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Uma história de desigualdade:

A CONCENTRAÇÃO DE RENDA
ENTRE OS RICOS, 1926-2013
ANPOCS
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PEDRO H. G. FERREIRA DE SOUZA

Uma história de desigualdade:


A CONCENTRAÇÃO DE RENDA
ENTRE OS RICOS, 1926-2013

Prêmio de Melhor Tese de Doutorado


no Concurso Brasileiro Anpocs de Obras Científicas
e Teses Universitárias em Ciências Sociais
Edição 2017

HUCITEC EDITORA
ANPOCS
São Paulo, 2018
© Direitos autorais, 2018,
de Pedro H. G. Ferreira de Souza.
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Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
S717h
Souza, Pedro H. G. Ferreira de, 1982-
Uma história da desigualdade : a concentração de renda entre os
ricos no Brasil, 1926-2013 / Pedro H. G. Ferreira de Souza. – 1. ed. –
São Paulo : Hucitec : Anpocs, 2018.
421 p. ; 21 cm.
Inclui índice
ISBN 978-85-8404-106-0
1. Renda – Distribuição – Brasil. 2. Brasil – Condições sociais. I.
Título. II. Série.

18-52993 CDD: 339.20981


CDU: 330.564(81)"1926/2013"

Leandra Felix da Cruz – Bibliotecária – CRB-7/6135


O desenvolvimento gradual da igualdade das con-
dições é um fato providencial. Possui suas princi-
pais características: é universal, é duradouro, escapa
cada dia ao poder humano; todos os acontecimen-
tos, bem com o todos os homens, contribuem para
ele.
[. . .]
Alguém acredita que, depois de ter destruído o feu-
dalismo e vencido os reis, a democracia recuará di-
ante dos burgueses e dos ricos? Irá ela se deter ago-
ra, que se tornou tão forte e seus adversários tão
fracos?

— A LEXIS DE T OCQUEVILLE
A Democracia na América (1835)
8
Sumário

Prefácio — Marcelo Medeiros 13

Nota do autor 19

Introdução 23

Parte I. POR QUE OS RICOS?

1. Capitalistas, elites, ricos: discursos sobre desigual- 33


dade e polarização, 1880/1945
1.1 Introdução 33
1.2 Do darwinismo social ao socialismo 36
1.3 A ascensão das concepções dicotômicas da estra- 43
tificação
1.4 Os ricos e os estudos sobre desigualdade no entre- 53
guerras
1.5 O funcionalismo americano e a legitimidade da hie- 62
rarquia
1.6 Considerações finais 66

9
2. A domesticação da desigualdade e a era do otimis- 70
mo, 1945/1975
2.1 Introdução 70
2.2 A queda da desigualdade e o nascimento dos “trinta 72
gloriosos”
2.3 A era das narrativas benignas sobre o Ocidente 76
2.4 Os reflexos políticos do otimismo 89
2.5 Declínio e queda das narrativas benignas 92
2.6 Kuznets nos trópicos? 105
2.7 Considerações finais 119

3. O ocaso e o retorno da desigualdade, 1975/2015 123


3.1 Introdução 123
3.2 O breve ocaso da desigualdade 125
3.3 Teorias de classes: de aspirações elevadas à luta para 134
sobreviver
3.4 A volta da desigualdade e dos ricos 144
3.5 As idas e vindas da desigualdade brasileira 158
3.6 Considerações finais 170

