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FIREBIRDS

Uma Antologia de Ficção


Fantástica

FARO
L

Aos escritores presentes neste livro, obrigada, de todo o coração.

Sumário

Prefácio desta edição ix


Prefácio da edição original xi

O baile por Delia Sherman 1


O bebê no caixa de depósitos noturnos por Megan Whalen
Turner 38
Beleza por Sherwood Smith 64
Mariposa por Nancy Springer 102
Max Mondrosch por Lloyd Alexander 118
A queda de Ys por Meredith Ann Pierce 134
Medusa por Michael Cadnum 146
A raposa negra por Graham Pratt, Emma Buli & Charles Vess
154
Byndley por Patricia A. McKillip 176
A Dama do Jardim de Gelo por Kara Dalkey 195
O baú da esperança por Garth Nix 225
Perseguindo o vento por Elizabeth E. Wein 260
Manchinha por Diana Wynne Jones 294
Lembre-se de mim por Nancy Farmer 335
Destroços por Nina Kiriki Hoffman 349
A mulher voadora por Laurel Winter 391

Agradecimentos 415

Prefácio desta edição

conto fantástico tem raízes profundas, antigas,


remontando à época dos mitos, àqueles tempos em
que xamãs, sacerdotes, menestréis ou anciãos transmitiam
oralmente histórias de seus deuses e heróis. Foram tempos em
que a literatura começou a ser concebida — e a tais narrativas
não faltavam o fantástico, o inusitado, o maravilhoso.
Esta coletânea de contos, Firebirds, editada originalmente nos
Estados Unidos como parte de um grande projeto editorial,
contém textos também maravilhosos e inusitados, em que a
presença dos elementos míticos é constante. Sua tradução
para o português responde à sede do leitor jovem brasileiro
por obras de fantasia.
Encontramos aqui desde a retomada de antigos mitos celtas,
egípcios, gregos, japoneses, narrativas e baladas medievais, a
uma pitada de faroeste, uma dose de ficção científica e à mais
pura faerie — a presença eterna do mundo das fadas, paralela
ao nosso mundo desde tempos imemoriais —; tudo isso
mesclado a narrativas contemporâneas.
Alguns dos autores destes contos são famosos por terem
publicado best-sellers dedicados à fantasia, como Lloyd
Alexander, Diana Wynne Jones, Garth Nix; e Charles Vess é
um premiadíssimo ilustrador de quadrinhos. Além deles,
autores de várias partes do mundo trouxeram textos à
coletânea e, ao tecer suas teias narrativas em torno da magia,
do fantástico e do improvável, eles abordam assuntos
fundamentais relativos à existência humana. Falam em
crescimento, em aceitação, na descoberta de nós mesmos,
falam de amor e de morte — recriando conceitos ancestrais
em narrativas envolventes.
Há quem diga que a literatura de cunho fantástico é escapista,
não contempla a realidade crua da vida moderna. No entanto,
não apenas essa literatura é capaz de atrair nosso jovem leitor
com uma ânsia inimaginável, num país em que os índices de
hábito de leitura são mínimos, mas é capaz de despertar
profundas reflexões a respeito de assuntos atuais. Os contos
presentes neste volume suscitam o debate sobre temas agudos
como a responsabilidade de um ser humano diante do outro,
o abuso de poder, a manutenção da individualidade ante um
coletivo massacrante, o respeito à natureza e a todo ser vivo, a
atenção à diversidade humana.
Se o fato de fazer leitores jovens refletir sobre ética, cidadania
e diversidade cultural é índice de boa literatura, então a
fantasia e o fantástico têm muito a nos dizer e o dizem por
meio de aventura, romance, poesia e até certa dose de
sofrimento misturada ao mais profundo encantamento.
Afinal, não é encantar a função do conto? Nesse sentido,
Firebirds encanta — e transforma.
Rosana Rios

Prefácio da edição original

qui vai uma confissão: só leio a introdução de um


livro depois que acabo de ler o livro todo, pois
detesto quando o editor revela partes da história.
Então, não se preocupe: vou deixar que as histórias falem
por si mesmas. Quero que você as leia da mesma forma que
eu li ao recebê-las.
O assunto sobre o qual quero realmente falar não é Firebirds,
o livro, mas, sim, Firebird, o selo editorial.
O selo Firebird surgiu em uma noite de 1999, quando eu ia a
pé do escritório até à estação do trem, que me levaria para
casa. Acho que essas caminhadas são, de fato, os momentos
em que penso com mais clareza; quando eu tinha uma
banda, era nessas horas que compunha as canções na minha
cabeça. As atividades do dia-a-dia nos desgastam e trazem à
tona o que é importante — ou inesperado.
Eu vinha trabalhando com adolescentes em escolas e
também online desde 1996. Quanto mais eu fazia pesquisas
(foram milhares!) e conversava com os adolescentes, mais eu
percebia uma coisa: alguns dos meus melhores e mais
vorazes leitores amavam ficção científica e literatura
fantástica. Eles iam até a seção adulta do gênero para
descobrir novos livros e escritores e ficavam ansiosos para
me contar suas descobertas. Eles haviam, de fato, se tornado
leitores para o resto da vida — isso não acontece com todo
mundo e, quando acontece, é maravilhoso. Esses leitores do
ensino fundamental e médio se tornariam adultos leitores
de ficção científica e literatura fantástica — eu conhecia
alguns desses adultos, e eles sempre falavam sobre o que
costumavam ler aos 12, 13 anos, e daí em diante. Eles
também compravam e reliam esses livros. Eram pontos de
referência.
Todas essas constatações e conversas povoavam minha
cabeça havia algum tempo, destilando-se, e finalmente se
cristalizaram naquela caminhada. De súbito, pensei: por que
não ter um selo para isso?
Depois, todas as informações prévias vieram em gotas à
minha mente. Nós nos damos tão bem com ficção científica e
literatura fantástica destinadas a jovens leitores; logo, é coerente
dar esse passo. O que nós já publicamos e podemos usar? Com
quem eu deveria falar? E a pergunta mais importante de todas:
O que eu tenho de ler?
As leituras continuam, é claro. Continuarão para sempre.
Levou alguns anos para organizar os detalhes — do nome,
logotipo e site até o visual das capas, o conselho editorial e
os muitos contratos de publicação —, mas o Firebird foi
finalmente lançado em janeiro de 2002.
Esta coletânea é uma celebração do Firebird. Mas, antes de
tudo, é uma celebração da escrita de boa qualidade.
O que todos os autores aqui têm em comum é a ligação com
o catálogo, seja como parte dele ou como membro do
conselho editorial. Cada um desses autores faz algo
totalmente singular e extraordinário com as palavras (ou, no
caso de Charles Vess, com as ilustrações). Ah, tem mais uma
coisa: amo a obra deles. No que se refere aos colaboradores
desta antologia, sou tão fã quanto qualquer outra pessoa.
Você deve imaginar como me senti quando os contos
começaram a chegar! Foi uma espécie de Natal prolongado,
e no fim eu estava tão acesa quanto uma árvore de Natal
gigante. Acho que ainda estou pegando fogo.
Sharyn November
Junho de 2003

P.S. Você vai notar que alguns dos contos não parecem nem
soam "norte-americanos". Por quê? Porque seus autores não
o são. Para mim, faz sentido manter as coisas em sua
linguagem "natural", inclusive o estilo e a grafia. Além disso,
assim é mais divertido.

P.P.S. Adoraria saber o que você achou deste livro e, é claro,


do selo Firebird.
Delia Sherman
O baile

Foi em junho que a mãe de Célia Townsend mencionou


pela primeira vez o assunto dos bailes de debutantes. Um
dia após a formatura, elas comentavam que Célia deveria
retornar do Maine no final do verão e se aprontar para o
início das aulas como caloura na faculdade de Vassar.
— Você nem imagina tudo o que temos de fazer — a mãe
foi avisando. — Primeiro, tem o vestido. Temos que
encomendá-lo e comprar os sapatos antes de você ir. Não
gosto de deixar as coisas para a última hora.
Célia parecia desinteressada.
— Que vestido?
— Seu vestido de debutante, querida. Para o Baile de
Inverno, em dezembro. E você vai precisar de um par, mas
dá pra esperar até você se enturmar na faculdade. Pena que
você não conheça nenhum rapaz.
Célia poderia dizer que isso não era culpa dela, já que seus
pais a tinham mandado a uma escola só de meninas para que
nada interferisse em seus estudos. Mas apenas revirou os
olhos.
— Você não vai encrencar com isso, vai, Cê? — a mãe
disse, ansiosa. — Eu sei que algumas de suas amigas acham
essa coisa de baile antiquada e sem importância, mas,
francamente, eu não sei que diferença vai fazer pra guerra
do Vietnã você ir ou não a um baile de debutantes1.
Célia deu de ombros.
— Eu disse que iria, não disse?
Célia tinha vergonha de admitir, mas no fundo estava
ansiosa pelo Baile de Inverno com a dança tradicional das
debutantes, chamada cotilhão. É verdade que debutar era
muito antiquado, mas era isso que a atraía. Célia gostava do
passado, ou ao menos de certas partes dele — como vestidos
longos, cabelos compridos, castelos, qualquer coisa que
tivesse alaúdes ou que lembrasse o som de alaúdes. Ela
adorava o filme Romeu e Julieta de Zeffireli, livros como Tom
Jones, histórias antigas e canções folclóricas tradicionais:
baladas cheias de magia e de amantes unidos pelo destino. O
passado era romântico... As pessoas viviam aventuras
naquela época, as roupas eram legais, e coisas inesperadas
aconteciam nos bailes, como raptos e paixões súbitas. Célia,
que nunca vivera uma aventura de verdade nem se
apaixonara, estava apostando alto no Baile de Inverno.
A realidade, contudo, mostrou-se tão romântica quanto uma
reunião de pais e mestres. Tudo bem quanto ao vestido; a
barra tinha pétalas de organza que ondulavam quando ela se
mexia. A mãe, entretanto, não a deixou prender o cabelo
cor de mel com tiras de pérolas, como ela queria. E foi um
tédio ficar parada em pé no salão gelado, com mais trinta
garotas e seus pais, a mãe a toda hora arrumando seus
cabelos e lhe dizendo para endireitar as costas. E aí
chamaram seu nome e ela entrou no salão de baile, de braço
dado com seu pai para o Grande Momento.
Que bela droga foi o Grande Momento! O brilho das luzes a
fazia piscar e ela perdeu o equilíbrio ao fazer a reverência,
além de o pai ter pisado numa das pétalas de organza e a
arrancado fora.
Ela havia debutado na sociedade. Grande coisa. Se não fosse
o fato de a mãe estar satisfeita com ela uma vez na vida,
teria sido melhor ficar em casa.
Célia tirou um cigarro da bolsa de contas brancas, acendeu-
o e apoiou os cotovelos na toalha de mesa cor-de-rosa.
Fumar era um dos maus hábitos que ela adotara com a
inebriante liberdade que estava experimentando na
faculdade, ao viver longe da mãe pela primeira vez na vida.
O outro era o namoradinho, que tinha conhecido nas festas
dos alunos de Yale, no outono. Seu nome era Guy Duvivier;
ele descansava numa cadeira de bambu dourada, os pés em
cima do murinho num dos camarotes particulares que
circundavam o salão. Tinha o rosto longo e ossudo, olhos de
tigre com pálpebras pesadas, e cabelo ruivo preso com
elástico num rabo de cavalo. Havia cinzas na lapela de seu
paletó e uma expressão meio abobalhada em seu rosto,
resultado do baseado que ele escondia embaixo da mesa.
Célia soltou uma baforada desgostosa e voltou os olhos para
a pista de dança. Lester Brown e sua renomada banda
tocavam um foxtrote. A pista de dança era um redemoinho
de vestidos brancos e fraques pretos, pontuados pelos
vestidos dourados, escarlates e azuis das mães. Ela avistou
sua melhor amiga, Helen, deslizando com o namorado à
margem da massa de casais, os olhos nos olhos dele,
parecendo feliz da vida.
Mexeu-se, inquieta, na cadeira dura e estreita.
— Vamos dançar — disse.
— Por quê? — Guy soltou um fio de fumaça fina e
adocicada e deu mais uma tragada.
— Isto é um baile, Guy. A gente tem de dançar num baile.
— Esse é um ritual de acasalamento que vem da época do
dilúvio. — Ele a olhou com malícia. — Nós não precisamos
de um ritual sujo para acasalar, não é, Cê?
Célia não tinha nenhuma intenção de transar com Guy.
Quando começara a sair com ele, achava que era um
romântico, mas logo percebera que ele só se vestia como tal.
Infelizmente, ela já o tinha convidado para aquele baile
estúpido, e ele aceitara. Mais um comentário desses e ela
terminaria com ele naquela noite, mesmo que ficasse sem
namorado durante todo o inverno. Havia limites no que ela
seria capaz de fazer para deixar a mãe feliz.
A música terminou com o ressoar de aplausos bem-
educados. Os casais circularam pelo salão, cumprimentando
amigos e mudando os parceiros. A orquestra deu tempo para
que todos acertassem os novos pares, e então explodiu de
novo, num chachachá rouco. As cortinas de seu camarote
particular se mexeram e alguém disse:
— Carmen Miranda de luvas brancas. Tudo a ver!
Célia não reconheceu a voz. Nem parecia a sua língua, uma
voz de tenor vibrante como um clarinete, cheia de matizes e
harmonias. Ela olhou em volta e viu um sujeito alto de
fraque, afastando a cortina do camarote com a mão.
— Pensei que estava sozinha — ele disse. — Desculpe.
— Não, não, entre — convidou Célia.
— E — Guy disse. — Entre. Traga seus amigos. Vamos
fazer uma festinha.
O estranho soltou a cortina e veio para debaixo da luz. A
primeira coisa que Célia pensou foi que ele tinha o visual
perigoso e descolado que Guy gostaria de ter. Seu rosto era
longo e as bochechas lisas, o nariz quase romano, lábios
finos e queixo pontudo. A pele era clara e seus cabelos
pretos estavam presos com uma fita preta. Da orelha
esquerda pendia um brinco.
— Guy Duvivier — Guy se apresentou, sem se levantar.
— Encantado — respondeu o estranho, e se inclinou. —
Valentine Carter. — Ele se voltou para Célia. — E você é
Célia Townsend.
Célia sentiu que estava ficando vermelha.
— Como sabe disso?
— Você foi apresentada formalmente a todo mundo não faz
nem uma hora — ele sorriu para ela. — Gostei da sua
reverência. Teve personalidade.
Fez-se uma pausa incômoda durante a qual Célia imaginou
se ele estaria zombando dela. Achou que não. Seus olhos
eram de um escuro profundo, intenso como um facho de
luz, e se fixavam nos dela sem hesitação. Embora não fosse
nada tímida, ficou sem graça.
A banda passou do chachachá para a valsa. Sem tirar os
olhos dela, Valentine perguntou:
— Senhorita Townsend, concede-me a honra desta dança?
— Belo brinco — zombou Guy. — Seu namorado te deu de
presente?
— Você está chapado — Célia revidou, friamente.
— É o tédio — Guy concordou. — Só assim pra aguentar o
tranco. — Ele estendeu a mão suada. — Vamos dar uns
amassos?
Morta de vergonha, Célia olhou para Valentine, que
educadamente fingia observar os dançarinos na pista.
— Desculpe o Guy — ela disse. — Ele não é tão babaca
quando não está chapado. Eu adoraria dançar.
Valentine fez uma mesura com a cabeça — ela nunca tinha
visto um homem fazer isso sem parecer imbecil — e
ofereceu-lhe o braço. Ela apoiou os dedos nele e saiu do
camarote, seguida por um resmungo de Guy:
— Oh, cara! Célia? Que merda!
Dançar valsa com Valentine Cárter não tinha nada a ver
com o que Célia havia aprendido na Escola de Dança da
Senhorita Corcoran. Ele a fazia girar pelo salão como um
pião, a mão apoiada em seu ombro guiando-a para rodar e
rodar, mergulhando como uma andorinha nas notas melosas
de Strauss.
Valentine apertou-lhe a mão.
— Você é uma dançarina maravilhosa, Célia Townsend.
Célia o olhou com cautela. Os olhos intensos dele
encontraram os seus num olhar longo, provocativo.
— Se eu beijasse você, seu namorado quebraria a minha
cara? — As mãos dele percorreram suas costas, trazendo-a
mais para perto.
Célia estava fascinada — e desconfiada. Valentine era tão
parecido com alguém que ela teria idealizado que era difícil
acreditar que ele fosse de carne e osso. Meio sem fôlego, ela
respondeu:
— Um duelo em pleno dia? O Guy? Pouco provável. Mas
eu evitaria andar por becos escuros.
— Um homem prevenido vale por dois. — Ele a arrebatou
num tal rodopio que as pétalas de organza do vestido dela
esvoaçaram e brilharam. Rindo, Célia seguia seus passos.
Que importa se ele era real ou não? Ele havia trazido
encantamento ao Baile de Inverno. E, pelo menos naquele
momento, ele lhe pertencia.

Célia saiu do saguão iluminado e mergulhou na noite fria.


Puxou o casaco até o queixo e sentiu o calor da própria
respiração.
Valentine enlaçou a mão dela na sua e a levou escada
abaixo, deixando o Hotel Plaza para trás e indo em direção à
fonte, ali em frente.
— Vamos andar — ele sugeriu. — O ar fresco vai te
reanimar.
— Não existe ar fresco em Nova York — Célia resmungou,
numa reação automática. Ela se sentia indecentemente
alegre, levando-se em conta que tinha acabado de romper
com Guy — se é que é possível terminar com alguém que
estava chapado demais até para falar. Quando Valentine a
levara de volta ao camarote, após a valsa, Guy lhe dissera
que não gostava de vê-la dançando com bichas estrangeiras,
e ela lhe avisara que não queria vê-lo nunca mais. Ele
tentou beijá-la. Bêbado como estava, foi fácil empurrá-lo.
Valentine o amparou e, um segundo depois, Guy estava
sentado numa cadeira no canto do camarote, com a cara na
toalha de linho cor-de-rosa, roncando tranquilamente.
— Droga — Célia disse, enojada. — Agora vai haver uma
cena. — Seu maço de cigarros e o isqueiro prateado estavam
na mesa, ao lado da mão de Guy. Ela pegou o maço e puxou
um. Valentine lhe tirou o cigarro da mão e o enfiou na bolsa
dela.
— Não vamos chamar a atenção — ele pediu. — Na
verdade, alguém pode notar que eu não tenho convite para
este baile. Talvez um dos amigos dele se disponha a fazer
um resgate discreto? Eu te levo para casa, se você quiser.
Por um momento, ela esqueceu o problema do que fazer
com Guy.
— Você entrou de penetra na festa? Por quê?
O sorriso de Valentine ficou um pouquinho mais largo.
— Pra encontrar você — disse.
Deu tudo certo. O namorado de Helen concordou, de boa
vontade, em levar o corpo ressonante de Guy para casa; e
Célia dançou com Valentine até a meia-noite, quando
deixou um bilhete na mesa dos pais dizendo que ia voltar
com um amigo e que eles não precisavam se preocupar.
Logo estava deixando para trás a fonte do Plaza, com os
cabelos esvoaçando, de mãos dadas com o homem mais
romântico que já tinha conhecido.
— Aquele garoto — começou Valentine. — Você o ama?
Chocada, Célia o fitou, encontrou seu olhar interessado e
rapidamente se voltou para o outro lado.
— O Guy? De jeito nenhum — respondeu Célia. — Ele
acha que os Herman's Hermits são o suprassumo da música.
— Ele te ama?
— Meu Deus! Claro que não — disse Célia. — Ele é
loucamente apaixonado por si mesmo. Esta conversa está
meio esquisita, sabia? Acabamos de nos conhecer... A gente
devia estar perguntando onde o outro estuda ou coisas
assim.
— Devia? Por quê?
A pergunta parecia sincera.
— Pra gente se conhecer melhor.
— E falar de amor não vai fazer a gente se conhecer
melhor? — Ele sorriu para ela. — Deixa pra lá. Vamos falar
de outra coisa. Não de faculdade. Eu não faço faculdade.
— Você não estuda? — Célia nunca tinha conhecido
alguém de sua geração que não frequentasse alguma
faculdade. — Largou algum curso?
— Eu toco alaúde — ele explicou. — Toco em um consorte
chamado Booke of Ayres. Um consorte é...
— Um tipo de banda renascentista — Célia disse,
interrompendo-o. — Eu não sou uma ignorante total. Booke
of Ayres também parece um nome renascentista.
— E é. Você já ouviu falar em John Dowland?
— Claro que sim. Ele foi o maior compositor de madrigais e
músicas para alaúde da corte da Rainha Elizabeth.
— Por aí — Valentine parecia impressionado. — Você é
cheia de surpresas, Célia.
Ela riu.
— É que esse é meu estilo de música preferido. Eu sei
pouco sobre isso, na verdade. Não há muitos discos, essas
coisas. Mas faço parte de um coral Madrigal na faculdade e
conheço um montão de baladas.
— O que você conhece?
Deu branco em Célia.
— Hum. Deixa ver. Coisas de Joan Baez, principalmente, e
também Steeleye Span. E um grupo inglês. Você conhece?
— Não — ele respondeu. — Cante alguma coisa pra mim.
— Aqui, no meio da Park Avenue? Não. E se alguém ouvir?
Ele tinha o braço ao redor dos ombros dela e, quando se
virou para olhar os dois lados da rua, virou-a junto. Afora as
luzes coloridas das árvores de Natal, a gigantesca cruz de
janelas acesas na Grand Central Station e os faróis de alguns
táxis tardios, estava escuro. E a Park Avenue estava
silenciosa como nunca.
— Não tem ninguém pra ouvir você. E, se tivesse, qual é o
problema? Quem não gostaria de ouvir uma garota cantando
com voz alta e cristalina numa noite fria?
Era uma ideia atraente. Célia disse, timidamente:
— Eu não sei o que cantar.
Ele pensou por um instante.
— Cante "Greensleeves". Todo mundo conhece
"Greensleeves".
Ela começou suavemente, quase sussurrando. Mas depois de
cantar o primeiro verso sem que nenhum porteiro
aparecesse para reclamar do barulho, Célia se empolgou e
cantou com mais segurança. Sua voz soava agradável,
ondulando na noite. No terceiro verso, Valentine começou
a cantar também, insinuando um tenor macio que subia e
descia com a melodia. Cantar com ele era ainda mais
divertido do que dançar com ele.
"Greensleeves" foi seguida, após um curto debate, por "The
Silver Swan", com Valentine cantando a parte do contralto,
e depois "Tam Lin". Valentine apostou que ela não sabia
todos os versos. Célia apostou que sabia e, afobada, deu
início à versão de Steeleye Span. "Tam Lin" tinha vinte
versos, e Célia lembrou-se de todos. Mas Valentine ganhou
a aposta, pois conhecia uma versão diferente, com quarenta
versos. Quando ele acabou de cantar a versão completa, eles
já estavam na Rua 83, a um quarteirão do apartamento de
Célia.
Valentine estacou.
— Não quero deixá-la. Mas até a noite mais longa do ano
tem de acabar. E esta não é a noite mais longa: não ainda.
Célia, que vinha flutuando pelas ruas numa nuvem de
música desde a Rua 59, caiu na real com um aperto no
coração. A noite não lhe parecia ter sido longa, e ela não
queria que terminasse. Mas nada lhe ocorreu para dizer
além de:
— Quando vou ver você de novo?
— Eu vou tocar amanhã à noite — disse ele. — No East
Village. E um ensaio, não um show, e a música é quase toda
instrumental. Se você quiser, pode vir.
Não era exatamente uma proposta apaixonada, e Célia se viu
pensando em mil razões para não aceitar. Ela não queria
parecer ansiosa demais e, a bem da verdade, Valentine a
assustava um pouco. Ele era tão lindo.
Ele colocou suas mãos nas dela e beijou-as.
— Por favor, diga que irá.
Seus olhos negros brilhavam, olhando-a fixamente até que o
sangue ardeu nas orelhas dela. Se dissesse "não", desconfiava
de que ele não pediria outra vez. E ela queria mesmo vê-lo
de novo.
— Tudo bem — ela disse. — Acho que vou.
Surpreendentemente, ele riu. E, não tão
surpreendentemente,
inclinou-se e a beijou. Seu beijo era suave e provocador,
bem diferente da invasão bucal metódica de Guy. Quando a
soltou, ela estava tremendo.
— Oito horas — ele disse. — Espero você nesta esquina.
Boa noite.

A manhã seguinte foi de uma mesmice deprimente. Célia


levantou-se tarde, mas não o suficiente para escapar do
interrogatório da mãe sobre o jovem desconhecido com
quem fora vista dançando.
— Valentine? Que tipo de nome é esse? Quem é o pai dele?
— O Sr. Cárter, acredito eu, a não ser que a mãe dele tenha
se casado outra vez.
A Sra. Townsend fechou os olhos um instante, como que
pedindo paciência.
— Então você conheceu os pais dele?
— Mãe, eu não estou planejando me casar, só sair com ele.
— Quantos anos ele tem?
— Não sei — respondeu Célia, dizendo a verdade. — Que
diferença faz? Ele é um perfeito cavalheiro e vai me levar a
um concerto hoje à noite. Concerto de alaúde, não um show
de rock.
— O tipo de concerto não vem ao caso, Cê.
— O que vem ao caso — Célia estava começando a perder a
calma — é que eu tenho quase vinte anos e você continua
me tratando como um bebê. Se a gente tivesse se conhecido
na faculdade, eu teria saído com ele e você nem ficaria
sabendo.
A mãe ignorou o comentário como se fosse irrelevante.
— Onde é esse concerto de alaúde, querida? No Lincoln
Center? No Carnegie Hall?
— É no Village.
— Não, de jeito nenhum. Você não pode ir ao Village à
noite, e com um estranho que nem eu nem seu pai
conhecemos. Assunto encerrado.
Célia conhecia aquele tom de voz. Indicava que sua mãe
tomara uma decisão, e nem mesmo uma lei do Congresso
Nacional a faria mudar de ideia. Quando estava no colégio,
Célia gastara muitas horas e lágrimas tentando vencer essa
batalha. Mas ela agora estava na faculdade e já tinha cantado
"Greensleeves" no meio da Park Avenue. Havia sentido o
gostinho do romance, e não ia deixar a mãe lhe tirar isso
dizendo que não seria bom para ela.
Num tom idêntico ao da mãe, ela disse:
— Ele não é um estranho! Eu o conheci no Baile de
Inverno. Olha, sinto muito se você não gostar, mas vou sair
com ele de qualquer jeito.

O que se veste para ir a um ensaio de música elisabetana no


Village? Sem conhecer nada sobre músicos de verdade e
sem saber muita coisa sobre o bairro, além de que lá estava
cheio de hippies, Célia não conseguia se decidir. Não iria no
estilo garota comportada, com certeza. Por fim, ela escolheu
um vestido curto estampado verde e roxo, com cintura alta
e mangas largas. Calçou meias arrastão e botas de salto alto;
e deixou o cabelo cor de mel solto nas costas. Ela buscava
um efeito moderno-medieval e, quando se olhou no
espelho, viu que tinha atingido o objetivo.
Na porta do apartamento, a mãe a abordou com uma nota de
vinte dólares e instruções para voltar de táxi.
— Isso não quer dizer que aprovo a sua decisão, Célia. Eu
só quero ter certeza de que você poderá vir embora na hora
que sentir que precisa. Queria acreditar mais no seu
discernimento, mas acho que deveria estar grata por você
não mentir para mim a respeito do lugar aonde vai. Só
espero que o rapaz valha a pena.
Célia também esperava. Durante todo o dia, enquanto a mãe
usava todos os truques de seu repertório para fazê-la mudar
de ideia, estivera sonhando com Valentine: suas lindas mãos
de músico, seus olhos negros de poeta, seu brinco. E
relembrando seu beijo, como quem toca sem parar o disco
predileto até ele ficar arranhado e gasto. Agora, quase na
hora de encontrar-se com a realidade na esquina da Rua 83,
ela se perguntava se ainda iria gostar dele e se ele ainda iria
gostar dela.
Ele a estava esperando exatamente onde haviam combinado,
vestindo calças jeans pretas, botas e uma jaqueta de couro
negra, com um brinco de argola dourado na orelha. Estava
incrivelmente lindo e perigoso, como um rei pirata ou um
salteador de estradas.
— Célia — ele disse, pegando sua mão, virando a palma
para cima e beijando-lhe o pulso acima da luva. Ela sentiu o
rosto ruborizar.
— Muito bom — ele disse. — A bela Janet 9, em 1969, com
a saia um pouquinho acima dos joelhos. — Ele pegou um
estojo arredondado para violões que estava na calçada, a
seus pés. — Vamos tomar o metrô?

Quando eles saíram da estação de Astor Place, Célia


começou a perceber que ir ao Village ver The Fantasticks
com os pais não era absolutamente nada comparado a
caminhar pela St. Mark's Place com alguém que pertencia
ao lugar. A rua estava cheia de homens com barbas e
cabelos sujos caindo pelos ombros, e de garotas usando
roupas indianas e faixas bordadas com contas na testa. As
lojas estavam lotadas de coletes de couro com franjas,
narguilés e papéis de seda arrumados em fileiras coloridas.
Nas ruas, barraquinhas vendiam colares feitos de contas,
brincos enormes e símbolos de paz e amor em estanho,
pendurados em tiras de couro. Célia se agarrou à mão de
Valentine como uma criança, contemplando a cena colorida
e mutante, farejando os fantasmas doces de incenso e
maconha. Qualquer coisa poderia acontecer ali. Qualquer
coisa mesmo.
Alguns quarteirões adiante, Valentine abriu um portão de
ferro fundido, subiu os degraus de arenito marrom e tocou
uma campainha pintada. Um interfone soou e a porta se
abriu, dando para um corredor comprido com uma escada
de madeira gasta no final. Célia aspirou profundamente o ar
carregado de repolho e maconha, e se perguntou se a
sensação flutuante e de pânico que estava tendo não seria
um barato por osmose.
O apartamento ficava no terceiro andar. Quando Célia e
Valentine subiam os últimos degraus, uma porta se abriu,
liberando uma torrente de luz quente e dourada como mel.
Um sujeito enorme e barbudo, usando colete de pele, pegou
seu casaco e pendurou-o nos galhos de uma árvore dentro
da sala. Curiosa, Célia tocou o tronco. Era frio e duro —
algum tipo de metal. Havia ainda outra árvore perto do
fogão — a porta da frente dava para a cozinha —, com
panelas e bules pendurados em seus galhos graciosos, e uma
terceira árvore fazia sombra sobre a banheira (uma
banheira?), que ocupava uma alcova ao lado da pia. Um
barato.
O cara que parecia um urso conduziu Valentine por uma
porta acortinada, deixando para Célia a decisão de segui-los,
se quisesse. Ele nem perguntara seu nome. Célia silenciou o
desejo súbito de usar a nota de vinte da mãe: se ela soubesse
exatamente quais eram as regras e o que iria acontecer, não
seria mais uma aventura, não é? E se fugisse naquele
momento, provaria que não passava da desprezível
debutante do Upper East Side, como a mãe queria que ela
fosse. Então relaxou e se manteve calma. Ela poderia fugir
mais tarde.
A sala atrás da cortina era estranha e bela como um cenário
de conto de fadas. Não havia sofás, apenas almofadões
macios com estampas exóticas em verde, azul, ferrugem e
amarelo, como um campo em flor. As paredes eram cobertas
por mais árvores de metal prateado, com instrumentos
musicais pendurados — alaúdes, violinos, uma harpa
pequena com folhas entalhadas e pequenas lanternas com
velas acesas. Amontoadas no fundo da sala ficavam cinco
banquetas, três das quais ocupadas por uma garota e dois
homens. Valentine estava em pé diante deles, segurando o
estojo do alaúde em frente ao peito, como um escudo.
— Sentimos sua falta ontem à noite — a garota falou num
tom acusador. Ela era, sem dúvida, tão estranha quanto a
sala: rosto angular e pálido, olhos negros, sobrancelhas que
pareciam sinais de pontuação, braços longos e finos feito
galhos de árvores e dedos como ramos brancos. Seu cabelo
também era escuro, mas brilhava à luz das velas.
Sentindo-se como quem entra no meio de uma peça de
teatro, Célia se esgueirou pela porta e soltou a cortina.
Valentine deu de ombros.
— Como não tinha ensaio marcado, eu quis tirar uma noite
de folga.
— Ninguém tem noite de folga em pleno inverno — disse
um dos homens. Ele era gordo, ou talvez parecesse gordo
por estar sentado ao lado da garota magricela. Tinha um
rosto inteligente e áspero, com olhos pequenos e brilhantes,
que reluziam através de uma cortina de cabelos revoltos e
cacheados, como um animal espreitando por entre as folhas.
O outro homem parecia relativamente normal, exceto por
um olhar azul vidrado que fez Célia pensar em basiliscos. O
ar tremeluzia com tensão e palavras não ditas.
— Estou aqui agora. — Valentine pôs o estojo no chão,
abriu o fecho, tirou um alaúde bojudo de dentro e tomou
seu lugar numa banqueta vaga. A garota magricela pegou
um alaúde de braço quase da altura dela inteira e apoiou-o
no colo. Olhos Azuis encaixou o violino na curvatura do
ombro, Cacheado pegou algo que parecia um violohçelo em
miniatura e Grande Urso atarrachou as peças de uma flauta
doce. Todos começaram a afinar os instrumentos, cabeças
baixas como que em adoração. A tensão diminuiu um
pouco. Célia ficou pensando se alguém tinha notado sua
presença.
— E um — disse Magricela.
Assim que mergulharam na primeira peça, Célia esqueceu
que queria ir embora. Ela imergiu na música e deixou-se
levar pelas notas que tombavam umas sobre as outras num
caos mal ordenado, como água escapando de um dique.
Quando a canção terminou, respirou como se tivesse
acabado de nadar em água gelada. Sentia uma felicidade
quase insuportável.
Os músicos trocaram olhares satisfeitos.
— Você aí — disse Magricela. Ela estendeu os braços,
longos e magros como as patas de uma aranha. — Foi bom.
Você não achou?
Quando Célia notou que estavam falando com ela,
Magricela já tinha se virado para Valentine.
— Legal você trazer plateia. Teria sido melhor se tivesse
avisado a gente, mas, já que ela está aqui, é melhor dizer
para ela sentar e lhe oferecer uma cerveja ou outra coisa.
Senão ela vai pensar que você é um babaca insensível.
Valentine levantou o queixo e apertou os lábios.
— Peço desculpas a todos — disse ele, formalmente. —
Pegue uma almofada, Cê. Fique à vontade.
— Que tal um vinho? — sugeriu Magricela. — Tem um
daqueles baratos na geladeira. Ou um queijinho, talvez? Não
quero parecer pouco hospitaleira.
Célia estava prestes a dizer que queria vinho quando
Valentine interrompeu.
— Mais tarde, está bem? Isto aqui é um ensaio, não é?
Então vamos ensaiar.
Ele parecia tão zangado! Seria com Magricela? Com ela? De
repente, Célia desejou ter obedecido à mãe. A não ser pela
música, a noite era um desastre total. Fugir era uma opção,
sem dúvida. Mas a música ainda soava no silêncio que
restara... Era humanamente impossível sair dali sem ouvir
mais. E ela não era idiota de mostrar a eles que a estavam
assustando. O mais dignamente que pôde, ela afundou na
pilha de almofa-dões mais próxima.
— Não se incomodem comigo — declarou no melhor estilo
Miss Debutante 1969. — Espero vocês terminarem. Mas
gostaria de perguntar uma coisa: que instrumento você está
tocando?
A mulher correu os dedos magricelos pelo braço longo e
delgado do instrumento.
— E um arquialaúde — disse com o tom de
condescendência que se usa para explicar o óbvio. — Mais
alguma pergunta?
"Tudo bem", pensou Célia, "aja desse jeito. Eu também posso
ser assim."
— Na verdade, tenho, sim — ela disse, e apontou o
violoncelo em miniatura que Cacheado estava tocando. —
O que é isso?
— E uma viola de gamba — respondeu Magricela. —
Provavelmente a única em Nova York.
— Legal. — Para o bem de Valentine, Célia afetou um
olhar interessado. Mas ele estava afinando de novo seu
alaúde. Alaúdes, Célia aprendeu logo, precisam de muita
afinação.
A próxima série de músicas mais parecia dance music e in-
cluía o arranjo instrumental de uma canção que Célia já
havia cantado no Madrigal. Ela murmurou a letra baixinho
até que a melodia se perdeu numa série de variações cada
vez mais complexas, que a transportaram para um lugar
encantado. Era como se a música estivesse puxando sua
alma para dentro de seus ouvidos, e ali depositasse as frases
gloriosas, sequências vibrantes e harmonias intricadas, cada
uma mais maravilhosa que a outra. Nem mesmo a inevitável
pausa para afinação conseguia quebrar a magia. Célia ficava
repassando mentalmente a última canção até que a próxima
chegasse e tomasse o seu lugar. Mais tarde, Magricela
sugeriu:
— Acho que está na hora de algo mais desafiador. Que tal
aquela música nova? O "Midwinter Pavane"?
Murmúrios animados de Cacheado e de Olhos Azuis;
silêncio por parte de Grande Urso. Valentine fez uma
careta, olhou para Magricela, deu de ombros e afinou o
instrumento de novo.
O "Midwinter Pavane" era sombrio e suntuoso, cheio de
frases repetitivas que eram jogadas das cordas para a flauta e
vice-versa, girando em si mesmas como uma cobra se
enrolando. Após algumas frases, a flauta silenciou e os
instrumentos de corda passaram a tocar sozinhos, numa
disparada estrondosa de notas e acordes. Célia fechou os
olhos, em êxtase. Atrás de suas pálpebras, sombras rodavam
e pulavam como dançarinos vestidos de vinho, dourado e
castanho, e então giravam vertiginosamente para baixo,
para um ponto único, silencioso e escuro.
Célia arfou e se ergueu, esperando que ninguém tivesse no-
tado que tinha caído no sono. Ela nem precisava se
preocupar. O grupo todo estava olhando para Valentine,
que tocava um solo. Ele tinha um dos calcanhares apoiado
no joelho oposto, o alaúde seguro no colo. Os dedos da mão
esquerda saltitavam pelos trastos, acompanhando o
movimento da mão direita, que saltava com leveza entre as
cordas. Vendo-o tocar, tudo o que Célia queria no mundo
era chegar mais perto e estudar a sutil variação da música
banhando seu rosto, assim como a luz banha as águas de um
rio. Meio às cegas, tentou se levantar do ninho de
almofadões e bateu em algo que parecia um enorme violino.
Ao cair, o instrumento soltou um rangido que soou como
um queixume, seguido por um som agudo ameaçador. A
música parou bruscamente.
— Merda! — Olhos Azuis deu um pulo da banqueta. —
Garota desastrada — ele rosnou. — Por que não olha onde
pisa? Esse instrumento é delicado, muito raro, você não tem
ideia de como é raro. Se você o quebrou, eu... — Ele pegou
o violino no colo como se fosse um gato que Célia tivesse
acabado de atropelar.
Lágrimas de aflição pinicaram o nariz da garota.
— Não se preocupe — ela disse. — Se estiver quebrado, eu
pago. — Os músicos olharam-na, inexpressivos. — Vou
deixar meu endereço para vocês mandarem a conta — Célia
finalizou, sem graça. — Acho que vou embora agora. Mil
desculpas. A música estava maravilhosa.

Ela conseguiu segurar as lágrimas até chegar à pequena


cozinha, onde procurou o casaco. Estava um breu total, e ela
não conseguia encontrar o interruptor entre os galhos da
árvore, nem o casaco, nem a porta. Com os olhos marejados,
ela falou um palavrão e tateou as paredes mais uma vez. As
pontas afiadas das folhas de metal espetaram seus dedos
dolorosamente. Da sala ao lado vieram vozes murmurando
insistentes.
As luzes se acenderam. Valentine estava de pé ao lado do
fogão.
— Não vá — pediu ele.
Célia tirou um lenço de dentro de sua bolsa e assoou o nariz
com força de propósito.
— Agora você quer que eu fique? Por que eu deveria ficar?
Você me deixou plantada no meio da sala como uma idiota.
Não me apresentou a ninguém nem me explicou nada. Você
nem perguntou se eu queria um copo d'água.
— Desculpe — ele pediu, parecendo sincero.
Célia não se abrandou.
— Então você pede desculpa e eu digo que tudo bem. E
depois?
Ele pegou sua mão. Seus olhos brilharam nos dela e ela
sentiu nos lábios o fantasma do beijo que ele lhe dera na
noite anterior. Ela abaixou os olhos até a camiseta dele,
branca e larga, e fitou-a sem enxergar.
— Fique — ele disse suavemente. — Nós vamos fazer um
intervalo. Preciso conversar com você. A sós.
Atrás dela, ele puxou uma cortina que Célia ainda não tinha
notado. Do outro lado havia uma porta de madeira polida e,
atrás da porta, outro quarto. Célia fingiu calma enquanto
Valentine achava um fósforo e acendia uma vela. A pequena
chama iluminou uma grande cama de plataforma coberta
por uma colcha verde musgo com — surpresa! — árvores de
metal nos quatro cantos. Célia engoliu em seco. "É agora",
pensou. "Assista Célia se jogar do Empire State e aterrissar
dentro de um balde d'água." Seu coração entrou numa
batucada frenética.
Valentine sentou-se na cama e a olhou fixamente.
— Tenho um problema — disse.
Aquilo não tinha nada a ver com o que ela esperava que ele
dissesse. Ela respirou fundo e tentou se acalmar.
— Que tipo de problema?
— Você não vai acreditar. Talvez acredite. Não sei. Achei
que você era a pessoa certa, mas o que eu sei sobre você,
afinal? — Ele passou a mão pelos cabelos e olhou-a de novo.
— Como posso saber se você é confiável?
— Você está preocupado se pode confiar em mim? A voz
dele estava rouca de desespero.
— Eu tenho de confiar em alguém. Preciso de sua ajuda.
Você é minha única chance, e mal me conhece.
Provavelmente é uma ideia idiota, mas eu não tenho mais
tempo, nem alternativa.
Tudo estava acontecendo rápido demais, embora não da
forma que ela temera. Ou talvez essa fosse a ideia dele de
sedução. Se era, ela achou sua técnica muito fraca. Por outro
lado, era tão óbvio que ele estava deprimido que ela não
podia deixar de sentir pena. Precisava de tempo para pensar.
Revirou a bolsa em busca do cigarro e do isqueiro, pegou
um e acendeu.
Valentine saltou, os olhos esbugalhados como os de um
cachorro assustado.
— Você não pode fumar aqui. Eles odeiam cigarro.
— Quem odeia cigarro? Que história é essa? Ei! — Ele já
tinha se curvado sobre ela, arrancado o cigarro de sua mão e
apagado na sola da bota.
— Esse é o problema — disse ele. — Eu não posso lhe
contar a história inteira. Há um feitiço... — Sua boca tremia,
sua mão comprida movia o cigarro apagado, impotente. —
Bem, não posso.
No quarto só cabia a cama. Não havia cadeira, escrivaninha
ou baú onde ela pudesse se sentar. Curiosa demais para ficar
constrangida, Célia sentou-se na cama.
— Um feitiço? Você está gozando com a minha cara.
Valentine começou a partir o cigarro em pedacinhos.
— Esta noite — ele disse, com cautela — é a noite mais
longa do ano. Vai haver um baile. No final do baile, há uma
cerimônia... — ele gaguejou. — De... pagamento. Este ano,
vou interpretar o papel principal. — Ele ergueu os olhos da
sujeira de filtro e tabaco no chão polido para o rosto dela,
procurando compreensão.
— Você não está me dando muitas pistas — Célia disse.
Passando as mãos pelo cabelo, ele o soltou. Cachos escuros
caíram sobre seus olhos.
— Na noite passada nós cantamos juntos, lembra-se?
— O "Silver Swan" — ela afirmou. — E "Tam Lin".
Ele a olhava sem pestanejar.
— Tam Lin — ela disse devagar — é um cavaleiro humano
que vive no mundo das fadas. A cada sete anos, as fadas têm
que dar uma alma ao demônio como tributo: esse é o dízimo
que se paga para o inferno. Agora é a vez de Tam Lin. Na
noite de Halloween, a bela Janet o salva segurando-o firme
em seus braços, enquanto ele se transforma em coisas
medonhas como ursos e ferros em brasa. — Ela parou; ele
assentiu, encoraj ando-a. — Está tentando me dizer que
você é como Tam Lin? Você é o dízimo para...
— Fique quieta. Só fique quieta.
A voz dele estava entrecortada de dor. Célia queria envolvê-
lo nos seus braços, talvez para confortá-lo, ou para confortar
a si mesma. Ela não sabia ao certo se o tumulto que sentia
no estômago era de medo ou emoção. Ela queria acreditar
nele; e acreditava, mas algumas coisas a incomodavam.
— Hoje não é Halloween — ela disse.
— A noite do solsticio de inverno é a mais longa do ano.
— Janet recebeu as instruções.
— É verdade.
— E é por isso que você não pode me dizer o que fazer.
Pela primeira vez, ele sorriu para ela.
— Eu sabia que você era inteligente — elogiou.
Era de emoção. Definitivamente, de emoção. Era, sem
brincadeira, a melhor coisa que já lhe tinha acontecido.
— Você me dará dicas?
Ele ficou sério de novo.
— Confie no que você ouve e não no que vê.
— Só isso?
Ele assentiu em silêncio. Seu rosto estava impassível. Célia
chegou mais perto e pegou sua mão.
— Farei o possível.
— Eu sei que sim, Célia.
Na sua boca, o nome dela parecia uma invocação, uma
declaração, uma carícia. Ela nunca ouvira ninguém dizer
seu nome assim. E lhe deu a única resposta que achou
cabível naquele momento. Um beijo.

Eles foram além disso, é claro. Foram bem mais longe, na


verdade, mas não tanto quanto Janet e Tam Lin. Uma parte
de Célia queria muito ir até o fim, mais do que desejara
qualquer outra coisa, e que se danassem as consequências. A
outra parte, contudo, lhe falava com a voz de sua mãe, mais
pesarosa que brava, sobre gravidez, doenças e perda do
amor-próprio. Ela tentou ignorar a voz, mas aquilo lhe tirou
um pouco do entusiasmo dos beijos; Valentine percebeu e se
afastou dela.
Célia sentiu alívio, frustração, humilhação e várias outras
emoções que não sabia nomear.
— Desculpe — murmurou.
— Não — ele disse, inesperadamente. — Não seria certo,
não esta noite. — Ele suspirou e se recostou nas almofadas.
— Seus beijos são tão doces, Célia. Assim como você.
Célia lhe sorriu. Ela queria dizer alguma coisa coquete e
inteligente, mas a cama estava incrivelmente macia e
aconchegante, e seus olhos estavam pesados.
— Mais uma dica — ele lhe disse ao ouvido, com a voz
baixinha e terna. — As coisas não são o que parecem.
— Não são o que parecem — ela murmurou. — Entendi.
— E caiu no sono.
Célia acordou tremendo de frio. A vela tinha queimado até
o fim ou havia sido apagada. O outro lado da cama estava
vazio. Seus pés estavam gelados.
Ela não conseguia encontrar nem os fósforos, nem a vela,
nem suas botas. Estava confusa a respeito de onde estava e
do que tinha de fazer, mas se lembrava de que tinha algo a
ver com Valentine e que era importante. Então saiu da cama
e foi tateando pela escuridão, em busca de uma porta.
Não encontrou a porta, mas de repente viu-se em um
corredor comprido, forrado de madeira, de cujo final
vinham sons de alaúde e luz de tochas. Célia caminhou para
lá. Uma luz dourada e uma onda de calor a atingiram com
um batuque ritmado que acompanhava o turbilhão alegre da
música.
A alguns passos de chegar ao final do corredor, Célia parou.
Tudo voltou à sua mente: o ensaio, a música, a doçura dos
beijos de Valentine, a dor de ter de parar. E ela lembrou-se
de que ele havia lhe pedido que o restituísse ao mundo dos
humanos, do mesmo jeito que a Janet da lenda havia feito
por Tam Lin.
Mas não era a mesma coisa, era? Não era como na balada, de
jeito nenhum. Célia não tinha colhido uma rosa proibida
como Janet, nem procurara emoções num castelo proibido.
Valentine tinha ido ao baile à sua procura. E ele não exigira
sua virgindade como Tam Lin havia exigido a de Janet —
tinha se comportado como um perfeito cavalheiro.
Portanto, como Célia podia confiar que o que tinha dado
certo para Janet — desesperada, grávida, (supostamente)
muito apaixonada — daria certo para ela também? E o que
lhe aconteceria, caso não desse?
Esse era o problema, não era? Por que ela se arriscaria a
virar um sapo, ou coisa pior, por um homem que mal
conhecia? Bem, Célia respondeu para si mesma: porque
talvez viesse a amá-lo, caso tivesse a chance. E porque ela
prometera que o faria, e para ela promessas tinham valor.
Mas principalmente porque se arrependeria pelo resto da
vida se fosse embora agora. O que adianta sonhar com
aventuras se você dá as costas à primeira que lhe aparece?
Sentindo-se bem mais nervosa do que antes de seu début,
Célia Townsend secou as mãos suadas na barra do vestido
roxo e saiu do corredor escuro para a luz suave das tochas.
De pé ao lado da porta, ela tentava entender o caleidoscópio
de cores e formas que se desdobravam diante de seus olhos.
Era um baile, é claro, um baile tão encantado quanto o Baile
de Inverno fora maçante. Centenas de figuras vestidas em
tons vibrantes pulavam, curvavam-se e empinavam-se em
perfeita harmonia com a música de dois alaúdes, um
violino, uma viola de gamba e uma flauta doce. Cada gesto
era gracioso, cada passo leve e confiante. E as roupas! Para
Célia tudo parecia veludo e chiffon em cores fortes — ouro,
vinho e azul-escuro —, e os cabelos compridos presos em
penteados altos ou trançados com contas, flores e conchas.
Os homens estavam tão vistosos quanto as mulheres, com
punhos de renda, coletes de contas e fitas trançando seus
cabelos e barbas.
A música era familiar — uma canção dançante que o Booke
of Ayres tinha ensaiado. Célia deu um passo tímido à frente
para tentar dar uma olhada na banda; uma figura escura saiu
da pista, pôs a mão sobre o coração e se curvou. Célia olhou
para Valentine. Ele tinha penteado o cabelo — ela percebeu
— e posto uma jaqueta indiana preta.
— Estamos na Terra dos Elfos? — ela perguntou. Ele
pareceu se divertir com a pergunta.
— Não estamos em Poughkeepsie — ele disse, estendendo
a mão para ela, assim como tinha feito no Baile de Inverno.
— Venha dançar.
Célia se retraiu. Pensar nele e vê-lo eram duas coisas bem
diferentes. Só nesse momento ela tomou consciência de que
estava à beira de uma aventura inesperada e talvez perigosa.
Ela esperava que Valentine ao menos demonstrasse que
entendia o esforço que ela ia fazer por ele. Em vez disso, lá
estava ele, frio como um sorvete, tirando-a para dançar
como se nada tivesse acontecido.
— Não seja tímida, meu bem — ele disse, impaciente.
Lembrando como ele estivera desesperado no quartinho
com a cama e as árvores, quanto parecia assustado, e depois
tão carinhoso, Célia perguntava a si mesma se aquilo tudo
era fingimento. Então notou que sua mão estendida tremia.
Claro. Ele estava com medo, mas não podia demonstrar nem
o medo nem qualquer outra coisa diante de seus inimigos.
Ele sabia as regras; ela não. Se queria que ela dançasse, ela
dançaria.
Célia pousou seus dedos sobre os dele e deixou que a
conduzisse pelo salão.
Mal tinham dado um passo e outro parceiro já a convidava a
dançar e, para sua surpresa, ela deslizava suavemente pela
coreografia complexa, mudando de par a cada compasso. De
perto, os dançarinos eram até mais bonitos do que ela tinha
imaginado, e bem mais estranhos. Célia passou das mãos de
um rapaz cujo cabelo caía como cachos de uvas sob uma
coroa de folhas para uma mulher sombria com olhos
dourados e surpresos. Enquanto ela e a mulher rodavam no
centro de um círculo trançado, pequenas estrelas e luas se
derramavam de sua saia, cercando-as numa nuvem
cintilante que se dispersou quando a mulher a entregou a
outro parceiro.
Se Célia pudesse parar de dançar, pararia. Como acontecia a
garotas nos contos de fadas, seus pés pareciam ter vida
própria, movendo-a impecavelmente pelos passos
complexos de uma dança que ela jamais vira. Querendo ou
não, ela tinha de dançar. Mesmo apavorada, mesmo se seus
pés doessem, mesmo se perdesse Valentine de vista, ela
tinha de dançar.
Os pés de Célia saltitavam numa corrente ondulada de
dançarinos — mão esquerda, mão direita, mão esquerda,
mão direita — e rodopiavam de volta para Valentine. Ela
prendeu os dedos na cintura dele.
— Não se preocupe — ela disse. — Agora eu o peguei e não
vou soltar.
Valentine riu e se transformou numa mulher com a
cabeleira dourada e prateada, e olhos feito moedas de ouro.
— Você pode salvá-lo — a mulher disse, alegremente —, se
conseguir encontrá-lo.
De repente, havia vários Valentines, em todos os lados para
onde Célia olhasse: curvando-se, saltitando, jogando as
parceiras para o alto ou fazendo-as girar pela cintura. Cada
um estava vestido de forma diferente: paletó de veludo,
brim rasgado, camisa de babados, jeans, gola rolê. Um não
usava nada, a não ser seus cachos ao vento.
Célia mal teve tempo de registrar aquele excesso súbito de
Valentines quando um homenzinho de chifre no meio da
testa agarrou sua mão e a forçou a dançar um complicado
conjunto de rodopios e voltas que a deixaram tonta e
ofegante. Seus pés, ainda se mexendo com entusiasmo
dentro do compasso, estavam machucados e doloridos.
Pensou que, se desistisse, talvez eles a deixassem parar de
dançar e ir para casa. Valentine nem era seu namorado, não
é mesmo? De onde ele tirara a ideia de que ela o salvaria só
porque era lindo e precisava dela? Bem feito se ela o
deixasse ir pro inferno, que é para onde ele deveria ir.
Uma mulher feita de flores entregou Célia a um dos
Valentines, este com um rubi pendurado na orelha. Ao
contrário do primeiro Valentine, este não parecia estar se
divertindo. Parecia um cão açoitado, seus olhos negros
suplicando que Célia o salvasse. Era impossível ficar furiosa
quando ele a olhava assim, impossível condená-lo só porque
se aproveitara dela — o que ele nem tinha feito, já que ela
havia tomado a iniciativa de beijá-lo. Ela viera aqui para
salvá-lo, e o faria. Se ao menos pudesse descobrir qual deles
tinha que salvar...
Alguém repetia uma frase melódica no alaúde, procurando
escalas, deixando uma luz trêmula como ouro no ar. "Confie
no que você ouve e não no que vê." Tudo bem. Pense. Todos
os Valentines dançarinos se pareciam com Valentine. Mas
não podiam ser ele. Por que não? Porque, se Valentine
estava dançando, quem estava tocando alaúde?
Os movimentos da dança não tinham levado Célia para o
lado da sala onde estavam os músicos — ou, se levaram, ela
estivera ocupada demais para notar, sendo jogada de um
lado para outro como uma bola de basquete. Agora se
concentrava na música, espiando por entre a massa de
dançarinos cambiantes, deixando que seus pés e parceiros
cuidassem de sua posição naquele arranjo. Era o Booke of
Ayres, como havia pensado: Magricela, Cacheado, Olhos
Azuis e Grande Urso. E Valentine. Era tão simples, agora
que ela havia entendido. Tudo o que precisava fazer era
dançar até ficar em frente a ele, pular em Valentine e
segurá-lo, não importa o que acontecesse. Muito fácil.
Escolher para onde ir naquela dança era quase impossível.
Assim como uma bola de basquete não tem como escolher
para qual parte da quadra vai, no final foi mais a sorte do
que a intenção que levou Célia para perto da plataforma
onde o rapaz estava sentado, os dedos dançando
freneticamente pelo braço longo do alaúde.
Com a sensação desesperada de que era agora ou nunca,
Célia se desvencilhou dos braços de seu par e correu para a
plataforma.
Ninguém a olhou nem tentou impedi-la. A cabeça de
Valentine estava curvada sobre o corpo bojudo do alaúde. O
braço exagerado do instrumento se elevava acima dele,
ameaçando o braço que Olhos Azuis usava para movimentar
o arco.
Célia deu uma guinada em direção à outra pessoa que tocava
alaúde. O alaúde de Magricela tinha braço curto. Não havia
tempo para olhar com cuidado, nem para avaliar as possíveis
camadas e níveis de ilusão. Rezando para ter adivinhado
mesmo, Célia pulou no palco e atirou os braços em volta da
Magricela, com alaúde e tudo.
Nada aconteceu. Célia teve tempo para pensar se teria posto
tudo a perder, escolhido alguém que não precisava ser salvo;
e o que aconteceria, se tivesse? Ela ficaria presa ali,
dançando para sempre? Seria transformada numa árvore de
metal ou mandada para o inferno da próxima vez que o
povo das fadas precisasse de um substituto?
Então o ar começou a tremer e Célia viu-se abraçada a um
cachorro, um pastor alemão. Seus pelos estavam eriçados, os
dentes à mostra, e ele rosnava.
Célia gostava de cachorros, mesmo dos grandes; mas
preferia fazer amizade com eles aos poucos e de longe. O
pastor alemão estava apertado contra seu peito. Ele revirava
a cabeça e ameaçava mordê-la. Soluçando de medo, ela
lutou contra o instinto de afastar suas mãos dos dentes do
cachorro e continuou segurando-o. Inacreditavelmente, os
dentes brancos do animal morderam o ar. Célia afundou o
rosto no pelo dele. As coisas não são o que parecem. Esse
cachorro, na verdade, era Valentine, não era? E Valentine
não a machucaria. Só precisava segurá-lo e tudo acabaria
bem.
Mas cobras não são fáceis de agarrar. Elas são muito grandes
e musculosas. Uma ponta fica batendo contra suas costas e a
outra é uma ameaça, com a boca escancarada cheia de presas
imensas. Ela instila veneno, também. Célia gritou, mas não a
soltou. Se o cachorro não a tinha mordido, a cobra também
não o faria. Assim ela esperava. Quantas transformações
Janet tinha suportado? Três, na versão da história que ela
conhecia. Na versão de Valentine, o cachorro se
transformava em cobra, leão, urso e ferro em brasa.
Ela estava quase ansiosa pelo leão.
Mas não houve nenhum leão. Em vez disso apareceu um
rato gigante, com dentes incisivos cor de manteiga, um rabo
feito chicote, garras cor-de-rosa e uma capa escorregadia de
pelos ásperos. Fedia como um cano de esgoto, e tinha olhos
vermelhos e alucinados.
Célia fechou os olhos novamente, cerrou os dentes e segu-
rou-o. Três. Seria a versão dela ou a de Valentine?
Por um momento, achou que tinha acabado, pois havia um
homem em seus braços. Mas os olhos que viu ao abrir os
seus eram remelosos e vermelhos, com a parte branca
amarelada. A pele ao redor dos olhos era cinzenta e
grudenta de sujeira, os cabelos emaranhados, o rosto
barbado. O homem que ela abraçava fedia mais que o rato,
um cheiro de suor velho, bebida velha e vômito novo. Célia
estava perto de vomitar também, e quase abriu os braços
para se livrar dele o mais depressa possível.
"É só uma ilusão", disse para si mesma. Na verdade, é
Valentine. Depois do primeiro choque, não era tão ruim. Só
faltava mais um. Talvez.
Seus braços estavam cheios de folhas e galhos. E espinhos
pontiagudos, cravando fundo em seus pulsos, rosto e seios.
Célia descobriu que era mais difícil resistir à dor do que ao
medo ou ao nojo. Tudo o que podia fazer era manter os
braços firmes em volta daquela massa escorregadia e
espinhosa. Era impossível aumentar a pressão dos dedos,
doía demais.
Uma coisa viscosa lhe escorreu pela têmpora para o canto do
olho: suor, talvez, ou sangue. Ardia. Célia piscou irritada,
mas continuou firme. Ela nem sabia mais o que estava
segurando, ou por quê. Apenas segurava, e esperava tudo
aquilo acabar.
Uma voz familiar chamou:
— Célia.
Seu rosto estava encostado ao peito dele e ela prendia seus
braços, imobilizando-os. Ele estava nu e tremia. Ela soltou-o
o suficiente para poder olhá-lo bem.
Valentine. Ele parecia estar tão mal quanto ela se sentia,
pálido como um peixe morto, e seus cachos estavam quase
tão embaraçados quanto os do vagabundo que ela tinha
segurado. Seu rosto estava coberto de lágrimas.
Célia ergueu a mão e as enxugou.
— Não tenho uma capa para cobri-lo — ela disse, com a
voz trêmula.
— Não faz mal — ele disse.
Nesse momento, Magricela, de volta à sua forma normal,
começou a soltar um monte de palavrões.
Ela era criativa: uma longa lista de xingamentos sexuais e
escatológicos, bem ofensivos para os humanos em geral e os
músicos em particular. Ao ouvir aquilo, Célia pensou como
sua vida havia sido protegida. Ela nunca tinha pensado que
simples palavrões pudessem ser tão feios. Mas era apenas
feiura. Agora, Magricela não poderia lhes fazer nada pior do
que agredi-los com palavras. Tinha sido derrotada.
Por fim, sua fonte secou. Ela jogou os cabelos brilhantes
para trás e se empertigou, como uma árvore esguia.
— Muito bem — ela disse para Valentine. — Você venceu.
Eu sabia que você ia encontrar uma saída. Devia ter
desconfiado de que não tinha atraído a garota até aqui pra
que ela tomasse o seu lugar. Agora um de nós terá de ficar.
Nós não vamos romper o acordo só porque o cara escolhido
pra ser o bode expiatório foi salvo.
Valentine deu de ombros.
— O acordo é seu. Você que o honre.
Magricela olhou como se fosse começar a xingar de novo.
Em vez disso, ela disse:
— Se eu soubesse quanto valiam suas promessas, Valentine
Cárter, eu nunca o teria ensinado a tocar alaúde.
— Mas você não sabia. E eu fui forçado a fazer as
promessas.
— Eu queria mesmo era poder cortar fora suas mãos — ela
disse, com frieza. — Mas tenho coisas mais urgentes pra
fazer. Agora, rua!
É difícil fazer uma saída digna quando seus pés estão
matando-o de dor e seu companheiro está totalmente nu.
Célia, àquela altura, não estava ligando para a dignidade. Ela
estava disposta a sair daquela sala se arrastando, caso seus
pés inchados e suas pernas doloridas não aguentassem
andar. Mas Valentine a pegou no colo, cambaleando um
pouco, e saiu impassível, atravessando a multidão com ela
nos braços. Deve ter sido uma cena ridícula, mas ninguém
riu.
Não estava tudo acabado ainda — Célia percebeu —, pelo
menos não para os dançarinos. O homenzinho com chifre
na testa olhou-a e curvou-se para ela. A mulher baixinha
com estrelas no vestido deu-lhe um sorriso triste. Lágrimas
brotaram dos olhos de Célia.
— Eu sei — disse Valentine. — Também tenho pena deles.
Mas não o suficiente para queimar no inferno por eles.
Parecia um longo caminho de volta ao quarto. Célia
segurava firme no pescoço de Valentine e tentava não
chorar. Ela até podia ser uma heroína, mas não se sentia
como tal. Estava toda dolorida e extremamente cansada. E,
quando chegasse em casa, sua mãe ia acabar com ela.
O quarto parecia diferente — sujo e vazio, exceto por um
colchão e uma pilha de roupas: a camisa branca e a calça
jeans preta de Valentine, as botas e meias arrastão de Célia.
Ele a colocou na cama com um gemido. Seus olhos se
encontraram e se afastaram timidamente. Célia sentiu seu
rosto ferver. Decidiu não calçar as meias e começou a calçar
as botas com ar sombrio. Milagrosamente, seus pés não
estavam tão inchados a ponto de não caberem nas botas. Na
verdade, estavam normais. Os arranhões deixados pelos
espinhos também tinham desaparecido.
— Célia? — Valentine havia se vestido e prendido o cabelo
para trás, mas ainda tinha a aparência bastante suja. Célia
suspeitou de que ela mesma não estivesse muito melhor. E,
de qualquer forma, o que importava a aparência deles agora?
Confie no que você ouve, não no que vê. E isso.
— O quê? — sua voz saiu impaciente e áspera. Valentine
levantou o queixo num gesto familiar.
— Só queria dizer que eu te amo. Você é inteligente,
corajosa e linda. Você me salvou. — Ele pegou a mão dela
nas suas. — Quero me casar com você.
Claro, o final de um conto de fadas, tão previsível e
tranquilo quanto um "e viveram felizes para sempre". Célia
sentiu uma emoção enorme e cálida lhe subir, inchar da
boca do estômago até a garganta e a cabeça, tanto que ficou
tonta e enjoada. Poderia ser de amor, alegria e entrega. Se
era, Célia não tinha certeza se gostava daquela sensação.
— Eu mal conheço você — ela objetou.
— Não entendo — Valentine disse. — Você me salvou.
Correu um risco tão grande que nem imagina pra me salvar.
Como é possível você não me amar?
— Eu o salvei porque não era justo que você fosse pro
inferno por causa de um acordo que nem era seu. E também
pela aventura.
— Eu achei que você me amasse.
— Pode ser. Eu acabei de conhecê-lo. Não sei.
Ela tinha deixado as mãos nas dele, o que poderia ser um
gesto significativo, mas provavelmente era apenas inércia.
Ele parecia magoado, perplexo e exausto.
— Olha, não dá pra falar sobre isso agora — disse ela. —
Você tem para onde ir?
Ele deu de ombros.
— É aqui que eu tenho vivido. Aqui e naquele outro lugar.
— Não é uma boa ideia. E se a Magricela tiver segundas
intenções?
— Magricela? — ele deu uma risada de surpresa. — Você
pensa nela como Magricela? — Ele passou os braços em volta
dela. — Eu realmente te amo, Célia. Você é... eu nem sei
como te descrever. Nunca conheci ninguém como você.
Ela retribuiu o abraço, beijou-o no rosto (ele precisava se
barbear) e se soltou.
— Acredite: eu também nunca conheci ninguém como
você. Isto aqui não é a terra das fadas, Valentine. E Nova
York, dezembro de 1969. Já é tarde e eu tenho de voltar pra
casa e encarar meus pais. Eles não queriam que eu viesse
aqui hoje. Não vai ser fácil. — Ela abriu a bolsa e tirou todo
o dinheiro, inclusive os vinte que a mãe lhe havia dado, e
deu-o para ele, ficando só com o bilhete do metrô e uma
moedinha para telefonar. — Tome.
Deve dar pra ficar na ACM. Não sei. Ligue-me lá pelo meio-
dia e eu o encontrarei em algum lugar. Por aqui. Talvez eu
goste do Village, da parte humana do Village. Igualmente
em relação a você. Preciso ver você e o bairro à luz do dia.
O queixo dele estava erguido de novo.
— Não estou acostumado a mendigar.
— Tudo bem — ela estava no limite da paciência. — Então
não me ligue. —Amassou o papelzinho onde tinha anotado
seu telefone e jogou no chão. Ele o pegou.
— Desculpe — ele disse. — Não estou acostumado a ser
humano. Já faz um tempo.
— Quanto tempo? Deixa pra lá, você me conta amanhã.
Chega de surpresas por hoje.
Ele a beijou ao se separarem, um beijo tímido e cortês. Célia
estava cansada demais para se importar com que tipo de
beijo era aquele. A multidão na rua era tão numerosa
quanto antes, e era tarde — muito tarde mesmo. Tudo o que
tinha de acontecer no baile já devia ter acontecido àquela
altura, e Magricela, ou a Rainha das Fadas, estaria tocando
seu alaúde enquanto os outros dançavam para espantar sua
tristeza e medo. E Célia estava indo para casa para ser
descascada pelos pais. Mas já não parecia mais uma situação
tão assustadora. Talvez por causa do cansaço. Talvez porque
soubesse que seus pais eram humanos e se preocupavam
com ela. Ou talvez por saber que ela havia seguido seu
coração e seus instintos, trazendo Valentine para o mundo
real. O que quer que acontecesse agora, ela pensou que teria
uma grande chance de viver feliz para sempre.

DELIA SHERMAN nasceu em Tóquio, no Japão, cresceu em


Nova York e vive em Boston. É autora dos romances
Through a Brazen Mirror, The Porcelain Dove (ganhador do
prêmio Mythopoeic) e The Freedom Maze. Com a colega
fantasista Ellen Kushner, escreveu um conto e um romance,
ambos intitulados The Fall of the Kings. Entre seus muitos
contos, incluem-se "Grand Central Park", também passado
numa Nova York mágica, que faz parte do livro The Green
Man: Tales from the Mythic Forest (Viking). Com Terri
Windling, ela organizou The Essential Bordertown. E editora
colaboradora do Tor Books e membro fundador da
Interstitial Arts Foundation (www.endicott-studio.com/ia).
Ela prefere escrever em cafeterias a escrever em casa, e
viajar a ficar no mesmo lugar.

NOTA DA AUTORA
Tal como Célia, fiz meu début na sociedade em 1969. Foi
idéia de minha mãe, e eu não curti muito a coisa, à exceção
do meu vestido, cuja barra tinha pétalas de organdi branco.
A experiência toda pareceu meio irreal, como se estivesse
ocorrendo num universo paralelo àquele em que eu ia à
escola e assistia à Guerra do Vietnã sendo travada na tevê
toda noite. Então, achei que poderia ser interessante levar
essa sensação de irrealidade mais adiante, para dentro de
uma Nova York mágica que eu sempre sinto à minha volta
quando ando pelo Village, pelo Central Park ou pela New
York Public Library.
Megan Whalen Turner
O bebê no caixa de depósitos noturnos

Banco de Elliotville havia acabado de anexar uma sala de


segurança à sua caixa-forte, e ela fora equipada com cofres
particulares. As coisas raramente mudavam em Elliotville, e
novidades sempre chamavam a atenção das pessoas. Mas,
para ter certeza de que todo mundo tomaria conhecimento
do serviço, o banco mandou instalar um outdoor perto do
centro da cidade, onde colocou uma figura com o slogan
"Seu tesouro estará a salvo conosco".
O próprio presidente do banco, Homer Donnelly, tivera a
ideia do slogan e sentia muito orgulho dele. Além de
presidente, ele também era diretor executivo e presidente do
Conselho Administrativo do banco. Sua família tinha
fundado a instituição. O antiquado cofre de ferro com o
qual haviam começado ainda enfeitava a entrada.
Não se poderia dizer que a população da cidade era rica, mas
era próspera, trabalhava muito e — pensava Homer —
certamente haveria relíquias de família que precisavam ser
guardadas em local seguro. Se alguém lhe perguntasse, ele
diria que as pessoas em Elliotville tinham bons valores
morais. Portanto, foi um choque chegar de manhãzinha um
dia, uma semana depois que o outdoor fora colocado, e
descobrir que alguém havia deixado um bebê no caixa para
depósitos noturnos.
Na verdade, esse caixa noturno era só uma fenda, com uma
aba inclinada, que ficava na fachada do banco, como as das
caixas de correio ou dos guichês para a devolução de livros
nas bibliotecas públicas. Quando o banco estava fechado, os
clientes podiam colocar dinheiro e um comprovante de
depósito dentro de um envelope, puxar a alça, colocar o
envelope na aba e depois soltar a alça. O depósito descia
pela parede e caía em uma cesta posicionada lá embaixo. O
envelope ficava ali, seguro dentro do banco, para ser
registrado no dia seguinte. . Esvaziar a cesta era a primeira
tarefa do dia e, como chegava antes dos caixas, Homer em
geral se incumbia do serviço. Por isso foi ele quem achou o
bebê. Ele estava ali, enrolado em um cobertorzinho,
dormindo tranquilamente sobre a pilha de depósitos.

Homer não teria ficado mais abismado caso a cesta estivesse


vazia e os depósitos noturnos tivessem sumido. Com as mãos
trêmulas, ele abriu o pedacinho de papel dobrado preso ao
lençol do bebê, com medo de já saber o que estava escrito. E
sabia. Numa letra requintada e elegante, o bilhete dizia:
"Nosso tesouro. Por favor, mantenham-na a salvo".
Homer gemeu e a bebê se mexeu. Em silêncio, ele se
afastou. Foi procurar o segurança que havia ficado no
edifício durante a noite.
— Você está demitido — disse ele.
— O quê? — indagou o homem.
— Demitido — Homer repetiu.
— Mas...
— Mas, nada — disse Homer. — Demitido. Esta noite,
enquanto você lia a sua revista, cochilava ou Deus sabe o
quê, alguém deixou um bebê no caixa de depósitos
noturnos.
— Um o quê?
— UM BEBÊ — Homer berrou e apontou. — NO CAIXA DE
DEPÓSITOS NOTURNOS!
— Vivo? — o segurança perguntou, empalidecendo.
— É CLARO ! — gritou Homer, e, como que para confirmar,
um choro fino veio da caixa.
— Ai, Deus — disse o homem. — Ai, meu Deus.
Ele atravessou o banco correndo e olhou dentro da caixa,
com Homer atrás dele.
Pepas, o segurança, era mais velho que Homer, pai de três
filhos crescidos e avô de cinco crianças pequenas. Ele
desdobrou o cobertor do bebê e o observou
cuidadosamente. Ergueu as perninhas e mexeu os bracinhos
enquanto a criança chorava mais alto.
— Pobre tesouro — disse Pepas. — Você tem algum galo
na cabeça? Não, não há machucados. Você parece estar bem
e está tudo ótimo, não faça escândalo. — Colocando, com
todo o cuidado, sua mão enorme atrás da cabeça do bebê,
ele o pegou e a aninhou no ombro. — Sim, tesouro — disse
—, venha com o papai. — Ao ouvir a voz grave e ser
balançado no ombro de Pepas, o bebê foi ficando quieto.
Seus olhos se abriram e ela olhou para Homer por cima do
ombro do segurança. Homer sentiu como se a caixa-forte do
banco tivesse despencado do teto bem em cima de sua
cabeça.
— Ela está bem? — perguntou.
— Muito bem — respondeu Pepas. — Mas não dá para ter
certeza se é menina. Com os bebês só dá para saber olhando.
— É claro que é menina. Qualquer idiota vê que é uma
menina. Por que ela está fazendo isso? Qual é o problema?
— Ela está com fome, eu acho — o segurança respondeu.
— É melhor eu ligar para a polícia — disse Homer.
— Ligue primeiro para a minha mulher — sugeriu o
guarda.
Homer telefonou primeiro para a polícia, mas a Sra. Pepas,
que morava no mesmo quarteirão do banco, foi quinze
minutos mais rápida do que todos os quatro policiais da
cidade. Ela bateu nas portas de vidro da frente do banco e
acenou com uma mamadeira.
Homer foi abrir a porta para ela.
— Cadê o bebê? — ela indagou. — Cadê o pequeno
tesouro?
— Ela está aqui — disse ele.
— Ela? — inquiriu a Sra. Pepas, olhando-o sobre o ombro,
enquanto caminhava apressada pelo banco. — O senhor
olhou?

