et importantes, estão o aumento da escolaridade dos pais
al., 2013). É importante ressaltar que durante a década de e o fato de as crianças e os adolescentes viverem hoje
1980, as taxas de matrícula permaneceram estagnadas. É em famílias e coortes menores (Lam e Marteleto, 2008;
apenas a partir dos anos 1990 que se dá a aceleração do Marteleto e Souza, 2012). A escolaridade dos pais é um dos
acesso à escola no Brasil. principais fatores determinantes do acesso à escola, bem
Paralelamente ao crescimento do acesso à escola no como das trajetórias e do alcance educacionais. O aumento
país, houve também um aumento dos anos de escolaridade da escolaridade de uma geração tem efeitos na escolaridade
completados com sucesso. Se no final dos anos 1970 um das gerações seguintes, pois pais com maior escolaridade
jovem de 18 anos completava com sucesso em média tendem a ter filhos também com maior escolaridade
quatro anos e meio de escolaridade, os que hoje chegam à (Costa-Ribeiro, 2012). A associação entre escolaridade dos
maioridade completam quase 9 anos. Mesmo nas idades pais e sucesso educacional dos filhos reflete não apenas
21 SOCIOLOGIA ESPECIAL
os recursos financeiros dos pais – porque quanto maior a completado o Ensino Superior tem 100% de chances de
escolaridade, mais alta é a renda –, mas também recursos estar matriculado na escola; se seus pais não tivessem
culturais, o tempo despendido com os filhos, e as redes alguma escolaridade formal, suas chances de matrícula
sociais dos quais os pais e crianças fazem parte. Tudo isso cairiam para 75%. Com pais com o Ensino Fundamental
fará diferença tanto para o acesso quanto para a realização completo suas chances de matrícula sobem para 80%. As
educacional das crianças. desvantagens relativas ao Ensino Médio são ainda maiores.
O fator demográfico tem também um papel importante. Tendo terminado o Ensino Fundamental, as chances de
O Brasil passa pelo bônus demográfico: parte da população um adolescente estar matriculado no Ensino Médio caem
em idade considerada dependente, aqueles de 0 a 14 de 80% para 65%, se sua mãe tem Ensino Superior versus
anos, parou de crescer a taxas significativas, enquanto o apenas o Ensino Fundamental completo (Marteleto, Hubert
outro grupo considerado dependente, aqueles maiores de e Carvalhaes, 2013). Se considerarmos todos os jovens e não
65 anos, ainda não cresce a taxas significativas. Em 1982, apenas aqueles que terminaram o Ensino Fundamental, a
nasceu a maior coorte que o país já viu e, certamente, verá probabilidade de matrícula no Ensino Médio cai de 60% a
(Lam e Marteleto, 2008). O simples fato de haver menos 20%, se comparamos aqueles cujas mães completaram o
crianças em idade escolar contribuiu decisivamente para Ensino Superior versus aqueles cujas mães completaram
a melhoria dos indicadores educacionais brasileiros. Além apenas o Ensino Fundamental. Ou seja, o alcance
de gerações menores, o Brasil tem hoje famílias menores, educacional dos jovens brasileiros ainda é determinando,
com consequências importantes para a escolaridade em grande parte, pela situação socioeconômica da família
das crianças. Famílias menores implicam em menos de origem, principalmente pela escolaridade dos pais
irmãos para dividir recursos, o que pode levar a melhores (Marteleto, Hubert e Carvalhaes, 2013). A tendência ainda
oportunidades educacionais, embora a causalidade direta é de manutenção do status quo, a despeito dos avanços
entre esses fatores seja de difícil instrumentalização significativos das últimas três décadas.
(Marteleto e Souza, 2012). Esse enfraquecimento da associação entre origem
A boa notícia é que o maior acesso à escola e o aumento familiar e escolaridade aconteceu em vários países latino-
médio de anos completos de escolaridade das crianças e americanos além do Brasil, tais como: Chile, México e
adolescentes brasileiros não aconteceu sozinho. Esses Uruguai (Marteleto et al., 2012). Embora a tendência tenha
avanços vieram acompanhados de uma diminuição das sido de queda da desvantagem educacional por conta da
desigualdades relativas à realização dessas medidas origem familiar, em um primeiro momento a associação
educacionais. As chances de se entrar e permanecer na ficou mais forte, em decorrência da crise dos anos 1980
escola e de se completar com sucesso as várias transições (Torche, 2010). Durante esse período, uma grande parcela
educacionais dependem muito menos da origem familiar de crianças foi tirada da escola pelos pais para trabalhar
– como escolaridade, ocupação e renda dos pais – hoje do (Duryea et al., 2007). É durante os anos 1990 que começa a
que dependiam há três décadas (Marteleto et al., 2012; tendência de enfraquecimento da associação entre origem
Marteleto, Hubert e Carvalhaes, 2013). As desvantagens familiar e acesso à escola e origem familiar e média de anos
educacionais – pelo menos em termos de acesso à escola de escolaridade.
e quantidade de anos completos – de uma criança em uma Uma outra tendência importante é que as oportunidades,
família com baixo nível socioeconômico, relativas a uma trajetórias e realizações educacionais das crianças
criança com alto nível socioeconômico são menores hoje e adolescentes brasileiros dependem menos de
do que há três décadas. Esse é um avanço extremamente características como raça, cor e sexo atualmente do que
importante porque sugere a tendência a uma sociedade nos anos 1970 e 1980 (Marteleto, 2012).
mais meritocrática. Aonde se pode chegar hoje depende Em relação à raça e cor, a vantagem das crianças e
menos de onde se começa do que do passado. Mas ainda adolescentes classificados como brancos em relação
depende muito. àqueles classificados como pardos ou pretos (terminologia
utilizada pelo IBGE) diminuiu de maneira significativa
Origem social e escolaridade ao longo das últimas três décadas (Marteleto, 2012). A
diminuição dessa vantagem ao longo dos últimos trinta anos
Um adolescente de 15 a 18 anos cujos pais tenham deve-se a dois fatores importantes. Primeiro, as famílias
22 SOCIOLOGIA ESPECIAL
das crianças classificadas como pretas apresentaram uma vantagem educacional daqueles classificados como brancos
melhoria significativa – desproporcionalmente maior do em relação aos classificados como não brancos (Marteleto,
que o aumento daquelas classificadas como brancas ou 2012). Por exemplo, aos 18 anos, os classificados como
pardas – de sua situação socioeconômica (Marteleto, 2012). brancos têm, em média, 1,2 ano de escolaridade a mais que
O segundo fator responsável pela diminuição da vantagem os classificados como pretos, e 1,1 ano de escolaridade a
educacional dos não brancos em relação aos brancos é a mais do que os classificados como pardos. A desvantagem
reclassificação racial. Pais classificados como pretos e dos meninos classificados como pretos comparativamente
com alta escolaridade têm hoje maior probabilidade de aos classificados como brancos chega a um ano e meio de
também classificar seus filhos como pretos. A tendência escolaridade. A desvantagem educacional entre as meninas
era contrária nos anos 1980 (Marteleto, 2012). Essa maior é menor do que a desvantagem entre os meninos, sugerindo
tendência de classificação como pretos dos filhos daqueles que o grupo mais penalizado é o dos meninos não brancos.
com alta escolaridade é chamada de “empretecimento Utilizando modelos estatísticos que controlam pelas
com a escolaridade,” um fenômeno novo e diferente do várias diferenças socioeconômicas entre os jovens com
embranquecimento apontado na literatura (Marteleto, o objetivo de isolar a parcela da diferença educacional
2012). atribuída a raça/cor, resultados recentes sugerem a
A despeito dos avanços, a tendência atual ainda é de persistência de uma desvantagem significativa entre os
23 SOCIOLOGIA ESPECIAL
//
não brancos, tanto entre os pretos como entre os pardos.
A desvantagem dos meninos classificados como
Nesse exercício, comparando adolescentes brancos e não
pretos comparativamente aos classificados
brancos de 17 e 18 anos com todas as características
como brancos chega a um ano e meio de
escolaridade. A desvantagem educacional entre socioeconômicas equivalentes, exceto a raça/cor, verifica-
as meninas é menor do que a desvantagem se uma desvantagem dos não brancos em relação aos
entre os meninos, sugerindo que o grupo mais brancos de um terço de ano de escolaridade que pode ser
penalizado é o dos meninos não brancos. totalmente atribuída à classificação racial (Marteleto 2012).
Em relação aos diferenciais por sexo, a tendência é de
vantagem das meninas em relação aos meninos, pelo
menos em termos de anos de escolaridade e acesso à escola.
E essa vantagem vem crescendo ao longo dos últimos anos.
Por exemplo, a vantagem feminina aos 18 anos era de 0,3
ano de escolaridade na década de 1970. Atualmente, a
vantagem feminina na mesma idade chega a quase um ano
de escolaridade. Nem sempre foi assim. É apenas entre os
nascidos a partir de 1960 que passamos a ter no Brasil uma
vantagem feminina na educação formal. Essa tendência
de vantagem feminina na maior parte dos indicadores
educacionais é observada em vários outros países, como nos
Estados Unidos, por exemplo (DiPrete e Buchmann, 2013).
Os avanços descritos acima são extremamente bem vindos,
principalmente por causa da significativa associação entre
escolaridade e uma gama de resultados positivos durante
o curso de vida, como vida longa e saudável e renda mais
alta e estável. Entretanto, atrelados aos avanços relativos
ao maior acesso à escola e média de escolaridade crescente
existem desafios importantes. A teoria sociológica sugere que
quando diminuem as desigualdades no acesso e escolaridade
associadas à origem social familiar, surgem desigualdades de
outra ordem. E isso está acontecendo no Brasil. A desigualdade
na qualidade da educação relativa à origem social familiar vem
aumentando (Marteleto et al., 2013). Atrelado ao aumento
da quantidade educacional surge o desafio de aumentar a
qualidade do ensino. Quase um terço da população brasileira
é formada de crianças com menos de 18 anos. A janela de
oportunidade pela qual o país atravessa demanda que os
recursos sejam investidos na também qualidade do Ensino
fundamental e Médio para que o país possa continuar a sentir
os benefícios de uma população de fato escolarizada.

* Leticia Marteleto é Ph.D. e professora-assistente do Departamento de


Sociologia e Centro de Pesquisa Populacional da Universidade do Texas, em
Austin (EUA). É também pesquisadora associada do Centro de Estudos Latino-
-Americanos da mesma universidade. Marteleto atuou como consultora das
Nações Unidas e dos Ministérios da Educação e do Desenvolvimento Social.
É autora de diversos artigos publicados em diferentes periódicos nacionais
e internacionais, como: Demography, Pesquisa e Planejamento Econômico,
Population and Development Review, Research in Social Stratification and
Mobility e Social Forces.
24 SOCIOLOGIA ESPECIAL
classes
sociais
// O termo usado corriqueiramente pelo senso
comum tem sentidos bem mais complexos nas
teorias sociológicas.

D
esconheço uma noção que tenha tido tanta força
Rogério Jerônimo Barbosa*
nos últimos 150 anos quanto a de “classes sociais”.
Essa expressão esteve presente nos debates de
intelectuais, políticos, jornalistas e do público amplo –
frequentemente acompanhada de discussões acaloradas
ou disputas explícitas; de brigas de amigos a guerras com
impacto mundial. Intuitivamente, quase todos têm uma
noção sobre o que são classes sociais. Estão relacionadas
ao poder econômico, interesses políticos, padrões de
consumo, diferenciais de prestígio, etc. Também não é
desconhecido o fato de que a contemporânea relevância
do conceito de classes se deva à obra de Karl Marx e à
influência que essa exerceu. Partirei das noções que

25 SOCIOLOGIA ESPECIAL
circulam no senso comum para, ao fim, deixar mais claro As Classes Econômicas
como os sociólogos lançam mão desse conceito.
O denominador comum de diversas definições Existem diversas maneiras de definir mais
correntes talvez possa ser simplificado da seguinte rigorosamente o conceito de classe. A forma mais
maneira: classes sociais são grupos de indivíduos frequente é por intermédio das “classes econômicas”,
(que não precisam necessariamente se conhecer nem definidas pela renda ou pelo consumo. Economistas e
morar próximos), que vivem sob condições materiais jornalistas lançam mão dessa estratégia frequentemente
(econômicas) parecidas e que, por isso, têm semelhanças – e, por sua simplicidade, algumas políticas públicas
em termos de comportamentos e interesses. Assumimos também se orientam por esse critério. O uso das classes
ainda que a pertença a determinadas classes faz com econômicas pode ter finalidades meramente descritivas,
que algumas pessoas sejam tratadas de forma diferente informando sobre o formato da nossa distribuição de
das demais. renda e sobre o nível de desigualdade. Para os governos,
Já nessa definição vaga percebemos um aspecto no entanto, o conhecimento sobre as desigualdades de
bastante sociológico: características do coletivo ajudam renda e do percentual de indivíduos em situação de
a explicar o comportamento de indivíduos particulares. pobreza é fundamental para a elaboração de programas
De fato, esse é o objetivo por detrás do uso da noção e estratégias.
de “classe”: explicar causalmente comportamentos – O “Critério Brasil”, definido pela Associação Brasileira
algumas vezes, até mais do que isso: explicar grandes de Empresas de Pesquisa, é o sistema de classificação
processos históricos de mudança social. Noutras mais utilizado em pesquisas de mercado, de opinião
palavras, é um conceito ambicioso; por isso, despertou
tantos interesses. Além disso, por essa grandeza, no
seu uso misturam-se propósitos estritamente analíticos // ...o objetivo por detrás do uso da noção de
“classe”: explicar causalmente comportamentos
(acadêmicos e teóricos) e propósitos normativos (com – algumas vezes, até mais do que isso: explicar
vistas à intervenção social). grandes processos históricos de mudança social.