Parte II. OS RICOS NO BRASIL

4. Dados tributários: modos de usar 177


4.1 Introdução 177
4.2 Por que usar dados do imposto de renda? 179
4.3 O imposto de renda no Brasil: história e caracteri- 182
zação
4.4 A apuração dos rendimentos no IRPF, 1922-2013 194
4.5 Fontes disponíveis com tabulações do IRPF 200
4.6 Definição do conceito de renda 202
4.7 Principais ajustes e imputações iniciais às tabulações 203
4.8 A estimação da desigualdade 205
4.9 Imputação dos rendimentos não tributáveis 212
4.10 Considerações finais 213
10
5. Os ricos e a desigualdade no Brasil ao longo de nove 216
décadas
5.1 Introdução 216
5.2 Prévia dos resultados e breve contexto histórico 221
5.3 A concentração da renda entre os mais ricos no Brasil 228
5.4 Dados tributários vs. pesquisas domiciliares: da con- 244
centração no topo ao coeficiente de Gini
5.5 A concentração no topo no Brasil e no mundo 253
5.6 Considerações finais 275

6. Uma história política da desigualdade no Brasil 283


6.1 Introdução 283
6.2 Do colapso da República Velha ao Estado Novo 287
(1926-1945)
6.3 A era de ouro do desenvolvimentismo (1945-1964) 299
6.4 Ditadura, repressão e desigualdade (1964-1979) 312
6.5 Inflação e redemocratização (1979-1988) 327
6.6 Novo contrato social? (1988-2013) 337
6.7 Considerações finais 359

Conclusões 367
A concentração de renda entre os ricos no Brasil 369
Três perguntas e uma interpretação 373
Limitações, lacunas e caminhos futuros 380

Referências 383

11
Prefácio

M ARCELO M EDEIROS

E
STE livro tem um mérito imenso: traz o longo prazo
para o debate sobre desigualdade no Brasil. Com isso
encaixa uma peça importante no quebra-cabeça da
história econômica brasileira. Agora sabemos muito mais so-
bre quem ganhou mais e quem ganhou menos em quase um
século de desenvolvimento. Não é preciso mais do que isso
para indicar ao leitor que o que vem pela frente merece, e
muito, sua atenção.
Porém, há sim mais do que isso na lista de qualidades do
livro. Ele é resultado de um trabalho paciente e cauteloso, que
envolveu uma coleta de dados atenta, selecionou as melhores
informações e usou as melhores ferramentas que estavam a seu
alcance. Com isso, apresenta a série histórica mais longa, mais
completa e metodologicamente mais rigorosa até o momento
sobre a desigualdade no Brasil.
A história da desigualdade, de Pedro Ferreira de Souza, é
uma história dos ricos. Faz sentido olhar para o topo. Uma
parte imensa da renda está lá. Por essa razão, toda flutuação na
renda dos ricos tem um peso completamente desproporcional