Bem, esse foi o primeiro fato emocionante ocorrido em


Elliotville desde que um caminhão carregado de esterco de
frango virou na rua principal. A polícia apareceu no banco
com as lanternas acesas e as sirenes tocando. A Sra. Pepas
mandou o primeiro policial que chegou ao banco voltar lá
fora para desligá-las, pois tinham acordado o bebê, que
havia tomado a mamadeira e dormido. Um a um, os caixas
chegavam, e todos queriam segurar a menininha. Ela era,
com toda a certeza, uma menina, e tinha uns três meses.
Possuía um chocalho prateado que parecia um haltere
minúsculo, com uma bola maior em uma ponta e uma
menor na outra. Tinha um mordedor também prateado,
redondo como uma pulseira, com curiosas saliências e sulcos
para ela morder. Não havia qualquer outro sinal que a
identificasse a não ser o bilhete. Quem quer que ela fosse,
parecia tranquila com o fato de ter sido jogada dentro de um
caixa de depósitos noturnos. Ela sorria para todos os rostos
ao seu redor. Homer se perguntava se os outros ficavam tão
aturdidos quanto ele ao olhar nos olhos dela.
Ele havia assegurado seu direito de segurar o bebê e estava
recebendo instruções meticulosas de uma policial quando
uma representante do Departamento de Proteção à Infância
chegou. Era uma mulher alta, vestida num terninho reto
com saia curta e sapatos de salto agulha. Ela arrancou a
criança dos braços de Homer e, depois de uma discussão
brevíssima com um policial, carregou-a pela porta do banco
afora. Homer se sentiu como se tivesse sido roubado. Pelas
portas de vidro do banco, viu a mulher encaixando a bebê
em uma cadeirinha de plástico. Houve o lampejo de um
relâmpago e um estouro de trovão. O dia estivera
ensolarado quando Homer caminhara até o banco, mas
agora estava escuro como a noite e começava a chover. A
mulher do DPI teve de pôr a cadeirinha na calçada, ao lado
da porta aberta do carro da fuga, e ajoelhar-se para ajeitar os
cintos sobre a cabeça do bebê. Não que aquele fosse um
carro de fuga, Homer lembrou a si mesmo. E é claro que o
bebê não estava sendo roubada. Só lhe parecia assim.
— Ih — disse a Sra. Pepas. — Eu fiquei com o chocalho e o
mordedor dela. E melhor ir lá e entregar àquela mulher.
Homer, com o olhar ainda fixo na criança que chorava,
impediu-a com a mão levantada.
— Sra. Pepas, será que a senhora poderia ir primeiro à
caixa--forte? — Ele apressou a indignada senhora, fazendo-a
passar pela porta de quarenta e cinco centímetros de
espessura e entrar na caixa-forte. — Espere aqui — ele
disse, e saiu apressado pelo banco, passando pela porta de
entrada.
Ele arrancou a bebê da cadeirinha com uma mão só.
Esqueceu-se do que a policial havia dito sobre apoiar a
cabeça da menina. Ele a levantou e ficou contente em
descobrir que ela cabia direitinho na curvatura do seu
braço, como uma bola de futebol.
— Desculpe — disse ele para a representante do DPI, que o
encarava com surpresa. — Esquecemos uma coisinha. —
Sentindo-se da mesma forma que ao marcar o gol da vitória
em um jogo do colégio, Homer disparou pelas portas duplas
e entrou na caixa-forte, puxando a pesada porta enquanto
passava. As dobradiças eram enormes e a porta era
equilibrada com precisão. Ela começou a deslizar, devagar e
constante, com a inércia de seu peso colossal.
Dentro da caixa-forte, assombrado com o próprio
comportamento, mas ainda prosseguindo corajosamente,
Homer entregou o bebê à Sra. Pepas. E saiu de lá encarando
a enfurecida mulher do DPI.
— Esqueci o chocalho — Homer disse enquanto a porta da
caixa-forte se fechava atrás dele com o barulho quase
inaudível dos eletroímãs. Homer virou-se. — Oh, céus! —
exclamou. — Devo ter esbarrado na porta.
— Sra. Pepas? — ele chamou, apertando um botão ao lado
de uma pequena grade perto da porta. — Sra. Pepas, parece
que eu fechei a porta sem querer. Mil desculpas. E uma
fechadura que só abre com hora marcada e eu vou ter de
acioná-la. Vai levar alguns minutos para eu obter os
códigos. A senhora e o bebê vão ficar bem? Não se preocupe
com o ar, a caixa-forte é ventilada. E colocamos um
interfone aí exatamente para momentos como este. — Ele
soltou o botão, cortando a resposta da Sra. Pepas.
Homer então sorriu para a mulher do DPI.
— Sinto muitíssimo. Não vai demorar nem um minuto. —
E foi atrás do manual de instruções da caixa-forte.
Alguns códigos estavam no manual, mas outros, por
segurança, estavam em lugares diferentes. Homer teve de
ligar para a tia, para ela lhe passar sua parte do código e,
como eram sete horas da manhã, ela não ficou nada
contente. Ela não sabia os códigos de cor. Disse a Homer
que ligaria de volta. Homer teve de dar outros telefonemas,
para a mãe e o advogado, e para o prefeito e um amigo que
era juiz do condado de Elliotville. Isso levou algum tempo.
Entre um telefonema e outro, Homer abria um largo sorriso
para a mulher do DPI, que fumegava de raiva, balançando a
cadeirinha e parecendo a Bruxa Malvada do Oeste à espera
para levar Totó embora.
Segurando o manual de instruções e páginas arrancadas de
seu bloquinho de anotações, Homer se dirigiu à porta da
caixa-forte. Apertou botão após botão, cuidadosamente e em
ordem, parando para ler e reler o manual até que seu
advogado finalmente chegou.
— Ah, aí está você — disse Homer. Ele apertou rapidinho
mais alguns números do teclado e a porta se abriu,
obediente.
A Sra. Pepas saiu com a bebê e Homer delicadamente a
conduziu até seu escritório.
— Se a senhora puder vir até aqui — ele murmurou, mas
ambos foram bloqueados pela mulher do DPI, que batia o
bico pontudo do salto alto no chão.
— Com sua licença, acho que já perdemos tempo demais
aqui. Vou levar a criança agora.
— Não — retrucou Homer, deixando-a para trás.
— Como assim, NÃO? — ela perguntou, acelerando para
dentro do escritório atrás do bebê e à frente do advogado.
— Ela vai ficar aqui. Nós vamos cuidar bem dela.
— Temo que isso seja absolutamente impossível, Sr... Sr...
— Ela havia esquecido o nome dele. — A criança terá de ir
ao hospital para ser examinada por um pediatra e
verificarmos se não está subnutrida ou doente. Ela precisará
fazer o teste do pezinho e uma varredura genética. Terá de
tomar vacinas: tríplice, BCG, contra poliomielite, sarampo,
hepatite A, hepatite B. Ela não pode ficar aqui.
Homer sorriu diante daquela lista de horrores e empurrou
seu relutante advogado para a frente.
— Este aqui é Harvey Bentwell. Ele vai lhe explicar. —
Homer deu um tapinha no ombro do advogado, o tipo de
tapinha com o qual esperava lembrá-lo de que não havia
muitos clientes que pagassem tão bem quanto o banco em
uma cidade pequena como Elliotville. Em seguida, ele e a
Sra. Pepas foram procurar uma mesa para trocar a fralda da
bebê.
Harvey Bentwell sorriu, mas a mulher do DPI não, então
ele se recompôs com um suspiro e deu início a um longo
mantra em latim, cujas palavras mais importantes foram in
loco parentis. Harvey explicou que, do ponto de vista legal, a
criança não tinha sido abandonada, mas entregue aos
cuidados do banco. Portanto, o Departamento de Proteção à
Infância, embora fosse uma bela e nobre organização,
realmente não estava sendo solicitado a cuidar da menina. O
banco o faria. Ele já tinha chamado um pediatra e uma
enfermeira pediátrica para uma visita domiciliar, isto é,
visita bancária, a fim de examinar a bebê.
A DPI disse que aquela era a coisa mais ridícula que ela já
tinha ouvido na vida. Harvey sorriu.
— Eu quero aquele bebê — disse a DPI. Harvey Bentwell
fez que não com a cabeça. — Eu vou ficar com o bebê. —
Harvey balançou a cabeça de novo.
Bem, é possível imaginar a encrenca, mas Harvey Bentwell
não era apenas um advogado do interior, ele era um bom
advogado do interior, e, afinal de contas, o Departamento de
Proteção à Infância não podia fazer muita coisa. Não podia
garantir que a bebê teria um lar melhor do que o banco lhe
ofereceria, e não podia apresentar nenhuma razão legal para
um banco não ser tutor de uma criança. O juiz insistiu para
que o bebê fosse levada às audiências, e a menina berrou ao
longo de todas elas.
Ela tinha um bom motivo. O tempo estava péssimo. O céu
estava claro na manhã em que a vestiram para levá-la ao
tribunal, mas assim que entraram no carro começou a
trovejar, relampejar e chover torrencialmente. O mundo
parecia estar cheio de sombras e transtornos sem motivo.
Um semáforo caiu na rua bem na frente deles. As lâmpadas
dos postes da rua, acesas no meio do dia, explodiram. Ao
caminhar do carro até o tribunal, Homer teve a sensação de
que havia pessoas invisíveis atrás da cortina de chuva. Ele
subiu a escadaria e entrou correndo no edifício. Lá dentro,
parecia que todo mundo queria lhe tirar o bebê. Pessoas de
boa índole se ofereciam para segurar a criança, que chorava,
dizendo que poderiam acalmá-la, citando suas experiências
com crianças como credenciais. "Tive três filhos, sou avó, eu
também tenho um bebê." Homer recusava de forma mais ou
menos educada. Não deixaria ninguém pegar a bebê. Pôs a
cadeirinha para automóvel no chão por um instante, ao lado
de seus pés, enquanto tirava o casaco. Com um braço ainda
dentro da manga, olhou para baixo horrorizado ao ver a
cadeirinha deslizando para longe dele. Deu um giro e
segurou a mulher do DPI, que estava agachada atrás dele
com uma mão embaixo da cadeirinha, puxando-a pelo chão.
Com um olhar de acanhamento fingido, ela levantou a
cadeirinha pela alça.
— Ela está chorando, vou segurá-la por um inst...
Mas Homer já segurava o outro lado da alça. Ele puxou a
bebê de volta e disparou de lá com um braço do casaco
dependurado, arrastando-se no piso de mármore com um
som sibilante.
O bebê continuou a berrar. Permaneceu inconsolável até
ser carregada de volta para dentro do banco, onde logo caiu
no sono, como qualquer bebê cansado. A mulher do DPI
parecia pessoalmente ofendida e garantiu a Homer que
ficaria de olho nele.
Homer disse que não se importava, que ela poderia ficar de
olho quanto quisesse, contanto que o bebê permanecesse no
banco.
Foi montado um berço na sala dos cofres. Um dos caixas fez
um móbile com moedas e notas de dólar amarradas em fios
para ser pendurado em cima dele. Todos se revezavam para
carregá-la no canguru que colocavam sobre o peito
enquanto conversavam com clientes, entregavam papelada,
recolhiam depósitos e contavam dinheiro. Nos intervalos,
davam-lhe mamadeira e a colocavam para arrotar. Homer
superou o acanhamento inicial que sentia perto de bebês e a
deixava sentar-se em seu colo enquanto cuidava dos
negócios do banco. O juiz insistiu para que fosse feita uma
certidão de nascimento para o bebê, e Homer preencheu o
formulário. Ele lhe deu o nome de Tesouro Precioso
Donnelly, mas só a chamavam de Penny.
Toda noite o Sr. e a Sra. Pepas iam juntos para o trabalho
dele e ela preparava o jantar do marido numa chapa elétrica
que ficava na sala de estar dos funcionários. Depois do
jantar, ela alimentava o bebê de novo e a colocava para
dormir no berço da sala dos cofres. A porta da caixa-forte
era fechada e o interfone ligado, assim o Sr. Pepas ouviria se
a menina acordasse no meio da noite. Homer instalou uma
câmera na caixa-forte para que também pudessem vê-la,
mas toda noite ela dormia tranquila como um carneirinho.
De manhã, Homer ou um dos caixas entrava para acordá-la
e prepará-la para o dia. É provável que nunca tenha existido
um bebê supervisionado com tanta atenção quanto o bebê
do banco, e ela parecia florescer. Nunca ficou com o nariz
escorrendo, nunca fez manha, jamais teve uma dor de
dente. Parecia feliz e normal, distribuindo sorrisos para
tudo e todos.
Mas nunca saía do banco. Os caixas tentaram levá-la para
passear no carrinho que compraram, mas ela berrou tanto
que logo a levaram de volta. Homer então declarou que a
menina não deveria mais sair do banco. A princípio, isso
não era tão extraordinário. Havia bastante espaço dentro do
prédio e várias coisas para entretê-la. O povo da cidade se
acostumou a trombar com um triciclo quando ia sacar seus
cheques. Ela tinha seu próprio caixa de mentirinha e
dinheiro de brinquedo. À tarde, ficava com Homer
enquanto ele trabalhava. Ele lhe ensinou o segredo do cofre
de ferro antigo que havia na entrada e ela gostava de pôr ali
dentro o chocalho e o mordedor, com os quais ainda
brincava, girar a alavanca e depois pegá-los de volta. Nunca
os deixava lá dentro. Ela os carregava para onde quer que
fosse, como talismãs para lembrá-la de seus pais, que haviam
deixado Penny no banco para que ela fosse mantida em
segurança.
Na época em que deveria estar no jardim de infância, Penny
sabia contar até mil, conhecia a tabuada até o nove,
conseguia somar e subtrair de cabeça e já lia sozinha.
Obviamente, há uma lei que diz que as crianças a partir de
certa idade têm de frequentar a escola, e foi aí que o
Departamento de Proteção à Infância apareceu de novo. A
mulher dos sapatos bicudos surgiu na porta no dia primeiro
de setembro e perguntou por que Penny não estava na
escola. Homer teve de ligar para Harvey Bentwell e este
teve de ir até o banco com um professor e uma pilha de
formulários cuidadosamente preenchidos, que permitiriam
a Penny ser educada em casa, embora fosse óbvio que ela
seria educada não em casa, mas, sim, no banco.
A DPI certamente pensou que teria chance de vencer dessa
vez, pois arrastaram a coisa toda para o tribunal de novo,
alegando que nenhum tutor poderia, do ponto de vista legal,
manter uma criança encarcerada a vida inteira. Harvey
argumentou que Penny não estava encarcerada no banco,
ela estava em casa e gostava de ficar lá. Não queria sair. A
DPI disse que nenhuma criança normal escolheria viver lá
dentro. Harvey replicou que ela não era uma criança
normal, e isso era verdade. Ao observar com atenção,
Homer concluíra que sim, a maioria das pessoas ficava meio
aturdida quando a olhava nos olhos pela primeira vez. Ela
parecia alegre e brincava como qualquer criança normal, e
corria de bicicleta pelo saguão depois que o banco fechava e
o caminho ficava livre, mas olhar nos olhos dela era como
contemplar uma fonte de paz e, bem, a única palavra que
Homer tinha para descrever isso era segurança. Pelo menos
quando ela estava dentro do banco. A única vez que Homer
viu a serenidade de Penny abalada foi durante as audiências
relativas à sua custódia. Ela não berrava mais o tempo todo,
como fazia quando bebê. Afinal, já fizera cinco anos, e tinha
muito autocontrole. Ela se sentou em uma cadeira de
madeira com os pés suspensos e as mãos cruzadas sobre o
colo, uma garotinha extraordinariamente quieta e bem-
educada, com pele cor de café e cabelo preto enroladinho
como pelo de carneiro.
O juiz insistira para que Penny comparecesse às audiências,
mas Homer, por sua vez, também insistiu para que o juiz
fosse ao banco falar com a menina pelo menos uma vez
antes de dar a sentença. Homer o conduziu pela porta de
entrada do banco e pelo saguão até chegar ao seu escritório,
onde Penny aguardava. Ele sugeriu que Penny se levantasse
e apertasse a mão do juiz, e observou com grande atenção a
expressão dele ao se abaixar e olhar para o rosto dela
enquanto apertava a sua mão.
Homer sorriu, satisfeito. Sem fazer barulho, fechou a porta
do escritório atrás de si. Ele sorria quando passou o braço
em volta dos ombros do intrigado Harvey.
— Está tudo em ordem, Harvey — ele disse.
O juiz apareceu vinte minutos depois e convocou os
interessados a ir até seu gabinete.
— Estou inclinado a deixar a criança sob a custódia
exclusiva do Banco de Elliotville — ele informou. — Ela
parece feliz em todos os aspectos, e muito bem cuidada.
— Exceto pelo fato de que ela nunca sai do banco,
meritíssimo — retrucou o advogado do DPI.
— E verdade, mas estou convencido de que isso está de
acordo com os desejos da criança, não é uma imposição.
— Imposição ou não, meritíssimo, isso é anormal. É uma
psicose. Ela precisa de tratamento.
Homer ficou sentado em silêncio enquanto ambos os lados
argumentavam e contra-argumentavam. Não estava
preocupado. Penny havia surtido o efeito desejado.
A DPI apresentou um psiquiatra infantil que afirmou que
Penny precisava de cuidados médicos, talvez remédios,
talvez hospitalização. Harvey Bentwell concordou que
talvez se tratasse de uma doença, mas disse que Penny era
assim desde bebê e que nenhum tribunal no mundo poderia
dizer que um tutor não tinha o direito de decidir se uma
criança deveria receber tratamento médico. O juiz tinha
algum motivo para crer que o banco era um tutor incapaz?
— Sim — disse a mulher do DPI, levantando-se de repente
e interrompendo. — O banco não é um tutor, de modo
algum. Essa criança precisa de uma mãe e um pai. Ela
necessita de uma família para ajudá-la a lidar com seu medo
irracional do mundo lá fora. Onde está a família dela?
— Nós somos a família dela — Homer explicou com
delicadeza.
— São? — indagou a Srta. DPI. — Mostre-me como os
senhores a ajudaram a enfrentar seu medo. Pelo que vejo,
não fazem nada além de encorajar suas fraquezas.
— A senhorita se encontrou com a criança no banco?
A Srta. DPI havia se recusado terminantemente a pisar no
banco. Ela não voltara lá desde o dia em que Penny fora
encontrada.
— Então como pode criticar o tipo de criação dado à
criança?
— Não há criação. Dê-me um exemplo de algum adulto
que ajude essa criança a superar seus medos.
— A Sra. Pepas me ajuda — para o espanto de todos, Penny
falou. — Quando eu estou com medo, ela me ajuda.
— Continue — pediu o juiz, gentilmente.
— Às vezes eu fico com medo de que as coisas que estão
fora do banco vão entrar pra me pegar. Às vezes as sombras
deles entram de noite. Eu vejo.
— E?
— Eu contei pra Sra. Pepas. Ela falou que são só sombras e
que sombras não machucam ninguém. Eu não precisava ter
medo. Era só fingir que eram sombras de coelhinhos. Que
toda sombra, se você olhar direito, podia ser a sombra de
um coelhinho. Ela disse que eu devia pegar meu chocalho,
porque eu sempre estou com o meu chocalho e com o meu
mordedor — ela levantou o braço para mostrar o mordedor,
que agora usava como pulseira. — Ela falou pra eu apontar
meu chocalho pras sombras e falar "Você é um coelhinho", e
que aí eu não ia mais ter medo.
— Deu certo? — perguntou o juiz, curioso.
— Sim.
O juiz olhou para a DPI e ergueu as sobrancelhas. A
representante do DPI não ficou nada satisfeita. Por fim,
fungou e disse, sarcástica, que teria sido mais adequado
ensinar a criança a balançar o chocalho para as coisas que
ela pensava haver fora do banco. Ela se agachou diante de
Penny.
— Querida, isso são só idéias bobas. Queremos que você
perceba isso. Não tem monstro nenhum. Não há homens
maus. Não há nada nem ninguém fora do banco tentando
levar você embora. Isso tudo é bobagem, entende?
Penny a fitou calmamente por um instante.
— Você está fora do banco — ela respondeu. — Você está
tentando me levar embora.
A Srta. DPI corou até a raiz dos cabelos e levantou-se de
súbito.
— Meritíssimo, a criança está doente. Ela precisa de ajuda.
— Ajuda sua? — indagou o juiz.
— Ajuda nossa.
— Eu discordo. — O martelo foi batido e Penny voltou
para sua casa, ou seja, o banco.
A DPI voltou a atacar e atacar ao longo dos anos, mas não
teve sucesso e Penny cresceu a salvo dentro do banco, sendo
em outros aspectos bem parecida com qualquer garota de
sua idade. Quando tinha 16 anos e fez a prova para tirar o
diploma equivalente ao do ensino médio, o Departamento
de Proteção à Infância questionou de novo que futuro ela
poderia ter se nunca saía do Banco Elliotville. Penny
explicou que havia se matriculado em um curso de
contabilidade por correspondência e que pretendia ser
caixa. A mulher do DPI, agora um pouco grisalha, mas não
menos enérgica, quase engasgou. Porém Tesouro estava
perto de atingir a maioridade. Embora o DPI a tenha
adulado e ameaçado, não havia nada que o órgão pudesse
fazer.
Para celebrar sua independência legal, Penny furou as
orelhas, alisou o cabelo cacheado e tingiu as pontas de
louro. Ela gostou de ver a expressão de surpresa no rosto das
pessoas. Os clientes que a conheciam desde bebê ficavam
estupefatos, mas quando olhavam em seus olhos, sabiam que
ela ainda era a mesma Penny de sempre. Abriam sorrisos de
alívio e admiravam seu cabelo, seus brincos balançantes e a
estranha incongruência de seus trajes: uma regata
camuflada, uma saia xadrez e, por cima, um sóbrio casaco de
malha com bolsos para guardar o chocalho e o mordedor,
que ela ainda carregava consigo aonde quer que fosse.
Penny estava trabalhando na véspera de seu aniversário de
18 anos, ou o que as autoridades pensavam ser o dia de seu
aniversário de 18 anos, quando houve uma confusão
estranha na entrada. Ela tirou os olhos do dinheiro que
estava contando e olhou pela janela de vidro que a separava
do saguão. Na porta do banco, havia uma mulher altíssima
vestida com uma saia preta e um blazer, segurando uma
lustrosa pasta preta. Por um instante, Penny pensou se
tratar da mulher do DPI, mas a recém-chegada era bem
mais vistosa. Seu cabelo era louro platinado e a pele, branca
como leite. Os olhos, mesmo vistos do outro lado do saguão,
eram de um azul espantoso. Ela adentrou o saguão como
uma rainha seguida por seus súditos, e estes eram ainda mais
notáveis e menos atraentes do que ela.
Havia um troll, um vampiro, alguns anões carrancudos, três
ou quatro indivíduos esverdeados com rostos sarcásticos e
vários animais com chifres e dentes desagradáveis, no meio
de uma multidão parcialmente obscurecida pela neblina que
entrava pela porta.
— Está chovendo? — perguntou Penny. Mais cedo, o dia
estivera ensolarado.
A majestosa figura de preto pareceu ouvir sua voz através do
vidro. Deu um passo em direção a Penny e colocou a pasta
sobre o balcão.
— Eu gostaria de sacar minha sobrinha — declarou, com
uma voz fria que chiava nas consoantes sibilantes.
Penny engoliu em seco.
— Como?
— Minha sobrinha — repetiu a mulher. — Eu gostaria de
sacar minha sobrinha. — Por cima do ombro, olhou na
direção da caixa-forte e dos cofres. — Ela deve estar por
aqui, em algum lugar. Tenho certeza de que dá para ver os
traços de família. O pai dela era um mortal e eu duvido
muito de que ela tenha puxado a ele.
Penny imediatamente inclinou a cabeça e apertou um botão
que disparava um alarme no escritório de Homer. Ele
correu até o saguão e freou quando viu a multidão reunida
ali. Mais devagar, caminhou até a parte de trás do balcão e
apareceu atrás de Penny.
— Esta senhora gostaria de sacar a sobrinha dela — disse
Penny.
Ela e Homer se entreolharam.
— Imediatamente — acrescentou a mulher do outro lado
do caixa.
— F... f... f... — Homer gaguejou.
— Foi a senhora quem fez o depósito? — inquiriu Penny.
— Não. Não fui eu. Minha irmã e o marido depositaram o
bebê aqui, mas agora sou eu a responsável pelos negócios
deles. Eu gostaria de sacá-la.
A forma como ela disse "responsável pelos negócios deles"
dava a entender que isso não era nada bom para os
desconhecidos mãe e pai de Penny.
— E o depositante original faleceu? — perguntou Penny.
— Faleceu?
— Morreu — Penny explicou.
— Não, ainda não.
— Bem, então, temo que a própria pessoa terá de fazer o
saque.
— Isso é impossível.
Penny virou-se para Homer.
— Talvez uma assinatura no pedido de saque seja
suficiente? — ela perguntou.
— Ah, ahn, sim, eu a-acho que sim — disse Homer.
Penny, bem atenta ao papel diante de si, deslizou um
formulário de pedido de saque para o outro lado do balcão.
— Precisaremos que este formulário seja preenchido e
assinado — explicou ela, num tom formal.
A elegante criatura do outro lado do caixa pegou o papel
pela beirada e olhou-o com nojo.
— Você quer isto assinado?
— Caso contrário, não poderemos liberar o saque —
esclareceu Penny.
— Muito bem — encerrou a mulher. Balançando o papel
diante de si, ela o carregou para fora do banco. Foi seguida
pelo vampiro, o troll, as pessoas verdes e os vários outros
horrores.
Homer suspirou. Penny esfregou uma mão na outra.
— Uma vez — disse ela.
A mulher voltou no dia seguinte, trazendo consigo a chuva
e a neblina. Os outros clientes do banco se dispersaram,
deixando um caminho aberto até os caixas. A mulher se
dirigiu a um outro guichê, mas Penny conseguiu deslizar
pelo balcão e deslocar o caixa antes que sua tia terminasse a
viagem pelo saguão.
— Minha sobrinha — disse e passou o pedido de saque por
baixo do vidro. Penny examinou o formulário por um
instante, virando a cabeça de lado para ler a letra enviesada.
— A senhora disse que a sua irmã e o marido dela fizeram o
depósito, não foi?
— Sim — confirmou a mulher.
— Mil desculpas. Se foi um depósito conjunto, também
vamos precisar da assinatura dele para autorizar o saque.
— Você não me disse isso ontem — a mulher sibilou.
Ninguém sabia lidar melhor com clientes desagradáveis que
Penny.
— Sinto muitíssimo — ela disse, com um tom de voz
oficial. — Mas precisamos de ambas as assinaturas.
A mulher agarrou o papel e voou pela porta, sugando a
bruma ao passar e sumindo antes de dar mais que uns
poucos passos na rua. Penny os observou pelas portas de
vidro do banco.
— Duas vezes — ela disse.
Quando a mulher retornou com o pedido de saque, Penny
ficou aliviada ao ver que estava assinado por duas pessoas.
Mas a garota soltou, com simpatia:
— Eles não dataram.
— Você está brincando.
— Não, temo que tenha de ser...
A mulher estalou os dedos e Penny recuou quando uma
caneta deslizou pelo balcão e pulou, obediente, na mão
estendida. A mulher olhou para o pequeno calendário ao
lado do caixa e, com cuidado, datou o pedido de saque.
— ... datado pelos signatários — Penny finalizou enquanto
a caneta caía no balcão.
— Não estou nada satisfeita, minha jovem.
— Eu realmente peço desculpas — Penny disse com
doçura, os olhos abaixados. E quando os vampiros, os trolls,
os gênios aquáticos, monstros e servos foram embora com a
bruma, ela abriu um sorriso diferente e disse para Homer:
— Três vezes.
No dia seguinte, ela disse à mulher que, como o pedido de
saque não tinha sido preenchido dentro do banco, ele
precisaria ser reconhecido por um tabelião.
— Um o quê?
— Um tabelião.
— Continue — estimulou a mulher.
Homer abriu a boca. Ele havia ficado ao lado de Penny
todos os dias, defendendo seu território da melhor forma
que podia, pronto a lhe dar assistência.
— Um tabelião é um "indivíduo com poderes legais para
testemunhar e atestar a validade de documentos e para
emitir depoimentos e testemunhos juramentados".
— Eles têm um carimbo — explicou Penny. — Eles
testemunham a assinatura do documento, carimbam e então
o documento passa a ter valor legal. Até lá — ela empurrou
o pedido de saque de volta para a mulher —, até lá, isto é só
um pedaço de papel. — Ela abriu um enorme sorriso.
A criatura do outro lado do caixa inspirou, sibilando, e
prendeu a respiração de tal forma que Penny até pensou que
ela fosse decolar do chão como um balão de gás, ou explodir
com um estouro como um balão inflado demais. A mulher
olhou para as paredes do saguão como se estivesse
procurando uma arma para usar, mas, sem encontrar
nenhuma, voltou-se apenas com um olhar furioso.
— E onde eu acho um tabelião? — a feiticeira indagou. —
Onde? Eles não nascem em árvores no lugar de onde venho
e, por mais que eu possa fazer um nascer, isso me tomaria
um tempo que não posso desperdiçar.
— Ah — retrucou Penny, pensativa. — Eu sou tabeliã.
Poderia ir com a senhora.
Ela sentiu o aperto desesperado de Homer em seu pulso,
mas virou-se para acalmá-lo com o olhar.
— Muito bem — disse a mulher assustadora. — Venha
comigo, então.
Penny a seguiu para fora do banco. A neblina estava menos
densa do que antes, e raios de sol a atravessavam. Penny,
ainda olhando para baixo, notou que algumas das criaturas
mais assustadoras do séquito da mulher projetavam sombras
com formato de coelho. Ela seguiu a mulher para dentro da
neblina e viu o mundo ao seu redor desvanecer-se antes que
a bruma se dissipasse totalmente e ela se visse parada no
meio de uma estrada lamacenta. Em ambos os lados havia
campos encharcados sob nuvens baixas. Os campos estavam
desertos e as poucas árvores que havia entre eles eram
negras e estavam desfolhadas. Chovia, e a feiticeira, à frente
dela, descia a estrada. A saia curta e a pasta haviam
desaparecido. Usava vestes negras e longas, com capuz e
uma bolsa pendurada no ombro.
— Venha — ela ordenou, e Penny a seguiu. Adiante, havia
um castelo de contos de fadas que deveria brilhar sob os
raios do sol e ter bandeiras que ondulassem ao vento, mas,
em vez disso, postava-se cinzento, pesado e inerte em meio
à aura maligna das redondezas.
Foi uma caminhada de vinte minutos até o castelo, e nos
primeiros cinco minutos Penny já estava encharcada até a
alma. A lama grudava em suas botas, que ficavam cada vez
mais pesadas. Ela percebeu que não chovia sobre a feiticeira,
que continuava totalmente seca; mas os vampiros estavam
abatidos e os trolls, nus, não pareciam nada felizes. Só os
gênios aquáticos, por serem criaturas das águas, não se
incomodavam com a chuva. Não estavam, porém,
acostumados com a lama. Eles deslizavam, escorregavam e
de vez em quando se agarravam uns aos outros para não
cair. Mas não eram criaturas agradáveis, nem entre si, e, se
um vacilava, outro estava pronto para empurrá-lo. Quando
um caía, puxava os irmãos que passavam e os derrubava
junto, até virarem um formigueiro confuso de silvos e
arranhões raivosos. Penny observou com interesse quando
um troll entrou embaixo dos pés de um deles e todos os
outros se uniram contra ele. Uma harpia que estava ali perto
tomou partido do troll e esbofeteou os gênios com as asas,
xingando-os e jogando-os de volta na lama. Os gênios
revidaram agarrando suas penas e puxando-as até arrancar
tufos. A harpia guinchou de raiva e gritou insultos. Os
vampiros pararam para assistir. As várias criaturas lupinas e
os monstros rastejantes com asas de morcego se esgueiraram
entre os espectadores para ver melhor. Penny estava atrás
dos vampiros e também teve de parar. Ela passou os dedos
pelos cabelos e os apertou para tirar o excesso de água da
chuva. Ao fazê-lo, sentiu algo roçar seu tornozelo e pulou,
surpresa. Um coelho preto com olhos vermelhos malignos
se aproximava inquieto, dando um salto de cada vez,
claramente tão ansioso quanto os outros para ver a briga,
mas também nervoso com os dentes e garras à sua volta.
Houve um estampido de trovão e raios ao mesmo tempo.
Todos olharam com ar culpado para a feiticeira,
recompuseram-se rapidamente e seguiram em frente,
apressados. Atravessaram fileiras de casas em ruínas, que
pareciam desertas, e acotovelaram-se atrás das extensões de
lama que deviam ter sido jardins. Penny pensou ter visto
um rosto ou outro olhando pelas janelas quebradas. Quando
chegaram ao portão do castelo, as portas de madeira se
abriram com toda a força e as dobradiças se quebraram. As
pedras do pátio, mais à frente, ergueram-se e enrugaram,
como se de repente tivessem congelado. Os gênios aquáticos
tropeçaram de novo e um troll resmungou, mas correram o
mais rápido que podiam até o salão principal, onde estava a
feiticeira, sorrindo satisfeita diante de dois tronos. Em um
deles estava sentada uma mulher idêntica à feiticeira em
todos os aspectos, exceto um. Ela tinha a pele clara como o
leite e seus cabelos longos caíam sobre os ombros como uma
cachoeira à luz da lua. Os olhos estavam abertos e vazios, e
ela permanecia sentada no trono, coberta por uma massa de
teias de aranha que a mantinham colada à cadeira, aderindo
às mãos e aos braços, às pálpebras, aos lábios, aos cachos de
seus cabelos. Embora estivesse imóvel como uma estátua, só
com um olhar Penny já percebeu que, enquanto a irmã era a
crueldade em pessoa, a rainha era só bondade. Os olhos de
ambas eram azuis, mas, se os da irmã eram gélidos, os da
rainha eram claros como o céu. A seu lado estava sentado o
marido, dominado da mesma maneira, de olhos abertos,
observando a feiticeira. A pele dele era cor de café, e seus
cabelos negros eram encaracolados como o pelo de um
carneirinho. Penny se sentiu constrangida com os próprios
cabelos, que, agora que secavam, começavam a recuperar os
cachos naturais.

O salão estava em silêncio, à exceção dos pingos de chuva e


dos ocasionais assobios e resmungos dos servos da feiticeira.
Quando ela levantou a mão, os assobios e resmungos
cessaram e só ficou o som da chuva.
— Ainda aqui? — ela perguntou para as figuras paralisadas.
— Que sorte encontrá-los em casa. Ah, sim, preciso que me
façam um favorzinho. — Ela sorriu. — Não é nada, menos
que nada, mas sei que vocês gostam de ajudar. Vejam só,
precisamos que preencham o formulário de novo.
Ela estendeu o braço e Penny correu para lhe entregar o
formulário de pedido de saque em branco. A feiticeira deu
um passo adiante e ergueu a mão frouxa da rainha. Pegou
no ar uma caneta de pena, preta e reluzente, e encaixou-a
entre os dedos indiferentes da irmã.
— Assine — ordenou, e os dedos moveram a caneta pelo
pedaço de papel, enquanto o olhar da rainha continuava
vago.
— Ponha a data — sibilou a feiticeira, e a caneta se mexeu
novamente.
A feiticeira voltou-se para o rei em seu trono e levantou a
mão dele. Sua cabeça voltou-se um pouco e seus olhos
encontraram os de Penny.
A feiticeira dobrou os dedos do rei em volta da caneta.
— Ora, não se exalte — disse ela. — Agora falta pouco, tão
pouco. É só fazer isso para mim e tudo estará terminado.
Vou ter vocês, vou ter a princesa, vou ter a coroa e o cetro e
não haverá ninguém que enfrente a mim, a Rainha deste
império. — Ela sorriu para ele. — Só mais uma coisinha e a
princesa será minha.
— Assine — ela ordenou. — Ponha a data. — A caneta se
moveu. — A idéia foi sua, não foi? De esconder a menina, a
coroa e o cetro, quando percebeu que eu era forte demais
para ser derrotada por sua mágica virtuosa e desprezível. E
me fez perder dezoito anos tentando trazê-la de volta,
mandando meus servos, um após o outro, para lutar contra o
frio aço e as convenções dos mortais. Vocês pensaram que
eu não sabia? — Ela se empertigou. — Mas se eu não podia
chegar até ela, vocês também não podiam. Ela nem sabe o
poder que tem, e eu vou garantir que nunca descubra. —
Apertando o formulário entre o polegar e o indicador, com
unhas enormes, a feiticeira virou-se para Penny. — Agora
nossa querida amiga, a tabeliã.
Penny ficou parada, as mãos enfiadas nos bolsos do casaco, e
a fitou também. A feiticeira encarou Penny, vendo-a com
clareza pela primeira vez, com suas botas pesadas e a saia
xadrez estranhamente combinada com o casaquinho, o
cabelo preto e louro, os brincos e os olhos bem azuis.
Penny tirou as mãos do bolso. Em uma delas tinha o morde-
dor; na outra, o chocalho. Com muita calma, apontou o
chocalho para a feiticeira.
— Não... — guinchou a feiticeira. — Não...
— Você — Penny disse, com firmeza — é um coelhinho.
Homer foi visitá-la algumas semanas depois, levando o resto
do pessoal do banco, os caixas, o segurança — Sr. Pepas — e
sua mulher. Eles chegaram num recorte de neblina que
surgiu na estrada, diante do castelo. A lama tinha sumido,
assim como os gênios e os trolls, os vampiros e as
fantasmagóricas nuvens cinzentas. Os campos começavam a
verdejar novamente e estavam cheios de camponeses
reparando os danos causados pela guerra e pelo breve
reinado da Rainha das Trevas. Penny e a família os
aguardavam na estrada, e todos caminharam juntos até o
castelo, recentemente reformado. Ao passarem pelo
pequeno vilarejo que havia próximo aos portões, Homer fez
um comentário a respeito das caixas instaladas nas cercas,
em todos os jardins.
— Coelheiras — explicou o rei, sorrindo para a filha. —
Nós temos um excesso de coelhos aqui.

MEGAN WHALEN TURNER é a autora de The Thief (Puffin) —


vencedor do prêmio Newbery Honor Book de 1997 — e sua
continuação, The Queen of Attolia. Escreveu também uma
elogiada coletânea de contos, Instead of Three Wishes. Vive
em Menlo Park, na Califórnia, com o marido, que é
professor, e os filhos. O endereço de seu site é
home.att.net/mwturner.

NOTA DA AUTORA
Às vezes a idéia para um conto se desenrola sozinha na
minha cabeça e tudo o que preciso fazer é segui-la do
começo, passando pelo meio até chegar ao fim. A ideia para
"O bebê no caixa de depósitos noturnos" surgiu do nada,
como uma semente, e ficou guardada por dez anos, até que
finalmente se tornou uma história.
Sherwood Smith

Beleza

Devia haver uma lei dizendo que as princesas têm de ser belas.
Quero dizer: de que servem os magos e suas artes se não conse guem
fazer um feitiço para corrigir os erros da natureza?

Essa foi a última coisa que escrevi neste diário?


Tanta coisa aconteceu desde então que eu não sei se devia
rir ou sair correndo e uivando pelas montanhas.
Ainda assim, não escrevi isso há tanto tempo que não fique
mais incomodada com o que sentia naquela época.
E só analisar a nós três. Meu irmão mais velho, Alaraec, e
minha irmã mais nova, Oria, são lindos: altos, olhos
acinzentados, cabelos claros, compridos e alinhados, como
os de papai. Não que eles se importem com isso. Eles
poderiam ter nascido atarracados feito almofadas, com nariz
de batata estragada e olhos puxados como os meus, que
fazem a gente parecer que está rindo mesmo quando não
está. Eles não teriam nem percebido isso, pois meu irmão
vive ocupado demais aprendendo a ser um monarca e o
grande desejo de minha irmã é ir aprender magia na
Academia Dyranarya, no planalto de Sartor Ocidental,
assim que fizer quatorze anos.
E sobrei eu, a única pessoa que realmente se incomoda com
o fato de ter o rosto redondo como a lua cheia e um corpo
com a forma de uma das lanças de treino que há lá no pátio.
O cabelo? Não, não herdei as madeixas louras nem o belo
castanho-avermelhado de minha mãe, que prefiro bem mais
à cor clara. Meus cabelos são os únicos da família escuros e
opacos demais para serem louros, e opacos e desbotados
demais para serem castanhos.
Mas pensam que eu recebo alguma compaixão?
— Fique longe dos espelhos — meu irmão diz, impaciente.
— Pega aquele livro pra mim? Cadê o tinteiro? — diz
minha irmã. — E por que você ia querer ser bonita, de
qualquer forma? Os garotos são nojentos.
Meu pai:
— Para mim, vocês todos são lindos.
Minha mãe? Os olhos dela lacrimejaram enquanto tentava
sorrir.
— Ah, Elestra, você me lembra tanto a minha mãe, e eu a
achava a pessoa mais linda do mundo.
Aquilo me fez sentir que eu merecia um nariz de batata
amassada.
E os amigos? Eles levam a sério a graciosa e bela Tara
Savona... Levam a sério até minha prima de Tlanth,
curvilínea e de traços delicados, que todos chamam de
Gatinha, pois tudo o que ela faz é gracioso, até dormir. Eu?
O que a boa e velha Elestra, com sua cara de bandeja e
corpo de varapau, poderia ser além de engraçada?
O réveillon do ano passado dá um bom exemplo. Em uma
manhã cheia de neve, estávamos todas ensaiando uma nova
dança de Sartor, e então chega Tara, mais linda do que nunca,
com seus grandes olhos cor de céu banhados em lágrimas e os
lábios perfeitos tremendo. Como sempre, todo mundo parou
de dançar e correu até ela, murmurando perguntas solidárias
que a fizeram gritar, como costuma fazer desde que éramos
pequenas: "Minha mãe é tão cruel!".
Todo mundo sabe que a mãe de Tara, a Duquesa de Savona,
tem um temperamento horroroso, e que Tara e Lady Tâmara
brigam muito. E não é que Tara fica lindíssima quando
chora?!
Como sempre, as garotas murmuraram e fizeram um
escândalo, abraçando-a, acariciando seu lindo cabelo dourado,
e os três garotos mais lindos do reino tropeçaram uns nos
outros para lhe oferecer um leque, uma taça de vinho, o que
ela quisesse.
— Não... Não... — diz ela com a voz trêmula, afundando
graciosamente numa almofada. — Vou sobreviver.
E claro que qualquer coisa que estiver acontecendo acaba na
hora, e o resto da reunião é dedicado a animá-la.
Um mês depois disso, minha prima Gatinha chega cabisbaixa,
apertando as mãozinhas, a boca de botão de rosa curvada para
baixo e diz:
— Teremos de voltar para Tlanth, e aquele lugar é um
tééédio. Que tal alguém ir lá me visitar?
Cada um dos garotos, e metade das garotas, se acotovelaram,
prometendo obter permissão para viajar às montanhas
imediatamente.
Mas o que acontece menos de uma semana depois, quando eu
caio do cavalo direto em um monte de neve e quase quebro o
pescoço? Eu sei, não fiquei nada bonita. Fiquei ali tremendo,
os cabelos caídos parecendo um ninho empapado, e meu nariz
roxo por causa do frio.
Todos riram. Riram! Eu podia me ver, e sabia que se tentasse
chorar ou torcer as mãos eles ririam mais ainda, pois eu ficaria
ainda mais ridícula. Então perguntei:
— Alguém quer dançar?
Depois disso todos os garotos bateram nas minhas costas com
tanta força que meus olhos quase saíram das órbitas, dizendo
coisas do tipo: "E assim que se fala, Elestra! Levante logo e
mostre a essa égua quem é a princesa.". E as garotas riram e
disseram: "Essa princesa Elestra! Ela é tão engraçada, mas tem
coragem!"
Coragem.
Tara e Gatinha ficam com a glória e o que me resta é a
coragem.
E o que me pareceu ser o golpe final aconteceu logo depois
que escrevi aquilo a respeito de leis e belas princesas. Alguns
dias após a véspera do solstício de verão (arruinada por uma
tempestade de quatro dias que só agradou aos fazendeiros),
Tara anunciou, pela manhã, que, como o tempo impedia os
esportes ao ar livre, ela montaria uma peça teatral.
Encontraria alguma durante o dia e distribuiria os
personagens à noite.
A noite chegou e ela disse:
— Nós vamos montar "Jaja, a Rainha Pirata". Muita ação para
que os garotos venham assistir, e muitos papéis legais para
nós, meninas.
— Conheço essa peça muito bem! — exclamei, empolgada.
— Aliás, meu professor particular me fez traduzir as falas de
Jaja para sartorês em versos rimados, e eu ainda sei todos de
cor. — Por um brevíssimo instante, me imaginei
interpretando a grande Jaja, que derrotou a terrível frota
pirata da Irmandade do Sangue, até que Tara trocou olhares
com todas as outras e disse, com doçura: — Mas Elestra, isso
não é uma comédia!
Uma comédia. Como elas riram! E nem foi um riso cruel, que
pelo menos me permitisse me fazer de vítima, uma boa
desculpa para a autocomiseração (pelo menos para a vítima).
Não, foi um riso bem-humorado, pois é claro que "A boa e
velha Elestra tem coragem. Ela é engraçada!". Vocês querem
dizer tem uma cara engraçada, pensei, segurando as lágrimas.
Então fiquei lá sentada fingindo sorrir, até Tara distribuir
todos os papéis. E qual sobrou para mim?
— A gente nunca tem muitos garotos dispostos a decorar as
falas, e você fica bem galante vestida de garoto, Elestra!
"Galante." Ela quis dizer, e todo mundo sabia disso, que eu
não tenho corpo, então posso usar os coletes justos que agora
é moda os homens vestirem.
Fugi, segurando as lágrimas até quase esbarrar na mamãe, que
saía dos aposentos de Oria com uma pilha de livros de magia.
Ela franziu as sobrancelhas, olhando preocupada para o meu
rosto, e perguntou:
— Você está bem, amorzinho?
O que eu poderia dizer?
— Péssimo humor — foi o que saiu.
Mamãe compreendeu na hora.
— Vá cavalgar ou praticar esgrima — aconselhou com uma
compaixão deplorável. — Temo que você tenha herdado esse
humor de mim, e o que mais funcionava para mim era fazer
exercícios.
Não lhe disse que já tinha travado uma longa luta com o
professor de esgrima naquele dia e que já tinha dado uma
longa cavalgada, para conseguir ficar calma na reunião em
que Tara escolheria os atores. Concordei, tentei sorrir e me
arrastei para o único lugar do Palácio Athanarel onde
ninguém jamais se reunia, a não ser em cerimônias da corte: a
sala do trono.
Agora tenho de fazer uma pausa e descrever a sala do trono.
Se alguém ler o meu diário daqui a alguns anos, poderá supor
tratar-se de uma sala horrível, mas não era. Janelas altas por
toda a volta deixavam entrar a luz direta durante o inverno e
oblíqua no verão, o piso de cerâmica tinha desenhos de
videiras, flores e pássaros cobrindo os esmaecidos tons de pêra
de um sol nascente, enquanto as portas externas eram
voltadas para o leste.
A parte mais importante era o estrado, sobre o qual não havia
nenhum trono, mas uma enorme árvore de madeira dourada
de três andares de altura, com folhas de bordas prateadas
roçando a abóbada de vidro que meus pais mandaram fazer
quando a árvore começou a criar raízes repentinamente.
Digo "repentinamente" porque ela não era uma árvore de
verdade, e, sim, uma pessoa. Para ser exata, era o Lorde
Flauvic Merindar, que tinha tentado matar meus pais numa
tentativa de tomar o poder no reino. Não foram meus pais que
o impediram, e, sim, pessoas do misterioso Povo das Colinas,
que para mim eram meio parecidas com árvores, na única vez
em que as olhei de relance, nas altas montanhas atrás do
castelo do tio Bran, em Tlanth.
Ninguém sabia se Flauvic perdera a natureza humana ao virar
árvore. Mamãe insistia em que ele era capaz de ouvir e uma
vez admitiu para mim que, por um ou dois anos depois de ter
sido coroada rainha, quando lhe dava na veneta, costumava ir
lá e discursar para a enorme e bela árvore sobre os
acontecimentos do reino — mostrando que políticos
maliciosos e magos perversos nunca vencem —, mas depois
que a terrível guerra varreu o mundo, logo após o nascimento
de Oria, ela disse que não tinha mais ânimo de fazer sermões.
E assim a árvore permaneceu ali por anos a fio, presidindo
silenciosamente as petições e decisões da corte e, no mais,
deixada em paz.
Até aquela noite.
Assim que tateei o caminho até a sala escura para ficar
sozinha, uma mão bateu na minha boca, apertando-a com
força, e outra agarrou minha cintura. Uma mão bem forte.
Uma voz suave murmurou perto da minha orelha:
— Eu esperava a sua mãe, mas serve você mesmo.
Você já furou o dedo no espinho de uma rosa? Essa pontada
que lanceta o dedo era parecida com a que atingiu todo o meu
corpo. Ofeguei. Ou pelo menos tentei. A mão em cima do
meu rosto aumentou a pressão e eu mal conseguia respirar.
O braço que prendia minha cintura tivera o cuidado de
enlaçar meus dois braços para que a única coisa que eu
pudesse fazer fosse sacudir as mãos inutilmente. Então forcei
os olhos para os lados e descobri que os galhos
fantasmagóricos da árvore Flauvic não mais se arqueavam
acima da minha cabeça.
O Lorde Flauvic Merindar voltara a ser um homem.
E eu era sua prisioneira.
— Não quero ser obrigado a matar você — ele murmurou. —
Não lute.
Pelas histórias que mamãe contava a respeito daquele último
dia tenebroso, sabia que ele não estava falando só da boca
para fora. Parei de fazer força e ele afastou a mão da minha
boca.
— Venha comigo.
— O quê?
Ele ainda agarrava meu braço com força. Eu não conseguia
enxergar direito na escuridão, só distinguia o contorno de sua
cabeça e dos ombros e um brilho azul de aço: uma faca.
Estava ele com vinte anos, como quando tentara dominar o
reino, ou estaria chegando aos quarenta? De qualquer forma,
ser árvore não o havia enfraquecido nem um pouquinho.
— Venha comigo — repetiu. E então sussurrou algum tipo de
feitiço que fez minha nuca formigar. Facas nem de longe me
assustavam como a magia: pouco antes de virar árvore, ele
havia transformado todas as pessoas de Athanarel, exceto
meus pais, em estátuas de pedra. E uma delas ele derrubara
para quebrada em caquinhos. Ela não voltou à vida.
O ar à minha volta agora parecia cintilar, como se eu flutuasse
embaixo d'água, enxergando o mundo através da superfície
ondulante.
Saímos, a confiança de Flauvic me lembrando de que ele
conhecia muito bem Athanarel, que, afinal de contas, não
devia ter mudado muito em vinte anos. Uma chuva branda e
prateada caía em frente às janelas, uma neblina cinzenta em
outros lugares. Meu coração bateu com esperança quando vi
as sentinelas em seus postos, nas alcovas ao longo do telhado.
Elas nos veriam, com certeza?
Não. Elas contemplavam o nada, nem adormecidas, nem
enfeitiçadas. O olhar de uma chegou a passar por nós. Pude
ver seus olhos à luz da tocha, mas era óbvio que ela não me
via. Era como se eu estivesse invisível — e então percebi que
tipo de feitiço Flauvic tinha jogado, um feitiço que fazia as
pessoas desviar o olhar. E a chuva colaborava.
Seguimos em frente, passamos pelo estábulo, chegamos ao
jardim e o atravessamos, nós dois já encharcados, embora o ar
não estivesse gelado.
Flauvic não falava, e na hora me lembrei de algo que minha
irmã dissera. Percebi que ele estava se concentrando em
manter o feitiço, algo que eu só compreendia vagamente: era
como segurar as rédeas de um cavalo selvagem que pode jogar
você no chão a qualquer momento, só que as rédeas são
invisíveis e você as segura com a mente.
Eu conseguiria escapar? Quanto tempo levaria para que ele
lançasse aquele sórdido feitiço da pedra sobre mim? Quando
percebi que logo chegaríamos à margem do jardim e em breve
estaríamos na floresta, que só era patrulhada ao amanhecer e
ao pôr-do-sol, decidi que era hora de agir.
E justamente quando eu ia tentar pegar a faca, meu sapato
enganchou numa raiz e eu caí de corpo inteiro na lama.
Quando tentei me levantar, lá estava a faca, pressionada
contra o meu pescoço.
— Suponho que tenha chegado a hora de negociar —
declarou Flauvic. Sua voz ainda era suave, mas havia o eco de
uma risada.
— Se você se render agora, não vou ser muito severa —
grasnei, na súbita esperança de que ele achasse a ridícula
princesa Elestra tão ridícula que ficasse enojado e me deixasse
para trás.
Ele ameaçou rir, mas logo voltou ao assunto.
— E isto o que tenho em mente: você vem comigo sem criar
problemas e eu farei com que a viagem seja confortável.
— Não — eu disse. — Não quero ir a lugar nenhum. — Era
difícil soar desafiadora com um lado do rosto enfiado no
musgo lamacento.
— Lamento a necessidade — retrucou —, mas preciso de
uma refém apenas para chegar à fronteira, e a refém é você.
A fronteira?
— E então? O que vai ser? Vai por bem ou por mal? — ele
perguntou. E acrescentou, com um arrependimento bem-
educado: — Devo reiterar que você virá de um jeito ou de
outro.
Suspirei. Um pequeno inseto quase entrou na minha boca.
— Pá! Plé! Fuip! — Cuspi. — Então você está pedindo minha
palavra de honra. Somente até a fronteira. E depois vai me
deixar em paz?
— Correto. — Agora ele estava mesmo rindo.
Suspirei mais uma vez — de boca fechada. E aí? Obviamente
ninguém nos vira sair. Era noite, e só sentiriam minha falta
pela manhã, já que eu nunca mandava a criada me esperar
acordada. Na verdade, talvez nem de manhã sentissem minha
falta, já que às vezes eu tomava o café da manhã no quarto,
lendo um livro. Essa era uma das razões por que eu era tão
solitária, para começar... Mas se eu, de alguma forma, de
algum jeito, conseguisse reverter a situação e capturasse o
maligno Flauvic? Aí então eles prestariam atenção em mim, e
não só por eu ter a cara engraçada!
Fiz que sim com a cabeça.
— Eu farei isso.
— Tenho sua palavra de honra, então?
— Sim. — Típico! Finalmente alguém me leva a sério o
suficiente para pedir minha palavra de honra, e esse alguém é
um vilão.
Flauvic guardou a faca (eu estava piscando para tirar o musgo
dos olhos e não vi onde) e estendeu o braço para me ajudar a
levantar, mas ignorei sua mão e fiquei em pé sozinha. Tentei
tirar parte da lama do meu vestido — que antes tinha um
delicado tom de rosa e agora tinha o mesmo tom de marrom
manchado do meu cabelo — ao começar a andar.
Foi uma marcha fatigante pela floresta escura debaixo de
chuva. Apesar do cuidado que tomava ao pisar, conseguia
tropeçar em muitas raízes e pedrinhas invisíveis. Pelo som de
sua_ respiração (eu ainda não o enxergava, é claro), Flauvic
estava enfrentando o mesmo problema. Mas seguimos em
frente.
Não muito depois de o sino da meia-noite ter soado uma vez,
produzindo ecos agradáveis no vale do rio, notei que ele não
estava simplesmente andando: ele tinha um destino em
mente. Não sei que pontos de referência encontrava naquela
escuridão, mas às vezes ele parava, dava uns passos ao redor e
então escolhia uma direção.
Lutei para prosseguir, bocejando sem parar e arrependida por
ter ficado tão estupidamente empolgada com a peça estúpida
de Tara a ponto de ter perdido meu estúpido jantar. A peça e
seus problemas pareciam coisas totalmente remotas agora,
mas meu estômago roncante estava bem ali.
Paramos abruptamente.
— Não está mais aqui. — Acho que ele não percebeu que
falara em voz alta.
Paramos diante de uma ruína, uma casa antiga cujas vigas de
madeira havia muito tinham sido queimadas, deixando apenas
as paredes de pedra e a chaminé. Eu a reconheci, pois
cavalgava por ali frequentemente quando era pequena.
— Essa casa foi usada pelos inimigos como quartel durante a
guerra — expliquei. — Meu pai liderou uma invasão. Foi
queimada. Ninguém mais esteve aqui desde então. — Exceto
crianças, é claro, fingindo estar vivendo uma aventura. E a
pergunta escapuliu: — O que você esperava encontrar?
— Não uma ruína — foi a resposta. Eleja não ria mais.
Seguimos adiante. Meu coração batia mais rápido, pois agora
eu sabia onde estávamos, mas o que poderia fazer a respeito?
Deixar um rastro, óbvio.
Enquanto caminhávamos, usei minha mão livre para soltar
uma das fitas brancas da manga do vestido e, quando a soltei,
deixei-a cair no chão com a ponta indicando o caminho que
fazíamos. Flauvic pareceu não notar.
O triunfo ao menos me manteve acordada, até que finalmente
chegamos à escarpa acima do estuário que dá para o mar. Lá
embaixo havia um pequeno vilarejo, que víamos com
frequência nos passeios a cavalo. A maior parte da população
era de pescadores, mas alguns cuidavam de rebanhos nos
montes próximo ao amplo e calmo curso do rio.
Nossos olhos haviam se acostumado tanto à escuridão sob as
copas frondosas das árvores que até parecia estar claro; eu
podia distinguir os contornos das casas e o rio, que refletia o
céu escuro. O rebanho do outro lado do rio formava
montinhos brancos, feito neve.
Uma brecha entre as nuvens encheu o vale com a fraca luz
azul das estrelas, e Flauvic a usou para nos guiar até um denso
grupo de salgueiros, onde nos sentamos na grama alta e
úmida. Apesar do calor do verão, eu estava com frio, e me
enrolei nas minhas saias de seda do melhor modo possível.
Será que ele iria dormir?
Minhas pálpebras se fecharam, e mergulhei em sonhos... que
foram interrompidos pela voz de Flauvic. — Vamos em
frente.
Ainda estava com frio, fome e de péssimo humor ao seguir
Flauvic pela trilha deixada pelo rebanho até o vilarejo. A
aurora não estava muito longe; a mais leve suspensão das
trevas já tornava possível enxergar.
A luz azul, fraca e sombria se espalhava para oeste quando
chegamos aos arredores do vilarejo. A luz refletia nas janelas e
algumas pessoas já andavam pelas ruas, alimentando animais,
preparando os barcos de carga e de pesca. Flauvic foi até uma
hospedaria, um edifício baixo em formato de L ao lado do
banco.
Agora, a luz já estava forte o suficiente para que eu con-
seguisse discernir a figura de Flauvic. Quando entramos na
hospedaria, a esperança fez meu coração bater mais forte: não
pareceria suspeito eu de vestido de gala de seda rosa coberta
de lama, e ele com uma túnica justa e calças apertadas que
tinham saído de moda vinte anos antes?
— Espere aqui — ele disse, deixando-me parada ao lado do
estábulo.
Pensei em correr, depois pensei em como ele me alcançaria
rápido. A verdade é que eu estava muito faminta e cansada
para ser uma heroína naquele momento. Fazia quase um mês
que papai havia partido para patrulhar a fronteira leste, de
onde vinham relatos de que mais guerreiros norsundrianos
haviam feito saques, portanto, mamãe estava no comando do
reino. Se ela não achasse minha fita, ou não nos encontrasse,
eu poderia executar minha impressionante captura depois que
tivesse comido alguma coisa.
Tendo tomado essa decisão, sentei-me em uma velha
escadaria de madeira. O cheiro de feno estava forte no ar frio,
e o único som vinha de animais se movendo.
O sol havia chegado ao cume do monte que tínhamos acabado
de descer, lançando raios de luz dourada, quando Flauvic e
uma criada saíram da hospedaria.
Fitei Flauvic sob a luz dourada e tomei um choque. Lá estava
ele, naquela roupa de veludo preto, o antiquado veludo preto,
que devia estar tão molhado e lamacento quanto minhas
roupas, mas não parecia. E ninguém prestaria atenção nas
roupas dele, de qualquer forma. O que aquela criada (e eu)
víamos era um belo rosto de olhos grandes, um sorriso amável
e um cabelo dourado muito, muito comprido. Tinha o cabelo
mais longo que qualquer um usaria naquela época, mas em
vez de parecer um idiota, ou mesmo estranho, ele era tão
bonito que parecia ter acabado de sair de um retrato.
Ele se curvou e beijou a mão da criada, à maneira que os
aristocratas faziam na época dos meus pais. Ela enrubesceu e
soltou uma risadinha.
— Obrigado, querida dama — disse ele.
A criada murmurou alguma coisa, empurrou uma cesta para
ele, ignorando-me totalmente, e desapareceu dentro da
hospedaria.
Flauvic me olhou de relance uma vez, depois entrou no
estábulo. Escutei-o falando com o empregado:
— Torna mandou que eu pedisse, dois cavalos a você.
Precisamos ir até Mardgar hoje. Vamos arrumar uma forma
de devolvê-los.
Pouco depois, estávamos montados em dois grandes cavalos
de tração com selas gastas. Ao partirmos, vislumbrei um trio
de criadas nas janelas, acompanhando Flauvic com a cabeça
enquanto ele seguia pelo caminho.
— Aquilo foi nojento — eu disse.
Flauvic sorriu.
— Você é nojento — afirmei, decidida.
Ele apenas riu.
Cavalgamos rumo ao sul, o que nos levaria à grande cidade
portuária de Mardgar, mas apenas até sairmos do vilarejo.
Depois, Flauvic voltou seu animal grande e peludo na direção
leste, passamos por uma colina pontilhada de roseiras
selvagens e flores em formato de estrela e então seguimos para
o norte.
Norte.
A cálida imagem mental que eu tinha de minha mãe
liderando um exército enorme, encontrando a fita, achando o
vilarejo, ouvindo que tínhamos ido na direção sul e depois
nos cercando (para o enorme pesar de Flauvic) se dissipou
como fumaça.
Conforme Flauvic e eu cavalgávamos por um território cada
vez mais selvagem, compreendi que eu estava por minha
conta.