26 SOCIOLOGIA ESPECIAL
e de intenção de voto, feitas por instituições como
o Datafolha, por exemplo. Provavelmente você já
// Subjaz a tais classificações, a noção de que
a renda (o fluxo do dinheiro) é um aspecto
ouviu falar das tais classes A, B, C, D e E. Essas são as
central da vida dos indivíduos, capaz até de
definir rumos de eleições.
Classes Econômicas do Critério Brasil. Seu fundamento
é a contabilização dos bens duráveis possuídos pelas
famílias (número de TVs, carros, etc.) Uma forma Mas, em geral, o foco de atenção é o comportamento
alternativa é a definição de faixas de renda. Esses econômico; mais precisamente, o consumo. Na última
seriam indicadores do poder aquisitivo ou capacidade de década, a Classe C (também chamada de “a nova classe
compra. Compreendidas assim, as classes econômicas média”) cresceu de maneira intensa; milhões de famílias
são preditoras de possíveis comportamentos. Noutras experimentaram mobilidade ascendente, deixando
palavras, condicionantes de modos de vida e hábitos de a condição de pobreza. Seriam pessoas com renda
consumo. mensal entre R$ 1.064 a R$ 4.591[1]. Para produtores
Subjaz a tais classificações, a noção de que a renda e distribuidores, isso significa um grande crescimento
(o fluxo do dinheiro) é um aspecto central da vida dos de seu público-alvo – pessoas que “se comportarão”
indivíduos, capaz até de definir rumos de eleições. como clientes ou consumidores. Não à toa, assistimos
27 SOCIOLOGIA ESPECIAL
à emergência de empresas de pesquisa de mercado
especializadas em consumo de indivíduos pobres e
emergentes, como o DataPopular e o Plano CDE.

As Classes Sociais na Sociologia

Em seu sentido forte, porém, “classes sociais” não são o


mesmo que “classes econômicas”. Ainda que o fundamento
dos dois conceitos seja a esfera econômica, é importante
ressaltar que poder econômico é algo mais amplo do que
capacidade de consumo. Além disso, como apontei no início,
são grandes as pretensões explicativas abarcadas pelo
conceito de classe. Vamos ver como a Sociologia aborda isso.
É importante recobrar um pouco da história. Na Revolução
Francesa, um grupo de comerciantes e industriais emergentes
depõe o rei, decapita nobres (e também o rei deposto,
posteriormente) e funcionários da corte e instaura um
Novo Regime. Uma das grandes novidades foi a difusão da
noção de que os homens são fundamentalmente iguais. Em
substituição ao abismo intransponível dos estamentos[2],
surge uma nova noção, a de classe. Na sua origem, esse
conceito está atrelado ao surgimento da burguesia – um
grupo que se define justamente pelos aspectos econômicos
e ocupacionais (e não mais apenas, simplesmente, habitantes
dos burgos). Assim, “classe social” conota uma hierarquização
que não se baseia em características inatas (espirituais ou
biológicas), mas em critérios econômicos, que não são divinos
ou necessários, mas construídos pelos próprios homens.

//
Após a Revolução Francesa, perguntas rondavam a cabeça
de nobres e burgueses: em que medida um grande evento Na teoria de Marx, uma classe de proprietários dos
como esse pode ocorrer de novo? Haveria outra classe capaz meios de produção, engendra necessariamente uma
de subver a recém-criada ordem burguesa? Por que foi a outra classe, de despossuídos – vendedores de sua
burguesia e não outro grupo a assumir o papel de protagonista? força de trabalho – chamada classe trabalhadora...
Esse é o pano de fundo sobre o qual nasce a discussão sobre
classes na teoria social. de classe e, por conseguinte, uma ação coletiva coordenada;
Na teoria de Marx, uma classe de proprietários dos meios possivelmente levando a uma Revolução Proletária.
de produção, engendra necessariamente uma outra classe, Movimentos como esse, de confronto e superação, teriam
de despossuídos – vendedores de sua força de trabalho – sido característicos da humanidade – por isso, Marx
chamada classe trabalhadora ou proletariado. Sob essa considerou que “a luta de classes é o motor da história”.
perspectiva, classes não estão ligadas ao consumo, mas Desse modo, seu diagnóstico analítico foi também uma
à produção. O monopólio dos meios de produção instaura prescrição para a ação. E assim, sua perspectiva sobre
um conflito de interesses: burgueses desejam extrair mais as classes tornou-se eminentemente política. Marx, no
ganhos e minimizar custos, chocando-se com o objetivo entanto, nunca formulou uma teoria fechada e explícita
dos trabalhadores, de viver (bem) a partir do salário. Como sobre as classes sociais. As classes sobre as quais “mais
o lado do proprietário é o lado forte, a tendência seria a se fala” são burguesia e proletariado. Mas outras classes
exploração crescente do trabalhador. Marx estabelece a às vezes figuram em seus textos (camponeses, pequenos
expectativa de que a exploração produziria uma consciência proprietários de terra, etc.)
28 SOCIOLOGIA ESPECIAL
// Weber critica diretamente a expectativa
marxista de que as classes necessariamente
funcionariam como base para a ação coletiva...

No modelo de Marx, o trabalhador “típico” é o operário podem ser reagrupadas até formarem novamente o
industrial. O final do século XIX e todo o século XX esquema binário burguesia-proletariado.
viram, no entanto, o crescimento de trabalhadores não Um ramo alternativo de abordagem foi desenvolvido por
ligados diretamente à produção – isto é, “não operários”. Max Weber; que definiu classe não apenas com base na
Trabalhadores de escritório, supervisores, gerentes, propriedade, mas nos interesses econômicos, na posição
diretores, além do grande volume de empregados do de mercado e nas oportunidades de vida dos indivíduos.
comércio e dos serviços. Isso gerou grandes desafios de Poderíamos dizer que a noção de “propriedade” foi
classificação. Gerentes, por exemplo, seriam proletários flexibilizada, englobando também capacidades, qualificações
ou capitalistas? Que critérios utilizar? O debate e conhecimento especializado. Weber critica diretamente a
neomarxista sobre classes sociais avançou muito nessas expectativa marxista de que as classes necessariamente
discussões. A tipologia de classes marxista mais bem funcionariam como base para a ação coletiva – ou seja,
acabada foi aquela desenvolvida pelo americano Erik Olin não podemos ter certeza de que as classes vão sempre
Wright – que sintetiza contribuições de diversos sociólogos determinar uma consciência comum e levar os indivíduos
anteriores. Para classificar os proprietários, Wright leva a se engajarem em atividades políticas, movidos por um
em conta não apenas a posse dos meios de produção, interesse comum. Essa seria uma oportunidade aberta,
como também o volume de empregados contratados. mas não algo necessário. Como Marx, Weber também
Entre os “não proprietários”, o grau de autoridade de não sistematizou de modo fechado sua explicação sobre
suas posições e o nível de qualificação para suas funções classes. A parte mais importante de suas análises sobre o
são determinantes. Assim, forma-se um quadro com assunto concentra-se num breve texto, que foi traduzido
diversos graus intermediários entre os trabalhadores para o português como “Classes, estamentos e partidos”.
não qualificados e os burgueses. Na sua versão mais Consequentemente, o debate neoweberiano sobre
acabada, o esquema de Wright tem doze classes, que classes sociais avançou sobre as lacunas das definições
29 SOCIOLOGIA ESPECIAL
originais de Weber, mantendo, contudo, seus fundamentos. características do emprego, assim como declaram suas
A proposta que obteve maior recepção foi o esquema de rendas e bens de consumo. Pois então... Sociólogos
classes formulado por Robert Erikson, John H. Goldthorpe argumentam que a posição no mercado de trabalho e o
e Lucienne Portocarero – e que, por causa de seus autores, nível de qualificação são informações mais importantes
recebeu a alcunha de EGP. Essa classificação leva em conta do que os rendimentos ou os itens possuídos. Dizer “ele
a ocupação e natureza contratual do trabalho (“posição no é um engenheiro” é mais informativo (sobre possíveis
mercado”), quantidade e a especificidade da qualificação modos de vida, posições políticas etc.) do que dizer
para realizá-lo, bem como o quanto a atividade é passível “ele ganha R$ 9 mil reais”. Além disso, as ocupações
de monitoramento e supervisão (ou requer autonomia permitem um diagnóstico mais confiável e estável sobre
e possibilidade de decisão). Em seu formato padrão, o as expectativas de rendimento de longo prazo: um médico
sistema EGP define 11 classes sociais, e também permite tem expectativas de rendimentos muito maiores do que
agregações e desdobramentos. as de um pedreiro – ainda que um médico no início de
Os pesquisadores crescentemente assumiram que os carreira possa até ganhar menos do que um determinado
esquemas de classe, longe de espelharem a realidade objetiva pedreiro experiente. Em outras palavras, os esquemas
das classes sociais, transformaram-se em ferramentas sociológicos de classes sociais captam aspectos mais
analíticas, que ajudam a compreender aspectos específicos perenes e estáveis das desigualdades sociais – enquanto
da realidade social. Desse modo, não faz sentido perguntar as classes econômicas atêm-se ao fluxo de renda no
qual classificação está correta ou quantas classes de fato curto prazo. Cabe destacar ainda que diversas pesquisas
existem. As classificações servem a diferentes propósitos e realizadas nas últimas duas décadas mostraram grande
captam dimensões diferentes do comportamento humano convergência dos diagnósticos traçados a partir dos
e da organização social. É consensual que a diferença entre esquemas neomarxista e neoweberiano.
proprietários e “não proprietários” seja fundamental –, mas No Brasil, a análise empírica de classes tem longa tradição,
também se tornou importante reconhecer a centralidade remontando aos anos 1950. Mas apenas na década de
das credenciais educacionais na determinação das 1970, com os trabalhos de Nelson do Valle Silva, Carlos
chances de vida de um indivíduo; assim como a natureza Hasenbalg e José Pastore há de fato o estabelecimento
dos contratos de trabalho e os níveis de autoridade e da área especializada da Sociologia que convencionamos
autonomia embutido nas tarefas ocupacionais. Todos chamar de Estratificação Social, da qual a contemporânea
esses aspectos vestem o indivíduo de “poderes sociais”, análise de classes faz parte. Mais recentemente, José
que se manifestam nas relações interpessoais, na política, Alcides Figueiredo Santos construiu uma adaptação do
na economia e também nas perspectivas de vida e nas esquema de classes de Wright para o contexto brasileiro,
mais íntimas aspirações e desejos individuais. As classes tornando-o compatível e aplicável às pesquisas e dados do
EGP foram formuladas para estudar principalmente os IBGE ou que se utilizam de critérios e medidas semelhantes.
padrões de mobilidade social, transmissão intergeracional Carlos Antônio Costa Ribeiro foi responsável por adaptar
de desigualdades e desigualdades de oportunidades. As o esquema EGP e difundi-lo por meio de suas pesquisas
classes de Wright descrevem mais detalhadamente os e publicações, partindo de um esquema de classificação
padrões de estruturação das desigualdades. ocupacional anterior, proposto por Silva e Pastore.
Ambos os esquemas, neomarxista e neoweberiano,
investiram muito nas formas de operacionalização do * Rogério Jerônimo Barbosa é bacharel em Ciências Sociais pela
conceito de classe, ou seja, em métodos para torná-lo Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte-MG, mestre
em Sociologia pelo Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia,
observável empiricamente. Mais do que um exercício Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (DS-FFLCH-
conceitual, esses esquemas de classificação são USP), São Paulo-SP, e doutorando na cátedra pela mesma instituição.
ferramentas, feitos para serem aplicados em pesquisas Pesquisa sobre desigualdades ligadas à educação no mercado de trabalho.
É também membro do Centro de Estudos da Metrópole (CEM/Cebrap).
de larga escala, permitindo comparações internacionais [1] Em valores de 2009. Retirado de NERI, Marcelo. A nova classe média.
e estudos de tendências temporais de longo prazo. Rio de Janeiro: FGV, 2010.
Em linhas gerais o uso desses esquemas de classe em [2] Forma de estratificação social geralmente baseada na ancestralidade,
na honra e na herança – não raro também elementos religiosos
pesquisas baseia-se no agrupamento de categorias e atributos como raça e sexo. Os estamentos são típicos do que
ocupacionais. As pessoas declaram suas ocupações e costumamos chamar “sociedades tradicionais”.
30 SOCIOLOGIA ESPECIAL
Max Weber e a
divisão da sociedade
// Conceitos básicos sobre a
estratificação social.
Hugo Neri*