13
na evolução da distribuição total. Quando a concentração é
muito alta, os ricos conduzem a dança.
Conduzem, mas não ditam como deve ser o baile. Há
momentos em que o que acontece no topo não tem corres-
pondência com as mudanças na base. Ciente disso, o livro com-
bina diferentes fontes de dados para traçar não só o comporta-
mento da concentração no topo, mas, também, a trajetória da
desigualdade total, do mais pobre ao mais rico.
O que essa história toda nos mostra é uma desigualdade
sempre muito alta, oscilando dentro de uma banda não muito
larga, com quedas lentas e subidas bruscas. Nessa história o
Brasil já começa muito desigual, com uma concentração no
topo já um pouco maior que a observada em outros países
como Estados Unidos, Inglaterra e França, especialmente se
considerarmos a qualidade dos dados nos primeiros anos da
série histórica.
Veio o Grande Nivelamento, um período em que a con-
centração no topo cai rapidamente em boa parte dos países
mais desenvolvidos. No Brasil ocorre o contrário, um aumento
brusco da concentração no mesmo período, jogando-a para o
pico da banda e tornando-a uma característica marcante da
diferença entre os países. Depois da Segunda Guerra Mundial
a desigualdade permanece relativamente baixa nos países de-
senvolvidos e no Brasil cai lentamente durante aquele que é o
período recente de maior crescimento da economia. Chega à
base da banda, um dos momentos menos desiguais conhecidos.
A combinação de crescimento com desigualdade em
queda durou muitos anos, mas já no início da ditadura de
1964 ocorreu uma reversão completa do quadro. Os anos es-
tagnados de 1964 a 1968 são palco de uma das mais rápidas
elevações da desigualdade registradas no país. Praticamente toda
essa elevação ocorre antes da chegada do surto de crescimento
dos anos 1970. Os níveis de concentração foram tão altos que
14
cabe perguntar se não se aproximaram bastante de algum tipo
de fronteira de possibilidades da desigualdade, um máximo
acima da qual seria muito difícil subir.
É na década de 1990 que se torna mais clara uma nova
tendência de queda, lenta, é verdade, mas relativamente cons-
tante. Já é um período no qual é possível combinar dados e
analisar a desigualdade total. Os resultados para a segunda
metade dos anos 2000 indicam que houve queda da desigual-
dade na base da distribuição, mas manutenção da posição dos
ricos. Como consequência a desigualdade se estabiliza em tor-
no do centro da banda.
Quem olha para essa trajetória não deixa de pensar que
talvez estivéssemos olhando para a desigualdade de modo
simplista. Ao menos no que se refere ao longo prazo. Não há
nenhuma evidência de um motor da história conduzindo a
desigualdade ao longo dos anos. Modernização, crescimento,
nada disso parece ser a força principal que causa as variações
na desigualdade.
A única relação que Pedro encontra é entre mais demo-
cracia e menos desigualdade, mas até isso precisa ser bem qua-
lificado. Há países que se tornaram extremamente igualitários
sob ditadura, e países cuja consolidação da democracia foi se-
guida de aumentos paulatinos da desigualdade. Ao que pare-
ce, não é apenas o regime político, mas o tipo de decisões to-
madas por qualquer regime político mais geral o que afeta a
desigualdade de um país. Ou seja, não é um determinante
central, mas um conjunto de determinantes que se combinam
o que faz a desigualdade subir ou descer.
É possível agrupar os determinantes da desigualdade em
dois grandes conjuntos, o dos mecanismos rápidos e o dos meca-
nismos lentos. Mecanismos rápidos são os relacionados a rup-
turas radicais, como as guerras mundiais, com sua destruição
de capital físico, estruturas políticas, valores e instituições, e a
15
forte regulação da economia para responder a elas em diferen-
tes tipos de regimes econômicos e políticos. Não é à toa que,
metaforicamente, se diz que ao longo da história a desigual-
dade só cai rapidamente quando cavalgam os quatro cavaleiros
do apocalipse. Mecanismos lentos são aquele que causam
mudanças cumulativas e persistentes na desigualdade, como
a expansão educacional, o emprego feminino, a proteção ao
trabalho, a regulação do setor financeiro e a reforma tributária.
A diferença não está na velocidade em que eles poderiam ter
atuado, e sim na que eles efetivamente atuaram nos últimos
dois séculos.
Grande parte dos estudos sobre outros países mostra que
o Grande Nivelamento foi resultado de mecanismos rápidos e
que uma parte importante da dinâmica da desigualdade nos
países desenvolvidos a partir da década de 1970 está relacio-
nada a mudanças nos mecanismos lentos. Talvez por isso te-
nhamos nos acostumados a pensar que mecanismos rápidos
tendem a produzir queda da desigualdade, e mecanismos len-
tos sua estabilização.
O que este livro nos sugere é que falta algo a ser explicado.
No Brasil, as quedas da desigualdade são lentas e seus aumen-
tos rápidos. É cedo para afirmar, mas não para especular, que o
Brasil é um exemplo de que os quatro cavaleiros do apocalipse
podem cavalgar na direção contrária e elevar subitamente a
desigualdade, revertendo os efeitos dos mecanismos lentos.
É aqui que se encaixa a primeira parte do livro. A histó-
ria das ideias sobre a hierarquia na sociedade é uma história
povoada por narrativas otimistas. Algumas, aliás, são cínicas, e
delas surgem justificativas para todo tipo de manutenção de
privilégios. No estudo de Pedro não há um achado sequer que
nos diga que há uma solução simples para um problema de
tamanha magnitude, menos ainda que esse é um problema
que se resolverá sozinho.
16
Olhados a distância, os resultados deste livro sugerem
que é hora de começar a revisar parte do que sabemos. Em
nove décadas o país passou por muitas transformações e ne-
nhuma das explicações clássicas para o comportamento da
desigualdade parece ajustar-se muito bem aos dados.
Bem documentado, este livro é uma semente para estu-
dos futuros. Deve, na verdade, ser lido como um longo convi-
te. É um trabalho precursor, com a preocupação de pavimen-
tar o caminho para outros. Por essa razão, é transparente quanto
às dificuldades que enfrenta e aberto a complementos e revi-
sões. Franqueza e espírito colaborativo desse naipe merecem
uma salva.