Ao meio-dia, já tínhamos acabado com a comida da cesta. O


pão quente e fresco, o queijo envelhecido no ponto certo e a
boa seleção de pêssegos frescos foram bons enquanto
duraram, mas ambos estávamos com fome novamente; eu não
tinha comido no dia anterior, e ele não comia fazia vinte
anos.
O anoitecer trouxe do oeste nuvens que rolavam como bolas
cinzentas. Senti cheiro de chuva no vento.
— É melhor a gente parar e achar um abrigo — sugeri, por
fim, já que Flauvic continuava a cavalgar, sempre
vislumbrando a frente, nunca o alto.
Ele olhou para mim, com uma leve careta.
— Vejo que já faz tempo que você não acampa na floresta —
comentei.
— Eu nunca acampei na floresta.
— Não, você era enjoado demais para isso, não era? — eu
disse. — Bem, eu já acampei, e posso dizer que, pela aparência
daquelas nuvens, esta noite vai ser bem pior que a noite
passada. Eu aproveitaria o restinho de luz para encontrar
alguma coisa pra comer, já que você se esqueceu de
providenciar o jantar.
Ele olhou ao redor, as sobrancelhas meio franzidas, como se
estivesse perplexo. O que ele via? Árvores, grama, arbustos,
alguns pássaros saltitando aqui, ali e acolá, fazendo coisas
inimagináveis?
— Vi umas fileiras antigas de hortaliças ali atrás — eu disse.
— Provavelmente alguém teve um chalé ou algo parecido por
aqui; há vestígios de um pomar de macieiras, bem
malcuidadas. Podemos conseguir cenouras, maçãs e castanhas.
Nada extraordinário, mas enche a barriga — continuei.
Para minha surpresa, ele desceu do cavalo.
— Mostre.
E assim eu fiz, depois de termos feito o que podíamos pelos
cavalos, deixando-os comer a grama suave e doce. Ensinei-lhe
como encontrar folhagem de cenouras, expliquei sobre maçãs
(maduras e verdes, e o que estas últimas fariam às nossas
vísceras caso não fôssemos cuidadosos) e como achar boas
castanhas.
Quando estávamos recolhendo as castanhas, vimos um chalé,
ou o resquício de um: era só o esqueleto de uma casa de
alvenaria, construída ao lado de um penhasco, com um riacho
correndo logo acima, criando uma cachoeira a menos de dez
passos da porta. O telhado de ardósia tinha sido bem
montado, portanto manteve a chuva longe de nós quando a
tempestade despencou após a trovoada inicial, como é
peculiar às tempestades.
A água rugia à nossa volta, lançando jorros marrons que
corriam por ambos os lados da casa e desembocavam de novo
no rio. Pensei na ocasião em que minha mãe ficou sozinha
com ele enquanto uma tempestade caía sobre suas cabeças, e
refleti sobre como a vida é estranha.
— Por que você disse que eu sou nojento? — ele perguntou.
Voltei-me. Sim, ali estava ele, igualzinho à ideia que se faz de
um príncipe imaginário, seu belo perfil vagamente
contornado contra a pedra escura da parede do chalé.
Ele era lindo, tudo bem — eu nunca tinha visto alguém tão
atraente —, mas entre isso e qualquer apreço que eu pudesse
sentir por ele, havia o passado dele e o nosso presente.
Então lhe virei o rosto.
— Se você precisa perguntar, não vai adiantar eu explicar —
declarei.
— Satisfaça minha curiosidade. Nós não vamos a lugar
nenhum.
— O que eu penso a respeito do seu comportamento com a
criada não vai deixar você de bom humor.
— Mas não fiz nada a ela, só pedi que me desse uma cesta de
comida e emprestasse os cavalos.
— Ah, e que história foi aquela de beijar a mão?
— Não se faz mais isso? — Seu tom de voz havia mudado um
pouco.
Olhei para ele, mas só podia ver seu perfil obscuro, nenhuma
expressão. Sua voz era suave, treinada para o canto e
controlada demais para revelar alguma emoção verdadeira.
— Não — estiquei-me. — Não se faz mais. Vou dormir —
acrescentei, dobrando os joelhos e cruzando os braços sobre
eles. Deitei o rosto sobre os braços, olhando para o outro lado.
A chuva aumentou de repente, depois parou também de
repente, deixando à nossa volta os pingos e a corrente de água
nas calhas e galhos.
Ele disse abruptamente, como se eu tivesse falado:
— As pessoas fazem isso mentalmente. O flerte, quero dizer.
Olham para mim, se aprumam, sorriem, e parece que há um
romance passando pela cabeça delas, mas não pela minha.
Elas querem possuir o meu rosto, não têm interesse pela
minha mente. É assim desde que eu era criança.
— Ser bonito deve ser um fardo pesado demais para se
carregar — falei devagar, com meu tom mais maldoso.
Flauvic não falou mais, até de manhã.
Ele acordou primeiro e carregou as selas e os arreios até os
cavalos, que pareciam revigorados após a noite. Uma maçã
para cada um e partimos, cavalgando em direção ao norte,
Flauvic com a mesma aparência de sempre, eu com coceira e
irritada, louca para tomar um banho, e me sentindo
igualmente irritada e com coceira por dentro. Eu já estava
odiando meu vestido de seda rosa; olhando-o, percebi que
uma manga tinha fita e a outra, não.
Hora de tentar deixar outra cair. Mas só depois que
escurecesse.
Quanto à sensação interior, lembrei-me do meu comentário
detestável, e de que minha mãe sempre nos disse que o
sarcasmo era uma arma particularmente venenosa — e
injusta. Alinhei os ombros e resmunguei, muito sem graça:
— Peço desculpas pelo que disse.
Ele não respondeu de imediato.
Logo em seguida, olhou para mim sob a luz pura da manhã e
disse:
— Conte-me sobre os seus pais.
— O que há para contar? Meu pai é o rei, minha mãe é a
rainha, eles trabalham muito, riem muito e têm nós três além
do reino.
— O que você sabe sobre a minha família? — ele perguntou
depois de um tempo.
— Quer dizer que você não sabe? Pensei que você
entendesse as coisas que ouvia quando era árvore.
— No início, não. As vozes eram rápidas demais e... — ele
hesitou e deu de ombros. — Só comecei a escutar as vozes de
verdade nos últimos anos. Este ano comecei a distinguir de
quem eram.
— Bom, isso explica você não ter ouvido minha mãe. Ela
costumava ir lá e falar com você. Fazia sermões, na verdade.
Ele sorriu, olhando para a água.
— Lembro de ouvir o som da voz dela. Sempre gostei dele.
Mesmo quando estava zangada, parecia estar prestes a rir.
Ouvi-lo falar assim da minha mãe — que o odiava com todas
as forças — me causou uma sensação estranha.
— Bem, sua mãe tomou veneno depois que o plano dela de
dominar o reino fracassou. Sua irmã tentou envenenar meu
pai e depois foi para o sul com uns primos seus. Se meus pais
ouviram falar dela depois disso, não nos contaram. E depois a
guerra ocupou toda a atenção deles.
— A guerra — ele repetiu, olhando uma fileira de vidoeiros
com troncos brancos, suas folhas amarelando, ao longo da
cadeia montanhosa. — Houve silêncio à minha volta por
muito tempo. Às vezes os guerreiros marchavam por ali, mas
só me lembro das épocas de silêncio e de sentir as mudanças
da luz.
— Tivemos de ir embora. Os guerreiros nunca ficavam ali,
eles marchavam a caminho dos países maiores do oeste e do
norte, ou então do sul, embora de vez em quando perseguis-
sem nosso povo por esporte. E é óbvio que nos forçavam a
lhes entregar bens e cavalos, quando conseguiam encontrá-
los. Isso foi no primeiro ano. No segundo, alguns tentaram
ficar, dominar, e passaram um bom tempo perseguindo meu
pai, principalmente depois que descobriram que ele
costumava guiar algumas pessoas bem famosas que estavam
em sua lista de procurados: meu pai levava os fugitivos às
escondidas até as montanhas, e de lá outras pessoas as
levavam para o sul, até as cavernas de Morvende, para que se
escondessem.
— Você se lembra dessas coisas?
— Eu era muito pequena. Só lembro que me divertia muito
lá em Tlanth, com o tio Bran, a tia Nee e a Gatinha. Meu
irmão ficava preocupado com o papai, eu sei. Minha irmã
ainda era bebê.
Ele não reagiu. Ótimo, eu não queria mesmo entrar em
detalhes.
Cavalgamos por um tempo, abrindo caminho por um rio raso
e plano que corria sobre pedras. Já estava no meio da tarde, e
eu estava perdida em lembranças dos verões passados em
Tlanth, quando Flauvic disse:
— O que aconteceu com as minhas terras? Eu nunca entendi.
— Papai é dono de Merindar — respondi. — Até onde eu
sei. Silêncio. Percebi então o que tudo aquilo queria dizer: ele
havia voltado depois de vinte anos para encontrar a família
sumida ou morta, tinha perdido suas terras e...
— Alguém disse que você aprendeu aquela magia negra
horrorosa na corte de Sles Adran — arrisquei.
Ele me olhou de relance, seus olhos apertados refletindo a luz
que cintilava no rio ali perto.
— Você deveria saber que o rei Bertal foi deposto. Seus
aliados de Norsunder não o protegeram.
Como ele não falou nada, relatei, tal como já havia feito para
a minha criada:
— O novo rei também dominou o reino até o oeste. E ele
governa sem nenhuma ajuda de magos. Dizem que não confia
neles.
Silêncio.
— Então, hum, se você estava pensando em ir por aquele
caminho... Sles Adran fica a oeste e ao norte...
— Eu estava pensando em encontrar algum lugar civilizado
para conseguirmos uma refeição quente.
—Com alguém que vai imaginar um romance enquanto você
fica lá parado, apenas sorrindo? Ele olhou para mim.
— E provável. Por que isso incomoda você?
Mexi-me em cima do cavalo, que respondeu agitando a
cabeça e resfolegando.
— Acho horrível se comportar dessa forma. Usar as pessoas.
— As pessoas que se deixam usar têm o que merecem — ele
retrucou.
Estava brincando com a fita enquanto minha mente lutava
contra as palavras dele. Por fim, eu disse:
— Usar as pessoas só porque você pode... Ah, se você não
sabe quanto isso é repreensível, não vai adiantar eu gastar
minha saliva.
— Não, não vai adiantar. — Seus olhos desceram até as
minhas mãos. — E se você jogar essa fita aqui, nós vamos para
o leste. A direção pouco importa.
Minhas bochechas queimaram, mas não arderam tanto
quanto a minha irritação. Joguei para trás minhas tranças
embaraçadas e soltei:
— Como você é superior! Fico me perguntando quanto
tempo esse presunçoso "Porque eu posso" duraria se
encontrasse alguém mais bonito que você, ou mais cruel, ou
mais detestável. O mundo não seria maravilhoso se fosse
governado por gente como você?
— Não seria mesmo? Apesar de todos os auto-elogios dos
moralistas, não são os mais espertos e mais fortes que
dominam e governam os outros?
— Não — respondi, minha mente divagando sem controle.
Queria saber História tão bem quanto meu irmão, mas
infelizmente minhas leituras tendiam a se concentrar mais
nos registros sobre princesas como eu e menos nos
acontecimentos da política.
— Veja o exemplo do seu pai. Ele entregou minha
propriedade aos pobres? Não, ele se apossou delas.
— Manteve o controle sobre elas — corrigi. — "Manteve." É
o que ele diz. Há um administrador, cuja mãe era uma das
cozinheiras, mas ninguém mora na casa, só uns poucos
criados que minha mãe contratou, pois todos os seus sumiram
depois que a sua mãe tentou tomar o poder no reino.
Ele disse com ironia:
— Então a terra fica lá... Esperando o quê? Que apareça um
beneficiário merecedor, talvez alguém com um conveniente
passado humilde? Enquanto vocês todos vivem em paz e na
fartura, protegidos por todos os reis que há ao redor, depois
que eles ganharam a guerra.
Pensei nas épocas em que os bandidos vieram saquear,
queimar e matar, e em meu pai saindo a cavalo repetidamente
para percorrer as colinas, às vezes com minha mãe
observando-o partir, o rosto tenso de tanta apreensão.
Algumas poucas vezes nos últimos anos, ela não aguentou e
foi com ele, e então meu irmão passava as madrugadas
andando de um lado para o outro em seus aposentos; assim
como nosso pai, ele não expressa os sentimentos com palavras
ou gestos, e, sim, com ações.
— Bem que eu queria que fosse assim — retruquei,
fervorosamente. Então olhei para ele. — Eu queria. E o que
há de tão errado na paz e na fartura, contanto que haja fartura
para todo mundo?
Ele passou um tempo me estudando, os lábios apertados, e
então disse:
— Eu ia mencionar que as pessoas que nunca conheceram a
preocupação ou a necessidade em geral são as primeiras a
adotar chavões morais. Como você poderia conhecer uma
dessas duas coisas?
— Nunca conheci a necessidade — respondi. — Há sempre
uma lareira quente, comida suficiente e alguém por perto caso
eu acorde no meio da noite., Mas preocupação, sim. Você
acha mesmo que uma guerra simplesmente acaba assim? —
Estalei os dedos, e a égua relinchou, mostrando sua
reprovação. — Logo que eles perceberam que iam ser
derrotados, grande parte do exército de Norsunder fugiu para
as colinas, levando tudo o que conseguiram pegar. Até hoje
ainda há alguns deles escondidos por lá. — Apontei para o
norte e o leste, na direção das montanhas. — E onde meu pai
está este mês, tentando manter as fronteiras em segurança. Eu
conheço a preocupação, pois crescemos conscientes de que
um bandido com uma espada não liga se está matando um rei
ou uma cozinheira.
Flauvic disse, zombeteiro:
— Imagino que formar uma milícia e deixá-la fazer a
patrulha é uma atitude belicosa demais para seus camponeses
satisfeitos?
Respirei fundo, prestes a lhe dar uma resposta grosseira, mas
minhas próprias palavras voltaram à minha mente, como que
me imitando: porque eu posso.
Fui criada com um irmão e uma irmã, portanto sabia a
diferença entre o sarcasmo com o intuito de prolongar a
discussão e o sarcasmo que mascara o desejo — talvez a
necessidade — de saber a verdade. Ele queria saber a verdade.
Por isso, me forcei a falar a verdade.
— Ah, durante uns anos houve uma milícia maravilhosa.
Lembro-me de ter ido assistir a uma revista em Tlanth, onde
ainda há uma milícia, quando eu era pequena. Meu tio Bran
treina com eles todo ano. Em outros lugares, depois de anos
de calmaria, as pessoas começaram a agir como sempre.
Minha mãe me dizia: ou a época era sempre ruim, ou elas não
estavam se sentindo bem o suficiente para treinar, ou os
negócios não permitiam que elas fossem. Quando o meu pai
vai, todo mundo de repente começa a treinar e patrulhar de
novo.
Flauvic nada disse, apenas olhava adiante, onde vários
pássaros de rabo comprido corriam sobre as copas das árvores,
ralhando e grasnando.
Pensar em meu pai me acordou para a minha própria
situação. De que serve uma refém se não há ninguém para
ameaçar? Flauvic cravaria mesmo aquela faca no meu pescoço
se meu pai ou minha mãe de algum modo descobrissem nossa
trilha, e ameaçaria me matar se não fosse levado em
segurança até a fronteira?
— Sua faca — eu disse, tirando do vestido o musgo que já
tinha secado havia muito tempo. — Tenho certeza de que não
me lembro dela enfiada na sua árvore. E também suas roupas
não estavam penduradas nos galhos. Elas ficaram em algum
lugar, invisíveis?
— Invisíveis não é bem a palavra — Flauvic respondeu, me
lançando um olhar difícil de interpretar, enquanto um dos
dedos fez um gesto sutil apontando para o outro pulso. Ahá:
um porta-facas. — É como se elas tivessem ficado fora do
tempo. Quanto a mim, parece que envelheci como as árvores,
isto é, bem mais devagar que os humanos.
— Você aparenta ter uns 20 anos — eu disse, pensando
naquela faca presa a seu pulso, e como pegá-la caso, na
fronteira, ele de repente se transformasse... no quê? Ele
realmente tentaria me matar?
Fitei-o e vi um olhar pensativo em seus olhos claros, então ele
levantou o ombro.
— Parece que a idade não tem mais muita importância. —
Sim, ele estava sozinho, e eu suspeitava de que ele só estava
começando a compreender o que isso significava.
— Olhe aquelas deliciosas amoras silvestres! — exclamei,
apontando uns arbustos próximos a um muro de pedras velho
e coberto de musgo. Quando estiver em dúvida, seja ridícula:
esse é o meu hábito. — Não sei quanto a você, mas eu estou
morrendo de fome. Você tem de entender que, embora as
regras antigas sobre o rapto de princesas incluam deixá-las
famintas, garanto que os raptos modernos são diferentes.
Flauvic deu um sorrisinho enquanto descia do cavalo. Logo
nos sentávamos no muro, meu colo cheio de amoras. Quem se
importa com as manchas? O vestido já estava mesmo
destruído.
O sol brilhava, o vento carregava o aroma das ervas e rosas e
os cavalos lambiam os trevos ao longo da estrada.
— Então, como foi ser uma árvore? — perguntei. — Agora
você consegue conversar com elas?
Ele riu.
— Se as árvores falam, eu não aprendi.
— Nada? Nada mesmo?
Ele inclinou a cabeça para trás, contemplando as nuvens
brancas feito carneirinhos espalhadas pelo céu. Em seguida,
olhou para mim.
— Parece absurdo tentar traduzir essa experiência em
palavras.
— De jeito nenhum. E interessante — afirmei. — E quando
eu chegar em casa, a primeira coisa que a minha irmã, que
estuda magia, vai me perguntar é: "Ele contou como é ser
árvore?". Ela não vai querer saber de outra coisa.
— Diga a ela que eu ouvia o Povo das Colinas cantar. A
distância não parecia ter muita importância, embora eu não
saiba explicar como ou por quê. Dá para sentir o ritmo das
estações: você fica sensível às mudanças da luz, que vem do
norte no frio do inverno, depois vem do sul de novo, a luz
forte que faz com que suas raízes penetrem a água que corre
embaixo do solo. — Ele deu de ombros. — Por um bom
tempo eu não conseguia escutar vozes, como já disse. Mais
tarde consegui. A sua amiga Tara ia muito à sala do trono,
sabia? Ela parecia um inseto, choramingando sem parar,
embora fosse lá para namorar escondida.
— Ela é muito bonita — murmurei. — Todos disputam a
companhia dela.
Flauvic fez um gesto elegante de desdém.
— Eu não conseguia vê-la, então ficava imaginando por que
eles iam lá com ela. Você sabia que seu único objeto de
interesse é ela mesma? Ela não pensa em mais nada, não?
Refleti.
— Seus admiradores a consideram tão fascinante quanto ela
mesma se acha.
— Sério? Parece-me que ela não consegue mantê-los por
muito tempo.
— Pelo menos ela tem algum... — comecei, depois fechei a
boca com tanta força que meus dentes estalaram. Eu não ia,
não ia de jeito nenhum, contar ao maligno Flauvic que eu
nunca tivera um admirador e que era improvável vir a ter.
Ele disse, de repente:
— O rei Bartal sabia que eu virei árvore?
— Ah, sim — respondi.
Ele me olhou. Flauvic tinha conseguido manter as mãos e a
boca limpas; já eu tinha os dedos manchados de suco de
amora e apostava que minha boca estava roxa.
— Conte o resto — ele pediu. — Nunca mais vou vê-lo, se o
que você disse sobre ele ser deposto for verdade.
— Ele riu. — No dia anterior, eu teria dito isso num tom
triunfante, mas naquela hora fiquei constrangida e me ocupei
em examinar as manchas roxas no meu vestido. Estava
horrível, é claro. Acrescentei: — Caso você ache que estou
inventando, pergunte ao seu tio-avô, que ainda era
embaixador até meu pai revogar o cargo dele. Ele nos disse
que o rei Bartal gargalhou tão alto que a corte inteira riu
junto, e depois disse: "Se ele virou árvore, sem dúvida é uma
bela árvore".
O rosto de Flauvic não mostrou nenhuma expressão, mas
pensei no que aquilo significava: ninguém, naqueles vinte
anos, havia tentado desencantá-lo. Nenhum de seus aliados de
outrora tinha sequer aparecido, e não era porque tínhamos
proteções ou armadilhas mágicas poderosas. Ele não estava
apenas sozinho: o mundo dele havia passado ao largo,
deixando-o vinte anos para trás, até nas recordações.
— Vamos — disse ele.
Começamos a cavalgar novamente, percorrendo antigas
estradas usadas por carruagens que faziam curvas por entre
árvores grandes e retorcidas que encontrávamos com mais
frequência agora. Todas as vezes que cruzávamos com
estradas boas, ele enveredava pelas trilhas, sempre nas
direções norte e oeste, e, embora olhasse em volta, às vezes
observando o avanço dos bandos de pássaros acima das
árvores, outras vezes estudando os nebulosos topos cor de
púrpura das montanhas no horizonte, não dizia nada.
Eu também não falava. Era divertido implicar com o maligno
Flauvic quando estava com raiva dele; mas, quando não
estava, achava melhor olhar para o outro lado, ou ficaria
atenta demais à luz em seus cabelos compridos e dourados, à
forma de seus ombros e até ao som de sua respiração. Como
será que é inspirar desejo simplesmente por existir? Vinha
observando Tara exercer esse poder nos últimos anos, e nem
poderia contar quantas noites passei ardendo de inveja, mas
agora eu me perguntava: se a todo lugar que você vai todo
mundo observa e deseja você, é possível ser você mesmo?
— Em que está pensando? — ele perguntou, de repente,
quando o sol começou a cair, estendendo longas sombras de
árvores à direita.
— Como é ser sempre a pessoa mais bonita da sala? Isso quer
dizer que você está sempre representando, como numa peça
de teatro, porque ninguém para de olhar para você?
— A vida é uma peça, não é?
Suspirei. Obviamente eu não receberia uma resposta
verdadeira.
— Acho que deve ser, para quem interpreta dessa forma.
— "Interpreta." Quantas pessoas boas você conhece de
verdade? Eu deixo de fora aquelas que fazem sermões
edificantes para a juventude e que são mesmo "boas", o que
quer que isso signifique.
Que assunto estranho, e vindo de uma pessoa tão estranha!
— Todo mundo que eu conheço tem os dois lados, alguns
com mais bondade do que maldade, e isso pode variar de um
dia para o outro — respondi, pensativa, enquanto observava,
sem compreender de verdade, alguns pássaros batendo as asas
das árvores até o céu, ralhando e grasnando. — Uma vez,
minha mãe me disse que tem, mais do que deveria, o
temperamento de um lobo uivante, mas que aprendeu que
tentar fazer boas escolhas — agir bem, podemos dizer — a
fazia se sentir bem depois. Talvez seja assim para muita gente.
Você despreza a Tara, e eu também, às vezes, mas sei que ela é
muito boa para os animais, e eles não podem elogiá-la. Acho
que ela é boa com eles por amor.
— E se você só se sente bem depois de destruir alguém que
odeia?
— Isso não é se sentir bem, é se sentir triunfante — declarei.
Com o olhar sarcástico que ele me lançou, senti meu rosto
enrubescer e olhei fixo para as orelhas peludas da minha égua,
inclinadas para a frente. — Bom, foi isso o que eu li. Digamos
assim: não conheço ninguém que se sentiria bem depois...
Pássaros? Grasnando? As orelhas da égua estavam inclinadas,
atentas ao... Perigo?
Notei que havia algo errado segundos antes de três homens
saírem de trás dos arbustos, correndo. Viram-nos no mesmo
instante em que os vimos, e dois deles viraram-se diretamente
para os cavalos.
Minha égua recuou, agitando a cabeça; o homem pegou as
rédeas e a sacudiu violentamente com uma das mãos,
enquanto tentava me alcançar com a outra. Num instante vi
uma mão grande com unhas curtas e imundas se aproximando
de mim, então girei para fora do cavalo — um movimento
que meu irmão e eu tínhamos treinado anos antes, após
lermos histórias sobre as proezas dos cavaleiros de planícies
ocidentais.
Levantei os braços — e percebi que o camarada não tinha
nenhum interesse em mim, só no cavalo. Ele estava tentando
montar, mas minha égua resolveu que não gostava desse novo
cavaleiro e ficou dançando de um lado para o outro com a
agilidade de um pônei das montanhas.
Ainda estava meio tonta por conta do giro e do pulo, mas me
voltei ao ouvir vozes ásperas e vi os dois outros homens
discutindo por causa do outro cavalo. Um deles o segurava
pelas rédeas, o outro agitava uma espada para a frente e para
trás enquanto gritava:
— ... Correr... Costa... Barco...
Percebi que falavam uma espécie de sartorês, não o tipo que
falariam na corte de Eidervaen, mas compreensível se eu me
concentrasse.
— Agora — disse o outro.
Onde estava Flauvic?
Ele estava deitado do outro lado de uma pilha de pedras
espalhadas, com a bota do agitador da espada plantada bem no
meio das costas.
— ... Dinheiro — disse o homem que segurava o cavalo dele,
e ambos se viraram e olharam para mim.
Meu olhar foi de Flauvic para os homens. Pela expressão de
seus rostos selvagens, tinham mais ou menos a idade do meu
pai e estavam bem mais sujos e desgrenhados do que eu.
Percebi que eram bandidos, talvez antigos norsundrianos, e
que não tinham boas intenções.
— Eu quero ir pra casaaa — gritei, esfregando os olhos.
— O que ela disse? — interpelou um deles.
— Cale a boca dela. A gente pode revistar os dois depois —
disse o outro, em palavras lentas e forçadas, enquanto a égua
tentava se soltar. O discurso dele foi lento o suficiente para
que eu pudesse acompanhar.
Corri em círculo, tropecei, me curvei até o chão e peguei um
punhado de terra, o tempo todo gritando — na esperança de
que a aparição de bandidos correndo significasse que estavam
sendo perseguidos. O homem da espada tirou o pé das costas
de Flauvic e veio em minha direção, e era só disso que Flauvic
precisava. Ele estava de pé, a faca na mão, ao mesmo tempo
em que balancei o braço e fiz a terra voar no rosto do agitador
da espada.
Ele uivou de raiva, sacudindo a espada diante de si, mas
àquela altura eu tinha girado, como meu professor de esgrima
havia me ensinado, e usei o impulso para chutar de lado a
patela do joelho dele.
Os uivos aumentaram, a raiva virando dor, quando ele
cambaleou. Continuei rodopiando, quase tropecei na saia, e
com o salto do sapato acertei em cheio a barriga dele. Ele
caiu, rígido.
Quando me virei, ambos os cavalos estavam soltos, o homem
com o porrete estava no chão, com a garganta sangrando, e o
outro circulava em volta de Flauvic, segurando uma faca mais
letal que a dele.
Ambos me olharam.
O olhar do bandido nem me considerou. O de Flauvic foi
mais demorado, apontando para o homem que gemia no chão
e depois subindo, ampliando-se. Ele andou para os lados, num
ritmo lento, calculado. Entendi imediatamente e, enquanto o
bandido ainda podia me ver, curvei-me com as mãos cobrindo
o rosto, mas olhando por entre os dedos.
Assim que o ombro dele se virou para o meu lado, me agachei
e peguei uma pedra achatada e de bom tamanho. E quando
Flauvic atacou, fazendo com que o outro o bloqueasse e
tentasse esfaqueá-lo, corri e bati com a pedra logo abaixo da
orelha do bandido. Ele caiu com um baque, sua faca retinindo
sobre o cascalho.
Flauvic e eu ofegávamos ao recolher todas as armas, inclusive
o porrete, e notei que suas mãos estavam tão trêmulas quanto
as minhas.
— Você não mencionou isso — ele disse, inclinando a cabeça
para os lados. Curvou-se um pouco para um lado,
estremecendo; eu não tinha visto sua primeira luta, mas
estava claro que ele havia sido ferido.
— Esperava que você não precisasse descobrir da pior forma
- repliquei, bafejando como um fole. — Meus pais quiseram
se assegurar de que todos nós fôssemos treinados desde que
aprendemos a andar...
E então ambos escutamos o galope de cascos de cavalo e
galhos sendo quebrados.
Olhamos para cima, depois nos entreolhamos.
Perseguição! Alguém do meu povo?
Um instante depois, quatro cavalos atravessaram um matagal
de samambaias no lado oposto ao terreno da luta e estacaram
bruscamente. Olhei para o alto, esperando ver os capacetes e
túnicas dos cavaleiros das fronteiras, e foi o que vi. Mas ao
olhar para o quarto homem, fiquei boquiaberta ao reconhecer
os cabelos grisalhos de meu pai e seus olhos cinzentos se
arregalando de assombro e depois se apertando.
— Aqui estão eles, Majestade — bradou um dos cavaleiros.
— Todos os três. E... — O homem, muito jovem, mais ou
menos da idade do meu irmão, endireitou-se, observando
meu vestido de gala rosa enfeitado com respingos de lama e
manchas de amora.
— Permita-me apresentá-lo à minha filha, a princesa Elestra
— disse meu pai, sorrindo levemente ao desmontar.
Todos os cavaleiros olhavam para mim, e então:
— A senhorita fez isso? — perguntou um deles, com a mão
enluvada apontando para o homem que gemia. Os outros dois
jaziam deitados, um respirando, o outro não.
— Eu... err... — Olhei em volta, com ar idiota, contemplando
os dois cavalos, que ainda chicoteavam os rabos com irritação,
as armas dos bandidos no chão, e...
E o vislumbre de um rosto pálido entre os arbustos, do outro
lado da clareira. Durante um longo e estranho momento, fitei
os olhos dourados de Flauvic, depois virei o rosto e soltei um
suspiro, e disse:
— Bem, sim. Na maior parte foi um acidente. — Comecei a
tagarelar, minha voz ficando alta de repente. Por que meus
olhos ardiam e minha garganta se fechava? Eu estava salva! —
Vejam, eles queriam os cavalos, aí discutiram e...
— Nunca fale demais — meu pai murmurou e depois me
abraçou. Apoiei-me nele, trêmula.
Antes que alguém pudesse se mexer ou falar, ouvimos o som
de mais cascos de cavalos, dessa vez vindo da estrada. Todos
erguemos os olhos (os cavaleiros das fronteiras pondo a mão
nas armas, meu pai ainda me abraçando, mas percebi sua
respiração parar) quando apareceu, numa formação
impecável, uma patrulha de guardas do castelo, com suas
belas túnicas azuis e cotas de malha — com minha mãe à
frente!
— Aí está você! — exclamou ela, puxando as rédeas. Então o
triunfo se transformou em assombro. — Danric?
— Olá, Mel. Estávamos perseguindo aqueles três bem neste
lado do rio — meu pai esclareceu, e percebi um sorriso em
sua voz ao apontar para os bandidos. — Imagino que você não
estava na mesma missão?
— Elestra... Flauvic... — disse mamãe, ainda montada no
cavalo. Pôs as mãos na cintura e olhou ao redor. — Bom,
onde se enfiou aquele Merindar baixinho, desprezível e
mentiroso? Meu pai riu e disse:
— Vejo que há muitas perguntas que precisam ser
respondidas. Sugiro adiarmos os diálogos necessários até
chegarmos a um lugar mais confortável. Nesse meio tempo...
— Ele deu ordens com uma voz ligeira e os bandidos foram
levados para uma direção e as duas grandes éguas de tração
para outra.
Aqueles que não foram encarregados de lidar com os
bandidos se organizaram. E papai me puxou para montar em
seu enorme cavalo de batalha.
— Estou terrivelmente suja — avisei, finalmente cedendo à
tentação irresistível de olhar para trás e ver se Flauvic ainda
estava ali.
Não estava.
Mas eu ainda podia ver aquele olhar, aquele olhar de parar o
coração, que ele havia me lançado, como se ainda estivesse
diante de mim.
— Eu sobrevivo — respondeu papai, ainda num tom de voz
divertido.
Mamãe, é claro, mal podia esperar. Sua égua preferida
balançou um pouquinho, cumprimentando o cavalo de papai
com um bufo e um toque na orelha, enquanto minha mãe
indagava:
— O que aconteceu, Elestra? Os criados ficaram doidos
quando entraram na sala do trono de manhã para limpar o
chão e viram que não tinha mais árvore, e logo depois sua
criada veio bater na minha porta avisando que você não
estava no seu quarto. Imaginei o pior, quando uma das
equipes de busca achou sua fita, e a garota da hospedaria de
Rivertown foi levada ao castelo contando a história de uma
dama e um rapaz de cabelos dourados que iam cavalgar até
Mardgar.
— Você foi até Mardgar e depois veio para o norte? —
perguntei, soltando apenas uma das perguntas que passavam
pela minha cabeça como mariposas chamuscadas pelo fogo.
— E claro que não — ela exclamou, num tom indignado. —
Afinal de contas, trata-se de Flauvic. Ah, eu mandei uma
equipe a Mardgar, por via das dúvidas, mas imaginei que, se
ele tomou tanto cuidado de mencionar um porto no sul, sua
intenção era ir para o norte. E vejo que estava certa.
— Mas... Como você achou o caminho certo?
— Bem, na verdade eu não achei. Fomos abordados pelo
povo de um vilarejo a leste daqui. Eles disseram que foram
roubados esta manhã por três homens, e a trilha ficou visível
por um tempo... — Ela parou, olhando para papai com a
sobrancelha franzida. — Você estava perseguindo aqueles
três?
— Há dois dias — ele respondeu. — São o que restou de uma
gangue que estava saqueando os dois lados da fronteira desde
a primavera. Foram espertos o suficiente para nos enganar, até
Elestra resolver intervir.
Senti meu rosto enrubescer.
Mamãe se voltou para mim.
— Imagino que Flauvic tenha abandonado você assim que
farejou o rio? — Ela apontou para o oeste e vi como
estávamos próximos à fronteira, e então percebi que
vínhamos cavalgando paralelamente à fronteira desde aquela
manhã.
Por quê?
Para responder, murmurei algo desarticulado, e mamãe
suspirou.
— Eu estava escolhendo a dedo os melhores insultos para
agraciar as belas orelhas dele, e agora ninguém vai escutá-los!
— Você pode nos divertir com os insultos quando chegarmos
à fortaleza de Kalna — sugeriu papai. — Não há por que
desperdiçá-los.
Mamãe abriu aboca, olhou para mim e depois para ele, fechou
a boca, levantou as expressivas sobrancelhas e riu.
— Faremos isso. E o seguinte: vou cavalgar na frente para ver
se conseguimos uma boa refeição, e não só uma sopinha.
Como eles conseguiam fazer aquilo? A minha vida inteira foi
assim: eles se olhavam, sem dizer palavra, e de alguma forma
se comunicavam. Suspirei quando mamãe sinalizou para o
cavalo e cavalgou à nossa frente, levando junto metade de sua
escolta.
Papai esperou até sairmos daquele caminho e entrarmos na
ampla e bem pavimentada estrada principal.
— Imagino que você teve um motivo para tê-lo deixado
escapar — murmurou.
Lembra daquele comentário sobre a dor de furar o dedo com
um espinho? Senti outra, afiada e fria.
— Você o viu? — consegui dizer.
— Posso estar ficando velho, mas não estou tão decrépito a
ponto de não ver cabelos compridos da cor de moedas de ouro
atrás de uma sebe de cicuta. Ou as pegadas típicas de sapatos
que se usavam na minha juventude.
— Você não disse nada — sussurrei, enrubescendo de novo.
— Imaginei que você tivesse os seus motivos. O que
aconteceu?
Contei-lhe enquanto cavalgávamos devagar até Kalna, cujas
torres eram visíveis acima das copas das árvores a leste. Papai
deve ter sinalizado para a patrulha da fronteira, pois eles se
mantiveram atrás de nós a uma distância discreta.
Quando terminei, todas as emoções rápidas que suportei
naquele dia se escoaram, deixando-me cansada, com fome; e
mais uma vez minhas pálpebras ardiam e minha garganta
também. Lágrimas? Não eu! Não a boa e velha Elestra, a
princesa com coragem!
— Não sei por que fiz isso — disse, por fim, esfregando os
olhos ardidos com o vestido imundo. — Parecia apenas... a
coisa certa a fazer.
Papai não disse nada por um tempo, enquanto cavalgávamos
em marcha constante rumo à cidade, à mamãe, uma boa
refeição, um banho e alguma coisa — qualquer coisa — para
vestir que não fosse o meu vestido horrendo.
Antes de falar, ele acariciou minha face com o polegar
calejado, e então murmurou:
— Houve um momento na minha vida em que eu estava
perseguindo uma pessoa fugitiva em uma cidade ribeirinha, e
optei por deixá-la em paz. Parecia a coisa certa a fazer na
hora. A intuição provou ser um guia melhor do que, hum, as
imposições da política da época.
— Pai! — me virei e fiz uma careta. — Você está falando da
mamãe.
Ele sorriu.
— Você não está insinuando que eu fiz isso por... bem... por
interesse amoroso.
— Não, não mais do que eu fiz. Pareceu justo, e correto, dar à
minha fugitiva uma chance de liberdade.
Suspirei.
— Mas se ele ficar livre e fizer alguma coisa horrorosa, não
vai ser minha culpa?
Papai hesitou ainda mais antes de responder. Os muros da
cidade já apareciam no final da estrada, além das plantações
de milho maduro e de cevada brotando, quando finalmente
ele disse:
— A família Merindar nunca foi conhecida pelo riso ou pela
virtude, pelo espírito generoso ou pela tentativa sincera de
ver a grande verdade do universo e tentar ser fiel a ela.
— Não — eu disse, imaginando sobre o que ele estava
falando. Então enrubesci de novo. — Você está falando de
mim.
— Ele passou o dia inteiro com você, pelo que percebi. Ele
poderia ter atravessado a fronteira logo de manhã.
— Mas na maior parte do tempo nós só discutimos!
Papai riu e me abraçou forte por um instante, como fazia
quando eu era pequena e pedia para ir cavalgar com ele.
Então disse:
— Sabe, quando uma pessoa descobre a beleza pela primeira
vez, tende a querer ficar perto dela. Mesmo que num
primeiro momento não reconheça a beleza pelo que ela é.
Beleza. Foi isso que ele disse.
Será verdade ou meu pai só está tentando fazer com que eu
me sinta melhor?
Não sei. Estou em casa, é claro, tudo voltou ao normal (eles
adiaram a peça — estou ocupada decorando as falas do
príncipe galante) e eu não paro de pensar no que aconteceu.
Mas não fico sofrendo na janela, nem vigiando a estrada que
dá para o norte.
Porque sei que ele vai voltar.

Nota da Autora
Embora esta história se sustente sozinha, ela foi escrita para
todos os leitores do meu livro Crown Duel que me
perguntaram: "Como são os filhos de Meliara e Shevraeth?" e
"O que aconteceu com Flauvic?"

Nancy Springer

Mariposa

erdi a minha alma? — repetiu Aimée, quase


perdendo seu costumeiro e perfeito autocontrole. A
médica concordou com a cabeça. — Acho que sim.
Provavelmente no começo da adolescência. Isso é mais
comum do que você imagina. — A especialista era uma
médica feiticeira, também conhecida como mediceira.
Muito profissional, mostrou impaciência apenas ao ajustar o
turbante. Aimée não conseguia descobrir se a mulher
imensa e montanhosa era africana, libanesa ou, talvez,
hindu, mas isso não tinha importância. Nada parecia ter
importância. Nem mesmo fazer dieta. Tinha sido essa apatia
que levara Aimée até ali, aquele consultório com rosas
abertas em pétalas cor-de-rosa crescendo do teto para baixo.
— Vamos dar uma olhada — sugeriu a mediceira, com
delicadeza. — Levante-se, por favor, e fique de frente para o
espelho.
Aimée ficou em pé, observando de um jeito automático a
própria aparência no espelho que refletia o corpo inteiro:
impecável, como sempre. Cabelos na última moda,
maquiagem à altura de uma modelo, blusa de seda, um
terninho Ralph Lauren com acessórios perfeitos e, o mais
importante de tudo, o diamante reluzente no dedo. Colin
havia lhe comprado o maior que ela poderia usar sem cair
no mau gosto. Ele havia lhe prometido uma viagem às ilhas
polinésias na lua de mel. Aimée sabia que era uma jovem
privilegiada, possuidora de um noivo altamente desejado,
um diploma de Vassar, um BMW conversível, uma carreira
em uma das melhores empresas do país, roupas de grife, um
personal trainer para ajudá-la a manter-se magra como
ditava a moda e, acima de tudo, um rosto simétrico e
corrigido com perfeição.
Por que, então, ela acordava todos os dias com uma
profunda e dolorosa sensação de vazio?
— É uma bênção que a época dos procedimentos invasivos
tenha terminado — dizia a especialista. — Não é preciso se
despir. — Murmurando, com seus olhos negros e líquidos
fora de foco, a mulher mais velha fez alguns passes com as
mãos desprovidas de adornos.
Apesar de ter sido informada sobre os procedimentos de
mediceiros quando seu médico a encaminhara para aquele
consultório, Aimée ofegou. Do nada, viu sua imagem no
espelho se transformar. Em seu eu refletido, toda a
maquiagem cara, aplicada com destreza, havia desaparecido.
A tintura do cabelo sumira. O silicone também. O sutiã com
aro, as roupas cuidadosamente combinadas, os acessórios,
todos os artifícios com os quais Aimée mantinha uma
imagem feminina atraente tinham sido removidos. Só
restava a nudez...
Não. Ao observar, com os olhos arregalados, o rosto
simétrico obediente em uma bela máscara, Aimée viu que o
que sobrava no espelho não era um corpo nu, sem adornos.
Em vez disso, era a silhueta pálida de um corpo sem
substância, sem profundidade, sem essência. As
extremidades pareciam bastante sólidas, mas, perto do que
deveria ser o centro, o corpo ficava translúcido, espectral.
Parecia não ter coração.
Nem entranhas. E nem rosto.
— Sim, você perdeu sua alma — declarou a mediceira,
tranquilamente. — Por favor, sente-se. — Ela puxou uma
cortina indiana estampada com árvores da vida e cobriu o
espelho.
Aimée se sentou em uma cadeira de vime branca,
contemplando as próprias mãos sobre os joelhos. Pareciam
estar ambas ali, completas, com a aliança de diamante e as
unhas caprichadas. Porém sentia um atordoamento quente
ardendo no fundo dos olhos.
— Isso acontece com mais frequência em jovens mulheres
plenamente socializadas como você. — A mediceira sentou-
se atrás da mesa, sobre a qual havia a estatueta de uma deusa
minoica1 de seios nus erguendo uma serpente em cada mão.
— Aimée, quando você parou de sonhar durante a noite?
— Eu, hum... — Aimée olhou para cima, refletindo.
— A alma é responsável pelos sonhos — explicou a
mediceira. — Enquanto você dorme, ela voa livre e
desenfreada, mas permanece amarrada ao seu coração por
uma corda de prata, que a faz voltar. Deve ter acontecido
alguma coisa que comprometeu a corda. Você sofreu abusos
quando criança?
— Não. De jeito nenhum.
— Algum outro acontecimento traumático na sua infância?
— Não...
— Voltando à pergunta inicial: há quanto tempo você não
sonha?
Aimée nunca tinha parado para pensar na questão dos
sonhos.
— Hum, eu acho que... Uns dez anos.
A mediceira assentiu.
— Portanto, você tinha treze anos, mais ou menos? Na
puberdade, você foi submetida a pressões da sociedade?
Aimée piscou para ela.
— Não é assim com todo mundo?
— Até certo ponto, sim. Mas isso mudou você? Você
esqueceu as coisas das quais gostava? Passou a se concentrar
apenas em ser atraente, restringindo sua inteligência a um
nível aceitável e em agradar aos garotos?
— É claro.
A mediceira assentiu e, sob o turbante, seu rosto escuro
revelou alguma tristeza. Aimée se enfureceu.
— Você está querendo dizer que a culpa é minha?
— Pela deusa! Não, querida. Você era uma criança. Alguém
devia tê-la guiado, cuidado de você.
— Espere. — Um novo pensamento apagou a irritação de
Aimée. — Tem certeza de que isso aconteceu naquela
época? Por que eu não percebi antes?
— Em geral, isso só se manifesta na idade adulta. Muitas
adolescentes perdem a alma, e as pessoas só percebem anos
depois. — A mediceira, por alguma razão, suspirou, depois
perguntou pacientemente: — Como era a sua alma, você
sabe?
Quase refeita, Aimée lançou-lhe um sorriso esperto e
mordaz de jovem executiva estressada.
— Como eu saberia?
— Bem, quando criança, talvez algum dia em que você
estivesse meio acordada, chegou a vê-la? Talvez em forma
de borboleta, ou mariposa, ou de uma pombinha branca, ou
uma abelha?
Aimée fez que não com a cabeça, sentindo a boca começar a
afinar, perdendo o charme dos lábios carnudos. Ela queria
sair daquele consultório esquisito. Queria um tempo para
assimilar o diagnóstico. E, acima de tudo, queria um
tratamento.
— O que eu faço agora? — exigiu.
— Bem, há almas postiças à venda. Um especialista poderia
fabricar uma para você conforme suas preferências em
poesia, música, artes plásticas e assim por diante. E o
implante é feito sem nenhum procedimento invasivo. — A
mediceira recitou tudo isso sem hesitação ou entusiasmo. —
Mas é impossível a prótese se igualar em qualidade a uma
alma real, original. — A mediceira suspirou de novo. —
Você ainda tem acesso ao lugar, eu quero dizer o local físico,
onde você viveu quando estava na puberdade?
— Tenho — respondeu Aimée. — Tenho, sim.
— Então se eu fosse você, voltaria lá e tentaria achar a sua
alma.
Fazia anos que Aimée não voltava. Ela detestava voltar. A
casa, assim como a mãe, era muito démodé, com cortinas em
tons pastéis cheias de frufrus, e a cidade era pequena
demais, não tinha se desenvolvido nem um pouco. O
quintal nos fundos ainda acabava na roça. Não havia
nenhum lugar para fazer compras, nem sequer um centro
comercial minúsculo. Não existiam boates. Não havia
ninguém que valesse a pena impressionar. Em suma, não
havia nada a fazer. Aimée não voltara para casa desde o
enterro do pai.
Sua mãe ficou deliciada ao vê-la, é claro, e achou que a
visita inesperada se devia aos planos de casamento.
— Eu sei que Colin é um jovem muito atraente — a mãe
disse na manhã seguinte à chegada de Aimée, durante um
café da manhã composto por ovos mexidos, torrada e geléia
de morango caseira. — E que é muito bem-sucedido e tal,
mas ele é... ele vai ser... — a mãe vacilou, evidentemente
tentando usar uma delicadeza para a qual sua falta de
sofisticação não fornecia experiência alguma. — Ele é bom
para você? — ela deixou escapar.
— Ele tem uma cobertura, mamãe.
— Eu sei, mas...
— E é muito bom de cama.
Aimée disse isso para chocar, e conseguiu. A mãe engasgou
e ficou vermelha.
— Céus! Minha querida, não era disso que eu estava
falando.
— O que você quis dizer, então?
— Bom, ele está... ele vai... ele ama você?
A questão parecia sem sentido. Aimée a ignorou e foi direto
ao assunto.
— Mamãe, parece que eu perdi minha alma. Antes de
encomendar uma, eu estava pensando: você sabe onde ela
foi parar?
A mãe endireitou a coluna e contemplou a filha com um
orgulho cristalino, de olhos úmidos.
— Amy, eu sempre soube que você era precoce.
Aimée fechou a cara. Fazia anos que havia mudado de
nome. Por que a mãe não conseguia se lembrar disso? Mas a
mãe continuou a tagarelar:
— Olhe só para você, já está querendo a sua alma de volta.
Eu só comecei a sentir falta da minha quando cheguei à
menopausa. — Ela se virou e gritou: — Mamãe! Mãe! Você
viu a alma da Amy?
A velha decrépita, avó de Aimée, arrastou-se até a cozinha.
Se a mãe era démodé, a avó era um desastre. A mãe usava
poliéster; a avó usava roupas de ficar em casa compradas em
brechós e presas com alfinetes. A mãe usava tênis de
supermercado; a avó usava chinelos de plástico da loja de
1,99. A mãe ignorava a maquiagem; a avó ignorava o
hidratante e a depilação. Acima das meias de náilon
enroladas até o tornozelo, surgiam, com vigor, suas pernas
nuas e peludas, e a pele com a textura de uma batata frita.
Ao contemplar sua família, Aimée conteve um calafrio. Se
fizesse suficiente pressão, provavelmente conseguiria tornar
a mãe e a avó apresentáveis para o casamento, mas jamais
poderia levar o noivo àquela casa.
A avó latiu como um tordo feroz:
— O quê? Se eu vi o quê?
— A alma da Amy! Ela perdeu a alma. Você a viu em
algum lugar por aqui?
— Não... não vi, não. — A voz da avó ficou mais suave,
virando um pio de pardal. — Mas também não procurei
direito.
— Mamãe achou a minha - a mãe de Aimée explicou —
anos atrás.
— Estava no carpete, bem à vista. — A avó arrastou os pés
até a mesa da cozinha e sentou-se. — Como se tivesse caído
dela quando caminhava para a porta. Meio parecida com
uma libélula ou outro inseto delicado. Muito bonita. Peguei
na palma da mão com cuidado e pensei em como mantê-la a
salvo para ela. Eu sabia que não adiantava nada devolver-lhe
naquela época. Ela só iria perder de novo.
— Eu estava começando a namorar — a mãe explicou.
— Dezesseis aninhos, nunca tinha sido beijada, e aquela
cabecinha linda não pensava em mais nada a não ser em
como conseguir um maio de duas peças e ter permissão para
pintar o rosto.
Aimée ficou em silêncio, fazendo força para acompanhar.
— Acontece que naquele dia eu estava enlatando conservas
— chilreou a avó —, então eu a coloquei num pote de
geléia com xarope de fruta e pus uma boa camada de
parafina por cima. Aí escrevi o nome da sua mãe numa
etiqueta na tampa e guardei numa das vigas do porão. E lá
ficou.
— Eu a encontrei — explicou a mãe — quando estava
ajudando mamãe a limpar a casa, depois que o vovô morreu.
— Foi como um parto — disse a avó. — Fiz isso e depois
esqueci o mais rápido possível.
A mãe de Aimée assentiu.
— Algumas das coisas mais rotineiras da vida são assim —
concordou, serena. — Como os enterros. Você tem de se
esquecer deles depois, para poder seguir em frente.
Aimée escutava com irritação crescente.
— Ver a sua filha andando sem alma por aí! — a avó
resmungou. — Não se fazia isso na minha época.
— Alguns ainda não fazem — a mãe disse. — Dá para
perceber. A filha da Missy Hartzel: eu não acredito que
tenha perdido a alma até que entrou para a força policial.
Aquela altura, Aimée sentia ímpetos de xingar, mas se
conteve. Ela exigiu:
— Mamãe, você achou a minha, enfiou em algum lugar e se
esqueceu?
— Bem, como é que eu poderia saber, querida, a não ser
que eu me lembrasse? E melhor a gente dar uma procurada.

Até o meio-dia do dia seguinte, a caçada tinha sido em vão.


A caixa de botões fora esvaziada e todo o conteúdo
vasculhado; idem para a cesta de costura e as gavetas de
tralhas do velho aparador com pés de garra na sala de jantar.
Os potes na estante de condimentos foram examinados, e
também as conservas da despensa. Até mesmo o depósito de
alimentos e o porão foram investigados. E o sótão... Aimée
não conseguiria encarar o sótão. Ela precisava fugir para
algum lugar onde pudesse ficar sozinha, senão seria capaz de
pegar algum objeto sem ponta e atacar tanto a mãe como a
avó. Mas não tinha aonde ir. Nenhum cineclube, nenhuma
boate, nenhum shopping.
Ao abandonar a casa, Aimée se viu vagando pelo riacho cuja
curva ficava no fundo do quintal, até um lago ao lado da
enorme rocha sob o salgueiro, onde tinha passado
incontáveis horas de seu tempo livre quando criança.
Tempo desperdiçado, ela estava pensando...
— Amy! Bem-vinda novamente!
De pé numa pedra lisa cercada pela folhagem dos salgueiros,
Aimée arfou, e não apenas porque um peixe-sol havia
colocado a cabeça para fora da água e falado com ela. Olhou
para os peixinhos comuns que flutuavam como espíritos
pelas profundezas ensolaradas e ensombrecidas. Como se
tivesse olvidado um sonho, ela tinha se esquecido
totalmente desse lago límpido com peixes-sol. Passara
inúmeros dias de sua infância observando-os, nadando entre
eles, alimentando-os com pão, requeijão e restos de
cachorro-quente, tentando tocá-los como se tentasse tocar
os anjos.
E então... o que tinha acontecido? Parece que da noite para
o dia algo tinha mudado, não só seu corpo em
transformação, mas tudo em sua vida, e ela tinha deixado
aquela fonte para trás.
Outra cabeça iridescente quebrou a superfície matizada pelo
sol.
— Aposto que se esqueceu de nós.
— É, esqueci!
Bolhas espumaram das profundezas iluminadas-sombreadas
como um riso.
— Esqueci muita coisa — murmurou Aimée, recordando
como tinha tentado aprender de que espécies eles eram:
perca-sol, barbatana-longa, barbatana-vermelha, guelra-
azul, verde..., mas todas essas cores e diversidades a haviam
deixado desnorteada. Ao reconhecer cada um, dera-lhes
nomes infantis: Listra Azul, que tinha marcas azul-celeste;
Tordo, um guelra-azul de peito rubro; Relâmpago, um peixe
verde reluzente; Coelhinho, o de barbatanas longas; Aurora,
uma perca-sol especialmente vivaz, pintada como se tivesse
nuvens alaranjadas sobre a barriga e as barbatanas amarelas.
E muitos outros, inclusive um enorme guelra-azul listrado,
notável porque sua barriga não era nem vermelha, nem
laranja ensolarado, nem mesmo amarela, mas tinha um
delicado tom rosa-pêssego. Nenhum nome lhe parecera bom
o suficiente para expressar a singularidade do peixe. Por fim,
ela o chamara de Mariposa, pois aprendera na sexta série
que era assim que se dizia "borboleta" em espanhol.
Contemplando o lago brilhante, Aimée viu refletido o
próprio rosto, corrigido por plástica, observando da
superfície. Mas, ao mesmo tempo, viu os sonhos, a vida, as
expectativas nadando nas profundezas atrás de seus olhos.
Aquele lugar era seu espelho e seu mistério. Viu de relance
o rosto de uma criança morta na água.
Ou quem sabe a criança ainda estivesse viva?
— Olá, Aurora — Aimée sussurrou para um perca-sol que
voava pela água nos arredores de seu coração. Não poderia
ser a Aurora de verdade, não depois de tanto tempo, mas
quem sabe... quem sabe uma outra Aurora. — Olá, Tordo de
Peito Rubro.
— Olá, você aí! — eles colocaram a cabeça para fora da
água, lançando-lhe sorrisos desdentados feito bebês.
— Olá, Verdinho. Oi, Listra Azul. Oi, cadê o Mariposa? Um
coro jorrou:
— Você devia saber!
— O Mariposa é nosso herói!
— Contamos a história do Mariposa para os nossos
filhotinhos.
— Ele comeu o grande anzol...
— Mariposa voou!
— O Mariposa voltará um dia.
— Ele voou para o Outro Mundo.
Aimée sentiu um eco quase audível em sua mente: voou,
voou, déjà vu. Sentiu a mandíbula tremer de um modo que
sabia ser deselegante. Por um instante, sua respiração parou.
Ficou de boca aberta, relembrando, como se estivesse
atraindo de volta um sonho.
Tinha havido um dia de outono em que folhas coloridas
pelo sol flutuavam na água, os peixes-sol passeavam devagar
ali embaixo, a friagem no ar era como o destino. E a
percepção da Amy de treze anos de que não poderia mais
lutar por muito tempo contra a necessidade terrível de se
adequar, de abandonar a infância a fim de ser igual aos
outros. Um novo ano escolar havia começado. Em breve ela
se dedicaria totalmente a ser parte de um grupo.
Mas antes que isso pudesse acontecer, ela entregara sua
alma à solidão e a esse lago.
Ela mesma tinha feito isso. Deitada naquela rocha,
imaginara sua alma fina, de brilho fraco, saindo de si e a vira
pendurada por um fio de prata mais tênue que uma teia de
aranha. Havia assistido à alma pousar como um insetinho
sobre a superfície prateada do lago, em meio às folhas
douradas. Observou os peixes brilhantes se amontoar. E viu
o maior de todos pegá-la.
Mariposa.
Mariposa tinha engolido a isca reluzente e arrebentado o
fio. Mas em seguida, formando no ar um arco parecido com
um arco-íris, o peixe saltara para fora d'água. Dera um salto
tão alto que pousou na rocha, aos pés da garota que agora se
chamava Aimée. Mariposa, o guelra-azul, com suas
barbatanas verdes, cabeça azul-celeste iridescente e barriga
rosa-claro: todas as cores de uma borboleta haviam se
colocado ali, sem nem fazer barulho. E os olhos cor de anil
do peixe a olhavam com uma sabedoria profunda como um
poço.
E depois...
Lembrando-se disso, Aimée ficou sem fôlego, como se
estivesse se afogando, então virou e saiu correndo,
irrompendo entre as folhas dos salgueiros como se rasgasse
um véu. Ela voou para casa.
— Mamãe! — gritou à beira da escada íngreme. — Mãe!
Você ainda tem o meu peixe?
— O quê? — a voz da mãe flutuou do sótão para o andar de
baixo.
— Meu peixe! — Aimée berrou, nada parecida com uma
profissional refinada. — Meu peixe-sol!
Passos soaram lá do sótão. A mãe caminhou vagarosamente
até o topo da escada e observou-a atentamente.
— Seu o quê?
Tal como a criança que costumava ser, Aimée choramingou:
— Meu guelra-azul! O único que eu peguei na vida. Você
ainda tem?
— Céus! Minha querida, eu não...
— Eu disse pra você guardar! — gritou Aimée.
— Dê uma olhada no freezer. Não, espere. Olhe no outro
freezer. O da garagem. No alto da geladeira velha.
A matriarca branca dos eletrodomésticos, rechonchuda e
arredondada, mas ainda imponente em sua magnitude,
continuava a zumbir num canto, como se estivesse
esperando o ensaio de um coral começar. Aimée sentiu as
mãos tremer ao abrir a porta pesada, que revelou um ventre
vazio e sombrio. Seu coração pesou como uma pedra antes
de ver a porta menor que se abria para um refúgio sagrado.
Abriu a portinha num ímpeto, trêmula.
Num primeiro instante, ela não viu nada naquela cavidade
minúscula congelada. Enfiou as duas mãos, cavando,
procurando, e sentiu alguma coisa no meio de toda aquela
brancura.
Bem lá do fundo, ela puxou um pacote havia tanto tempo
incrustado de gelo que não dava para saber de cara se lhe
pertencia. Tremendo, Aimée abraçou o pacote com as mãos
até que o calor de seu corpo derretesse os anos que o
recobriam. Então olhou para a espessa camada de papel
manteiga cheia de fita adesiva e etiquetada com uma letra
infantil.
— Sim! Sim! — Aimée queria gritar de alegria, porém
começou a chorar.
— Ah, que linda! — exclamou a mediceira, fitando a
geladeira de isopor que Aimée tinha colocado sobre a mesa.
Desta vez, ela estava usando um turbante de seda rosa-
escuro como as rosas folhudas que desciam do teto, quase do
mesmo tom que a barriga de Mariposa fora um dia.
Aimée murmurou:
— Ele ainda estava vivo quando o coloquei no freezer. As
barbatanas ainda estavam se mexendo. Espero não ter
causado muita dor a ele.
—Já faz tempo que está morto — disse a mediceira.
- Dá para tirar a minha alma de dentro dele?
- Já tirei.
— O quê? — Aimée pulou da cadeira. — Ela vai... Ela vai
ficar bem?
— Ela está muitíssimo bem. Como eu disse, ela é linda,
uma das mais belas que já vi. Venha ver.
De pé ao lado da mulher sombria e montanhosa, Aimée
olhou de um jeito tolo.
— Está brilhando — sussurrou. — Feito um vaga-lume.
— A-hã. Creio que sua mãe estava certa, Aimée. Você é um
pouquinho precoce.
Contemplando a própria frágil e diáfana imortalidade,
Aimée sentiu que estava começando a chorar novamente,
lágrimas silenciosas como chuva morna molhavam seu
rosto. Era provável que sua maquiagem estivesse borrando,
mas ela não se importava.
A mediceira indagou:
— Está pronta para recebê-la de volta?
— Estou.
A mediceira destrancou uma das gavetas da mesa, puxou-a e
tirou de lá uma sacola de seda branca. De dentro, pegou
certa extensão de um filamento prateado tão fino quanto os
de uma teia de aranha. Avisou:
— Apesar de o procedimento não ser invasivo, pode haver
certo grau de trauma psicológico depois. Receber uma alma
nem sempre é fácil.
— Eu vou arriscar — Aimée afirmou.
— Ótimo. Então, fique de pé olhando para mim. Abra seus
braços como se fossem asas. E melhor você fechar os olhos.
Amy sentiu o retorno de sua alma como uma explosão
silenciosa de luz interior. Todas as suas certezas absolutas
explodiram e se afastaram, como se fossem levadas por uma
brisa doce, e uma fonte de incertezas vívidas fluiu para
dentro dela, acelerando sua respiração e os batimentos do
coração. Ela sussurrou: — Ah! — E seus olhos se abriram de
súbito.
— Ah! — Amy bradou. — Ai, eu adoro esse seu turbante.
Que diabos eu estou fazendo dentro deste terninho idiota?
— A meia-calça lhe dava coceira, a cintura da calça a
impedia de respirar, os sapatos de salto a apertavam. Sempre
detestara se fantasiar de Barbie; o que estava pensando? —
Ah! — O brilho de um diamante de tamanho considerável
chamou a atenção de Amy.
Ela ficou parada olhando para o próprio dedo, recordando
como se estivesse atraindo um sonho de volta:
Colin. Seu noivo. Cobertura em Manhattan. Porsche.
Jatinho para viajar rumo às casas de veraneio em Malibu,
nas Ilhas Virgens, em Nice.
O lindo e charmoso Colin, com seus brinquedinhos de
menino rico, e ela ia se tornar mais um.
Colin, que provavelmente beijava a própria imagem no
espelho todos os dias antes que a empregada lhe servisse o
café da manhã. Colin, que tinha tanta alma quanto um pneu
radial com cintas de aço.
— Deus do céu! O que eu estava pensando? — Amy
lamentou-se. Arrancou a aliança do dedo e jogou-a dentro
do isopor, com o peixe morto.

Nancy Springer é autora de vários romances fantásticos para


adolescentes e adultos, entre eles, I Am Mordred, I Am
Morgan Le Fag e The Hex Witch of Seldom (todos
publicados pelo Firebird). Já ganhou o Prêmio Edgar duas
vezes.
Nancy Springer mora em East Berlin, na Pensilvânia.

Nota da Autora
Todos nós temos momentos em que desmoronamos e
precisamos "lembrar" quem somos para poder nos manter
íntegros. Na minha própria vida, uma coisa da infância que
esqueci e só fui me lembrar quarenta anos depois foi quão
importante é passar as tardes de verão na companhia dos
peixes-sol. Se eu fosse poeta, talvez conseguisse explicar
como é um lago de água fresca com peixinhos-sol se
insinuando atrás das sombras como sonhos visíveis, porém
intangíveis... Ah, bem. Talvez um dia eu me lembre de
como ser poeta, mas, por enquanto, estou mais para palhaça.
Por isso escrevi este conto.

Lloyd Alexander

Max Mondriseh

"Eu posso construir vagões cobertos... lindas peças com


formas úteis e belas... projetos para edifícios... Eu posso criar
qualquer coisa que possa ser criada, assim como qualquer
outra pessoa, seja ela quem for."
Leonardo da Vinci
um anoitecer de fevereiro, uma pessoa chamada Max M.
Mondrosch, vestindo uma camiseta úmida e sentado num
quarto de hotel, rascunhava a seguinte carta:
"Senhores", ele escrevia numa letra que insinuava um
pedido de atenção insistente, porém respeitoso.
"Senhores:
Por favor, aceitem esta carta como um pedido de emprego
em sua empresa para o cargo de...
(Aqui, Mondrosch deixou um espaço em branco e
continuou).
"Tenho 30 anos de idade, excelente saúde e estou ávido para
progredir com sua empresa. Minha criação, caráter e
educação são de alto nível e, caso os senhores solicitem,
posso oferecer referências das mais idôneas fontes.
Minha experiência profissional é variada e me proporcionou
conhecimento considerável do tipo de trabalho citado no
anúncio de sua empresa.
Esperando ser agraciado com uma entrevista e ter a
oportunidade de oferecer-lhes meus serviços, envio os
melhores votos e despeço-me,
Atenciosamente,
Max M. Mondrosch."

O hotel onde Mondrosch estava hospedado era uma dessas


hospedarias encontradas no final de qualquer rua
insignificante, onde os mensageiros têm oitenta e poucos
anos e as acomodações não são mais que uma cama de ferro,
uma bacia enferrujada, uma mesa e uma cadeira de bambu.
Contudo, mesmo em uma mesa descascada, Mondrosch
parecia um homem chegando ao escritório no início do dia.
Seus sapatos estavam engraxados, seu terno era bem cortado
e seu colarinho brilhava tanto quanto suas faces. Ele dobrou
o jornal ao encontrar a coluna "Ofertas de emprego",
pigarreou, dobrou as mangas da camisa, apoiou o queixo e
fez uns floreios no ar com a caneta.
Preencheu o formulário para a maioria dos anúncios,
encaixando-se em todo tipo de trabalho. Se lhe dessem um
avental e um boné de papel crepom, ele se tornaria um
alegre "balconista". Se recebesse uma pasta com amostras,
seria um "vendedor de porta em porta". Óculos fariam dele
qualquer tipo de "homem profissional". De terno escuro,
caminhando de um lado para outro com montes de papéis
na mão, ele poderia se passar por um "executivo" ou
"gerente".
Satisfeito com seu trabalho, Mondrosch fechou os envelopes
e colou os selos. De sua mala, retirou um pijama. Acima de
sua cabeça, os canos de vapor estalavam como ossos se
quebrando, mas ao deitar-se na cama funda, Mondrosch
mergulhou num poço escuro e nele se afogou
tranquilamente até de manhã.

Mondrosch havia anotado o nome de duas agências de


emprego e às 8h45 já tinha se barbeado, passado
desodorante e talco, se vestido e saído para a rua. Conforme
andava, ele organizava mentalmente os pontos que
desenvolveria durante as entrevistas, desfiando
cuidadosamente suas qualificações, a sequência de sua
apresentação e a forma mais efetiva de expô-las.
Na primeira agência, ele abriu a porta e viu uma fileira de
cadeiras. Perto da parede, havia uma mesa de madeira. O
agente estava sentado sozinho numa escrivaninha,
limpando as unhas. Mondrosch aproximou-se com o chapéu
na mão.
O funcionário mal o olhou.
— Você preencheu o formulário?
— Ainda não — Mondrosch começou a dizer.
— Preencha primeiro. — O homem voltou a cuidar das
unhas.
Mondrosch dirigiu-se à mesa e encontrou uma caneta
esferográfica com a ponta entupida. Preencheu o formulário
e aguardou um tempo até que o agente o convocasse.
Mondrosch ficou sentado, alerta, enquanto o agente, com
má vontade, examinava o formulário. O telefone tocou.
— Sim, isso mesmo — o homem disse. — O quê? É.
Salário? — Seu rosto se iluminou. — Sim, tenho exatamente
quem você quer. Na verdade, ele está sentado aqui agora.
Mondrosch olhava para o chão modestamente enquanto o
funcionário continuava:
— Ah, ele é um dos melhores. Dos melhores. Um tipo de
alto nível, alto nível. Eu vou mandá-lo para você. Ele já está
saindo. Está a caminho.
O agente de empregos deu um pulo, contornou a
escrivaninha, pegou o casaco e o chapéu e saiu pela porta
antes que Mondrosch tivesse tempo de dizer alguma coisa.
Nos escritórios de Butter & Dick, telefones e interfones
tocavam sem parar. Mensageiros chegavam com pilhas de
envelopes onde se lia a palavra "urgente", e de dois em dois
minutos meia dúzia de candidatos a empregos empurravam
a porta e entravam. Mondrosch estava pensando se deveria
esperar, quando um homem corpulento se apoiou na grade
de madeira.
— Eu sou Butter — ele gritou. — Entre, entre. Mondrosch
admitiu que não tinha preenchido o formulário. O homem
corpulento balançou a mão.
— Não dá tempo. Dá pra ver que você tem o perfil de um
executivo. Quero que vá a este endereço. — Ele anotou
alguma coisa num pedaço de papel. — Você sabe gerenciar
um escritório, não sabe?
— Um escritório?
— Um departamento inteiro. Agora vamos pagar a taxa e
estaremos acertados. Dez por cento em dinheiro.
— Em dinheiro? — A palavra deixou Mondrosch alarmado.
— Você não está com dinheiro?
Mondrosch gesticulou como se estivesse nadando.
— Bem, o dinheiro, veja só, eu sou novo nesta cidade,
mudei de banco...
— Não faz mal — Butter disse. — Me dê um sinal. Eu
aceito o restante em cheque.
— Sim, mas tem certeza de que eu conseguirei o emprego?
O homem corpulento bateu na mesa.
— Certeza? Eu vou confirmar isso para você agora mesmo.
— Ele pegou o telefone e, com um dedo tapando uma
orelha, gritou a plenos pulmões.
— Vaga para gerente de departamento? Sim, eu já preenchi
para você. O quê? — Ele se virou. — Qual é o seu nome? —
Então, no telefone novamente: — É um sujeito chamado
Mondrosch. Você pode lhe dar um adiantamento? Essa é a
condição dele: o adiantamento é absolutamente necessário.
— Ele desligou o telefone. — Pronto, resolvido.
Sem graça, Mondrosch avisou que só poderia dispor de dez
dólares. Butter balançou a cabeça negativamente. Em geral,
eles insistiam num sinal de quinze por cento do valor da
taxa. Talvez fosse melhor ele procurar outra agência.
Mondrosch ofereceu vinte dólares.
O rosto de Butter amansou novamente.
— Vinte dólares servem. Abrirei uma exceção.
Na carteira, Mondrosch tinha dobrado, separadas, seis notas
de cinco dólares. Pegou quatro.
Butter pegou as notas e ao mesmo tempo apertou a mão de
Mondrosch.
— Fale diretamente com o diretor do departamento
pessoal. Está tudo combinado.
Mondrosch prometeu enviar um cheque no valor restante
assim que recebesse o adiantamento. Butter o levou até a
porta, passando por uma sala cheia de gente, e despediu-se
dele com um aceno de mão.
Mondrosch não desperdiçou tempo almoçando. Após duas
horas dentro de bondes e ônibus, ele caminhou rapidamente
pelos terrenos que circundavam a fábrica. No departamento
pessoal, teve a impressão de que todos os outros candidatos
da Butter & Dick tinham se transferido para lá. Jovens em
mangas de camisa pegavam formulários. Mondrosch agarrou
o cotovelo de um funcionário e perguntou como chegar ao
escritório do gerente.
— Não há mais entrevistas hoje — o funcionário declarou.
— O Sr. Butter marcou uma entrevista para mim —
retrucou Mondrosch. — Eu fui selecionado para o cargo de
gerente de departamento.
— Que departamento?
Mondrosch hesitou.
— Bem, gerente de departamento — ele disse. — Eu vou
cuidar do... do...
O funcionário balançou a cabeça.
— A vaga foi preenchida.
— Exatamente! — exclamou Mondrosch. — Eu sou o
gerente. Eu sou Mondrosch, sabe? O novo gerente de
departamento.
O funcionário saiu e voltou com uma ficha.
— Eu já disse. O cargo foi preenchido. Por um tal de Sr.
Mongoose.
— Sou eu! — berrou Mondrosch. — Eu sou o Sr.
Mongoose. Quero dizer, meu nome é Max M. Mondrosch,
mas quando o Sr. Butter telefonou...
O funcionário olhou para Mondrosch com suspeita.
— Eu não quero saber qual é o seu nome ou se você está
mentindo ou não. Mas você não é o Mongoose, nem o
Mondrosch, nem como quer que se chame, porque esse
homem se apresentou para assumir o cargo duas horas atrás.
A tarde já tinha caído quando Mondrosch chegou à cidade
de novo. Foi diretamente ao escritório de Butter & Dick.
Um cartaz estava pregado na porta: "Fomos almoçar".
Ele voltou para o hotel.

Na manhã seguinte, Mondrosch recebeu uma carta


aconselhando que, caso desejasse ser entrevistado, tratasse
de se apresentar antes do meio-dia e procurasse por um tal
Sr. Munch. Ele saiu imediatamente e chegou ao endereço às
nove e meia.
No alto de um enorme lance de escadas, Mondrosch se
aproximou de um caixa revestido de madeira, cujo guichê
gradeado estava quase todo coberto de papelão. Uma
mulher estava sentada atrás do guiché, com um
equipamento telefônico em volta da cabeça e um bloco de
rascunho diante de si. Mondrosch tentou atrair sua atenção,
mas ela não levantava a cabeça. Quando ele já ia embora, ela
deu uma batidinha na grade. O guiché era tão fechado que
ele não conseguia ouvir nada.
— Quero falar com o Sr. Munch! — ele berrou, mostrando
a carta.
Com um gesto, ela o mandou seguir por um corredor
branco. Mondrosch foi parar num escritório cheio de
escrivaninhas, contadores e secretárias. Os empregados o
olharam sem muito interesse e continuaram a fazer contas
ou a atender telefonemas. Aqui e ali, Mondrosch ouvia
fragmentos de conversas.
"Alô? Aqui é da Companhia Baffle, Peças Automáticas
Invencíveis." Ou, "Sim, é Hedge falando, Peças Automáticas
Invencíveis." Ou, "Rundle? Aqui é Gildish, da Invencível.".
Mondrosch repetia para si mesmo, cheio de entusiasmo,
"Alô, aqui é Mondrosch, da Automáticas Invencíveis".
Um homem baixinho de bigode e em mangas de camisa fez
sinal para ele. Mondrosch estava um pouco consternado
com a possibilidade de ser entrevistado num lugar tão à
vista de todos. Ele preferia escritórios fechados onde, se
necessário, o candidato poderia chorar, suplicar ou cair de
joelhos sem muito constrangimento.
Munch lhe ofereceu um charuto. Mondrosch recusou
educadamente, comentando que tinha cigarros. Para provar
que não mentia, puxou um cigarro do bolso.
— Não fuma charutos? Tudo bem. — Munch arregaçou as
mangas da camisa, olhou com seriedade para Mondrosch e
começou:
— Este trabalho requer conhecimento de contabilidade,
correspondência, administração, organização de
encomendas e expedição. O senhor está acostumado com
esse tipo de serviço?
— Muito — Mondrosch afirmou. — Executo essas tarefas
há vários anos.
— Ah — Munch franziu a testa. — Computadores?
Calculadoras? Réguas de cálculo? Tabelas de desconto de
porcentagem? Sabe usá-los?
— Sei, senhor.
— Ah — ele virou e revirou a carta de Mondrosch nas
mãos. — Em outras palavras, você diria que se sente
qualificado para assumir essa função?
— Completamente.
Munch pigarreou e pegou a carta de novo.
— Você declara que seu nome é Max N. Mondrosch.
— M. Mondrosch.
— Certo. Casado, naturalmente.
— Solteiro — Mondrosch respondeu com certa melancolia.
— E claro que espero que um dia haja...
— Uma Sra. Mondrosch, sim. Mas no momento, não há.
Irmãos ou irmãs?
— Uma irmã.
— Só uma irmã? Não tem irmãos?
Mondrosch balançou a cabeça em negativa. Entrelaçou os
dedos das mãos. Munch fumava e olhava fixo para a carta.
Por fim, colocou o charuto no cinzeiro.
— Mondrosch — começou ele. — Infelizmente estamos
procurando alguém com qualificações um pouquinho
diferentes das suas.

Mondrosch foi obrigado a deixar seu quarto de hotel, mas


persuadiu o recepcionista a deixá-lo continuar a receber a
correspondência lá. Para comer, ia a lanchonetes, com a
pasta emhaixo do hraço, sorrindo, acenando como se
estivesse cumprimentando um amigo. Quando passava por
uma mesa com sobras no prato, habilmente surrupiava uma
crosta aqui, um osso ali e, às vezes, o restinho de uma torta.
Colocava tudo em guardanapos de papel e ia para a
rodoviária, onde se sentava na sala de espera e comia
devagar. As noites também eram passadas lá. Para não
chamar a atenção estendendo-se num banco, dormia
sentado. De manhã, barbeava-se no banheiro masculino.
Nas semanas seguintes, teve considerável perda de peso.
Suas roupas já não lhe caíam bem e, por isso, durante as
entrevistas, Mondrosch mantinha o sobretudo. Isso escondia
a frouxidão da calça e do paletó. Ele continuava a preencher
formulários, mas ou as vagas já estavam preenchidas quando
chegava aos escritórios, ou o gerente de pessoal tinha ido
viajar de repente, por um período indefinido, ou sua
experiência não coincidia com o cargo para o qual se
oferecia.
Ele chegou a receber uma carta agradecendo seu interesse.
Essa companhia empregava os métodos científicos mais
modernos para escolher funcionários e lamentava informar-
lhe que já fora decidido que ele não seria muito adequado lá.
Àquela altura, Mondrosch havia desenvolvido a teoria de
que os patrões tendiam a empregar pessoas que de alguma
forma se parecessem com eles. Na entrevista seguinte, ele
observou com cuidado os traços do gerente. Viu que o
homem era pesado e tinha um topete caindo sobre a testa. O
queixo do gerente era meio recuado, os cantos da boca
afundavam e ele tinha o hábito de sacudir os braços
enquanto falava, além de um tique nervoso que o fazia
piscar os olhos sem parar.
"De uma coisa eu sei", Mondrosch disse a si mesmo, "se um
sujeito quer trabalhar aqui, deve ter o mesmo jeito. E se
conseguir ficar piscando, melhor ainda."
Quando chegou sua vez, Mondrosch se levantou, estufou o
corpo dentro do paletó para parecer mais encorpado,
desarrumou o cabelo, pôs o queixo para dentro e deixou os
cantos da boca cair. Ao andar, balançava os braços, piscava e
se movimentava como o gerente.
Vendo Mondrosch se aproximar, o gerente voltou-se para
um de seus assistentes e disse em voz alta:
— Mande aquele homem embora. Não vou atendê-lo. Ele
parece meio imbecil.

Uma nevasca cobriu a cidade e, durante vários dias,


Mondrosch permaneceu na sala de espera da estação. Ele
temia sair na rua e ser soprado pelo vento para dentro de
um monte de neve. Não tinha como ir às lanchonetes. Sua
pele se afrouxou e ficou mais transparente, e suas roupas
tinham um peso insuportável.
Certa manhã, ele viu um anúncio num jornal jogado:
"Procuram-se Doadores de Sangue. Paga-se bem por plasma
urgente".
Mondrosch se aventurou a sair da rodoviária e rumou para o
hospital.
A princípio, temeu ser rejeitado por causa de seu estado.
Mas havia tantos doadores, e eles eram atendidos com tanta
pressa, que ninguém prestava atenção.
"Com certeza isso não tem importância", Mondrosch disse a
si mesmo, enquanto a enfermeira o ajudava a se levantar da
maca. "Vai tudo pro mesmo recipiente, suponho eu.
Fervido, engarrafado, você vai embora e quem vai saber
qual é a diferença?"
Colocando o casaco no vestiário, um velho vagabundo de
rua que parecia mais uma cesta de lixo, tão cobertas de
sujeira estavam suas roupas, piscou para Mondrosch.
— A gente se vê amanhã, hein?
— O quê? — Mondrosch perguntou. — Você vem aqui
todo dia?
— Por que não?
— Como você aguenta? — indagou Mondrosch, que já
começava a ouvir um zumbido nas orelhas.
— Vou te contar o segredo — o vagabundo sussurrou. —
Vitaminas em pílula e bastante água. E vá mudando seu
nome. Eles nunca reconhecerão você. Mas o mais
importante são as vitaminas. Muitas vitaminas.
Mondrosch agradeceu e dali em diante seguiu o conselho.
Sua cabeça doía e girava constantemente, era perturbado
por febres e tonturas súbitas; as vitaminas e a água, porém,
mantinham-no de pé. Com o dinheiro recebido, pôde voltar
a morar no hotel. Ia ao hospital várias vezes por semana e se
perguntava se não seria possível ir com mais frequência.
"Não", decidiu. "Não faz sentido ficar ganancioso."

O inverno durou até abril, com longas saraivadas de granizo


que se acumulavam em volta do chapéu de Mondrosch. Por
sorte, ele não tinha secado completamente, embora suas
pernas estivessem tão finas e instáveis que ele mal conseguia
andar até o banco de sangue. O vento penetrava em seu
peito e o deixava tão inchado de ar frio que só respirava com
dificuldade.
Após uma longa época de ausência, Mondrosch achou uma
carta na caixinha de correio. Ele esfregou os olhos. As
palavras pulavam para fora do papel e não faziam sentido.
Ele enfim conseguiu decifrar o endereço, puxou o casaco ao
redor de si, endireitou o chapéu e saiu do hotel.
O edifício era o mais alto que já vira. Dezenas de corredores
partiam da enorme recepção. Mondrosch deu o nome à
recepcionista. Ela apertou um botão e logo um jovem
apareceu, apresentando-se como Sr. Clegg, do departamento
pessoal.
— Por aqui, senhor. — Ele pegou Mondrosch pelo braço.
— A diretora ficará feliz em entrevistá-lo.
Mondrosch seguia o homem por um corredor com piso de
mosaico, cujo desenho volteava como se fosse um cata-
vento de ladrilhos. Clegg o conduziu por um corredor que
brilhava com inúmeras lâmpadas. Para evitar tropeçar,
Mondrosch mantinha uma mão na parede, o que levou o Sr.
Clegg a julgar que ele estava admirando a construção.
— Tudo à prova de som — Clegg explicou. — O
revestimento elimina o barulho e a perturbação. A
companhia acha que isso torna o ambiente mais propício ao
trabalho.
Enquanto subiam, Clegg descrevia o plano de aposentadoria,
política de férias, seguro, opções de investimentos e bônus.
Mas Mondrosch sentia-se como se estivesse preso num
bloco de gelo e mal conseguia falar. Ele assentia e sorria o
máximo possível. Clegg, porém, parecia decepcionado com
sua aparente falta de entusiasmo. Perdeu o interesse em dar
mais detalhes e, quando alcançaram a porta, disse
simplesmente:
— Entre aí, por favor. — E foi-se.
Mondrosch se viu numa sala de espera que, para sua
surpresa, parecia a sala de estar de uma casa; uma sala
familiar, não por lembrar-lhe sua própria casa, mas, sim,
porque era exatamente como sempre havia sonhado. Ele se
sentou numa poltrona e colocou os pés num pufe. Fechou os
olhos, mas bolas alaranjadas e vermelhas começaram a
explodir atrás de suas pálpebras. Teve a desagradável
sensação de que estava evaporando. Lutou contra ela. Tinha
certeza de que desmaiar não causaria boa impressão.
A porta se abriu. Mondrosch se forçou a levantar. Diante
dele estava a diretora. Era a mulher mais linda que já tinha
visto. Ela tinha o rosto da futura Sra. Mondrosch, sobre
quem ele especulara com Munch; era também o rosto de sua
mãe, sua irmã e até mesmo dos irmãos que nunca existiram.
— Sr. Max Mondrosch? Muito prazer em conhecê-lo, Max.
Mondrosch dirigiu-se a ela. Apaixonou-se
instantaneamente,
e a adorou, o que tornava difícil concentrar-se no que ela
dizia.
— Sente-se, Max. Suponho que tenha visto um pouco de
nossas atividades. Espero que esteja bem-impressionado. A
empresa acha importante ter funcionários satisfeitos. Nós,
por outro lado, exigimos um funcionário com um perfil
específico. Eu gostaria que você respondesse às perguntas
desta folha — ela lhe deu um formulário. — Só levará uns
minutinhos.
Muitas das perguntas, constatou Mondrosch, eram bem
pessoais. Ele havia feito xixi na cama quando era criança —
ou mesmo já adulto? Tinha tido relações sexuais antes de se
casar, ou tido relações homossexuais? Incomodava-se com
odores desagradáveis? Negar-se-ia a tocar pessoas doentes?
Já havia chorado no cinema? Tratava com bondade os
animais?
Na seção intitulada "Atitudes no trabalho", ele leu: Já sentiu
que foi tratado injustamente? Já se esforçou para não
ofender alguém? Gostaria de ficar bastante tempo num
mesmo cargo?
Ele respondeu afirmativamente a essas questões e devolveu
a folha a ela.
— Agora, Max, antes de avaliar seu questionário, eu
gostaria de saber por que você se candidatou.
— Eu me candidatei... Bem, para trabalhar. Quer dizer,
para ter um emprego...
Ela fechou a cara.
— A empresa acha que o motivo pelo qual os funcionários
querem trabalhar aqui é extremamente importante. Eles
estão realmente vestindo a camisa da empresa ou só querem
ganhar a vida? As pessoas precisam obter alguma satisfação
pessoal com o trabalho. Ganhar a vida é o motivo menos
importante, você não acha? E... Você está se sentindo bem?
Mondrosch, cujas juntas pareciam estar se soltando,
segurava o peito para evitar um espasmo. Ele fez que sim
com a cabeça.
— Muito bem. Sim, muito bem. Obrigado.
— Eu ainda não examinei seu questionário — a diretora
continuou. — Mas notei que você respondeu que gostaria
de ficar no mesmo cargo por muito tempo. Considerando
sua personalidade geral, não sei quanto essa resposta é
importante. Mas achamos que os funcionários deveriam
sempre querer melhorar. Deveriam estar sempre um pouco
insatisfeitos. Você compreende o que eu digo, não é?
Ela dobrou o papel.
— Vou avaliar seu teste agora. Os resultados estarão
disponíveis assim que você chegar à recepção.
A recepcionista esperava por Mondrosch com um envelope.
Ele agradeceu, rasgou a ponta e viu a ficha cuidadosamente
impressa:
"Lamentamos não poder lhe oferecer emprego no momento.
Acreditamos que conseguirá uma colocação em outro lugar,
onde suas qualificações sejam mais adequadas".

No porto, em frente ao rio, um cargueiro tinha chegado


antes do horário e o superintendente do depósito precisou
de um grupo de estivadores de repente. Ele viu um grupo de
vagabundos parados ao abrigo de um barracão e teve a ideia
de chamá-los e economizar uma caminhada até a sala de
contratação. Vestiu seu casaco de lã, bateu as cinzas do
cachimbo e se dirigiu ao barracão.
— Alguém aí quer descarregar uns caixotes? Dinheiro vivo.
Sem recibo.
Vários dos vagabundos se apresentaram.
— Alguém mais?
Ao sair levando o grupo pelas docas, achou que ouviu mais
alguém gritar:
— Eu quero!
Ele se virou, mas não viu mais ninguém, só uma coisa que
parecia um embrulho de trapos se mexendo na calçada.
— Mais alguém? — perguntou de novo. Ouviu um sussurro
débil e incerto:
— Max Mon...
O superintendente ainda esperou um pouco, deu de ombros
e continuou a caminhar. Uma brisa soprou nas docas,
levando poeira, papel e restos esfarrapados para dentro do
rio.
As gaivotas mergulharam para pegar as sobras.

Lloyd Alexander é o autor da obra em cinco volumes intitulada As


Aventuras de Prydain, considerada um clássico da fantasia.
O segundo volume da série, O Caldeirão Negro, recebeu o
prêmio Newbery Honor Book, e o volume final, O Rei
Supremo, recebeu a Medalha Newbery. Entre seus outros
vários livros, incluem-se os três volumes da trilogia
Westmark: Westmark (vencedor do prêmio American
Book), The Kestrel (finalista do prêmio National Book) e
The Beggar Queen, todos disponíveis pelo selo Firebird.
Lloyd Alexander vive com a esposa, Janine, e seus gatos, em
Drexel Hill, na Pensilvânia, perto de onde ele cresceu.