D
e todos os fenômenos estudados pela 2000, p.33).
sociologia, o modo como a sociedade está O breve inciso nomeado de Classes, estamentos
dividida e os fatores que levam a tal divisão são e partidos, parte integrante de um dos textos não
o objeto de suas preocupações principais. Baseado inteiramente finalizados de Weber sobre Sociologia
nas concepções de Weber, o que chamamos de da Dominação, que em poucas páginas traz definições
sociedade seria um arranjo de indivíduos agindo e sobre o tema da estratificação social pela sociologia
se relacionando uns com os outros. No entanto, os weberiana, tornando-se altamente influente para
recursos materiais e simbólicos que os indivíduos têm as próximas gerações de sociólogos. Deve-se ter em
ao se relacionarem não são os mesmos, pois haveria mente também que “Classes, estamentos e partidos”
uma situação permanente de escassez de recursos que elabora, direta e indiretamente, uma dura crítica à
leva à concorrência e luta entre os agentes. Com isso, clássica concepção de classes do marxismo.
os indivíduos eventualmente entram em relações com A seguinte afirmação de Weber serve de eixo central
outros de maneira desigual, com interesses distintos para a compreensão do fenômeno da estratificação
que eles tentam atingir. social. Weber afirma: “Fenômenos da distribuição
O conceito de luta é fundamental para compreender do poder dentro de uma comunidade são, então, as
outro conceito crucial para a concepção de estratificação ‘classes’, os ‘estamentos’, e os ‘partidos’” (WEBER, 1999,
social de Weber: o conceito de poder. Assim, luta ou, p.176 – ênfases minhas). Em outras palavras, se nós
mais precisamente, uma relação social de luta ocorre tratarmos de olhar para o interior de uma sociedade,
quando os indivíduos orientam suas ações tendo como a fim de reconhecer o modo como a distribuição de
propósito impor a própria vontade contra a resistência poder ocorre, ou seja, como a sociedade está clivada,
de outros indivíduos. Poder ou uma relação de poder, dividida, estratificada, encontraremos ali esse arranjo
por sua vez, significa toda probabilidade de êxito entre classes, estamentos e partidos.
impor a própria vontade numa relação social, mesmo
contra resistências, seja qual for o fundamento dessa Classes
probabilidade. Fazendo a importante ressalva que: “o
conceito de poder é sociologicamente amorfo” (WEBER, Sobre as classes, a primeira preocupação de Weber

31 SOCIOLOGIA ESPECIAL
está em afirmar que as ‘classes’ “representam apenas o destino dos indivíduos de tal pluralidade (WEBER,
fundamentos possíveis (e frequentes) de uma ação 1999). Uma classe ou situação de classe seria, portanto,
social” (WEBER, 1999, p.176). Ou seja, as classes a situação em que um certo número de pessoas
repousam sobre uma probabilidade de existência e não depende de um produto ou um serviço que tem valor
numa existência essencial (sui generis) e determinada, econômico, regido pelo mercado, do qual depende
como seria uma definição característica do marxismo. a sobrevivência dessas pessoas (como industriais,
Para Weber, podemos falar de classe quando uma artesãos, advogados, médicos, etc.). Em suma, o que
pluralidade de indivíduos tem em comum um entendemos por classe é uma situação de classe em
componente causal específico de suas oportunidades uma situação de mercado , ou seja, é um fenômeno
de vida que seja representado, exclusivamente, por econômico.
interesses econômicos, em condições determinadas Nessa definição de classes, somos impedidos de
pelo mercado de bens ou de trabalho, sendo a pensar que uma classe em específico deve agir como
oportunidade de mercado um fator que condicionaria uma individualidade, com interesses e ações unívocos
32 SOCIOLOGIA ESPECIAL
e coordenados. Assim, é não possível imaginar que
todos os membros de uma classe se unificarão em prol // Não há uma luta de classes total, como a
concepção marxista vigente nos tempos
de uma causa, embora isso possa acontecer. Quando de Weber...
isso ocorre, geralmente deve-se a uma ameaça a sua
situação estabelecida de mercado ou a uma pretensão identidade política e ideológica.
de melhorar sua situação de mercado. Podemos
ilustrar com um exemplo relativamente recente: a Estamentos
reação que alguns médicos demonstraram no Brasil
(sobretudo, no Sudeste), contrários à vinda de médicos Diferentemente das classes sociais, os estamentos
cubanos, trazidos pelo governo federal. Esse seria um para Weber estão relacionados a um estilo de vida ,
exemplo de como a “reserva de mercado” teria sido em que os elementos de estima, prestígio ou honra
ameaçada, e como parte (e não todos) dos integrantes social são fundamentais. Dessa maneira, a situação
de tal classe reagiram. Não há uma luta de classes estamental, segundo Weber, é “aquele componente
total, como a concepção marxista vigente nos tempos típico do destino vital humano que está condicionado
de Weber, mas, como ele próprio afirma, haveria “lutas por uma específica avaliação social, positiva ou negativa,
de classes”. Portanto, notamos que Weber dissocia da honra, vinculada a determinada qualidade comum a
o engajamento político do engajamento econômico, muitas pessoas” (WEBER, 1999, p.180). A honra social é,
eles podem convergir, mas não necessariamente; então, a exigência de uma condução de vida específica
sendo que o fator que distingue as classes é o binômio (ou seja, um estilo de vida), que pretende ser exclusivo.
detenção-não detenção de propriedade e não uma Assim, “toda estilização da vida, quaisquer que sejam
33 SOCIOLOGIA ESPECIAL
suas manifestações, é de origem estamental, ou pelo princípios de seu consumo de bens, que se manifestam
menos, é estamentalmente conservada” (WEBER, em ‘conduções da vida’ específicas” (WEBER, 1999,
1999, p.183). Como exemplo, as vestimentas e os p.185).
utensílios utilizados por um padre ou bispo dentro da
cerimônia religiosa conjuntamente com sua conduta Partidos e dominação
de vida são elementos estamentais. Weber defende
que pretensões estamentais são constantes e, por Os partidos, diferentemente dos anteriores, são
isso, muitas vezes, antagônicas às meras pretensões um tipo de relação associativa que tem por finalidade
econômicas, virtualmente acessíveis para todos que adquirir e exercer o “poder político” – ou “poder
puderem adquirir determinados bens. Casos extremos social”, como diz Weber. Os partidos podem defender
de estamentos são geralmente conhecidos pelo termo interesses condicionados pelas situações de classe
castas, produzidos historicamente pelo pensamento ou pelas situações estamentais (como os partidos
e sociedade hindu. A diferença das castas para os cristãos, operariados e ruralistas no cenário político
estamentos está não apenas causada pela garantia brasileiro), mas não é uma exigência que os partidos
convencional e jurídica do uso de certos objetos, da representem classes ou estamentos. Eles “podem
ingestão de certas comidas, do acesso a certos lugares, constituir complexos efêmeros ou perenes, e seus
mas na “garantia ritual” de tal estilo de vida exclusivo. meios para alcançar o poder podem ser de natureza
O próprio Weber resume a diferença entre classes e mais diversas”, no entanto, os partidos sempre são
estamentos afirmando: “Poderíamos dizer, portanto, “uma formação que luta pela dominação” (WEBER,
exagerando um pouco na simplificação: as ‘classes’ 1999, p.186 – ênfases nossas).
diferenciam-se segundo as relações com a produção O conceito de dominação é de fundamental
e aquisição de bens, os ‘estamentos’, segundo os importância para explicar as razões de que se

//
Weber defende que pretensões estamentais são
constantes e, por isso, muitas vezes, antagônicas
às meras pretensões econômicas, virtualmente
acessíveis para todos que puderem adquirir
determinados bens.

34 SOCIOLOGIA ESPECIAL
//
Assim como a estratificação, há uma fina teia de
concepções e expectativas dos indivíduos que
garante a desigualdade e mantém, por diversas
vezes, todos os indivíduos em suas
devidas posições.
 
mantenha a situação de desigualdade. A dominação
é o conceito-chave na sociologia weberiana quando
garantida pelo Direito. Assim, a dominação burocrática
se tenta entender a maneira como se dá a sujeição
significa, em geral, a tendência ao nivelamento pelo
da maioria dos indivíduos para algo. Assim como
mérito/qualificação a partir dos profissionalmente
a estratificação, há uma fina teia de concepções
mais qualificados (em um mercado de trabalho) e à
e expectativas dos indivíduos que garante a
impessoalidade.
desigualdade e mantém, por diversas vezes, todos
As predominância estamental, por outro lado, está
os indivíduos em suas devidas posições. Em outras
fortemente relacionada à dominação de caráter
palavras, é a dominação que procura garantir que
tradicional. Como afirma Weber, “denominamos
os menos favorecidos não se voltem contra os mais
uma dominação tradicional quando sua legitimidade
favorecidos. Assim, a definição de dominação é: “a
repousa na crença na santidade de ordens e poderes
probabilidade de encontrar obediência a uma ordem”
senhoriais tradicionais” (WEBER, 2000, p.148). É com
(WEBER, 2000, p.33). Já a situação de dominação é a
base nesta crença de uma ordem que não é apenas
presença efetiva de alguém mandando eficazmente
deste mundo, que uma ampla parcela de indivíduos
em outros. No entanto, vale salientar que deve haver
não privilegiados em uma sociedade conseguem
sempre um certo mínimo de disposição em obedecer,
reconhecer e aceitar o privilégio estamental de outros
deve haver algum interesse nessa obediência, e é isso
indivíduos. O carisma (e a dominação carismática)
o que caracteriza a relação autêntica de dominação. E,
também desempenham um importante papel na
em toda dominação legítima, além do puro interesse
manutenção do estado de coisas. O carisma é uma
na obediência, deve haver por parte dos agentes uma
qualidade pessoal considerada como extracotidiana
certa crença na legitimidade da dominação, de modo
ou extraordinária, como é o caso de profetas, magos,
o qual eles orientam suas ações nessas expectativas.
sábios curandeiros, alguns legisladores, chefes de
E de maneira inversa, todo quadro de dominação tem
caçadores, heróis de guerra, políticos demagógicos,
a pretensão de inculcar nos indivíduos essa crença na
alguns líderes de modo geral. Por outro lado, o carisma
legitimidade.
é o elemento transformador da sociedade: ele instaura
Weber propõe três tipos puros de dominação, que
novos estilos de vida e derruba antigos, incidindo,
seriam encontrados na vida real com alguns graus
sobretudo, nas sociedades estamentais, mas com
de mistura: a dominação de caráter burocrático
força muito menor nas sociedades com predomínio de
(legal-racional); a dominação de caráter tradicional; a
classes.
dominação de caráter carismático.
Podemos associar, também, essas três formas de *Hugo Neri é sociólogo, com graduação e mestrado pela Faculdade
dominação com a predominância histórica em uma de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo (FFLCH-USP), em São Paulo-SP. Desenvolve pesquisas
sociedade exercida por classes ou por estamentos.
nas áreas de Sociologia Alemã, de Teoria do Conhecimento e de
Assim, nas sociedades modernas em que o capitalismo Linguagem. e-mail: hugo.neri@hotmail.com.
avançou muito, as classes se tornam o principal
Referências bibliográficas:
elemento diferenciador dos indivíduos e, portanto,
WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia
para que as condições ideias da situação de mercado compreensiva v.I, 4ªed. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
se mantenham, é preciso contar com uma autoridade 2000.
WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia
impessoalizada, e esta somente pode ser garantida compreensiva v.II, 4ªed. Brasília: Editora Universidade de Brasília;
pela administração burocrática fundamentada e São Paulo: Imprensa oficial do Estado de São Paulo, 1999.