17
Nota do Autor

A
PRIMEIRA encarnação deste trabalho foi como
minha tese de doutorado em Sociologia, defendida
na Universidade de Brasília em 2016, sob orientação
de Marcelo Medeiros. Agora, graças ao prêmio Anpocs de
melhor tese de doutorado em ciências sociais, o trabalho ga-
nha uma segunda vida com sua publicação em livro.
Quando comecei a preparar o manuscrito, pensei que a
adaptação seria moleza. Afinal, bastaria aparar algumas arestas
que sobraram no original. No entanto, logo me dei conta de
que uma tese é uma criatura muito diferente de um livro, e
que não fazia sentido simplesmente publicar o mesmo material.
Dessa forma, pus-me a trabalhar na edição, deixando o
texto mais fluido e os argumentos mais claros. Fórmulas e notas
de rodapé foram suprimidas, algumas seções foram reorgani-
zadas, as referências bibliográficas foram podadas, o jargão foi
simplificado, e os cuidados típicos de quem está sendo avalia-
do em uma tese — o excesso de ressalvas, exaustivos testes de
sensibilidade e robustez, a profusão de gráficos, entre outros
— foram abandonados. Para facilitar a leitura, mantive a opção

19
de traduzir para o português todas as citações que constam
nas referências bibliográficas em outros idiomas.
Com isso, o texto final é cerca de 30% menor do que o
da tese original, sem nenhum prejuízo ao conteúdo e com a
vantagem de estar mais acessível e conciso. Os resultados subs-
tantivos, contudo, são os mesmos. Embora informações para
anos mais recentes tenham sido divulgadas desde que defendi
a tese, elas não modificam em nada as conclusões deste traba-
lho e, portanto, não foram incorporadas.
A pesquisa que deu origem à minha tese e a este livro só
foi possível graças ao amparo institucional que recebi nos últi-
mos anos. Agradeço ao Instituto de Pesquisa Econômica Apli-
cada (Ipea), à Universidade de Brasília, à Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes), à
Universidade da Califórnia — Berkeley e, naturalmente, à As-
sociação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências
Sociais (Anpocs) pelo apoio, acolhimento e financiamento em
diferentes etapas deste trabalho.
Mais ainda, tive o privilégio de me deparar com a gene-
rosidade de muitos colegas. Agradeço em especial a Marcelo
Medeiros, orientador e amigo, cuja influência no meu traba-
lho é impossível de ser exagerada, e a Emmanuel Saez, que
gentilmente me supervisionou durante minha estada na Uni-
versidade da Califórnia — Berkeley. Ana Cristina Murta
Collares, Carlos Antonio Costa Ribeiro, Carlos Henrique Leite
Corseuil e Leonardo Monteiro Monasterio fizeram parte da
banca examinadora na defesa da tese e me ensinaram muito
com seus excelentes comentários, críticas e sugestões.
Outros colaboraram diretamente para a elaboração e o
aperfeiçoamento deste trabalho, motivados apenas por um
impressionante espírito cooperativo. Cristóvam Barcelos da
Nóbrega esclareceu muitas dúvidas sobre a história do impos-
to de renda no Brasil. José Alcides Figueiredo Santos, Marta
20
Arretche e Rodolfo Hoffmann mostraram disposição fantás-
tica para ler e comentar alguns dos capítulos da Parte II. Ana
Paula Soares Carvalho, Flavio Carvalhaes, Frederico Rodrigues
Abraham, Gabriel Banaggia, Isabel Martinez, Rafael Henrique
Moraes Pereira, Rogério Barbosa foram amigos e interlocutores
valiosos.
Finalmente, Ligia Gonçalves Diniz leu, debateu, revisou
e me ajudou a editar tanto a tese quanto este livro. Sua presen-
ça estética, intelectual e afetiva atravessa tudo que eu escrevo.