Nota do Autor:
Este conto sobre Max Mondrosch é diferente de tudo que já
escrevi antes ou depois, e é o mais sombrio. Um pesadelo
cômico? Uma comédia em forma de pesadelo? De qualquer
modo, é fantasia. Max não é um típico herói da fantasia. No
entanto, aqui está ele: eternamente ansioso, resoluto, dando
o melhor de si. O heroísmo do dia-a-dia.
Pintores, assim como escritores, sempre tiveram um
impacto na minha ecologia emocional, principalmente Goya
e suas gravuras. Reconheço sombras dessas imagens
perturbadoras no meu trabalho atual. Contudo, há algo de
bom nos pesadelos: acordamos deles, e quem sabe mais
fortes do que quando fomos dormir.
Meredith Ann Pierce
A Queda de Ys

A RAINHA CELTA DA B RETANHA TEVE DOIS FILHOS E ,


QUANDO CHEGOU A HORA DE ESCOLHER SEU
SUCESSOR , ELA LHES DEU UMA CHARADA PARA
RESOLVER :
Ora calmo e clemente,
Meu ritmo muda
Quando seu barco boia alto,
Quando sua esfera afunda,
Deixo homens flutuar
Em meu corpo descansam
Roubarei o que eles têm,
Mas suprirei sua mesa
Eu sorrio; me enfureço;
Ou então os recompenso,
Ora frio e cruel...
Com as fases da lua.
Eu me elevo rumo ao céu.
Também baixo meu véu.
Ou os arrasto a seu fim:
Ou se afogam em mim.
Para jamais devolver...
A cada dia que vier.
Aos homens faço mal...
Ao meu capricho pessoal.
Quem ousar desprezar
Receberá a ruína
Tão profundo e intratável,
Infiel, porém constante.
A minha proposta,
Como resposta.
Tolo nenhum vai me domar.
Meu nome deves desvendar.
Gralon, o filho mais moço da rainha, respondeu:
— É o coração de uma mulher.
A mãe franziu a testa.
— Você tem idéias esquisitas a respeito das mulheres, meu
filho — disse ela. — Seu irmão me sucederá no trono. A
resposta dele foi "o Mar".
Ao ouvir isso, Gralon ficou furioso e irrompeu para fora da
sala, maldizendo a rainha e todas as mulheres. Liderando seus
seguidores até as barcas, ele atravessou o canal e partiu para a
Britânia, para lá se proclamar rei. Gralon não tinha esposa,
mas tinha uma jovem filha, Myramond, a quem idolatrava.
Algumas vezes, durante a travessia, as águas do canal ficaram
tão agitadas que ele temeu não apenas perdê-la, como todos os
seus barcos e também seus seguidores. Mas por fim o Mar os
desovou e eles chegaram sãos e salvos a terra firme.
— Você tem o coração traiçoeiro de uma mulher, Mar
sombrio — gritou o rei Gralon, de pé na costa litorânea,
encharcado e exaurido. — Mas revolte-se quanto quiser, não
serei governado por você ou por mulher alguma. Vou erguer
uma cidade bem no seu seio. Então veremos quem é o rei da
Britânia.
E, assim, Gralon construiu sua capital sobre uma península
rochosa que na maré baixa se ligava à costa, mas em outros
momentos era cercada pelas ondas. Deu à sua ilha o nome de
Ys e declarou que ali deveria ser criada a cidade mais bela que
já houve, cheia de torres e sinos. Ordenou que uma grande
muralha fosse erguida em torno da ilha para refrear as ferozes
e agitadas ondas do Mar e sua maré impetuosa. Em um ano,
tudo tinha acontecido como o rei decretara — exceto a
muralha para conter o Mar. Repetidamente, tempestades
estouravam e a arrebentação fazia o muro se esfacelar,
inundando os domínios mais baixos de Ys. Então, em uma
manhã de maré crescente, um barco com uma lua na proa
apareceu, transportando uma mulher alta toda vestida de
branco.
— Eu sou a superiora de uma ordem de sacerdotisas — disse
ela — que habitam um lugar longínquo em uma ilha distante
e nebulosa, na linha do horizonte, rejeitando a companhia dos
homens e dedicando nossas vidas ao nosso Mestre, o Mar. Nós
ouvimos falar da resposta que você deu à charada de sua mãe.
Nosso Mestre não ficou nem um pouco contente por você ter
confundido a fragilidade meramente mortal com o abismo de
suas profundezas. Mas Ele está disposto a perdoá-lo, e até
mesmo a permitir que você tenha sua muralha, caso consagre
sua filha ao nosso culto.
— Entregar-lhes Myramond? — o rei Gralon bradou. —
Nunca! Minha filha é jovem demais.
— Daqui a doze anos, então — concluiu a sacerdotisa coberta
de branco. — Quando ela atingir a maioridade.
O rei fez que não com a cabeça.
— Quando minha filha atingir a maioridade, ela deverá
escolher seu próprio caminho. Não vou falar em nome dela.
Então a sacerdotisa sorriu, como se o estivesse testando.
— Muito bem — disse ela. — Nosso Mestre ficará satisfeito
com isso: jure que, quando Myramond chegar à maioridade,
você permitirá que ela venha a nós se ela assim desejar.
— Só isso? — riu-se o rei. — Se eu fizer esse juramento,
minha muralha vai ficar de pé? Acordo fechado, então! — E a
sacerdotisa vestida de branco partiu. Observando-a enquanto
o barco se afastava, Gralon riu outra vez, secretamente, pois
pretendia enganar tanto a sacerdotisa como o Mar.
Os acontecimentos se desenrolaram exatamente como a
sacerdotisa prometera. Os operários do rei finalizaram a
muralha, que a partir de então permaneceu firme mesmo
contra as marés mais violentas. A cidade de Ys, cercada por
sua muralha, prosperou e cresceu. Passaram-se anos, e
Myramond, apesar da adoração do pai, tornou-se uma donzela
tão modesta quanto generosa, risonha e bondosa, de gostos
simples, conduta sólida e mente centrada.
Ela pouco interesse tinha por coisas mundanas; sua tendência
era pelas sobrenaturais. Ela via imagens na espuma do mar e
escutava sussurros no vento, vindos de lugares misteriosos
muito além do nosso mundo. Seu passatempo favorito era
andar pela muralha, contemplando o Mar sereno, cinzento,
em direção à beirada do horizonte, onde flutuava a ilha da
sacerdotisa de branco, quase invisível. Embora o pai a tivesse
proibido rigorosamente até de pensar nisso, Myramond
decidiu que faria daquela ilha o seu lar assim que atingisse a
maioridade.
Ela nunca falava de sua decisão, mas seu pai a percebia,
observando, da torre mais alta de Ys, num silêncio ressentido,
sua filha andando pela muralha. Apesar de sua promessa à
sacerdotisa e ao Mar, ele estava determinado a nunca permitir
que Myramond o deixasse. Quando dez anos se passaram e
Myramond fez quatorze anos, o rei Gralon começou a tentar a
filha, procurando direcionar seu coração para as coisas
mundanas. Banquetes suntuosos ele pôs diante dela,
amontoando sua mesa de iguarias. Mas até dos pratos mais
saborosos a filha do rei comia com moderação, preferindo um
cardápio mais simples.
O pai não se deixou abater e ordenou que se fizessem belas
túnicas, mantos bordados e broches de ouro para a filha.
Porém Myramond rejeitou todos os ornamentos e continuou
a usar os trajes simples que sempre vestira. Dissimulando a
frustração, o rei arrumou-lhe divertimentos luxuosos como
acrobatas e malabaristas, mas a filha apenas assistia a eles
educadamente e se retirava assim que possível, pois tais
passatempos não a animavam nem um pouco. Seu coração já
estava na Ilha Nebulosa.
Depois de um ano sem obter êxito, o rei Gralon começou a se
desesperar. Sabia que a filha partiria com a sacerdotisa branca
do Mar quando ela retornasse, a não ser que arquitetasse uma
armadilha ainda mais poderosa. Então, um a um,
secretamente, ele chamou os jovens mais belos da cidade e
prometeu ricas recompensas a quem conseguisse conquistar o
coração de sua filha. Um por um, ele os mandou até ela, mas
tudo em vão. A mística filha do rei não seria influenciada. No
fim, nada pôde conter a ira do rei ao ver os jovens, um após o
outro, voltando a ele e confessando terem fracassado.
Por fim, a véspera do aniversário de dezesseis anos de
Myramond chegou. A escuridão desceu. A lua cheia, suspensa
em um céu limpo, escuro e sem nuvens, lançou um brilho
prateado sobre a maré vindoura. Myramond andou pelo
muro, contemplando a ilha longínqua, nebulosa. No dia
seguinte, ela sabia, o barco da sacerdotisa chegaria e ela
comunicaria sua decisão de deixar o pai e Ys. Não havia nem
um sopro de brisa. Os sinos da cidade anunciavam a hora. A
seus pés, estranhos redemoinhos espumavam perto da
muralha. Um murmúrio extraordinário e delicado chegou a
seus ouvidos.
— Myramond! Myramond... — as vozes lúgubres chamavam.
Olhando para o local em que os degraus da muralha
desapareciam sob as ondas, a filha do rei notou corpos
destruídos de homens jovens rodopiando na espuma. Eles
levantaram os rostos pálidos e olharam para ela.
— Vocês estão mortos! — ofegou Myramond.
Os cadáveres assentiram.
— Somos os pretendentes que você rejeitou. Seu pai mandou
os servos nos matar e jogar nossos corpos às ondas.
Horrorizada, Myramond recuou.
— Por que meu pai faria uma coisa dessas?
— Por termos fracassado em conquistar seu coração —
gemeram eles. — Ele esperava que um amante a mantivesse
aqui. Seu desprezo nos levou à morte, Myramond.
— Tenham piedade — pediu a filha do rei. — Eu não sabia
das intenções perversas do meu pai!
— Não tema — os espíritos pálidos responderam. — Viemos
aqui para alertá-la, não para lhe fazer mal. Seu pai vai tentar
mantê-la em Ys de todas as formas que puder. Você tem de
fugir da cidade imediatamente, esta noite.
— Mas amanhã — Myramond começou — a sacerdotisa
vestida de branco vai chegar...
— Amanhã será tarde demais! — Os corpos cinzentos gi-
raram e bateram contra a muralha, murmurando: — Quando
a sacerdotisa chegar, seu pai pretende assassiná-la, como fez
conosco. Ele não vai deixar você ir embora.
— Mas eu serei maior de idade — protestou Myramond —,
livre para escolher meu próprio caminho. Meu pai jurou...
— Seu pai se considera rei — os mortos sob as ondas
retrucaram —, acima de qualquer juramento. Escolha agora.
Você já É maior de idade, pois já passa de meia-noite. Já é
amanhã, Myramond. Fuja de Ys enquanto pode!
A filha do rei olhou, desesperançada, para as águas agitadas.
— Mas a maré está alta. Neste momento, Ys é uma ilha e só
(içará livre das ondas ao amanhecer. Não tenho barco;
também não sei nadar.
— Desça — seus pretendentes fantasmagóricos responderam.
— Nós abriremos o seu caminho.
Então os espíritos começaram a fazer a maré baixar,
agrupando-se para empurrá-la em grandes dobras cinzentas,
como um vasto e estendido manto bordado de prata onde o
luar resplandecia. Eles empurravam o Mar mais e mais para
trás, deixando exposto o fundo úmido e sujo, coberto de
peixes agitando-se e algas encrespadas. Até a linha do
horizonte o Mar recuou, tanto que a distante e nebulosa ilha
da sacerdotisa de súbito ergueu-se tão elevada e seca quanto
Ys estava agora.
— Apresse-se! — os mortos esfarrapados bradaram.
Segurando as saias, Myramond desceu correndo os degraus da
muralha. A Ilha Nebulosa ficava a onze quilômetros de
distância. Atrás dela, o Mar escuro levantou-se, cintilante. Os
pés da filha do rei correram pela areia úmida e salgada. Lá de
cima, na torre mais alta de Ys, sem conseguir dormir, o rei
Gralon observou atônito o Mar sendo arrastado até a linha do
horizonte e encolhido como um grande gato cinzento pronto
para saltar. Uma figura solitária chamou sua atenção, o manto
voando, o cabelo ondeando, prateado pela lua. Mesmo de
longe o rei reconhecia a própria filha, que já estava a meio
caminho da Ilha Nebulosa.
— Myramond! — ele gritou. Em seguida: — Meu cavalo!
Meu cavalo!
Saindo da torre, Gralon correu até o estábulo e arrebatou seu
cavalo de batalha das mãos de cavalariços confusos e
sonolentos. Ele cavalgou pelas ruas silenciosas de Ys.
Desprotegido, agora que já era meia-noite, o portão que dava
para o mar se erguia diante dele. Num instante o rei havia
arrancado os ferrolhos, escancarado o portal e galopava pela
planície molhada.
— Garota desleal — gritou ele, inclinando-se para agarrar
Myramond pelo braço e trazê-la para a sela com ele.
— Sou uma mulher agora — bradou a filha, lutando com
fúria — e tenho de escolher meu próprio caminho!
— Sim, você tem coração de mulher: inteiramente traiçoeiro
— o pai urrou, dando meia-volta e galopando de volta pelo
caminho pelo qual viera, levando Myramond para longe da
Ilha Nebulosa.
Com um lamento, os mortos que haviam segurado o mar
libertaram-no de suas mãos. A imensa colina de água se
ergueu e balançou, depois deixou a linha do horizonte e
correu atrás do rei. Primeiro ondeou em uma espuma, à altura
dos cascos do cavalo, depois batendo nos joelhos, depois na
barriga... Sobrecarregado pelo peso duplo, o aterrorizado
cavalo do rei arfou e se debateu. Myramond viu o pavor nos
olhos do pai quando ele olhou para trás, para a curva
imponente de salmoura que se aproximava, cada vez mais
perto. Relanceou o olhar da praia para o empenhado cavalo e
o Mar ascendente. Por fim, fitou a própria filha contorcendo-
se, tentando se livrar de suas garras.
— Deixe-me ir — ela berrou. — Pai, deixe-me ir!
— Que o Mar a leve, então, se isso me salvar — ele gritou de
súbito e a jogou com força para longe dele, atirando-a à maré
turbulenta.
O Mar envolveu as vestes pesadas de Myramond, puxando-a
para baixo. Ela viu o cavalo do pai, seu fardo de súbito mais
leve, correr em direção à costa com energia renovada no
exato momento em que o Mar gelado se fechava sobre ela.
Vultos frios a abraçaram, fizeram-na boiar, agarraram-na com
força, libertando-a da terrível correnteza. Rostos silenciosos e
pálidos olhavam para ela. Inúmeros braços gelados a
ergueram, levantaram-na na direção da superfície ondulante,
da noite estrelada, do ar enluarado — e momentos depois ela
se sentiu forte, deixando que mãos a segurassem e a tirassem,
sufocada, da espuma. Um pedaço de madeira seca, firme e
sólida balançava delicadamente embaixo dela, levemente
perturbada pelas águas ao redor. Encharcada, sem fôlego e
trêmula, Myramond ergueu os olhos e viu os olhos cinzentos
e tranquilos da sacerdotisa vestida de branco, parada acima
dela.
— Venha em paz, criança — a outra declarou. — Você está a
salvo.
Myramond se levantou e segurou-se na amurada da
embarcação com a lua na proa, que ficou parada como se
estivesse ancorada em meio à inundação vertiginosa. Nuvens
de neblina cercaram a embarcação. Foram ficando mais
densas enquanto ela retomava o fôlego. Bem longe dali, ela
observava o cavalo exausto do pai ganhando a praia distante.
— Tolo! — a sacerdotisa alta gritou para ele, num tom de voz
que se propagou acima do barulho das águas. — Você pensou
que ia enganar o Mar? Você não cumpriu sua parte no acordo,
portanto seu reino está perdido. Olhe para a sua Ys!
Myramond viu o pai voltar-se e viu também, horrorizada, a
grande onda se formando, rolando em direção à cidade, muito
mais alta que qualquer muralha, mais alta até que a maior
torre de Ys.
— Não! — berrou a filha do rei, agarrando o braço da
sacerdotisa. — Deixe que eu pague o preço. O povo de meu
pai não participou dessa promessa quebrada. Eles são
inocentes!
— Assim como você — a sacerdotisa respondeu. — Fique em
paz, criança, e ouça com atenção.
Myramond ouviu os muitos sinos de Ys badalando, badalando
loucamente, e acima deles as vozes fantasmagóricas de seus
pretendentes bradando:
— Acordem! Despertem e levantem-se! Seu rei fugiu. O Mar
voltou. Agora vocês também devem fugir para salvar suas
vidas...
Através da neblina cada vez mais densa, como se fosse um
sonho, a filha do rei viu o populacho afluindo dos portões da
cidade, abandonando Ys. Mulheres, crianças e homens,
cortesãos e plebeus lado a lado, correndo para o continente,
lutando para escalar os aterros íngremes e rochosos,
procurando terrenos mais altos. Atrás deles, a onda
monstruosa se rompeu; os sinos se calaram e as vozes
fantasmagóricas pararam de bradar enquanto o Mar varria a
bela cidade de Ys e a transformava em cascalho, que sumiu
sob a maré. Na costa, o povo de Gralon ficou com pouco mais
que as roupas do corpo. O cavalo exausto do rei caiu,
morrendo na areia, enquanto seu cavaleiro ajoelhava-se ao
lado, derramando lágrimas nas mãos.
— Esteja avisado, filho da rainha — bradou a sacerdotisa. —
Seu reino não mais existe. Nosso Mestre o poupou esta noite
por causa de sua filha, mas, se você um dia voltar a transgredir
o domínio do Mar, pagará por isso com sua vida. Myramond
agora entra ao serviço de nosso Mestre por vontade própria.
Seria bom se você tivesse tido a dignidade de deixá-la partir.
Não foi o coração de uma mulher que você nomeou ao
responder à charada de sua mãe, e, sim, o seu: frio, desleal e
arrogante. Adeus, Gralon, uma vez e nunca mais rei de Ys.
O barco da sacerdotisa volveu em direção à Ilha Nebulosa,
levando a mulher vestida de branco que o guiava e a filha do
rei. Com o tempo, o povo de Ys construiu um novo reino na
costa. Mas não ergueram muralhas para desafiar o Mar, e o
próprio Gralon nunca mais velejou por aquelas ondas. As
almas dos pretendentes assassinados de Myramond ainda
guardam a costa marítima da Britânia, fazendo soar os sinos
fantasmas de Ys sempre que temporais ou perigos ameaçam o
local. Porém a Ilha Nebulosa, na linha do horizonte,
desapareceu da vista c do conhecimento dos mortais, para
todo o sempre, no exato momento da queda de Ys.

Meredith Ann Pierce é autora de diversos romances de


fantasia, todos eles premiados: a trilogia Darkangel, a trilogia
Firebringer (Firebird), The Woman Who Loved Reindeer e
Treasure at the Heart of the Tanglewood (Viking e Firebird).
Seu livro mais recente é uma coletânea de contos, Waters
Luminous and Deep: Shorter Fictions (Viking).
Ela fez tanto a graduação como o mestrado na Universidade
da Flórida. Também se tornou mestra em biblioteconomia
pela Universidade Estadual da Flórida, e passa os dias
trabalhando como bibliotecária. À noite, escreve.
Nas horas de lazer, ela compõe canções e toca harpa. Mora em
meio aos bosques ao sul de Micanopy, na Flórida, em uma
casa que utiliza energia solar.
Visite o site da autora em: www.moonandunicorn.com.

Nota da Autora
Para mim, o momento seminal na fantasmagórica mitologia
celta da queda de Ys é quando o rei Gralon, fugindo da
destruição da cidade, joga a filha na água para que ela se
afogue. Ao fazê-lo, ele se salva, pois o peso carregado por seu
cavalo é aliviado, e ele consegue escapar das águas agitadas
que lhe tomaram o reino e o levaram à ruína.
Nas várias versões que li dessa memorável lenda bretã —
Margaret Hodges reconta uma muito boa em The Other
World: Myths of the Celts —, Gralon é sempre caracterizado
como um herói, uma figura trágica amaldiçoada pelo destino,
que faz um sacrifício nobre.
Sempre nos pedem para acreditar que a motivação dele para o
assassinato é que, no exato instante em que seu cavalo de
batalha, montado por duas pessoas, está prestes a ser
derrubado, ele, como que por milagre, intui que sua amada
filha na verdade é um monstro desumano, um ser
sobrenatural responsável pela inundação e pela morte de
diversas pessoas da cidade. A queda de Ys seria culpa dela.
Nunca engoli essa história. Um homem mata a filha e depois
alega que ela merecia. Que era nada mais nada menos que um
demônio. Todas as evidências de seus supostos crimes haviam,
obviamente, sido destruídas com a cidade. Foi mera
coincidência o fato de a morte dela ter resultado na
sobrevivência do pai. Conveniente demais para o meu gosto.
Portanto, comecei a revirar a história na minha cabeça,
perguntando-me: e se a versão de Gralon não tivesse sido da
forma como aconteceu? E se seu álibi egoísta não tivesse sido
aceito? E se forças sobrenaturais realmente tivessem agido,
mas a serviço da justiça, da inocência e da verdade? E se tudo
tivesse acontecido de outra forma?
Sim, eu acho que as almas de Ys ainda assombram o litoral da
Britânia e os sinos fantasmas ainda tocam, mas eles contam
uma história bem diferente daquela que nos foi relatada a
respeito do que aconteceu ali há muitos anos e do que causou
a queda de Ys.
Michael Cadnum
Medusa

A perspicaz Atena andava entre nós naqueles dias.


Do litoral ao topo das montanhas, quase nada lhe passava
despercebido. Ela era rápida em identificar alguém que
estivesse agir de forma insensata, um jovem andando ao
largo da borda de um poço — exibindo-se para uma donzela
— ou uma jovem senhorita flertando com um bandido de
sorriso malicioso que acabara de chegar de Samos em um
navio que transportava vinhos.
Deusa da sabedoria, Atena era a sombra alada que roçava os
tornozelos do sujeito para que ele caísse dentro do poço,
onde seus berros ecoavam até que a água fria o afogasse. Ela
era a figura da coruja cantando incentivos voluptuosos para
a filha do pastor, deixando-a, à medida que o tempo passava,
grávida e amargamente ajuizada.
Atena era uma bela e pequena ave notívaga quando batia as
asas, fugindo às bocarras das raposas e dos cães de caça, por
demais segura de si para temer os dentes deles. Sob a
aparência de mulher, a deusa era linda, com um riso que
soava como o vento quente nas oliveiras, seus passos uma
música delicada em meio às pedrinhas brancas.
Todas as mulheres mortais aprenderam a sair rápido de seu
caminho quando a filha de Zeus começava a flertar com um
semideus ou um humano, passando os dedos por seus
cabelos brilhosos como o céu, seu riso fazendo com que
papoulas vermelhas florescessem nos campos.
Eu era filha de um construtor naval e tinha os cabelos
dourados pelo sol. Passei a mocidade segurando um fio de
prumo, passando plainas de alisar madeira ao meu pai,
ajudando meus irmãos a pregar tábuas para fazer a estrutura
dos navios, amando meu pai e meus irmãos como um barco
ama o mar.
Cresci aprendendo o nome dos ventos, minha estatura
aumentando com os verões. Minha sombra na areia passou
dos contornos de menina aos de mulher. O vento corria
pelos meus cachos, a brisa acariciava meu manto de linho de
uma forma que realçava o desenho do meu corpo ainda em
formação. Eu corria às margens da arrebentação,
perseguindo meus irmãos e rindo com eles sob a maresia
salina e azeda.
Belos agricultores me cumprimentavam, vaqueiros me
ofereciam xícaras de leite espumante e o rico viticultor
cantava para mim.
Eu era amada.

Um dia, ao tirar grãos de areia de meus pés brancos, a maré


começou a subir. O mar rodeou meus tornozelos, marulhou
até meus joelhos, a salmoura chiante a rir:
— Medusa, bela Medusa, mais encantadora e alegre de todas
as donzelas mortais, ouça-me.
Minha respiração ficou suspensa, e eu dei um passo para
trás. Mas não podia escapar para longe, seguida pela
gargalhada borbulhante da espuma, que zombava de mim a
cada passo. Fazia cócegas gostosas a espuma que espirrava.
Quem era eu para fugir?
E como poderia rejeitar a figura coberta de sal de Netuno
que foi ao meu quarto naquela noite?
Musculoso, ancião e eternamente jovem, Netuno, o próprio
deus dos mares, murmurou ao meu ouvido seus votos de
fidelidade. Disse que acreditava estar apaixonado, e acho
que estava mesmo. Meu quarto se iluminou com o júbilo
dos mares.
Ouvi as asas dela quando ainda estavam distantes.
Reconheci a vibração de sua busca, circulando enquanto
espiava os passos molhados dele em meio à grama das dunas,
suas penas cortando a noite.
A cortina do meu quarto flutuou e se abriu, atirada para o
lado por um par de asas de coruja.
Eu soube quem era de imediato — a plumagem sedosa,
aqueles olhos acinzentados de ave de rapina, vendo o que
acontecia no exato momento em que Netuno me segurava
em seus braços, o deus-oceano sussurrando meu nome como
o sussurro das ondas.
Um berro de coruja interrompeu a calmaria, seu grito uma
maldição.

Meus cabelos se emaranharam, mechas procurando umas às


outras, camadas de cachos se tornando mais espessas,
enrolando-se. Não consegui emitir som algum, de tão
aturdida. Espalhados pelo travesseiro, meus cabelos eram
uma grinalda de serpentes, cada réptil faminto enraizado em
meu crânio.
Horrorizado, Netuno fugiu de mim, seu perfume de mar
esvanecendo-se nas trevas. A voz de Atena, fria como a de
qualquer mulher mortal traída, sussurrou:
— A partir desta noite, Medusa, todo homem que olhar
para você se transformará em pedra.
Todo amante, pensei que ela queria dizer, sem nem sonhar
com o fardo da maldição de uma deusa.
Ao amanhecer, aterrorizada por minha própria sombra
movediça, as serpentes dando botes, lutando umas com as
outras, eu gritei, chamando por meu pai. Ele chamou meu
nome em resposta, interrompido enquanto amarrava seu
avental de construtor naval.
Ficou boquiaberto de tanto espanto.
E congelou, do jeito que estava, o brilho da manhã
refletindo-se nos braços de mármore de seu abraço paternal.
- Ninguém chegue perto, eu lhes suplico! — bradei para os
meus irmãos.
Eles avançaram correndo, incitados pelo meu grito, e de
repente também passaram a projetar sombras imóveis, seus
semblantes antes vivazes para sempre marcados na pedra
BRANCA.

Escondi-me entre as dunas de areia e os arbustos, meu


diadema de serpentes dardejando, ancorado à minha cabeça,
acollando o ar diante de meus olhos. Eu não comia. Dormia
em meio às raízes das árvores e bebia das águas imundas dos
riachos. Quando minhas sandálias ficaram gastas, joguei-as
fora e deixei as solas dos meus pés serem rasgadas pelos
espinhos. Eu gritava para advertir pastores que vagavam e
assobiava para assustar caçadores. Durante a primavera e o
outono, não senti nenhum toque humano.
A história é contada até onde o mar redondo acaba —
narrando como até mesmo aquela divindade que habita o
céu, Atena, desgostou-se ao ver o produto de sua maldição.
O remorso ou a repugnância cresceram dentro dela, até que
um dia encontrou um herói.
Ela acariciou o braço dele e o seduziu, fazendo-o ganhar
coragem. O destemido Perseu, de espada afiada e riso fácil,
navegou à minha procura, a fim de me decapitar.
Ouvi o povo do vilarejo murmurando essas notícias na
beirada do poço, os vaqueiros repetindo os boatos. Escondi-
me entre as antigas oliveiras e me infiltrei pelos caminhos
do vilarejo, em qualquer lugar onde pudesse me desviar do
friso de homens de pedra, da minha família e dos eventuais
viajantes enraizados no solo, permanentes e perdidos.
Precisava de um plano.
Os solitários têm meses para estudar a natureza dos deuses e
a natureza da falsa sabedoria. Ouvi Perseu cantando, a
quilômetros de distância, canções de amor sobre Atena.
Tinha uma voz encantadora. Dava passos largos no bosque,
carregando seu escudo espelhado, adornado pela
autoconfiança divinamente inspirada e rodeado por um par
de ousadas asas de coruja prateadas como a lua.
Eu já sabia de antemão, pelas conversas dos pastores, que ele
havia polido o escudo para poder ver meu reflexo sem ser
afetado, e que Atena guiaria seu braço murmurando no
ouvido dele, apaixonada pelas canções sobre sua beleza
eterna.
Ele sorriu quando me viu em seu escudo.
Falou meu nome — ele estava tão fascinado pela própria
voz.
— Desejo-lhe um bom dia — acrescentou ele, numa
formalidade fingida, procurando o punho da espada.
Eu nada disse, guardando as palavras para a oração que
havia criado durante meu longo silêncio.
Homem de pés firmes, que nunca tinha questionado o
próprio destino, ele piscava enquanto mantinha meu reflexo
no escudo. Pegou a espada. A sombra da lâmina se ergueu e
ele a segurou no alto, enquanto a coruja lhe sussurrava
palavras de incentivo.
A espada murmurou ao cortar o ar.
Quando as pessoas falam de mim, dizem que minha cabeça foi
cortada. Elas estudam estátuas e pinturas da minha morte, a
cabeça decepada erguida, os olhos arregalados enquanto
meu poder de transformar os homens perde a força.
Ninguém sabe do segredo. De como um par de asas velozes
desceu, sussurrando elogios ao espadachim enquanto ele
brandia a espada. A coruja luminosa se inclinou, voando
cada vez mais perto dele, o vento provocado por suas asas
despertando minha coroa de serpentes.
Uma cobra fica faminta de um jeito diferente de qualquer
ou Ira criatura. As noites frias gelam o réptil, esfomeado,
mudo e sem nome, e o sol quente o escalda. Com a sombra
de uma presa viva, afinal, pelo menos um par de olhos
répteis se iluminou.
Uma cobra faminta arrebatou a coruja. A serpente
esfomeada A ENGOLIU, engolfando a ave noturna e
confinando em seu ventre as asas que ainda se debatiam.

A costa está branca e agita-se com os ventos das dunas.


O mar bate nas pedras pontudas ao seu redor. Os séculos
passam e a rocha mais afiada é suavizada, acariciada pela
língua das ondas.
Deixe-me viver, foi a oração que fiz, antes de morrer, a
Atena, presa nas trevas musculosas de uma serpente.
Deixe-me viver como mereço, orei, a espada golpeando e
rompendo artérias e ossos, minha visão enfraquecida
voltada para o alto.
E eu a deixarei partir.
A deusa lutou, as garras afiadas, as asas espremidas, agindo
— Inutilmente. E naquele momento ela foi verdadeiramente
sábia.
O vento do norte é frio, e o verão passa azul e vazio de
canções. Perseu não é nada, um herói esculpido, um sopro
de ar.
Atena, em seu desespero, fez um juramento.
E mantém sua palavra.
Agora sou pedra, na eterna companhia de meu pai e meus
irmãos. Toda vez que você caminha pelos seixos cinzentos e
coloridos da praia, você nos ouve, rindo com o mar, que não
morre jamais.
Michael Cadnum é autor de mais de duas dúzias de livros,
entre eles, In a Dark Wood e Forbidden Forest. Seu
romance sobre as Cruzadas, The Book of the Lion, foi
finalista do prêmio National Book. O novo romance de
Cadnum, Daughter of the Wind, cujo tema são os vikings, e
o romance sobre Sir Francis Drake, Ship of Fire, foram
publicados há pouco tempo. Atualmente, está escrevendo
uma série de romances baseados em mitos gregos e
romanos.

Nota do Autor:
Quando garoto, perto do rio Santa Ana, no sul da Califórnia,
e u costumava passar por uma estranha formação rochosa —
uma ribanceira de arenito que parecia um elefante lutando
para escapar da beira do penhasco. Sabia que não era um
animal de verdade, mas, à medida que as chuvas de inverno
iam e vinham com os anos, o formato de elefante se atenuou
— modificando-se e escapando, por fim. Alguma parte de
mim ficou atraída pela visão daquele ser vivo paralisado na
pedra — completamente transformado em xisto vivo —,
enquanto ele desaparecia aos poucos.
Muitas vezes, somos pouco mais que pedras — criaturas de
hábitos empedrados, impassíveis e sem coração. Porém de
vez em quando algo maravilhoso — um poema ou uma
canção, um sorriso ou o cumprimento de alguém que passa
por nós
— nos toca, e mais uma vez escapamos para a vida. Por que
não dar tal esperança à Medusa, um ser vivo condenado a
permanecer eternamente sem amor? Na minha versão desta
história mitológica, tive de lembrar a mim mesmo que
talvez Medusa não tivesse sido sempre uma criatura terrível
e que mesmo um monstro pode arrebatar a esperança de
uma deusa tão sábia e com tamanha crença na vida como a
Atena de olhos cinzentos.

Graham Pratt (versos), Emma Buli (adaptação) & Charles


Vess (ilustrações)

A Raposa Negra

(Graham Pratt, balada tradicional)

Quando saímos a caçar


Na primavera, ao amanhecer,
O correr dos cães e dos cavalos
Fez vales e colinas estremecer.
Mas para nosso infortúnio
Nenhuma raposa apareceu.
E os caçadores praguejaram
Mas raposa alguma se moveu.
Falou então o caçador-mestre,
Seguindo à frente dos cachorros,
"Já cavalgamos há três horas
E não há raposas nestes morros."
"Mas há força dentro de mim
E eu vou fazer minha caçada,
Se o próprio Diabo aparecesse
Eu o seguiria em disparada!"
E então surgiu, como num raio
Uma raposa o desafiando.
Pelo da cor da noite escura,
Olhos feito carvões queimando.
Eles a seguiram sobre o vale,
Eles a seguiram sobre o campo,
Seguiram até a margem do rio
Mas ela não perdia o encanto.
Ela pulou dentro do rio
E nadou até o lado oposto.
E riu tão alto que a floresta tremeu.
Aos cavaleiros bradou com gosto:
Cavalguem, belos caçadores!
Quando querem que eu volte a estes lados?
Ah, nunca mais desejarão
Caçar raposas pelos prados.
Na hora da necessidade,
Chamem meu nome e eu virei,
E o melhor vocês terão
Esporte e caça eu lhes darei.
Os homens olharam, perplexos,
E os cães recuaram apavorados,
Pois a raposa era o próprio Diabo
Na outra margem transformado.
E homens e cães e cavalos
Voaram de volta ao seu lugar,
Bem atrás deles uma raposa negra
Corria, rindo, sem parar.
E MMA B ULL escreveu os romances War for the Oaks,
Bone Dance, Finder e mais alguns outros. Sua obra
publicada mais recentemente foi "Joshua Tree", em The
Green Man: Tales from the Mythic Forest, livro
organizado por Ellen Datlow e Terri Windling. Ela também
é roteirista e musicista. Vive no sudeste do Arizona com seu
distinto marido, Will Shetterly, e um gato tirânico, Buddha.
Seu endereço na web é www.qwertyranch.com.

Nota da Autora
Amo música folclórica desde a 3 a série, especialmente as
baladas antigas e as histórias que elas narram. Há alguns
anos, Charles Vess recrutou alguns amigos escritores - eu
estou entre eles - para ajudarem-no a transformar algumas
dessas baladas antigas em histórias em quadrinhos.
Eu havia aprendido esta balada, "A raposa negra", numa
gravação feita por uma dupla folclórica chamada The Pratie
Heads. Ela me fez pensar nas religiões pré-cristãs da Europa,
dos tempos em que um caçador podia encontrar criaturas
com cornos que mudavam de forma e ver não o diabo, mas,
sim, Cernunnos, o deus dos caçadores. Não havia o crédito
do autor da letra, mas as palavras tinham aquele
maravilhoso sentimento que todas as boas antigas baladas
possuem - de terem sido buriladas durante séculos até
chegarem à sua essência. Então pensei que suas origens
estariam perdidas nas brumas do tempo.
Graças à internet, descobri o contrário. Que "A raposa
negra" foi escrita pelo compositor de Shefíield, Graham
Pratt, com base no fragmento de um conto folclórico de
Yorkshire encontrado no Dicionário de contos
folclóricos britânicos, de Katharine Briggs. Sua canção é
a prova de que a tradição das baladas continua viva e ainda é
uma inspiração para escritores, artistas e músicos em toda
parte.
Mais informações sobre Graham e Eileen Pratt e suas
gravações estão disponíveis em:
www.folkmusic.net/grahamandeileenpratt/pratgr_set.htm.

A obra de Charles Vess já agraciou as páginas de muitos livros


de histórias em quadrinhos e já foi exibida em várias expo-
sições em galerias e museus pelos Estados Unidos,
incluindo-se a primeira grande exposição de ficção científica
e arte fantástica (no Novo Museu Britânico de Arte
Americana, em 1980). Em 1991, Charles dividiu o prêmio
World Fantasy de melhor conto com Neil Gaiman pelo
trabalho que fizeram juntos, Sandman n° 19 (DC Comics) —
a primeira e única vez em que um livro em quadrinhos
recebeu tal honra.
Em 1997, Charles ganhou o prêmio Will Eisner Comic
Industry de melhor desenhista/ilustrador por seu trabalho
em The Book of Ballads and Sagas (que ele publicou
originalmente por sua própria editora, a Green Man Press,
depois republicada pela Tor) e em Sandman n° 75. Em 1999,
recebeu o prêmio World Fantasy de melhor artista por seu
trabalho em Stardust, de Neil Gaiman.
Ele trabalhou com Jeff Smith em Rose, que conta o que
aconteceu antes de começar a história narrada em Bone,
escrita por Smith; entre suas colaborações com o amigo
Charles de Lint, incluem-se o álbum ilustrado A Circle of
Cats (vencedor do Prêmio Spectrum Gold e finalista do
World Fantasy em ficção curta) e os romances ilustrados
Seven Wild Sisters e Medicine Road. Outros trabalhos
incluem a capa e as ilustrações das antologias The Green
Man: Tales from the Mythic Forest (vencedora do
Prêmio World Fantasy) e The Faery Reel: Tales from
the Twilight Realm, organizadas por Ellen Datlow e
Terri Windling. O endereço de seu site é
www.greenmanpress.com.

Nota do Ilustrador
Tenho ouvido baladas inglesas, escocesas e irlandesas por
muitos e muitos anos. Mas foi só quando percebi que
poderia desenhar as narrativas que há nessas canções e,
assim, participar da tradição centenária de divulgar essas
histórias por meio da cultura popular que teve início o que
viria a se tornar uma obsessão para toda a vida. Com a ajuda
de diversos escritores (Jane Yolen, Charles de Lint, Neil
Gaiman, Sharyn McGrumb etc.), já adaptei bem mais de
uma centena de páginas desse material e em breve vou
reuni-los em uma edição em capa dura.

Patrícia A. McKillip

Byndley

O mago Reck foi parar em Byndley quase por acaso.


Tinham-lhe ensinado tantos caminhos diferentes para
chegar lá que ele quase passou direto pela entrada. Por um
prado, atravessando uma ponte, passando por uma floresta
de sorveiras, à esquerda no cruzamento, à direita numa
velha hospedaria que estava fechada havia décadas e onde
só as torres ainda funcionavam. E assim por diante. Ao
entardecer, ele achava que já tinha seguido em cada direção
duas vezes e não chegara a lugar algum. Caminhava com
dificuldade sobre pedaços grossos de carvalho arrumados em
arcos à guisa de ponte sobre um riacho, quando galhos
enlaçados de um salgueiro se abriram e revelaram os
telhados de sapé e as chaminés de um vilarejo. "Byndley",
anunciava a placa de um velho pilar que se inclinava em
direção à água, ao final da ponte. Isso era tudo. Mas o mago
viu a escuridão misteriosa que havia atrás do vilarejo e fluía
ao encontro do entardecer e sentiu sua própria magia se
agitar em resposta.
"Você quer saber o quê?" havia sido a reação mais comum à
pergunta que ele fazia ao longo da viagem. Uma solene e
incrédula gargalhada normalmente se seguia.
Como voltar, como ir ao outro lugar, como chegar lá...
"Mas por quê?", perguntavam-lhe, repetidas vezes.
"Ninguém sai à procura de lá. Você é atraído, é ludibriado
lá, você não volta e, se voltar, não vai ser para o mesmo
mundo de antes."
"Eu já estive lá", ele pensava. "E voltei."
Porém ele nunca explicava, só insinuava que estava cum-
prindo as ordens do rei. Aí eles se empertigavam um pouco
— os donos de hospedarias, os soldados, os que conheciam o
mundo ou tinham ouvido histórias de viajantes — e
mudavam a expressão do rosto. Ninguém dizia a palavra em
voz alta; todos saíam pela tangente; todos achavam que
sabiam o que ele estava querendo dizer, embora ninguém
tivesse estado lá. Isso — pensou Reck — é o que há de mais
estranho sobre o Reino das Fadas: ninguém viu, ninguém
esteve lá, ninguém dizia a palavra. No entanto, todos
sabiam.
Finalmente alguém disse "Byndley", e então ele passou a
ouvir a palavra em todo lugar.
"Pergunte sobre isso em Byndley; eles devem saber."
"Pergunte em Byndley. Eles estão sempre se metendo com
magia."
"Tente em Byndley. E por aquele caminho, uma viagem de
meio dia, no máximo. Vire à esquerda no cruzamento."
E lá estava Byndley, com suas janelas começando a piscar
como vaga-lumes na noite e a floresta densa de carvalhos ao
fundo, cujos limites — ele suspeitava — pairavam entre os
dois mundos, já desaparecendo do dia para dentro dos
sonhos.
Parou na primeira taberna que viu e pediu uma cama. Ele
usava roupas simples de lã e linho cru e botas que já tinham
visto dias melhores. Seu rosto era como as botas: forte e
resistente, mas nada que chamasse a atenção. Ele não queria
ser reconhecido, ser distraído por pessoas pedindo que
fizesse encantamentos. A coisa que carregava ficava mais
pesada cada dia. Agora, ele já precisava usar seus poderes
para levantá-la, e quanto mais cedo se livrasse dela, melhor.
— Meu nome é Reck — disse ao dono da taberna no bar,
enquanto deixava a bolsa escorregar do ombro. — Preciso
de um leito para uma ou duas noites, ou talvez... — parou,
atento a uma comoção ruidosa assim que sua bolsa atingiu o
chão. O jovem enorme que estava parado ao seu lado, com o
dorso nu e suando como um cavalo numa batalha, com o
rosto vermelho e aos gritos, esfregava o pé por dentro da
sandália e bufava.
— Eu deixei minha bolsa cair no seu pé? — Reck
perguntou, horrorizado. — Mil perdões.
— Meu pé já foi pisado por coisas piores — admitiu o
jovem com esforço. — O que você está levando aí,
forasteiro? Um carregamento de bigornas? — Antes que
Reck tivesse tempo de responder, o homem se abaixou,
puxou a bolsa do chão e devolveu-a a ele. Sem estar
preparado para pegar aquele peso, Reck perdeu o equilíbrio
por um instante. Os olhos negros e inocentes do jovem o
fitaram por entre a cabeleira negra desgrenhada, enquanto
Reck tentava equilibrar os pensamentos para aguentar o
peso súbito. O homem virou a cabeça, soprou o pé uma
última vez e bateu com a palma da mão no balcão do bar.
— Cerveja — ordenou. — E uma para o forasteiro também.
— É muita gentileza sua.
— Você vai precisar — disse o homem — para espantar as
pulgas. — Ele sorriu ao mesmo tempo que o longo bigode
grisalho do dono da taberna flutuava no ar como pétalas de
um dente-de-leão.
— Não há pulgas no meu estabelecimento — protestou. —
Seu nome é Reck, não é? — Ele hesitou, mastigando o
bigode.
— Reck. Por acaso você não é o mago da corte de
Chalmercy?
— Você acha que eu pareço? — Reck indagou, perplexo.
— Não.
Reck deixou por isso mesmo. O taberneiro encheu duas
canecas de cerveja. Todos ficaram calados, observando a
espuma baixar. Reck, ouvindo o silêncio, por fim decidiu
quebrá-lo.
— Então por que perguntou?
O jovem soltou um resmungo surpreso. O taberneiro sorriu
brandamente. Sua cabeça de tolo, ovalada e coroada por
uma grinalda de cabelos ralos, assumiu uma dignidade
enternecedora.
— Eu conheço um pouquinho de magia — disse
timidamente. — Vivendo tão perto — apontou, de um jeito
desarticulado, para os lados da floresta —, você aprende a
reconhecê-la. Meu nome é Frayne. Em noites de pouco
movimento, eu abro um ou dois livros estranhos que vieram
parar nas minhas mãos e nunca voltaram. As vezes, eu quase
consigo fazer mágicas. Esse aí é o Tye. O ferreiro, como
você deve ter deduzido.
— Não foi difícil — comentou Reck. O ferreiro, com seu
rosto largo e bonito sob os cabelos desgrenhados, sorriu
deliciado, como se o mago tivesse emitido uma pérola de
comentário.
— Meu cérebro é de ferro — confessou. — A magia
ricocheteia nele. Mas algumas pesoas, como Linnea, lá no
fim da rua, podem fazer previsões olhando para a água e
achar qualquer coisa perdida. E Bettony... — ele sacudiu a
cabeça, expressando quanto Bettony o deixava atônito.
— Bettony — o taberneiro ecoou com reverência. Então
voltou de seus devaneios quando Reck engoliu a cerveja. —
E lá que você deve ir para alugar um quarto.
— Eu estou aqui — protestou Reck.
— Bem, não deveria estar, não um mago como você. Ela é
tão pobre quanto nós, mas, em outros tempos, antes de
começar a desaparecer na floresta por décadas a fio, a família
dela só usava seda, tomava banho em água perfumada e
montava cavalos brancos para visitar o rei em Chalmercy
duas vezes por ano. Ela lhe dará uma cama melhor que a
minha e lhe contará histórias se você pedir.
— Sobre a floresta?
O taberneiro assentiu e encolheu os ombros ao mesmo
tempo.
— Quem sabe no que se deve acreditar quando a conversa
tem a ver com a floresta? — Ele limpou uma gota do balcão
com a manga da camisa e acrescentou, como se o estivesse
testando: — Você tem sua própria história, eu imagino. Que
outra razão teria um grande mago para passar uma noite, ou
talvez mais, em Byndley?
Reck hesitou; os dois tentavam observá-lo sem olhar
diretamente para ele. Teria de perguntar como chegar a
Byndley, portanto eles acabariam sabendo, concluiu ele;
num vilarejo tão pequeno, nada podia ser segredo por muito
tempo.
— Eu peguei uma coisa quando era jovem, de um lugar
onde não deveria ter entrado — disse, por fim. — Agora
tenho que devolver o que furtei, mas não sei como chegar
lá. — Ele os olhou, indefeso. — Como achar o caminho de
volta para aquele lugar depois que você consegue sair dele?
O taberneiro, vendo algo em seus olhos, inspirou
lentamente.
— Como é lá? — implorou. — É mesmo tão bonito?
— A maioria das coisas se torna mais bela nas recordações.
— Como você encontrou o caminho da primeira vez? — o
ferreiro Tye perguntou, perplexo. — Não pode encontrar o
mesmo caminho de volta?
Reck hesitou. Frayne encheu mais uma vez a caneca vazia e
a empurrou para o mago.
— Isso não vai sair daqui — o taberneiro prometeu, com a
mesma seriedade com que tinha prometido uma cama sem
pulgas. Contudo, Reck, sentindo que mais uma vez chegava
ao seu limite — com o que roubara pesando feito pedra
sobre os ombros —, não tinha mais nada a perder.
— Da primeira vez, fui convidado a entrar. — Seus olhos
novamente se encheram de lembranças, a tal ponto que o
rosto dos dois ouvintes parecia menos real que seus sonhos.
— Eu caminhava numa floresta de carvalhos a serviço do rei
e só pensava no que tinha de fazer, quando a luz do
entardecer mudou... Vocês sabem como é isso. Aquele
momento em que você percebe como a luz do sol, que você
ignorou o dia todo, pousa nas folhas amarelas como ouro
velho e como fios de ouro parecem passear no ar ao seu
redor. Teias de aranha, você pensa. Mas você vê ouro. Foi
nesse momento que eu a vi.
— Ela — Tye disse. Sua voz ficou embargada.
— A Rainha das Fadas. Ah, ela era linda. — O mágico
levantou a caneca, bebeu. Baixou a caneca e viu o vulto
andando em sua direção em meio à suave chuva de folhas
mortas, douradas. — Seus cabelos... — sussurrou. — Seus
olhos... Parecia que suas cores foram tiradas da floresta,
vindo em minha direção, com tios dourados enroscados em
seus cabelos, os olhos verdes da cor de folhas vivas... Ela
falou comigo. Eu mal ouvi o que ela disse, ouvia apenas o
som maravilhoso de sua voz. Eu devo ter lhe respondido
tudo o que perguntava e concordado com tudo o que ela
pedia. Ela me levou para o âmago da floresta, tão profundo
que me perdi, embora eu não me lembre de ter saído
daquele lugar encantado...
Ele bebeu de novo. Ao afastar a caneca da boca, a floresta à
sua volta se apagou e ele viu as paredes grosseiras ao seu
redor, as vigas escurecidas pela fumaça e as mesas e cadeiras
maltratadas. No ar, o cheiro azedo de cerveja rançosa e de
cebola. Os dois rostos, paralisados, inexpressivos, tornaram-
se humanos de novo, um calvo e inofensivo, o outro
cabeludo e tolo, mas ambos ávidos para ouvir o resto.
Reck esvaziou sua caneca e a colocou no balcão.
— E assim eu encontrei meu caminho pela primeira vez —
concluiu, sem emoção.
— Mas o que você roubou? — Tye perguntou, sem fôlego.
— Como você escapou de lá? Você não pode simplesmente
terminar...
O taberneiro gesticulou, mandando que ele se calasse.
— Deixe-o ir embora, ele já pagou mais do que devia pela
cerveja. — Pegou a caneca de Reck e, zeloso, secou o balcão
de carvalho gasto onde ela tinha ficado. — Você pode voltar
amanhã ao anoitecer. O vilarejo inteiro já vai saber o que
você está procurando, e se alguém tiver alguma informação
vai aparecer para ajudar.
Reck assentiu. Seu ombro começava a doer sob o peso da
bolsa, apesar de toda a sua magia.
— Obrigado — ele disse, exausto. — Já que você não vai
me dar um quarto aqui, irei para a casa de Bettony.
— Você não vai se arrepender — Frayne disse. — E só
descer a estrada até chegar ao final do vilarejo e vai ver a
velha casa, bem abeira da floresta. Não tem como não achar.
Diga a Bettony que eu o enviei. — Ele levantou a mão assim
que o mago se voltou. — Até amanhã.

Reck não teve dificuldades para encontrar a casa, embora o


sol já tivesse se posto e, perto da floresta, uma escuridão
antiga já tivesse saído das árvores silenciosas. Uma
penumbra prateada se alongava no resto de Byndley. A casa
era pequena, com janelas nos dois lados das paredes e nada
combinando. As paredes de pedra, com alguns remendos,
pareciam muito antigas. A porta principal, uma enorme
tábua de carvalho envelhecido, estava aberta. Ao se
aproximar, Reck ouviu claramente uma batida de machado
na madeira e depois um estrondo de gravetos sendo
quebrados. Contornou a casa em direção ao som e deparou
com uma mulher jovem e forte ajeitando outro pedaço de
madeira na cepa.
Ela deixou a madeira na cepa e bateu o machado para
dividi-la bem no meio. Em seguida, endireitou-se, limpou o
suor da testa com o avental e voltou-se, espantada ao ver o
estranho.
O mago disse rapidamente:
— Frayne me mandou.
Mesmo antes de ele terminar, ela estava rindo de seu suor,
das mãos sujas, dos longos cabelos desgrenhados escorrendo
para fora da fivela.
— Ele fez de propósito para que você me visse assim, não é?
— Ela fincou o machado na cepa com um só golpe,
arremessando pedaços de madeira em seu avental. — Quem
é você?
— Meu nome é Reck. Frayne me disse para procurar uma
senhora chamada Bettony e pedir-lhe um quarto para passar
a noite.
— Eu sou Bettony — ela disse. Os olhos dela eram
brilhantes e curiosos como os de um pássaro; ao anoitecer, a
cor deles era indefinida. — Reck — repetiu. — O mago?
— Sim.
— Você está de passagem? — ela indagou.
— Não.
— Ah, então você veio por causa da floresta — ela disse
suavemente. — Se puder carregar mais alguma coisa, traga
um pouco dessa madeira para mim.
Reck, espantado, pegou uma braçada e a seguiu.
— Eu faço tudo sozinha — Bettony disse, enquanto
empilhava os gravetos na pedra escurecida pelo fogo da
lareira dentro de casa. Reck descarregou sua bagagem no
chão de pedra, com um suspiro silencioso. — Mas tenho um
menino que cuida das vacas. — Ela o olhou de relance. —
Está tão pesado assim? Um mago tão habilidoso não deveria
ser capaz de aliviar um pouco sua carga?
— Foi por isso que vim para cá — explicou Reck, sombrio,
e ela ficou em silêncio. Acendeu a vela de uma lamparina e
se inclinou para encostá-la nos gravetos. Ele ficou
observando enquanto ela tirava fogo da madeira. A luz
iluminou o rosto de Bettony. Ela parecia mais jovem que
velha, forte e ao mesmo tempo meiga, muito calma. Sob a
chama da lareira, ele ainda não conseguia ver a cor dos
olhos dela.
Ela lhe serviu pão temperado com alecrim, uma tigela com
um saboroso cozido e vinho. Enquanto ele comia, Bettony
sentou-se num banco ao lado da lareira, diante dele, e falou
sobre a floresta.
— Durante séculos, minha família entrava e saía da floresta
— ela lhe disse. — As histórias se tornaram um folclore
familiar. Algumas foram escritas; outras apenas passaram de
geração em geração, assim como o nariz típico da família.
Mesmo que as histórias não fossem verdadeiras, a verdade
não importava.
— Você já foi...
— Se eu fui à terra das fadas e voltei? Não. Também não
juraria, nem mesmo por um nabo, que algum dos meus
ancestrais esteve lá. Mas já vi coisas estranhas aqui e ali; já
ouvi coisas e já deixei de ouvir coisas... O suficiente para
acreditar que a terra está lá, naquela velha floresta, se você
encontrar o caminho certo. — Ele concordou com os olhos
fixos no fogo, vendo sem ver, e de novo ouviu a voz de
Bettony. — Você esteve lá e voltou.
— Estive — disse ele, baixinho.
— Esse peso na sua bolsa. Foi isso que o trouxe aqui.
— É — ele confirmou.
— O que... — ela sorriu, deixando de lado a pergunta não
pronunciada. — Não é da minha conta. Só estava tentando
imaginar o que é essa coisa que você quer tanto dar a eles.
— Devolver — ele corrigiu.
— Devolver. — Ela suspirou, os olhos bem abertos, e então
ele pôde ver a cor deles: verdes como groselha, ao mesmo
tempo opacos e afetuosos. — Você roubou?
— Uma hospedeira mais discreta iria supor que eles me de-
ram — ele comentou.
— Sim. Mas se você quisesse meias verdades eu poderia lhe
contar um monte de histórias da família. Eu sou sensitiva.
Frayne pensa que isso é um tipo de magia. Não é. E só a
consequência de me cuidar sozinha.
— Ah, mas há um pouco de magia em você. Eu sinto. Acho
que se nós analisássemos as histórias da sua família,
descobriríamos muitos fios de verdade no emaranhado. Mas
isso leva tempo. Como você logo observou, o que eu carrego
está começando a ficar incrivelmente pesado. Até meus
poderes estão diminuindo sob esse fardo — Reck disse.
— Leve isso para a floresta — Bettony sugeriu. — Coloque
no chão e vá embora de lá. Sem olhar para trás.
— Não vai funcionar — ele lamentou. — Perdi a conta de
quantas vezes e em quantos lugares eu abandonei isto sem
olhar para trás. Sempre sou encontrado. Devo devolvê-lo
para o lugar onde ele vai ficar. — Mais uma vez ela o
observou em silêncio, com um olhar atento e cheio de
perguntas. "O que tem aí é terrível?", ele ouviu em seu
silêncio relutante. "E bonito? Você roubou por amor ou por
ódio? Depois que você o devolver, sentirá falta dele?"
— Eu o roubei da Rainha das Fadas — disse abruptamente,
pois sabia que guardar segredos de Bettony era uma perda
de tempo. — Era uma coisa que ela amava. O marido dela
mandou seu feiticeiro fazer especialmente para ela. Eu o
roubei um pouco com o intuito de magoá-la, porque ela
havia me tirado do meu mundo e feito com que eu a amasse,
mas ela não me amava.
Roubei também porque o achei muito bonito e porque
queria mostrar aos outros para provar que eu tinha estado
no Reino das Fadas e conseguira voltar para este mundo. Eu
o roubei por raiva e ciúmes, orgulho ferido e arrogância. E
por amor, sem dúvida, por amor. Eu queria lembrar que um
dia estive naquele país belo, secreto, que fica além da
imaginação, e também queria possuir neste mundo banal
um pedacinho do outro mundo.
— Tudo isso — ela comentou, perplexa.
— Eu era muito jovem — ele disse, suspirando. — Essas
coisas são complicadas quando se é muito jovem.
— Você ainda a ama?
— Aquele jovem que eu fui sempre vai amá-la — ele
respondeu, com um sorriso melancólico. — Isso eu jamais
vou poder devolver a ela.
— Como você conseguiu fugir de lá? E como pode ter
certeza de que desta vez vai conseguir sair de lá de novo?
— Não foi fácil — ele murmurou, relembrando. — O rei
veio atrás de mim com seu melhor feiticeiro... — Ele se
furtou de responder à segunda pergunta, dando de ombros.
— Um problema por vez. Tudo o que sei é que preciso
voltar lá. Não posso viver no meu mundo com o que tirei do
mundo deles. — Afastou seu prato. — Se há algum jeito de
você me ajudar...
— Vou contar as histórias que me foram transmitidas —
ela prometeu. — E posso mostrar coisas que meus ancestrais
escreveram: a descrição do riacho que eles seguiram e que
dava num caminho de luar prateado e mágico, sob qual
roseira eles adormeceram para despertar no Além, qual
cavalo negro ou lebre eles perseguiram até sair do mundo
que conheciam. Parecem sonhos para mim, desejos que
saltam de uma taça de vinho. Mas quem sou eu para dizer
alguma coisa? Você já esteve lá, afinal. — Ela se levantou,
acendeu um par de velas e deu uma para ele. — Venha
comigo. Eu guardo esses escritos num baú lá em cima, com
outras miudezas. Dizem que são lembranças do Mundo das
Fadas, mas nenhuma é pesada como a sua.
Ela lhe contou histórias da família e mostrou papéis frágeis,
manchados de vinho, descrições quase coerentes de
aventuras improváveis e reflexões divagantes sobre a
natureza da magia, todos embebidos em nostalgia e perdas
agridoces que Reck voltou a sentir em seu coração, como se
o tempo não tivesse passado no reino das suas lembranças.
Assim como Reck, os escritores desses relatos também
haviam trazido lembranças consigo: rosas mortas que nunca
se desintegraram e ainda exalavam um leve perfume de
verão, folhas secas que no Outro Mundo eram botões e
moedas de ouro, um anel manchado que já havia emitido
um fogo prateado e iluminado o caminho do tataravô de
Bettony quando ele cambaleou da taverna para dentro da
terra das fadas, uma chave enferrujada que abria uma porta
que surgira no carvalho mais antigo da floresta...
— Essas coisas parecem dizer "Talvez sim, talvez não".
Quem sabe? — Bettony disse, meio rindo e meio suspirando
por causa da excentricidade da família.
— E — Reck concordou, falando baixinho. Ele olhou pela
janela, enxergando através da escuridão da noite as formas
assombradas de árvores centenárias. — Eu sou muito grato a
Frayne por ter me enviado a você. Este deve ser o lugar que
eu estava procurando, onde uma parte da imensa floresta
deles se mistura com a nossa e se torna a trilha entre os dois
mundos. Obrigado pela ajuda. Eu posso pagar com qualquer
tipo de magia de que você precisar.
— Há magia numa história — ela respondeu com
simplicidade. — Eu gostaria de ouvir sua história inteira
quando você retornar para este mundo.
Ele sorriu de novo, comovido.
— É muita bondade sua. Venha à taberna de Frayne
amanhã à tarde e eu contarei tudo que eu sei até agora. Essa
é a dívida que eu tenho com ele.
Ela fechou o baú e se levantou, limpando a poeira dos
séculos de suas mãos.
— Não perderia isso por nada. Nem ninguém em Byndley
— acrescentou, alegre. — Então, esteja avisado.

Reck passou o dia seguinte perambulando pela imensa


floresta, esperando que ou seu coração ou seus olhos
pudessem reconhecer a árvore que era a porta, ou o riacho
que era o caminho prateado para o Outro Mundo. Mas ao
final do dia a floresta era apenas uma floresta, e o único
caminho de volta que ele encontrou foi o caminho de
Byndley. Ele entrou na taberna de Frayne, sentou-se,
exausto, e pediu o jantar. A bolsa no chão, aos seus pés,
pesava tanto em seus pensamentos que ele mal notou que as
vindas e idas atrás dele, enquanto comia carne de carneiro e
bebia cerveja, eram todas vindas: os pés entravam, mas não
saíam. Quando ele finalmente se virou para pedir mais
cerveja, deparou com a cidade inteira atrás dele, olhando-o
de forma respeitosa, aguardando.
Até Bettony estava lá, sentada num lugar de honra, numa
cadeira ao lado do fogo. Ela assentiu para ele alegremente. O
mesmo fez o ferreiro Tye, atrás dela. Tye pegou a cerveja
que Frayne já tinha servido no balcão; a caneca passou de
mão em mão até chegar ao mago.
— Onde nós paramos? — perguntou Tye, animado. Houve
protestos dos aldeões apinhados nos cantos pouco
iluminados, de outros sentados em mesas, bancos e
banquinhos e até no chão. O mago deveria começar de
novo; nem todos tinham ouvido; eles queriam a história
inteira, do começo ao fim, e pagariam para manter o copo
do mago sempre cheio por todo o tempo que fosse
necessário.
O taberneiro fez que não com a cabeça.
— A história por si só já paga a conta — ele declarou e se
apoiou no balcão para ouvir.
Reck limpou a garganta e começou novamente.
Até o meio da história não se ouviu nenhum som. Ninguém
se preocupou em reavivar o fogo; os rostos que olhavam
Reck eram vagos, inexpressivos. Quando começou a
descrever o que tinha roubado, mal ouvia as pessoas
respirando. Envolvido em sua história, ele pouco via além
das lembranças e do subir e descer de cerveja no seu copo,
que naquela luz fraca parecia ter o matiz do ouro encantado.
— Eu roubei o que estava na mesa de cabeceira da rainha.
Para provar que havia estado naquela cama e que um dia eu
tinha sido um dos que ela amou. Fora um presente do
marido, ela me disse. Era um objeto adorável. Tinha sido
fabricado pelo feiticeiro do rei, por meio de magia muito
mais complexa do que todas as que eu já tinha visto, e essa
deve ter sido a razão pela qual ele me perseguiu sem dó nem
piedade quando o carreguei comigo ao fugir.
— Era como um mundo vivo bem pequeno dentro de um
globo de vidro. Uma floresta de carvalho crescia dentro
dele. Uma luz dourada o iluminava todas as manhãs; as
árvores iam empalidecendo na cor de lavanda e de fumaça,
lá pelo fim do dia. A noite... a noite deles, ou a nossa? Quem
vai saber?... Eu nunca tinha certeza, enquanto estive lá, se o
tempo passava na floresta mágica. À noite o globo ficava
cheio de inúmeras e pequeninas jóias das constelações
diante do céu negro profundo, mas tão bonito que aquela
parecia ser a única cor verdadeira para o céu. Nos braços da
rainha, eu via a noite se transformar em dia dentro da
floresta pequena, e depois aprofundar-se novamente numa
escuridão misteriosa e farta. Ela também gostava de ficar
olhando. E, apesar do seu riso meigo e de suas palavras
doces, eu sabia que, toda vez que ela o olhava, ela se
lembrava dele, seu marido, que o tinha dado para ela.
— Eu então o roubei para que ela o procurasse e pensasse
em mim. Eu sabia também que, embora ela tivesse roubado
meu coração, roubar aquele objeto seria o mais perto que eu
conseguiria chegar de roubar o coração dela.
Ele ouviu um som baixo, um suspiro, na sala silenciosa,
como uma palavra quase dita. Sua visão ficou um pouco
mais nítida, o bastante para mostrar-lhe os rostos atentos e
imóveis agrupados ao seu redor. Até Frayne estava imóvel
atrás do balcão; ninguém se lembrou de pedir cerveja.
— Mostre-nos — alguém sussurrou.
— Não, continue — Tye pediu. — Eu quero saber como ele
fugiu.
— Não, mostre...
— Ele pode mostrar mais tarde, se quiser. Ele tem
carregado isso por aí todos esses anos. Enquanto não
terminar, o objeto não sairá daqui. Continue — ele suplicou
para Reck. — Como você saiu de lá?
— Eu acho que nunca saí. — Reck falou sem ênfase e
novamente fez-se silêncio na sala. — Eu fiz o que qualquer
mago teria feito, perseguido pelo Rei do Mundo das Fadas e
por seu feiticeiro. Eu lutei com o fogo e com o pensamento;
eu desapareci; mudei de forma; ocultei-me no coração das
árvores e sob as pedras. Eu sabia que tinha apenas de largar
o pequenino globo no caminho deles, e eles parariam de me
perseguir. Mas eu me recusava a entregá-lo. Eu queria
aquilo mais do que qualquer coisa no mundo. Talvez mais
do que a própria vida. No fim, o rei me perdeu de vista,
confuso com as diferentes formas de pássaros, animais e
flores silvestres que eu ia adquirindo.
Só que eu não podia ocultar a magia do feiticeiro que a tinha
criado. Ele nunca perdia o globo de vista, não importava o
que eu fizesse para disfarçá-lo. Uma vez, quando tomei a
forma de um cervo, eu o usei como se fosse meu próprio
olho. Outra vez, transmutei-o em um ratinho balançando
nas garras do falcão em que tinha me transformado. Ele
nunca deixou de vê-lo... Por fim, não importava para que
lado eu corresse, não conseguia encontrar o caminho para
sair da floresta, então agi num impulso de total desespero.
— Eu me escondi na floresta dentro do globo. E aí fiz tudo,
o globo, a floresta, eu mesmo, desaparecer.
Ele ouviu um som estranho e remoto, como se uma rolha
tivesse espocado de uma garrafa lá embaixo, na adega, ou
como se uma bolha de cerveja do tamanho de um globo
tivesse estourado em algum lugar. Ele ignorou o ruído,
sentindo-se de novo na floresta dentro do globo, em meio às
árvores pacíficas e à luz constante e etérea, novamente em
estado de total espanto.
— Era como se eu estivesse no meu próprio mundo o
tempo todo, e como se eu tivesse confundido toda a magia
dentro dele com a magia do Mundo das Fadas... — Ele
parou por um instante, ergueu seu copo, bebeu e colocou-o
de novo na mesa. — Eu não consegui ficar muito mais
tempo nessa ilusão. Não é fácil se lançar pelo mundo
quando você não só é o lançador, mas também o objeto
lançado. Mas consegui. Quando parei o voo do globo e saí
dele, sob intensa trepidação, voltando à minha própria
forma, eu me vi nas ruas chuvosas e cinzentas de
Chalmercy.
Ele fez uma pausa, lembrando a tristeza de seu coração ao
ver aquele mundo familiar, mas frio e sujo. Suspirou.
— Mas eu tinha o globo, o mundo que roubei da terra das
fadas. Por muito tempo isso me consolou... Até que ele
começou a pesar, e me dei conta de que eu nunca tinha sido
esquecido.
Era isso que eu queria, que a rainha se lembrasse de mim,
mas ela começou a ficar impiedosa em suas lembranças. Eu
tinha que devolvê-lo a ela, ou nunca mais viveria em paz.
Ele se curvou, então, e abriu a bolsa. A taberna ficou tão
imóvel que parecia vazia. Quando ele tirou o globo da bolsa,
suas estrelas espantaram todas as sombras que havia na sala,
e ele ouviu o suspiro uníssono de todos os habitantes de
Byndley, como se uma rajada de vento tivesse soprado entre
eles.
Ele contemplou o globo com amor e tristeza, revendo a
Rainha das Fadas dentro da noite encantada e o jovem tolo
que lhe havia entregado o coração. Depois de um momento,
ele piscou. Segurava o globo na palma da mão com leveza,
como se fosse um ovo. O estranho e tremendo peso tinha
desvanecido; surpreso, ele quase olhou dentro da bolsa
aberta para ver se o peso desaparecido tinha se acumulado
no fundo.
Piscou os olhos mais uma vez.
Foi com grande esforço que ele desviou os olhos do mundo
encerrado no globo para os calados habitantes de Byndley.
Seus rostos, em que sombras e estrelas tremulavam, à
primeira vista pareciam embaçados, irreconhecíveis. Aos
poucos, começou a vê-los com nitidez. O homem de cabelo
arrepiado, com um rosto poderoso e um sorriso enigmático
nos olhos escuros... A figura grisalha e alta atrás do balcão,
olhando interrogativamente para ele, com os olhos da cor
do tranquilo crepúsculo de dentro do globo... A mulher ao
lado do fogo...
Reck engoliu em seco, assombrado novamente, pois nem
um vestígio da passagem do tempo havia atormentado
aquele rosto. Era tão lindo como na primeira vez que o vira,
colorido pelos tons quentes da madeira que se apagava,
caminhando em direção a ele naquele dia, tempos atrás.
Ela sorriu, seus olhos verdes inesperadamente ternos.
— Obrigada por esse olhar — ela disse. Ainda havia algo de
Bettony em seu rosto, ele viu: um toque de humor, certa
ironia no sorriso. Os rostos ao seu redor, atemporais e
estranhos em sua beleza, não possuíam tal expressão
humana. Ela estendeu a mão. Reck, incapaz de se mover,
viu o globo flutuar da palma de sua mão para a palma da
mão dela, sob o olhar incrédulo do feiticeiro.
— Eu sempre me perguntei — ele disse para Reck quando
os dedos da rainha se fecharam em volta do globo — como
você escapou de mim.
— E eu sempre me perguntei — a rainha disse, num tom
suave — por que você o roubou de mim. Agora
compreendo.
Reck olhou para o rei, em meio às canecas, ainda
observando--o com bondade; ele não parecia precisar de
explicações.
— Você contou sua história e foi julgado. Desta vez pode
partir livremente. Ali está a porta.
Reck pegou sua bolsa com as mãos trêmulas. Fez uma pausa
antes de abrir a porta e disse sem olhar para trás:
— Na primeira vez, eu só achei que tinha fugido. Na
verdade, eu nunca achei a saída da floresta.
— Eu sei.
Reck abriu a porta. Puxou-a atrás de si, mas não a ouviu
fechar-se ou ser trancada. Deu um passo, mais outro e não
parou até atravessar a ponte.
Então parou. Não se deu o trabalho de olhar para trás, pois
tinha certeza de que a ponte e qualquer sinal da existência
de Byndley, do outro lado do rio, teriam desaparecido. Em
vez disso, olhou para o alto e viu a noite estrelada,
misteriosa e bela cercando-o, e a promessa, nos cantos
longínquos e indistintos do mundo, de um amanhecer
encantado.

Patricia A. Mckillip escreveu romances como The


Forgotten Beasts of Eld, vencedor do primeiro prêmio
World Fantasy, em 1975; The Riddle-Master Trilogy, cujo
volume Harpist in the Wind foi indicado ao prêmio
Hugo; Something Rich and Strange, ganhador do
prêmio Mythopoeic de 1994; Winter Rose, indicado a um
Nebula, The Changeling Sea (Firebird), e Ombria in
Shadow, que recebeu o prêmio Mythopoetic e o World
Fantasy. Seu romance mais recente é In the Forests of
Serre. Também escreveu diversos contos, tanto de ficção
científica como de fantasia. Mora em Oregon com o marido,
David Lunde.

Nota da Autora
Eu estava tentando escrever um romance quando "Byndley"
surgiu. Algumas histórias são assim. Você acha que está
criando um dragão e no final você obtém uma borboleta. A
ideia da Terra das Fadas me fascina por se tratar de uma
daquelas coisas, como as sereias e os dragões, que não
existem de verdade, mas que todo mundo conhece. A Terra
das Fadas só existe aos olhos de quem a vê — e que, em
geral, é o criador de fantasias. Então o que há de bom nessa
terra encantada e instável, que em alguns contos não faz
nada bem aos humanos e, em outros, é a terra da paz e do
verão eterno, onde todo mundo quer viver? Talvez seja só
um lampejo dos nossos desejos mais profundos e dos nossos
maiores medos, dos limites mais distantes da nossa
imaginação. Visitamos a Terra das Fadas porque podemos;
voltamos ao mundo real porque precisamos. O que vemos lá
se transforma nas nossas histórias.

Kara Dalkey

A Dama do Jardim de Gelo

á muito, muito tempo, numa era bastante longín-


qua, havia duas casas em Heian Kyo que ficavam
lado a lado. Não eram mais que barracos, em uma das
regiões mais pobres da cidade. Em cada casa viviam uma
mãe e sua única criança. Ambas as mulheres vinham de
famílias nobres que caíram em desgraça política e, portanto,
na pobreza. Era assim que as coisas funcionavam na época,
após o conflito chamado Heiji, na era de Jisho.
Uma das mulheres tinha uma filha, a quem chamaremos de
Girida. A outra mulher tinha um filho, a quem chamaremos
de Keiken. As duas crianças cresceram juntas como se
fossem irmãos, embora não o fossem.
As duas casas compartilhavam o jardim que as separava,
pequeno, mas cuidado com carinho, onde as duas crianças
brincavam. Na primavera, havia flores de ameixeiras e
adoninas, pessegueiros e azaleias. No verão, o laguinho no
meio do jardim comportava duas flores sagradas de lótus
brancas, sobre as quais o menino e a menina costumavam
recitar o Sutra de Lótus. No outono, havia campânulas azuis
e taboas e grilos para apanhar.
Mas o pequeno jardim alcançava a glória mesmo no
inverno, quando a neve cobria piedosamente os telhados
remendados das casas e os ramos desfolhados das árvores, e
fazia todos os morrinhos cintilar como se estivessem
enfeitados com prata. Girida e Keiken corriam um atrás do
outro, atirando bolas e construindo dragões de neve, rindo
como se aqueles dias jamais fossem acabar.
Mas acabar é necessário. No inverno do ano em que Girida
fez doze anos e Keiken, treze, algo aconteceu. Foi num dia
após uma tempestade de granizo, em que pingentes de gelo
gloriosos, claros como a lâmina de uma espada, pendiam das
calhas das casas e dos galhos das árvores. O menino e a
menina estavam correndo um atrás do outro pelo jardim
quando Keiken escorregou em um pedaço de gelo e deslizou
até a parede de sua casa. Com um som de rachadura,
pingentes caíram das calhas. Keiken sentiu uma dor aguda
na mão esquerda, e algo caiu em seu olho.
— Ei! — ele berrou, levantando-se.
Girida correu até ele.
— Keiken! Você se machucou?
Keiken piscou e esfregou o olho. A dor logo passou, mas
ainda sentia o olho gelado.
Girida examinou de perto o rosto dele.
— Entrou alguma coisa no seu olho? Eu não vejo nada.
— Foi só uma lasca de gelo, eu acho. Já derreteu.
— Keiken! A sua mão!
Keiken levantou a mão esquerda e viu que um caco de gelo
havia se alojado na pele entre o dedão e o indicador. Ele
puxou o gelo e uma gota de sangue formou uma poça no
lugar, depois caiu, uma mancha vermelho-escura contra o
branco puro da neve.
— Keiken, temos de levar você lá para dentro e deixar a
mamãe fazer um curativo.
Keiken ergueu os olhos para ela. E viu Girida de uma forma
que nunca tinha visto até então. Ele percebeu a mancha de
lama em seu rosto. Reparou no quimono muitas vezes
remendado que vestia. Notou as marcas em seu rosto
escurecido pelo sol, a leve deformidade dos dentes, a
espessura das sobrancelhas. De repente, ele a desprezava.
— Vou cuidar disso sozinho — ele resmungou. — Vá
embora!
— Mas Keiken...
— Vá!
Girida correu para dentro de casa, chorando, e Keiken não
se importou.
O que os dois não sabiam era que aquela tempestade de gelo
tinha sido criada por demónios oni. Eles estavam em meio a
uma batalha de inverno no céu, com lanças e espadas feitas
de gelo, polidas e afiadas como aço. As lâminas oni podem
cortar a carne dos demônios, mas também cortam o coração
e a alma dos mortais. Um mortal machucado por uma dessas
lâminas rejeitará tudo o que já amou e desejará o que há de
pior para ele. Ninguém sabe como isso aconteceu — se foi
um vento desgarrado ou um kami perverso —, mas algumas
lâminas oni caíram na terra sob a forma de pingentes na
neve.