35 SOCIOLOGIA ESPECIAL
A TEORIA DO
CAPITAL DE
BOURDIEU
//
A contribuição de Pierre Bourdieu para o estudo
sociológico das desigualdades sociais.
Edison Ricardo E. Bertoncelo*

36 SOCIOLOGIA ESPECIAL
O
termo desigualdades sociais se refere a disparidades
existentes entre indivíduos nas chances de acesso
a bens e recursos sociais escassos e disputados.
Tais bens e recursos podem ser de vários tipos e variam
historicamente. Em sociedades capitalistas como a
nossa, por exemplo, ter um bom emprego é algo bastante
valorizado porque aumenta as chances de acesso a

//
recursos imateriais igualmente valorizados, como o
prestígio, o reconhecimento, a autoestima e, também, a
Em sociedades capitalistas como a nossa, por
exemplo, ter um bom emprego é algo bastante
certos bens ou recursos materiais, como a compra de uma
valorizado porque aumenta as chances de acesso
boa casa, do “carro do ano”, dos aparelhos eletrônicos mais
a recursos imateriais igualmente valorizados...
avançados, etc. Porque determinados bens ou recursos –
 
que podem ser, como vimos, de tipo material ou imaterial –
são mais valorizados do que outros, eles são intensamente associar suas notas baixas na escola ou suas dificuldades
disputados pelos indivíduos e se tornam escassos, ou seja, de aprendizado somente ao fracasso individual, quando
não estão igualmente disponíveis para todos eles. sabemos que as condições de acesso a uma boa educação
As chances de acesso a esses recursos ou bens variam são extremamente desiguais em nossa sociedade.
em função das posições ocupadas pelos indivíduos na Isso significa que, nos casos desses estudantes, suas
sociedade. Nas sociedades estamentais, por exemplo, dificuldades de aprendizado têm a ver, em parte, com
a nobreza possuía o monopólio da honra. Tais chances condições objetivas, que independem de suas vontades
variam, também, em função das propriedades dos agentes ou ações. Quando digo que essas dimensões objetiva e
ou, em outros termos, das características dos indivíduos. subjetiva nem sempre coincidem, quero enfatizar que as
Assim, os que moram no interior dos estados brasileiros têm desigualdades podem ser percebidas por alguns como
menores chances de acesso a bens culturais, como cinema, justas, porque são resultantes de diferenças individuais em
teatro, espetáculos musicais, etc. Em algumas sociedades, termos de talento, mérito, esforço. Ou, ao contrário, podem
mulheres e negros frequentemente têm maiores ser percebidas como injustas, possivelmente ameaçando a
dificuldades do que homens e brancos para conseguir ordem social que as sustenta. Assim, é no confronto entre
determinados empregos ou incrementar suas rendas do essas dimensões que podemos tentar responder à seguinte
trabalho, por causa do gênero e da cor, respectivamente. questão: por que e como, em sociedades tão desiguais como
Os determinantes das chances de acesso a a nossa, em termos do acesso a renda, serviços, prestígio,
oportunidades de vida operam independentemente da bem-estar, etc., a ordem social se mantém relativamente
percepção que deles possam ter os indivíduos. Ou seja, as intacta ao longo do tempo?
dimensões objetiva e subjetiva das desigualdades sociais Os estudos do sociólogo francês Pierre Bourdieu podem
nem sempre coincidem. Por exemplo, estudantes podem ser de grande auxílio nessa difícil tarefa. Utilizo neste texto
37 SOCIOLOGIA ESPECIAL
uma obra em especial desse autor, A distinção: crítica social estudo das desigualdades em sociedades capitalistas
do julgamento, originalmente publicada em francês em 1979 é sua ênfase sobre as múltiplas dimensões pelas quais

//
(traduzida para o português podemos diferenciar as
Em seus estudos, Bourdieu constrói uma
em 2008). Em seus estudos, posições sociais e os
importante teoria sobre as desigualdades em
Bourdieu constrói uma sociedades capitalistas e sobre seus mecanismos indivíduos que as ocupam.
importante teoria sobre de legitimação, que dificultam a percepção de que Em sociedades desse tipo,
as desigualdades em são injustas ou indevidas. são quatro as espécies de
sociedades capitalistas e   capital mais importantes
sobre seus mecanismos de que podem ser possuídas
legitimação, que dificultam a percepção de que são injustas pelos indivíduos: o capital econômico, que corresponde a
ou indevidas. Para compreendermos como o autor tratou diferentes modalidades de recursos econômicos, como
de tema tão complicado, comecemos pelo modo como ele recursos financeiros, monetários, patrimoniais, etc.; o
entendia a sociedade. capital cultural, que se refere a conhecimentos ou saberes
possuídos pelos indivíduos, especialmente sob uma forma
Capital incorporada; o capital social, conjunto de relacionamentos
a que os indivíduos podem recorrer para alcançar seus
Para Bourdieu, a sociedade deve ser vista como um objetivos, e, por fim, o capital simbólico, que se refere à
espaço de posições sociais, ocupadas pelos indivíduos maneira como o indivíduo é reconhecido pelos demais.
em função dos capitais que possuem. Capitais, no As posições sociais podem ser diferenciadas em termos
plural. Uma das grandes contribuições do autor para o das combinações mais ou menos prováveis dessas espécies
38 SOCIOLOGIA ESPECIAL
de capital. Cabe à pesquisa empírica mostrar como tais
capitais se combinam concretamente em cada sociedade,
em um determinado momento histórico. Alguns exemplos,
no entanto, podem nos ajudar. Há indivíduos que possuem
um grande volume de todas as espécies de capital: os muito
ricos, com enorme patrimônio, altamente escolarizados,
com muitos contatos importantes em diferentes esferas da
vida e reconhecidos como “grandes profissionais” em suas
áreas de atuação. No polo oposto, encontramos aqueles que
possuem pouca quantidade de cada uma dessas espécies
de capital: pobres, com pouco ou nenhum patrimônio,
baixa escolaridade, inseridos em redes de relações que são
pouco úteis para lhes permitir ascender socialmente e que
não conseguem obter reconhecimento social. Note que o

//
reconhecimento não decorre de qualidades intrínsecas à
pessoa, mas de como tais características são socialmente ...é possível imaginar indivíduos que possuam
percebidas e, então, valorizadas ou estigmatizadas nas
relativamente mais capital cultural do que capital
econômico, como os professores, os intelectuais,
interações sociais. Além disso, é possível imaginar indivíduos
os artistas... 
que possuam relativamente mais capital cultural do que
capital econômico, como os professores, os intelectuais, os mais línguas estrangeiras e que sabem utilizar a norma culta
artistas, ou, de outro lado, aqueles que possuem muito capital da língua em situações sociais em que isso é esperado (como
econômico e pouco capital cultural, como empresários que em entrevistas de emprego) têm mais chances de obter uma
se tornaram muito ricos a despeito da pouca escolaridade boa inserção profissional do que aqueles que não possuem
formal, mas que se valem de seu senso prático para os esses conhecimentos.
negócios. Há, também, aqueles que, a despeito de serem ricos A teoria de Bourdieu não para por aí: ela também
e altamente escolarizados, não conseguem ser socialmente trabalha com a dimensão do tempo. Os indivíduos
reconhecidos como “pessoas de destaque”. Imaginemos, por “nascem” em uma determinada posição social: alguns
fim, aquelas pessoas que, “vindo de baixo”, têm dificuldades vêm de famílias pouco privilegiadas; outros, de famílias
para converter suas qualificações educacionais, adquiridas muito privilegiadas. Diversos estudos evidenciam que
a duras penas, em bons empregos e bons salários, porque as chances de alguém obter bom emprego, dinheiro,
carecem de certos contatos sociais. prestígio, reconhecimento variam em função da origem
social: quanto mais privilegiada for a origem social (ou seja,
Ordem social quanto maior o volume de capitais acumulados no seio
familiar), maiores as chances de isso ocorrer. Imaginemos
Podemos imaginar diversos outros exemplos. Os que um estudante que, vindo de uma família que acumulou
demos bastam para ilustrar as possibilidades oferecidas recursos econômicos, tem a possibilidade de estudar em
por Bourdieu para pensarmos como os indivíduos estão uma “boa” escola, postergar seu ingresso no mercado de
diferentemente posicionados na sociedade. E por que isso é trabalho até acabar seus estudos universitários e contar
importante para o estudo das desigualdades sociais? Porque com a ajuda financeira dos pais enquanto não alcançar a
tais capitais são recursos que os indivíduos empregam nas posição esperada. Este estudante tem, obviamente, mais
disputas que travam entre si pelos bens sociais valorizados chances de conseguir aquilo que a maioria das pessoas
em diferentes esferas da vida. Em outras palavras, o controle sonha em ser e ter do que outro que, tendo origem social
em maior ou menor quantidade das diferentes espécies de pouco privilegiada, tem que se sacrificar conciliando
capital interfere nas chances de um indivíduo obter, nas trabalho precário e estudo em escola de pior qualidade.
diferentes situações em que se encontra, os bens vistos Não que este esteja necessariamente fadado ao fracasso
como dignos de serem possuídos pelos diferentes grupos em e aquele, ao sucesso. Há muitos exemplos do contrário.
uma sociedade. Por exemplo, aqueles que conhecem uma ou No entanto, as chances de sucesso para um e outro são
39 SOCIOLOGIA ESPECIAL
isso significa que as disparidades no acesso àquilo que a maioria
das pessoas sonha em ser e ter não podem ser simplesmente
explicadas como resultantes de diferenças individuais de
talento ou de esforço. No entanto, é assim que as pessoas
tendem a perceber tais disparidades. A título de exemplo, uma
pesquisa recentemente realizada no Brasil (SCALON, 2004)
evidenciou que a maioria das pessoas concorda que a sorte e
a inteligência, nesta ordem, são fatores importantes para que
se possa “subir na vida” e discordam que “vir de uma família
rica” seja fator decisivo para isso. Como podemos interpretar
tais resultados? Podemos dizer que as causas mais profundas
das desigualdades sociais são dissimuladas, no sentido de que
os indivíduos não reconhecem, no plano da consciência, que
as condições para o amadurecimento de talentos individuais
(como a inteligência) e para a realização eficaz do esforço não
estão igualmente acessíveis a todos. E tal dissimulação ocorre
porque a transmissão de privilégios, tanto materiais quanto
imateriais, se dá de maneira lenta, difusa, em grande medida
dentro da esfera privada. Isso que faz com que os “herdeiros”
se vejam e sejam vistos como “merecedores” dos privilégios
que alcançam, distinguindo-se dos que deles já estão excluídos
de antemão. Estes, muitas vezes por não se verem como

//
...as disparidades no acesso àquilo que a maioria
das pessoas sonha em ser e ter não podem ser
dignos dos privilégios que lhes são negados, autoexcluem-se
da competição pelos bens socialmente mais valorizados. Isso,
simplesmente explicadas como resultantes de talvez, explique por que a maioria dos estudantes de escola
diferenças individuais de talento ou de esforço.  pública, que termina o Ensino Médio, nem sequer se arrisca
nos vestibulares das universidades mais concorridas.
muito desiguais. E por que é assim? Porque as famílias se Estamos agora em condições de responder à questão
esforçam para transmitir às gerações mais novas aquilo colocada no início: em uma sociedade como a brasileira,
que acumularam ao longo das gerações anteriores. E os perpassada por desigualdades de vários tipos (no acesso
indivíduos podem herdar diferentes coisas dependendo a renda, status, serviços públicos, cultura, moradia, etc.), a
de sua origem social: podem herdar coisas materiais, manutenção da ordem social depende, entre outros fatores, de
como dinheiro e patrimônio, ou imateriais, como o gosto um mecanismo de legitimação que transfigura as condições
pela ciência, pela leitura, pelos estudos, pelo aprendizado desiguais de acesso a certos bens e recursos em diferenças
da língua culta. Eles podem herdar, ainda, determinadas de merecimento individual, encobrindo, dessa maneira,
disposições de conduta, como o pensamento prospectivo, os privilégios que pré-decidem os prováveis vencedores e
que lhes estimula a organizar suas rotinas diárias em perdedores na competição social.
função daquilo que desejam obter “lá na frente”, e a
* Edison Ricardo E. Bertoncelo é professor de Sociologia do
disciplina necessária para alcançar esse objetivo. Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e
Percebam que Bourdieu nos alerta para algo Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (DS-FFLCH-USP), São
Paulo-SP, desde 2013. Suas áreas de pesquisa incluem temas como
aparentemente trivial, mas que é frequentemente esquecido, ação coletiva, desigualdades, classes sociais e estilos de vida. É autor
por não ser plenamente reconhecido: que os indivíduos estão de diversos artigos na área e do livro A campanha das Diretas e a
democratização (2007).
desigualmente capacitados para a disputa social (por bons
empregos, qualificações educacionais, dignidade, bem-estar) Referências bibliográficas:
em função dos diferentes pontos de partida em que iniciam BOURDIEU, P. A Distinção: a crítica social do julgamento. São Paulo:
Edusp; Porto Alegre: Zouk, [1979] 2008.
suas trajetórias de vida e, portanto, das diferentes “bagagens” SCALON, C. (org.) Imagens da desigualdade. Belo Horizonte: Editora da
que carregam consigo. Retomando o que dissemos no início, UFMG, 2004.