21
Introdução

A
DESIGUALDADE é diferente vista do topo.
Quando os ricos estão no centro das atenções, os diag-
nósticos, hipóteses e interpretações não são os mes-
mos que emergem ao se analisarem outros estratos, como os
mais pobres ou a dita classe média. Analogamente, variados
graus de concentração no topo trazem consigo implicações
políticas, econômicas e morais diversas. Uma sociedade com
uma pequena elite abastada e uma massa empobrecida tende a
ser radicalmente diferente de uma sociedade em que a hierar-
quia de renda ou riqueza é relativamente achatada, ainda que
ambas tenham a mesma renda per capita.
Os ricos não são um grupo claramente delimitado. Ain-
da assim, o volume de recursos econômicos e políticos acumu-
lados por eles costuma ser grande o suficiente para colocá-los
em posição privilegiada para influir na vida social. A concen-
tração de renda ou riqueza entre os mais ricos é em geral tão
intensa que sua dinâmica afeta até mesmo indicadores de de-
sigualdade pouco sensíveis a ela, como o Gini.
Apesar disso, os ricos ainda não são um objeto de estudo
frequente, pelo menos não tanto quanto deveriam. A própria

23
falta de uma terminologia consensual trai seu papel secundá-
rio: ao contrário do que ocorre com os pobres, o uso do termo
ricos ainda causa estranheza, a ponto de boa parte da literatura
— também este livro — optar frequentemente por expressões
anódinas como os mais ricos ou os afluentes. Talvez até pela
posição social dos acadêmicos, acaba-se reproduzindo a
ambiguidade de um estrato social que, seja lá como for defini-
do, é alvo de fascínio ao mesmo tempo que se reveste de pudor.
Todos querem ser ricos, mas ricos são sempre os outros.
Felizmente, as tendências recentes apontam para um
enfoque cada vez maior nos mais ricos, revigorando uma tra-
dição minoritária e antiga, que, embora muito heterogênea,
compartilha o olhar sobre a estratificação social a partir do que
ocorre no topo. Este trabalho ambiciona contribuir para essa
tradição, que deveria ter mais protagonismo no Brasil. Somos
um país com alto grau de desigualdade, cuja característica mais
marcante e visível é precisamente a concentração de renda e
riqueza em uma pequena fração da população. Não à toa, a
discussão sobre desigualdade quase sempre encontrou por aqui
receptividade muito maior do que em outros países. Mesmo
assim, o foco recai com muito mais frequência sobre os mais
pobres e o que lhes “falta”. Não obstante uma pequena e valio-
sa produção nacional, os mais ricos e o que lhes “sobra” ainda
são assunto relativamente pouco explorado.
Meu objetivo central é analisar empiricamente a con-
centração de renda nas últimas nove décadas no Brasil. Com
base em tabulações publicamente disponíveis do Imposto de
Renda de Pessoas Físicas (IRPF), apresento estimativas para a
concentração de renda entre os mais ricos de 1926 a 2013, o
que representa a mais longa e completa série histórica para o
Brasil até o momento. Essas estimativas permitem recontar a
história do Brasil desde a década de 1920 do ponto de vista da
concentração no topo, algo impossível de se realizar com outras
24
fontes de dados mais conhecidas, como as pesquisas domici-
liares amostrais.
Alguns estudos recentes construíram séries similares, mas
com cobertura temporal mais restrita e sem analisar a concen-
tração de renda total no período anterior à década de 1970.
Primeiro, em Souza (2014), analisei resultados preliminares
desta pesquisa, cobrindo 57 anos entre 1933 e 2012. Em se-
guida, eu e Marcelo Medeiros estendemos as séries para 66
anos entre 1928 e 2012 (Souza & Medeiros, 2015). Depois,
Morgan (2015), de forma independente, publicou estimati-