Nos dias que se seguiram, Keiken não mais brincou com


Girida no jardim. Em vez disso, pegou uma espada de
madeira e foi para a rua, onde os garotos mais velhos
treinavam lutas. De início, teve de lutar furiosamente, não
importava quantos socos o atingissem, a fim de conquistar o
respeito deles. Depois de ter se submetido à prova,
começaram a lhe ensinar coisas que ele não sabia, já que não
tivera um pai para criá-lo.
Keiken aprendeu que o caminho do guerreiro é nunca
temer a morte; ele deve acreditar que já está morto e
preparar-se para abraçar a morte com alegria quando ela
chegar. Aprendeu que uma morte honrada é a coisa mais
doce que um homem pode conseguir. Aprendeu que o
status era o que importava na sociedade e que um homem
deveria conseguir um bom casamento caso ele mesmo
tivesse uma posição pouco nobre. Os garotos riam ao falar
sobre como, algum dia, usariam seus corpos como espadas
quando levassem belas damas para a cama. Keiken aprendeu
muito em pouco tempo.
Girida observava Keiken enquanto ele treinava e brincava
de duelar com os outros garotos. Ela o admirava mais ainda
e tentou deixar de lado a dor de saber que ele não mais
desejava sua companhia. A cada fim de dia, ela acenava para
Keiken enquanto ele ia da rua para casa, mas ele sempre a
ignorava. Visitava a mãe dele à noite, mas Keiken não saía
do quarto para falar com ela.
Uma noite, a mãe de Girida viu a filha chorando e tentou
consolá-la:
— É uma mudança estranha pela qual os rapazes passam
nessa idade — declarou a mãe. — De repente, eles só
pensam em brigar e se gabar e serem melhores que os
amigos. Nós sempre presumimos que vocês dois com certeza
foram próximos numa outra vida e que algum dia se
casariam. Mas talvez esse não seja o seu destino. A vida de
uma mulher é mais difícil que a de um homem, e ela deve
carregar fardos terríveis. Seja corajosa e espere para ver o
que vai acontecer.
Semanas se passaram e o inverno ficou mais rigoroso. Certa
noite, quando o ar estava muito gelado, Keiken continuou
treinando na rua, mesmo depois de os outros garotos terem
ido para casa. Ele não se importava nem um pouco com o
frio. Assim, não sentia as bolhas nas mãos e a dor nos pulsos
e braços enquanto brandia a espada segundo os movimentos
padrão. Parecia um frio cicatrizante, e ele desejava que sua
alma também pudesse congelar para não sentir dor, nem
solidão, nem perda. Observava a nuvem de sua exalação,
quente como a respiração de um dragão, virar cristais de
gelo no ar.
Quando, enfim, parou para descansar, na hora em que o
crepúsculo se esvaía, notou que havia uma carruagem
puxada por bois parada do outro lado da rua. Era uma bela
carruagem coberta, sem dúvida de alguma casa nobre, e os
bois presos a ela tinham o couro branquíssimo.
As cortinas das janelas laterais tinham desenhos de flocos de
neve ou seriam borboletas? Keiken não sabia dizer.
Não era um fato estranho que jovens e nobres damas
parassem suas carruagens para observar os garotos
treinando. Alguns dos meninos mais velhos se gabavam de
ter conseguido diversão para muitas noites dessa forma.
Keiken tinha a sensação de que alguém naquela carruagem
o observava.
Um braço delgado e branco emergiu da janela da
carruagem. A mão se curvou e acenou para ele.
A respiração de Keiken ficou presa na garganta. E uma
dama! E se for uma Taira? Se eu for desejado por uma dama
do mais poderoso clã de guerreiros de Heian Kyo, minha
fortuna pode estar feita! Keiken caminhou até o lado da
carruagem, os músculos das pernas doendo por causa do
esforço e do frio.
— Deseja falar comigo?
— Que rapazinho admirável você é — a voz da mulher lá
de dentro era baixa e melodiosa, como o vento do inverno
roçando os galhos nus das árvores. — Um aspecto tão
terrível em alguém tão novo. Diga-me seu nome e
linhagem.
— Chamo-me Keiken — respondeu e depois engoliu em
seco com dificuldade. Queria poder mentir sobre sua
linhagem, mas havia punições severas para quem era pego
mentindo sobre isso, especialmente em uma sociedade em
que todas as pessoas importantes conheciam todas as outras
pessoas importantes. — Quanto à minha ascendência, meu
pai era nobre de nascença, mas foi mandado para o exílio no
ano seguinte ao meu nascimento e sou proibido de dizer o
nome dele. O da minha mãe também, embora ela já tenha
prestado serviços à Corte.
— Ah, um menino bem-nascido, mas de família
desafortunada. Excelente. — A porta traseira da carruagem
balançou ao ser aberta por uma mão invisível. — Por favor,
entre e converse comigo.
O coração de Keiken acelerou. Estavam-lhe oferecendo o
tipo de oportunidade com a qual os garotos mais velhos
justamente sonhavam. Sem pensar em Girida, ele foi até a
parte de trás da carruagem e entrou.
A mulher sentada no banco acolchoado da carruagem era
impressionante de se olhar. Vestia várias camadas de
quimonos brancos de seda brocada, da cor da pureza, cor da
morte, como se fosse uma sacerdotisa xintoísta. Seu cabelo
comprido, negro como carvão, emoldurava um rosto branco
como porcelana, e Keiken via que ela não usava pó-de-arroz
branco. Ela não precisava. Sua pele era macia e imaculada
como a neve recém-caída. Os olhos eram negros como
lascas de obsidiana, porém tinham uma luz resplandecente,
como estrelas num céu noturno.
Ela acenou para que ele se aproximasse.
— Muito admirei sua força quando o observei. — Ela
desamarrou a faixa ao redor da cintura e deixou seus
quimonos se abrir, revelando seios pálidos e pequenos e um
abdômen liso.
Keiken jogou-se, cambaleante, nos braços dela. Sua pele era
fria, mas ele sentia o calor interior.
— Mostre-me sua maestria com a espada — sussurrou ela.
E ele assim o fez.
Girida ficou preocupada, pois Keiken não voltou naquela
noite. Nem na seguinte. Sete dias se passaram. E mais sete.
Ninguém parecia saber aonde ele tinha ido, nem mesmo sua
mãe. Por fim, Girida encontrou uma senhora que tinha uma
loja de ervas e remédios na rua onde os garotos treinavam.
A senhora balançou a cabeça e disse apenas:
— Ele foi embora com a Dama do Jardim de Gelo.
Girida contou isso para sua mãe e para a mãe de Keiken.
Nenhuma das mulheres conhecia alguém com tal nome.
— Mas as pessoas mudam de nome com tanta frequência —
disse a mãe de Girida. — As mulheres, em particular, sem-
pre que mudam de residência. Essa senhora pode até ser
alguém que conhecemos da Corte Imperial.
— Bem — suspirou a mãe de Keiken. — Se Keiken
conseguiu um bom casamento para ele, então nem posso
reclamar. — Ela olhou para Girida, com ar culpado. — Mas
não é correto ele não nos mandar notícias.
— Talvez o pequeno covarde não tenha coragem — rosnou
a mãe de Girida. Para a filha, ela disse: — Temos uma
parenta distante que, ouvi dizer, casou-se recentemente. Ela
é filha de uma concubina de um ex-imperador e, portanto,
às vezes é chamada de Princesa da Glicínia. Talvez tenha
sido ela quem levou Keiken embora ou saiba quem o levou.
Quer ir perguntar a ela?
Girida fez que sim.
A mãe de Girida mostrou um conjunto de quimonos de
inverno que vinha guardando, belos, embora fora de moda.
— Vista estes; pelo menos ninguém vai rir de você.
Girida, obediente, vestiu os quimonos e, por baixo do
tamanco, vários pares de meias tabi. Em seguida partiu pelas
ruas cobertas de neve, até o endereço que a mãe lhe dera. A
neve caía, cada vez mais densa, e havia pouquíssimas
pessoas na rua. As vezes, Girida tinha de achar o caminho
tateando os muros de pedra que cercavam as grandes
mansões no bairro dos Palácios. Enfim, chegou ao
cruzamento das ruas onde a mansão que procurava deveria
ficar. Foi até o primeiro portão grande que viu e bateu nele
com seu pequeno punho.
A cabeça de um guarda apareceu sobre o portão, seu
capacete cómicamente cheio de neve.
— Quem está aí?
— Com licença, senhor — disse Girida, fazendo uma
reverência respeitosa. — Esta é a residência de uma dama
chamada Princesa da Glicínia?
— É, sim. Quem deseja saber?
— Sou Girida, ninguém de importância. Mas creio que meu
amigo Keiken seja o homem com quem ela acabou de se
casar. Trouxe uma mensagem da mãe dele.
— Entregue-me, então.
— Por favor, eu gostaria de falar pessoalmente com ele. O
samurai riu.
— Se você não é ninguém de importância, então não há
ninguém lá dentro com quem você seja digna de conversar.
Vá embora. — Sua cabeça desapareceu atrás do portão
novamente.
Girida soltou um forte suspiro. Seus pés estavam muito frios
e ela os bateu no chão. Então deu meia-volta para iniciar a
caminhada de retorno para casa e arfou quando uma figura
sombria surgiu, parada do seu lado.
— Perdão, senhor — disse Girida, fazendo outra
reverência. — Não vi que o senhor estava aí.
— Não há nenhum problema.
Girida ergueu os olhos. Havia sido um monge idoso e de
nariz grande, vestido com mantos negros, quem falara com
ela.
— Perdão, Santíssimo — ela disse, com mais respeito ainda.
— Está um tempo terrível para uma garotinha como você
estar na rua. Está com algum problema? Posso lhe dar
alguma assistência?
Girida respondeu:
— Acho que não. Pensei que meu amigo da vida inteira,
Keiken, estivesse aqui nesta mansão. Há muito tempo não
temos notícias dele, e a mãe dele e eu queremos saber se
está bem. Mas, mesmo que ele esteja aí, não me é possível
vê-lo. Não sou importante o suficiente para entrar.
— Sempre existe um modo de contornar os problemas —
disse o monge, com um sorriso sábio. — Há outra entrada, o
portão principal, na verdade. Talvez você consiga entrar por
lá.
Girida tinha suas dúvidas, mas parecia tolice fazer todo o
caminho de volta para casa sem tentar mais uma vez.
— Se puder me conduzir até ele, Santíssimo, eu o seguirei
com muita gratidão.
— Por aqui, então. — O monge se afastou em meio à neve
e Girida teve de correr para alcançá-lo. Manteve os olhos
nas formas sombrias de seu manto negro, que ondulava com
o vento da nevasca.
Ele dobrou a esquina do edifício antes dela, desaparecendo
de vista. Quando Girida dobrou a esquina, quase tropeçou
em um homem vestindo mantos pretos e com uma cartola
de fidalgo de primeiro escalão. Girida curvou-se mais ainda.
— Perdão, muito nobre senhor. Pensei tratar-se de um
monge que estava bem aqui, caso contrário teria sido mais
gentil.
— Eu sou o monge que estava bem aqui.
— Mas...
— Sou um tengu e posso tomar a forma que desejar.
— Um tengu! — Girida já tinha ouvido falar dos demônios
das montanhas, que às vezes tomavam a forma de pássaros
negros. Agora, ao olhar o cavalheiro, seus mantos e mangas
pareciam mesmo elevar-se atrás dele como se ele tivesse
asas negras. — Por que o senhor está me ajudando?
— A Sorte é muitas vezes cruel. De vez em quando, gosto
de garantir que a Sorte não consiga fazer as coisas à maneira
dela. Odeio um mundo previsível, você não?
Girida não sabia se devia concordar, mas fez que sim.
— Ótimo. — O cavalheiro tengu andou a passos largos até
o portão principal e bateu na porta.
Uma portinhola se abriu no meio de uma das portas e
alguém espreitou.
— Quem está aí?
— Como assim, quem está aí? — berrou o tengu com voz
imperiosa. — Como pode me deixar aqui fora, na neve,
desse jeito? Eu sou uma visita importante e sou tratado
como um criado. A própria Princesa da Glicínia vai ficar
sabendo disso! Talvez até o chanceler!
— Perdão, nobilíssimo senhor! — disse o guarda do outro
lado do portão. A portinhola se fechou e logo Girida escutou
os grandes ferrolhos de madeira sendo puxados por trás dos
portões. Eles se abriram para dentro com grande velocidade
e o tengu entrou a passos largos, arrogantemente.
Girida ergueu as mangas diante do rosto, humildemente, e
acelerou atrás do tengu, como se fosse sua criada.
O tengu a guiou por um jardim lateral onde lanternas de
pedra apontavam sob montes de neve. Não parecia ser
exatamente um jardim de gelo para Girida, mas quem sabe
por que as pessoas atribuem tais nomes?
Ela o seguiu por um lance de escadas de madeira e para
dentro de um edifício que formava uma das alas da mansão
da Princesa da Glicínia. Entraram em uma sala parcamente
iluminada por pequenas lamparinas. A sala estava cheia de
telas com pinturas, retratando homens a cavalo caçando
javalis com lanças e flechas, e mulheres da nobreza em belas
carruagens observando os caçadores. O cavalheiro tengu
pegou uma das lamparinas e carregou-a consigo. À sua luz
bruxuleante, os caçadores retratados pareciam segui-los,
seus cavalos galopando de tela em tela.
— O muito nobre senhor — disse Girida, aterrorizada. —
As telas parecem estar tomando vida.
— Não se preocupe — replicou o tengu. — Elas são apenas
sonhos. A princesa contrata um pintor da corte para
capturá-los no papel. Os sonhos podem correr de painel em
painel, mas nunca conseguem escapar. E bem triste, se você
parar para pensar.
Girida preferia não parar para pensar nisso e levou ambas as
mangas até o rosto para não ter de fitar os sonhos
desesperados, apressados. Seguiu o tengu até o aposento
seguinte, forrado de tapeçarias de seda da cor de cerejeiras
em flor. Cada estandarte era bordado com flores de glicínia
violeta, azuis e brancas.
— É a flor preferida dela — explicou o tengu, como se ti-
vesse lido os pensamentos de Girida. — A glicínia
representa a efemeridade da beleza. Mostra sabedoria por
parte da princesa, eu diria.
Girida só achou aquilo triste e acelerou com satisfação para
o aposento seguinte. Ali, viu um grandioso estrado
entalhado no formato de uma enorme flor de lótus. No
centro, duas pessoas dormiam.
Uma tinha o cabelo muito comprido, e ela supôs que fosse a
princesa. A outra pessoa tinha o cabelo preso num coque, e
Girida estava certa de que era Keiken.
Correu para o lado dele e sacudiu seus ombros com
delicadeza.
— Keiken! Keiken! Sou eu, Girida.
O rapaz se voltou e fitou-a. Não era Keiken.
— Quem é você? — perguntou, sonolento. — Você é um
dos sonhos?
A princesa também se ergueu e a observou, mas não parecia
incomodada ou zangada.
— Quem é você? Este não é um lugar adequado para
receber visitas.
Girida enrubesceu, com muito embaraço, e fez uma grande
reverência.
— Peço-lhes perdão, nobres senhores. Chamo-me Girida e
sou uma parenta distante da senhora. Vim procurar meu
querido amigo Keiken, que está desaparecido. Ele não
mandou nenhuma mensagem para a mãe avisando onde
está. A única informação que tive é que ele está com a Dama
do Jardim de Gelo. Vim na esperança de que ele estivesse
aqui ou de que a senhora soubesse o que isso quer dizer.
— Que patife mal-educado — disse o príncipe que não era
Keiken —, nem foi capaz de avisar à mãe para onde foi.
— Não conheço tal dama — esclareceu a princesa, tirando
o cabelo comprido da frente do rosto. — Mas, se ela existe,
deve viver nas montanhas do Norte. Só lá um jardim de gelo
poderia durar algum tempo. Talvez os monges de
Kuramadera saibam dela. Como você é uma prima que teve
má sorte, seria insensibilidade da minha parte não a ajudar.
Deixe-me emprestar-lhe a minha liteira e meus guardas
para que você possa fazer a peregrinação até Kuramadera.
Girida fez outra grande reverência.
— A senhora é muito bondosa. Duvido que eu possa lhe
retribuir à altura. — Ela voltou-se para agradecer também
ao tengu, mas ele parecia ter sumido.
A princesa fez um gesto desdenhoso.
— Não dizem que ter compaixão no coração traz
benevolência na vida? Venha, vamos arrumar você, tenho
certeza de que está ansiosa para partir logo.
E então serviram a Girida uma bela refeição composta por
arroz, peixe e legumes em conserva. Deram-lhe quimonos
de frio da última moda para vestir — branco com tons de
azul na bainha, com o quimono exterior estampado com
grous alçando voo. Ela foi conduzida até uma elegante
liteira de vime — uma cesta enorme, na verdade, pendurada
em duas varas. Olhou para dentro e viu que a liteira estava
cheia de almofadas macias. Oito samurais robustos, de
armadura completa com placas de ferro amarradas com
faixas de seda violeta, estavam prontos para carregar as vigas
da liteira. A princesa deu a Girida uma caixa cheia de
bolinhos de arroz e ameixas em conserva para comer no
caminho.
Cheia de gratidão e esperança, Girida mais uma vez
agradeceu à princesa e entrou na liteira, fechando a
portinha de vime atrás de si. Sentiu os homens pegando as
varas de madeira e dando início à jornada.
Kuramadera ficava a poucas horas de distância de Heian
Kyo a pé, portanto Girida esperava que chegassem ao
monastério logo após escurecer. Ela cochilou, feliz, sobre as
almofadas, enquanto a liteira balançava suavemente de um
lado para o outro sob as varas, ao ritmo da marcha dos
guerreiros.
Girida foi acordada aos solavancos quando a liteira bateu no
chão. Ela ouviu os guerreiros sacarem as espadas e depois
ouviu o zunido de flechas. Houve gritos dos samurais, e
berros, e o choque de metal contra metal. Girida encolheu
as pernas para junto do peito, amedrontada.
De certa forma, o barulho continuou por muito tempo. De
certa forma, acabou rápido demais. A portinha de vime da
liteira se abriu, e um rosto estranho e feio espreitou lá
dentro.
— Bem, o que temos aqui?
Braços fortes se estenderam e arrastaram Girida para fora da
liteira. Ela gritou e chutou e berrou:
— Deixe-me em paz! A Princesa da Glicínia vai ficar
sabendo disso! — Mas somente uma gargalhada bruta
saudou suas reclamações. Seus quimonos externos foram
arrancados, deixando-a de pé, tremelicando, só com o
manto interno.
Homens com tochas estavam à sua volta, os cabelos soltos,
as roupas sujas e gastas. Ladrões, claramente. Sabia-se que
eles assombravam as florestas ao norte de Heian Kyo, às
vezes até se aventurando pela capital. Fora por isso que a
princesa mandara guerreiros para carregar a liteira. Mas
agora os samurais jaziam, mortos, aos pés de Girida.
Um dos ladrões, uma velha mulher de cabelos grisalhos
presos num coque de guerreiro, foi até Girida e a examinou
com uma cara azeda.
— Que pedacinho inútil de rapariga essa aí — rosnou a
ladra. — Ela não traz nem cavalo nem boi para comermos.
Então, parece que vamos ter de comer ela mesma. — Puxou
uma faca de seu cinturão e apontou-a para o pescoço de
Girida.
Mas, de repente, algo parecido com um macaco pulou nas
costas da velha mulher, agarrando seu braço.
— Não, não! Quero ficar com ela! Sempre quis uma irmã,
alguém pra brincar comigo. Não a matem! — A criatura se
inclinou para frente e mordeu a orelha da velha.
A mulher gritou:
— Ai! Ai! Ah, muito bem, sua criança malvada. Por que
será que não consigo negar nada a você? Vá em frente,
então. A gente acha outra coisa pra comer.
A criatura arrastou-se para sair das costas da velha e correu,
ficando com o rosto quase encostado ao de Girida. Era uma
menina, tinha mais ou menos a mesma altura e idade que
ela, mas sua pele era queimada de sol e, quando sorria,
Girida via que lhe faltavam dentes.
— Olá! Olá! — gritou a menina ladra. — Eu sou Arai e
agora você é minha. — Arai agarrou o pulso de Girida e a
arrastou de volta para a liteira, espremendo-se para entrar
na cesta com ela.
Girida ficou com tanto medo que cooperou com a menina
sem lutar. Dentro da liteira, encolheu-se num canto e
observou em silêncio.
Arai, a menina ladra, rolou de um lado para o outro nas
almofadas e bateu com os punhos nas laterais da liteira.
— Carreguem a gente! Carreguem a gente! — ordenou aos
ladrões do lado de fora. Para a surpresa de Girida, a liteira
foi içada ao ar e de novo ela estava a caminho de... algum
lugar.
Arai vislumbrou a caixa laqueada e exclamou:
— O que é isso! Riquezas ignoradas? — Ela abriu a tampa
com um golpe e arfou. — Bolinhos de arroz! E umas... coisas
secas.
— São ameixas secas — explicou Girida, sombria. — São
muito apreciadas na Corte.
— Então vamos comer feito imperadores! — disse Arai. Ela
enfiou um bolinho de arroz na boca e estendeu a caixa para
Girida.
Girida fez que não com a cabeça. Estava com medo demais
para sentir fome.
— Sobra mais pra mim, então — disse Arai e acabou
sozinha com a caixa inteira de bolinhos de arroz e ameixas.
Girida ficou estupefata com a grosseria da menina ladra, que
não foi capaz de dividir nada com a mãe e com os outros
ladrões. Mas não queria deixá-la com raiva — afinal, Arai
tinha salvado sua vida, então não disse nada.
Enfim, a liteira foi novamente colocada no chão e
ordenaram às garotas que saíssem. Arai saiu primeiro e
puxou Girida pela manga. Quando Girida emergiu da cesta
de vime, teve de esfregar os olhos para acreditar no que via.
A primeira vista, parecia um arbusto gigante com fogo
queimando no seu interior. Girida piscou e viu que era um
muro muito alto feito de varetas, folhas e espinhos. Durante
o dia, certamente pareceria apenas mais uma parte da
floresta.
— Venha! — gritou Arai, e arrastou Girida pelo braço até o
muro de varas. Elas seguiram o resto dos ladrões por uma
abertura na parte de baixo do muro e chegaram a uma
clareira iluminada por tochas, cercada de pequenas cúpulas
feitas de galhos de árvores dobrados, cobertos de cascas. Os
ladrões sentaram-se ao redor da clareira, barganhando as
roupas e armas que haviam roubado dos cadáveres dos
samurais que acompanhavam Girida.
Arai puxou Girida para dentro de uma pequena abertura no
muro de galhos e a menina se viu no que parecia ser a toca
de um animal. O chão estava forrado de peles de raposa e
urso. Ossos e caveiras minúsculas pendiam acima de suas
cabeças, penduradas em cordas de seda. Na parede mais
distante, para a surpresa de Girida, havia um pequeno cervo
vermelho amarrado por uma coleira de couro a uma estaca
no chão. O cervo as olhava e relinchava, mas não se mexia.
— Este lugar aqui é meu — declarou Arai. Com um gesto,
ela fez os ossos pendurados estrepitar feito sinos ao vento.
— Sou a Princesa dos Bandidos.
Ela foi até o pequeno cervo e passou o braço em volta de seu
pescoço. Ele tentou se esquivar, mas ficou preso entre Arai e
o muro.
— Este é Beni. Peguei-o na floresta e agora ele é meu. —
Puxou uma faca do cinto e acariciou o pescoço do cervo
com a lâmina. Os olhos do animal, aterrorizado, reviraram-
se ao olhá-la. — Faço isso toda noite — afirmou Arai,
sorrindo. — Ele fica tão apavorado. Não é uma delícia?
Girida não achou aquilo nada agradável. Queria poder li-
bertar o cervo, mas isso não lhe parecia prudente naquele
momento.
Arai voltou-se para Girida, pôs o braço em volta de seus
ombros e colocou a lâmina da faca contra o pescoço dela.
— E eu achei você na floresta e agora você é minha.
Ordeno que me conte tudo a seu respeito. Por que você é
tão boba a ponto de entrar na nossa floresta?
Girida engoliu em seco. Sentia a lâmina contra a pele de seu
pescoço, fria como gelo. Imaginando se viveria ou morreria
de acordo com a resposta, Girida contou a Arai sobre
Keiken e a procura pela Dama do Jardim de Gelo. Arai
escutou com olhar atento.
— Mas essa história é fantástica! — ela gritou quando
Girida terminou. — Nunca participei de uma história assim.
Só participei de histórias de roubos e matanças e de cortar as
pessoas em pedacinhos para comê-las. Você tem de me
deixar ajudá-la! — Arai tirou a faca do pescoço de Girida e
agarrou sua manga. Puxou-a com força para fora da cabana
e voltou para o espaço aberto onde os ladrões estavam
sentados ao redor do fogo usado para cozinhar.

Girida evitou fazer contato visual com os brutamontes, que


a encaravam com expressão faminta. Levando-se em conta o
que a menina tinha falado a respeito de cortar e comer
pessoas, Girida não conseguia saber se não a estavam
avaliando para a próxima refeição.
Arai a conduziu a uma minúscula cabana redonda feita de
ramos de pinheiro. A luz turva bruxuleava além da porta
coberta de trapos. Arai parou e agarrou os ombros de Girida.
— Agora, não se esqueça. Você tem de mostrar grande
respeito à minha Obaa, mesmo que ela seja avó de uma
ladra. Está entendendo?
— É claro — Girida respondeu.
Arai afastou a cortina de pano e deixou Girida entrar. A
cabana tinha chão de terra batida coberta de capachos de
palha entrelaçada. Em uma pequena plataforma de madeira,
sobre almofadas de seda esfarrapadas, estava ajoelhada uma
senhora, os olhos entreabertos devido à cegueira. Seu rosto
era queimado e enrugado como uma ameixa seca, e as mãos
eram tão ossudas que pareciam garras. Porém certa
benevolência parecia emanar dela, como se seu espírito
tivesse se distanciado de sua prole horrível e da deterioração
de seu corpo.
— Você me traz algo novo, Arai-chan — disse a senhora.
— Tem o aroma de um jardim novo sob a neve do inverno.
— Obaa-san — disse Arai —, esta é Girida, que veio de
Heian Kyo e tem a minha idade. Ela entrou na nossa floresta
à procura de seu amor perdido, Keiken, que foi embora com
a Dama do Jardim de Gelo. E uma história maravilhosa.
Resolvi que temos de ajudá-la.
— Fico muito honrada em conhecê-la — disse Girida para
a senhora, fazendo uma reverência, embora ela não seria
vista.
— Traga a menina mais perto — pediu a senhora.
Arai empurrou Girida para que se ajoelhasse diante da
senhora. Ela tocou de leve o rosto e os cabelos de Girida.
Num primeiro momento, Girida receou o toque daquelas
mãos, mas eram tão quentes e delicadas que logo passou a
não se importar.
— Você está em uma jornada muito perigosa — declarou a
senhora. — Mesmo que alcance seu objetivo, talvez
fracasse.
— Eu sei, Obaa-san — afirmou Girida. — Mas sinto que
este é o meu único propósito na vida.
— Então eu suponho que deva continuar, embora você
sinta que não — disse a senhora.
— Como podemos ajudá-la? — perguntou Arai, ávida.
— Você não pode — retrucou a senhora, um pouco severa.
— Mas o seu bichinho, a quem você mantém preso no seu
esconderijo, pode.
— O quê, Beni? O que o meu cervo pode fazer por ela?
— Ele não é um cervo de verdade. Se fosse, você nunca
teria conseguido capturá-lo. Ele é um kirin, um ser mágico
que foi enfraquecido ao se transformar em um cervo. Por
você tê-lo colocado numa coleira de couro, ele não pode
voltar ao reino celestial de onde veio. Ele já está há muito
tempo em contato com o pecado e a impureza, vivendo
entre nós. Se ele fizer algo bom a esta garota, talvez mereça
retornar aos Caminhos Superiores.
— Mas... então eu preciso perder o meu Beni? — indagou
Arai.
— Você está chegando a uma idade — disse a senhora, com
um sorriso sardónico — em que certamente logo terá
muitos machos para atormentar. Vá e traga-o.
Arai curvou-se, desajeitada.
— Como quiser, Obaa-san. Eu já estava ficando enjoada
dele, mesmo. — Ela partiu e, por um longo e estranho
momento, Girida se ajoelhou diante da senhora em silêncio.
Por fim, a mulher disse:
— Por mais que me desagrade dizer uma coisa dessas, você
deveria pensar mais como Arai, criança. Devotar tanto os
seus pensamentos a uma única coisa só pode acabar em
tristeza.
— Apesar de tudo — disse Girida —, é como eu sou. A
senhora suspirou.
— E sempre assim. Permiti que meu coração fosse roubado
por um rei dos ladrões e veja só o que me aconteceu.
Arai voltou, trazendo Beni pela coleira.
— Aqui está ele. Esse ingrato desgraçado tentou me
morder.
— Não o castigue, criança. Tire a coleira.
Relutante, Arai tirou a coleira do pescoço do cervo
vermelho. Imediatamente, ele começou a se transformar —
a cabeça ficou mais parecida com a de um cachorro ou leão,
com caninos grandes e barba e juba ralas. Chifres
minúsculos brotaram de sua testa. O rabo parecia mais o de
um burro, e labaredas pequenas tremulavam em torno das
articulações das pernas e dos ombros.
— Obrigado, bondosa dama— disse o kirin, com voz
aflautada, acenando com a cabeça para a senhora. — E
preciso ter uma percepção extraordinária para discernir
minha verdadeira natureza. Certamente há um lugar
guardado para a senhora no reino do meu Mestre.
— Para mim, não — disse a senhora, com um riso brusco.
— Minha prole já cuidou disso. Temo ter de aturar outro
período na Roda4 antes de poder me aproximar da Terra
Pura. Mas se você puder ajudar esta pobre menina
estrangeira que apareceu entre nós, talvez consiga voltar
para lá.
— Para me libertar deste lugar, tentarei com alegria. O que
devo fazer?
— Levá-la até a ponta mais ao norte de Honshu. Há uma
mulher Ainu, sábia por lá, que conheci há muitos anos,
quando fiz uma peregrinação. Ela deve ser capaz de ajudar
esta menina a encontrar o que precisa.
— Então, vamos lá — disse o kirin. Eles foram para fora, o
kirin, Arai e Girida. Arai ajudou Girida a montar no kirin.
listava amuada, como se fosse chorar.
— Tome conta dela, Beni. Ela é a coisa mais próxima de
uma irmã que eu já tive.
— Mude seu comportamento — disse o kirin a Arai. —
Que o seu coração ache um caminho mais puro...
— Não me venha com sermão — gritou a Princesa dos
Bandidos, brandindo sua faca —, senão chamo meus primos
para fazer de você uma refeição.
— Já fui! — disse o kirin e saltou no ar.
Girida se agarrou com força à juba do kirin enquanto ele
trotava acima das nuvens. O céu noturno estava
incandescente com as estrelas e a ponte que interligava os
céus. Voavam tão lapido que o vento puxava e agitava seus
cabelos e seu manto. Ela deveria ter sentido frio, mas as
chamas nas pernas do kirin a aqueciam sem queimá-la. Ao
longo do caminho, Girida falou a respeito de Keiken,
gritando mais alto que o vento no ouvido do kirin.
Em pouco tempo, o kirin pousou em uma costa rochosa
levemente coberta de neve. No lugar onde a costa
encontrava os montes vizinhos, havia uma única cabana de
pedra com fumaça saindo por um buraco no meio do
telhado de palha.
— Aqui estamos — avisou o kirin. — Desmonte, por favor.
Girida desceu das costas dele e, juntos, andaram até a
cabana.
Girida pouco ouvira falar sobre os bárbaros do Norte, os
Ainu, e não sabia o que esperar. Estava quase com mais
medo de conhecer a mulher sábia do que tivera da Princesa
dos Bandidos.
O kirin bateu na porta de madeira com a pata da frente e na
mesma hora ela foi aberta por uma mulher robusta e
baixinha. Vestia um quimono de algodão bem curto e seus
braços e pernas nuas eram pálidos e peludos.
— Ah, é você — ela disse ao kirin. — Há muito tempo que
eu o esperava.
— Fui aprisionado por um tempo — o kirin explicou. —
Agora lhe trago esta menina na esperança de me redimir.
A mulher encolheu os ombros e afastou-se da porta. O kirin
entrou como se tivesse sido convidado, e Girida o seguiu.
Um fogo alto enchia um círculo de pedras no centro da
cabana. Peixes inteiros assavam em um espeto de ferro sobre
a lareira. Fazia muito calor dentro da cabana e Girida de
repente ficou feliz por estar vestida só com um quimono.
— Esta menina — prosseguiu o kirin, como se lhe tivessem
perguntado — precisa encontrar a Dama do Jardim de Gelo,
que roubou seu querido companheiro.
A mulher sábia fez um barulho compassivo ao palitar os
dentes com uma espinha de peixe.
— Pobre menina. Nenhum homem pode ser roubado pela
Dama do Jardim de Gelo, a não ser que concorde em ser
levado. — Ela olhou para Girida. — Se for até lá, verá coisas
que serão entristecedoras, chocantes e dolorosas para você.
Tem certeza de que quer fazer a viagem?
Girida hesitou apenas por um instante.
— Sim, eu devo ir. Na minha mente só há a imagem de
Keiken, desde que ele foi embora.
— Deve ser uma mente bem pequena, para ser preenchida
com tanta facilidade — resmungou a mulher. — Muito
bem. — Ela pegou um peixe ressecado e começou a
desenhar um mapa nele. Mostrou o peixe ao kirin. — A
Dama do Jardim de Gelo tem um palácio de inverno aqui,
nas montanhas a oeste. Agora, podem ir.
— Espere! — bradou o kirin. — Se a Dama é uma inimiga
tão temível, não deveria ser dada mais proteção a Girida? Eu
sei que a senhora tem muitas poções, amuletos e
encantamentos. Não pode dar a ela a força de dez
guerreiros, ou uma adaga mágica, ou alguma outra coisa?
A mulher sábia encarou o kirin por um instante e em
seguida riu e riu e riu, a barriga pequena e arredondada
balançando.
— Meu Deus, meu Deus, não faz muito tempo que você
está no nosso mundo, não é? A Dama do Jardim de Gelo
trava batalhas do espírito, não com as armas ou a força dos
músculos. Esta menina já tem, dentro de si, todas as armas e
armaduras que você jamais terá. Se elas serão suficientes, eu
não sei. Ah, espere, tem uma coisa que posso dar a ela. — E
avançou para um baú de madeira, do qual tirou um manto
feito de pele de urso. Mancou até chegar perto de Girida e
disse: — Vista isso.
Girida se esquivou.
— Essa coisa... está suja, impura. — Ela lançou um olhar
incerto para o kirin.
A mulher sábia suspirou.
— Se vestir isso, você ainda terá muitos anos para entoar
orações para que o abençoado Amida a perdoe. Se você
congelar até a morte, não terá.
— É um pecadinho de nada — afirmou o kirin, gentil, para
Girida. — E melhor você fazer o que ela sugere.
Então Girida vestiu o manto de pele de urso. Todos saíram
da cabana e a mulher ergueu Girida para colocá-la nas
costas do kirin.
— Boa sorte para você, criança — desejou a mulher sábia.
— E você — disse ela ao kirin —, volte para mim assim que
a tiver deixado lá e eu o ajudarei a achar seu caminho para
casa.
— Já fui! — disse o kirin, todo alegre, e saltou no ar. Mais
uma vez, Girida teve de se segurar com todas as forças
enquanto o kirin se lançava contra as nuvens para chegar
aos picos que formavam a cordilheira de Honshu. Voaram
tão assustadoramente perto dos afloramentos rochosos que
Girida fechou bem os olhos para não ficar aterrorizada com
o que via.
Mais depressa do que ela esperava, o kirin pousou de novo
em terra firme e parou.
— Aqui estamos. Desmonte, por favor.
Girida abriu os olhos e desceu das costas dele. Fazia muito,
muito frio. Sua respiração parecia virar gelo diante de seu
rosto. Ela apertou o manto de pele de urso em volta do
corpo, agora contente por ter aceitado o presente da sábia
mulher.
Estavam de pé junto a um muro de arbustos altos e cheios
de espinhos, no qual cresciam frutinhas vermelhas como
gotas de sangue. O portão torii8 diante deles era entalhado
em madeira de cerejeira. Gravados nos pilares e na viga
mestra do portão havia demônios oni em meio a batalhas.
— Agora eu devo deixá-la — disse o kirin. — Que você
venha a conhecer a bênção de Amida. — Ele roçou a cara
peluda contra o rosto dela por um instante e depois saltou
no ar, desaparecendo rapidamente na neblina que os
envolvia.
Girida sentiu-se muito só. Contudo, tinha ido longe demais
para deixar o medo paralisá-la agora. Cruzou as vigas do
assoalho do portão e entrou no Jardim de Gelo.
Era lindo, de um modo estranho. Havia lanternas e pontes
esculpidas no gelo, cervos feitos de gelo pastando, flores de
cristais de gelo, pinheiros cujas folhas eram de lascas de
gelo. Iincantada, Girida atravessou uma das pontes de gelo,
entrando mais e mais no jardim.
E então viu os homens. Guerreiros com expressões
ameaçadoras montando guarda congelada. Mas suas
armaduras eram formadas por placas de gelo e as espadas
eram pingentes afiados. Olhavam para a frente, olhos
vidrados, encarando algum inimigo invisível. Girida passou
por eles andando na ponta dos pés, mas não fazia diferença.
Eles não a notavam. Não conseguiam.
Girida subiu os degraus de gelo que levavam ao palácio
propriamente dito. Ela entrou em um salão cujas pilastras
eram de gelo, cujo assoalho era de gelo, cujas mesinhas eram
de gelo. No meio do salão havia um jovem de pele azul
pálida.
— Keiken! — gritou Girida e correu até ele. Desta vez era
mesmo Keiken, e ela abriu os braços para abraçá-lo.
— Não se aproxime! — gritou Keiken com a mandíbula
fechada, congelada. — Não toque em mim!
Girida cambaleou para trás, magoada como se uma agulha
tivesse sido enfiada em seu coração.
— Mas, Keiken, sou eu, Girida. Sua amiga querida. Você
não está feliz em me ver?
— Por que você veio aqui? — Keiken a interpelou. —
Mandei chamá-la? Dei alguma razão para você acreditar que
eu queria que me seguisse?
Girida sentiu lágrimas quentes formando-se em seus olhos.
— Nós... nós estávamos tão preocupadas. Sua mãe não sabe
onde você está. Não penso em mais nada, a não ser em você,
desde que foi embora. Nada disso tem importância para
você?
— Por que deveria ter? — rosnou Keiken. — Tais coisas
são do interesse de um homem? Eu contemplo o Vazio
Absoluto, eu celebro a Morte, o banimento do medo. Tirei a
compaixão do meu coração e agora estou ansioso para
esmagar os inimigos sob minhas sandálias até que só eu viva
para rir deles. E você ousa vir até mim choramingando
sobre minha mãe e os seus pensamentos a meu respeito? Ah!
Eu vim embora porque vi a criatura fraca e sem valor que
você é.
As lágrimas começaram a descer pela face de Girida, mas
agora eram lágrimas de raiva, mais que de tristeza. Ela
notou que, ao longo do discurso, Keiken não havia se
movido. Ele estava congelado naquele lugar, tornando-se
mais uma das sentinelas que se sobressaíam no jardim.
Apesar de toda aquela fala corajosa, estava indefeso.
Girida correu até Keiken e jogou os braços em volta dele.
Ignorou seus protestos de "O que você está fazendo? Saia de
cima de mim imediatamente!".
Chorou abertamente no peito dele, deixando suas lágrimas
quentes fluir sobre seus ombros e descer por seus braços,
aquecendo a pele do amigo. Sentiu Keiken começando a se
mover debaixo de si.
De repente, ele a agarrou e a atirou ao chão.
— Veja o que você fez! — ele gritou, olhando para si
mesmo. — Eu estava ficando forte! Estava me esquecendo
de tudo. Escapava da minha dor. Não estava sentindo nada.
E agora você quer que eu seja fraco como você. Deseja que
eu sofra, chore, tenha necessidades, sinta vergonha e
solidão. Eu me recuso! Está ouvindo? Você não está vendo?
Eu estava bem melhor congelado. Como pode dizer que se
importa comigo se você me destruiu?
Keiken fugiu do salão. Girida levantou-se e observou da
varanda quando ele se lançou no jardim e saltou em um lago
congelado. Mas o gelo só cobria a superfície e Keiken ficou
encharcado ao cair através dele. Conseguiu sair de lá
cambaleando, mas a frigidez do ar logo o congelou, até que
ficou duro e imóvel como os outros guardas, que
permaneciam em sentinela contra inimigos que só existiam
em seu interior.
Girida já não sabia mais o que fazer. Começou a murmurar o
Sutra de Lótus por ele, mas foi interrompida quando uma
mão tocou seu ombro.
Voltou-se. Viu uma mulher pálida como a neve, cabelos
negros como a noite, olhos escuros como a obsidiana,
trajando quimonos azuis claríssimos.
— Desculpe-me por ser uma péssima anfitriã — disse a
mulher —, mas eu estava em outro lugar, ocupada. Você é
Girida, não é? Keiken disse seu nome algumas vezes,
enquanto dormia.
— Por favor — Girida implorou —, liberte-o. Salve
Keiken. Pu lhe darei qualquer coisa.
— Isso é impossível, criança. Ele sempre esteve livre para ir
embora. Foi escolha dele ficar. Mas eu devo lhe agradecer,
pois você me fez um favor.
— Fiz?
— Eu procuro um companheiro de força e sabedoria
imensas. Contudo, você me mostrou que Keiken é fraco. Ele
rejeitou o conhecimento de si mesmo. Ele não me merece.
Nem a você. — Ela tirou uma pedra da manga e jogou-a em
Keiken. Ele desmoronou, uma pilha de cacos de gelo sobre a
neve.
Girida ofegou, levando a mão à boca.
— Não!
— É tão fácil quebrá-los — suspirou a Dama do Jardim de
Gelo. — O salgueiro pode até encarar com desprezo a grama
que cresce em suas raízes, mas quando vêm as grandes
tempestades, quem se quebra é o salgueiro, não a grama. Vá
para casa, Girida. Não há nada para você aqui. Nunca houve.
— Por que você faz isso? — interpelou Girida.
— Sou o que sou. Os homens me procuram. Por alguma
razão, nesta época e neste lugar, muitos desejam vir até
mim, acreditando que estar em meus braços é a façanha
mais valiosa que existe. Eu deveria ficar lisonjeada, mas,
como você pode ver, os mais fortes e mais sábios nunca me
procuram, e nunca procurarão. Portanto, estou destinada a
ficar eternamente decepcionada. Mas não você. Vá para
casa.
A neblina se concentrou em volta de Girida até sua visão
ficar obscurecida. Quando a névoa se dissipou, ela estava em
pé diante do barraco de sua mãe. Aquele lugar pobre e
ordinário nunca lhe pareceu tão maravilhoso.
Os anos se passaram e Girida casou-se com um humilde
sapateiro. Aprendeu a esculpir em madeira e a cuidar da
contabilidade. Tiveram filhos e ela riu e chorou e sentiu
grandes tristezas e grandes alegrias com sua família. Quando
o marido e a mãe morreram, Girida vestiu o manto de freira
budista. Tornou-se sábia e peregrina, viajando por toda
Honshu e escrevendo sobre as coisas extraordinárias que
tinha aprendido e visto. E quando, por fim, ela chegou à
Terra Pura e reencontrou o kirin, pôde dizer a ele:
— Eu tive uma vida plena, e essa foi a maior bênção de
todas.

Kara Dalkey, recém-chegada ao noroeste do Pacífico,


começou a carreira de escritora como membro do grupo de
escritores de Minneapolis chamado The Scribblies. Até
hoje, já publicou quinze romances fantásticos e doze contos.
Entre suas obras mais recentes estão Genpei, romance
histórico de literatura fantástica que se passa no Japão, e
The Water Trilogy, série para adolescentes, descrita por
ela como "os mitos de Atlântida e do Rei Arthur depois de
passarem pelo liqüidificador". Ela se diverte com seus dois
gatos, jogando Ultima Online e tocando baixo elétrico em
uma banda de rock clássico.

Nota da Autora
"A Dama do Jardim de Gelo" é a minha visão da famosa
história "A Rainha da Neve", de Hans Christian Andersen.
Estudiosos da história de Andersen já disseram que "A
Rainha da Neve" trata do fim da infância e do começo da
indiferença da idade adulta. Declaram que Andersen estava
censurando o modo como a inocência de olhos arregalados e
a franqueza das crianças se perdem quando elas abraçam as
atitudes sedutoras, mas frias, dos adultos.
A centelha para que eu escrevesse minha própria versão de
"A Rainha da Neve" aconteceu enquanto eu ministrava um
curso sobre escrita de literatura fantástica no Western State
College, em Gunnison, Colorado. Eu explicava à turma
como é possível pegar uma história antiga e adaptar ou o
mesmo enredo a novos lemas ou os mesmos temas a um
novo cenário. Na época, meu livro mais recente era
Genpei, fantasia histórica que se passava no final da era
Heian, período em que a cultura pacífica, artística e
aristocrática estava sendo substituída pelas guerras civis e
pela cultura dos guerreiros samurais que viria no período
Kamakura.
Pesquisando sobre essa época, fiquei chocada ao descobrir
que garotos muito jovens, com 12, 14 anos, deveriam
acompanhar os pais e tios nas batalhas, até para participar
das matanças, e que isso era um rito de passagem para a fase
adulta. O caminho dos samurais é aceitar a morte e
considerar-se morto, para que a morte não seja temida
durante a vida e, na hora em que chegar, não seja uma
surpresa. Parecia-me bastante estranho esperar que as
crianças da época lutassem para alcançar a frieza dos
adultos. A ressonância com a temática de "A Rainha da
Neve" de repente parecia ser bem mais adequada do que o
próprio Andersen poderia ter imaginado.
Outros escritores, especialmente Kelly Link, com sua histó-
ria "Viagens com a Rainha da Neve", lidam com temáticas
feministas que viram no conto de Andersen. Afinal de
contas, é um garoto quem vai embora e uma garota quem
vai atrás dele, perguntando por quê. Em virtude da
transição, no final da era Heian, de uma cultura artística
mais "feminina" para uma cultura masculina de guerreiros
samurais, essa referência à guerra dos sexos também entrou
na minha versão.
As melhores narrativas são aquelas que transcendem épocas
e culturas, aquelas que têm significados e transcedem eras
depois de terem sido escritas — ainda que os novos
significados encontrados sejam bem diferentes daqueles
desejados pelo autor original. Espero que "A Dama do
Jardim de Gelo" possa ser vista como uma homenagem à
obra de Hans Christian Andersen, um dos melhores
contadores de histórias de todos os tempos.
Garth Nix

O Baú da Esperança

uma manhã arrastada e poeirenta do verão de 1922,


um passageiro foi deixado para trás, chorando na
plataforma, quando o trem que distribuía leite partiu
de Denilburg após uma parada de cinco minutos. Num
primeiro momento ninguém percebeu, pois havia o apito do
trem, as ondas de vapor e a fricção das rodas de aço contra os
trilhos. O leiteiro estava ocupado com as latas e o chefe da
estação com a correspondência. Não havia mais ninguém por
perto, não enquanto o amanhecer ainda estivesse a meia
xícara de café de distância.
Quando o trem fez a curva, levando consigo seus barulhos, o
choro pôde ser ouvido com nitidez. O leiteiro e o chefe da
estação ergueram os olhos do trabalho e viram a fonte
daquele ruído.
Um bebê, embrulhadinho em um cobertor cor-de-rosa, estava
muito mal equilibrado sobre um enorme baú bem na beirada
da plataforma. A cada lágrima e sacudida, o bebê se
aproximava da ponta do baú. Se caísse, não cairia só de cima
da caixa, mas também da plataforma até os trilhos, mais de
um metro abaixo.
O leiteiro saltou sobre as latas, derrubando duas delas, as solas
de seus sapatos fazendo espirrar o leite derramado. O chefe da
estação largou a bolsa, deixando as cartas e os pacotes cair
como uma cascata sobre o leite.
Cada um deles segurou o bebê com uma mão no exato
segundo em que ele rolava para fora do baú. Ambos passaram
da beirada da plataforma e pisaram um no pé do outro ao
aterrissar, de forma pesada e dolorosa — mas em pé. O bebê
ficou perfeitamente equilibrado entre os dois homens.
Foi assim que Alice May Susan Hopkins chegou a Denilburg e
foi assim que ganhou dois tios sem nenhum parentesco, mas
com o mesmo nome: o tio Bill Carey, o chefe da estação, e o
tio Bill Hoogener, o leiteiro.
A primeira coisa que os dois Bills notaram quando pegaram o
bebê foi um bilhete preso ao cobertor rosa. Era um papel
marfim de boa qualidade, as palavras escritas com uma tinta
azul-escura que refletia o sol e cintilava quando segurado
contra a luz. Dizia:
"Alice May Susan, nascida no solstício do verão de 1921.
Cuidem dela e ela cuidará de vocês".
Não demorou muito para que a notícia da chegada de Alice
May Susan se espalhasse pela cidade e, menos de quinze
minutos depois, cinquenta por cento das mulheres adultas da
cidade despencavam na estação, trinta e oito delas
amontoadas em volta da pobre criança, quase sufocando-a.
Felizmente, em poucos minutos Eulalie Falkirk assumiu o
controle, como sempre fazia, e organizou uma lista para todas
abraçarem e beijarem a criança e olharem estupefatas e
fazerem estardalhaço e se preocuparem e fofocarem sobre ela.
Nos meses seguintes, a lista mudou a fim de incluir os
cuidados reais com a pequena Alice May Susan. Ela foi
passada das mãos de uma mulher casada para outra, mudando
de sobrenome a cada mês, à medida que ia de família em
família. Era uma menininha muito querida, todos diziam, e
Eulalie Falkirk teve dificuldade para decidir quem deveria
adotar a criança.
Sua decisão final foi baseada em uma coisa simples. Enquanto
a mulherada se ocupava de tomar conta do bebê, a maioria
dos homens se revezava para tentar abrir o tal do baú.
Parecia fácil abri-lo. Tinha cerca de 1,80 m de comprimento,
90 cm de largura e 60 cm de altura. Era amarrado com duas
correias de couro e tinha uma velha fechadura de latão, do
tipo cujo buraco da chave é tão grande que dá para enfiar o
dedo inteiro. Só que ninguém mais fez isso depois que
Torrance Yib colocou o dedo e, quando o tirou, faltava a
ponta, cortada bem na junta.
As correias também não se soltavam de jeito nenhum e, do
que quer que fossem feitas, não era de um couro que as
pessoas em Denilburg já tivessem visto. Era impossível cortá-
lo ou rasgá-lo, e as correias levavam todo mundo que tentava
abri-las à loucura, de tanta frustração.
Suspeitou-se de magias exóticas ou diabólicas, até que Bill
Carey — que entendia mais de bagagens que a cidade inteira
junta — apontou para uma placa de latão na parte inferior em
que estava escrito: "Fabricado nos EUA. Imp. Pat. Pend. Baú à
prova de roubo.". Então todos ficaram orgulhosos e elogiaram
tal progresso científico, só era uma pena que o nome da
empresa tivesse sido raspado, pois ela teria feito bons negócios
com a população de Denilburg, se eles ao menos soubessem
onde encomendar baús como aquele.
O único homem da cidade que não tentou abrir o baú foi Jake
Hopkins, o farmacêutico. Então, quando Stella Hopkins disse
que eles gostariam de adotar a bebê Alice May Susan, Eulalie
Falkirk teve certeza de que não desejavam fazê-lo por estarem
interessados no conteúdo do baú.
Portanto, Alice May Susan juntou-se à família Hopkins e foi
criada com as filhas biológicas de Jake e Stella: Janice, Jessie e
Jane, que na época tinham dez, oito e quatro anos. O baú foi
posto no sótão e Alice May Susan tornou-se, para todos os
efeitos, mais uma das meninas Hopkins. Não havia nela nada
de extraordinário, era apenas uma típica garota de Denilburg,
com uma vida bem parecida com a das irmãs mais velhas.
Até 1937, quando completou dezesseis anos.
Das três irmãs, só Jane estava em casa no aniversário de Alice
May Susan, em férias. Janice e Jessie haviam se casado e ido
embora; ambas moravam a uns trinta quilômetros dali. Jane
era diferente. Ela tinha ganhado uma bolsa de estudos que a
levara para uma faculdade do leste, onde arrumou todo tipo
de idéias. Uma delas incluía criticar tudo o que Alice May
Susan fazia ou dizia e contar os dias até poder pegar o trem
para sair da cidade e voltar ao que chamava de "civilização".
— E melhor você estudar mais para ter chance de sair deste
lugar — disse Jane, quando se sentaram na varanda para
comer o bolo de aniversário e ver a vida passar. Nada tinha
passado, a não ser que se considerasse o gato dos Prowell.
— Eu gosto daqui — disse Alice May. — Por que eu iria
querer ir embora?
— Porque aqui não tem nada! — protestou Jane. — Nada!
Não tem vida, não tem cor, não tem... coisas acontecendo!
Nunca acontece nada. Todo mundo se casa, tem filhos e
começa tudo de novo. Não há romantismo em nada nem em
ninguém!
— Nem todo mundo se casa — retrucou Alice May, depois
de uma pausa para engolir um pedaço de bolo grande demais.
— Você está falando da Gwennifer Korben — disse Jane. —
Ela é professora primária. Todo mundo sabe que essas
mulheres sempre são solteironas. Você não quer ser
professora primária.
— Talvez eu queira — respondeu Alice May. Ela lançou o
garfo no ar, traçando uma mancha prateada, e agarrou-o pelo
cabo antes que ele caísse.
— Quer mesmo? — perguntou Jane, momentaneamente
chocada. — Uma professora primária!
Alice May franziu a testa e jogou o garfo na parede. Ele ficou
preso, tremendo, junto aos huraquinhos na madeira, marcas
dos vários anos de prática da nobre arte do arremesso de
garfos.
— Não sei — ela disse. — Eu realmente sinto... sinto que
quero ser alguma coisa. Só não sei o quê.
— Estude — Jane aconselhou, firme. — Dê duro. Faça uma
faculdade. A educação é a única forma de uma mulher ter
vida própria.
Alice May assentiu, para evitar que a discussão se prolongasse.
Era seu aniversário e ela sentia raiva e aborrecimento, em vez
de alegria. O bolo estava delicioso e haviam tido um almoço
bastante agradável com a família e alguns amigos da escola.
Mas, de certo modo, seu aniversário parecia incompleto e
inacabado. Alguma coisa precisava ser feita, mas ela não sabia
o quê. Algo mais urgente do que decidir seu futuro.
Ela não precisou de mais que duas horas na cadeira de ba-
lanço da varanda para descobrir o que tinha de fazer e
aguardar o momento certo de fazê-lo.
O baú. Fazia tempo que nem sequer olhava para ele. Ao longo
dos anos ela tentara abri-lo muitas vezes, sozinha ou
acompanhada. Houve épocas em que ia diariamente ao sótão
para ver se por acaso ele não teria aberto sozinho. Em outras
ocasiões, passara meses sem se lembrar dele. Mas não
importava o que acontecesse, ela sempre fazia uma tentativa
de abri-lo no seu aniversário.
Mesmo quando se esquecia de tentar abri-lo, a presença
taciturna do baú permanecia com ela. Era um lembrete de
que ela não era exatamente igual às outras garotas Hopkins.
As vezes era uma sensação agradável, mas em geral não era,
especialmente à medida que ficava mais velha.
Alice May suspirou e resolveu fazer mais uma tentativa.
Aquela altura, já entardecia e o ar esfriava. Pegou sua
lamparina, cortou um pedaço do pavio e entrou em casa.
— Baú? — perguntou-lhe o pai adotivo, Jake, quando ela
passou pela cozinha. Ele estava preparando uma conserva de
limão, a cuidadosa atividade de sua farmácia transferida para
as artes culinárias. Ninguém em Denilburg fazia conserva de
limão, nem saberia o que fazer com os limões uma vez que
estivessem conservados.
— Baú? — perguntou Stella, que costurava na sala de estar.
— Baú? — perguntou Jane na escada, quando Alice May
passou por ela. — Baú?
— É claro, o baú! — soltou Alice May. Com raiva, ela baixou
a escada que levava ao sótão e subiu os degraus.
Era um sótão muito limpo, numa casa muito limpa. Só havia o
baú ali, encostado a uma janelinha que deixava entrar os
últimos raios do sol quente de verão. Um brilho vermelho
clareava a fechadura de latão e as lustrosas correias de couro.
Alice May ainda estava com raiva. Deixou a lamparina no
assoalho, pegou uma das correias e puxou. Quando ela se
soltou, Alice May caiu de costas e bateu com a cabeça no
chão. O som da queda ecoou pela casa. Houve uma hesitação
perceptível e então três vozes falaram em coro.
— Você está bem?
— Estou! — gritou Alice May, ainda mais zangada. Deu um
puxão violento na outra correia e ela também se soltou, mas
dessa vez Alice May estava preparada para isso. Ao mesmo
tempo, a fechadura de latão fez um "clique". Não era um tipo
de clique suave que fizesse você pensar ser fruto da
imaginação. Foi um clique lento, como se as poderosas
engrenagens de metal estivessem girando devagar.
A tampa do baú se levantou um centímetro.
Alice May sussurrou:
— Está aberto.
Ela avançou e levantou mais um pouco a tampa, que se
moveu com facilidade, as dobradiças flexíveis, como se
tivessem acabado de ser lubrificadas.
— Está aberto! — berrou Alice May. — O baú está aberto!
Os ruídos de uma agitação doida lá embaixo lhe deram a
certeza de que todo mundo a escutara desta vez. Antes que
pudessem chegar ao sótão, Alice May abrira totalmente a
tampa. Franziu a testa quando viu o que havia ali dentro. A
vida toda ela tinha esperado para abrir aquele baú, com medo
e também na esperança de encontrar uma pista para o
mistério de seu nascimento e de sua chegada a Denilburg.
Papéis, cartas, talvez uma Bíblia de família.
Não havia ali nada assim óbvio. Em vez disso, preso ao fundo
do baú, havia um rifle com alavanca, bem antigo, com uma
coronha de madeira escura polida e um cano octogonal de aço
azul-escuro com entalhes de flores prateadas.
Sob o rifle havia dois revólveres envoltos em coldres. Armas
grandes, seus canos também tinham entalhes em prata com o
motivo floral que se repetia nos coldres, embora não em prata,
e, sim, em linhas negras, sóbrias sobre o couro. Um cinto com
espaço para balas estava dobrado e preso entre os coldres.
Mais couro negro, mais flores bordadas em preto.
No lado esquerdo do baú, havia uma caixa de teca com a
palavra "munição" marcada a ferro na tampa, num elegante
trabalho de pirografía.
A direita, havia uma caixa de jóias coberta de veludo púrpura.
Embaixo da caixa de munição e da caixinha de jóias, no fundo
do baú, havia um vestido branco estendido. Alice May fitou a
estranha combinação de roupa de vaqueira com vestido de
noiva, feito da melhor e mais alva seda furta-cor, com os
braços e o colete — tinha um colete! — bordados com fileiras
de pérolas pequeninas. Parecia um pouco grande para Alice
May, principalmente na região do busto. Além disso, era tão
curto que chegava a ser indecente, tanto para um vestido de
noiva como para uma roupa de vaqueira. É provável que não
passasse dos seus joelhos.
— Um Winchester 73 — disse Jake atrás dela, apontando
para o rifle. Ele não fez nem menção de estender o braço e
tocar nas armas. — E dois Colt 44. Pacificadoras, acho eu. Igual
à que meu avô tinha no consolo da lareira na velha casa.
— Estranho — disse Jane, empurrando o pai para que ele
mudasse de lugar e deixasse ela e Stella subir.
— O que é que tem na caixinha de jóias? — Stella perguntou.
Falava num tom de voz abafado, como se estivesse em um
templo. Alice May olhou ao redor e viu que Jake, Stella e Jane
estavam encolhidos no topo da escada, como se não quisessem
se aproximar mais.
Alice May estendeu a mão para dentro do baú e pegou a
caixinha de jóias. Ao tocar o veludo, sentiu um tremor
estranho, elétrico, passar pelo corpo. Não era desagradável, e
ela teve a mesma sensação ao abrir a caixinha. Um arrepio de
entusiasmo percorreu seu corpo, dos pés à cabeça.
A caixinha guardava uma estrela de metal. Um distintivo de
xerife, ou alguma coisa do mesmo formato, embora não
houvesse nada gravado nele. A estrela brilhava mais que qual-
quer distintivo de policial que Alice May já vira, um prateado
cintilante que refletia o brilho vermelho do sol e o
intensificava e purificava, até que parecesse que ela estava
segurando nas mãos uma luz de gás acetileno, tão ofuscante
que a forçava a voltar os olhos para o lado e virar a estrela.
A luz esmaeceu, deixando pontos pretos dançando diante de
seus olhos. Alice May notou que havia um alfinete na parte
de trás da estrela, mas, de novo, não havia nada gravado no
lugar em que esperava ver um nome.
Alice May pôs a estrela de volta na caixinha e fechou-a,
soltando o ar que não percebeu estar segurando. Uma
exalação alta atrás dela lhe informou que o resto da família
também estava segurando o fôlego.
Em seguida, tirou o rifle das alças que o mantinham preso no
lugar. Parecia estranhamente natural segurá-lo e, sem
qualquer planejamento consciente, ela acionou a alavanca,
checou se o cano estava vazio e atirou em seco. Um segundo
depois, percebeu que não sabia o que tinha feito, mas que, ao
mesmo tempo, poderia repetir o movimento, e ainda mais.
Sabia carregar a arma e atirar, sabia como esvaziá-la e limpá-
la. Estava tudo na sua mente, embora só tivesse dado um tiro
em toda a sua vida, com a arma de caça de tiro único do tio
Bill.
Ela pôs o rifle de volta e pegou o par de revólveres. Eram
pesados, mas outra vez ela sabia instintivamente avaliar o
peso deles, carregados ou não. Colocou os revólveres, ainda
dentro dos coldres, no colo. As flores entalhadas nos canos
pareciam se mexer e flutuar enquanto ela as contemplava, e o
corte em ziguezague da coronha ficava mudando de lado. As
coronhas eram feitas de um tipo de osso — percebeu Alice
May — pintado de preto. Ou talvez fossem de ébano e nunca
tivessem sido pintadas.
Pla pegou um dos revólveres e de novo suas mãos se moveram
sem nenhum planejamento consciente. Ela puxou o tambor
para fora, girou-o, certificou-se de que ele estava vazio,
colocou-o de volta no lugar, levantou o cano, soltou o cão e
guardou a arma no coldre outra vez antes mesmo que sua
família adotiva tivesse leiiipo de piscar.
Alice May guardou os revólveres. Nem olhou a caixa com a i
uscrição "munição" na tampa. Fechou o baú com
determinação.

A fechadura fez outro clique e ela rapidamente atou as


correias. Depois se voltou para a família.
— É melhor a gente não comentar isso por aí... — ela
começou a dizer. E então percebeu a maneira como estavam
olhando para ela. Um olhar em parte confuso, em parte
admirado e em parte amedrontado.
— Aquela estrela — disse Jake.
— Tão brilhante — disse Stella.
— Suas mãos... Um borrão... — disse Jane.
— Eu não quero isso! — estourou Alice May. — Eu não...
Isso não sou eu! Eu sou Alice May Susan Hopkinsl
Empurrou Jane para o lado e quase caiu da escada, na pressa
de sair dali. Os outros a seguiram, mais devagar. Alice May já
tinha corrido para o quarto e todos a ouviram soluçar.
Jake voltou à cozinha e à conserva de limão. Stella voltou a
costurar. Jane foi até a porta do quarto de Alice May, mas deu
meia-volta no último instante e desceu as escadas para
escrever uma carta a uma amiga, dizendo que nada, nada
acontecia em Denilburg.
Quando Alice May desceu para o café da manhã no dia
seguinte, após uma noite praticamente sem dormir, os outros
estavam alegres e animados. Ao fazer uma tentativa de falar
sobre o que acontecera, ficou claro que, ou eles não tinham
nenhuma lembrança do que haviam presenciado, ou o
estavam negando com todas as forças.
Alice May não se esqueceu. Ela via a estrela prateada
reluzindo em seus sonhos e várias vezes acordou com a
sensação da coronha do rifle contra o rosto ou o peso
implacável dos revólveres nos coldres sobre suas coxas.
Com os sonhos veio um profundo sentimento de pavor. Alice
May sabia que as armas e a estrela eram uma espécie de
direito de nascença, e com elas vinha a consciência de que um
dia teriam de ser usadas. Ela temia esse dia e não podia
imaginar em quem... ou em que... ela deveria atirar. Às vezes,
a idéia de que talvez tivesse de matar outro ser humano a
assustava mais que qualquer outra coisa. Outras vezes, ela
ficava mais horrorizada ainda com a ideia estranha de que
talvez o que ela um dia enfrentaria não fosse humano.
Um ano se passou e o verão chegou novamente, mais seco e
quente do que nunca. As plantações da primavera morreram
nos campos, e com as pequenas sementes feneceram as
esperanças dos fazendeiros de Denilburg e da população que
dependia delas para ganhar dinheiro.
Ao mesmo tempo, inúmeros bancos que pareciam sólidos
faliram. Foi uma surpresa, especialmente por terem
sobrevivido à escassez de crédito de 1930 e à explosão da
bolha de tântalo dois anos antes. A quebra dos bancos foi
acompanhada por uma crise de desconfiança na moeda,
enquanto o país mudava das moedas de ouro e prata para as
de alumínio e cobre, sem nenhum valor real.
Um dos bancos que faliram foi o Third National Faith, que
guardava a maior parte das escassas poupanças dos habitantes
de Denilburg. Alice May descobriu tal fato quando chegou a
casa depois da aula e encontrou Stella chorando e Jake pálido
na cozinha, picando mecanicamente o que devia ter sido uma
abóbora.
Por um tempo, parecia que iam perder a farmácia, mas o
marido de Janice mantivera um estoque completamente ilegal
de moedas de ouro no valor de vinte dólares, aquelas com o
retrato da imperatriz Dowager. Vendê-las a um "colecionador
de moedas licenciado" gerou uma quantia suficiente para
pagar as dívidas dos Hopkins e manter a loja ativa.
Jane, porém, teve de largar a faculdade. Sua bolsa foi afetada
negativamente pela inflação, e Jake e Stella não tinham condi-
ções de lhe dar nada. Todos esperavam que ela voltasse para
casa, mas ela não voltou. Em vez disso, escreveu uma carta
dizendo que tinha conseguido um emprego, um bom emprego
com um belo futuro pela frente.
Levou mais alguns meses e algumas cartas para que
descobrissem que o emprego de Jane era numa organização
política chamada Servos do Estado. Ela enviou uma ferrotipia
de si mesma de uniforme preto com distintivos e uma
braçadeira com uma tocha desenhada. Jake e Stella não
puseram a foto no consolo da lareira, ao lado dos retratos que
davam conta da vida das irmãs.
A chegada da ferrotipia de Jane coincidiu com o fato de Alice
May — e mais todo mundo — estar refletindo muito a
respeito dos Servos. Durante vários anos, eles pareceram um
grupo inofensivo. Apenas mais uma organização política
pseudomilitar direitista, intolerante e reacionária, com
algumas cadeiras no Congresso e uns dois cargos consultivos
no Palácio.
Mas na época em que Jane se tornou membro do partido, as
coisas haviam mudado. Os Servos tinham encontrado um
novo líder em algum lugar, um homem a quem chamavam de
Mestre. Ele parecia ser bastante comum pelos jornais, um
sujeito baixinho com uma barba esquisita, topete grande e
olhos arregalados. Era um pouco parecido com o comediante
Harry Hopalong, que tinha o mesmo tipo de cavanhaque
muitíssimo bem aparado — só que o Mestre não era
engraçado.
Era óbvio que o Mestre tinha um carisma que não podia ser
captado pelo processo de ferrotipia ou reproduzido em
publicações. Ele viajava o país constantemente e, onde quer
que aparecesse, influenciava os políticos locais, os empresários
importantes e grande parte da população. Prefeitos deixavam
seus partidos políticos e se uniam aos Servos. Barões do
petróleo e do tântalo faziam doações generosas. Professores
escreviam ensaios apoiando as teorias econômicas do Mestre.
Multidões se aglomeravam para aplaudir e venerar os avanços
do Mestre.
Em todos os lugares onde a popularidade dos Servos crescia,
havia assassinatos e incêndios criminosos. Os adversários dos
Servos morriam. Minorias de todos os tipos eram perseguidas,
especialmente os Primeiros Povos e os adeptos das principais
heresias. Mesmo os templos ortodoxos, cujos Arúspices não
concordavam que o destino estava a favor dos Servos, eram
queimados completamente.
Assédios, espancamentos, assassinatos, incêndios e estupros
não eram investigados de maneira adequada quando eram
praticados por Servos ou em nome deles. Se investigados, os
casos nunca eram levados a julgamento com sucesso, fosse no
Tribunal Estadual ou no Imperial. A polícia local deixava os
Servos agir como bem entendessem.
O imperador, homem já muito idoso que ficava abrigado no
palácio em Washington, nada fazia 3. As pessoas falavam com
nostalgia de seus dias de glória, quando liderava batalhas nos
topos dos montes e atirava em ursos. Mas isso já fazia muito
tempo e agora ele estava senil, ou perto disso, e o príncipe
herdeiro da Coroa sofria de uma preguiça quase terminal; era
um bufão sorridente, que não podia ser incitado a tomar
qualquer tipo de atitude.
Em Denilburg, Alice May se sentia isolada do que estava
acontecendo nos outros lugares. Mas, mesmo naquela cidade
pequena e pacata, ela viu a ascensão dos Servos. As duas lojas
pertencentes aos que os Servos chamavam de Outros —
basicamente as pessoas que não eram brancas e não os
cultuavam com regularidade — tiveram tochas vermelhas
pintadas em suas janelas e perderam a maioria dos clientes.
Em outras cidades seus proprietários teriam sido espancados
ou jogados em alcatrão e cobertos de penas, mas em
Denilburg ainda não se havia chegado a esse ponto.
Pessoas que Alice May conhecera a vida inteira falavam a
respeito da Conspiração Internacional dos Outros e de como
eles eram culpados pelo insucesso dos bancos, das plantações
e de todos os outros insucessos — especialmente seus próprios
insucessos nas coisas do dia-a-dia.
Alice May compreendeu que algo muito grave estava
acontecendo no dia em que seu tio Bill Carey passou em
frente à casa dela vestido não com o uniforme verde e azul de
chefe de estação, mas, sim, com o preto e vermelho dos
Servos. Alice May foi à rua para perguntar-lhe que diabos ele
achava que estava fazendo. Mas quando parou diante dele, viu
um estranho vazio em seu olhar. Não era o Bill Carey que ela
conhecia desde bebê. Instintivamente, soube que algo havia
acontecido com ele, que o tio adotivo que conhecia e amava
tinha mudado, que sua humanidade natural estava sendo
soterrada por algo horrível e venenoso.
— Louvado seja o Mestre — soltou Bill quando Alice May o
olhou. Sua mão subiu até o ombro e bateu contra o peito, na
saudação de golpe de faca dos Servos.
Ele não disse mais nada. Seus olhos estranhos fitavam o nada,
até que Alice May deu um passo para o lado. Ele andou a
passos largos e ela correu para dentro de casa, sentindo-se
mal.
Mais tarde ela soube que ele tinha ido a Jarawak City, a
capital do estado, no dia anterior. Tinha visto o Mestre
discursar, só por curiosidade, assim como outras pessoas de
Denilburg. Todos eles retornaram como Servos leais.
Alice May tentou conversar com Jake e Stella sobre Bill, mas
eles não lhe deram ouvidos. Tinham medo de falar sobre os
Servos e não aceitavam o fato de que algo fora feito a Bill. Do
seu ponto de vista, ele simplesmente tinha decidido seguir a
maré.
— Quando as coisas estão difíceis, as pessoas acreditam em
qualquer coisa que ponha a culpa nos outros — disse Jake. —
Bill Carey é um homem bom, mas o salário dele não subiu
com a inflação. Acho que ele se aguentou por um tempo e que
o Mestre de alguma forma lhe deu esperança.
— Esperança misturada com ódio — retrucou Alice May. Ela
ainda estava enojada por ter visto Bill com o uniforme dos
Servos. Era ainda pior que a ferrotipia de Jane. Mais real e
mais próximo. Era um erro, um erro, um erro.
Uma batidinha na porta interrompeu a conversa. Jake e Stella
trocaram olhares assustados. Alice May franziu a testa,
zangada por seus pais adotivos ficarem com medo de algo
simples como uma batida na porta. Eles não teriam
demonstrado medo antes. Ela saiu como um tufão para abrir a
porta, correndo pela sala numa velocidade que derrubou o
retrato do avô de Stella no chão. O vidro se estilhaçou e a
moldura se partiu em duas.
Não havia ninguém lá fora, mas uma notificação fora
empurrada por debaixo da porta. Alice May pegou o papel,
viu o preto, o vermelho e a tocha em chamas e entrou em
casa pisando forte, batendo a porta atrás de si.
— O Mestre está vindo para cá! Esta tarde! — exclamou,
balançando o papel diante de si. — Num trem especial. Ele
vai discursar do trem.
Pôs o dedo na última linha.
— Aqui diz que "Todos devem comparecer" — disse ela,
sombria. — Como se não pudéssemos escolher quem
queremos ouvir.
— E melhor a gente ir — murmurou Stella. Jake assentiu.
— O quê? — gritou Alice May. — Ele é só um político!
Fiquem em casa.
Jake fez que não com a cabeça.
— Não. Não. Já ouvi dizer o que acontece quando as pessoas
não vão. Temos de pensar na loja.
— E meu avô era um homem dócil, conciliador — Stella
disse baixinho. Ela olhou para os cacos de vidro e a pintura
amassada. — Não vamos dar a eles um motivo para investigar
nossa família. Precisamos ir.
— Eu não vou — anunciou Alice May.
— Você vai, enquanto viver nesta casa — vociferou Jake,
numa rara demonstração de mau humor. — Não vou deixar
que a vida de todos nós e a nossa fonte de sobrevivência
corram risco por causa dos caprichos de uma menina tola.
— Eu não vou — repetiu Alice May. Sentia-se
estranhamente calma, claramente mais calma que Jake, cujo
rosto enrubescera com a súbita raiva, e Stella, que estava
mortalmente pálida.
— Então é melhor você ir embora de uma vez por todas —
disse Jake, feroz. — Vá procurar seus pais verdadeiros.
Stella chorou enquanto ele falava e se agarrou ao braço dele,
mas não disse nada.
Alice May olhou para os únicos pais que conhecera. Sentiu
como se estivessem numa cena de cinema, com todos presos
ao roteiro. Havia certa inevitabilidade nas palavras de Jake,
mas ele parecia tão surpreso ao dizê-las quanto ela ficara ao
ouvi-las. Ela viu o terror no fundo dos olhos dele e também a
vergonha. Ele já estava com medo da pessoa que estava se
tornando, com medo do lugar para onde seus temores o
estavam levando.
— Vou fazer as malas — anunciou Alice May, num tom de
voz que soou débil aos seus próprios ouvidos. Não era o Jake
de verdade quem havia falado, ela sabia disso. Ele era um
homem acanhado. Não sabia como ser audaz, e a raiva era a
única válvula de escape que tinha para não admitir sua
covardia.
Alice May não arrumou as malas. Passou no seu quarto para
pegar um par de botas de montaria e depois subiu para o
sótão. Abriu o baú, soltando um suspiro aliviado ao ver que as
correias e a fechadura não ofereciam resistência. Pegou a
caixa em que estava escrito "munição" e a colocou no chão; ao
lado dela pôs os revólveres guardados nos coldres e o cinto.
Em seguida se despiu, ficando só com as roupas de baixo, e
colocou o vestido branco. Ficou perfeito em seu corpo, como
já imaginava. No ano que se passara desde a primeira vez que
vira o vestido, havia crescido o suficiente para que dois botões
abertos pudessem descarrilar os trens de pensamentos e
conversas da maioria dos garotos que conhecia — e de alguns
dos homens.
O vestido não era decotado, mas apertava seus seios e cintura
antes de alargar-se, e era ousadamente curto, com seus três
centímetros acima dos joelhos. O colete também era feito sob
medida para mostrar suas formas. O estranho é que parecia
ser bordado com tranças de fios de cabelo. Cabelos louros, de
cor idêntica aos dela.
O vestido, mesmo sem o colete, era frio ao toque, como se
tivesse saído de um baú de gelo. A temperatura do lado de
fora tinha feito o mercúrio subir até o topo no velho
termômetro que havia ao lado da porta da cozinha, e o sótão
estava abafado. Alice May não estava nem sentindo calor.
Em seguida, ela prendeu os revólveres. O cinto descansava em
seus quadris, com os coldres mais abaixo, contra as coxas.
Descobriu que no lugar onde ficava o cinto o vestido era
revestido com uma camada dupla de tecido, para evitar que
ficasse gasto, e que havia pequenos laços para prender a alça
de ambos os coldres ao vestido.
Abriu com facilidade a caixa de munição. Dentro, havia uma
dúzia de latinhas azuis. Por algum motivo, Alice May não se
surpreendeu ao ver as descrições, escritas à mão em etiquetas
grudadas às latas. Seis delas levavam o rótulo de "Colt .45
Fourway Silver Cross" e seis o de "Winchester 44-40
Silvercutter".
Ela abriu uma lata de .45 Fourway Silver Cross. Os cartuchos
bojudos de latão estavam cheios de balas de chumbo, mas na
cabeça de cada uma delas havia quatro linhas grossas de prata.
Alice May sabia que era prata de verdade. Os cartuchos para
Winchester eram parecidos, mas as balas eram de prata ou de
chumbo recoberto de prata.
Alice May carregou rapidamente ambos os revólveres e
depois o rifle, e encheu os espaços no cinto com os dois tipos
de cartuchos. Por instinto, sabia que munição usar em cada
arma e pôs somente cartuchos da .45 Silver Cross à esquerda
da fivela com a insígnia de águia, e cartuchos da 44-40 à
direita.
Mesmo com o rifle ainda no chão, os revólveres e o cinto
carregado de balas já faziam bastante peso sobre seus quadris
e coxas.
Ainda havia mais uma coisa no baú. Alice May pegou a
caixinha de jóias e abriu-a. Antes de ser tocada, a estrela
estava opaca, mas começou a brilhar quando ela a colocou.
Também era pesada, mais pesada do que deveria ser, e seus
joelhos se dobraram um pouco quando o alfinete fechou.
Alice May ficou paralisada por um instante, respirando
devagar, tirando de cima de si o peso que era tanto imaginário
como real. A luz de sua estrela foi esmorecendo a cada
respiração, até não passar de um pedaço de metal brilhante
refletindo o sol. Então, tudo pareceu mais leve. Os revólveres,
o cinto, a estrela — e sua própria alma.
Ela fechou o baú, sentou-se sobre ele e calçou as botas. Em
seguida, pegou o rifle e desceu a escada.
Não havia ninguém lá embaixo. O vidro quebrado e o porta-
retratos ainda estavam no chão, em total contradição à
natureza e aos hábitos de Stella. A pintura havia sumido.
Alice May saiu pela porta dos fundos e rapidamente
atravessou a rua para ir à casa de tio Bill. O outro tio Bill, Bill
Hoogener. O leiteiro. Queria falar com ele antes que ela...
fizesse o que quer que fosse fazer.
Havia uma calma incomum na rua. Soprou uma brisa quente,
levantando redemoinhos de poeira que rodopiavam às
margens da rua de cascalho. Não havia ninguém nas ruas.
Nenhuma criança brincando. Ninguém andando, dirigindo ou
cavalgando. Só havia o vento quente e as botas de Alice May
pisando o cascalho, a andar os noventa metros em diagonal
até a casa de Hoogener.
Ela parou na cerca de estacas. Uma tocha vermelha fora
pintada na porta entreaberta, a tinta ainda fresca e pingando.
As mãos de Alice May puxaram a alavanca do rifle sem pensar
conscientemente, e ela empurrou a porta, abrindo-a com a
ponta da bota.
A frieza do vestido se espalhava por sua pele, só que agora
fazia mais frio, um gelo absoluto. Bill, como o sobrenome
entregava, era descendente dos Unicistas, embora não fosse
praticante. Os Servos reservavam um ódio especial aos
unicistas monoteístas.
A sala toda tinha sido quebrada. Todas as pinturas de Bill
retratando a cidade e sua população, uma vida inteira de
trabalho, estavam amassadas no chão. O enorme porta-
guarda-chuva fora arrebentado, e as bengalas e guarda-chuvas
que ficavam guardados ali tinham sido usados como cacetetes
para esmurrar o reboco. Havia muitos buracos, o papel de
parede pendendo em volta deles como pele ferida.
Havia sangue no chão. Muito sangue, um grande oceano
escuro perto da porta e poças menores cujos rastros levavam
ao interior da casa. Uma marca de mão feita de sangue ao lado
da porta da cozinha mostrava onde alguém — não, não
alguém, pensou Alice May, mas Bill, seu tio Bill — havia se
apoiado.
Ela andou em meio aos destroços, com mais frio ainda, o pior
frio que já tinha sentido. Seus olhos se voltavam lentamente
de um lado para o outro, o cano do rifle, com suas flores de
prata, seguindo seu olhar. O dedo estava colocado no gatilho,
a um instante de distância do disparo, do tiro, da morte.
Tio Bill estava na cozinha. Estava sentado com as costas
apoiadas no fogão, a pele pálida, quase translúcida contra o
esmalte amarelo da porta do forno. Seus olhos estavam
abertos e incrivelmente claros, mais brancos que qualquer
leite que ele já carregara, mas suas pupilas azul-celeste
estavam embotadas, escurecendo, ficando tão negras quanto a
pequena gravata borboleta que pendia sobre seu peito, o
elástico rompido.
Sua boca estava aberta, um buraco disforme e escancarado.
Levou um tempo para que Alice May percebesse que a língua
dele tinha sido cortada.
Da cintura para baixo, as roupas brancas geralmente
impecáveis de Bill estavam pretas, empapadas e
completamente encharcadas de sangue. Gotas ainda pingavam
dele e caíam lentamente na mancha embaixo de suas pernas.
Alguém tinha usado o mesmo sangue para pintar no chão
uma tocha malfeita e duas palavras. Porém o sangue tinha se
espalhado e as palavras se juntado, por isso era impossível ler
o que quer que os assassinos de Bill pretendessem comunicar.
De qualquer forma, a tocha era suficiente para que a morte
fosse reivindicada pelos Servos.
Alice May contemplou seu tio morto, pensando coisas
terríveis. Não havia desconhecidos naquela cidade. Ela devia
conhecer os assassinos. Podia vê-los com facilidade. Homens
vestidos com o uniforme vermelho e preto, bebendo uísque
para ganhar coragem. Teriam passado diante da casa dezenas
de vezes antes de finalmente baterem à porta de Bill. Talvez
tivessem falado normalmente com ele por um minuto, antes
de empurrarem-no para dentro. Então teriam golpeado, e
golpeado, e golpeado Bill, enquanto ele cambaleava pelo
corredor da própria casa, incapaz de acreditar no que estava
acontecendo e incapaz de resistir.
Bill Hoogener tinha morrido nas mãos de vizinhos, sem ter a
menor ideia do que estava acontecendo.
Alice May sabia o que estava acontecendo. Sabia, lá no fundo.
O Mestre era um mensageiro do mal, um corruptor de almas.
Os Servos não eram Servos do Estado, e, sim, escravos de
algum veneno terrível e traiçoeiro que mudava sua natureza e
os tornava capazes de cometer crimes horríveis como o
assassinato de tio Bill.
Ela andou em direção a ele, em direção à poça de sangue. Um
eco lhe respondeu, outro som de passos vindos do quintal
além da porta da cozinha.
Alice May parou onde estava, em silêncio, aguardando. Os
passos continuaram e a porta de tela se abriu. Um homem
entrou sem olhar para onde estava indo. Vestia um casaco
preto dos Servos sobre o macacão azul e sem mangas. Havia
manchas de sangue acima de seus joelhos. Seu nome era
Everett Kale, auxiliar de açougueiro. Uma vez ele saíra com
Jane Hopkins e dera a uma bem jovem Alice May uma das
flores do ramalhete que havia trazido para Jane.
A estrela de Alice May resplandeceu e Everett ergueu o olhar.
Viu Alice May, a estrela, o rifle apontado. Sua mão procurou
o facão de cabo de osso que chacoalhava na bainha de
açougueiro na lateral do macacão.
O tiro fez um barulho muito alto no ambiente limitado, mas
Alice May não hesitou. Puxou a alavanca, a ação tão rápida
que o som pareceu ter se retardado, e ela despejou outro
cartucho no homem, que tinha caído porta afora. Ele já
estava morto, mas ela queria ter certeza disso.
O barulho saudou Alice May quando ela saiu da casa. Berros e
brados surpresos. Havia três homens no quintal, olhando o
açougueiro morto no chão. Tinham entrado na fábrica de
cerveja caseira de Bill e estavam todos segurando garrafas de
uma cerveja escura e densa. Deixaram as garrafas cair quando
Alice May saiu atirando.
Estavam armados com pistolas automáticas novas e finas, que
se ajustavam aos pequenos coldres dos cintos presos às suas
túnicas pretas. Nenhum deles conseguiu sacar a pistola. Em
segundos, estavam todos no chão, mortos, seu sangue se
misturando à cerveja escura e espumante, estrebuchando
sobre uma cama de vidro quebrado.
Alice May os observou de um lugar estranho e sombrio
dentro da própria cabeça. Ela os conhecia, mas não sentia
remorso. Açougueiro, padeiro, um inútil e um minerador.
Todos moradores da cidade.
Suas mãos tinham comandado a matança. As mãos e o rifle.
Mesmo agora as mesmas mãos estavam recarregando, tirando
balas do cinto e colocando-as com um clique gratificante no
pente da pistola.
Alice May percebeu que não exercia nenhum controle
consciente sobre as mãos. Em algum o momento entre abrir a
porta da frente da casa de Bill e entrar na cozinha, ela havia
se transformado em uma observadora dentro do próprio
corpo. Mas não se amedrontou com isso. Fizera o que era
certo e percebia que ainda tinha domínio sobre os próprios
atos. Não era um zumbi ou coisa parecida. Podia decidir
aonde iria em seguida, mas seu corpo — e as armas — a
ajudariam a fazer o que tinha de ser feito quando chegasse ao
seu destino.
Ela se desviou dos corpos que ainda se mexiam e saiu pelo
portão dos fundos. Deu em outra rua vazia com o inclemente
vento quente, a poeira e a completa ausência de pessoas.
Deveria ter surgido uma multidão para ver o porquê do
tiroteio. Os dois policiais da cidade deveriam chegar
cavalgando seus dois cavalos cinzentos. Mas só havia Alice
May.
Ela desceu a rua a caminho da estação de trem. Os saltos das
botas esmagavam o cascalho. Teve a impressão de que nunca
tinha ouvido aquele barulho singular, não com tamanha
clareza e tão alto.
O vento mudou de direção e soprou contra ela, mais forte e
quente do que nunca. A poeira subiu, uma poeira densa que
carregava aglomerados de pedregulho. Porém nenhum
atingiu Alice May, nenhum entrou em seus olhos. O vestido
branco os repelia, o vento parecia se dividir ao chegar nela,
com grandes correntes de pó e pedrisco voando dos dois
lados.
Uma porta se abriu à sua esquerda e ela estava de frente para a
casa, o dedo no gatilho. Um homem deu meio passo para fora.
O velho Sr. Lacker, trajando seu melhor terno, uma bandeira
dos Servos do Estado na mão trêmula. Mão esquerda.
— Fique dentro de casa! — Alice May ordenou. Sua voz saiu
mais alta do que esperava. E ribombou em seus ouvidos,
facilmente cortando o vento.
Lacker deu outro passo e levantou a bandeira.
— Fique dentro de casa!
Outro passo. Balançou a bandeira outra vez. Então enfiou a
mão no paletó e pegou uma pistolinha de bolso, uma
Derringer de tiro único, toda feita de metal antigo e
manchado.
Alice May puxou o gatilho e seguiu em frente, enquanto de
súbito brotava sangue da lapela do melhor terno do velho
Lacker, uma casa de botão vívida, de vermelho escarlate.
Ela recarregou enquanto andava. Por dentro estava gritando,
mas nenhum som saía. Não queria ter matado o Sr. Lacker.
Ele era idoso, inofensivo, não representava perigo. Não
poderia tê-la atingido nem se estivesse a seu lado.
Mas suas mãos e o rifle não concordavam com isso.
Alice May sabia para onde tinha de ir. A estação de trem.
Onde o Mestre estaria em menos de uma hora. Tinha de ir lá
e matá-lo.
Não parecia sensato andar pela rua principal, então Alice May
cortou caminho pelo campo atrás da escola. Do alto do corte
além do campo, ela olhou para os dois lados, o da estação e o
da via férrea.
O trem especial já estava na plataforma. Uma locomotiva, um
vagão a vapor e um único vagão privativo. A locomotiva tinha
um anteparo colocado em frente à caldeira, em cima do
limpa-trilhos. Um anteparo com a tocha flamejante dos
Servos. O trem devia ter vindo de Jarawak City em marcha a
ré, pensou Alice May, só para que o balcão na parte de trás do
vagão privativo ficasse de frente para a curva da avenida
principal.
Havia muita gente reunida naquela curva. Todas as pessoas
que Alice May esperava encontrar nas ruas. Tinham chegado
cedo para garantir que não fossem tachadas de partidárias
tardias ou relutantes. Todos os habitantes da cidade tinham
de estar ali, muitos deles trajando o uniforme dos Servos e
todos eles agitando bandeiras negras e vermelhas.
Alice May se esgueirou pelo corte e andou no meio dos
trilhos. Era por aquele caminho que ela tinha chegado quando
bebê, tantos anos antes. Mas por algum motivo não achava
que tinha vindo de Jarawak City.
Toda a atenção estava voltada para a parte traseira do trem,
embora fosse óbvio que o Mestre ainda não havia aparecido.
Estava uma algazarra grande demais para isso, com a multidão
aplaudindo e a banda da cidade tocando alguma música
irreconhecível. Os jornais todos faziam alarde do silêncio
total que tomava qualquer público quando o Mestre
discursava.
Alice May atravessou a via férrea e foi lentamente para o lado
oposto da locomotiva. Assim que chegou ao vagão a vapor,
um maquinista desceu. Vestia um macacão de brim e um
boné preto dos Servos, completado com o distintivo da tocha
em chamas.
As mãos de Alice May se mexeram. A culatra do rifle estalou
e o maquinista caiu trilho abaixo. Ele rastejou por um
instante, tentando se levantar, enquanto Alice May esperava
com muita calma que a multidão berrasse de novo e a banda
fizesse um crescendo de bateria e metais. Quando o fizeram,
ela deu um único tiro na cabeça do maquinista e passou por
cima dele.
"Sou uma assassina", pensou. "Muitas e muitas vezes."
"Eu gostaria que eles ficassem fora do meu caminho."
Alice May subiu no balcão dianteiro do vagão privativo. Ten-
tou olhar lá dentro, mas a janela era de vidro escuro.
Alice May tentou a porta. Não estava trancada. Abriu-a com a
mão esquerda, o rifle preparado.
Esperava dar em alguma espécie de sala de estar, talvez
mobiliada com opulência. O que viu foi um corredor
inacreditavelmente comprido, que se estendia a distância, o
final fora do alcance da visão.
A multidão de repente ficou em silêncio do outro lado do
trem.
Alice May entrou no corredor e fechou a porta atrás de si.
Estava escuro com a porta fechada, mas sua estrela reluzia
com mais brilho, iluminando o caminho. Afora o tamanho e o
fato de que o final estava envolto em névoa ou fumaça, o
corredor era bem semelhante ao de qualquer outro trem que
Alice May já tinha visto. Madeira polida, equipamentos de
metal e portas que davam para as cabines, a alguns passos de
distância umas das outras. A única coisa estranha era que as
portas tinham janelas de vidro escuro, por onde não se
enxergava nada.
Alice May ficou tentada a abrir uma das portas, mas resistiu à
tentação. Seu negócio era com o Mestre, e ele estava
discursando do outro lado do trem. Quem sabe em que
encrenca ela se meteria ao abrir uma porta?
Ela continuou a andar, da forma mais silenciosa possível, pelo
corredor. Dava alguns passos e ouvia algum barulho;
congelava por um instante, o dedo no gatilho. Mas os sons
não eram de gente, nem de armas, nem de perigo. Vinham do
outro lado das portas das cabines, e eram de mar, de vento ou
de chuva caindo.
O corredor prosseguia e Alice May não parecia estar
chegando perto do final. Começou a andar mais rápido e
depois a correr. Ela tinha de chegar lá antes que o Mestre
terminasse o discurso, antes que seu veneno dominasse seus
pais adotivos e todo mundo que ela conhecia.
Cada vez mais rápido, os saltos das botas tamborilando, a
respiração áspera, mas ainda sentindo frio, um frio gélido. Ela
se sentia como se empurrasse uma barreira que a qualquer
momento se quebraria, e então ficaria livre daquele corredor
sem fim.
Ela realmente se quebrou. Alice May invadiu uma sala para
fumantes, cheia de Servos, um aposento comprido e lotado de
uniformes pretos e vermelhos.
As mãos e os olhos de Alice May começaram a atirar antes
que ela sequer se desse conta de onde estava. O rifle se
esvaziou no que pareceu apenas alguns segundos, mas todas as
balas acertaram na mosca. Servos desmoronavam nas cadeiras,
contorciam-se no chão, mergulhavam para se proteger,
agarravam suas armas.
Alice May jogou o rifle para o lado e pegou um dos
revólveres, num movimento tão rápido que, para os
assustados Servos, o rifle pareceu ter se transformado nas
mãos dela. Mais seis Servos morreram quando sua oponente
moveu o cano da arma com a mão esquerda, os tiros
ressoando juntos num instante terrível.
Alice May enfiou um dos revólveres no coldre e pegou o
outro, a mão direita e a mão esquerda numa coordenação
perfeita e antagônica. Mas não havia ninguém mais em quem
atirar. A fumaça do tiro misturada à de charutos e cachimbos
traçava um torvelinho até os ventiladores do teto. Servos
soltaram um último sopro de vida tossindo sangue, e os
últimos gritos cessaram.
"Então é isso que as pessoas chamam de carnificina", pensou
Alice May ao inspecionar o aposento, olhando calmamente de
algum lugar dentro de si enquanto uma outra parte observava
os estremecimentos e convulsões derradeiras dos homens e
mulheres agonizantes, em meio ao sangue, miolos e urina que
se espalhavam e empapavam o carpete antes azul.
Suas mãos — mas não as suas mãos, pois com certeza estas
estariam trêmulas — recarregaram os revólveres enquanto ela
observava. Em seguida, elas pegaram o rifle e o recarregaram.
A porta se abriu do outro lado da sala dos fumantes. Alice
May viu de relance as costas do Mestre, captou algumas de
suas palavras proferidas, cada uma carregando a insinuação de
um grito.
Seu rifle se ergueu quando uma jovem de roupa preta e
vermelha entrou na sala.
Era Jane. Alice May sabia que era Jane e mesmo assim seu
dedo se comprimiu contra o gatilho.
— Olá, Alice May — disse Jane. Ela não olhou para os
recém-mortos que havia à sua volta nem se deu o trabalho de
desviar da poça de sangue que se alastrava. — O Mestre disse
que você viria. Devo deter você, porque não atiraria na sua
própria irmã.
Ela sorriu e pegou uma pistola de cima da mesa. O dono havia
escorregado, deixando um rastro molhado de sangue, pele e
tripas nas costas da poltrona.
O dedo de Alice May puxou o gatilho e ela atirou em Jane.
Apenas um último e desesperado esforço de vontade desviou
o alvo do peito da irmã para o seu braço direito.
— O Mestre está sempre certo — disse Jane. O braço direito
pendia a seu lado, a manga preta rasgada, polvilhada de
pedacinhos de osso branco.
— Não — afirmou Alice May enquanto Jane atravessava a
sala e pegava outra pistola com a mão esquerda. — O Mestre
está errado, Jane. Eu atirei em você. Eu vou atirar de novo.
Eu... eu não posso evitar. Não...
— O Mestre está sempre certo — repetiu Jane com uma
serenidade confiante. Começou a erguer a pistola.
Dessa vez Alice May não foi forte o suficiente para resistir ao
impulso inexorável do rifle. Ele estava apontando direto para
o peito de Jane e não havia como virá-lo para outro lado.
O tirou soou mais alto que todos os outros e seu efeito foi
mais terrível. Jane desabou no chão. Estava morta antes
mesmo de juntar-se aos corpos empilhados no chão.
Alice May pisou nos cadáveres e ajoelhou-se ao lado de Jane.
Lágrimas escorriam pelo seu vestido como a chuva no vidro.
O tecido branco não ficava manchado. O sangue e a pele
dilacerada se desviavam dele, assim como a poeira.
"Mas com suas mãos era diferente", pensou Alice May. Suas
mãos nunca mais estariam limpas.
— Nada acontece em Denilburg — Alice May sussurrou.
Levantou-se e abriu a porta que dava para o balcão traseiro.
Para a cidade reunida e o Mestre.
Ele estava berrando quando ela saiu, os braços erguidos acima
da cabeça, descendo para bater com tanta força no balaústre
que ele tremia sob seus punhos.
Alice May não escutou o que ele disse. Ela apontou o rifle
para a parte de trás da cabeça dele e puxou o gatilho.
Um clique seco e triste foi o único resultado. Alice May
puxou a alavanca. Uma bala foi expelida, o metal tilintou e
rolou do balcão para os trilhos lá embaixo. Ela puxou o
gatilho mais uma vez, ainda sem qualquer resultado.
O Mestre parou de falar e se voltou para olhá-la.
A estrela de Alice May resplandeceu. Ela teve de cobrir os
olhos com o rifle para poder enxergar.
De perto o Mestre não parecia grande coisa. Era mais baixo
que Alice May e seu cavanhaque era ridículo. Era só um
homenzinho engraçado. Até que se olhasse em seus olhos.
Alice May queria não ter feito isso. Os olhos dele eram como
o corredor sem fim, estendendo-se até algum lugar
inominável, um vazio onde nada humano poderia existir.
— Então você matou sua irmã — disse o Mestre. Sua voz era
quase um murmúrio, e os gritos e clamores haviam sumido.
Não havia dúvida de que todos, do lado de fora do trem, ainda
podiam ouvi-lo. Quando queria, ele tinha uma voz que se
projetava sem esforço. — Você matou Jane Elizabeth Suky
Hopkins. Assim como matou Everett Kale, Jim Bushy, Rosco
O'Faln, Hubert Jenks e o velho Lacker. Isso sem mencionar
meus homens que estavam no trem. Você seria capaz de
matar a cidade inteira para chegar até mim, não é?
Alice May não respondeu, apesar de ter ouvido a multidão se
mover e arfar. Ela soltou o rifle e sacou um revólver. Ou
tentou. Ele ficou preso no coldre. Ela tentou a arma da
esquerda, mas esta também estava emperrada.
— Não é tão fácil assim, não é? — sussurrou o Mestre,
inclinando-se para falar-lhe em particular. Seu hálito tinha o
mesmo odor da sala que ela havia deixado para trás. De
sangue e merda e terror. — Há regras, sabe, entre o tipo de
gente que nós somos. Você não pode sacar a arma até eu sacar
a minha. E por mais que seja rápida, eu sou mais. Tudo o que
fez foi por nada. Todas essas mortes. Todo o sangue em suas
mãos.
Alice May recuou para lhe dar espaço. Não ousou olhar para a
multidão, nem olhar para os olhos do Mestre novamente. Em
vez disso, olhou para as mãos dele.
— Você pode desistir, sabe — o Mestre murmurou. —
Ocupar o lugar da sua irmã, a meu serviço. Até mesmo na
minha cama. Ela gostava disso. Você também vai gostar.
O Mestre lambeu os lábios. Alice May não olhou para sua
língua comprida, pontuda, parecendo de couro. Ela observava
suas mãos.
Ele recuou um pouco, ainda sussurrando.
— Não? E sua última chance, Alice May. Junte-se a mim e
tudo ficará bem. Ninguém vai culpar você por matar Jane e as
outras pessoas. Pois eu vou lhe dar um...
A mão dele fez um movimento rápido. Alice May puxou a
arma.
Ambos atiraram ao mesmo tempo. Alice May sequer sabia de
onde ele tinha tirado a arma. Sentiu um golpe brutal em seu
peito e bateu contra o balaústre do balcão. Contudo, manteve
o revólver apontado para o Mestre em centro fixo e a mão
esquerda erguia o cano enquanto ela puxava o gatilho uma...
duas... três... quatro... cinco vezes.
O revólver estava vazio. Alice May deixou-o cair no chão e
ela também caiu, apertando o peito. Não conseguia respirar.
Seu coração martelava com a consciência de que tinha sido
baleada, de que aqueles eram seus últimos segundos de vida.
Algo caiu na mão dela. Era quente, quente a ponto de
queimar. Ela contemplou aquilo com um olhar estúpido,
enquanto a palma de sua mão ardia. Por fim, viu que era uma
bala, um projétil disforme que não era de chumbo, e sim de
uma espécie de pedra branca e pálida.
Alice May soltou a bala, mas não tão depressa a ponto de
evitar uma queimadura profunda, que deixaria cicatriz.
Tentou respirar mais uma vez e conseguiu, embora sentisse
uma dor aguda e penetrante nos pulmões.
Olhou para o peito, esperando ver sangue. Mas seu colete
continuava limpo como sempre, à exceção de um buraquinho
redondo no lado direito, paralelo com a estrela de prata que se
apagava à esquerda. Cautelosamente, Alice May tateou ali.
Mas suas mãos só sentiram os fios entrelaçados. Não havia
buraco no vestido, nem sangue.
Alice May sentou-se. O Mestre estava deitado de costas do
outro lado do balcão. Agora ele parecia apenas um
homenzinho morto. O pavor que Alice May sentira por causa
dele desaparecera.
Ela rastejou até ele, mas antes que pudesse tocá-lo, sua carne
começou a vibrar e se mexer. Ele rastejava e tremia, o rosto
passando de rosa avermelhado a prateado desbotado. Em
seguida, o corpo do Mestre começou a se liquefazer, a se
tornar prata líquida de verdade, da mesma cor. O líquido se
esparramava por suas roupas, derramava pelo chão e caía num
ralo de bronze que havia no canto. Logo não havia nenhum
rastro dele, afora a pistola automática, uma pilha de roupas e
um par de botas vazias.
Alice May olhou para a multidão, que já se dispersava. As
pessoas tiravam o uniforme dos Servos, chegando a ficar só
com as roupas de baixo. Outros simplesmente iam embora.
Todos cabisbaixos, e ninguém abria a boca.
Alice May se levantou, as mãos apertadas contra as costelas
para diminuir a dor. Ela olhou a multidão à procura dos pais
adotivos e do tio Bill que sobrevivera.
Ela os viu, mas, como todas as outras pessoas, eles não
olhavam em sua direção. Estavam de costas e com os olhos
fixos na direção da cidade.
Jake e Stella se agarraram com força e caminharam pela
avenida principal. Não olharam para trás. Tio Bill se
aproximou da plataforma. Por um instante, Alice May achou
que ele iria procurá-la. Mas não o fez.
Alice May assistiu a eles indo embora e sentiu que levavam
consigo quem ela tinha sido até então.
A quarta garota da família HopMns, assim como a terceira,
tinha morrido para Denilburg.
Indiferente, ela pegou o rifle e o revólver e recarregou-os. O
cinto antes cheio de balas estava quase vazio agora.
Ela ficou surpresa quando o motor assobiou, mas só por um
momento. Tinha entrado nesta vida em um trem. Parecia
bem adequado sair da mesma forma.
O trem deu uma guinada hesitante. O vapor elevou-se acima
de sua cabeça e as rodas chiaram buscando os trilhos. Alice
May abriu a porta do balcão e entrou no trem. A sala para
fumantes tinha desaparecido, levando consigo Jane e todos os
outros cadáveres. O corredor sem fim ainda estava ali e, a seus
pés, o baú.
Alice May agarrou um dos lados do baú, abriu a porta da
primeira cabine que viu e arrastou-o para dentro.
Da plataforma, tio Bill, o chefe da estação, contemplou o trem
partindo devagar. Antes que entrasse no corte, o trem desviou
para uma estrada de ferro que não existia e desapareceu na
entrada de um túnel que se dissipou assim que o vagão
adentrou as trevas.
Bill enxugou uma lágrima do olho, pelo amigo que também
carregara seu nome, por uma cidade que perdera a inocência
e por sua quase filha, que pagara o preço por ter salvado todos
eles.