40 SOCIOLOGIA ESPECIAL
ARTE:
CONCEPÇÕES DE (DES)IGUALDADE

41 SOCIOLOGIA ESPECIAL
Karl Marx e // Partindo do
trabalho enquanto

as classes fenômeno social,


Karl Marx delineou
sociais uma teoria das
classes definida a
Diego Tavares Santos*
partir do embate
D entre a burguesia e
o que os seres humanos precisam para viver?
Alimento, moradia, medicamentos, roupas,
telefone, automóvel, avião, computadores,
instrumentos musicais, jornais, revistas, livros, etc. As o proletariado.
necessidades humanas variaram enormemente ao
longo da história e conforme as diferentes culturas. historicamente houve várias formas diversas de trabalho
Um fato, entretanto, é indiscutível: em qualquer época (cooperação primitiva, trabalho escravo, servidão, etc.), de
ou sociedade, tudo o que é necessário para a vida maneira que o trabalho visto como emprego profissional
humana é resultado da interação dos seres humanos é apenas a forma contemporânea criada nas sociedades
com a natureza. Estabelecemos relações sociais capitalistas industriais. Em suma, para produzir tudo o
para interagirmos com a natureza e coletivamente que precisamos para viver, estabelecemos uma relação
produzirmos tudo o que está ao nosso redor e de que social primordial: a relação social de trabalho. Só pode
tanto precisamos para viver. Tal interação primordial haver vida humana caso exista o trabalho entendido
dos seres humanos entre si e destes com a natureza, se como um fenômeno social.
chama sociologicamente de trabalho. Além disso, Karl Marx afirmava que por meio do
Na sociologia clássica, tal constatação foi apontada trabalho o ser humano se humaniza. Ou seja, o que nos
por Karl Marx (1818-1883), a qual, por isso, afirmava torna humanos é o fato de trabalharmos, pois, em tal
que, apesar de termos várias necessidades, a primeira atividade, articulam-se todas as habilidades humanas:
necessidade humana era efetivamente o fato de todos a partir de uma necessidade, projetamos racionalmente
termos de trabalhar. Mas deve-se destacar que Marx algo que possa supri-la e interagimos com a natureza
não estava pensando em trabalho como sinônimo para mobilizar os recursos necessários para produzir
de profissão ou de emprego. Apenas na sociedade um bem; tudo isso sendo feito por meio da cooperação
capitalista industrial é que trabalhar passou a ser o entre diversos seres humanos que se relacionam para
mesmo que ter um emprego ou uma profissão. Para Marx, trabalhar coletivamente.
42 SOCIOLOGIA ESPECIAL
// …Marx indicou que, na sociedade
capitalista contemporânea, as
relações sociais de trabalho
funcionam de forma a dividir
os seres humanos em classes
sociais que têm papéis diversos
na produção social dos bens
necessários à vida.

Trabalho e classe social trabalho foram expropriados dos trabalhadores, deixando-


os desamparados a não ser se vendessem seu tempo
A partir dessa percepção, Marx indicou que, na sociedade de trabalho aos capitalistas. Para Marx, a classe social
capitalista contemporânea, as relações sociais de trabalho que junta os proprietários das máquinas é a burguesia,
funcionam de forma a dividir os seres humanos em enquanto a classe social que só sobrevive se vender seu
classes sociais que têm papéis diversos na produção trabalho aos burgueses é o proletariado. O segundo fator é
social dos bens necessários à vida. No capitalismo, em vez que na sociedade capitalista é permitido comprar o tempo
de a relação social de trabalho ser benéfica a todos, ela de trabalho como se isso fosse uma mercadoria qualquer.
funciona menos para atender às necessidades humanas e Assim, se é verdade que nas revoluções burguesas a luta
mais para fazer crescer o lucro dos industriais capitalistas, pela liberdade foi feita por questões filosóficas e idealistas,
explorando os trabalhadores. Em sua obra O Capital, Marx é ainda mais verdade que a burguesia liderou revoluções
observou de perto como são as relações de trabalho na porque era necessário que os trabalhadores fossem livres
sociedade capitalista e demonstrou como se efetiva a para que pudessem vender seu tempo de trabalho aos
exploração capitalista no interior de cada fábrica, ou seja, capitalistas.
ele investigou de perto e profundamente a exploração da Assim, Marx demonstrou que no capitalismo
classe burguesa sobre a classe trabalhadora. industrial os trabalhadores não decidem o que e
Segundo Marx, há dois fatores principais que geraram a nem quanto é necessário produzir, bem como não
exploração de uma classe sobre a outra. O primeiro fator decidem quanto e como devem trabalhar. Todos
é que cada trabalhador não tem acesso aos instrumentos apenas respeitam as ordens dadas pelo patrão que
(máquinas) necessários para trabalhar, de maneira que os os contratou. Dessa maneira, o proletariado exerce
trabalhadores não têm outro meio de viver, senão vendendo um tipo de trabalho destituído de qualquer atrativo e
seu tempo de trabalho para aqueles que são proprietários interesse, em que tudo lhes é imposto; pior ainda: cada
de tais instrumentos e máquinas. Há vários estudos operário tende a ser responsável por fazer apenas
historiográficos que mostram como os instrumentos de pequenas tarefas especializadas e repetitivas que
43 SOCIOLOGIA ESPECIAL
// De antemão, não é possível definir quem
vencerá essa disputa, o resultado da luta de
classes depende da força de cada classe social
e de diversos outros fatores políticos, culturais
[…e…] econômicos...

seguem o ritmo alucinante das máquinas. uma quantidade de bens que, depois de vendidos, não
Do ponto de vista do burguês, a ambição é produzir o retornarão integralmente para o operário na forma de
máximo possível para vencer a concorrência contra os salário. Depois de vendida toda a produção, a menor parte
outros capitalistas. Para tanto, procurará pagar o menor daquilo que o operário produziu já seria suficiente para
salário possível para poder investir em máquinas e assim pagar seu salário, enquanto a maior parte é apropriada pelo
vencer a disputa contra seus concorrentes capitalistas. burguês. O capitalista tentará fazer com que o trabalhador
O burguês fará tudo que for necessário para tornar sua produza o máximo possível para que seja formada uma
fábrica mais produtiva: tentará impor um aumento do massa maior de mais-valia, tornando assim a empresa
ritmo de trabalho; dividirá o trabalho dos operários em mais lucrativa. Com grande produtividade do trabalho, em
tarefas especializadas - o que torna mais fácil diminuir os um tempo menor os operários produzem a quantidade de
salários e treinar um operário para que ele possa substituir bens que depois de vendidos pagarão seus salários, de
os trabalhadores descontentes e/ou improdutivos. maneira que trabalham o resto da jornada apenas para
aumentar o lucro de seu patrão.
Luta de classes Segundo Marx, há um aspecto importante que
deve ser ressaltado: o trabalhador vende seu tempo
Marx mostrou, ainda, como a produção capitalista de trabalho para o capitalista, mas no contrato de
é apropriada privadamente pelos burgueses por meio trabalho não há uma definição da intensidade exata do
da formação e expropriação da mais-valia. Ou seja, ao trabalho. Assim, do ponto de vista do capitalista, há o
longo da jornada de trabalho, cada trabalhador produz interesse de fazer com que cada trabalhador produza
44 SOCIOLOGIA ESPECIAL
o máximo possível durante a jornada de trabalho. Já igualmente: em vez de tornar possível uma diminuição
do ponto de vista do operário, é mais racional trabalhar da jornada de trabalho para todos, no capitalismo os
num ritmo saudável e que respeite seus limites físicos proprietários da tecnologia preferem deixar muitos
e mentais. Essa contradição básica da produção social desempregados, aumentando a miséria e as mazelas
da vida é o motor que impulsiona toda a luta de classe decorrentes de tal ação. A tecnologia acessível à
no capitalismo: burgueses querem que os proletários sociedade é apenas aquela aplicada nos bens voltados
trabalhem mais e de forma mais produtiva, pagando ao consumo de massa, como diversos produtos
pequenos salários; proletários querem que o trabalho eletrônicos destinados geralmente ao lazer.
respeite seus limites físicos e mentais, além de exigir No século XIX, Marx previu que a luta de classes
mais salário e menor jornada de trabalho. tenderia a criar uma situação em que todos os grupos
De antemão, não é possível definir quem vencerá sociais perceberiam que a vitória da classe operária
essa disputa, o resultado da luta de classes depende era o equivalente à vitória da grande maioria da
da força de cada classe social e de diversos outros sociedade, exceto, é claro, da burguesia. Assim, propôs
fatores políticos, culturais, econômicos, etc. De todo que as contradições da sociedade capitalista seriam
modo, o poder econômico da burguesia faz com que ela resolvidas apenas se houvesse uma revolução social que
imponha seu modo de pensar e ver o mundo por meio transformasse as relações sociais capitalistas de trabalho
de sua dominação política e ideológica. Para Marx, o e, assim, destruísse todas as classes sociais. Ou seja, uma
principal recurso utilizado para a dominação de classe revolução que pudesse fazer com que o trabalho deixasse
é a dominação política por meio do Estado e do Direito. de ser uma atividade explorada pela burguesia, permitindo
Mas a burguesia consegue dominar hegemonicamente que essa classe enriquecesse à custa da grande maioria
valendo-se, também, da cultura, ou seja, por meio da da sociedade. As revoluções socialistas que ocorreram ao
influência sobre as escolas, as universidades, as religiões, longo da história ambicionaram iniciar esse processo de
as artes, valendo-se desses instrumentos para fazer transformação para levar a humanidade ao comunismo.
com que todos pensem, acreditam e sintam que o modo Por diversas razões os planos socialistas se frustraram,
burguês de ver o mundo é a única ou a melhor maneira mas os impasses e contradições capitalistas continuam.
de vê-lo. Evidente que, em cada uma dessas esferas Após a queda do muro de Berlim e o fim da União
da vida social, há quem critique e resista à dominação Soviética, pensou-se que o capitalismo enfim venceu a
burguesa, todavia, a força econômica da burguesia é batalha, destituindo de sentido a ideia de que há luta de
capaz de neutralizar a força política e social desses que classes. Entretanto, ainda que as velhas formas de lutar
não aceitam pacificamente a dominação de classe. contra o capitalismo talvez não sejam mais eficazes para
Como se vê, a luta de classes toca mais diretamente lidar com os problemas contemporâneos, o fato é que
a vida dos operários industriais, todavia, no fundo ela nos últimos anos houve um recrudescimento das lutas
interessa a todos. Atualmente, percebe-se de forma sociais, primeiro na América Latina (nas lutas contra
muito clara, que o ímpeto capitalista de produzir faz o neoliberalismo), depois na África (com a Primavera
com que as sociedades industriais utilizem a natureza Árabe) e na Europa (nas lutas contra as políticas
de forma desenfreada e irresponsável, ameaçando o anticrise surgidas após 2008). As formas de exploração
meio ambiente e, portanto, todos os seres humanos. do trabalho foram renovadas e as experiências de luta
Além disso, na sociedade capitalista, há uma tendência contra a exploração capitalista ainda não conseguiram
crescente para que tudo seja alvo da produção adequar-se a todas as mudanças ocorridas nos últimos
industrial, submetendo todos os seres humanos 30 anos. De qualquer maneira, ainda que de forma mais
à lógica capitalista: trabalho árduo intensamente complexa e considerando os equívocos das experiências
produtivo, com salários que pagam apenas o socialistas, continua existindo, e de forma ainda mais
bastante para sobreviver: advogados, engenheiros, intensa, a contradição entre os interesses da burguesia e
médicos, professores, enfim, todos tendem a sofrer o futuro da grande maioria da humanidade.
com a dominação de classe. Além disso, apesar de o
Diego Tavares dos Santos é bacharel em Direito e em Ciências Sociais,
desenvolvimento tecnológico melhorar a vida humana; com mestrado em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), em
por outro lado, esses benefícios não atingem a todos São Paulo-SP.