vas para 61 anos entre 1933 e 2013.
Neste trabalho, eu aprimoro os procedimentos metodo-
lógicos anteriores e utilizo técnicas de imputação que permi-
tem contornar lacunas das informações disponíveis e chegar a
conclusões sobre os rendimentos totais nas primeiras décadas
do período — e não apenas sobre os rendimentos brutos tri-
butáveis, como nos outros trabalhos. Com isso, foi possível
calcular a fração total de fato recebida pelos ricos em 69 anos
entre 1926 e 2013, algo que não havia sido feito antes. Adi-
cionalmente, tento ir além e usar os resultados estimados para
responder a questões substantivas sobre as circunstâncias em
que a concentração no topo de fato muda.
Para contornar controvérsias nem sempre fecundas, as
querelas sobre a definição conceitual do que é “ser rico” foram
deliberadamente evitadas. Assim como no caso da pobreza,
por ser uma definição tão normativa quanto técnica, nenhum
consenso sobre o tema existe, e é altamente improvável que
um dia venha a existir. Por isso, tanto a definição da pobreza
quanto a da riqueza costumam orientar-se por escolhas pre-
dominantemente pragmáticas. Este trabalho não é diferente:
em linha com boa parte das pesquisas recentes, optei por uma
definição operacional que preza pela simplicidade, centrada
em frações predeterminadas da distribuição de renda, variando
25
do 0,01% aos 15% no topo. O centésimo mais rico da popu-
lação adulta — isto é, o 1% no topo da distribuição de renda
— recebe destaque adicional, assim como ocorre na literatura
recente. Trata-se de um estrato numeroso e rico o suficiente
para ter alta visibilidade e grande capacidade de afetar tanto o
nível quanto a dinâmica da desigualdade mesmo quando se
considera a distribuição como um todo.
Teorias e hipóteses sobre a desigualdade nunca estão
muito longe de discursos morais e políticos e tendem a carre-
gar marcas de nascença impressas pelos seus contextos socioe-
conômico e intelectual. Esse aspecto não pode ser ignorado
em um trabalho ancorado em uma perspectiva histórica. No
plano mais abstrato, uma característica frequente da boa socio-
logia é recuperar as condições de possibilidade da própria aná-
lise e os desdobramentos que tornaram possível em determi-
nado momento recortar a realidade de certa forma e colocar
em questão certos objetos de estudo. Por exemplo, por muito
tempo a sociologia se definiu, ao menos em parte, pela priori-
dade acordada à análise da estrutura de classes, em detrimento
da distribuição de renda. Tratar dos ricos qua ricos rompe com
esse comprometimento, algo cada vez mais comum. A recapi-
tulação dos debates intelectuais elucida por que isso vem ocor-
rendo e, de quebra, a relação da abordagem deste livro com o
campo de estudos sobre estratificação.
Mais concretamente, o olhar histórico sobre a evolução
dos discursos sobre desigualdade e seu contexto é o que justi-
fica as hipóteses e perguntas que norteiam a análise empírica.
As ciências sociais são pródigas em redescobrir a pólvora; a
constante reinvenção do dualismo “colônia de exploração” vs.
“colônia de povoamento” é um bom exemplo (Monasterio &
Ehrl, 2015). Em outros casos, somente um exame mais deta-
lhado de controvérsias e unanimidades passadas desvela como
o óbvio nem sempre foi óbvio e, muitas vezes, não permaneceu
26
óbvio por muito tempo. Como discuto mais adiante, a célebre
hipótese do “U invertido” de Simon Kuznets — que postula
que a desigualdade tende a aumentar nos primeiros estágios
do desenvolvimento, para posteriormente refluir — é indisso-
ciável do seu ambiente sociopolítico, marcando uma guinada
otimista na interpretação da desigualdade que deslocou os ri-