Garth Nix nasceu em Melbourne, na Austrália, em 1963,


cresceu em Canberra e vive em Sydney desde 1987. Graduou-
se em Escrita Profissional pela Universidade de Canberra e já
trabalhou como livreiro, promotor de vendas de livros,
relações públicas, editor, consultor de marketing e, mais
recentemente, como agente literário. Agora, Garth é escritor
em tempo integral. Seus livros são editados no mundo inteiro
e traduzidos para várias línguas. São de sua autoria os
romances fantásticos Sabriel e Lirael, que lhe garantiram
prêmios, e o best-seller Abhorsen; uma série infantil de
fantasia com seis volumes, chamada A Sétima Torre; Shade's
Children e The Raywitch, entre outros. Mora em Sydney
com a esposa, a editora Anna, e o filho deles, Thomas. Visite o
site dele: www.garthnix.com.
Nota do Autor
"O baú da esperança" é uma dessas histórias estranhas que
todo escritor tem, que chega do nada e é escrita quando você
deveria estar fazendo alguma outra coisa. Depois, ela fica em
segundo plano, espreitando como uma besta importuna,
enquanto você tenta entender se o conto deu certo, qual é a
temática e se deve ou não ser enviado a alguém.
Ainda não tenho certeza de qual é a resposta para as duas
primeiras perguntas. Acho que a gênese desse conto vem de
ter assistido a muitos filmes de faroeste (alguns dos meus
favoritos: Winchester '73, Rio Vermelho, Três homens
em conflito e Trinity é o meu nome). Sem dúvida, eu
sempre quis escrever uma história no estilo faroeste, mas com
meus próprios floreios peculiares que a tornaram uma história
de fantasia, embora espere que carregue ecos dos faroestes
que já influenciaram culturalmente o mundo inteiro.
Quanto à questão de mandar o conto a alguém, eu não
mandei até o momento em que, por sorte, fui convidado a
participar desta antologia. Sempre guardei muitos contos na
minha (virtual) gaveta, às vezes por não estarem terminados,
ou por serem, na verdade, fragmentos de um romance, ou por
serem um fruto estranho como "O baú da esperança", que
exigem que você pense melhor no que fazer com eles. Por
mais que eu sempre diga aos escritores iniciantes que devem
simplesmente apresentar seus contos e deixar a decisão aos
editores, nem sempre sigo esse bom conselho, que me foi
dado no começo da minha carreira. O convite para apresentar
um conto quebrou as barreiras que mantinham "O baú da
esperança" na gaveta. Eu o enviei. A organizadora decidiu. E
aqui está ele.

Elizabeth E. Wein

Perseguindo o Vento

artha Bennett sentou-se em cima da mala, no meio


do inacabado terminal aéreo de Nairobi,
observando os outros passageiros se dispersando.
Fazia duas horas que estava sentada ali à espera do pai e lendo
vezes sem conta o conciso telegrama que havia recebido na
véspera de sua partida da Filadélfia:

PODEMOS NÃO ENCONTRAR. TÁXI AEROPORTO WILSON. HART


WALDEN VOAR KWALE.

Martha não gostava nada de esperar. Ficava nervosa e


irritadiça, e não conseguia crer que seus pais, moradores da
Filadélfia e pessoas bastante urbanas, a deixariam abandonada
à própria sorte no meio da África; ainda acreditava na
possibilidade de que o pai aparecesse na última hora. Apesar
de que ser abandonada ali não era tão diferente de ser
abandonada no meio da Filadélfia, que era o que os pais
tinham feito no começo daquele ano, 1950, quando o pai
tinha obtido a licença da paróquia para viajar. Ele e a mãe
haviam deixado a igreja da cidade para ir morar numa
plantação de abacaxi na África; lecionavam inglês na escola
local, numa região em que era preciso trancar os cães à noite
porque poderia haver leões à espreita. Também era um lugar
onde os nativos expulsos de suas terras afiavam facas e lanças,
cada vez mais determinados a se livrar do domínio dos
colonos que haviam iniciado tais plantações.
Martha, que estava cursando o primeiro ano do ensino médio
numa escola feminina, a Girls' High, tinha ficado com a
família de sua melhor amiga para que pudesse terminar o ano
escolar na Filadélfia. Agora era verão, e ela ia se juntar aos
pais na fazenda de abacaxi.
PODEMOS NÃO ENCONTRAR. O que isso significava: podemos
não conseguir nos encontrar, ou não vamos e ponto final? O
que impediria o pai de deixar o trabalho voluntário por um
dia? Contudo, quando a agitação no terminal diminuiu e só
restou o movimento normal de intervalo entre a chegada de
um voo e outro — tornando evidente a estrangeirice de
Martha, uma adolescente sozinha no meio de Nairobi —,
ficou claro que ninguém iria encontrá-la e que Martha teria
que TÁXI AEROPORTO WILSON.
Ela havia deixado o chapéu no Cairo quando mudara de avião
pela última vez. As palmas de suas luvas de algodão estavam
úmidas e cinzentas por causa da viagem, e as moedas
estrangeiras escorregavam de seus dedos quando tentava
contá-las. Estava com calor, cansada e com fome. E o que
fazer quanto aos problemas para os quais todos a alertaram
antes da viagem, como as revoltas dos nativos, as brigas nas
ruas, a agitação?...
Martha, Martha, você está inquieta e preocupada com
muitas coisas; no entanto, uma só coisa é necessária.
Era com essas palavras de Jesus para a Marta bíblica que o pai
de um pastor costumava repreendê-la1. A jovem sempre as
murmurava para si mesma. Uma só coisa é necessária;
naquele momento, havia só uma coisa com a qual devia se
preocupar, e qualquer coisa era melhor que ficar sentada,
prolongando a espera. Martha levantou-se e reuniu forças
para tentar descobrir como pegar um táxi.
Todas as pessoas com quem falou a trataram com tanta edu-
cação como se ela fosse uma mulher adulta. Um menininho a
ajudou a catar as moedas que deixara cair, e ela lhe pagou para
vigiar a mala enquanto procurava um carregador. O
carregador ajudou Martha a encontrar um táxi e apertou sua
mão antes que ela entrasse no carro. Ela se sentia melhor
agora que havia tomado uma atitude e olhava pela janela com
apreensão e interesse pelas ruas desconhecidas. Tinha certeza
de que nunca vira uma cidade com tão pouco tráfego de
automóveis. Cavalos, carroças, burros, bodes, bicicletas, sim;
mas poucos carros, afora o dela. Bem, havia um ônibus. Mas
tinham lhe avisado para não andar neles — Martha o
observou com desconfiança quando ele dobrou uma esquina e
desapareceu num cruzamento. As amplas avenidas de Nairobi
eram iluminadas por magnólias africanas de um tom laranja
flamejante e obscurecidas pela densa folhagem verde.
— Wilson? — perguntou o motorista de táxi.
O aeroporto doméstico era um amontoado de hangares e
galpões, alguns recém-construídos com blocos de concreto,
outros pouco mais que abrigos feitos de folhas de palmeira
cobertas com palha.
— Estou procurando Hart Alden — respondeu Martha. —
Talvez seja uma companhia de aviação regional?
— Levo você ao Aeroclube — disse o motorista gentilmente
e em seguida saiu da rodovia secundária e entrou em uma
estrada comprida, ladeada por hibiscos. Ele parou o carro e
descarregou a mala de Martha debaixo de um grupo de
figueiras. Tensa por causa de todas as recomendações que
recebera, Martha se preparara para achar o Quênia assustador;
mas não esperava tamanha beleza. Isso a deixou confusa.
— Por favor, espere até eu saber se estou no lugar certo —
implorou ao motorista, como se o táxi fosse um bote salva-
vidas. Em seguida, colocou as luvas frouxas, ajeitou o cabelo
desalinhado e, mais uma vez, com certa relutância, reuniu
forças para enfrentar a batalha.
A manhã estava acabando. A sala de espera do Aeroclube da
África Oriental estava quase vazia, mas não em silêncio total,
pois havia um gramofone antigo à manivela tocando num tom
metálico o "Royal Fireworks Music", de Händel. No canto
mais escuro e mal iluminado da sala, afundado num sofá de
vime atrás de um ventilador elétrico e um jornal de três dias
antes, descansava alguém que parecia ser o único membro do
Aeroclube.
— Estou procurando Hart Alden — disse Martha para o
jornal.
As folhas farfalharam para o lado como uma cortina
erguendo-se, revelando uma cabeça glamourosa envolta num
lenço de seda verde e escondida por grandes óculos escuros.
"Como é que ela consegue enxergar?", Martha pensou.
— Você por acaso é Martha Bennett? — a estrela perguntou,
pondo o jornal de lado.
— Sim, senhora — Martha respondeu com uma educação
maquinal.
— Graças a Cristo todo-poderoso. O Harry sabe que você
está aqui?
— Não. Não sei. Quem? Estou procurando uma conexão, eu
acho.
— Ah, que bonequinha — exclamou a estrela, de súbito tão
empolgada e alegre quanto uma garota em seu primeiro baile.
— Você é americana.
— Sou, até onde eu sei — disse Martha, sorrindo.
— Pensei que você fosse inglesa. Todo mundo é inglês por
aqui. São todos uns amores, mas... — ela deixou a frase
incompleta. Martha olhou ao redor e soube o que a mulher
queria dizer sem precisar de explicações. Havia uma enorme
hélice de madeira pendurada na parede, brilhando de forma
triste e orgulhosa, acima de uma lista longa demais em
homenagem aos jovens pilotos do clube que morreram
defendendo o Rei e o país quando Martha era apenas uma
menininha. Tudo naquele lugar, do teto coberto de sapé ao
peitilho branco engomado na camisa do mordomo taciturno,
murmurava com insistência: Império Britânico.
— Meu marido é o dono da plantação em Kwale. Você e eu,
nós vamos voar juntas para lá — disse a estrela. — Hart
Alden, Harry, é o nosso piloto. Eu sou a Sra. Copley. Maria
Copley.
— Maria e Martha — comentou Martha. — Não é
engraçado? Igual à Bíblia. Espero que isso não signifique que
você vai ficar sentada ouvindo histórias enquanto eu corro de
um lado para outro para preparar o jantar de todo mundo.
Os óculos escuros da Sra. Copley a encararam, inexpressivos.
— Sou uma F. P. — disse Martha, rindo. Ela havia feito uma
piada. — Eu sempre falo assim.
A Sra. Copley tirou os óculos, como se Martha fosse ficar mais
compreensível caso ela a enxergasse melhor.
— F. P. Filha de pastor — acrescentou Martha; e depois para
si mesma: Ah, cale a boca , Martha.
Martha sempre se ressentira um pouco por ter recebido esse
nome. Deixava-a profundamente insatisfeita ser
automaticamente escolhida para o papel de servente. Uma
vez, logo depois de a guerra terminar, a igreja do pai recebera
um pastor do Harlem, que fora jantar com os Bennett em sua
primeira noite na Filadélfia. Era um homem fascinante, de
opiniões fortes, muito inteligente, e Martha passou o jantar
inteiro arrebatada por suas histórias. Quando a mãe lhe pediu
para ajudar a tirar a mesa, Martha fez todos gargalhar ao
reclamar:
— Ah, por que você me deu o nome Martha se eu queria
mesmo era ser Maria?
— Você costuma correr de um lado para o outro cozinhando
para as pessoas? — perguntou a Sra. Copley, finalmente
sorrindo.
— Eu gosto de ter alguma coisa para fazer — disse Martha.
— Gosto de ajudar, sabe, mas não sou boa para escutar os
outros. Minha mãe diz que eu sempre estou tão ocupada
procurando alguma coisa pra fazer que não presto atenção ao
que os outros querem.
— Vamos nos dar muito bem, então — retrucou a Sra.
Copley. — Gosto de ser paparicada. — Ela colocou os óculos
de novo e deu um gole em sua bebida.
— Você sabe por que ninguém veio aqui nos receber? —
indagou Martha.
— O avião não é grande o suficiente para carregar um comitê
de boas-vindas, e hoje em dia não é seguro ir pela estrada.
Nem de trem.
— Sério?
— Se você for branca.
— É tão ruim assim?
— Não sei. Os jornais britânicos dizem que está piorando. —
Maria Copley amassou o que estivera lendo. — Meu marido é
uma droga de empresário. Comprou barato a fazenda de um
casal holandês que decidiu voltar para casa. Como um velho
desbravador ianque. Não acredito que eu concordei em vir
morar aqui.
Martha pensou, resignada: "pelo menos minha família vai
voltar para casa em setembro".
— O piloto está aqui? — Martha perguntou. — Hart Alden?
— Harry. Ele também é americano. Ele pega os clientes aqui,
tem uma espécie de serviço de táxi aéreo. Hoje somos você,
eu e meus gatinhos. Nós estávamos esperando você. Vá lá e
avise ao Harry que chegou, e podemos seguir viagem. Ele está
no bar.
— Não posso entrar em um bar!
— Já estamos no meio da manhã. Quem liga para leis? — A
Sra. Copley pegou o jornal mais uma vez.
Portanto, Martha foi encontrar-se com o piloto.
Ele estava sentado no bar, tomando café. Entornava os restos
horrorosos de um bule de alumínio amassado em uma das
xícaras de porcelana do Aeroclube, e o barman já preparava
café fresco em outro bule, mais refinado, em cima de um
fogareiro flamejante. O pai de Martha também tomava café
daquele jeito irreverente, às vezes requentando os restos da
noite anterior na frigideira e deixando o líquido borbulhar até
virar uma borra, e bebendo mesmo assim. Essa familiaridade
fez Martha gostar de cara do piloto, mesmo sem saber mais
nada a seu respeito. Ela imaginou que ele e o pai haviam
planejado a viagem dela em alguma varanda coberta de folhas
de palmeira, tomando xícaras de um café preto tão intragável
quanto óleo de motor.
— Capitão Alden? — Martha disse, estendendo a mão. —
Sou Martha Bennett. Sua passageira.
Hart Alden levantou-se com muito cuidado, olhando para os
próprios pés, e Martha notou que ele era manco. Havia uma
bengala apoiada no bar, entre a xícara de café e um cinzeiro,
mas ele não a tocou. Apoiou-se no balcão com a mão esquerda
e, com a direita, apertou a mão de Martha com firmeza. Disse,
amável:
— Seja bem-vinda, Martha. Somos conterrâneos, também
sou da Filadélfia.
— Sério?
— Você estuda na Escola Wissahickon Farm?
— Não, mas minha melhor amiga estuda. Sally Atkins. A
mãe dela é a secretária. Morei com a família Atkins boa parte
deste ano, mas estudo na Girls' High.
— Minha irmã Lucy ensina horticultura na Escola Farm. Na
verdade, ela é a horticultura. Ela os intimidou até ser
contratada e agora tem uma turma de vinte garotas.
Martha riu, encantada.
— Ela é a Dra. Alden! O terror da Exposição de Flores! Sally
fala dela o tempo todo. A Sra. Atkins também. Que mundo
pequeno! Você é irmão da Dra. Alden?
— Sou. — Inexplicavelmente, Hart Alden não acompanhou
seu ar de alegria surpresa ao responder, e o olhar dele se
voltou para o café. No mínimo parecia decepcionado, e isso
não fazia sentido.
— Então você nunca a conheceu — ele acrescentou, num
tom quase casual, e apagou o cigarro que estava queimando
no cinzeiro. Ergueu os olhos novamente, dessa vez mais
risonho.
— É melhor irmos logo, ou teremos de adiar a viagem para
amanhã. Quero fazê-la à luz do dia. Eu deveria ter ido receber
você quando seu vôo chegou do Cairo, mas...
Ele se calou e deu um sorriso torto. Era quase como se
estivesse sempre se desculpando. Era alto e tinha traços
angulosos, mas era meio curvado; seu cabelo castanho-claro,
quase do mesmo tom que o rosto, estava ficando grisalho. Os
olhos acinzentados eram meigos.
— Não sei se você quer ouvir ou não a minha justificativa.
Ela vai fazer você pensar duas vezes antes de me deixar
pilotar o avião que vai levá-la ao outro lado da Africa Orien-
tal. Eu consegui deixar uma caneta pular do bolso da minha
camisa e cair no tanque do meu avião quando fui checar o
nível de combustível hoje de manhã, portanto tivemos que
esvaziar o tanque. Também levou uma hora para conseguir-
mos tirar a caneta lá de dentro. Tente enganchar a caneta e
tirá-la da asa de um aviãozinho com um alfinete de segurança
e um cabide! Então ficamos preocupados com a possibilidade
de ter caído tinta no combustível, aí tivemos de lavar o
tanque...
— Ah — exclamou Martha. — Então o combustível fica na
asa? Não sabia. Legal!
O barman deu uma risadinha. Hart Alden olhou para Martha
com um sorriso sarcástico.
— Não foi o que Maria Copley me disse quando contei a ela
— comentou o piloto. — Você deveria me fazer um sermão
sobre responsabilidade, não admirar a estrutura dos aviões.
— Mas você tirou a caneta de lá, não tirou? Então qual é o
problema?
— Não há problema. Mas se houvesse, ele poderia matar
você.
Isso, Martha pensou, resumia com exatidão sua impressão
inicial a respeito da África.

Ainda levaram mais uma hora para partir. Martha tinha de


pagar e liberar o paciente motorista de táxi. Os gatos da Sra.
Copley tinham de comer e beber água e Martha precisou
providenciar que sua mala fosse despachada de trem até o
lugar para onde iriam. Era pesada demais, sem contar que era
três vezes maior que o minúsculo bagageiro do pequeno
Cessna 170 de quatro lugares de Hart Alden. Martha
abandonou as luvas sem nenhum remorso e colocou às pressas
uma blusa, um suéter e algumas roupas de baixo em um saco
de café feito de aniagem. Portanto, durante três dias todas as
suas roupas, a escova de cabelo e o livro cheirariam a café, e a
escova de dentes teria gosto de café, e o aroma de grãos de
café recém-colhidos lhe traria lembranças pelo resto da vida
daquele voo pela África Oriental.
Martha seguia o piloto como um cachorrinho, enquanto ele
dava voltas no avião e fazia checagens pré-voo na máquina;
estava fascinada, embora não ousasse tocar em nada. As asas e
a fuselagem eram de um prateado brilhante. Hart Alden
passou as mãos com carinho na superfície dianteira das asas.
— Este avião é seu?
— Eu o tenho há um ano, era novinho em folha.
— É esse o tempo que você está no Quênia?
— Não, tem mais tempo. Quase cinco anos. Saí dos Estados
Unidos mais ou menos um ano depois de a guerra terminar.
— Você aprendeu a voar na guerra?
— Durante — respondeu Alden. — Mas não na guerra.
Aprendi como civil. As Forças Aéreas teriam me chamado, ou
talvez eu pudesse ter voado pela Inglaterra. Mas eu não
preenchia os critérios físicos deles, sabe? Então não precisei ir
para a batalha.
— Pensei que todo mundo quisesse lutar contra o Eixo —
disse Martha, que tinha sete anos quando Pearl Harbor fora
bombardeado. Recordava-se do pai berrando da janela do
quarto, contando as novidades para a mãe, que segurava sua
mão lá embaixo, na rua. Também se lembrava de como,
depois desse fato, era impossível chamar a atenção de alguém
quando o rádio estava ligado.
Hart Alden não respondeu, ocupado empurrando e puxando
as partes móveis da cauda do avião. Martha achou que seu
comentário poderia ter soado um pouco como uma
reprimenda, então acrescentou:
— Meu pai não sabia o que fazer. Ele era pastor e tinha uma
filha pequena, eu. Ele não teve de ir, mas se sentiu culpado
por não ter ido. Acabou se alistando para um cargo de capelão
do exército, mas a guerra terminou antes que fosse mandado a
algum lugar.
— Bem, eu não cheguei tão perto de achar uma solução para
o meu dilema moral. Nunca me alistei em nada. Talvez tivesse
feito isso se a guerra tivesse durado mais; ou se pudesse ter
um cargo como o do seu pai. Não sou um guerreiro. De jeito
nenhum! — Ele assobiou. — Lucy, minha irmã, é que é uma
guerreira. Ela devia ter sido piloto de avião de bombardeio.
Mas eu não sou. Vou ter de ir embora do Quênia em breve,
para não ficar preso no meio desta guerra. Detesto ver os
outros lutando.
— Entendo como você se sente. Também não sou guerreira,
nem um pouco — concordou Martha. — Mas...
Ela não sabia muito bem qual era a diferença. Não era uma
guerreira, mas algo dentro dela a impedia de parar quieta.
— Pensei que talvez você tivesse se machucado na guerra.
Hart Alden deu um sorriso amarelo. Tirou a poeira das mãos
e estendeu os braços até o avião para deslizar a bengala no
chão, colocando-a ao lado de seu assento.
— Não — ele disse devagar. — Pelo menos não nessa guerra.
Vamos, estamos prontos. Vamos buscar Maria e os gatos, pois
não quero deixá-la mais nervosa do que já está. Eu disse que
ela não poderia trazer a bolsa de maquiagem se quisesse levar
aquele saco de comida de gato de dois quilos e meio. E água
de reserva! Ainda bem que ela tem mais ou menos o mesmo
tamanho de um gato.
A Sra. Copley, de fato, era bem menor que Martha, uma
característica que Martha admirava e invejava secretamente,
assim como invejava seu primeiro nome.
— Você falou que são só três horas de viagem?
— Bem, é sim, mas é bom estar preparado. Não cruzo as
planícies sem água.
— Você tem um kit de primeiros socorros?
— E um bule de café. — Alden deu seu sorriso vagaroso e
sarcástico e apertou o ombro de Martha com sua mão grande
e bronzeada. — Não se preocupe.
Sem a bengala, ele andava devagar, observando os pés. Movia
o corpo comprido com a graça desengonçada de um jogador
de beisebol, mas seus passos eram entrecortados e desiguais, e
manteve a mão levemente apoiada no ombro de Martha
enquanto cruzavam o campo de aterrissagem exposto ao
vento. Porém ele também carregava numa cesta de junco os
dois gatos siameses da Sra. Copley, e esta segurava o outro
braço dele, como se precisasse de apoio para que o vento não
a derrubasse. Ela levava a comida dos gatos e Martha segurava
a parca bagagem dos três e o bule de café.
"Maria e Martha", pensou mais uma vez. "Eu tomo conta da
escova de dentes dela enquanto ela flerta com o piloto."
"Bem, ela gosta de ser paparicada", Martha acrescentou para si
mesma, num tom mais caridoso; "acho que ele a está
paparicando."
O avião só tinha portas que davam para os assentos dianteiros.
Os gatos e a Sra. Copley foram alojados nos assentos de trás,
pois eram os passageiros mais leves. A cabine tinha menos da
metade do tamanho do sedan dos Afkins. Martha sentou-se
na frente, ao lado do piloto. Colocaram os cintos. Hart Alden
lhe deu um mapa.
— Agora, veja — explicou a ela. — Tenho um trabalho para
você fazer. Antigamente, era Lucy quem fazia isso para mim.
Não há muita coisa por aqui e nós não queremos ficar
perdidos. Então, a cada dez ou quinze minutos, quando você
vir no mapa algum ponto de referência a respeito do qual
você tenha certeza, um cruzamento da ferrovia com a estrada,
ou um lago, ou uma pista de decolagem, alguns deles estão
marcados...
Martha olhou para o mapa. Ele mesmo tinha marcado as
pistas de decolagem.
— ... Aí você escreve ao lado do ponto a que horas passamos
por ele, e saberemos quanto tempo vamos ter de voar para
achar o mesmo ponto se por alguma razão tivermos que
voltar, e também quanto tempo levaremos para chegar ao
próximo ponto de referência. Assim, sempre saberemos
direitinho onde estamos. Vamos sobrevoar a ferrovia na
maior parte do caminho, então fique de olho nela.
— Obrigada — Martha murmurou, pois ter alguma atividade
era o que mais importava para ela.
O piloto se recostou no assento e puxou as pontas do cinto de
segurança da Sra. Copley com suas mãos compridas.
— Tudo pronto aí atrás? Se você precisar de alguma coisa é
só cutucar Martha e dizer a ela o que é, que ela me diz.
Eles dispararam pela pista com um barulho ensurdecedor e
decolaram com tanta leveza e facilidade quanto uma pipa
numa praia cheia de vento. Martha lutou contra o mapa e
estendeu o pescoço para olhar por sobre o painel, enquanto o
horizonte sumia lá embaixo. Ela olhou para o lado.
O céu parecia um cristal. Sobrevoavam uma paisagem mar-
rom e amarela onde não havia nada além de elefantes e
girafas. Durante a primeira parte da jornada, Martha via
pequenos círculos formados por conjuntos de cabanas, com
gado espalhado ao redor, mas logo isso ficou para trás e, pelo
menos por uma hora, só existia a ferrovia. Então ela começou
a ver as formas imprecisas de vulcões inativos, morros verdes
com poços negros no centro.
Alden espreitava atrás de Martha enquanto ela olhava pela
janela, procurando o próximo ponto de referência. Ele berrou,
sua voz sobrepondo-se ao ruído do motor:
— Veja, ali é o Kilimanjaro. Que dia lindo!
Os montes no sopé da enorme montanha se agigantavam a
distância, imensos e lúgubres. Nuvens se desdobravam em
volta dos acostamentos inclinados e, acima delas, os
penhascos gêmeos do antigo vulcão se sobressaíam, brilhando
feito prata, nas alturas em que a eterna crista de neve da
montanha refletia o sol.
A Sra. Copley cutucou o ombro de Martha.
— Onde fica o toalete feminino? — ela berrou.
Martha piscou.
— O quê?
— O toalete feminino — bradou a Sra. Copley. — Preciso
fazer um pit stop.
Fazia uma hora e meia que estavam voando. Martha
lembrou--se dos gins-tônicas no Aeroclube.
A Sra. Copley apontou para Alden, erguendo as sobrancelhas
acima dos aros dos óculos escuros e assentindo com a cabeça,
de modo encorajador.
— Ele me ouviu? Chame a atenção dele!
Martha largou o mapa.
— A Sra. Copley precisa fazer um pit stop — gritou ela.
Seguiu-se uma discussão acalorada e em altos brados sobre
a urgência do caso e depois, surpreendentemente, Hart Alden
colocou o dedo no mapa no colo de Martha.
— Aqui. Pista gramada em Amboseli. Fique de olho aberto, é
difícil de localizar.
— Eu não localizei nenhum deles!
— Também é um bom lugar pra fazer piquenique — Alden
berrou.
— Você está brincando!
— Quando você tem que ir...
Martha escondeu o rosto nas dobras do mapa, fazendo
barulho. Voaram por mais quinze minutos e, exatamente
onde deveria estar, havia um retângulo marrom escuro contra
o fundo verde-oliva opaco do resto do mundo. O avião
flutuou até pousar e depois sacolejou como se estivesse
taxiando numa plantação de batatas.
A Sra. Copley xingou alto, de um modo nada digno de uma
dama.
— Deixe-a sair — disse Hart Alden, estendendo o braço
acima de Martha para abrir a porta. A Sra. Copley passou por
cima de Martha com tanta agilidade quanto um de seus gatos
o faria.
Martha e o piloto ficaram sentados lado a lado, ambos
trêmulos e com o rosto vermelho.
— Ah... — Martha se recostou para espiar o cesto de vime,
lágrimas escorrendo do canto de seus olhos numa tentativa de
segurar o riso. — Parece que um dos gatos vai vomitar...
— Não no meu avião! — retrucou Alden e puxou o cesto do
banco de trás para jogá-lo porta afora.
— Venha, Martha. Venha ver Amboseli.
Era tão estranho e vazio quanto a lua. Não havia
absolutamente nada ali além de um arbusto baixinho de
acácia, cactos e uma florzinha parecida com narcisos
silvestres. Ventava, e o ar carregava um leve aroma de sálvia.
Não se ouvia ruído algum, apenas o ribombo distante de
trovões.
— Hmm — soltou Alden. — De onde será que vem isso? —
Não viam nenhuma nuvem. Ele examinou o horizonte, e
Martha seguiu seu olhar, para além das bordas da pista de
decolagem.
O inacreditável é que havia uma dúzia de pessoas paradas ali.
Seguravam lanças. Um deles vestia uma blusa de safári cáqui
parecida com a de Alden, e o resto quase não usava roupas. A
Sra. Copley soltou um gemido e emergiu de baixo da asa
oposta, ajeitando as roupas com um movimento afobado.
— Voltem para o avião — Hart Alden falou baixinho.
Suas passageiras obedeceram sem questionar. Ele jogou os
gatos no fundo do avião, espremeu seu corpo magro na
minúscula cabine de pilotagem e bateu as portas.
— Eles vão atacar? — ofegou a Sra. Copley.
Hart Alden, que firmava seu cinto de segurança, caiu na
gargalhada.
— Você anda lendo jornais demais! — ele disse. — Aqueles
são Masai, e não Kikuyu. E de qualquer forma eles são tão
civilizados quanto nós.
— Mas alguma coisa deixou você preocupado...
— Trovões!
— O quê?
— O pessoal daqui sempre quer dar uma olhada nos aviões.
Se eles começarem, vamos levar horas. Mas tem uma
tempestade se formando em algum lugar. Não podemos ficar
aqui posando de embaixadores do século XX se isso nos fizer
encontrar uma tempestade.
"Todo mundo me avisou para ter cuidado com as coisas
erradas", pensou Martha. "Não preciso me preocupar com
gente. Eles não vão tentar me matar. Eu deveria esperar não
ser fulminada por um relâmpago, ou me preocupar com a
possibilidade de não termos água suficiente para sobreviver a
uma queda."
O curioso, contudo, foi que essas coisas não a assustaram; e a
levaram à conclusão de que as pessoas também não a
assustavam.
O motor rugiu. O aviãozinho começou a avançar como um
canguru pela savana. O punhado de indígenas acenou
furiosamente e Martha retribuiu o gesto. Reconheceram
freneticamente a existência uns dos outros nos breves
segundos que se passaram até que o avião subisse mais uma
vez, seus mundos estrangeiros se tocando por um rápido
instante.
Depois de mais uma hora voando, uma cortina de neblina
fechou o horizonte e o voo começou a ficar turbulento.
— Aquilo é o oceano — Alden disse a Martha. — Mas não dá
para vê-lo por causa da neblina. E você está vendo aquele
monte de nuvens à direita? E uma nuvem de trovoada. Está
bem em cima da pista de Kwale, que é para onde vamos.
— Tem uma outra — Martha apontou.
Eles voaram em direção à neblina.
— Nunca vamos conseguir descer lá — explicou Alden. Não
estava berrando, e Martha teve de se inclinar na direção dele
para ouvir. — Eu não ousaria. Vamos um pouco para o norte
e tentaremos aterrissar na costa de Malindi para passar a
noite. Caso contrário só iríamos desperdiçar combustível
voando em círculos. Há muitos hotéis em Malindi.
Martha considerou a ideia de tentar repassar as informações à
Sra. Copley, mas achou melhor não fazê-lo. Por trás de seus
óculos escuros, a passageira de trás estava com o rosto muito
pálido, sentada com a cabeça recostada no assento e voltada
para cima, como se estivesse estudando o teto. Martha podia
ver o leve movimento de sua garganta quando engolia.
As enormes nuvens escuras se empilhavam, formando uma
barreira ao longo da costa e um pouco para o interior, rumo
sul, à direita e por trás deles. O aviãozinho abriu caminho
para o norte, fugindo das tempestades.
E logo estavam descendo, saltitando pelo ar quase tão
violentamente quanto na hora em que taxiaram em Amboseli.
Martha imaginava o que é que os fazia saltitar no ar daquela
forma, e contemplou a folhagem das palmeiras debatendo-se
loucamente lá embaixo, de repente chegando bem perto
deles. Martha se agarrou às laterais do assento. A Sra. Copley
agarrou o ombro de Martha, e Martha soltou o assento para
apertar sua mão angustiada.
Baque. Estavam no chão. A pista de terra parecia ser bem
macia.
— Bem, a última vez que me diverti tanto assim foi quando a
minha irmã explodiu a casa flutuante do professor — disse
Hart Alden, casualmente, direcionando o avião até que ele
parasse na grama alta à beira da pista.
A Sra. Copley soltou a mão de Martha. Os dois gatos estavam
passando mal.
Alden estendeu o braço por cima de Martha para abrir a
porta.
Uma corrente de ar quente e salgado lutou contra o mapa que
ela segurava.
— Nossa, como VENTA!
— Nem me diga! — disse o piloto.
Eles se reuniram fora do avião. No final da pista havia uma
cabana feita de folhas de palmeira.
— Onde estamos? — perguntou a Sra. Copley, preocupada.
— Ilha de Manda.
— Onde?
— Do outro lado da baía de Lamu. Podemos passar a noite
em Lamu ou em Shela.
— Lamu fica a uns duzentos quilômetros de Kwale! Ora, nós
estamos praticamente na Somalilândia!
— Estava relampejando sobre Kwale — Martha especulou.
— E também sobre Malindi. Não dava pra gente aterrissar lá.
— Diga isso num tom confiante, garota — Hart Alden lhe
disse.
Atravessaram a baía num barco a vela. Um dos moradores
locais, um homem com o prosaico nome inglês de Raymond,
já conhecia Alden. Conversaram em suaíli e organizaram essa
etapa da viagem sem consultar nenhuma das passageiras. A
Sra. Copley ficou furiosa. Martha pensou que ela até que
estava se comportando muito bem diante daquelas
circunstâncias, as pregas de sua saia cáqui ainda vincadas, o
lenço de seda verde ainda gracioso.
Eles foram deixados no cais de Lamu, carregando seus poucos
pertences, e seguiram o amigo de Alden a pé. Lamu, aos olhos
citadinos de Martha, da Pensilvânia, parecia um cenário
tirado de As mil e uma noites. As casas caiadas formavam
uma mixórdia de varandas e minaretes, com telhados e toldos
de folhas de palmeira. As travessas e ruas entre elas eram
estreitas, abrindo-se de repente em praças ou em pequenas
mesquitas escancaradas, cheias de crianças e frangos,
cachorros e jumentos. Não havia nenhum automóvel. O
vento corria nos vãos entre os edifícios e repuxava os telhados
de folhas.
Raymond carregava os gatos. Alden estava se apoiando
bastante em sua bengala, pensou Martha. Saíram da cidade
caminhando por um atalho que ladeava a água até Shela, o
vilarejo seguinte.
Por fim, foram conduzidos por três lances de escada e
entraram num pequeno apartamento com quartos que davam
para um terraço coberto, onde havia parapeitos com ameias
em vez de paredes. Martha e a Sra. Copley teriam que dividir
uma cama de casal. Pelas janelas do quarto viam-se enormes
dunas de areia branca, que protegiam um pouco a casa do
vento que vinha do Oceano Índico. Na praça que havia sob o
terraço, as copas das palmeiras balançavam de um lado para o
outro.
— Bem, vamos ter de esperar a ventania diminuir para irmos
embora — avisou Alden. — Que tal ir à praia?
Esperaram a Sra. Copley dar comida e água aos gatos. Ela os
soltou no quarto e fechou bem as venezianas. No final das
contas, não aguentou deixá-los sozinhos.
— Você e a garota vão e divirtam-se na praia. Tragam um
pouco de areia para eu fazer uma caixa para os gatos. Assim
teremos uma noite tranquila juntos — prometeu.
Martha e o piloto saíram com a missão de achar areia para os
gatos, atravessando os becos estreitos e as dunas pálidas, agora
ligeiramente pinceladas de dourado pelo sol do fim de tarde.
"Meu Deus, eu fico o tempo todo segurando vela", pensou
Martha. "Esta viagem seria tão romântica para os dois se eu
não estivesse junto."
"Mas não, ela é casada: vai se encontrar com o marido. Além
disso, não está exatamente flertando, só fazendo os outros
carregar sua bagagem e lhe servir drinques."
Mas e quanto a Hart Alden? Ele não fazia muito o estilo
romântico. Não era feio, mas estava com a cabeça em outras
coisas. Estava ocupado com o avião e tinha saudades da irmã.
Foi complicado para Alden coxear na areia macia e profunda
ao pé das dunas. Garboso, ele colocou a bengala sobre o
ombro e tomou o cuidado de manter os olhos fixos nos pés,
como alguém que estivesse tentando descer o declive de uma
montanha coberta de gelo. Martha o observou caminhar
calmamente até a areia mais firme, à beira da água. Ela se
inclinou para pôr areia em um saco de café e levá-la para os
gatos. Mas a areia se esvaía pelo tecido quase na mesma
velocidade em que ela a despejava.
— Tudo é vaidade — murmurou Martha — e esforço para
perseguir o vento. — Ela riu. — Esta é a coisa mais boba que eu
já tentei fazer.
— Nunca vi uma garota citar tantas passagens da Bíblia.
Eclesiastes, não é?
— Sou uma F. P. — disse Martha, encabulada, de novo pega
no ato. — Mas isto é como perseguir o vento.
— Tente aqui, onde está mais molhada.
Ele coxeou ao longo da margem. Martha pegou uma concha
tão pequena, lisa e branca quanto a unha de seu dedinho.
— Em que guerra você se feriu? — perguntou.
Hart Alden deu um leve sorriso. A bengala se afundou na
areia, mesmo perto da linha espumosa deixada pelo mar,
então ele a pôs de novo no ombro.
— Meu pai fez isso, por acidente, quando eu tinha mais ou
menos a sua idade. Ele deixou uma caixa cair em cima do meu
pé.
— Ai — disse Martha, compassiva.
— Pode colocar a culpa na minha irmã — disse Hart Alden.
— Ela jogou a caixa nele. Estavam brigando, mas nenhum
deles queria me machucar.
Não sou um guerreiro, ele tinha dito.
Martha assentiu.
— E como estar no Quênia agora. Presos no meio da guerra
— ela disse, levantando-se. — Sua irmã vem pra cá de visita?
Você disse que costumavam voar juntos.
— Faz mais de cinco anos que não tenho notícias dela —
respondeu Alden. Ele também se curvou para pegar uma
concha e a arremessou ao mar com o braço abaixado, muito
rápido. Ela pulou oito vezes e Martha a perdeu de vista.
— Uau — soltou Martha. — Você tem o braço daquele
lançador de beisebol, o Lefty Grove.
— E, tenho sim. Meu pai também tinha. O Lefty Grove não é
muito anterior à sua época?
— Ah, nem tanto. As lendas não morrem.
— Minhas irmãs e eu éramos obrigados a venerar o altar do
Philadelphia Atletics — comentou Alden, e lançou mais uma
concha nas ondas.
— Você sente saudades da sua família — observou Martha.
— Acho que sinto. Mas não é porque estou aqui. Meu pai
morreu uns quinze anos atrás e Lucy parou de falar comigo
durante a guerra. Não sinto a falta dela por estar longe; estou
longe porque já sentia sua falta. Estar a oito mil quilômetros
de distância facilita as coisas. Era insuportável morar na
mesma cidade que ela e nunca, jamais, vê-la. Ela desligava
quando eu telefonava. Até se mudou e trocou de número.
— A guerra foi importante para ela — Alden acrescentou,
refletindo, como se estivesse tão distante do turbilhão
emocional de sua família que nem se importasse mais com
aquilo. — Ela rompeu comigo porque eu não quis me alistar.
Bem, tal fato explicava por que ele ficara decepcionado
quando Martha lhe dissera que suas amigas conheciam a irmã
dele, mas que ela mesma não a conhecia. Talvez tivesse
esperanças de que Martha pudesse dar algum recado a ela, ou
descobrir seu endereço. Hart Alden ficou parado,
contemplando o mar, a bengala pendurada sobre o ombro de
um jeito meio desleixado, como era típico dele.
— Dra. Lucy Alden — ele disse, com tristeza. — Isso é que é
perseguir o vento! Ela nunca deixou ninguém da família lhe
dizer o que fazer. Um raio precisaria cair na cabeça dela para
fazê-la mudar de ideia.
Alden voltou mancando para o vilarejo e Martha o seguiu.
Nuvens se amontoavam, douradas e prateadas, atrás das
dunas. Martha e o piloto caminhavam devagar pela areia
batida, pelo caminho onde não parava de ventar, de volta para
a pensão, onde um jantar bem elaborado e Maria Copley os
esperavam no pátio cheio de colunatas. Comeram enquanto o
sol se punha e a ventania aumentava.
Hart Alden olhava ao redor a cada minuto, e levantava a
cabeça como um cachorro tentando assimilar um odor; o
vento fazia com que mechas de seus cabelos castanhos, que
começavam a ficar grisalhos, caíssem em seu rosto jovem. A
Sra. Copley estremeceu.
— Céus, que ventania.
— Sim. — Alden tirou o cabelo da frente dos olhos.
A Sra. Copley estendeu o braço e conteve a mão trêmula dele.
Suas unhas estavam perfeitamente pintadas, como se saídas de
um catálogo da Elizabeth Arden.
— O que foi?
— Estou preocupado com meu avião.
— O que tem ele?
— Não está amarrado. Eu deveria ter amarrado, mas estava
preocupado em achar um lugar para nos hospedarmos e em
conseguir um barco, e também achei que o vento ia diminuir
depois do pôr-do-sol. Uma ventania dessas pode facilmente
arrastar um Cessna.
Fez-se silêncio na mesa, enquanto o vento chicoteava e
urrava na escuridão, e o telhado de palha chiava e as folhas de
palmeira farfalhavam, e coisas misteriosas, lá no cais de Shela,
retiniam e se chocavam.
— Bem, não há motivo para se preocupar com isso — opinou
a Sra. Copley. — Você só vai poder resolver isso amanhã.
— Tenho de amarrá-lo — Hart Alden declarou.
Ele se levantou, andou até a ponta do terraço e debruçou-se
para fora nas trevas que se acentuavam. Depois, aprumou-se.
— Estarei de volta num minuto — disse por cima do ombro e
trotou escadaria abaixo.
Martha e a Sra. Copley ficaram sentadas, abandonadas,
encarando-se à luz bruxuleante da lamparina a querosene.
Então Maria Copley foi tomada por um grande nervosismo.
Andava de um lado para outro do terraço, agarrando e
soltando o cabo de uma faca de mesa, que ela balançava e
apontava para enfatizar o que falava.
— Você acha que ele foi lá fazer isso sozinho? Mas como seria
possível? E nós estamos seguras, aqui sozinhas? E se ele não
voltar, o que vai acontecer?
— Ele disse que voltaria num minuto — disse Martha.
— Bem, você confia nele?
Martha não respondeu de imediato. Parecia tratar-se de uma
pergunta retórica, já que ambas tinham se submetido
passivamente à suposta habilidade e ao discernimento dele ao
fazerem um vôo de quinhentos quilômetros pela mata
africana num avião do tamanho de um carro esporte. Mas ele
deveria ter amarrado o avião antes; e também havia a história
da caneta no tanque...
Enquanto Martha hesitava, Alden subiu as escadas num ga-
lope irregular, trazendo uma lanterna de antes da guerra,
grande como um trompete.
— O Raymond achou uma lancha — disse ele. — Então nós
vamos voltar a Manda para amarrar o avião.
— Você tem de ir? — perguntou a Sra. Copley.
— Se você quiser voar para fora daqui — ele respondeu,
ríspido.
— É seguro nós ficarmos aqui sozinhas?
Hart Alden a encarou, estupefato.
— Bem, você esteve segura esta tarde, por que não seria
seguro agora? Isto é um vilarejo. Aqui você corre menos risco
do que na fazenda de seu marido, onde pode acordar um dia e
descobrir que seus gatos serviram de aperitivo para os leões.
— Eu quero dizer em segurança — disse a Sra. Copley, com
frieza. — Não há fechaduras.
— Ah! — Ele riu de verdade. — Isto aqui não é Nova York.
— Ninguém vai embora de Nova York por ter medo de
morar lá. — A Sra. Copley se levantou com a dignidade de
uma rainha, mesmo sendo uma mulher tão pequenina, e
armou-se com o talher que tinha usado antes. Foi se
aproximando em silêncio da porta fechada do quarto que
dividiria com Martha. — Nós vamos ficar aqui até você voltar
são e salvo. Venha, Martha.
Martha hesitou, tomou fôlego e disse rápido:
— Não, acho que eu vou com o Capitão Alden.
Fez-se um breve momento de silêncio.
— Eu quero ir — Martha explicou. — Talvez possa ajudar.
Sei lá, segurar a lanterna enquanto você trabalha. Está muito
abafado aqui dentro, de qualquer forma.
A Sra. Copley entreabriu a porta, colocando o pé na abertura
para evitar que os gatos tentassem fugir do quarto. Ela trocou
a faca de mão.
— Shela não é conhecida pelas arruaças nas ruas — comen-
tou Alden num tom suave.
— Vejo vocês mais tarde, então — a Sra. Copley respondeu.
Ela entrou no quarto e fechou a porta.
"Aposto que ela está fazendo uma barricada com o cesto que
usa para carregar os gatos", pensou Martha ao seguir o piloto
pelos degraus do terraço e pelos becos estreitos entre as casas,
vendo o caminho largo e mal iluminado pela velha lanterna.
Ouviram o ruído de um motor antes de alcançar o cais de
Shela. Cerca de meia dúzia de pessoas estava ali quando eles
chegaram — Raymond, os dois donos da lancha, um homem
baixinho carregando estacas de ferro e um rolo de arame e
dois garotos mais ou menos da idade de Martha, que
colaboravam com cordas feitas de folhas de palmeira
trançadas. Ninguém se deu o trabalho de fazer apresentações;
todos simplesmente se amontoaram na lancha — que nada
mais era do que um barco com um grande motor preso à parte
de trás — e se lançaram pelas águas da baía.
Foi um passeio glorioso. Foi, no mínimo, melhor que
sobrevoar o sopé do Kilimanjaro. Não havia luz alguma: nem
luar, nem luzes no barco, nenhuma iluminação na ilha para
onde estavam indo — nada além de vento, velocidade, noite e
um milhão de estrelas resplandecendo sobre suas cabeças em
posições desconhecidas, entre as nuvens. Martha não fazia
ideia de como alguém poderia saber para onde iam. A lancha
batia contra as ondas como um cavalo pulando cercas. Se
houvesse algum outro barco sem luzes acesas ali na água, no
meio daquela escuridão, todos afundariam.
"Não me importo", Martha pensou. "Por este passeio, vale a
pena. Se eu morrer assim, vou morrer feliz."
A ilha de Manda surgiu suave e negra diante deles, como a
silhueta que contorna o horizonte artificial na cúpula de um
planetário. O contorno superior da silhueta ondulava e
balançava: eram as árvores baixas da ilha de Manda oscilando
com o vento. As estrelas começavam logo atrás delas e
ficavam cada vez mais abundantes, mas não menos brilhantes,
quanto mais alto no céu a pessoa olhasse. Martha não se
lembrava de já ter percebido quanto o céu era profundo: podia
ver estrelas atrás das estrelas, e mais e mais estrelas,
infinitamente.
Todos desceram da lancha. Andaram na escuridão para
economizar as pilhas da lanterna. O caminho parecia cheio de
raízes e pedras; Martha teve de confiar nos próprios pés para
encontrar o caminho, e ficou contente por ter escolhido usar
um sapato de couro de sola lisa para essa parte da viagem e ter
despachado as sandálias e tênis com a bagagem. Hart Alden,
mancando a seu lado, estava mais seguro de onde colocava os
pés do que ela, tateando o solo confiantemente com a bengala,
como faria um cego.
Chegaram ao campo de aviação e atravessaram a pista de
aterrissagem. Ali estava o aviãozinho, ao abrigo do vento, sob
uma sebe formada por arbustos que o cercavam, criando uma
pequena e inesperada área de calmaria.
— Aqui não venta tanto — disse Raymond na língua de
Martha e Alden.
Hart Alden riu e balançou a luz em cima do avião, que estava
parado e silencioso.
— Sei ou não sei escolher um lugar pra estacionar? Bem,
vamos fazer o que viemos fazer aqui.
Os homens amarraram o avião. Levaram cerca de cinco
minutos. Martha segurou a lanterna para eles e ficou de olho
nas estacas em meio à escuridão.
Formavam um grupo jovial na viagem de volta a Shela. Os
homens gritavam uns com os outros em suaili, acima do ruído
das ondas e do motor. Ficaram algum tempo no cais, rindo e
batendo papo, enquanto Alden distribuía cigarros, e depois o
grupo se dispersou: os donos da lancha aceleraram de volta
para o lugar de onde tinham vindo, os cigarros se apagaram, e
os garotos sumiram numa estreita viela litorânea que daria em
Lamu, gargalhando e dando socos um no outro.
— Venha, Martha.
Hart Alden acenou para ela com a lanterna.
— Posso carregá-la? Ou ela o ajuda a enxergar seus pés?
— Martha, Martha. — Ele ficou em silêncio por um instante
e depois disse: — Andas muito inquieta e te preocupas com muitas
coisas. Sou adulto. Posso carregar a lanterna.
— Venha, Martha — ele repetiu. — Maria deve estar
esperando por nós.
Mais tarde, deitada no escuro sob a rede para mosquitos, tão
distante da Sra. Copley e sua pilha de gatos quanto poderia
ficar sem cair da cama, Martha refletiu a respeito da
reprimenda delicada e enigmática de Hart Alden. Ele não
precisava que Martha fosse com ele amarrar o avião. Já tinha
seis homens para ajudá-lo. A Sra. Copley, por outro lado,
tinha ficado sentada na escuridão, sozinha e com medo.
Martha fizera exatamente o que a mãe sempre lhe avisara
para não fazer. Estava tão ocupada procurando alguma coisa
para fazer que não percebera onde sua presença era mais
necessária.
Essa constatação a deixou murcha como um balão estourado.
Tirou-lhe a alegria trazida pelo passeio de barco. Ah, por que
ela era Martha se queria mesmo era ser Maria?
A Sra. Copley teve de acordá-la para tomar o café da manhã.
O vento tinha abrandado. Fizeram o voo até Kwale pelo
litoral em trechos curtos, parando em Malindi para encher o
tanque. Voavam abaixo das nuvens; de um lado do avião
chovia, do outro o sol brilhava. A terra onde chovia tinha um
tom verde viçoso, com pontos azuis por causa da enseada, do
tanque de água e da cisterna, e parecia se prolongar até o
infinito com a neblina distante, minúscula e luminosa. O
Oceano Índico, iluminado pelo sol, tomava um colorido
lamacento na boca dos rios e perolado e turquesa mais além.
Na hora do almoço já tinham aterrissado em outra pista
gramada e Martha se arrastou para fora do pequeno avião,
atirando-se nos braços do pai.
A Sra. Copley recebeu os admiradores na varanda do marido
enquanto almoçavam. Maria Copley fez com que a viagem
soasse como uma aventura bem maior do que fora de verdade
e descreveu a própria participação na história sem nenhuma
vergonha de fazer piada consigo mesma:
— A moita mais próxima ficava a uns oito quilômetros de
distância. Então eu disse a mim mesma: "Maria, minha
querida, quem vai te ver?" E eu me agachei embaixo da asa,
no meio do meio do nada, e quando olhei pra cima havia DEZ
PESSOAS PARADAS ME OLHANDO.
A Sra. Copley e o pai de Martha deram gargalhadas
estrondosas e Hart Alden sorriu, olhando para o café,
soltando pequenos roncos abafados.
— E eles tinham lanças.
Outra explosão de risos geral, como se fosse mais engraçado
ser pega com as calças abaixadas por uma dezena de
guerreiros nativos do que por uma dezena de cidadãos da
Filadélfia esperando o bonde.
— Os Masai têm — disse a mãe de Martha. — Eles realmente
andam com lanças. Você também andaria se tivesse passado a
vida toda pastoreando gado num país de leões.
— Eu andaria com uma pistola — retrucou Maria Copley.
— Ou uma faca de passar manteiga — Hart Alden
murmurou.
— Ah!
A Sra. Copley deu um golpe com o garfo, gesticulando sem
parar no intuito de anunciar que estava de boca cheia, mas
ainda podia atacar.
— Reverendo Bennett, o senhor tem ideia de quanto sua filha
é corajosa? Ontem, no meio da noite, ela saiu de lancha com
meia dúzia de homens desconhecidos que só falavam suaili
para ajudar o Harry a amarrar o avião. Eu não conseguiria
fazer isso de jeito nenhum. Fiquei apavorada, nem podia sair
do quarto! A milhares de quilômetros de qualquer lugar, sem
eletricidade, sem telefone, ninguém que falasse minha
língua...
Ela parou e se dirigiu a Martha, com profunda admiração.
— Você é uma guerreira de verdade, querida.
— Não sou, não — Martha protestou. — Eu só gosto de ter
alguma coisa para fazer.
Hart Alden assentiu, sorrindo-lhe.
— Não, a Martha não é uma guerreira — concordou ele. —
Ela é uma pessoa de ação. Ela se levanta e faz as coisas. Como
sua xará.
Martha sentou-se à grande mesa da cozinha da excêntrica
casa temporária dos pais. A mãe e o cozinheiro do casal
Copley estavam preparando um guisado apimentado de carne
usando carne de antílope africano em vez de estômago de
vaca, que a mãe jurou ser um substituto razoável uma vez que
a pessoa superasse a repulsa habitual ao tentar identificar os
ingredientes do guisado. Martha não estava envolvida no
projeto. Estava escrevendo uma carta.
"Cara Sra. Atkins", começara ela, "muito obrigada por ter me
deixado dividir o quarto com Sally... "
Martha prosseguiu nesse tom corriqueiro por um tempo e
descreveu em poucas linhas o vôo até Kwale; em seguida,
mencionou casualmente o piloto.
"... O nome dele é Hart Alden. A irmã dele é a diretora de
horticultura na sua escola! Por favor, diga a ela... "
Martha parou de escrever. Olhou para além da porta aberta,
além da mãe e do cozinheiro Luo brincando um com o outro
em suaili, que nenhum dos dois falava com fluência. Martha
mastigou a caneta e contemplou as buganvílias violetas e
vermelhas cascateando sobre o parapeito da varanda. A casa
fora construída no período entre as guerras, assim como a
lanterna de Alden, e passava uma sensação de antiguidade,
calmaria e solidez — ao contrário da amizade entre a mãe e o
cozinheiro dos Copley, uma relação frágil, provisória e que
ultrapassava todos os limites do aceitável.
Os dedos de Martha estavam cheios de tinta. Olhou para o
papel mais uma vez. "Que caligrafia mais desleixada eu
tenho", pensou, passando os dedos sujos na capa de papelão da
caixa de papéis de carta da mãe. Havia uma fotografia de um
raio caindo na capa, para mostrar quanto o correio aéreo era
rápido.
Um raio precisaria cair na cabeça de Lucy para fazê-la mudar de
idéia.
"Certo, Dra. Lucy Alden, aí vai. Este vai ser o raio que vai cair
na sua cabeça. Vou mesmo fazer isso", pensou Martha. E
escreveu:

"Por favor, entregue à Dra. Alden o bilhete anexo, escrito por mim,
dizendo-lhe quanto gostei de seu irmão. Ele falou muito sobre ela,
sempre coisas boas (Sally só reclama de quanto ela é rígida!). Eu
gostaria de conhecê-la um dia; talvez a senhora possa nos
apresentar quando eu voltar para casa?
Desculpe-me por fazê-la de mensageira, mas me esqueci de pedir ao
Capitão Alden o endereço dela.
Chegar até aqui foi muito mais assustador do que permanecer aqui.
Acho que algum tipo de guerra civil não está muito longe de
começar, mas me sinto segura. Vejo vocês em setembro.
Sua amiga, Martha."

Ela começou a segunda carta. Esta seria bem mais difícil. Mas
mesmo que não funcionasse, ainda haveria Sally, a mãe de
Sally e a exposição de flores da Filadélfia. O raio de Martha
acabaria por deixar sua marca. Os raios se movem mais rápido
que o vento.
"Cara Dra. Alden..."

Elizabeth E. Wein nasceu em Nova York e cresceu na


Inglaterra, Jamaica e Pensilvânia. Graduou-se em Yale e fez
doutorado na Universidade da Pensilvânia. E autora de três
romances de um ciclo arturiano ainda em andamento: The
Winter Prince (Firebird), A Coalition of Lions e The Sunbird
(ambos pela Viking).
Elizabeth e o marido tocam sinos de igreja ao estilo inglês
conhecido como "campanologia" — eles se conheceram num
jantar para tocadores de sinos! — e atualmente vivem na
Escócia com os dois filhos.
Seu site é www.elizabethwein.com.