45 SOCIOLOGIA ESPECIAL
A igualdade entre os
homens é possível? Danilo Godinho*

O
riundo de uma família aristocrática, Platão A importância de Platão para a história da filosofia se dá por
inicialmente tinha planos de seguir carreira vários motivos. No entanto, ressaltam dois em especial: sua
política assim como os membros de sua capacidade de sistematizar as falas de seu mestre Sócrates
família. No entanto, quando soube da corrupção de em um sistema filosófico moral e a antecipação de reflexões
todo um sistema político desistiu de tal ocupação. Seu que seriam desenvolvidas apenas no período moderno. Nesse
encontro com Sócrates, ainda jovem, foi decisivo nas artigo, focaremos brevemente alguns pontos do início de seu
mudanças de planos. Esse encontro mudou e definiu o mais famoso livro A República, especialmente a questão da
futuro do jovem aristocrata. igualdade social segundo o ideal de kallipolis - a bela cidade.
46 SOCIOLOGIA ESPECIAL
O comunismo em Platão

No entanto, antes do ponto em questão, faz-se necessário


uma rápida e distinta introdução à obra citada. A República,
foi um dos mais longos diálogos platônicos e neste livro
encontramos resumidamente, a partir de um viés político
grande parte de sua filosofia. A escrita ímpar de Platão,
como crítica à sociedade grega de sua época, é salientada por
Casertano (2011, p. 13):
“Com efeito, o programa político central da República,
o famoso ‘comunismo’ platônico que Sócrates expõe no
diálogo, é expressão de uma visão política revolucionária
que não se identifica nem com o programa democrático
nem com o oligárquico que combatiam dramaticamente
naqueles anos turbulentos da história interna de Atenas e
das outras cidades da Grécia”.
Essa obra possui o ideal platônico para a justa cidade.
Portanto, muito sabiamente, na construção de seus diálogos,
o autor destaca que, para o bom funcionamento da cidade,
há a necessidade de quatro quesitos, sendo eles: coragem,
sabedoria, temperança e, automaticamente, justiça.
Em seu primeiro diálogo, Platão insere Sócrates em
discussão com seus conhecidos (Céfalo, Gláucon, Adimanto,
Trasímaco e Polemarco) sobre a definição do que seria a
justiça. Inicia-se uma série de diálogos, e sendo posto à prova o
método socrático de perguntas (a maiêutica[1]). Entre as mais
variadas perguntas sobre o que se define por justiça, temos
uma resposta por Céfalo: é “dizer a verdade e restituir aquilo
que se tomou” (PLATÃO, 2012, p.9). Nesse momento, Sócrates
retruca: seria certo devolver a alguém sua arma mesmo que
este esteja fora de sã consciência? Sócrates é encarado como
um falastrão e alguém que sabe apenas perguntar e nunca
responder. Por fim, o diálogo termina por questionar se quem
vive melhor é o cidadão justo ou injusto, que seria justamente
aquele que se passa por justo sem sê-lo.
No segundo livro, há ainda a insistência por parte dos irmãos
Gláucon e Adimanto em ressaltar que a discussão sobre
justiça não foi resolvida. Sendo assim, Sócrates ainda faz uma
inusitada e sábia revelação sobre o exemplo de como se dá o
início de uma cidade: “Uma cidade tem a sua origem, segundo
creio, no facto de cada um de nós não ser autossuficiente, mas,
sim, necessitado de muita coisa. Ou pensa que uma cidade se
forma por qualquer outra coisa?”, (PLATÃO, 2012, p. 72). Temos,
afinal, a ampliação do problema do indivíduo para a cidade. Ou
seja, do particular para o universal, uma visão panorâmica
acerca do entendimento de justiça até seu desabrochar no
sistema comum da bela cidade platônica. É então, que Sócrates
47 SOCIOLOGIA ESPECIAL
nos revela: “Penso também que, em primeiro lugar, cada um de diremos ao contar-lhes a história – mas o deus que vos
nós não nasceu igual a outro mas, com naturezas diferentes, modelou, aqueles dentre vós que eram aptos para governar,
cada um para a execução de sua tarefa”, (PLATÃO, 2012, p.74). misturou-lhes ouro na sua composição, motivo por que sois
Ora, num primeiro momento, a cidade nasce da necessidade os mais preciosos; aos auxiliares, prata; ferro e bronze aos
comum dos homens que carecem da habilidade do seu lavradores e demais artífices. Uma vez que sois todos parentes,
próximo para a produção e manutenção dos bens essenciais. na maior parte dos casos gerareis filhos semelhantes a vós,
“Portanto, talvez exista uma justiça, na qual, numa escala mas pode acontecer que do ouro nasça uma prole argêntea,
mais ampla, e mais fácil de apreender. Se quiserdes então, e da prata uma áurea, e assim todos os restantes, uns dos
investigaremos primeiro qual a sua natureza nas cidades. outros” (PLATÃO, 2012, p. 156).
Quando tivermos feito essa indagação, executá-la-emos Primeiramente, o projeto de cidade platônica é ser dividida
em relação ao indivíduo, observando a semelhança com o e habitada por homens e mulheres, de igual modo na partilha
maior na forma do menor”, (PLATÃO, 2012, p. 72). Com o dos afazeres diários, sem preconceito sobre a diferença entre
desenvolver da cidade e, respectivamente, a especialização os sexos. Platão prega que mulheres, prontamente com os
da mão de obra para bens de consumo, surgem leis e homens, possuem o direito de exercícios em praça pública.
constituição para a cidade. Também vela-se o direto dos cidadãos que são pertencentes
É assim necessária a inserção do mito do Anel de Giges. da classe de ouro da cidade algumas não possuírem bens
Mito esse que se baseia na história de um pastor que particulares e mesmo não se valendo para a possessão de
encontra um anel mágico que tem o poder de deixar invisível coisas ou cônjuges:
quem o possui. Já em posse do anel, mata o príncipe e casa “Que estas mulheres todas serão comuns a todos esses
com sua esposa. Sócrates argumenta: “E isso prova que homens e nenhuma coabitará em particular com nenhum
ninguém é justo espontaneamente, mas apenas porque é deles, e por sua vez, os filhos serão comuns e nem os pais
obrigado”, (PLATÃO, 2012, p. 37). saberão quem são os seus próprios filhos, nem os filhos seus
Entre as diversas discussões contidas no texto, a genialidade
pais” (PLATÃO, 2012, p. 223).
A audácia para um projeto de cidade justa também
do autor grego evidencia-se em suas diversas provocações
ultrapassou o limite do moralismo grego da época fazendo
filosóficas, como o entrelaçamento da alma com a cidade, o
com que os guardiões guerreiros possuíssem privilégios para
que é nomeado de tripartição da alma platônica. Portanto,
se proliferarem com as melhores de sua estirpe. Mas de modo
uma cidade comparada ao corpo possui os mesmos sintomas,
algum pudessem conhecer aqueles de sua prole e também
afinal um bom corpo será justo, um corpo doente será injusto.
não suspeitarem que alguma mulher esperasse um filho seu.
Eis que Platão valoriza além da educação do corpo pela
A pergunta que temos é se Platão arquitetou também o que
ginástica e exercícios paramilitares. Mas valoriza em especial
ocorreria após essas demandas de novas proles. Sim, há um
a educação dos cidadãos pela música, arte e poesia, como
ambiente todo armado e bem estruturado para acolhimento
Sócrates retoma:
dos nascidos dos “melhores”. Eles seriam levados para fora
“A mim não me parece ser o corpo, por perfeito que seja, que,
da bela cidade e ficariam aos cuidados das amas e artesãos
pela sua excelência, torne a alma boa, mas, pelo contrário, a
do Estado, sendo amamentados pelas supostas progenitoras
alma boa, pela sua excelência, permite ao corpo ser o melhor
durante um curto período.
possível” (PLATÃO, 2012, p. 136).
Para finalizar, uma questão que poderia ser feita por Gláucon
Uma educação espiritual, individual e mental, como alimento
fica em aberto, pelo menos, por enquanto: Quem deveria
para o corpo que se perde com o tempo.
governar a bela cidade, Sócrates? E Sócrates responderia:
Para a criação da bela cidade, Platão beneficia-se de
Seguramente um rei filósofo.
alguns artifícios como a boa mentira e o mito dos Nascidos
da Terra, para o progresso de sua empreitada, à vista a * Danilo Godinho é graduado em Filosofia e atua como professor do Ensino
modelar seus habitantes: Médio no Estado de São Paulo .

“Portanto, se a alguém compete mentir, é aos chefes da


Referências bibliográficas:
cidade, por causa dos inimigos ou dos cidadãos, para benefício CASERTANO, G. Uma introdução à República de Platão. Trad. de: Maria da G.
da cidade” (PLATÃO, 2012, p. 108). G. Pina. São Paulo: Paulus, 2011. (127 p.)
PLATÃO. A República. Trad. de: Maria H. da R. Pereira. 13.ed. Lisboa:
E também de modo mais incisivo implica sobre seus cidadãos: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012. (511 p.)
“Vós sois efetivamente todos irmãos nesta cidade – como [1] Método socrático de perguntas e respostas.
48 SOCIOLOGIA ESPECIAL
desigualdade
DE gênero

// O gênero é um dos principais fatores de


hierarquização em nossa sociedade.
Rafael Souza*

49 SOCIOLOGIA ESPECIAL
N
o dia 2 de abril de 2013, foi promulgada a Emenda
Constitucional nº 72. Essa emenda sancionava a
regularização do emprego doméstico no Brasil. A
PEC das domésticas, tal como ficou conhecida a Proposta
de Emenda Constitucional n° 66 de 2012, garantiu que o
salário dos trabalhadores domésticos não fosse inferior
ao salário mínimo. A lei também criou a jornada de
trabalho de 44 horas semanais, a obrigatoriedade da
contribuição para a Previdência, férias proporcionais, 13º
(décimo terceiro) salário, dentre outros direitos antes
inexistentes para a categoria. Em resumo, a PEC das
domésticas inseriu milhões de trabalhadores domésticos
na cidadania salarial.
Segundo o Departamento Intersindical de Estatísticas
e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), em 2011, o Brasil
contava com um contingente de trabalhadores domésticos
de 6,6 milhões de pessoas. Desse total, as mulheres eram
a esmagadora maioria com 92,6%, o que totalizava cerca
de 6,1 milhões de empregadas domésticas (DIEESE, 2013).
A título de comparação, o Global Gender Gap Report
2013 indicava que, no Brasil, somente 18% das empresas
contavam com mulheres ocupando cargos gerenciais
elevados. O emprego doméstico, portanto, como outras
ocupações, é um trabalho feminino. (Fórum Econômico
Mundial, 2013). Marcadores sociais como classe, raça e
gênero estão indissociavelmente colados a determinadas
profissões, de tal modo que para o senso comum é
impensável que determinadas tarefas sejam executadas
por indivíduos de tal e qual gênero. Nos diálogos correntes,
é comum encontrarmos referências à ideia de que é coisa
de mulher ser babá, dona de casa, empregada doméstica,
secretária, etc. Do mesmo modo, aos homens é possível
ser pedreiro, eletricista, engenheiro, executivo, etc.
Este pequeno artigo tenta apenas apresentar alguns
pontos acerca das desigualdades de gênero. O objetivo
não é apresentar um apanhado geral sobre as teorias
sociológicas disponíveis que tratam do tema. Também
não se trata aqui de realizar um inventário quantitativo de
todas as situações em que as marcas de gênero interferem
nas condições de acesso a bens, serviços, posições e
vantagens sociais. Antes de tudo, o que se pretende é
apenas tentar algumas reflexões acerca do modo como o
gênero é enquadrado nas interações sociais e, por sua vez,
como essas interações marcadas interferem nas chances
para homens e mulheres. Também não será apresentada
toda a rica gama de teorias de gênero encetadas pelo
feminismo a partir dos anos 1960, uma vez que por
50 SOCIOLOGIA ESPECIAL
// Gênero, tal como conceitua Joan Scott
(1986), éum conjunto de percepções sobre
as diferenças sexuais, cujo cerne é a
hierarquização dessas percepções em um
esquema dual e rígido.
questões de justiça não seria possível tratar da diversidade
de temas, metodologias, teorias e abordagens produzidas
por essa rica tradição crítica intelectual. O foco desse texto
é, sobretudo, a relação entre desigualdade e gênero.
Lembrando que não se trata aqui de confundir diferença
com desigualdade. Ambas se relacionam, mas, de forma
alguma, são coincidentes. A diferença reside, sobretudo,
no modo como determinados significados são atribuídos
ao par feminino-masculino. Ela corresponde à resposta da
pergunta: o que significa ser homem ou mulher? Maneiras
específicas de vestimenta, estilo de vida, consumo, formas
de conversação, apresentação da identidade dentre outros
aspectos da vida social, todos eles são performados
segundo as diferenças de gênero (Butler, 1990).
Gênero, tal como conceitua Joan Scott (1986), é um conjunto
de percepções sobre as diferenças sexuais, cujo cerne é
a hierarquização dessas percepções em um esquema
dual e rígido. Portanto, essas mesmas diferenças não
são neutras. Na esmagadora maioria dos casos, essas
performances de gênero, incorporadas nas interações
cotidianas, relacionam-se com distintas assimetrias que
colocam o masculino em um patamar elevado e rebaixam o
feminino a uma condição inferior. Esses símbolos masculinos
e femininos são prontamente hierarquizados e, portanto,
servem para a classificação de outros materiais simbólicos.
Em suma, o gênero está contido na linguagem (Scott, 1986).
Entretanto, a linguagem não é apenas um mecanismo
de comunicação, mas, sobretudo, um exercício de poder.
A linguagem atribui poder, aloca lugares, estabelece
fronteiras, cria liames e indica mapas para as interações
possíveis. A linguagem se encorpa não somente nos meios
de comunicação verbal, mas se fixa ao corpo. Butler (1990)
argumenta que a ordem social prescreve performances
construídas social e culturalmente e procuram criar uma
coerência entre sexo, desejo sexual e gênero (Butler, 1990).
Fala-se gênero por meio dos corpos.