cos para segundo plano. Contra muitas das evidências dispo-
níveis, mudanças bruscas foram reinterpretadas como proces-
sos graduais de domesticação da desigualdade em um momento
em que o medo anterior da desordem paulatinamente deu lu-
gar à satisfação com o apaziguamento social.
Por tudo isso, este estudo está organizado em duas partes
que podem ser lidas separadamente, mas que se iluminam mu-
tuamente. A Parte I cumpre um papel introdutório, apresen-
tando uma leitura da história das ideias sobre estratificação
que põe em relevo a longa, variada e descontínua tradição de
estudos sobre os ricos. Seu objetivo principal é mostrar a
efervescência, decadência e, por fim, a recuperação recente desse
modo específico de abordar a desigualdade — ou seja, como
chegamos até aqui.
Para organizar a exposição, recorro à tipologia de David
Cannadine (1999), que, em seu estudo das representações his-
tóricas da desigualdade na Grã-Bretanha, concluiu que os inú-
meros discursos podem ser resumidos em três modelos bási-
cos: o modelo hierárquico, que concebe a sociedade como uma
sequência graduada de relações de superioridade e inferiorida-
de; o triádico, que postula a existência de três grandes grupos,
correspondentes, grosso modo, às classes baixas, médias e altas; e
o dicotômico ou binário, que vê a sociedade polarizada em
dois grupos em conflito latente ou explícito.
O argumento que unifica os capítulos da Parte I especula
que o interesse intelectual pela desigualdade está estreitamente
correlacionado à prevalência do modelo dicotômico, que, por
27
sua vez, remete inexoravelmente à problematização do topo da
distribuição de renda ou riqueza. A matéria-prima fundamen-
tal é a análise qualitativa da literatura acadêmica, em especial a
produção anglo-saxã, desde o fim do século XIX, complemen-
tada, onde possível, por evidências quantitativas de caráter bi-
bliométrico e pela recapitulação de eventos políticos e econômicos.
A Parte II aproveita exatamente o desfecho da Parte I,
isto é, a redescoberta dos ricos, aproveitando o esgotamento do
chamado “crescimento pró-pobre” brasileiro dos últimos anos
para aproximar-se da produção contemporânea internacional
sobre desigualdade. Seus três capítulos aprofundam quatro as-
pectos particularmente importantes discutidos ao longo da
Parte I. O primeiro é a ênfase nos ricos como grupo funda-
mental para a compreensão adequada da desigualdade. Os
outros três são o uso de dados do imposto de renda como fon-
te primária, a perspectiva de longo prazo da análise e a cres-
cente sensibilidade aos determinantes institucionais da desi-
gualdade.
A inter-relação entre esses quatro aspectos estrutura os
capítulos finais e constitui sua principal contribuição ao estu-
do da estratificação social no Brasil. Afinal, a ressurgência dos
estudos sobre os ricos trouxe de volta uma prática que entrara
em decadência com a popularização das pesquisas domicilia-
res amostrais: o uso de tabulações do imposto de renda para
estudar empiricamente a concentração de renda no topo da
distribuição. Desde Vilfredo Pareto até meados do século XX,
os dados tributários foram talvez a principal fonte para a análise
da desigualdade; no pós-guerra, junto com a prevalência de
concepções hierárquicas e/ou triádicas e das narrativas benig-
nas, eles deram lugar às pesquisas domiciliares amostrais, o
que, por sinal, ilustra como determinadas formas de interpretar
o mundo e os instrumentos que viabilizam a interpretação
evoluem pari passu.
28
Ao mesmo tempo, a recuperação dos dados tributários
como fonte fundamental de informações estimulou a adoção
de perspectivas de mais longo prazo, para muito além dos ho-
rizontes restritos impostos pelas pesquisas amostrais. A con-