Nota da Autora
Minha idéia inicial para este conto era localizá-lo no universo
semi-histórico da Etiópia do século VI. Ele seria sobre a
infância isolada do rei de Himyar, e talvez sobre dragões.
Depois de seis páginas, parei de escrever. A folha seguinte do
meu caderno está rabiscada com as palavras: "Não, não, não.
Na verdade, eu quero escrever um conto sobre AVIÕES."
"Perseguindo o vento" foi o resultado. Os personagens do
conto são inteiramente ficcionais, assim como a interação
deles e suas confusões emocionais. Fiz alguns ajustes nos
lugares reais e nos acontecimentos pelo bem da ficção. Porém
todos os incidentes da jornada de Martha pelo Quênia em um
avião monomotor são baseados nas minhas próprias
experiências como passageira e nas vivências de meu marido
como piloto. Não aconteceu tudo durante o mesmo vôo, mas
tudo aconteceu de fato, desde ter gatos como passageiros
extras até o louco passeio em meio à escuridão para a ilha de
Manda a fim de amarrar o avião.
Orville e Wilbur Wright fizeram o primeiro grande voo
motorizado com uma aeronave de asas fixas e mais pesada que
o ar no dia 17 de dezembro de 1903. Meu conto se passa em
1950, mas os vôos descritos nele se parecem muito mais com
o tipo de vôo que vivenciamos em 2003 do que com o que os
irmãos Wright vivenciavam em 1903. Isso é simplesmente
incrível para mim. Em 1933, Charles e Anne Lindbergh
passaram meses solitários explorando as possíveis rotas da
travessia do Oceano Atlântico; vinte e cinco anos depois,
aviões transportavam mais passageiros em viagens
transatlânticas do que navios a vapor. Como tanta coisa pode
ter mudado tão rápido? Eu acho que as viagens aéreas são a
inovação mais fantástica do século XX.
Este conto é minha pequena homenagem ao centésimo
aniversário daquele "primeiro vôo".
Diana Wynne Jones

Manchinha

Tenho sorte por ser dona de um mago que conversa comigo.


Henry sabe que nós, gatos, não gostamos de ser pegos de
surpresa. E por isso que sei tudo sobre o começo da minha
vida, já que eu era nova demais e não poderia me lembrar das
coisas.
Henry mora numa antiga fazenda nas colinas acima de
Ettmoor e trabalha três dias por semana em um Instituto
Científico lá embaixo, no vale. E um trabalho altamente
secreto, diz ele, pois o governo não quer que seja de
conhecimento público o fato de que fazem pesquisas com
magia; eles o pagam muito bem. Henry é um mago excelente,
mas tem o coração tão bondoso que isso chega a prejudicá-lo.
Na época em que passei a ser dona de Henry, uma jovem
mulher — que, até o próprio Henry admite, estava se
aproveitando terrivelmente dele — havia acabado de ir
embora da fazenda, levando com ela seus quatro irmãos, sua
mãe e também os porcos de Henry, que eram premiados. A
única pessoa que ficou foi a tia-avó de Henry, Harriet, que
morava sozinha em um chalé no fundo do quintal. Henry se
sentia muito só.
Ele tentou criar galinhas para ter companhia. Ele ainda as
tem, mas a única coisa para que elas servem é botar ovos.
(Caso você seja um inocente gato urbano, saiba que as
galinhas têm garras afiadas como as nossas e um bico bem
afiado na frente da cabeça. Gatos devem tomar cuidado perto
de galinhas.)
Henry comprou um aparelho de som e vinte óperas, tentando
se consolar do vazio súbito e cheio de silêncio que ficou na
fazenda, mas ainda assim se sentia sozinho. Fazia longas
caminhadas. Ele diz que as colinas são excelentes para
caminhadas, e talvez seja verdade, mas eu nunca
experimentei. Parece que sempre chove quando Henry sai
para caminhar.
Naquele dia específico, a chuva estava implacável, aquele tipo
de chuva que vem misturada à neblina e entra por tudo que é
fenda. Henry diz que foi ótimo! Ele vagueou por aí com a
barba pingando água em seu peito, ouvindo o tamborilar dos
pingos nas samambaias e o murmúrio de todos os córregos da
montanha, até que chegou ao lugar onde a estrada passa por
cima de um barranco, e há um bueiro sob a estrada. Henry diz
que dava para ouvir a enxurrada correndo lá longe. E pensou
que era por isso que não ouvia direito o que a senhora negra
dizia. A água estava trovejando sob a estrada quando ele se
aproximou. Imaginou o que uma velha senhora das Antilhas
estaria fazendo lá nas colinas, principalmente porque parecia
completamente seca, mas ela havia surgido da neblina tão de
repente e acenava para ele com tanta urgência que Henry não
teve tempo de imaginar muita coisa.
Ele achou que ela tinha dito "Depressa, homem!" e apontava
para baixo, onde o bueiro saía do barranco, mas não tinha
certeza.
Porém correu para o lugar que ela apontava e chegou bem a
tempo de ver um montinho de pelos minúsculo, encharcado,
ser levado pela enxurrada e sumir sob a estrada. Ele correu
para o outro lado da passagem e despencou pelo barranco,
esperando que eu fosse aparecer no redemoinho a qualquer
instante. Na verdade, eu havia me agarrado a uma pedra a uns
trinta centímetros da saída do bueiro. Estava soterrada por
bolhas de espuma amarela, praticamente camuflada. Henry
diz que jamais teria me achado se eu não tivesse as quatro
patas e uma orelha brancas. Ele mergulhou até os joelhos na
água e tateou nos canos até conseguir me pegar. Diz que eu
estava congelada. Então levantou-se, escorrendo água dos
joelhos, dos cotovelos e da barba, e gritou para a senhora
negra:
— Aqui está o gatinho que a senhora deixou cair, madame!
Não havia nem sinal da mulher. Henry patinou de volta à
estrada — com muita dificuldade, pois me cobria com as duas
mãos, não queria me machucar — e ficou olhando a neblina
em ambos os lados do caminho, depois morro acima e morro
abaixo, mas não havia mulher das Antilhas em lugar nenhum.
Ele não conseguia entender. Mas disse que não podia perder
muito tempo com isso, já que era obviamente urgente me
levar para um lugar quente e seco. Ele correu todo o caminho
de volta para a fazenda, me carregando.
Lá, me pôs numa toalha, diante do fogo, e se ajoelhou ao meu
lado com um pires de leite. Eu já tinha idade suficiente para
lamber, diz ele, e já tinha tomado quase metade do pires
quando a tia-avó Harriet entrou para pegar um pouco de
açúcar emprestado. A tia-avó Harriet sempre abria a porta da
cozinha de Henry batendo nela com sua bengala. Henry diz
que foi então que mostrei pela primeira vez meu maior
talento. Eu desapareci.
Henry ficou muito preocupado. Engatinhou pelo chão,
olhando embaixo das cadeiras e do tapete em frente à lareira,
mas não fazia ideia de onde eu tinha ido parar.
A tia-avó Harriet perguntou:
— O que você está fazendo, Henry?
— Procurando a gatinha — Henry respondeu, ou melhor,
gritou. A tia-avó Harriet não ouvia direito as vozes humanas,
a não ser que fossem bem altas. Henry foi contando, aos
berros, como havia me encontrado. — E não consigo
imaginar — ele vociferou — como alguém pode derrubar
uma gatinha num bueiro e ir embora desse jeito!
— Porque provavelmente ela não era humana, e não precisa
gritar — retrucou a tia-avó Harriet. — Já olhou no balde de
carvão?
Henry procurou e lá estava eu, encolhida, trêmula e toda suja
de carvão. A tia-avó Harriet se afundou numa cadeira e ficou
observando enquanto Henry transferia a sujeira de mim para
a toalha.
— Que trapinho mais cheio de manchas! — disse ela. —
Você vai chamá-la de Manchinha, eu aposto.
Sei o que a tia-avó Harriet queria dizer com aquilo. Sou toda
cheia de manchas. Em meu pelo há marcas de todas as cores
que um gato pode ter. Já olhei no espelho e Henry já
examinou. Tenho prata, cinza e tigrado, dois tipos de
vermelho e um quase-rosa, cor de casco de tartaruga,
caramelo e creme, e também branco e preto. Tenho um olho
azul com uma mancha preta e um verde com bordas
vermelhas. Sou especial. Mas, na época, Henry disse:
— Manchinha é um nome muito comum, tia. Gatos sempre
devem ter nomes especiais, distintos. Vou ter de pensar.
— Como quiser — disse a tia-avó Harriet e começou a
resmungar que as galinhas não a deixavam dormir,
cacarejando na cocheira do outro lado da parede do seu
quarto.
Henry odeia gente que reclama. Ele colocou para tocar uma
de suas óperas, querendo abafar a voz da tia-avó Harriet.
Dessa parte me lembro vagamente. Dormi nos joelhos de
Henry, feliz da vida, durante muita cantoria e, de repente,
uma potente voz de mulher gritou: "Gli enigmi sono tre, la
morte è una!".
Desapareci como um raio, de novo.
Henry e a tia-avó Harriet levaram meia hora para me achar.
Eu estava atrás do grande prato azul e branco, no meio do
aparador galês. Ainda não sabemos como fui parar lá.
— Isso resolve o problema — declarou Henry. — O nome
dela vai ser Turandot1, por causa dessa ópera. — Ele me
colocou sobre a perna esquerda e me acariciou com o dedo
enquanto explicava que a mulher dos gritos era uma princesa
chamada Turandot, cantando para avisar ao príncipe que ele
morreria caso não respondesse a suas três charadas. — A letra
diz: "São três os enigmas, mas é só uma a morte" — disse ele.
Portanto, meu nome é Turandot e eu sou uma princesa, mas
por algum motivo quase sempre sou chamada de Manchinha.
Algumas das principais lembranças que tenho de quando eu
estava crescendo — além de perseguir tufos de palha e saltar
sobre os telhados, rasgar os papéis do trabalho de Henry e
brincar com um rato de pelúcia que ele comprou para mim —
são de estar sentada nos joelhos de Henry enquanto ele
explicava como ganhei esse nome. Ele ouvia muito a mulher
dos gritos. E eu sempre sumia. Henry me pescava de trás do
prato azul — e, mais tarde, de baixo do aparador galês, ou de
dentro do armário —, me sentava em seu joelho esquerdo
(quando eu fiquei maior, nos dois joelhos) e explicava como
recebi meu nome. À noite, eu dormia na barba dele, até que
seis meses depois ele reclamou que eu o estava asfixiando e
me pediu para dormir na sua cabeça.
Algumas semanas depois de ter começado a dormir na cabeça
de Henry, ele chegou a casa com mais dois gatos, cada um
embaixo de um braço. Um era malhado em tons escuros e o
outro, vermelho encrespado, ambos maiores que eu. Fiquei
horrorizada. E muito magoada. Fui saltando até o telhado da
cocheira, expulsei o galo que estava ali e me sentei em seu
lugar, de costas viradas para tudo, olhando para o pântano.
Henry foi até lá e me chamou, mas eu estava zangada e
ofendida demais para ouvi-lo. Fiquei horas ali sentada.
Por fim, Henry também subiu no telhado e se sentou com
uma perna para cada lado.
— Manchinha — ele disse —, não foi minha culpa. Eu estava
na cidade e encontrei a senhora negra de novo. Ela estava no
jardim de uma casa vazia e me chamou. Alguém tinha se
mudado dali e deixado dois gatos pra trás. Os dois estavam
morrendo de fome. Eu tinha de ajudá-los, Manchinha!
Perdoe-me.
Meu coração amoleceu um pouquinho por ele ter subido no
telhado para se explicar, mas eu não podia demonstrar.
Continuei de costas e balancei o rabo.
— Por favor, Manchinha! — pediu Henry. — Você sempre
vai ser minha única e primeira gata!
— Então, prove — eu o desafiei. — Mande os dois embora.
— Não posso fazer isso. Eles não têm onde morar e estão tão
magros que dá até para contar suas costelas, Manchinha.
Deixe que eu cuide deles, faço qualquer coisa que você quiser.
— Tudo bem — eu disse. Então me virei e passei o focinho
na mão dele. Mas não ronronei.
Henry desabafou:
— Graças a Deus!
E praticamente caiu do telhado. O barulho fez a tia-avó
Harriet sair do chalé.
— Pensei que fosse de novo aquele galo idiota! — disse ela.
— Que estardalhaço só por causa de uma gatinha mimada!
Quando você vai construir um galinheiro de verdade?
— Logo, logo — respondeu Henry, rolando em cima das
ervas daninhas.
Ele deu aos gatos os nomes de Orlando e Cleópatra, acredite
se quiser! Mas normalmente eles são chamados de Laranja e
Garra. Garra era um gato macho, de qualquer forma; e esse
nome combinou mais com ele. Logo de saída, deixei bem
claro para os dois que era eu quem dormia na cabeça de
Henry, e também deixei bem claro para Henry que dali em
diante eu comeria no aparador galês, não lá embaixo, no piso,
como um gato comum. Também queria que Henry colocasse
mais duas portinholas na porta da cozinha, assim eles não
sujariam a minha, mas ele disse que eu teria de me contentar
com uma só. Ele estava ocupado demais planejando o
galinheiro da tia-avó Harriet, que ela não parava de pedir,
para fazer buracos nas portas.
Laranja, Garra e eu nos dávamos muito bem, na verdade. Eles
sabiam que eu era a verdadeira dona de Henry. E eles sempre
tinham vivido na cidade, então ficaram fascinados quando eu
mostrei a fazenda e as colinas e avisei que deviam tomar
cuidado com as galinhas e com a bengala da tia-avó Harriet. A
tia-avó Harriet sempre dizia que não tinha paciência para
gatos e tinha propensão a provar isso dando bengaladas.
Laranja saía muito para explorar, enquanto Garra me ensinava
a pegar ratos nos galpões. Quer dizer, eu conhecia ratos antes
de Garra chegar, mas não sabia que se podia comê-los.
Porém parece que Henry era incapaz de parar de adotar gatos.
— Acho que eu adquiri um hábito — ele me disse, como se
pedindo desculpas, no dia em que chegou do Instituto
Científico com Millamant numa cesta. — Não se preocupe
com ela. Foi vítima de um cientista louco lá do Instituto. Eu a
roubei de uma gaiola, e acho que a essa altura ela mesma já
ficou meio maluca.
Millamant era uma gata cor de caramelo, magricela e vesga, e
chamá-la de louca era elogio. Quero dizer, ela gostava de se
molhar. Na primeira vez em que Garra e eu encontramos Mill
nadando na tina de água, claro que pensamos que ela estava se
afogando e começamos a gritar pedindo ajuda. Isso fez a tia-
avó Harriet sair do chalé; ela supôs a mesma coisa e puxou
Millamant para fora da tina. Millamant a arranhou. Pro-
fundamente. A tia-avó Harriet revidou empurrando
Millamant para dentro da água e foi embora batendo os pés,
berrando para Henry que não suportava gatos e que aquela
era maluca. Mais tarde, a tia-avó Harriet encontrou Mill na
banheira com ela e a jogou pela janela, berrando para Henry
parar de adotar gatos de uma vez por todas, antes que todo
mundo acabasse biruta. Mill não ligou. Ela se lavou na tina de
água e depois entrou no chuveiro com Henry.
Na verdade, a tia-avó Harriet não detestava gatos. Ela só
precisava do gato certo para ser dono dela. Isso ficou claro
quando um de seus sobrinhos veio visitá-la. Ele tinha trazido
seu gato, o Sr. Williams, numa espécie de caixa de vidro
fincada na lateral da traseira de seu carro esporte. O Sr.
Williams era preto, bem educado e tinha medo de quase tudo.
Bem, eu também teria medo de tudo se fosse forçada a passear
dentro de uma caixa de vidro. Assim que Henry viu o Sr.
Williams, correu até o carro e abriu a caixa.
— Isso não é maneira de tratar um gato! — declarou. — Dê
meia-volta e vá embora. Agora.
— Mas eu vim ficar com a tia Harriet — o sobrinho
protestou. — Por uma semana.
— Ah, não veio, não! — a tia-avó Harriet gritou de dentro do
chalé. — Vá embora logo!
Henry pareceu muito surpreso com aquilo. Supunha-se que a
tia-avó Harriet gostasse muito daquele sobrinho. Ela ia lhe
deixar suas coisas em testamento. Mas, assim que Henry abriu
a caixa de vidro, o Sr. Williams fez um desaparecimento
quase tão bom quanto o meu e foi parar dentro de um baú da
tia-avó Harriet. Pouco depois, a tia-avó Harriet apareceu na
porta do chalé com o gato preto trêmulo nos braços. Ele tinha
as garras presas a todo lugar onde dava para se agarrar. Suas
unhas diziam "Esta humana é minha!". A tia-avó Harriet
aceitou isso de cara, como os humanos sempre fazem, e disse
ao sobrinho que nunca mais pusesse os pés em seu chalé. O
sobrinho foi embora bravo e o Sr. Williams ficou. Ele era tão
desequilibrado quanto Mill, mas a seu próprio modo. Adorava
quando a tia-avó Harriet o chamava de cute-cute-gracinha-
fofura e fazia cócegas na sua barriga — mas nós o
perdoávamos por isso, por causa de tudo o que ele tinha
passado.
A tia-avó Harriet fez Henry levá-la de carro à cidade para
alterar seu testamento e poder deixar suas coisas para Henry.
Ele me disse que as tais coisas eram enfeites de porcelana
horrendos e que tinha esperanças de que ela mudasse de idéia.
Depois disso, ele foi de carro visitar um dos fazendeiros do
pântano, que havia lhe pedido para ir vê-lo com urgência, e
voltou com o sexto gato.
O sexto gato se chamava Madame Dalrymple e era branca e
felpuda como um dente-de-leão — ou pelo menos ficou assim
quando Henry limpou toda a sujeira dela. Ninguém sabia de
onde ela tinha vindo ou de quem tinha sido dona, e Madame
Dalrymple era burrinha demais para explicar. Com certeza ela
não pertencia à fazenda onde Henry a encontrou. Ele a
descobrira debatendo-se no chiqueiro do fazendeiro, um
perigo considerável por causa da porca que morava lá. Henry
teve de lhe dar quatro banhos. Ao contrário de Millamant,
Madame Dalrymple odiava água e até arranhou Henry — mas
essa foi praticamente a única vez que demonstrou alguma
animação. Ela era burra. Deitava-se em poses pitorescas e
suspirava, para quem quer que ouvisse, que o que ela
precisava de verdade, de verdade mesmo, era de um laço de
cetim azul no pescoço. Em geral eu a ignorava, exceto quando
ela tentava se sentar no joelho de Henry. Sempre a fiz sentar-
se nos pés dele. Os joelhos de Henry são meus — os dois.
Umas duas semanas após a chegada de Madame Dalrymple,
todos os fazendeiros do pântano vieram visitar Henry, com
expressões sérias e angustiadas. Subimos no telhado e ficamos
observando seus Land Rovers, jipes e vans. Em alguns havia
cachorros, então tivemos de ficar no telhado até que eles
fossem embora. Depois, desci e me sentei em cima da
papelada de Henry, para que ele me explicasse o que estava
acontecendo. Sou a única que tem permissão para se sentar na
escrivaninha dele ou subir no seu computador.
Henry parecia tão preocupado quanto os fazendeiros. Parece
que havia uma Grande Besta à solta em Ettmoor,
provavelmente fugida de algum zoológico, Henry disse,
embora ninguém soubesse de verdade de onde tinha vindo
nem que espécie de animal era. Ela só tinha sido vista por
poucos instantes ao entardecer, e de longe, mas tinha comido
um monte de ovelhas e atacado vários outros animais. Henry
espalhou as fotos que os fazendeiros haviam trazido; eu me
sentei, muito séria, com o rabo enrolado nas pernas, e as
examinei.
Senti os pelos das costas e do rabo querendo se arrepiar.
Diante de uma foto, tive de fazer força para não desaparecer e
acabar encolhida atrás da estante ou sei lá onde. A foto tinha
pegado a Besta fugindo para trás de uma sebe ao longe. A
Besta era escura e parecia muito um gato — mas ao mesmo
tempo não se parecia nada com um gato. A figura era... errada.
Era... bem, era um monstro. E claramente enorme. Caso eu
tivesse alguma dúvida sobre seu tamanho, havia a foto de um
cavalo que ela atacara. A pobre criatura perdera metade da
pele em um dos lados e tinha oito listras compridas e
sangrentas. A Besta tinha garras. E também havia fotos dos
restos mutilados de um coitado de um cachorro e alguns gatos
com os quais a coisa tinha brincado. Minhas costas
estremeceram e pensei, incomodada, que eu e Garra
brincávamos com os ratos nos galpões. A Besta fazia a mesma
coisa.
— Sim — disse Henry. — E uma criatura de verdade. E
também uma verdadeira ameaça, Manchinha. Os fazendeiros
querem minha ajuda para encontrá-la e alvejá-la. Já tentaram
pegada algumas vezes, mas parece que ela sempre escapa
quando eles acham que a encurralaram. Eles querem que eu
use a ciência na caçada — Henry suspirou. — Eles falam em
ciência, Manchinha, mas sei que vou precisar de magia.
Normalmente, eu odiaria essa ideia. Parece injusto. Mas olha
só esses gatos. Ela tem de ser detida. E até eu capturá-la,
vocês, gatos, vão passar as noites dentro de casa. Deixe isso
claro para os outros, combinado? — Ele suspirou mais uma
vez. — As galinhas também vão ficar presas, eu acho.
Expliquei aos outros sobre a Besta, mas não tenho certeza de
que acreditaram em mim. Só Madame Dalrymple estava a fim
de ficar confortável dentro de casa. Todas as noites, havia um
frenesi de galinhas correndo e cacarejando, com Henry se
esfalfando no quintal para fazê-las entrar na cocheira, e
depois ele ficava cada vez mais exasperado, tentando agarrar
Laranja, que queria desaparecer na paisagem, e pescava
Millamant pingando da tina de água. Em seguida, Garra era
atraído para fora do galpão com uma posta de peixe, o Sr.
Williams era seduzido com uma fatia de melão — por alguma
razão, essa era a comida predileta dele — e o resto de nós
éramos empurrados para dentro com súplicas insistentes.
"Entra ou eu te chuto, gato! Minha paciência acabou! E não
adianta, a portinhola já está trancada, entenderam? Até pra
você, Manchinha!" Essa última observação era feita apesar de
eu estar apenas olhando. Levava quase uma hora para nós
cinco nos recolhermos, de mau humor, na cama de Henry —
ou embaixo dela, no caso de Millamant
— e o Sr. Williams finalmente ser empurrado para o chalé da
tia-avó Harriet. Na verdade, o Sr. Williams escapulia pela
janela do banheiro assim que Henry entrava em casa. Ele tem
claustrofobia, sabe?
Nessa época, quando não estava no Instituto Científico ou em
conferência com os fazendeiros, Henry construía o
Galinheiro Móvel. O Sr. Williams e eu o achávamos
fascinante. Era um triângulo de madeira muito, muito
comprido, com dois lados inclinados e as extremidades e a
base retos. Em um dos lados inclinados havia três portas
corrediças para as galinhas entrarem e, lá dentro, caixas
cheias de palha para elas se empoleirarem. Assim que as
galinhas entrassem para passar a noite — Henry explicou —,
as portas corrediças seriam fechadas para mantê-las em
segurança.
— Mas tem outra coisa, mais engenhosa ainda — disse
Henry.
— Se ficasse parado num lugar só, ele mataria toda a grama.
— As ervas daninhas — disse o Sr. Williams. — Neste
quintal só tem ervas daninhas.
— Ervas daninhas, então — concordou Henry. — Não quero
que elas morram, seja lá o que forem.
— Melhores moitas de urtiga do país — observou o Sr.
Williams. — Cardos e camomila, também.
— Há usos medicinais e mágicos para os três — afirmou
Henry. — Pare de miar para mim, Sr. Williams. Isso enche o
saco. Bom, este galinheiro foi projetado para levitar e ser
transportado por magia. Observem.
O Sr. Williams teve de se afastar quando Henry fez uma
demonstração da magia. Ele disse que aquilo fazia as raízes de
seu pelo doer. Mas eu fiquei e assisti. Percebi que
compreendia a mágica — mas já expliquei que sou especial.
Infelizmente, as galinhas partilhavam dos sentimentos do Sr.
Williams sobre magia. Nenhuma delas chegava perto do
galinheiro. Acabavam sendo perseguidas todas as noites até
entrarem na cocheira e continuavam perturbando a tia-avó
Harriet.
Depois disso, passei a usar o galinheiro como brinquedo.
Descobri que, ao me esparramar no telhado triangular,
conseguia ativar a magia e fazer o galinheiro flutuar na
direção que eu quisesse. Para minha surpresa, Madame
Dalrymple foi a única gata que achou a brincadeira divertida.
Assim que me via no galinheiro, ela pulava atrás de mim e,
nem um pouco preocupada com o fato de que a magia
levantava seu pelo e a deixava parecida com uma bola de neve
felpuda, partia em viagens tranquilas de um lado para o outro
da fazenda. Henry ficava na porta da cozinha e ria de nós sem
parar, toda vez que fazia um intervalo nas suas mágicas para
capturar a Besta de Ettmoor.
Ele tinha projetado círculos com grandes geradores de magia
negra que foram colocados no pântano de modo a cercar as
áreas onde a Besta andava ativa. Todo dia, seus amigos
fazendeiros moviam os geradores alguns centímetros numa
direção muito bem planejada, para que uma hora a Besta
ficasse presa em um dos círculos estreitos. Então eles
apareceriam, armados.
Henry tinha um mapa aberto sobre a mesa de jantar, com
pequenos modelos dos geradores nele.
— Eles sabem que você está usando magia? — perguntei,
sentada na beirada da mesa para dar uma olhada.
— Não, eu os chamo de geradores de estática de campo —
explicou Henry. — Eles não acreditariam que estão pagando
por uma coisa que funciona, se eu dissesse que era mágica.
Tive de pedir que arcassem com os custos do material,
entende? Eu fiz essas coisas lá no Instituto.
Os pequenos modelos de geradores pareciam tão atraentes
que não resisti a colocar a pata no mais próximo. Balançava
lindamente. Para minha total indignação, Henry me
empurrou na hora para fora da mesa. Sentei-me aos pés dele e
lhe lancei meu Olhar Ultrajado.
— Não — repreendeu Henry. — Nada de tocar, nem mesmo
você, princesa. Este mapa faz parte da magia. Acho que a
porta da sala de jantar vai ficar fechada de agora em diante.
— Você não confia em mim? — indaguei.
— Num lugar onde há coisinhas balançantes, não —
respondeu Henry. — Vá embora agora, você é uma gata
boazinha.
Segui para o quintal, tão furiosa que meu rabo foi chicoteando
os cardos e as moitas de outras ervas até chegar ao galinheiro.
Henry não confiava em mim! Não dava para acreditar! Pulei
no galinheiro e levei-o para dar uma volta enorme, até que
ele apontou para o portão, que ficava sempre aberto na
fazenda de Henry. Eu estava quase chegando à estrada
quando Madame Dalrymple saltou elegantemente em meio às
ervas e pulou atrás de mim.
— Aonde nós vamos? — ela perguntou, instalando-se com a
maior classe.
— Embora — respondi. Não queria a companhia dela. Estava
com raiva. Mas eu tinha de ir a algum lugar, agora que estava
na estrada, então virei à direita, subindo a colina em direção
às trilhas. O galinheiro não gostou da escalada. Ele girou e
bateu e se arrastou. Por fim, lutei para fazê-lo chegar à trilha
plana mais próxima, que por acaso era a que Henry tinha
tomado quase um ano antes, quando me encontrara. O
galinheiro seguiu melhor ali. Estávamos bem até o momento
em que uma chuva fina com névoa começou a cair.
Madame Dalrymple se mexeu e estremeceu.
— Onde a gente está indo de verdade? — perguntou. — E
longe? — Ela estava esquisita, com todos os pelos em pé e
uma gotinha de chuva em cada um deles. Parecia uma bola
prateada, feito os enfeites que a tia-avó Harriet tinha
pendurado numa árvore, no Natal.
— Vou dar uma olhada no bueiro onde o Henry me achou —
eu disse. Pensei: "Já que estou aqui"...
— O lugar onde você nasceu — disse Madame Dalrymple,
plácidamente. — Certo. Ele conta essa história o tempo
inteiro, é claro. Até eu já estou começando a entender o
Henry quando ele fala nisso. Mas eu queria entender a fala
humana como você. Eu pediria um laço de cetim azul. Será
que você poderia conseguir um pra mim?
— Não — retruquei. Eu estava com problemas. Uma
peculiaridade da magia do galinheiro, que não havia se
revelado quando apenas passeávamos pelo quintal, era que, se
você seguisse em linha reta, ele ficava cada vez mais rápido. Ia
dobrando a velocidade. A chuva entrava nos meus olhos
como agulhas e chicoteava meu bigode. Pedras e grama suja
passavam correndo embaixo de nós.
— Que divertido — disse Madame Dalrymple, cheia de
magia.
Eu não achava. Podia ver e ouvir a enxurrada trovejando sob
a estrada. Fomos sibilando até o bueiro, e depois a estrada
fazia uma curva fechada. Sabia que íamos seguir até a lateral
da colina. Eu não conseguiria frear a tempo.
— Fique pronta para pular! — eu avisei Madame Dalrymple,
ofegante.
— Por quê? — ela perguntou.
— Porque... — comecei a explicar. E então chegamos ao
bueiro.
— Devagar, devagar — disse uma enorme mulher negra no
meio do caminho. As palmas pálidas de suas mãos bateram
contra a frente triangular do galinheiro e ele foi ao chão com
um estrondo. — Aonde vão com tanta pressa? — ela quis
saber.
— Eu... é... quis dar uma olhada no lugar onde nasci —
expliquei.
— Você não nasceu aqui, meu amor. Foi um pouco mais lá
para cima — ela afirmou. — Aqui você foi arrastada pela
água.
— Santo Deus! — disse Madame Dalrymple, debruçando-se
para ver a água corrente. — Você poderia ter se afogado!
— É verdade, mas não se preocupem com isso agora — disse
a mulher. — Há três coisas que eu vou dizer e vocês têm de
decorar e lembrar. Repitam comigo, queridas, e não se
esqueçam. A primeira é: "Quanto mais alto, menor a
quantidade". Entenderam?
— "Quanto mais alto, menor a quantidade" — repeti, fitando
a mulher. Seu rosto era negro e molhado como o meu
focinho. Nunca tinha visto uma humana como ela.
— E você? — a mulher disse para Madame Dalrymple, mas
ela ficou só olhando. Madame Dalrymple não tem memória
alguma. A mulher deu de ombros e voltou o olhar para mim.
— Vamos lá: "Arenques de chocolate são impuros". Com essa,
são duas.
— "Arenques de chocolate são impuros" — eu disse, ainda
encarando-a. O cheiro dela era igual ao das magias do
galinheiro, porém mais forte e apimentado. Começava a me
perguntar se ela era mesmo humana.
— Muito bom, ótimo — ela elogiou. — Agora, a última: "A
Besta de Ettmoor".
— "A Besta de Ettmoor" — respondi, obediente. A mulher
tinha um turbante na cabeça, preso em um bico preto de cada
lado da cabeça. Eles me lembravam minhas próprias orelhas.
— Se não se importa que eu pergunte, quem é você?
— Meu nome é Bastet, Manchinha — ela respondeu. — E
minha ocupação são os gatos. Decorou os três ditados? Você
vai precisar muito deles em breve.
— Sim — afirmei.
— Ótimo — disse Bastet. — Então vá até o outro canto dessa
coisa que você está dirigindo e volte para casa. Vou mandar
um amigo para você logo, logo. Aí serão sete. E um bom
número.
Pulei e contornei a lama e as pedras da estrada até o outro
lado do galinheiro. Quando cheguei lá, Bastet já tinha
sumido. Não fiquei surpresa. Acho que ela era bastante
mágica, mesmo. Saltei, entristecida, para o alto do galinheiro,
vendo o caminho que tínhamos feito; e estava prestes a
colocá-lo para andar de novo quando meu focinho detectou
outro vestígio daquele aroma de magia apimentado. Olhei
morro acima e vi uma coisa quase toda branca lutando para
descer em meio à urze. Ela soltou um miado suplicante.
— Tudo bem! — bradei. — Estou esperando.
Uma gata grande, com quase o dobro do meu tamanho, veio
se arrastando e escorregando nas pedras molhadas até a
estrada. Ela estava tão encharcada e abatida que jamais
pensaria em temê-la.
— Oh, céus — disse ela. — Desculpe incomodar, mas será
que você poderia me arrumar um lugar para ficar? Não tenho
para onde ir.
— Você pode vir pra nossa casa — afirmei. — Eu falo com o
Henry. Suba.
A enorme gata levantou a cara e fitou a mim e a Madame
Dalrymple, que a encarava com o olhar vago. Depois olhou
para o galinheiro.
— Tem como eu ir aí dentro? — ela perguntou, desconfiada.
— Bom, há três portas — respondi —, mas não sei como
abridas.
— Assim, eu acho — disse a gata grande, e, sei lá como, ela
conseguiu empurrar a comporta do meio para o lado e
engatinhar para dentro do galinheiro. — Muita palha gostosa
— comentou. — Obrigada.
— Por nada — respondi. Algo naquela gata enorme, molhada
e educada me fez gostar dela.
— Ela tem sinais iguais aos seus! Todas aquelas manchas!
— exclamou Madame Dalrymple, espichando o pescoço para
examinar pela portinha.
Também estiquei o pescoço para olhar. Lá dentro vi manchas
cinza, malhadas, vermelhas e rosa, borrões pretos e pontos de
marrom-areia e creme. Mas, para meu alívio, já que essa gata
era tão maior que eu, ela parecia mais branca do que de
qualquer outra cor. Gosto de pensar que sou única.
— O efeito é bem diferente — afirmei, arrogante.
— Nem tanto — disse Madame Dalrymple. — Vamos ter que
chamada de Mancha.
Fiz uma cara ofendida de "Sem comentários" e dei partida no
galinheiro.
A volta foi bem difícil. Quanto mais andávamos, mais de-
pressa o galinheiro se movia. Quando chegamos à estrada da
fazenda, estávamos correndo na mesma velocidade que um
carro. Fiz esforços frenéticos para desacelerarmos. E, é claro,
Madame Dalrymple, com seu habitual jeito maluco, escolheu
o instante em que eu estava tentando mirar o portão da
fazenda para perguntar:
— Por que aquela mulher disse para decorarmos coisas sem
sentido?
— Não sei — ralhei, enquanto nos movíamos aos trancos
pela fazenda. O Sr. Williams, que estava sentado no meio do
caminho, saltou quase dois metros no ar e conseguiu não ser
atingido. Laranja e Garra voaram para fora das moitas de
urtigas de ambos os lados. O galinheiro acelerou até colidir
com a tina de água e então paramos. Millamant pôs a cabeça e
os ombros para fora da água, envesgando os olhos em
reprovação.
— Cadê o Henry? — perguntei.
— Está na sala, mas você não vai querer entrar lá — retrucou
Mill.
— É claro que vou querer. As poltronas lá são ótimas —
respondi.
Enquanto eu ia saltitando em direção à portinhola, Mill
vaticinou:
— Eu avisei!
Mas nem liguei. Corri pela cozinha e passei pela sala de jantar
— cuja porta agora ficava fechada por causa do mapa — e
saltitei até a sala de estar. Ali, freei, como se tivesse trombado
com a tina de água outra vez.
Henry estava em pé, segurando as duas mãos de uma mulher
humana. Ele tinha o olhar luminoso e encantado e fitava o
rosto da humana com a mesma expressão que, em geral,
guardava só para mim. Suponho que ela fosse uma humana
bonita, de forma magra e sombria, mas ainda assim... eu miei.
Bem alto.
Henry deu um pulo.
— Ah, olha só, Fara — disse ele. — Essa é a Turandot!
— Para minha surpresa total, ele veio em minha direção e
me pegou. Ele nunca tinha feito isso sem minha permissão.
Contorci-rrte e lancei meu melhor Olhar Ultrajado, mas ele
nao tomou conhecimento e me estendeu na direção daquela
mulher.
— Aqui — disse ele. — Ela não é linda?
A mulher apertou os olhos. Deu de ombros.
— Henry, ela é horrorosa! Com todas essas manchas, parece
mais é que está com sarna! — Ela recuou. — Não a quero
perto de mim. Não gosto de gatos.
Henry disse com alegria:
— Tudo bem. — E me derrubou. Ele me derrubou! Sem mais
nem menos.
Saí, atravessei a portinhola e fui para o galinheiro, onde
Mancha espreitava, nervosa, pela portinha.
— Vou ter que te apresentar ao Henry mais tarde, eu acho —
avisei. — Você está com fome?
— Muita — ela respondeu.
— Você conheceu a tal criatura chamada Fara, então? —
Millamant indagou, aparecendo de novo na beirada da tina.
— Tentei te avisar. Acho que ela vai ficar aqui.
— Não se eu puder evitar! — eu disse, levando Mancha para
a cozinha.
Ao chegarmos lá, a tia-avó Harriet estava sentada na melhor
poltrona com o Sr. Williams no colo.
— Ah, vejo que agora temos uma Mancha — ela soltou,
observando a gata tentando humildemente passar pela
portinhola. — Melhor que a outra coisa que chegou hoje.
Devo dizer que o Henry tem talento para escolher mulheres
terríveis! Manchinha, tente fazê-lo raciocinar. Nunca
antipatizei tanto com alguém quanto com essa tal de Fara.
Pulei no aparador galês e notei que metade do meu café da
manhã ainda estava lá.
— Mancha, se você quiser, pode subir aqui — comecei.
Porém a tia-avó Harriet jogou o Sr. Williams no chão e
levantou-se num salto, dizendo:
— Não, Turandot, não faça a pobre coitada tentar subir até aí,
pelo amor de Deus. Não no estado em que ela está! — E
correu de um lado para o outro à procura de um pires. Ela deu
a Mancha quase uma lata inteira de nacos de carne, uma
pirâmide de ração seca e uma tigela de sopa cheia de leite.
Mancha comeu tudo. Ela estava morrendo de fome.
— Essa tal de Fara vai mesmo ficar? — indaguei.
A tia-avó Harriet nunca me escuta, mas o Sr. Williams
respondeu com tristeza:
— Tememos o pior. Ele emprestou um pijama pra ela.
O Sr. Williams estava certo. Mas foi pior do que imaginamos.
Esperávamos que Fara fosse ficar em um dos quartos vagos,
mas quando seguimos Henry até o andar de cima, para irmos
para a cama, descobrimos que ele e Fara estavam dividindo o
quarto de Henry. Fara se virou e olhou para nós.
— Por que eles estão aqui?
— A Manchinha sempre dorme na minha cabeça — explicou
Henry. — Laranja, Garra e Madame Dalrymple geralmente se
acomodam na coberta. E Millamant se enrola no penico, sabe.
— Bem, eles não vão mais fazer isso — afirmou Fara. —
Livre--se deles.
Henry disse, daquela forma animada e serviçal:
— Tudo bem. — E, para nossa extrema angústia, fomos
empurrados por Henry por meio de magia, para fora e para o
andar de baixo, e depois mais para fora, até que chegamos ao
pátio da fazenda. Era como se ele tivesse se esquecido de que
corríamos perigo lá, com a Besta à solta. E era uma noite fria
também. Garra e Laranja se aconchegaram para se aquecer e
Madame Dalrymple sentou-se tão próxima a Mill quanto esta
seria capaz de permitir. Eu me encolhi sozinha no meio do
quintal. Nunca me senti tão confusa e infeliz quanto naquele
dia. Porque, veja só, eu tinha visto o Henry olhar Fara da
mesma maneira que costumava me olhar. Vira Fara lhe
retribuir o olhar, c o dela não parava de dizer: "Henry, você é
meu!" Igual ao que eu faço. Fiquei pensando se eu seria um
felino terrível, assim como Fara era uma humana terrível.
Depois de um tempo, algo grande, quente e esbranquiçado se
aproximou e se instalou ao meu lado, nos arbustos de ervas.
— O que é que está errado, Manchinha? — perguntou
Mancha.
— É a humana nova do Henry! — expliquei. — Ela não deixa
a gente entrar no quarto dele. E ela tem o cheiro errado, e não
gosta nem da Madame Dalrymple. Quero dizer, a maioria dos
visitantes normais que não são chegados em gatos sempre
admiram a Madame Dalrymple! Os fazendeiros dizem que ela
é linda. Mas Fara a chamou de monstruosidade peluda.
— Duvido que a Madame Dalrymple tenha entendido —
Mancha comentou.
— Não, ela tentou subir nos joelhos da Fara duas vezes — eu
disse. — Mas não é essa a questão! O Henry está sendo tão
obediente a ela! Ele não escuta mais as óperas dele porque Fara
disse que não gosta de ópera, e ele nos pôs para fora! Como
fazemos a Fara ir embora, Mancha?
— Não sei bem — respondeu Mancha. Ela ficou matutando e
sentou-se bem ao meu lado.
Foi quando eu notei que seus flancos, no lugar em que
estavam encostados em mim, meio que se contorciam e
pulavam.
— Você está bem? — perguntei. — Aquele tanto de comida
lhe fez mal?
— Não, não. Vou ter filhotes de novo. Acho que em breve.
Sabe, se você conseguir pensar no que fazer, e se todas as
portas forem como a da cozinha, acho que posso mostrar como
abrir a porta do quarto do Henry.
— Ah, por favor, faça isso! — exclamei. — Sinto falta do
cheiro da cabeça dele!
Enquanto conversávamos, eu ouvia muito barulho vindo do
chalé da tia-avó Harriet. Parecia que o Sr. Williams estava
cantando, ou coisa parecida. A barulhada de repente chegou
ao ápice quando a tia-avó Harriet abriu a porta com violência
e disse:
— Ah, tudo bem, tudo bem! Vá lá fora, então! Mas não tem
nada errado com a sua caixa de areia e... Ah! — ela exclamou,
quando a luz caiu sobre nós seis, nos nossos montinhos. —
Então aquela criatura expulsou vocês? Claro que sim, é típico
dela. Nem se importaria se a Besta comesse vocês todos. E
melhor entrarem, aqui estarão seguros.
Todos nós, até Millamant, nos levantamos rápido e nos ins-
talamos educadamente no chalé; o Sr. Williams estava
sentado em cima da mesa, com uma expressão suave e
presunçosa. Arrumamo-nos no tapete em frente à lareira.
— Hmm — soltou a tia-avó Harriet e pegou sua caneca de
chocolate. Ela foi para a cama pisando duro, murmurando. —
Melhor colocar a cabeça pra funcionar e dar um jeito de me
livrar daquela mulher, senão ela acaba mandando o Henry ir
ao veterinário com os gatos todos, pra mandar sacrificá-los.
Mas é bom que ela nem toque no meu Sr. Williams.
Isso me fez passar a noite inteira pensando em formas de nos
livrarmos de Fara.
Claro que a primeira coisa a fazer seria entrar na casa. Na
manhã seguinte, a portinhola estava trancada e todas as
janelas fechadas, mas podíamos ouvir e cheirar Fara e Henry
na cozinha, tomando café da manhã. Reunimo-nos em volta
da porta e uivamos. Laranja e Millamant têm vozes
especialmente estridentes, então fizemos um barulhão.
Normalmente, Henry teria ido até a porta como um raio, mas
naquele dia ele nem reparou em nós. Era como se Fara tivesse
jogado um feitiço nele.
Depois de vinte minutos de escândalo ininterrupto, a tia-avó
Harriet irrompeu para fora do chalé e abriu a porta da
cozinha dando pancadas com a bengala. Entramos atrás dela e
ficamos ao lado de nossas tigelas vazias.
— Você não vai alimentar seus gatos, Henry? — ordenou a
tia-avó Harriet.
Fara ergueu os olhos da torrada que estava comendo.
— Os gatos são maquininhas de caçar — ela disse. — Podem
viver só comendo os ratos do celeiro.
— Com todo o respeito, Srta. Spinks — a tia-avó Harriet
disse —, não só o Garra já comeu todos os ratos das
redondezas, mas desconfio de que a Madame Dalrymple não
saberia o que fazer com um rato se ele lhe fosse enfiado goela
abaixo. — Ela pegou a comida e nos alimentou, enquanto
Henry sorria, sonhador, para Fara e não dizia absolutamente
nada.
Depois do café, eles nos afugentaram de novo e trancaram a
casa, e Henry levou Fara de carro para fazer compras na
cidade. Aparentemente, Fara tinha chegado sem nenhuma
roupa além do frágil vestido preto que estava usando.
— Isso é estranho — disse a tia-avó Harriet, quando o Sr.
Williams a alcançou. Ela pensou um pouco. — Vou pegar um
pouco de lentilha emprestado — comentou e entrou na casa
usando sua chave. Em seguida, foi à sala de estar e deixou a
janela entreaberta. — Pronto — disse, saindo da casa com um
copo de lentilha. — Entrem e caprichem na baderna.
Com esforço, Laranja conseguiu abrir a janela toda e nos
revezamos para fazer xixi nos tapetes. Porém a porta do
quarto estava muito bem fechada.
— Não se preocupe — declarou Mancha. Ela nos reuniu em
volta dela no patamar da escada e mostrou como, ficando em
pé nas patas traseiras e pisando na maçaneta, nosso peso em-
purrava a porta e ela se abria. Em pouco tempo, todos nós
conseguimos fazê-lo, exceto Madame Dalrymple, embora eu
tivesse de pular para alcançar a maçaneta. Em seguida, Garra
entrou e fez coisas de gato macho, até que o quarto ficou com
um cheiro fortíssimo. Millamant foi para o banheiro,
encharcou-se, e depois foi se deitar nos travesseiros. Achei
que isso já dava um jeito no quarto, então levei os outros para
a cozinha, onde derramamos açúcar, pisamos na manteiga e
derrubamos xícaras para se espatifar no piso. Depois, Mancha
e Laranja empurraram a lata de lixo, enquanto eu fui andar
atrás de todos os pratos do aparador galês, até que a maioria
deles caísse e um ou dois quebrassem. Madame Dalrymple se
divertiu muito rolando em cima dos sucrilhos.
Em seguida, saímos da casa e nos escondemos. O carro do
Henry voltou e ele e Fara entraram em casa com sacolas e
mais sacolas. Dava para ouvir a voz de Fara lá dentro,
gritando palavrões, mas tudo que aconteceu foi ela sair
sorrindo com o ar sombrio e colocar nossas tigelas do lado de
fora, em fila, enquanto Henry abria as janelas e punha os
carpetes e travesseiros ali, para arejar.
— O primeiro round empatou, eu acho — a tia-avó Harriet
disse ao nos deixar entrar no chalé naquela noite. — Eles se
mudaram para o outro quarto e ela pendurou todas as roupas
novas lá. Comprou coisas suficientes para um ano, e uma
montanha de sapatos. Imagino que o Henry tenha pagado, o
pobre!
— O que a gente pode fazer com as roupas? — perguntei. De
súbito, Madame Dalrymple ficou alerta.
— Sei tudo sobre roupas — afirmou. — Eu mostro o que
podemos fazer.
No dia seguinte, Henry saiu para trabalhar no Instituto
Científico.
— Tenho de ir lá de vez em quando — ele declarou quando
tentei entrar no carro com ele. — Senão, eles vão começar a
pensar por que estão me pagando. Pra fora, Manchinha. —
Ele deu partida no carro, deixando Fara dentro de casa, com
todas as janelas e portas fechadas.
A tia-avó Harriet foi até lá e bateu na porta da cozinha. Como
Fara não abriu, ela foi bater na janela da sala de estar.
— Ah, Srta. Spinks, me faça uma gentileza! Infelizmente
meu açúcar acabou.
Um tempinho depois, Fara abriu a porta da cozinha para ela,
de má vontade. Eu estava preparada. Fiz um dos meus
melhores desaparecimentos: passei por Fara e atravessei a
cozinha antes mesmo que ela terminasse de abrir a porta.
Enquanto isso a tia-avó Harriet dizia:
— Ah, não precisa se incomodar em pegar. Dá para
enganchar a lata com a minha bengala e alcançá-la assim...
Ah, quanta gentileza!
Voei até a sala de jantar e abri a porta do modo como Mancha
havia nos ensinado. Passei pela mesa onde ficava o mapa
mágico, com muito cuidado para não perturbá-lo — apesar de
que, pelo cheiro de pó que exalava, suspeitei de que Fara
tivesse feito Henry esquecer-se completamente do mapa — e
pulei para o umbral da janela. Ela se abre de supetão quando a
gente se apóia nela com força, e foi isso que eu fiz. Todo
mundo pulou silenciosamente para dentro da casa, exceto
Mancha. Ela estava indisposta naquele dia e ficou
descansando no galinheiro.
Fomos todos nos arrastando até o outro quarto. E ali estavam
todas as roupas, penduradas em fileiras, com um monte de
sapatos embaixo. O Sr. Williams olhou para eles com enorme
interesse.
— A gente vai rasgá-los? — ele perguntou à Madame
Dalrymple. — Estou muito a fim de meter as garras em alguns
destes.
— Ela vai ficar muito mais incomodada se nós só estragarmos
as coisas de uma forma que ela quase possa usá-las — explicou
Madame Dalrymple. — Você suja a parte da frente, como se
tivesse caído comida...
Millamant disse:
— Sei de um lago cheio de limo verde! — E saiu correndo.
— E vocês enchem todas as coisas pretas de pelos — explicou
Madame Dalrymple. — Você não, Sr. Williams. Ponha pelos
nas coisas brancas. E tem também as roupas de tricô: é só
morder um fio e puxar, para fazer buracos, e dos vestidos é só
morder o fio da barra e puxar pela metade. Mordam os botões
também, pra eles ficarem meio arrancados...
Ela tinha idéias variadas, tantas que comecei a suspeitar de
que Madame Dalrymple fora largada naquele chiqueiro pelo
humano ultrajado de quem ela tinha sido dona. E tudo que ela
sugeria, nós fazíamos. Millamant voltou pingando limo e
lambuzou a parte da frente das roupas com todo o carinho, o
Sr. Williams arrastou uma pilha de coisas brancas para o chão
e se enroscou nelas e, enquanto o resto de nós mordia e
puxava linhas, Laranja ia, metodicamente, fazendo estragos
em todos os sapatos. Foi divertido. Quando todos os objetos já
tinham recebido um belo trato, fomos embora — embora
Millamant tenha feito uma pausa para se esfregar nos
travesseiros, a fim de tirar o resto de limo — e passamos o
resto do dia persuadindo a tia-avó Harriet a nos dar
guloseimas.
Foi uma beleza ouvir Fara guinchando quando Henry chegou
em casa.
— Talvez não tenha sido exatamente uma ideia tão boa —
disse a tia-avó Harriet, depois de ter ido lá na manhã seguinte
para pegar chá emprestado. — Ela está dizendo ao Henry para
enfiar vocês no cesto de roupa suja e levar todos ao
veterinário. Ele ainda não concordou em fazer isso, mas vai
acabar concordando.
— Vamos embarcar no galinheiro e ir embora! — disse Ma-
dame Dalrymple, trêmula.
Eu não sabia o que fazer. Estava deprimida. Passei o dia
inteiro encolhida, triste, ao lado da tina de água, esperando e
esperando que Henry saísse de casa e fosse me confortar, mas
ele não o fez, até que o Sr. Williams atravessou o quintal
voando, miando de alegria. Nunca existiu um gato que miasse
como o Sr. Williams.
— Venham ver! Venham olhar! — ele miou. — Entrem
todos pela janela da sala de jantar e vejam!
Mill se lançou para fora da tina de água, Madame Dalrymple
se materializou na enfardadeira, Laranja e Garra se
arrancaram da cocheira, e todos galopamos atrás do Sr.
Williams, morrendo de curiosidade. Ele nos guiou da sala de
jantar até o quarto vazio do andar de cima. Havia um cheiro
novo e estranho ali. Não vinha dos sapatos, que tinham sido
empacotados em uma sacola de plástico no meio do corredor,
nem das roupas, jogadas em cima da sacola. Vinha da cama,
de dentro do quarto. Erguemo-nos nas pernas traseiras para
olhar.
Mancha estava deitada no meio da coberta, aparentando
cansaço, cercada por uma grande bagunça cheia de corpinhos
que se contorciam. Seis, eles eram seis...
— Filhotes? — perguntei. — Ai, Mancha, por que você veio
ter eles logo aqui?
— Não planejei isso — ela explicou, fracamente. — Mas
estava tão confortável. E não deu tempo.
— A gente vai ter de montar guarda pra você — eu disse. —
Se a Fara vir isso...
— Eu sei. Vou levar todos pra outro lugar assim que eu me
sentir mais forte — afirmou Mancha. — Mas agora não, por
favor.
Ela adormeceu. Obviamente, ter filhotes era uma coisa
cansativa. Nós nos encolhemos onde estávamos, em volta da
cama, aguardando o que sabíamos que aconteceria. Como era
previsto, pouco antes da hora do jantar, quando os filhotes
começaram a se mexer e a fazer barulhos estridentes, a porta
se abriu e Fara entrou.
Ela parou. Olhou. E então gritou:
— Ah, essa é a gota d'água! Com tanto lugar, logo na minha
cama!
— A cama não é sua. Ela é do Henry — contestei.
Ela não me ouviu. Lançou-se com as duas mãos estendidas.
— Estes vão pra tina de água — disse. — Eu mesma vou
afogá-los.
Todos agimos ao mesmo tempo. Brotamos das bordas da cama
e ficamos de pé, rosnando e cuspindo, deixando a cama cheia
de rabos chicoteantes, costas arqueadas e olhares furiosos.
Mancha ficou de pé no centro, com o dobro de seu tamanho
normal, rosnando mais alto que todos nós.
— Saiam do meu caminho! — Fara gritou e agarrou os filhotes.
Com isso, o Sr. Williams, que estava mais perto — o bondoso
e pacato Sr. Williams —, pôs uma pata cheia de garras em
cada um dos braços dela e a arranhou. Deixou duas fileiras de
sangue escuro e gotejante. Ela gritou ainda mais alto e bateu
no Sr. Williams de tal modo que ele voou pelo quarto e
trombou com a cômoda.
— Que diabos está acontecendo? — perguntou Henry, na
porta.
Fara virou-se para ele e continuou berrando. Estava com tanta
raiva que parecia ter esquecido como falar.
— Meio da cama! — ela bramiu. — Tina de água. Afogar!
Ratinhos horrorosos! Afogar, afogar afogar!
Henry a rodeou e olhou para a cama.
— Gatinhos — ele murmurou.
— No meio da minha cama! — gritou Fara.
— Há outras camas — disse Henry. — Recomponha-se, Fara.
Posso? — ele perguntou para Mancha. Muito nervosa, ela
afastou-se para o lado e deixou-o examinar os filhotes. — Seis
— Henry contou. — Um de cada cor: preto, cinza, branco,
vermelho, esse aqui é cor de tartaruga, e tem um malhado.
Ah, parabéns, Mancha!
— Henry — Fara lhe disse, a voz áspera e lamuriosa. —
Estou mandando você se livrar desses gatos e afogar os
filhotes. Todos eles. Agora.
— Não diga bobagens — Henry retrucou. Com delicadeza,
colocou os filhotinhos de novo ao lado de Mancha. — Três
meninos e três meninas, pelo que vejo.
— Eu estou falando sério! — Fara gritou. — Henry, se você
não se livrar de todos esses gatos neste minuto, eu vou embora!
Todos lançamos um olhar intenso para Henry, exceto o Sr.
Williams, que estava lambendo as feridas ao lado da cômoda.
Henry olhou para ele.
— O gato preto — explicou ele — é da tia-avó Harriet.
— Mas ele me arranhou! — exclamou Fara. — São todos
criaturas horrendas. Então, como vai ser? Você vai se livrar
deles ou eu vou embora?
Henry olhou cada um de nossos pares de olhos, que o encara-
vam com urgência, e depois para Fara. Parecia meio
desnorteado, do jeito que fica ao acordar de manhã.
— Não há dúvida — ele disse para Fara. — Se é o que você
quer, é melhor ir embora.
O peito de Fara se inchou de emoção. Estava furiosa.
— Muito bem — disse. — Você vai se arrepender disso. — E
foi embora. Deu meia-volta e saiu do quarto fazendo barulho.
Ouvi seus pés trotando escada abaixo. Ouvi a porta da cozinha
bater atrás dela. Mas só relaxei quando ouvi seus pés
farfalhando no quintal da fazenda e depois sapateando na
estrada. Então fiquei tão aliviada que disparei a ronronar. Não
pude evitar.
Henry suspirou e disse, com tristeza:
— Bom... Ela reclamava muito. E detesta ópera.
Tivemos uma noite perfeita, pacífica. Henry convidou a tia-
avó Harriet para jantar e tocou duas óperas para ela ouvir.
Uma delas foi Turandot, é claro. Mas, embora eu tenha me
sentado em seus joelhos para consolá-lo, podia ver que ele
estava triste.
Na manhã seguinte, todos os fazendeiros apareceram
novamente, sérios e carrancudos. Durante a noite, a Besta de
Ettmoor tinha atacado a fazenda ao lado da de Henry e
matado seis ovelhas, um cão pastor e o gato. Estavam muito
preocupados porque, segundo o planejamento, àquela altura a
Besta já deveria ter sido atraída ao vale dentro do último
círculo dos geradores mágicos.
Henry ficou preocupado também. Sentei-me no consolo da
lareira da sala de jantar e o vi mostrar o mapa aos fazendeiros,
coçando a cabeça ao examiná-lo.
— Acho — ele disse, por fim — que o que pode ter
acontecido é que... humm... um dos geradores de estática de
campo cruciais deve ter se movido um pouquinho, mas o
suficiente para deixar a Besta escapar da nossa armadilha. Este
aqui, acredito — ele apontou para o marcador balançante com
o qual eu havia tentado brincar.
Meu coração bateu forte, debaixo do pelo, com culpa e terror.
Henry nem olhou para mim. Quando os fazendeiros lhe
disseram que dali em diante patrulhariam a área armados, ele
disse:
— Sim, parece ser a única coisa a fazer. E eu vou reforçar o
círculo exterior de geradores para impedir que a Besta escape
para as colinas de novo. Sinto muitíssimo. Vou cuidar disso
agora mesmo.
Ele pegou o carro e passou o dia inteiro fora. Chegou em casa
exausto, mas em vez de descansar ouvindo outra ópera, foi
para a sala de jantar e ficou trabalhando no mapa a noite toda.
Senti tanta culpa que fiquei fora do caminho dele. Eu havia
atrapalhado suas magias e, para completar, tinha afugentado
sua mulher. Para me castigar, não dormi na cabeça do Henry
naquela noite. Enrosquei-me ao lado da lareira da cozinha,
muito infeliz.
— Não há porque você assumir a culpa — disse Millamant,
do balde de carvão. — A horrorosa da Fara tem culpa
também. Ela o fez se esquecer da magia.
— Não é essa a questão! — contestei.
Laranja e Garra sentaram-se, inquietos, na melhor poltrona.
Todos queriam me fazer companhia, naquela minha tristeza.
— Por falar na Besta — começou Laranja. — Vocês sabiam
que a Mancha levou os filhotinhos para o galinheiro? Será que
lá eles estarão seguros?
— Ah, Deus! — exclamei, levantando-me de supetão. — Não
estão, não! E o Sr. Williams vai passar a noite toda fora!
Estava a caminho da portinhola, para ir argumentar com
Mancha, quando ouvimos o Sr. Williams berrar de pavor, ou
de dor, ou ambos, no quintal da fazenda. No segundo
seguinte, a portinhola se abriu com um estrondo. O Sr.
Williams passou por ela feito um raio, atravessou a cozinha e
se enfiou embaixo do aparador galês, que era tão rente ao
chão que nem eu conseguia mais entrar ali.
— Esconde, esconde, esconde! — ele berrou. — Está vindo!
Fiquei olhando, abestalhada, para o rastro de sangue que o Sr.
Williams tinha deixado desde a porta até o aparador galês.
— O que está vindo? — perguntou Garra.
— A Besta, a Besta! — o Sr. Williams falou rápido. — Não dá
pra sentir o cheiro dela até ela chegar pertol
De repente, todo mundo estava em outro lugar, Madame
Dalrymple soltando um uivo nada condizente com uma dama.
Fiz um desaparecimento como nunca tinha conseguido fazer
antes e fui parar no alto do aparador galês, quase no teto. Foi
bem a tempo. Algo estava entrando pela portinhola.
Meu pelo arrepiado bateu no teto. Um enorme rosto escuro
estava forçando a entrada, um rosto que tinha o dobro do
tamanho do de Henry e aumentava à medida que tentava
entrar. Por um instante, pensei que a coisa fosse ficar
entalada, mas foi só uma esperança vã. Observei a madeira da
portinhola, e depois a da porta, dilatando-se e alargando feito
borracha para deixar os ombros da Besta seguir a cabeça, e
percebi, desesperançada, que a Besta era uma criatura mágica.
Ela já estava quase dentro da casa. Uma canção de luta saiu da
minha garganta ao vê-la entrando. Não era o mesmo rosnado
que eu tinha feito para Fara, mas uma canção desafiadora,
altíssima, palpitante, uivante e lastimosa que se faz ao
encontrar um gato estranho. Em meio ao meu pavor, fiquei
bem surpresa com o barulho que fui capaz de fazer.
Os outros se juntaram a mim, Madame Dalrymple com a voz
estridente e Millamant com ecos intensos que ribombavam do
balde de carvão. Garra e Laranja gritavam e tremiam dos dois
lados da sala, e o Sr. Williams produzia falsetes
fantasmagóricos sob o aparador galês.
A Besta continuava a entrar. Ela arrastou as gigantescas ancas
pela porta e depois puxou seu longo rabo. A sala foi tomada
por seu cheiro, parecido com o de um gato macho e um rato
podre, e ela estava começando a se erguer sobre as patas
traseiras quando a porta do corredor se abriu de súbito e
Henry acendeu as luzes.
— O que... ? — ele começou.
Todos piscamos e olhamos com fascínio por um instante.
Acho que esse foi o pior momento de todos. Havia uma
espécie de rosto humano na frente da cabeça da Besta, com
enormes olhos de gato, e o rosto era emoldurado por cabelos
sujos e embaraçados. Tinha asas asquerosas que pendiam dos
ombros enormes. Seu corpo era coberto por tufos de pelo
envelhecido que aderiam à pele nua, suja, enrugada. Tudo
nela era velho, velho e decadente. As garras nas pontas de
seus enormes pés tinham carne podre e fragmentos de grama
presos e estavam rachadas de velhice.
Mas o pior de tudo foi que todos nós reconhecemos o rosto.
— Fara? — exclamou Henry. — Meu Deus, você é a Esfinge!
A Besta abriu a boca, cheia de caninos azuis de podridão, e
riu. "Ai, Henry!", pensei. "Perdão. Eu fiz essa coisa entrar
aqui. Nunca mais vou perturbado se você conseguir se livrar
dela!"
— Você vai propor um enigma — disse Henry, trêmulo. —
Não precisa. Você vai perguntar o que tem quatro pernas de
manhã, duas pernas durante o dia e três pernas à noite. E eu
sei a resposta. E o homem.
A Besta riu de novo.
— Errado. — Ela tinha a voz fria e desafinada. — Eu
costumava propor um enigma. Agora faço três perguntas. E
não vou perguntar a você. Vou perguntar para aquele
bichinho conspirador cheio de manchas que você tem, aquele
que está ali em cima da prateleira. E se ela não souber
responder, fico livre para partir todos vocês em pedacinhos.
Vou estripar os gatos na sua frente e fazer você engolir os
filhotinhos antes de cortar sua cabeça fora. Você está pronta
para responder, sua praga?
Fiquei tremendo nas bases. Agora eu sabia por que Bastet
tinha me feito decorar aqueles ditados sem sentido.
— Pode perguntar — eu disse e lambi meu ombro para fazer
meu pelo nervoso assentar.
A Besta perguntou:
— Por que é um rato quando gira?
— Ah, essa eu sei! — exclamou Henry, e ele e eu responde-
mos juntos: — Quanto mais alto, menor a quantidade. — Não
entendi como ele sabia a resposta. Ela fazia muito mais
sentido para um gato do que para um humano.
— E? — indaguei.
A Besta sorriu, enchendo o ar com um odor de carne
estragada.
— Quando são de cerâmica as begônias? — a coisa inquiriu.
— Isso não faz sentido nenhum pra mim — disse Henry.
Para mim, também não fazia. Nem a resposta.
— Arenques de chocolate são impuros — respondi. E imaginei
que as charadas, e suas respostas, eram resultado de um
cérebro antigo, cansado e fraco. Sob a luz elétrica, a Besta
parecia mais velha que qualquer outra criatura que eu já
tivesse visto. Seu rosto-de-Fara era cheio de papadas e rugas.
— E a terceira? — perguntei. Pensava que estava tudo ao
contrário. Eu sou Turandot, a princesa, e eu é que deveria
estar propondo os enigmas. Será que Henry tinha me contado
errado a história da ópera?
— A terceira — disse a Besta — é: quem mata como um leão
e vence como um humano?
— A Besta de Ettmoor! — berrei. — Agora eu posso partir
você em pedacinhos! — E eu estava tão exultante que saltei
direto do meu poleiro rente ao teto para o alto da cabeça da
Besta, onde comecei a arranhar e dilacerar a juba imunda com
minhas quatro patas. Quando me lembro disso, não entendo
como pude fazer algo tão idiota. Fiquei totalmente
emaranhada naquele cabelo comprido e nojento. E não
conseguia me soltar. Só pensava em afundar os dentes na
orelha fedorenta daquela coisa. A Besta guinchou e me
golpeou com suas garras.
A porta da frente se abriu com um estrondo, empurrada pela
bengala da tia-avó Harriet. Acho que ela estava se vestindo
desde que ouviu o Sr. Williams ganindo. Entrou enfurecida,
gritando:
— O que você fez com o meu Willzinho? — E golpeou a
Besta com a bengala. Pá, pá. Bofetada. Penas, sujeira e cabelos
voaram pelos ares.
Henry, que usava um roupão e tinha os pés descalços, girou
pela sala sem saber o que fazer. Então, pegou a cadeira mais
próxima — revelando Madame Dalrymple, que correu para
salvar a pele — e começou a bater com ela na Besta pelo lado
oposto. Deu para sentir que a Besta tentava se proteger
usando magia. Henry rebateu com mais magia, numa rajada
tão furiosa que a cadeira que ele segurava chamuscou e os
cabelos compridos que me encobriam se levantaram como
varas. Aquilo foi demais para a Besta. Ela se voltou e se jogou
porta afora.
Fui lançada para o lado quando a coisa saiu da casa. Voei e
bati em algo duro. Estava tão sem fôlego e assustada que
demorei para perceber que estava estirada sobre o galinheiro,
que a Mancha devia ter levado para perto da cozinha quando
foi colocar os filhotes lá. Naquele segundo, a Besta correu,
saltando nas trevas sobre as quatro patas, e Garra e Laranja se
esfalfaram atrás dela. Talvez tenham se inspirado no meu
exemplo. Por outro lado, eles jamais resistiriam a seguir
qualquer coisa que corresse. E, quase ao mesmo tempo, a tia-
avó Harriet irrompeu no quintal e se jogou em cima do
galinheiro.
— Atrás dela, atrás dela! Faça essa coisa se mexer,
Manchinha! — ela gritou, batendo na lateral de madeira com
a bengala.
Enquanto eu me recompunha, o Sr. Williams também saltou
no galinheiro e se agarrou ao colo da tia-avó Harriet. Ele
explicou depois que, embora a magia o tenha feito sentir
como se seus dentes estivessem caindo, ele precisava ir junto,
porque a tia-avó Harriet não estava agindo normalmente.
— E um gato tem de tomar conta de seus humanos —
declarou.
Dei partida no galinheiro e giramos em direção ao portão.
Aquela altura, Henry já vinha atrás de nós, arfando ao pisar
nas urtigas e berrando:
— Não! Pareml Aquela Besta é uma assassina! — Mas já
estávamos pegando velocidade e, de qualquer forma, eu
estava confusa demais para parar.
Uma melodia felina pulsou na noite. Quando nos arrastamos
até a estrada, vi Garra e Laranja encolhidos no caminho que
subia a colina, com a Besta pairando sobre eles, decidindo se
os matava e ia embora ou se desviava deles. Foi esperteza de
Garra e Laranja, e coragem também. Se a Besta tivesse fugido
para o alto da colina, poderia ter ficado à solta para sempre.
Mas ela nos viu chegando e se virou para o sopé do morro.
Disparou numa velocidade espantosa. Como já expliquei, o
galinheiro já havia chegado a uma velocidade espantosa
também. Avançamos e fomos nos aproximando aos poucos da
enorme figura escura que galopava à frente.
— Estamos ganhando! — tia-avó Harriet gritou, batendo no
galinheiro. — Mais rápido! Rápido!
Ainda estávamos a uns quarenta e cinco metros de distância
quando luzes fortes brilharam de ambos os lados da estrada,
alfinetando a Besta com sua intensidade. Ela vacilou. Houve
um BUM como se o mundo estivesse acabando e alguns crac-
crac-crac, seguidos por ecos que se espalharam pelas colinas
até que eu mal podia ouvir direito. A Besta pulou, traçando
um grande arco no ar, e caiu de costas na estrada, onde
parecia ter se desfeito em pedacinhos. Fiquei tão chocada que
parei o galinheiro na hora. Nós caímos com um estrondo.
— O que aconteceu? — perguntei.
— Ah, ótimo! — disse a tia-avó Harriet. — Quero dizer, ai,
meu Deus. Acho que os fazendeiros atiraram nela.
Uma das comportas do galinheiro se abriu e Mancha saiu.
— Vou lá me assegurar disso — disse ela e foi trotando em
direção às luzes e aos vultos de homens e armas.
— Os filhotes dela estão neste galinheiro? — a tia-avó
Harriet indagou. — Que falta de consideração a minha! Espero
que os pobrezinhos estejam bem.
— Eles vão ficar bem, senão ela não teria saído daqui — disse
o Sr. Williams, em tom confortador.
Aí Henry apareceu, mancando. Mas, para minha enorme
indignação, ele passou direto por nós, dizendo:
— É melhor eu ir lá e garantir que eles pensem que só
mataram um leão. Leve o galinheiro de volta pra fazenda,
Manchinha.
Ele passou por Mancha, que estava voltando. Ela disse:
— Usaram uma arma tão grande que explodiram a Besta em
vários pedaços. — E subiu de novo para ficar com os gatinhos.
Guiei o galinheiro de volta para a porta da cozinha, de onde a
tia-avó Harriet se arrastou para fora, falando sobre garrafas e
copos e examinando as feridas do Sr. Williams.
— Nada! Só um arranhão! Não preciso que você me examine!
— Eu o ouvi dizer enquanto ela fechava a porta da cozinha.
Ela teve de fazer três tentativas. A porta estava meio solta do
batente.
Esperei sentada no galinheiro, ouvindo Mancha ronronar lá
dentro. Esperei até Garra e Laranja voltarem, muito satisfeitos
consigo mesmos. Henry demorou tanto para voltar que fiquei
aflita. Imagine se a Besta só estivesse fingindo estar morta e
esganasse Henry quando ele chegasse perto? Seria tudo minha
culpa. Saí da fazenda e fui até a estrada para procurá-lo.
Eu só tinha caminhado uns vinte metros e lá estava Henry,
coxeando ao lado do grupo de fazendeiros, trazendo-os para
tomar um drinque. Exasperante. Sentei-me na estrada e
enrolei meu rabo nas pernas, recatadamente.
Henry me viu e se lançou adiante, totalmente esquecido de
que tinha os pés descalços e feridos.
— Manchinha! — ele berrou. Eu me esqueci de ficar
exasperada, pulei em seus braços e me enrosquei em seu
ombro, ronronando. — Essa é a minha corajosa Turandot! —
disse.
— Você sempre entende as coisas ao contrário — expliquei.
— Eu não sou sua Turandot. Você é o meu Henry. Ficou claro?
— Perfeitamente — ele respondeu.

Diana Wynne Jones nasceu em Londres, na Inglaterra. Aos


oito anos, ela de repente soube que seria escritora, embora, até
os doze anos, fosse disléxica demais para começar. Havia
pouquíssimos livros em sua casa, então Diana escrevia
histórias para si mesma e para as duas irmãs menores.
Concluiu a graduação no St. Anne's College, em Oxford, antes
de começar a trabalhar como escritora em tempo integral.
Entre seus vários romances marcantes, há as obras ganhadoras
de prêmios Archer's Goon, O Castelo Animado, Fire and Hemlock,
o quarteto Dalemark, Dark Lord of Derkholm, Year of the Griffin,
The Merlin Conspiracy e a série Crestomanci (Vida Encantada, A
Semana dos Magos, As Vidas de Christopher Chant e Os Magos de
Caprona). Seu romance mais recente é Conrad's Fate,
Diana Wynne Jones vive com o marido, J. A. Burrow, espe-
cialista em Idade Média, em Bristol, na Inglaterra — cenário
de muitos de seus livros. Têm três filhos adultos e cinco netos.
O site oficial de Diana é www.leemac.freeserve.co.uk.

Nota da Autora
Esse conto começou, como era de se esperar, com a nossa
gata, Dorabella, que tem várias cores e personalidade forte.
Assim que chegou, ainda um filhote minúsculo, ela
revolucionou nossa vida. Ela nos põe na cama toda noite e nos
acorda de manhã. E, assim como a Manchinha do conto, seu
maior talento é desaparecer. Quando quer, ela consegue
sumir no meio de uma sala vazia.
Um dia, a escritora Greer Gilman veio nos vistar e me contou
a respeito de uma amiga dela de Yorkshire que patrulha o
esgoto da área, colecionando gatos que as pessoas tentaram
afogar. A tal amiga tem uma tribo inteira de felinos, todos
com histórias infelizes.
E outra amiga me relatou a história do Sr. Williams original,
que estava sendo tratado com tanta falta de consideração que
uma tia dela simplesmente levou o gato embora.
Juntei todas essas coisas e o conto mais ou menos se fez
sozinho.