Hierarquização das diferenças

Essas considerações são relevantes, uma vez que a


distribuição de vantagens sociais é perpassada pela
51 SOCIOLOGIA ESPECIAL
hierarquização dessas performances de gênero. Voltando mais responsáveis, mas conscientes, autônomos e, por
ao caso do emprego doméstico, é flagrante o papel que isso, justamente mais capazes de assumir posições
as assimetrias de gênero desempenham na estruturação de comando e de gerenciamento técnico. Em suma, a
dessa prática ocupacional. O feminino é tido como um masculinidade está indissociavelmente ligada ao “controle
conjunto de performances, símbolos e marcas associados emocional”. Em resumo, nas interações cotidianas existem
ao cuidado. O espaço doméstico é tido pelo senso comum diferentes pressões por um gerenciamento das emoções.
enquanto lugar da intimidade, privacidade, conforto e Nas relações sociais, determinados arranjos emocionais
cuidado. Em resumo, o espaço do lar é o espaço do afeto. são esperados e confeccionados segundo as expectativas
Logo, os requisitos para o trabalho doméstico são sempre de gênero. Os homens devem ser mais agressivos, mais
investidos dessas mesmas considerações. A empregada objetivos, racionais e mais confiáveis, ao passo que
doméstica é alguém que deve ser capaz não somente se espera que as mulheres devam ser mais passivas,
de realizar as tarefas do dia a dia, mas também tarefas afetivas, carinhosas, libidinosas, menos confiáveis, em
ligadas ao cuidado dos filhos, ao carinho no trato com suma emocionais. A ironia dessas expectativas é que em
a cozinha e na discrição quando a casa recebe visitas, ambos os casos, tanto homem quanto mulheres, exibem
entre outras tarefas que não são meramente técnicas. O emoções e são hierarquizados segundo a “qualidade” e
emprego doméstico envolve trabalho, mas principalmente “utilidade” dessas emoções. Em resumo, as diferenças
um trabalho afetivo. A mulher é, antes de tudo, um de gênero incidem não somente sobre a maneira como
profissional dos afetos e deve estar sempre disposta a os corpos são construídos, mas também são operadores
produzir essas situações de afeto, e especialmente para de regras emocionais, cujo objetivo é governar quais são
os homens (Silva, 1998; Macedo, 2013). as emoções apropriadas dentro das interações sociais
Por outro lado, o homem é sempre encarado como (Hoschild, 1983).
sendo o “cérebro” do par masculino-feminino. A O que é importante reter aqui é o fato de que os
racionalidade, competência, destreza técnica e inteligência mercados de trabalho não só alocam os indivíduos
são precisamente marcas de gênero associadas à segundo essas regras emocionais, mas também
virilidade e masculinidade. Homens são encarados como segundo o modo como o gênero opera essas regras

//
O feminino é tido como um
conjunto de performances,
símbolos e marcas
associados ao cuidado..

52 SOCIOLOGIA ESPECIAL
//
tem de ser boa de serviço; ela tem de ser profissional,
De fato, a posição das mulheres no mercado de
competente”. O dirigente chegou a insinuar que a
trabalho colabora para essa divisão sexual do
“bandeirinha musa”, tal como ela foi comumente
trabalho, relegando as mulheres a posições de
cuidado e de exibição de afeto, em especial chamada na imprensa esportiva mineira, deveria
aos homens. deixar o futebol para posar nua em uma famosa revista
. masculina.
emocionais e a construção corporal dessas maneiras O que fica saliente no caso da àrbitra feminina é o
de ser, sentir e trabalhar. Um caso recente no futebol fato de que seu desempenho, como profissional, foi
ilustra essas considerações. No dia 11 de maio deste medido por meio de um desempenho ou performance
ano, no dérbi mineiro Atlético 2 x 1 Cruzeiro, disputado de gênero. O corpo feminino se destaca aí como um
no Estádio Independência (América FC), a auxiliar de espaço de investimento emocional que o recoloca
arbitragem, Fernanda Uliana Colombo, errou ao marcar como sendo pertencente a determinadas ocupações,
um impedimento inexistente em um lance que dava excluindo-a de outras. Os erros de arbitragem são
vantagem ao time azul. Apesar de os profissionais severamente criticados pela falta de competência,
masculinos de arbitragem errarem o tempo todo, no mas para completar o quadro. Entretanto, essa
caso de Colombo as discussões sobre os erros de competência não é questionada do ponto de vista dos
arbitragem recaíram, sobretudo, atrelando a falta de contextos específicos da partida ou das condições
competência da auxiliar ao fato de ela ser mulher. Mais de treinamento da auxiliar. Ou seja, não há um
especificamente, insinuou-se que a auxiliar naquele questionamento da qualidade como profissional, tal
jogo assumiu tal profissão de arbitragem no futebol como são normalmente questionados os homens. A
por ser simplesmente “bonitinha”. Eis as palavras árbitra, ou auxilar naquele jogo, foi classificada como
de um dos dirigentes do Cruzeiro: “Estão tentando uma mulher exercendo uma profissão indevida. Ela
promover ela, porque ela é bonitinha; e não é por aí. Ela deveria especificamente vender as imagens de seu
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corpo, não seu conhecimento técnico das regras de que o masculino e o feminino são em si mesmo capitais
arbitragem do futebol. Em suma, pode-se falar que a valiosos para uma ou outra ocupação e que, na maioria
“polêmica” em torno de Colombo, foi causada por uma dos casos, esse par de oposição hierarquiza e atribui valor
performance de gênero inadequada. assimétrico a essas ocupações.
O gênero nesse caso atua, portanto, como uma Para concluir, é importante lembrar que as
forma de capital específico. Ou seja, ser mulher ou ser desigualdades de gênero afetam outras áreas da vida
homem indica diferentes oportunidades de emprego, de social. Mulheres são sub-representadas na política,
consumo, de prestígio, etc., sendo que normalmente as são assassinadas cotidianamente no Brasil, têm
posições mais vantajosas acabam sendo desfrutadas por acesso limitado à estrutura administrativa estatal, são
indivíduos que possuam as marcas de gênero adequadas. encaradas como objeto sexual, mesmo em mais tenra
Basta relembrar o frisson provocado pela entrada maciça idade, etc. As desigualdade de gênero, entretanto, não
das mulheres no mercado de trabalho, em postos se limitam às desigualdades entre homens e mulheres.
executivos, durante os anos 1980. As famosas ombreiras, Transgêneros e outras identidades de gênero também
corte de cabelo curto e a postura agressiva legitimavam costumam ser marcadas e experimentadas dentro
o acesso de mulheres a posições de destaque dentro de um contexto de forte assimetria simbólica, social,
de grandes empresas, justamente porque a exibição econômica e política. Muito já foi alcançado graças à
de competência e qualidade de trabalho remetiam às atuação de movimentos feministas e do Movimento
performances masculinas de gênero. O mesmo pode Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais
ser dito em relação a muitos contextos com respeito à (LGBTT). Protestos em torno do direito ao corpo da
inversão que ocorre quando um homem assume posições mulher tais como a Marcha das Vadias, avanços como a
ocupacionais “femininas”. Bailarinos, cabeleireiros, artistas Lei Maria da Penha, a Campanha pelo Direito de Escolha
e trabalhadores domésticos, entre outros profissionais, de Ter ou Não Filhos e outros direitos conquistados
costumam ter sua identidade sexual questionada na apontam para mudanças sociais. Entretanto, se essas
linguagem corrente e no senso comum. Essas posições mudanças vão se consolidar e ajudar a construir
repõem a necessidade de congruência entre sexualidade, uma sociedade menos desigual, é parte de um futuro
gênero e corpo, tal como teorizou Butler (1990). incerto. Ainda assim, somente a mobilização política é
De fato, a posição das mulheres no mercado de trabalho capaz de permitir a fertilização de ideias e a exposição
colabora para essa divisão sexual do trabalho, relegando dessas assimetrias de gênero.
as mulheres a posições de cuidado e de exibição de afeto,
* Rafael Souza é graduado em Ciências Sociais, mestre e doutorando
em especial aos homens. Segundo o Departamento em Sociologia pelo Departamento de Sociologia da Faculdade de
Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
(DS-FFLCH-USP), São Paulo-SP.
(DIEESE), apesar do crescimento da participação das
mulheres no mercado de trabalho, na região metropolitana Referências bibliográficas:
de São Paulo, elas correspondem a 69,8% do setor de BUTLER, J. (1990) Gender Trouble:Feminism and Subversion of
Identity. Londres: Routledge Press.
serviços. Ainda de acordo com o DIEESE, em todas as
Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos
regiões metropolitanas, tais desigualdade se mantêm. Socioeconômicos. (2013) “O Emprego Doméstico no Brasil” . In
Isso ocorre a despeito do fato de que as mulheres contam Estudos & Pesquisas, nº 68. São Paulo.
____________. (2013) “A Inserção da Mulher no Mercado de
com um índice maior de escolarização. Segundo o Instituto Trabalho”. In Pesquisa de Emprego e Desemprego. Março de 2013.
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2012, a Fórum Econômico Mundial. (2013) Global Gender Gap Report 2013.
Genebra, Suíça.
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD-
HOSCHILD, A. (1983) The Managed Heart: The Commercialization of
2012) demonstrou que as mulheres com 12 anos ou mais Human Feeling. Berkeley (EUA): Universidade da Califórnia.
de estudo ganharam 66% do salário dos homens com a MACEDO, R. G. M.(2013) Espelho mágico: empregadas domésticas,
consumo e mídia.
mesma quantidade de anos de estudo (IBGE, 2013). Em
145f.Dissertação (Mestrado). Faculdade de Filosofia, Letras e
suma, o capital técnico representado pelo conjunto de anos Ciências Humanas. São Paulo: Edusp, 2013.
de estudo não dá conta dessas variações nas diferenças Scott, J. (1986). “Gender: A Useful Category of Historical Analysis”, In
American Historical Review 91, No. 5 (December 1986), pp. 1053-75.
de salário e de alocação ocupacional entre homens e Silva, B. E. (1998) “Tecnologia e Vida Doméstica nos Lares”, In
mulheres. É necessário atentar justamente para o fato de Cadernos Pagu, nº 10, pp. 21-52.