fluência com outros campos é notória, em particular com o
também florescente interesse em história econômica, inclusive
sobre a trajetória da América Latina. Mais ainda, nos dois ca-
sos — tanto nos ressurgentes estudos sobre os ricos baseados
em dados tributários quanto nas hipóteses para o relativo atra-
so da América Latina e sua alta desigualdade —, as explica-
ções baseadas em processos históricos e políticos e nas “regras
do jogo” tornaram-se centrais. De Daron Acemoglu a Piketty,
a abordagem institucional da estratificação social, em todas as
suas vertentes, fortaleceu-se e desalojou — ou pelo menos pas-
sou a complementar — as abordagens ancoradas quase exclu-
sivamente em forças de mercado e mudanças tecnológicas.
Para reavaliar a história do Brasil desde a década de 1920
sob essa ótica, a Parte II divide-se entre um curto capítulo
metodológico e dois longos capítulos empíricos que consti-
tuem, por assim dizer, o coração deste trabalho. O primeiro
deles — o Capítulo 5 — dedica-se sobretudo à apresentação
dos resultados a partir de três perguntas principais — justi-
ficadas na Parte I — que funcionam como fio condutor: a) a
concentração de renda no topo no Brasil segue alguma ten-
dência nítida de longo prazo?; b) como a alternância entre
ditadura e democracia moldou nossa desigualdade?; c) quan-
do o Brasil se tornou muito desigual em comparação com o
resto do mundo?
Já o capítulo final complementa a análise por meio de
uma avaliação histórica da trajetória política e institucional
brasileira desde os entreguerras. O argumento central é que a
correlação da dinâmica da concentração de renda no topo com
nossos grandes ciclos políticos é compatível com a história
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política e econômica do Brasil no período e, mais ainda, não é
mera coincidência. O capítulo procura dar substância à inter-
pretação esboçada no capítulo anterior acerca da determinação
institucional da desigualdade e o caráter inercial da concen-
tração de renda no topo, que, seja no Brasil ou no exterior,
tende a só mudar significativamente em arroubos causados por
crises e rupturas, que abrem espaço para o redesenho de um
amplo leque de instituições.
A ideia básica é que determinado padrão de desigualda-
de resulta sobretudo do efeito combinado e cumulativo de
uma série de políticas e programas, de pequenas e grandes de-
cisões, e que, em condições democráticas normais, tanto a amea-
ça de desorganização social quanto o próprio perde-e-ganha
político dificultam muito a redistribuição duradoura e signifi-
cativa dos mais ricos para o resto da população. Reformas radi-
cais tendem a permanecer imprevisíveis e excessivamente ar-
riscadas, enquanto reformas graduais, cumulativas e persistentes
dificilmente obtêm sucesso no longo prazo, dada a ausência
de um único mecanismo que seja capaz de explicar determinada
distribuição de renda e do poder de veto e barganha caracte-
rístico de grupos com recursos econômicos abundantes.
Em conjunto, os seis capítulos deste estudo almejam con-
tribuir para a extensa literatura sobre desigualdade por meio
de uma abordagem histórica atenta tanto aos discursos quanto
à evolução empírica da concentração de renda no topo. Se os
argumentos apresentados estiverem corretos, os ricos devem
permanecer no radar das ciências sociais por um bom tempo e,
junto com eles, o interesse pela desigualdade, especialmente
no Brasil. Quase dois séculos depois, o assombro expresso por
Alexis de Tocqueville nas linhas que servem de epígrafe a este
trabalho está longe de ter-se tornado realidade.

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