54 SOCIOLOGIA ESPECIAL
CINEMA E
DESIGUALDADE
//
Umberto D; Iracema, uma transa amazônica; e A
Jaula de Ouro retratam o discurso cinematográfico
sobre as desigualdades sociais em diferentes
países e momentos da história.
Fabrício Basílio*

O
objetivo desse artigo é buscar relações temáticas Umberto D (1952)
entre três obras cinematográficas no que tange às
aproximações e discordâncias que a visão de cada Uma passeata de aposentados em busca de aumento nas
diretor imprime acerca das desigualdades sociais. Dessa forma, aposentadorias toma as ruas de uma cidade italiana. Entre os
lançamos mão dos seguintes filmes: Umberto D (1952), um idosos vítimas da Europa em reconstrução do Pós-II Guerra,
dos filmes-marco do Neorrealismo italiano, de Vittorio De Sica, está Umberto, seu pequeno cachorro malhado, Flike, e a
que evidencia a situação dos aposentados no Pós-Segunda necessidade de 20% de aumento, capazes de sanar em um
Guerra; Iracema, uma transa amazônica, filme dirigido por Jorge ano as dívidas do protagonista idoso.
Bodanzky e Orlando Senna, que busca retratar a realidade Com esse pretexto o diretor Vittorio De Sica repete a
na região Norte do Brasil durante a ditadura; e o mexicano dobradinha com o roteirista Cesare Zavattini, que alguns
A Jaula de Ouro (2013), dirigido por Diego Quemada-Diez, anos antes encantavam o mundo com Ladrões de Bicicleta
que acompanha um grupo de adolescentes pobres, latino- (Ladri de Biciclette, 1948). Assim, voltam-se novamente
americanos, em uma jornada até os Estados Unidos. para uma temática simples, associando à escassez
Separados por quase 40 anos, os filmes latino-americanos financeira as camadas mais marginalizadas da população.
dividem o gosto pela errância de seus protagonistas. Em E se em Ladrões de Bicicleta o filme gira em torno do
A Jaula de Ouro, os adolescentes guatemaltecos cruzam roubo de uma bicicleta, que impede o protagonista de
três países em busca de melhores condições financeiras trabalhar, em Umberto D acompanhamos a rotina do idoso
em solo estadunidense. Tião Brasil Grande em Iracema e as problemáticas financeiras que lhe impedem de pagar o
corta o país carregando madeira ilegal e gado bovino. Já a aluguel do pequeno quarto que mantém alugado.
prostituta Iracema não vê destino além do rodar incessante A relação do personagem com a dona da pensão é sempre
pela região Norte. Em um contexto diferente, se o filme conflituosa e, se por um lado o dia a dia da proprietária é
italiano revela um idoso obstinado em manter o espaço regado a música clássica e romance com o dono de um
em que vive - o pequeno quarto em uma pensão -, é para cinema; por outro, Umberto vende seus últimos livros a
mostrar um personagem relutante à errância. Apesar das preço baixo ao mesmo tempo em que divide seu almoço em
especificidades de cada contexto no qual foram produzidos um restaurante majoritariamente frequentado por idosos e
os referidos filmes, podemos visualizar nas três obras mendigos, com Flike.
diversas desigualdades sociais, associadas à necessidade Além disso, Umberto é constantemente ameaçado de
de obtenção de recursos financeiros. despejo e só a relação com a jovem empregada Maria, que
55 SOCIOLOGIA ESPECIAL
esconde sua gravidez com receio de ser demitida, traz alguma dos moradores locais. E nesse sentido Tião é ironicamente
tranquilidade ao aposentado. Umberto fica doente, deixa seu um personagem reacionário, e de forma consonante o
cachorro na pensão e se interna em um hospital. Entre os documentarista tenta por meio da formação de um discurso
leitos pouco espaçados tomamos dimensão dos inúmeros aliado aos preceitos publicitários da ditadura brasileira dar voz
desabrigados que se apoiam na benevolência das enfermeiras a uma região esquecida socialmente e vangloriada por uma
para a manutenção de um abrigo. estrada que nunca ficou pronta, a Transamazônica.
Umberto sai do hospital e sua volta para a pensão que revela São finos fiapos de história que constroem a narrativa de
uma reforma em andamento, o idoso observa os objetos Iracema, uma transa amazônica, e, embora tecer uma clara
amontoados em um canto e concomitantemente descobre jornada para seus protagonistas não seja uma pretensão do
que seu cão está desaparecido. Umberto, porém, não tem os filme, Tião e Iracema trazem consigo um magnetismo sobre
macetes dos desabrigados, resta-lhe um senso deturpado de o espectador, capaz de transformar momentos de banalidade
dignidade , que o incapacita de buscar dinheiro nas ruas. O não em ocasiões relevantes para a história, como a sequência em
reajuste de sua aposentadoria, porém, o aproxima ainda mais que Tião e Iracema combinam o valor dos serviços sexuais a
dos grupos marginalizados, o que fica evidente na sequência serem prestados pela segunda.
em que finalmente consegue vender um relógio de bolso, mas Viajando pela inconcluída Transamazônica no caminhão de
para uma pessoa em situação de rua, o que lhe proporciona Tião, a câmera revela em cada parada o desmatamento na
pouco dinheiro. região, a venda ilegal de madeira e a posse ilegal de terras, ao
De Sica contém-se ao presente de seu protagonista, e, se mesmo tempo em que transparece em cada interação com
descobrimos algo de seu passado, como, por exemplo, que os moradores locais a necessidade de se adequar a condições
Umberto trabalhou trinta anos no Ministério do Trabalho, é extenuantes e muitas vezes ilegais de trabalho como única
para em seguida observarmos sua relutância em pedir ajuda forma de sobrevivência, seja em relatos documentais de
financeira a um antigo companheiro de trabalho. cortadores de madeira, seja na encenação da compra de
Assim, ainda falta uma parte considerável para o pagamento trabalhadores colocados em condição de escravidão.
do aluguel, e entre a rua que oferece a necessidade de Umberto Se no filme a única opção de Iracema perante a prostituição
sobreviver como pedinte e a relutância de se alojar em um parece ser o trabalho de costureira, o contraste físico entre a
asilo, o filme trata em primeiro plano a relação entre um idoso protagonista, que no primeiro encontro com Tião tenta omitir
e o único bem que lhe resta, seu cachorro. ser menor idade, e no último momento do casal transborda
imageticamente sua degradação, entre o cabelo desarrumado,
Iracema, uma transa amazônica (1974) o dente que falta e as garrafas de pinga, o que fica é a falta de
oportunidade e perspectiva de uma população encoberta por
O barulho do motor de um velho barco encobre o som uma política econômica e social da década de 1970, capaz de
da Floresta Amazônica. A câmera passeia por rostos tornar o Brasil um dos países mais desiguais do mundo.
silenciados e queimados pelo sol escaldante, enquanto as
notícias da região circulam através de uma rádio local. Entre A Jaula de Ouro (2013)
os rostos, surge também a calada Iracema, protagonista do
filme, integrante de uma população ribeirinha que, perdida Em determinado momento da trama de A Jaula de Ouro,
em Belém-PA, torna-se prostituta. o grupo de protagonistas, formado por três adolescentes
Censurado pela ditadura brasileira, o filme dirigido por Jorge guatemaltecos e por um adolescente indígena, que mal
Bodanzky e Orlando Senna é uma sólida pedra no caminho entende a língua espanhola, são obrigados a retrocederem
do pensamento desenvolvimentista do Brasil ditatorial. E para o início da jornada. O objetivo de adentrarem os Estados
não sem motivo veremos no discurso do personagem Tião Unidos pela fronteira com o México é barrado por um grupo
Brasil Grande (Paulo Cesar Pereio) frases nacionalistas como de policiais mexicanos corruptos, que levam os jovens de volta
“Só não se dá bem nesse país quem não sabe se virar!” e para o território guatemalteco.
no adesivo preso ao caminhão “Brasil, ame-o ou deixei-o!”. Descalço, já que teve as botas de caubói roubadas pelos
Assim, Tião é uma alegoria do Brasil nacionalista pró-ditadura, policiais mexicanos, Juan puxa a fila novamente em direção ao
ao mesmo tempo em que os preceitos documentais do filme México. Sara, disfarçada de menino e o índio Chauk o seguem.
colocam frente a frente o discurso do protagonista com o Mas Samuel recua: é o fim da linha para o jovem catador de lixo,
56 SOCIOLOGIA ESPECIAL
que sobe uma ladeira íngreme tendo apenas como companhia
um enquadramento detalhado em seu rosto.
Para os que continuam a jornada, o filme de estreia de Diego
Quemada-Diez revela os contrastes entre a bela fotografia das
paisagens mexicanas em oposição à evidenciação de esquemas
de corrupção e de extorsão sobre milhares de imigrantes
ilegais, que tentam melhores condições de vida na vigiada
fronteira que divide a América pobre da potência mundial.
Amontoados sobre trens cargueiros ou caminhando por
regiões rurais, Juan e Sara compartilham a errância como única
possibilidade aos barracos cobertos por telhas e ruas com
esgoto à mostra, que lhes abrigavam na Guatemala. E assim, o
sonho é encoberto pelo receio diante do trajeto. Pois, enquanto em Umberto D a repartição desigual dos recursos existe a partir
Juan guarda alguns dólares escondidos no forro da calça jeans, de gerações, estando localizada no mesmo corredor no qual
Sara, temorosa diante das ameaças de estupro, esconde seus mora o idoso, na figura intransigente da proprietária da pensão.
traços de feminilidade no cabelo curto amassado pelo boné e A desigualdade se revela como uma diferença que indivíduos
por uma faixa apertada que diminui o volume dos seios. e grupos sociais julgam por meio de escalas de valoração.
Por outro lado, Chauk é o único personagem que parece Inicialmente um negro e um branco, mesmo com diferenças
lúcido quanto aos seus objetivos nos Estados Unidos, pois, se na pigmentação na pele, não compartilham qualquer tipo
para os adolescentes da Guatemala o futuro está ligado a um de desigualdade. Em grande parte das sociedades, porém,
nebuloso porvir, para o garoto indígena o desejo de ver a neve a diferente pigmentação está associada a vantagens e
em solo estadunidense é evidenciado em algumas sequências. desvantagens, muito ligadas a estratificações econômicas e
Revelando as desigualdades econômicas e sociais entre políticas. Um bom exemplo de diferenças biológicas que, a partir
três países americanos, Quemada-Diez apresenta uma da ação dos indivíduos, tornam-se diferenças sociais consta no
jornada pelas linhas de trem mexicanas, bem vigiadas ora pelo filme Iracema, em que fica evidente a melhor condição social
exército mexicano, ora por criminosos sedentos por bens e por que Tião (branco e gaúcho) goza em frente à decente indígena
mulheres a serem escravizadas como prostitutas. Iracema, a qual chama pejorativamente de “Jurema”.
Em uma das mais belas cenas de a A Jaula de Ouro, tanto Como revela o teórico Jesse Sousa, a principal contradição do
protagonistas quanto expectadores observam com temor o princípio de sociedade está na constituição de:
muro que divide a fronteira do Terceiro para o Primeiro Mundo, “Uma gigantesca ‘ralé’ de inadaptados às demandas da vida
enquanto uma criança mexicana busca com tranquilidade a produtiva e social, modernas, constituindo-se numa legião de
bola que caiu em solo estadunidense. Uma situação inusitada ‘imprestáveis’, no sentido sóbrio e objetivo desse termo, com
para um filme que vai revelar a vigilância dos Estados Unidos as óbvias consequências, tanto existenciais, na condenação de
sedenta por corpos estirados sobre o árido deserto. dezenas de milhões a uma vida trágica sob o ponto de vista
Umberto não consegue manter seu padrão de vida com a material e espiritual, quanto sociopolíticas como a endêmica
parca aposentadoria e transita entre o medo do despejo e a insegurança pública e a marginalização política e econômica
relutância em ser deslocado para um asilo. Enquanto isso, desses setores” (p. 184).
Iracema opta, num território de poucas possibilidades de Assim, é possível perceber nos três filmes o esforço de
inserção no mercado de trabalho, pela vida desgarrada da seus diretores em revelar visões de sociedades desiguais,
prostituição, ao passo que Juan e Sara preferem enfrentar os evidenciando milhões de trajetórias de vida pautadas pela
perigos de morte até os Estados Unidos a viverem na absoluta exclusão social existentes nos diferentes momentos da
miséria da Guatemala. história ocidental Pós-Segunda Guerra.

A desigualdade social está associada a processos relacionais


* Fabrício Basílio é graduando em Cinema e Audiovisual pela Universidade
que limitam ou impossibilitam as condições de existência de Federal Fluminense (UFF), Niterói-RJ. e-mail: fabricio.cineuff@gmail.com.
um determinado grupo ou classe social. Assim, A Jaula de Ouro
Referência bibliográfica:
e Iracema, uma transa amazônica denunciam a repartição SOUZA, J. A construção social da subcidadania: para uma Sociologia Política da
desigual de recursos entre as regiões ou países, ao passo que modernidade periférica. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
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