Nancy Farmer

Lembre-se de Mim

u deveria contar ao terapeuta sobre minha irmã


mais velha, mas ele não vai acreditar em mim. Já
contei a papai e a Ella, e eles acham que sou lunática. Mas
foram respeitosos, pelo menos.
Ella é minha mãe — nossa mãe, quer dizer, minha e de Flo —,
só que não gosta de ser chamada de mãe. Isso a faz sentir-se
velha. Papai, bem, ele é apenas o papai. Ele não percebe
quando as pessoas se sentem velhas.
Tenho de contar essa história de uma forma que o terapeuta
acredite. E melhor começar logo.
Veja, Ella planejou uma viagem para aumentar meu Q.I.,
embora seja verão e nós moremos no Arizona. Sentar ao lado
do ar-condicionado com um livro na mão não é suficiente.
Ella diz que a única forma de aprender é colocar as mãos na
massa. Essa é uma das expressões preferidas dela: "mãos na
massa". Ela declarou que eu era aflitivamente ignorante acerca
da história do estado, provavelmente porque tirei um "D" na
primavera passada. Portanto, o único jeito de resolver esse
problema seria viajar de local histórico a local histórico numa
droga de carro com ar-condicionado quebrado. Imagine só!
É claro que não fomos viajar para aumentar o Q.I. de Flo. Isso
seria perda de tempo. Falo mais sobre isso depois.
Ella nos enfiou no carro, com Fio e eu no banco de trás. Papai
dirigiu até que todas ficássemos com dor de cabeça de tanto
olhar pela janela. A paisagem era tão inspiradora quanto um
aterro de lixo tóxico. Ella tinha um guia de viagem, então
tínhamos de procurar cada conjunto de rochas que tinha uma
placa de bronze.
Imagine só. Qual é a diferença entre ler sobre um bando de
pioneiros idiotas num sofá macio e fresquinho, e ler a respeito
deles enquanto se vai de um lugar a outro andando numa
terra quente o bastante para cozinhar os pés? A maioria dos
pioneiros teria trocado suas carroças cobertas por um copo de
chá gelado, de qualquer forma.
O pior de tudo foi ter de dividir o banco de trás com Flo. Não
havia desodorante que fosse capaz neutralizar Flo. Claro que a
culpa não era dela. Isso eu admito.
Fio era diferente, sabe? Até Ella se recusava a levar crédito por
ela.
— Há quatorze anos — ela dizia às amigas —, os elfos
estavam limpando a casa. Eles abriram um armário e acharam
a Flo. Ela estava lá fazia nove meses, crescendo sem parar, até
que ocupou o espaço inteiro. Os elfos não sabiam o que fazer
com ela, então a colocaram numa cesta e a deixaram na porta
da minha casa. — Ella ria e as amigas também. Flo olhava
para o chão, para os pés.
Pensando nisso agora, parece crueldade. Nunca me
incomodou na época. Fio era gorda e lenta. Passava horas
costurando vestidos esquisitos que a faziam parecer que tinha
almoçado sanduíches de baleia. Eram todos de cores mortas:
lama, algas, lodo sujo de lago. Esse tipo de coisa. Uma vez, ela
fez uns shorts cor de sapo.
A escola toda sabia que ela era minha irmã. Detestava isso e
também detestava Flo. Tudo bem, eu não a detestava de
verdade, mas queria que ela fosse morar em outro lugar. Tipo
o planeta Júpiter. Eu compreendia por que Ella contava a
história. Eu também morreria de vergonha se tivesse uma
filha que poderia ter feito um teste para A noiva de
Frankenstein.
De qualquer forma, quando o sol se pôs, Ella anunciou que
deveríamos começar a procurar um lugar para acampar.
— Odeio acampar — disse papai, que já tinha feito muito
disso graças ao Exército norte-americano.
— Não é uma sorte eu ter colocado sacos de dormir na mala?
— Ella comentou, como se ele não tivesse dito nada. Ella era
assim. Quando tinha uma ideia, tudo o mais perdia a
importância. Acho que ela nem sequer o escutou. — Ali! —
ela gritou. — Estou vendo uma estrada que vai dar numa
fazenda. — Apontou para uma faixa de terra atravessando
uma fila de cactos pequenos, seguindo até umas montanhas
enrugadas com uma mancha verde na base.
— O que alguém poderia criar ali? Lagartos? — questionou
papai.
— Vamos fazer uma votação. O que você acha, Jessie? — Ella
se voltou para mim. — Você gostaria de dormir embaixo de
belas palmeiras antigas e ao lado de um riacho? Ou prefere
dormir no carro, com a Flo?
— Voto nas palmeiras — respondi.
— E você? — perguntou Ella ao papai.
— O que eu penso faz alguma diferença? — disse papai.
— Vou contar isso como um voto pelo "sim". Somos a
maioria.
— Espere. Você não perguntou para Fio — retrucou papai.
Ella meneou a cabeça para o lado, como um pardal.
— Não vejo por que perguntar. Já temos três votos a favor.
— Pergunte a ela mesmo assim — pediu papai. Portanto,
todos nós nos viramos para Flo, que parecia um pouco
surpresa. Papai explicou cuidadosamente o que estava em
votação. Com ela, isso era necessário. Sua mente estava
sempre divagando.
Flo ponderou vagarosamente sobre a questão. Olhou para o
carro, obviamente imaginando onde poderíamos dormir. Sua
blusa — num tom marrom horroroso que lembrava a cor de
xarope para tosse — estava úmida embaixo dos braços. Eu
queria gritar: "Resolva logo, idiota! Tem tanto espaço aqui
quanto dentro de uma meia-calça". Ela olhou para a mancha
ao pé das montanhas. Por fim, sorriu.
— Voto nas palmeiras.
— Boa menina — disse papai.
O céu ficou azul-escuro depois que o sol se pôs. A terra
parecia esfriar como um pedaço de metal tirado de uma
fornalha. E no final da estrada havia um riacho cercado de
palmeiras com folhas que estalavam como a chuva. Era um
lugar tranquilo, secreto.
Arrumamos os sacos de dormir ao lado da água e papai
acendeu o fogo.
— Não se apoie na árvore, Flo — Ella avisou. — Conheci
uma mulher que pôs a mão numa palmeira e, quando tirou,
tinha um morcego-vampiro preso no dedo dela.
Fio saltou para longe e limpou os ombros com as mãos. Ella
sempre inventava coisas para nos divertir. Eu ria. Por sorte,
meu pai não viu. Ele sempre pegava no meu pé por rir de Flo.
Era fácil rir. Ela acreditava em tudo que as pessoas diziam. Era
como se vivesse num mundo onde tudo era possível.
Sentamo-nos ao lado da fogueira. Fio contemplava as chamas
com uma concentração um pouco apavorante. Eram as
mesmas chamas, o tempo todo, mas do jeito que Flo as
observava, pareciam uma novela empolgante.
Eu ficava pensando no que aconteceria quando ela crescesse.
Ela não tinha amigos. Era lenta demais para acabar qualquer
coisa na escola. Era péssima nos esportes, mesmo quando um
professor equivocado a colocava em um time. As únicas
pessoas que a suportavam eram papai, Ella e eu.
Já mencionei que ela era leal? Terrivelmente. Eu podia fazer
ou dizer qualquer coisa para mantê-la a distância, mas ela
continuava andando atrás de mim. Eu detestava isso. Meus
amigos mentiam quando ela perguntava onde eu estava, para
me dar um pouco de paz.
— Por que alguém construiria uma estrada aqui? — papai
perguntou de súbito.
— Como assim? — indagou Ella.
— Não há fazendas nem minas. Por que construir uma
estrada?
Papai tirou as lanternas da mala e seguimos por uma trilha à
beira do riacho. O ar tinha esfriado e as palmeiras balançavam
com o vento brando que carregava um cheiro de terra úmida
e de alguma flor muito adocicada. A lua ainda não tinha
nascido, mas o céu brilhava com a luz das estrelas. Eu via a
silhueta das colinas contra o céu, e em um intervalo onde o
céu tocava o solo havia alguma coisa alta e negra.
— É um urso! — Ella gritou. Meu coração quase saiu pela
boca.
Papai pegou um graveto e foi em frente.
— E um urso. E gigantesco e horroroso — gemeu Ella,
caindo de joelhos. Tentei correr, mas Fio passou o braço em
volta de mim e me agarrou com força. Mesmo com o pavor
que senti, percebi que ela não estava com medo. Parecia estar
apenas interessada, como se encontrar ursos na escuridão
fosse um acontecimento perfeitamente normal.
— Está tudo bem — papai bradou lá de cima. — E só uma
rocha. — Com a lanterna, ele mirou uma placa de bronze
afixada no meio dela.
— E um monumento histórico — gritou Ella. Reunimos-nos
ali, olhando o enorme dedo de pedra que se
erguia na noite.
— O que diz a placa? — indaguei.
Ella deu uma.olhadela nas letras desbotadas.
— Lembre-se de mim.
— Só isso?
— Não dá para ver mais nada. Está tão apagada que não dá
pra ter certeza.
— "Lembre-se de mim." E uma inscrição engraçada — disse
papai.
— Tenho certeza de que este monumento não está no guia
— declarou Ella.
Notei que Flo ainda estava me segurando. Seu suor ficava
suspenso no ar como neblina. Era uma espécie de adubo
morno — daquele tipo feito de grama e ervas daninhas.
Cheguei à conclusão de que não gostava daquilo e lutei para
me libertar. Flo olhou fixo para a rocha, boquiaberta.
— De quem a gente deveria se lembrar? — perguntou Ella.
Papai iluminou em volta como se procurasse uma pessoa
desaparecida.
Então notei que as plantas dali eram diferentes das que havia
no lugar onde havíamos acampado. As palmeiras tinham
sumido. No lugar delas, havia árvores com troncos lisos feito
pele. As raízes serpenteavam acima do solo e tomavam cada
fenda e rachadura na encosta da montanha. Abaixo das
árvores, havia um mar de flores brancas com as pétalas
voltadas para o céu.
Eram elas que soltavam aquele perfume excessivamente
adocicado.
— São rainhas-da-noite — explicou papai. — Só
desabrocham na escuridão total.
"Ótimo", pensei. Dava para ver que não estavam esperando
seres inocentes como abelhinhas. Uma coisa que florescia na
escuridão total tinha de ser visitada por alguma outra coisa
que só aparecesse na escuridão total. Quanto mais eu pensava
nisso, menos gostava das perspectivas.
— Vamos voltar — disse Ella, num tom de voz estridente.
Papai deu a volta para indicar o caminho bem quando
encontramos um obstáculo inesperado. Flo se plantou no
lugar, ao lado do monumento, e se recusou a andar. Era tão
incomum ela mostrar qualquer vivacidade que Ella e papai
demoraram a compreender.
— Você está passando mal? — papai indagou.
Ella fez um alvoroço, insistindo para que Fio andasse.
— Você vai se sentir bem melhor — disse com a voz
esganiçada. — Estas flores fazem qualquer um ficar de
estômago embrulhado. Podem até ser venenosas. Li num livro
que os italianos costumavam mandar flores venenosas aos
inimigos.
Era mais um voo da imaginação de Ella, como os elfos e
morcegos-vampiros vivendo dentro das palmeiras. Ela soltava
essas histórias como uma dançarina de harém solta seus véus
quando dança.
— Gosto delas — declarou Flo.
Aquilo deixou todo mundo perplexo. Fio nunca tinha opinião
sobre nada.
— Gosto das árvores e das rochas e do céu e do riacho.
Nunca gostei tanto assim de um lugar.
— Ah, que bom — arrulhou Ella. — Mas nós simplesmente
odiamos este lugar. Por favor, querida. Você vai ficar bem
mais feliz no acampamento.
— Não, não vou — Fio afirmou. — Lá eu nunca vou ser nada
além da sua filha feia e gorda. Vou ter de ouvir suas mentiras
e ver você humilhando todo mundo.
— Como... como...? Eu nunca humilho ninguém — disse
Ella, ofegante.
— Você não bate na cabeça das pessoas, mas sempre faz com
que tudo seja do seu jeito. E só acha que as coisas estão boas
quando tudo gira em torno de você.
— Já chega, Flo — ordenou papai.
— E por isso que você não gosta daqui — Fio disse a Ella. —
Este lugar não deixa você ser o centro do mundo.
Aquela altura, Ella estava chorando — soluços curtos,
lamuriosos, feito ganidos de um cachorrinho, que me
deixaram péssima. Papai a abraçou.
— Ela não está falando sério — ele disse. — Os adolescentes
dizem coisas cruéis de vez em quando, mas não é o que eles
pensam de verdade. — Flo se afastou e foi olhar o riacho.
Papai tomou o caminho de volta ao acampamento com Ella.
Eu não sabia o que dizer. Era tão irreal. Nunca imaginei que
Fio pudesse falar daquele jeito. Nunca imaginei que ficasse
magoada com o que as pessoas diziam dela. Eu a vi abrir um
espaço no chão, ao lado do monumento, e se deitar. Parecia
que ia passar a noite ali.
Um tempo depois, papai voltou com um saco de dormir para
Flo. Ele acenou para que eu fosse embora. Ouvi sua voz
sussurrada e os soluços de Flo. Papai tocava as pessoas de uma
forma que Ella jamais conseguiria.
Ella já estava deitada no saco de dormir quando voltei ao
acampamento, e acho que tinha tomado um de seus remédios.
Talvez mais de um. Parecia esgotada. Enfiei-me no meu saco.
Pouco depois, papai voltou e também foi dormir.
A brisa tomou força e trazia consigo um sinal de chuva. Um
coiote ganiu e um trovão ressoou distante. Uma coruja piava
no céu ao esvoaçar para longe.
Acordei com a sensação de que chovia no meu rosto. A chuva
caía ao longe, tamborilando alto. A lua cintilava à beira das
nuvens.
— Levantem! — papai gritou. — Levantem!
Eu pulei para fora do saco de dormir antes que sequer me
desse conta do que estava fazendo. Ella ainda estava grogue.
— Está chovendo nas montanhas! Pode vir uma tromba
d'água e inundar tudo! Entrem no carro! Corram! — berrou
papai. Ele pegou Ella com saco e tudo e a carregou estrada
acima. A distância, um temporal rugia. Parecia que o céu
estava vindo abaixo.
u
Flo!", pensei. Peguei minha lanterna e corri pela trilha.
— Jessie! — ouvi papai berrar.
Mas eu já estava longe, correndo o mais rápido que podia. Se
fosse em outro momento, teria tropeçado numa árvore ou
meu pé teria ficado emperrado em uma toca de esquilo. Mas
não naquela hora. Saltitei como um cabrito montês entre os
feixes de luz da lua e a completa escuridão. Cheguei ao
monumento e vi o saco de dormir de Fio. Ele nem fora
desenrolado.
"Que idiota", pensei. Então percebi que eu era a idiota. Ela
ouvira a tempestade e fora embora. Eu ainda estava na parte
ameaçada pela inundação. Ao longe, escutei um estrondo. A
água rufava e rugia enquanto vinha em minha direção.
Agarrei-me à encosta da montanha para subir, mas ali não
havia trilha. A montanha era reta e não tinha galhos onde eu
pudesse me segurar. Larguei a lanterna. "Não tem galho?",
pensei, ao quebrar minhas unhas na rocha. "Por que não tem.
nenhum galho? O que aconteceu com as árvores?"
O estrondo foi ficando mais alto, até que engoliu todos os
outros sons. Uma onda de água cobriu meus pés. Levei
borrifadas no rosto. Subi mais alguns centímetros, mas as
pedras eram escorregadias e a água também subia. Ela já
estava na minha cintura, sugando e puxando, me arrastando
para baixo. Olhei para cima.
Lá estavam as árvores. Mas eu não conseguia alcançá-las.
Olhei para a frente, para a água que agora se erguia numa
onda gigante. Pedras tão pesadas que seriam necessários dez
homens para movê-las se debatiam e desviavam da tromba
d'água. Toras de madeira rodavam na espuma.
Senti alguma coisa agarrar meu braço. Puxou-me para cima
segundos antes de a água bater em mim. Achei que meu braço
estivesse sendo arrancado, de tanto que doía. Eu gritei e
gritei. Vi que o topo da montanha estava coberto de árvores
estranhas. E balançavam de um lado para o outro como se
houvesse um vendaval.
Pelo menos foi isso que eu pensei ter visto. A lua se escondia
e aparecia atrás das nuvens. Caí com força no chão.
— Me larga — gemi, lutando para me soltar. Feri meu braço.
Senti uma mão, uma mão grande. Ergui o olhar para a massa
de folhas e no meio — a lua apareceu por um instante —
havia olhos puxados como os de um gato. As pupilas se
abriram como se estivessem me vendo de verdade.
Então eu gritei. E no momento seguinte a mão tinha sumido.
Senti que alguém me erguia e me abraçava. Cheirava a suor.
— Fio? — eu disse.
— Está tudo bem, tudo bem — ela sussurrou.
— Flo, meu braço está me matando de dor. — Sei que parece
uma coisa boba a se dizer, depois de tudo o que tinha
acontecido, mas doía mesmo.
— Ah! Desculpe — disse Flo. Ela me deitou de novo.
— A gente tem que sair daqui — declarei.
— Está tudo bem. A inundação já passou.
— Não, o que eu quero dizer é que este lugar é assustador. —
Não quis mencionar os olhos. Não queria pensar neles.
— Não posso voltar — disse Flo, com uma voz suave e triste
que eu nunca a tinha ouvido usar.
— Do que você está falando? Ella não vai ficar brava para
sempre. Poxa, ela está tão grogue que nem vai se lembrar do
que você falou.
— Não é isso.
— O papai nunca fica bravo.
— Eu não me encaixo — explicou Flo naquele tom suave e
triste. — Nunca me encaixei. Sempre fui diferente demais.
— Ei, todos nós somos esquisitos — eu disse. Estava ansiosa
para sair dali. Não queria que aqueles olhos voltassem. Só fui
pensar na coisa mais estranha tempos depois. Flo estava
falando! Fio, que mal dizia dez palavras por dia, estava
conversando como um ser humano normal. Ela parecia estar
desperta e cheia de energia.
— Às vezes, erros acontecem — disse ela. — Às vezes, as
almas são inseridas nos corpos errados. Não são feitas para ir à
escola e ter empregos ou fazer as coisas que as pessoas sempre
fazem. São feitas para voar feito pássaros ou correr como
cavalos... ou simplesmente para ficar paradas observando,
como as árvores. As que têm sorte encontram o caminho de
casa. — E então, acima do estrondo da água lá embaixo, ouvi
o som das folhas se mexendo. Só que não estava ventando.
Nem um pouco.
Foi aí que escutei papai gritando nossos nomes. Vi a luz da
lanterna dele atingindo as árvores.
— Estou aqui! — berrei. A luz balançou em minha direção.
Ela iluminou Fio por um instante e mudou de foco. Mas antes
vi as folhas brotando de seus ombros. E os estranhos olhos de
gato reluzindo sob a luz.
Papai me encontrou toda encolhida e trêmula.
— Ah, meu Deus, achei que tinha perdido você — ele
soluçou. — Você viu a Flo?
O que eu poderia lhe dizer? Ela estava bem ali, mas mesmo
naquela hora eu já estava confusa a respeito de qual ela era.
Foi isso que eu disse à polícia depois e é por isso que estou
com o terapeuta agora. Vejo pela expressão de seu rosto que
ele também não acredita em mim.
Papai voltou várias vezes ao riacho com os policiais e com
cães farejadores, mas nunca encontraram rastros de Flo. Um
fato esquisito, porém. Apesar da inundação, todas as árvores
estranhas sobreviveram sem nenhum dano. Era como se nem
tivessem se molhado. Tinham voltado para as margens do rio,
embora papai diga que elas nunca saíram dali.
E o monumento ainda estava no mesmo lugar, com a
mensagem: "Lembre-se de mim".

Nancy Farmer foi criada num hotel na fronteira mexicana. Já


adulta, ingressou no Corpo da Paz e foi para a Índia, onde
lecionou química e administrou uma fazenda de criação de
galinhas. Depois de retornar aos Estados Unidos, tornou-se
membro de uma comunidade hippie em Berkeley, na
Califórnia. Entre outros empregos, foi vendedora ambulante
de jornais, colhedora de pêssegos, trabalhou numa nave
oceanográfica e controlou insetos que comiam os canteiros
que separam as pistas de uma estrada. Após vários anos
felizes, ela pegou um navio cargueiro até a África em busca de
romance e aventura. Tinha quinhentos dólares no bolso e
uma lista de cientistas para quem pediria emprego. Acabou
dirigindo um laboratório no lago Cahora Bassa, em
Moçambique, um dos lugares mais fantásticos do mundo, e as
pessoas que conheceu no local desde então são uma fonte de
inspiração para suas obras. Havia aventura para todos os lados
e o romance surgiu na pele de Harold Farmer, professor da
Universidade de Zimbabué. Farmer passou dezessete anos na
África antes de voltar com a famflia para a Califórnia. Harold
e ela têm um filho, Daniel, que está no Exército dos Estados
Unidos.
Nancy Farmer é autora de cinco romances, entre eles, The Ear,
the Eye and the Arm (que conquistou o Newbery Honor Book),
The Warm Place, A Girl Named Disaster (finalista do prêmio
National Book e considerado um Newbery Honor Book) c, há
menos tempo, A Casa do Escorpião (ganhador dos prêmios
National Book, Newbery Honor Book e Michael L. Printz
Honor Book). E, mais recentemente, The Sea of Trolls.

Nota da Autora
Quando criança, eu era viciada em contos de fadas. Li
milhares de histórias sobre elfos, bruxas, animais falantes e
crianças substituídas por outras por obra de fadas. É provável
que as mais tristes tenham sido as das crianças trocadas. Elas
sofriam não pelo mal que tinham feito, mas pelo que eram:
bebês feios que as fadas colocavam no lugar de bebês bonitos.
Percebi logo cedo que essas histórias falavam de crianças com
deficiências. Os adultos tentaram explicar a existência desses
seres incomuns colocando a culpa em outra pessoa. Mas
naquelas histórias também havia a crença de que essas
crianças trocadas pertenciam a algum outro lugar. Portanto,
escrevi um conto sobre esse outro lugar onde as crianças
trocadas são bem-vindas e nós somos os seres anormais.

Nina Kiriki Hoffman

Destroços

a manhã do sábado seguinte ao Dia de Ação de


Graças, fui batendo minha bola de basquete pela
rua, até chegar ao colégio. A quadra tinha uma
cerca alta para que ninguém precisasse ficar
correndo atrás da bola quando não acertavam a cesta. Havia
um campo enorme ao lado da quadra. Muitos garotos
moravam nas casas de janelas grandes do outro lado da rua.
Era só eu tentar duas cestas que já apareciam outros
jogadores.
Era melhor quando alguns deles eram meninas. Se todos que
aparecessem fossem garotos e maiores que eu, eles tomavam
a bola e não me deixavam jogar. Eu tinha de ficar esperando
até que eles se cansassem ou que fossem chamados em casa,
para que me devolvessem a bola.
As vezes Danny Ortega aparecia. Embora ele estivesse no
primeiro ano do ensino médio como eu, era maior que
muitos dos garotos mais velhos. Ele pegava minha bola de
volta. E aí dizia: — Becky, o que eu te disse? E só me
chamar quando quiser jogar bola.
Às vezes eu o chamava. Às vezes não queria incomodá-lo.
Quero dizer, e se eu estivesse abusando da nossa amizade?
Eu seria capaz de ficar olhando para ele o dia todo. Adorava
o visual dele; era alto e forte, com olhos negros e cílios
longos, pele cor de caramelo e cabelo preto e macio. Eu
adorava seu jeito de falar e o quanto ele era gentil comigo,
mesmo não sabendo o que eu pensava quando o olhava. Eu
racionava minhas ligações. Não queria mudar as coisas entre
nós dois. Ele ficava tranquilo ao meu lado, e não ansioso do
jeito que alguns garotos ficam quando uma menina está
interessada demais neles.
E eu não aguentaria perder o Danny também.
Aquela manhã de sábado estava fresca e ensolarada, e eu
estava feliz. Tinha chovido durante todo o Dia de Ação de
Graças e na sexta-feira. Do jeito que foi o Dia de Ação de
Graças, a chuva foi perfeita. Foi o pior feriado da minha
vida. Quem sabe vovô e vovó agora fiquem espertos e não
convidem papai para o Natal. Desde que minha irmã
Miriam morreu, no ano passado, mamãe e papai não
aguentam ficar na mesma casa juntos, quanto mais no
mesmo quarto.
Abri o portão da quadra e tentei acertar o cesto pela direita.
Eu adorava o barulho da bola bem cheia atingindo uma
superfície dura. Era o som de um pulo.
Havia um garoto encolhido perto da cerca, num canto da
quadra, como se o vento o tivesse carregado até ali. Seus
cabelos pretos e longos estavam opacos e cheios de folhas, o
rosto pálido e sujo. Suas roupas eram estranhas — usava
camisa e calça de veludo azul-escuro, encardidas e
manchadas, com enfeites dourados na bainha e uma
pequena flor vermelha bordada no peito. Estava descalço, as
solas dos pés pretas de sujeira, as pontas esbranquiçadas e
parecendo congeladas.
Eu peguei de volta a bola e fiquei parada no portão,
imaginando se devia ir embora ou não. Afora uns poucos
moradores ameaçadores, e dos quais a gente geralmente
corria e se safava, o bairro era bem seguro. O garoto era
pequeno e eu era forte. Mas ele era tão estranho.
Eu nem tinha certeza de como sabia que era um garoto.
Seus olhos se abriram. Azul prateado. Eu não conhecia
ninguém que tivesse olhos daquela cor, como a luz do sol
presa num gelo nebuloso. Ele me encarou.
Bati a bola no chão e pensei em minha mãe. Se houvesse
uma limpeza coletiva da praia, um plantio de árvores ou um
movimento para ajudar os desabrigados no Dia de Ação de
Graças, ela sempre ia e arrastava junto meu irmão gêmeo,
Jeff, eu e minha irmã mais velha, Miriam, antes de Miriam
morrer.
Mamãe tinha mudado desde que Miriam morrera. Ela era
assistente social e trabalhava com pessoas que tinham
problemas. Desde a morte de Miriam, tinha passado para
uma função administrativa. Parou de nos forçar a ajudar os
outros. Não queria mais que levássemos bichos abandonados
para casa. Nem gostava mais que trouxéssemos nossos
amigos. As vezes parecia que ela nem queria que tivéssemos
amigos.
Jeff não ligava; bater papo pela internet e jogar jogos online
com várias pessoas já o satisfazia. Tinha um monte de
amigos que nunca tinha visto, o que era bom, já que ele
tinha poucos amigos na escola.
Mamãe adorava poder ir até a porta de seu quarto e vê-lo ali
sempre que quisesse. Ela não estava nem aí para quantos
alienígenas, demônios e lutadores de artes marciais ele
matava.
Eu tinha diminuído minhas atividades extracurriculares
desde o acidente de Miriam, e não sabia o que colocar no
lugar. Deixava um bilhete para mamãe toda vez que saía.
Mesmo assim ela ficava superpreocupada se eu fosse muito
longe. Isso estava me deixando doida.
O garoto se sentou. Ele esfregou os olhos. Sua pele era
pálida como a parte interna de um cogumelo, e ele estava
com olheiras.
Caminhei para perto dele, batendo a bola.
Ele ficou me olhando. Quanto mais perto eu chegava, mais
eu sentia seu cheiro ruim. Parecia que andava dormindo
num bueiro.
— Ei — eu bati a bola no chão e peguei de volta. — Tudo
bem?
— Mirnama?
Coloquei a bola no chão, perto dele, e me sentei nela. O
sotaque dele era esquisito. Não entendia o que dizia. Tinha
um tom escorregadio que eu nunca tinha ouvido em inglês,
espanhol ou mesmo francês, que eu estava começando a
aprender na escola naquele semestre.
— Você está bem? — perguntei de novo. Ele não parecia
machucado. Não tinha sangue visível. Ele provavelmente só
não tinha casa. Com certeza precisava de um banho, e
parecia também estar com frio e com fome.
— Buzhelala zenda. — Ele esfregou o rosto com as mãos.
Então formou um triângulo com o indicador e os polegares,
enquadrou a boca dentro desse triângulo e disse algo
arrepiante. Aí ele colocou as mãos sobre as orelhas e disse
outra coisa horrível.
As palavras frias e ásperas feriram meus ouvidos. Como
simples palavras poderiam entrar na minha orelha como
uma faca de gelo? E se ele dissesse mais alguma coisa do
mesmo tipo?
Ele piscou.
— Diz? Por favor? Diz?
Respirei fundo e prendi a respiração por alguns segundos.
Talvez eu devesse cair fora dali. Por outro lado, aquelas
palavras soavam como uma conversa normal.
— Quem é você? — indaguei. Na verdade, eu queria
perguntar "O que é você?".
Ele falou alguma coisa cheia de "las", então franziu a testa e
disse:
— Papoula. — Ele tocou os lábios como se estivesse
surpreso com o som que tinha saído. Assentiu. — Papoula.
— Papoula — repeti.
Ele tocou a flor vermelha em seu peito.
— Papoula?
— Você tem o nome de uma flor? Ih, cara, você vai se dar
mal. Ele limpou as mãos no rosto e sorriu.
— Se dar mal? — Seu sorriso evaporou.
Eu me levantei com a bola nos braços.
— Acho que você não deveria ficar aqui. — Eu poderia
levado para o abrigo dos mendigos ou ao menos lhe dar
dinheiro para pegar um ônibus.
Ele deu um pulo e ficou de pé. Era cinco centímetros mais
baixo que eu e não parecia muito forte.
— Está com fome? — perguntei.
— Fome — ele murmurou.
O portão rangeu atrás de mim. Virei. Shoog Kelly, o garoto
mais encrenqueiro das redondezas, estava lá dando o sorriso
maligno que era sua marca registrada.
— Oi, Becky. Ei. Estamos praticamente sozinhos nesta
linda manhã de outono. Tem coisa melhor que isso? Quem é
seu amiguinho bonito?
Shoog é o tipo de cara do qual eu fujo sempre que posso. Da
última vez que me encurralou, ele não apenas me bateu.
Tentou me beijar e apertar meus peitos, embora ainda não
haja nada ali que possa ser apertado.
Eu fiquei na frente de Papoula e procurei alguém para
distrair o Shoog. No final da rua, vi Taylor Harrison
cortando a grama e, perto da escola, Wendy Alcala
passeando com seu cachorrinho branco. Ambos estavam
muito longe, não eram tão fortes nem eram exatamente
meus amigos.
— Ei, Shoog. — Tentei colocar uma de minhas mãos nas
costas e senti a mão de Papoula deslizando sobre a minha. A
mão dele era morna e fina, com um aperto mais forte do que
eu esperava. Fui andando em direção a Shoog e Papoula
manteve o meu ritmo, sempre um passo atrás. Quando
cheguei perto de Shoog, atirei a bola bem na barriga dele.
Ele deu um grito e se curvou. Eu passei por ele correndo,
com Papoula bem atrás de mim. Deixamos a bola pulando
sozinha no meio da quadra.
— Você me paga por isso, Silver! — ele gritou, a voz
esganiçada e assobiante.
Olhei para trás. Ele ainda estava resfolegando na quadra
quando nós já estávamos no meio do campo.
Só diminuí o ritmo quando já havia um quarteirão entre ele
e nós dois.
Papoula corria bem. Eu tinha esquecido que ele estava
descalço, porém. Quando diminuí o passo em frente de casa,
Papoula apertou minha mão. Parei.
Ele levantou o pé. Ambos olhamos para o sangue fresco no
seu calcanhar.
— Ih, meu Deus. Você pisou em alguma coisa?
— Ai.
— Entra. Vou pegar um curativo pra você.
Ele colocou as duas mãos no meu ombro e foi pulando até a
porta de entrada.
Ele ia deixando um rastro de sangue no tapete. Mamãe ia
me matar. Por sorte ela tinha ido jogar tênis com sua amiga
Valerie fazia meia hora, e só ia voltar depois de almoçar
com tia Ariadne. Talvez desse tempo de limpar tudo antes
que ela chegasse.
Levei Papoula até o banheiro do térreo e sentei-o na tampa
da privada.
— Fique aqui. — Corri para o andar de cima procurando o
estojo de primeiros socorros.
Já ia alta a manhã de sábado, e Jeff tinha acabado de acordar.
Ainda grogue, ele gritou alguma coisa pela porta entreaberta
de seu quarto enquanto eu me esgueirava para dentro do
banheiro. Peguei o estojo de primeiros socorros e corri para
baixo.
Papoula ficou surpreso quando abri a torneira para molhar
um pedaço de pano com água morna.
Talvez na terra dele, onde meninos se vestem de um jeito
bizarro e têm nome de flor, não houvesse água corrente. Nas
aulas de Estudos Sociais nunca tinha ouvido falar de um país
assim, e essa era uma das aulas em que eu prestava atenção.
Lavei a ferida de Papoula e, com muita delicadeza, tirei um
pedaço de vidro de dentro. O sangue empapou o pano.
Quando eu o lavei, fiquei com seu sangue nas mãos e elas
começaram a arder.
Droga! Tinha me esquecido das doenças que se pega através
do sangue dos outros. Será que Papoula estava doente? Ele
parecia mirrado e faminto, mas não havia sinais de doenças
de pele ou algum outro indício aparente. De qualquer modo,
seu sangue não poderia me afetar a não ser que eu tivesse
um corte, certo? Lavei bem as mãos com sabão, esfregando
forte, mas mesmo quando não tinha mais sangue em minhas
mãos, elas ainda pinicavam.
Mordi o lábio inferior. O que tiver de acontecer, já
aconteceu. Senti fraqueza. Mas decidi não me preocupar.
Pelo menos, se eu ficasse doente, levaria um tempinho para
morrer e todos teriam tempo de se despedir, ao contrário do
que acontecera com Miriam, que ria e brincava no jantar,
zombando de papai e mamãe sem responder a suas
perguntas sobre o que ia fazer naquela noite, e antes de
meia-noite estava morta. Já que toda sexta-feira ela saía sem
exatamente ter permissão, nenhum de nós imaginou que
aquela noite seria diferente.
Coloquei a lasquinha de vidro na bancada, ao lado da pia.
Papoula olhava fixamente para ela. Apertei a bisnaga de
pomada antibiótica sobre a ferida e pus uma grande
bandagem sobre ela. Esperava que ele não precisasse de
pontos.
Papoula tocou o curativo e passou o dedo sobre ele como se
nunca tivesse visto nada igual.
— Buzhe? Kedala — ele murmurou.
— Que língua é essa?
— Zhe? Ah. Feyan. Desculpe. E assim que vocês tratam
machucados aqui? Isso cura? — Ele acariciou a bandagem.
— Isso evita que infeccione. — Quem não sabia disso? Não
havia aquilo na índia? Sibéria? De onde quer que ele tinha
vindo?
Cuidadosamente, ele pegou o caco de vidro, que era
transparente e tinha mais ou menos um centímetro. Franziu
a testa e me olhou.
— Vamos jogar fora pra não cortar mais ninguém.
— Jogar fora?
Eu abri o armário do banheiro e retirei o cesto de lixo que
havia embaixo da pia.
— Ponha aqui.
Ele ficou olhando para a pilha de lenços de papel usados, fio
dental e bolinhas de algodão jogados no lixo. Em seguida
estudou o caco de vidro.
— Tem muito desse...
Esperei um instante pelo resto da frase, mas ele não a
completou.
— Ponha aqui — repeti.
Ele jogou o caco no lixo. Guardei o cesto.
— Então, quer tomar café da manhã?
Ele concordou.
— E melhor você se lavar antes. Se mamãe chegar... Ah, é
melhor você tomar um banho. — Eu já me acostumara com
seu cheiro, mas só em pensar na reação de mamãe, me dei
conta de como era ruim. Nós éramos quase do mesmo
tamanho. Meu quadril era maior e meu peito estava
começando a crescer; mas eu tinha um cinto, e as camisetas
não se importam com a sua forma, só com o seu tamanho.
— Banho? — repetiu.
— Venha. — Eu o levei ao meu quarto, fucei na cômoda
até achar uns jeans velhos e uma camiseta azul escura com a
estampa desbotada de um conjunto de rock nas costas.
Talvez Jeff doasse uma roupa de baixo. Seria bom que
Papoula tivesse uma cueca, para o caso de...
Fiquei com o rosto vermelho só de pensar.
Papoula examinava as coisas na minha escrivaninha. O
globo terrestre, que eu tinha comprado numa feirinha, tinha
mais de trinta anos e muitos países haviam mudado nesses
anos. Minha coleção de pedras das muitas caminhadas
geológicas que fiz com papai. Ele adorava escavar cristais,
essas coisas. Eu também gostava. Sempre achei que
poderíamos encontrar um tesouro. Encontrei vários cristais
de quartzo em Cascades, mas nenhum deles era perfeito.
Bem mais fácil de colecionar eram ágatas, que eu pegava nas
ondas do mar. E ainda tinha a vantagem de usar grandes
botas de borracha e poder passear na praia.
Desde que meu pai se mudou, não fomos mais caçar pedras.
Ele nos visitava nas noites de sábado. Levava Jeff e eu para
jantar e ao cinema todo fim de semana. Isso estava me
deixando furiosa.
Papoula tocou a capa da Enciclopédia dos Mamíferos, onde
tinha uma foto de um tigre. Seus olhos se arregalaram.
— Você nunca viu um tigre?
Ele negou com a cabeça.
— Bem, na verdade eu também não. Só em fotos e na TV.
Pronto pro chuveiro?
— Becky? — ele perguntou.
— O quê?
— Seu nome é Becky?
— Ahn? Ah, é sim. Desculpe. Perguntei o seu nome, mas
esqueci de dizer o meu. Eu sou Becky Silver. Como você
soube?
— O Shoog disse. Becky, o que é chuveiro?
Algumas ideias passaram pela minha cabeça. Talvez ele
fosse retardado. Talvez não fosse mesmo daqui. Talvez
estivesse brincando. Talvez ele fosse uma alucinação. O que
tinha acontecido de verdade foi que Shoog me bateu com
tanta força na cabeça que naquele exato momento eu estava
deitada no asfalto, desacordada. Quero dizer, que menino
no meio de uma cidade americana, longe de qualquer meio
de transporte que poderia têdo trazido até ali, mesmo de
outro país, não sabia o que era um chuveiro?
Bom, talvez naves espaciais o tenham despejado aqui em
Spores Ferry, Oregon. Coisas estranhas acontecem.
— Hum. Você sabe o que é um banho de banheira?
— Uma banheira? Com água dentro?
— Isso mesmo. — Eu lhe passei as calças jeans e a camiseta.
— Eu mostro o chuveiro. — Supondo que ele estivesse de
gozação comigo, eu faria o mesmo com ele, fingindo que o
estava levando a sério. Certo?
Levei-o para o banheiro de cima e abri o boxe. Ele
olhou para dentro e depois me olhou.
— Ah. Tudo bem. Isso aqui é gel de banho, é que nem
sabão. Você joga um pouco numa esponja e esfrega sua pele.
Isto é xampu. Você sabe o que é xampu? — Analisei seu
cabelo. Estava totalmente opaco e armado. Talvez ele nunca
o tivesse lavado antes. — Você molha o cabelo e esfrega isso
aqui, depois lava, repete tudo outra vez e aí estará limpo. —
Mostrei as torneiras. — Esta é para água quente e esta para
fria. — Apontei para o chuveiro. — A água sai por ali. Você
fica embaixo e ela jorra em cima de você.
Ele tocou a torneira.
— Isso é água?
— Isso liga a água.
Ele fez uma careta.
— Olha só. — Pus o braço dentro do boxe e liguei a água
quente.
— Zhe! — Desliguei a água.
Papoula ligou a água e pôs a mão embaixo da água corrente.
Desligou-a e olhou para mim. Fui até o armário e peguei
uma toalha felpuda e uma esponja.
— Você entende para que servem a toalha e a esponja?
Papoula assentiu.
— Becky? O que você está fazendo? — Era Jeff na porta do
banheiro, olhando espantado para nós dois.
— Este é meu amigo Papoula. Ele vai tomar um banho.
— Ele? É um garoto?
— É. Você tem roupa de baixo limpa pra emprestar, Jeff?
Jeff coçou a cabeça, saiu pela porta do banheiro e depois
voltou com uma cueca. Por sorte mamãe tinha lavado roupa
na noite anterior, então não era nem tóxico.
— Você consegue vestir nossas roupas? — perguntei a
Papoula.
Ele tocou no jeans e na camiseta que eu já tinha lhe dado e
se inclinou para ver como se abotoavam as calças.
— Parece simples — ele disse.
— O zíper pode machucar se você não tomar cuidado —
Jeff disse.
— Zíper?
Fiz uma demonstração de como funcionava o zíper das
calças que eu tinha dado a ele.
— Cheska — ele balbuciou.
— Cara, é por isso que a gente usa roupa de baixo —
explicou Jeff.
— Obrigado — disse Papoula.
Liguei a água quente. Num minuto ela já estava fervendo.
Misturei um pouco de água fria para que não ficasse
escaldante.
— Tudo bem? Você entende o que é se lavar, não é?
Ele fez que sim com a cabeça. Muitas vezes. Jeff e eu saímos
e fechamos a porta.
— Quem é o alienígena? — perguntou Jeff.
Balancei a cabeça.
— Não sei. O nome dele é Papoula. Eu o conheci na quadra
de basquete. Você acha que ele está de gozação com a
minha cara?
Jeff puxou o lábio inferior, depois fez que não.
— Ele me passa uma sensação estranha.
— Ele não é da região — eu disse.
— É. Nem um pouco.
— Você não acha que é tudo fingimento?
Jeff passou o dedo no cabelo, depois fez que não.
— Mas posso estar enganado.
Nós descemos. Eu já tinha comido cereais com banana e
leite, mas fazia algum tempo. Talvez fosse uma boa ideia
fazer panquecas. Papoula precisava engordar.
Jeff pegou um pacote de cereais e começou a comer da
caixa, deixando cair uns no chão a cada mão cheia que
pegava. Eu estava tão distraída que nem me lembrei de dizer
a ele que limpasse o chão.
Quando Papoula desceu, eu já tinha feito massa de
panqueca e a frigideira já estava tão quente que chamuscou
quando pinguei água nela. Jeff estava sentado à mesa com
um prato diante dele. Havia arrumado a mesa, pegado a
manteiga e o melado e colocado leite em três copos para
nós, como eu tinha sugerido.
Papoula estava bem limpo. Seu rosto era interessante,
angular, com o queixo pontudo; seus olhos eram chocantes,
de um azul ácido com bordas cinzentas e cílios negros. O
cabelo escuro e molhado descia pelas costas até abaixo da
cintura. Era estranho vedo vestindo minhas roupas —
estranho porque ele quase parecia normal.
— Ei. Sou o Jeff.
— Caramba! Esqueci as boas maneiras de novo. Papoula,
este é meu irmão Jeff. Jeff, este é o Papoula.
Jeff estendeu a mão. Papoula olhou e estendeu também. Jeff
apertou a mão de Papoula. Papoula sorriu.
— Você ainda está com fome, não é? Sente-se. Pode
começar com o leite. Vou fazer panqueca. — Joguei um
pedaço de manteiga na frigideira e ela se dissolveu em
segundos. A cozinha cheirava bem. Coloquei as primeiras
panquecas para fritar.
— Leite — Papoula disse. Ele pegou o copo e bebeu tudo,
sem parar para respirar. — Ahhh. Obrigado.
— Tem mais se você quiser. — Apontei para o meu copo.
Ele ergueu as sobrancelhas, olhou para seu estômago e
pegou o meu copo. Dessa vez, ele bebeu aos golinhos, em
vez de tomar de uma golada só.
As panquecas já formavam bolhinhas. Virei-as de lado. A
primeira leva sempre saía mais escura e dura. Coloquei tudo
no prato do Jeff e comecei uma segunda leva.
Jeff suspirou de alegria, colocou um pouco de manteiga nas
panquecas e as encheu de melado. Cortou um bocado
enorme, então parou, com o garfo diante da boca.
— Mas o Papoula é nosso convidado. Ele não deveria ser
servido primeiro?
— Tudo bem — Papoula comentou.
— As primeiras são só pra treinar. — Eu virei as novas no
fogo. Marrom dourado e com um cheiro delicioso. Um
minuto e meio depois, coloquei as panquecas num prato
limpinho em frente a Papoula.
Ele pegou garfo e faca e despejou em cima manteiga e
melado, que Jeff empurrou em sua direção. Pus outra leva
de panquecas e observei Papoula imitando o que Jeff fazia.
A primeira mordida o pegou de surpresa. Assim que ele
fechou a boca com a comida dentro, seus olhos se
arregalaram. Aí ele tossiu. Não deveria ter tentado comer
um pedaço do mesmo tamanho que o de Jeff.
Enquanto tossia, Papoula mantinha a mão na frente da boca.
Ele desengasgou depressa e finalmente engoliu. Tomou um
pouco de leite. Aí comeu um pedaço menor.
— Você quer mais alguma coisa?
Ele balançou a cabeça. Engoliu.
— Gostei disso. Mas não era o que eu pensava quando vi.
— Aí, cara, qual é a sua história? — Jeff indagou. Seu prato
estava vazio.
Eu ainda fiz outra rodada de panquecas para o Jeff e depois
mais uma para mim. Se Jeff terminasse de comer antes que
eu preparasse as minhas panquecas, ele mesmo podia fazer
mais uma leva para si.
— Minha história. — Ele apertou os olhos e olhou para o
teto. — Eu não sei que parte contar.
— De onde você veio?
— De um lugar embaixo de um lugar dentro de um outro
lugar que fica três lugares atrás.
O que aquilo significava?
— Esse tal lugar tem nome? — perguntei.
— Feyala Durezhda.
Que grande ajuda!
— Eles não têm chuveiros lá, né?
— Não como aqui. Se eu quisesse água pra fazer aquilo,
teria de falar com ela, não para uma coisa de metal que fala
com outra coisa de metal e diz pra água pra onde ela tem de
ir e como ficar quente e quando parar ou continuar.
Jeff e eu trocamos olhares. Talvez Papoula fosse doido.
Talvez fosse o caso de nos prepararmos para tomar uma
atitude se ele começasse a agir feito doido. Juntos, nós
éramos bem fortes.
— Como você fala com a água?
Papoula deu mais três garfadas e olhou em volta.
— Você tem água? Agua neste mundo não é igual à água do
lugar de onde venho, mas posso falar com a de vocês. Ela
não sabe ouvir muito bem, mas tenta.
Eu enchi um copo com água da torneira e coloquei-o diante
de Papoula.
Papoula acariciou o ar acima do copo, franziu a testa, mexeu
os dedos um pouco, disse algo ritmado e estendeu a mão
com a palma para cima.
A água imediatamente fluiu do copo para o alto e formou
uma bolha aquosa na palma de sua mão.
— Nossa —Jeff disse. Ele afundou na cadeira, de boca
aberta. Eu soltei a respiração e aí não conseguia mais
inspirar. Sentia
que ia desfalecer.
— Esta água não está acostumada a ouvir — explicou
Papoula, passando o dedo pela bolha, que tremia. — Ela não
sabe bem como responder. Tsilla. — A bolha de água
tremeu mais ainda. — Estenda sua mão, Becky. Tsutelli.
Levantei minha mão. Ela tremia.
A bola de água pulou da mão de Papoula para a minha. Por
um segundo manteve sua forma e aí se desmanchou na
minha mão. Era quente. Quando saíra da torneira, estava
fria.
Eu me sentia ofegante e não encontrava ar para respirar.
Alguma coisa enorme desmoronava dentro de mim. Minha
mão estava molhada.
A água tinha se movido pelo ar, sem ter sido lançada por
uma pistola ou mangueira.
Finalmente consegui tomar fôlego. Pressionei minha mão
molhada no rosto, toquei meus lábios com os dedos úmidos.
O que era aquilo? O que era aquilo?
—Isso é real? — Jeff sussurrou.
—Tem alguma coisa queimando — disse Papoula.
Eu me virei, arranquei a panela do fogo e virei o botão do
fogão para apagar a chama. As panquecas estavam
queimadas. Minhas mãos ainda tremiam. Meu estômago
ardia e borbulhava.
—Você consegue fazer isso de novo, cara?
—Por que você me chama de cara?
Levei a panela até a lata de lixo e joguei fora meu segundo
café da manhã. De repente, panquecas davam trabalho
demais. Peguei uma caixa de cereais, sentei entre Jeff e
Papoula e despejei um pouco da caixa na mão.
—Meu nome é Papoula — Papoula disse para Jeff.
—Esse nome é ridículo, cara. Você deveria mudar.
Os olhos de Papoula se estreitaram, feito lascas de gelo.
Mastiguei o cereal, engoli e perguntei:
—Você sabe quanta água tem no seu corpo, Jeff?
Jeff hesitou, depois curvou os ombros.
— No corpo de todo mundo — continuei. Era
surpreendente que minha voz estivesse firme.
Papoula olhou para mim e seus olhos voltaram ao normal.
— Becky? Você está assustada?
— Estou.
— Pela conversa com a água?
— É — respondi. Mas era por várias coisas. Talvez ele fosse
doido. Minha mão ainda estava úmida, o que dava
credibilidade à história dele. Então, quando ele mencionara
outros mundos... — Com o que mais você fala?
Seus lábios se apertaram.
— Elementos e forças. O tempo. Plantas, animais e os
espaços entre eles. No subterrâneo do lugar de onde venho,
todo mundo fala algumas dessas línguas. Na superfície,
ninguém fala; eles têm o trabalho de mexer tudo com as
mãos. Carregam a água em baldes e panelas e às vezes
constroem canos e aquedutos. Eles só conseguem convencer
a água a ir para onde ela cai.
Ele fitou um ponto longe de nós, depois voltou a nos olhar.
— Aqui vocês têm a mágica do toque. Você toca em um
ponto e alguma coisa acontece em outro lugar. — Ele
apontou para o fogão. — Você tocou naquela coisa branca e
a chama se extinguiu sem ter de soprar ou pedir para ela se
apagar. Você toca naquela coisa redonda no chuveiro e a
água vem de outro lugar. Na primeira sala onde você me
levou, tinha uma coisa na parede que quando você mexeu a
luz apareceu no teto.
— Papoula? — Jeff se inclinou para o lado dele. — Fala
sério, cara. O que mais você faz que nós aqui não fazemos?
— O que vocês não fazem?
Ficamos em silêncio. Se ele achava que apertar um
interruptor para acender a luz era mágica, como saberia o
que era normal ou não era?
— Há quanto tempo você está aqui? — perguntei.
— Era noite quando eu cheguei. Vi casas e luzes. Vi gente
pelas janelas, mas fiquei com medo de ir até as portas. Tudo
é diferente aqui. Também no último e penúltimo lugar onde
estive as coisas eram todas diferentes. — Ele deitou a cabeça
na mesa, seu rosto virado para o outro lado. — Eu só quero
voltar para casa, mas cada vez que eu abro um portal acabo
mais longe ainda.
Pus minha mão no seu ombro. Aí imaginei que de repente
isso poderia ser um insulto terrível na terra de onde ele
vinha. Ele suspirou e virou a cabeça para me fitar.
— Meu pai me salvaria se soubesse onde eu estou. Acho
que estou longe demais agora.
Dei uns tapinhas em suas costas, já que ele não parecia se
importar.
Ele suspirou de novo e se sentou.
— Quando eu vi aquele lugar cercado na escuridão, eu
entrei. Achei que se acontecessem coisas do lado de fora, a
cerca me protegeria. Eu fui dormir. Quando acordei, você
estava lá, Becky. No último lugar onde estive não encontrei
nenhuma pessoa, só tinha animais que queriam comer tudo
o que se mexia.
— Como você chegou aqui? Você... passou por um portal?
Ele assentiu.
— Minha senhora me proibiu de usar portais, mas eu achei
um jeito de burlar a proibição. Só que os portais não estão
funcionando bem. Eu digo qual é o meu destino e acabo em
outro lugar. Vocês têm portais aqui?
— Não desse tipo. Não que eu saiba.
— É como teletransportar alguém, que nem em Jornada nas
Estrelas? — Jeff perguntou.
Papoula me olhou. Eu disse:
— Não parece a mesma coisa. Em Jornada nas Estrelas eles
sempre vão parar em algum lugar próximo. Não é? O tele-
transporte é só de nave pra planeta ou de nave pra nave. O
Papoula veio de muito mais longe. Nós não temos essa
viagem instantânea por aqui, Papoula.
— Nunca vou conseguir voltar pra casa — ele murmurou,
com a voz tão baixa que quase não escutei.
— Você pode ficar conosco. — O quarto de Miriam era ao
lado do meu e ninguém tocara em nada desde que ela
morrera. O quarto estava lá, vazio.
— Você ficou louca? — Jeff indagou.
Eu olhei para ele.
— Nós não sabemos do que ele é capaz, além daquela coisa
com a água, mas e se for... perigoso? O que mamãe vai dizer,
já pensou nisso? Ela não gosta mais de ter estranhos em casa.
— Ele pode ficar aqui até mamãe mandado embora. Talvez
possa ficar com papai. — Qual era a probabilidade de ele
aceitar? Papai não era salvador do mundo como mamãe
tinha sido. Ele estava tão estúpido ultimamente. As vezes eu
tinha a sensação de que ele não queria mais ser pai.
— Becky... —Jeff começou.
— É melhor eu ir embora? — perguntou Papoula.
— Ah, para com isso! Para onde você iria? Você não tem
dinheiro, não tem sapato. Eu posso arrumar uns sapatos,
mas não sei se vão servir. Meias não seriam problema. Mas o
que você comeria? Onde dormiria? E se você ficar doente?
Papoula sorriu devagar. Seu sorriso era tão doce que fiquei
toda derretida.
— Obrigado, Becky. — Ele olhou para o outro lado. —
Você já me deu tudo o que eu precisava. Agora que estou
quente, limpo, alimentado e tenho tempo para pensar, devo
saber me cuidar. — Ele murmurou alguma coisa. — Talvez
quando eu aprender mais sobre a diferença entre as línguas.
— As línguas — repetiu Jeff. — Como você sabe falar a
nossa?
— As palavras do gelo.
— Ahn?
Papoula assentiu. Ele levantou as mãos, formou um
triângulo com os dedos indicadores e os polegares e fez com
eles como uma moldura ao redor da boca.
— Esse encantamento funcionou. Eu joguei em mim
mesmo.
— Ele deixou os braços cair, desmanchando o triângulo.
— Você também sabe fazer encantamentos? — Jeff
indagou. Papoula levantou a cabeça.
— Foi essa palavra que saiu da minha boca quando eu
estava tentando descrever o que aconteceu. Vocês têm uma
palavra pra isso. É uma coisa que vocês fazem?
Jeff fez que não.
— Temos histórias de pessoas que jogam feitiços, bruxas,
magos, mas a maioria das pessoas acha que é tudo invenção.
Papoula franziu a testa.
— Todo ano, na época do Halloween, a gente vê bruxas na
TV — eu expliquei. — Na CNN, falando sobre o significado
da data.
— Essas não são bruxas do tipo A Feiticeira, que mexem o
nariz e fazem mágica —Jeff explicou. — Essas são as que
fingem que a mágica é sua religião.
Papoula olhava para um e para o outro com curiosidade.
— Lá no seu mundo há contos de fadas? — perguntei.
— Contos de feiala? — Ele me olhou, inexpressivo. Depois
sorriu. Riu e fez que não com a cabeça. — Vocês têm contos
sobre feiala?
— Feiala? — Tentei pronunciar da mesma forma que ele.
— Feyala Dureshda?
Engoli em seco.
— Você veio da terra das fadas?
Ele sorriu de novo. Seus dentes eram ligeiramente
pontudos. Aquilo me fez lembrar de outra coisa:
— Posso ver suas orelhas?
Ele ficou sério, levantou o cabelo de cima da orelha mais
próxima de mim, inclinou a cabeça e levantou as
sobrancelhas, intrigado.
Suas orelhas não eram muito pontudas, mas também não
eram arredondadas. Não eram aquelas orelhas gigantescas
de raposa que eu vira em livros de contos de fadas, tinham
só uma pontinha lupina.
— Esse é um dos contos? — ele perguntou. — As feialas
têm orelhas pontudas?
Eu balancei a cabeça afirmativamente.
— É verdade? — Tive uma sensação estranha no momento
em que a pergunta saiu da minha boca. Eu estava mesmo na
cozinha de minha casa perguntando para um estranho sobre
os fatos da terra das fadas?
—Hum. Em geral, sim.
Jeff observou:
—Suas orelhas são quase normais.
Papoula tirou o cabelo de trás da orelha.
— Meu pai é humano — Ele franziu a testa. — Vocês aqui
têm contos de feialas...
A porta da cozinha se abriu e minha mãe entrou correndo,
carregando sua raquete de tênis e assobiando. Ela parou ao
ver Papoula.
Olhei o relógio. Eram só onze horas da manhã. Ainda não
era a hora de ela chegar. Ela tinha compromisso para o
almoço.
— Aconteceu alguma coisa com a tia Ariadne?
— Não — ela disse devagar. — Valerie torceu o tornozelo e
por isso paramos de jogar cedo. Quem é o seu amigo?
— E o Papoula, mãe.
Mamãe estendeu a mão. Papoula apertou-a.
— Olá, Papoula. Eu sou a Sra. Silver.
Papoula assentiu.
— Sra. Silver.
Ela costumava pedir a meus amigos que a chamassem de
Thea.
Mamãe cruzou o corredor, onde pendurou a raquete num
armário.
— Então vocês estão lhe servindo o café da manhã? —
perguntou ao voltar para a cozinha.
— É — respondi. — Papoula, você quer mais? — Ele tinha
limpado o prato. Nem me lembrava de quando.
— Ninguém vai querer mais? — Papoula perguntou.
E Jeff disse:
— Estou pronto pra mais uma rodada!
— Ah, é. Eu queimei as minhas panquecas. Mas não
chegou a ter incêndio, não, mãe. Você quer panqueca?
Ainda tem bastante massa pronta.
— Vou me encontrar com Ari para almoçar dentro de uma
hora. Depois você vai limpar tudo, não vai, Becky?
— E claro. — Mamãe devia estar realmente aérea. Eu
limpo minha bagunça há anos.
Bagunça. Espera aí. Tinha me esquecido do sangue de
Papoula no tapete da entrada. Imaginei que mamãe não
tivesse reparado, então era melhor limpar aquilo o mais
depressa possível. Mas como é que se limpa sangue de
tapete? Especialmente aquele sangue estranho de Papoula?
— Papoula está usando sua camiseta, Becky? — mamãe
perguntou.
Então ela não estava tão aérea assim. Fazia pelo menos três
meses que eu não usava aquela camiseta, mas mamãe ainda
se lembrava dela.
— Epa. Papoula, acabei de lembrar que a gente deveria
lavar sua roupa.
— Qual é o problema com as roupas dela?
— Estão sujas.
— Papoula é um menino — Jeff informou.
Mamãe se inclinou para olhar bem o rosto de Papoula,
encarou Jeff e depois me olhou. Depois voltou o olhar para
Papoula, que sorriu e ergueu as sobrancelhas.
— Você não é aquela menina da torcida do futebol? Eu
poderia jurar... — começou mamãe.
— Ah, mãe! — gritei. — Só porque a Megan Ennis também
tem cabelo longo e preto isso não quer dizer que Papoula se
parece com ela! — Se bem que agora que mamãe tinha
mencionado, lembrei que Megan tinha o corpo magro e
feições pontudas como as de Papoula, além de olhos azul-
claros.
Mamãe ficou com a coluna reta.
— De onde ele veio, então?
— Da escola.
— Por que trouxe as roupas sujas para cá?
Meu Deus, ela estava pior do que nunca. Antes da morte de
Miriam, ela nunca faria perguntas tão mal-educadas na
frente de uma visita. Ela me levaria para outro canto e me
perguntaria. Ou talvez ela mesma trouxesse Papoula para
casa e nos pediria que o tratasse bem.
— Ele estava vestido com elas. Ele precisava de um banho e
de trocar de roupa e tomar café da manhã, mãe. Ele agora já
está se sentindo melhor.
— Acho que eu devia ir embora — Papoula disse. Fiquei
com medo de que mamãe concordasse com ele.
— Mãe — eu disse para impedi-la de dizê-lo.
Ela se sentou ao lado dele e pegou sua mão.
— O que aconteceu? — perguntou no seu melhor tom de
terapeuta profissional. Fazia ao menos um ano que eu não a
via falar assim com ninguém. Ela sempre conseguia fazer
meus amigos se abrir com ela quando eles precisavam falar
com alguém, mas não se abriam comigo. Era uma daquelas
coisas que me deixavam fula da vida. Como é que eles
falavam coisas íntimas para ela quando não conseguiam
falar para mim? Só que, assim que ela sabia o que havia de
errado, também sabia o que fazer e, em geral, dava tudo
certo. Eu não conseguia fazer aquilo.
Papoula olhou fixo para mamãe. Uma lágrima correu por
sua face. Ela acariciou sua mão e esperou.
— Eu não consigo achar o caminho de volta pra casa.
Ela o puxou para o seu colo.
Ela não me pegava no colo fazia mais de quatro anos. Eu me
achava muito crescida e, caso ela tentasse, não a teria
deixado fazer isso. Papoula era só um pouco menor que eu e
mamãe só um pouco maior, mas ela deu um jeito.
Ele pressionou o rosto no ombro dela e a abraçou, e ela
passou os braços em volta dele e cantarolou. Ela não disse
que tudo ficaria bem. Ela nunca dizia coisas assim, nem
mesmo antes da morte de Miriam. Ela dizia que nada era
mais venenoso do que uma promessa impossível.
Ela apenas o confortou.
Eu me levantei e fiz mais panquecas, com minha cabeça e
meu estômago inquietos. Mamãe tinha parado de cuidar de
gente perdida. Ela havia se transformado numa adulta
normal, tão distante quanto os outros pais que eu conhecia,
do tipo que diz "Que bom, querida" se você contasse que
passou a gostar de comer cobra frita.
Servi panquecas para o Jeff, coloquei algumas para mim, e
deixei algumas no prato de Papoula antes que ele saísse do
abraço de mamãe. Depois, me sentei e comi.
— Meu bem — mamãe disse —, como podemos ajudar
você?
— Acho que não há nada que possam fazer. — Ele levantou
a cabeça. — Talvez haja alguma saída nos seus contos.
— Meus pontos? — mamãe perguntou. — Não tenho
pontos.
— Os contos de feialas. Algum deles fala em portais para
outros mundos?
Mamãe tocou seus ombros e o empurrou para trás para
poder olhar bem para o rosto dele.
— Você está se sentindo bem?
E se mamãe achasse que Papoula era louco? Ela sabia para
onde mandar crianças que tinham problemas com a
realidade, isto é, quais estabelecimentos do sistema público
de saúde mental tinham vagas para jovens. Desejei pedir a
ele que ficasse quieto.
Ele passou as mãos no rosto, secando as lágrimas.
— Estou, sim. Estou bem.
— Não precisa exagerar. — Mamãe deu um sorriso. Ela o
colocou de volta na cadeira. — Vamos pensar um pouco.
Você quer mesmo ir para casa?
— Mais do que tudo no mundo.
— Tem algum jeito de entrarmos em contato com seus
pais? — Ela se levantou, pegou um bloco e caneta na
mesinha do telefone, sentou-se de novo, abriu numa página
em branco e olhou para Papoula.
— Eu não sei como.
— Você se lembra do número do seu telefone?
Papoula me olhou, desconcertado.
Peguei o telefone sem fio.
— Isto é um telefone — expliquei, e dei o aparelho para
ele.
— Ah, meu Deus... — mamãe disse.
Papoula segurou o fone com ambas as mãos, passou os dedos
pelos botões com tanta delicadeza que não apertou nenhum.
Aí pareceu reconhecer algo.
— Vozes? Vozes saem daqui para o ar? Vozes entram aqui e
viajam?
— Isso.
Ele colocou o fone no ouvido, depois o afastou.
— Mas ele só fala com outros telefones. Acho que seus pais
não têm telefone — eu lhe disse.
— Não.
— Qual é o endereço deles? — mamãe inquiriu.
Papoula olhou para mim mais uma vez. Depois, virou-se
para mamãe.
— Eles não moram no mesmo lugar. Meu pai mora em... —
ele disse algo naquela língua do lalalá. — Mas ele viaja
muito, e minha mãe mora em... — uma outra palavra na
língua do lalalá.
— Oh, meu bem — disse mamãe. — De que país você disse
que veio?
— Feyala Durezhda.
— Em que continente fica?
— Não é bem um... continente. E subterrâneo e lateral.
Mamãe me olhou. Olhei para o Jeff. Como poderíamos
traduzir aquilo para ela? E se ela achasse que Papoula era
maluco? E se a gente dissesse a verdade para mamãe? A
verdade. Ainda dava para contar.
Mamãe mudou de assunto.
— Como seus pais se chamam?
Ele disse três palavras em outra língua, depois tocou os
lábios.
— O nome da mamãe é... Sombra da Noite. Papai é
Hariyeh, príncipe da Silischia.
— Eu achei que eles deviam ser hippies, para dar o nome de
Papoula a um menino. Eles estão procurando você?
— Tenho certeza de que meu pai está. Acho que ele não
tem como me achar. Eu estou muito longe de casa. Eu saí da
casa de minha mãe pra ir viver com meu pai no ano passado,
então ela nem deve saber que eu sumi.
— Ela não faz visitas?
Papoula olhou para mim.
— Você não vê a sua mãe de tempos em tempos? —
perguntei.
Ele fez que não.
— Ela disse que era para eu entrar em contato se precisasse
de alguma coisa, mas ela está muito ocupada. Ela tem três
filhos pequenos, e confia em mim para me cuidar sozinho.
Mamãe o estudava, em silêncio. Papoula enrubesceu.
— Se eu pudesse chamar minha mãe, ela viria. Mas eu não
sei como.
— Como você poderia chamada se nem sabe o que é um
telefone?
— Eu podia mandar uma mensagem pra ela, falar com um
mensageiro e ver se ele consegue se infiltrar pelas beiradas
do mundo. Explicar a ele onde é minha casa, dar a dica para
se chegar lá. — Ele examinou tudo que havia sobre a mesa.
— Um mensageiro — ele murmurou e pegou o saleiro.
Olhou para mim e colocou-o de volta na mesa. — Talvez...
— E muito longe daqui a sua casa? — mamãe perguntou.
Papoula balançou a cabeça.
— Longe demais.
— Como você chegou aqui?
— Eu estava tentando voltar para casa, mas toda vez que eu
tentava me perdia ainda mais.
— Foi viagem de ônibus? Carona? Trem? Como você che-
gou aqui?
— Eu passei pelo portal.
Mamãe me olhou. Encolhi os ombros.
— Você não sabe o telefone, o endereço, o sobrenome, nem
o continente ou o meio de transporte. Isso está complicado.
— Ele pode ficar até que a gente descubra? — perguntei.
Os olhos de mamãe ficaram opacos. Quando clarearam, a
Mãe Nova estava de volta.
— Não. Eu vou cobrar uns favores e achar um abrigo de
emergência até conseguir marcar hora com um assistente
social na segunda-feira.
— Você vai colocar o Papoula no sistema de adoção num
feriado prolongado?
Mamãe arqueou os lábios.
— Nós não conhecemos você — ela disse a Papoula com a
sua voz de Mãe Nova. — Lamento muito, mas não temos
como confiar em você.
—Tudo bem. Eu vou. Acho que posso me cuidar agora.
Jeff segurou o braço de Papoula.
—Você não pode ir.
—Por que não?
—Você ainda não nos disse quais outras línguas você fala.
Mamãe estacou. Jeff interessado em qualquer outro assunto
além de computadores? Isso não era comum.
— Becky, me traz as roupas dele? Talvez nelas exista
alguma pista — ela disse.
— Você não se incomoda, Papoula? — perguntei a ele.
Esperava que ele não se incomodasse. Se mamãe estava
interessada em resolver a questão, talvez a Mãe de Antes
ainda estivesse por ali.
Ele concordou.
— Eu as deixei na mesa do banheiro.
Subi as escadas para apanhar as roupas, que estavam dobra-
das sobre a bancada do banheiro. Ele tinha dobrado a toalha
e deixado com a esponja ali em cima, também; o chuveiro
ainda estava pingando, então eu apertei a torneira com mais
força e joguei a toalha no cesto de roupa suja.
Meu Deus, como as roupas dele fediam. O cheiro era mais
pantanoso que suarento. Estavam mais sujas do que me
lembrava, o veludo opaco e respingado de lama. Só a flor
vermelha na camisa estava limpa. Eu a toquei e meus dedos
vibraram. Tirei a mão com um solavanco.
Lembrei-me do sangue de Papoula em minhas mãos, como
ele também pinicava. Sangue de fadas. Eu não sabia no que
acreditar.
Toquei numa mancha no joelho da calça de Papoula. Escura,
fedorenta. Um barro meio seco cinza azulado se soltou e
uma folhinha roxa em forma de aranha caiu no chão. Eu a
peguei. Nunca tinha visto uma folha como aquela. Cheirei.
Uma mistura de amônia e framboesa, um cheiro pungente.
Entrei no meu quarto e pus a folha na gaveta de cima da
escrivaninha.
Na cozinha, mamãe estendeu os braços e lhe dei as roupas
de Papoula. Ela franziu o nariz.
— Minha Nossa! Onde você esteve?
— Eu não sei os nomes dos lugares.
— Pântanos, parece. Ah, que coisa. — Ela passou as mãos
na gola. — Era um tecido de ótima qualidade, antes de virar
este lixo. — Quando ela tocou a papoula, também tirou o
dedo num solavanco. — Estática?
— Há uma magia protetora na flor. Minha mãe fez isso. —
Papoula levantou-se, foi até a flor e a tocou, com ar triste.
— Não sabia o quanto era forte. Talvez tenha me protegido
daqueles animais.
— Animais? — perguntou mamãe. — Magia?
Eu chutei os pés de Papoula sob a mesa. Ele me olhou.
— Neste país, só criança pequena acredita em contos de
fadas
— eu disse.
— Alguém pôs um encantamento para confundir os
adultos?
— ele perguntou.
— Hum... — soltou Jeff.
— Você e Jeff são crianças? — Papoula perguntou.
Outra boa pergunta. Mamãe parecia estar esperando uma
resposta. Por sorte, alguém tocou a campainha. Olhamos
uns para os outros. Eu me levantei.
— Já volto.
Danny Ortega estava na porta.
— Ei, Becky — ele disse.
Eu tinha quase esquecido tudo o que acontecera naquela
manhã e fiquei ali, olhando-o. Ele tinha o melhor dos
sorrisos.
— Perdeu alguma coisa? — ele perguntou.
— Ahn?
Ele me estendeu uma bola de basquete vazia. O nome
SILVER estava escrito com tinta preta indelével.
— Ai, a minha bola! Vazia! Talvez dê pra enchê-la de novo.
— Alguém está furioso com você, hein? — Ele virou a bola
e mostrou que tinha sido cortada com faca.
Meu estômago apertou.
— Shoog Kelly.
— O que eu sempre digo? Por que você não me chamou?
— Era muito cedo.
— Ele te machucou?
— Não. Eu joguei a bola com força na barriga dele e fugi.
— Não conseguiu te machucar, então estragou a bola. Eu
vou ter uma conversa com aquele machão. Ele é um
tremendo mau caráter. — Ele olhou abola de novo. — Não
tem mais conserto.
Eu peguei a bola e abracei-a. O Natal estava chegando. Eu
provavelmente poderia pedir ao papai que me desse
qualquer coisa, talvez até aquela bola Wilson com listras
vermelhas, brancas e azuis. Eu já tinha descoberto, no meu
aniversário e no do Jeff, que a culpa pelo divórcio os
motivava muito a nos dar presentes. Contudo, minha velha
bola tinha sido grande companheira. Me ajudou a jogar bem
com outras pessoas.
— Obrigada por trazê-la de volta.
— Por nada. Queria ter certeza de que você estava bem,
irmãzinha. — Ele fez um carinho na minha cabeça.
Irmã. Suspiro.
— Você quer uma panqueca? — A frigideira já devia estar
fria àquela altura, mas eu ainda tinha massa pronta. Bem.
Não era a primeira vez que Danny tomava café na minha
casa.
— Claro! — Ele me seguiu até a cozinha.
Jeff deu um copo de água para Papoula.
— Mostre pra mamãe aquilo que você fez antes — ele
pediu. — Aí ela vai acreditar em você.
— Não! — eu disse. Larguei a bola de basquete e corri até
ele. Papoula examinou meu rosto, pôs o copo na mesa,
olhou além
de mim.
— Oi pra todo mundo — cumprimentou Danny.
Segurei a respiração. Qual era a do Jefí? Ele não devia pedir
ao Papoula que se revelasse. O que mamãe faria se
descobrisse? Se Jeff e eu já ficamos chocados na primeira vez
que vimos Papoula falando com a água, mamãe teria um
troço e cairia dura.
Ao menos Papoula me ouvia.
— Papoula, esse é o meu amigo Danny. Danny, esse aqui é
o Papoula.
Papoula se levantou e estendeu a mão.
— Prazer. — Danny apertou a mão de Papoula.
— Olá, Danny — cumprimentou mamãe, sua voz
desafinada.
— Ei, Thea. Tudo bem?
— Bem, Danny — disse mamãe. — Em geral, bem, mas
agora estou com um problema. Ou esse menino está
mentindo, ou ele é doido, e por alguma razão meu detector
de mentiras não está funcionando muito bem.
Danny inclinou a cabeça e examinou Papoula.
— Ele não está mentindo nem é doido — afirmou Jeff.
— O que é isso? — perguntou Papoula, apontando.
Olhei para baixo e fui pegar a pobre da minha bola de
basquete murcha. Eu a peguei e entreguei ao Papoula.
— Ah — exclamou ele. Seus dedos passearam pelo corte, e
suas sobrancelhas pontiagudas se ergueram. — Foi o Shoog
que rasgou?
— Foi.
— Ela é sua arma.
— Não, é meu brinquedo.
— E sua amiga. Ela nos protegeu. — Ele passou as pontas
dos dedos delicadamente sobre a bola. — Não está
totalmente destruída. — Ele murmurou qualquer coisa na
língua do lalalá, sorrindo para ela e passando os dedos em
cima do rasgo. O rasgo começou a virar um borrão,
amoleceu e se refez. Eu sacudia a cabeça, pensando se
realmente estava vendo aquilo. Pisquei os olhos. O corte de
faca tinha sumido.
Olhei para mamãe. Ela esfregava os olhos, olhava fixo.
— Como ela respira? — Papoula perguntou a si mesmo. —
O ar entra na bola e fica. — Ele virou a bola, seus dedos
traçando espirais no couro, até que achou a válvula. — Ar,
entre na bola — ordenou.
A bola inflou.
Ele abateu no chão. O som de um pulo. Sorriu e jogou-a
para mim. Eu levantei o braço e a segurei.
— Caramba — exclamou Danny.
Mamãe piscava os olhos sem parar.
— Cara — disse Jeff.
Papoula olhou para ele, depois para mamãe e Danny.
— Mais uma coisa que vocês não fazem. — Seu sorriso
murchou.
— E bom — disse Jeff. — Tudo bem. Faz mais coisas assim
pra mamãe ver. Mãe, você não pode mandar o Papoula
embora, tá? Quando ele diz que está perdido, é perdido
mesmo, entende?
— Não — mamãe sussurrou.
— Você é um mágico? — Danny perguntou ao Papoula. —
Você faz outros truques?
Papoula pensou um pouco, me olhou mais uma vez, suas
sobrancelhas me inquirindo.
— Eu não acho que...
— Um mágico — mamãe murmurou. Ela assentiu.
— Mágico é quem trabalha com magia? — perguntou
Papoula. — Talvez seja isso. Não parece ser bem isso.
— Você não é mágico — protestei. O mágico faz magias
falsas. Truques. Ilusões. Não é o que você faz, Papoula.
— O que você fez, isso era outra língua, não era? — Jeff
apontou para a bola.
Eu a abracei.
— A língua da cura, a língua do ar — explicou Papoula.
— Outras línguas — sussurrou mamãe.
— Ele sabe falar com a água, mãe. Aposto que ele também
sabe falar com o fogo e a terra — declarou Jeff.
— O ar e a terra não são iguais aqui — expliquei
lentamente ao Papoula. — Mas mesmo assim você pode
falar com eles.
— Sim.
— Eles atendem você assim.
— Sim.
— Mais cedo você estava dizendo que queria mandar uma
mensagem para o seu pai.
— Sim.
— Você poderia mandar com isto? — Pus minha bola no
chão, peguei o saleiro, abri e joguei o sal na mesa.
— Eu...
Dei a ele o saleiro vazio e a tampa prateada.
— Você disse que seu pai é humano. Mas ele pode vir lhe
buscar se você mandar uma mensagem?
— Minha senhora também deu a ele poderes de passagem.
— Do que você precisa pra mandar a mensagem?
— Eu preciso de um objeto que escorregue pelos portais,
pelos mundos. — Ele olhou para o saleiro. — Há uma língua
para convencer o objeto a ir a um lugar e dizer a ele como
ir. Preciso de um pedaço daqui, que só possa ser daqui, para
que o portal saiba onde pode abrido. Papel. Algo com o que
escrever. E sorte.
Peguei o bloco e a caneta de minha mãe e entreguei a ele.
— Um pedaço daqui? — Jeff pensou alto. Olhou em volta,
pegou um pedaço de panqueca das que estavam no meu
prato, deu-o a Papoula.
Ele se sentou. Cheirou o pedaço de panqueca, sorriu para
Jeff e o enfiou dentro do saleiro. Ele tocou o papel e
assentiu, olhou para a caneta e depois para mim. Peguei a
caneta da mão dele e mostrei como ela funcionava. Ele
sorriu, se inclinou para a frente e escreveu no bloco. Talvez
fossem letras que brotavam da ponta da caneta, mas não se
pareciam em nada com algum alfabeto que eu já tivesse
visto. Mamãe observava Papoula, seu rosto lívido.
Danny se aproximou de mim, estendeu as mãos. Dei a ele
minha bola. Ele a virou. Meu nome ainda estava lá; fora
isso, ela parecia novinha em folha. Ele balançou a cabeça,
bateu na testa duas vezes e balançou a cabeça de novo. Ele
me devolveu a bola e segurou minha mão.
Ele nunca tinha feito isso antes. A mão dele era quente,
grande e seca. Na minha cabeça passavam as palavras Sinta
bem isso. Lembre-se sempre disso.
Papoula acabou de escrever, arrancou o papel do bloco,
correu os dedos pela página. As letras ficaram prateadas e
brilharam.
Danny apertou minha mão na sua, relaxou depois que eu
pensei que talvez meus ossos tivessem sido triturados. Olhei
para o rosto dele. Estava inexpressivo.
— Papoula — chamou mamãe.
— Sra. Silver. — Ele deixou a mensagem na mesa,
endireitou--se e olhou nos olhos dela.
— Só as crianças acreditam em contos de fadas.
— Sempre?
Ela engoliu em seco. Uma lágrima escorreu.
— Dói acreditar.
— Por quê?
Ela contraiu os lábios.
— Se você existe, por que outras coisas não podem existir?
Se você pode mandar mensagens de um mundo para outro,
por que eu não posso falar com minha filha de novo?
Meu coração doeu.
— Você pode falar com sua filha. — Ele olhou para mim.
— Minha outra filha, que morreu.
Silêncio. Por fim, ele disse:
— Por esse portal eu nunca passei.
— As pessoas atravessam esse portal?
— Todo mundo atravessa, mas eu nunca conversei com
alguém que tenha voltado.
Mamãe começou a soluçar. Seus ombros sacudiam e ela
engolia em seco. Papoula tocou seu joelho. Ela fechou os
olhos e jogou a cabeça para trás. Lágrimas rolavam em
quantidade.
Eu não sabia o que fazer. No enterro de Miriam, eu não
conseguia pensar em nada além das formas em que ia sentir
saudades da minha irmã, e todas as coisas nela que me
deixavam furiosa. Eu me afundei na minha própria tristeza.
Senti vontade de morrer também.
Não tive tempo ou energia para pensar em como mamãe
estava se sentindo.
Minha tristeza voltava às vezes, mas não era com a mesma
intensidade e não durava tanto. Eu já tinha passado por
aquilo.
Eu já sabia que podia ficar triste e depois me recuperar. Eu
podia deixar a tristeza ir e vir.
Tudo o que eu sabia a respeito de como mamãe estava
lidando com a morte de Miriam era que ela tinha deixado
de fazer uma porção de coisas que fazia antes e que eram
muito importantes para ela, como cuidar de estranhos, por
exemplo.
Ela segurou a mão de Papoula em seu joelho e cobriu os
olhos com a outra mão. Após alguns minutos, parou de
soluçar e se recompôs.
— Me desculpem.
Ele apertou a mão dela, depois soltou.
— Preciso mandar este recado. Sei que meu pai está
preocupado comigo. Espero que dê certo.
— Sim.
Ele dobrou o papel como se estivesse fazendo uma espécie
de origami, num formato pequeno e complicado. Colocou-o
no saleiro e atarraxou a tampa, depois fechou as duas mãos
em volta do vidro e falou com ele em sflabas brandas na
língua do lalalá. O saleiro mudou de forma. Primeiro, ele
tomou uma forma ovalada, meio prateada, meio vítrea,
depois um brilho de arco-íris o cobriu, até que ficou difícil
de olhar. Meu olhar se desviava dele.
Jeff tentou segurar a mão de Papoula. Porém a forma
ovalada tremia, balançava para lá e para cá e depois deslizou
com um apito rouco, como um trem a distância.
— Ela fechou os portais pra mim, mas isto não sou eu —
Papoula disse. — Talvez a mensagem consiga passar.
Trinta segundos depois, um homem e uma mulher se
materializaram na cozinha. Eram menores, mais magros e
mais miúdos que a maioria das pessoas adultas que eu
conhecia, mas dava para ver que não eram crianças. O
homem não usava chapéu, tinha cabelos castanhos
compridos e olhos azuis acinzentados.
Ele pareceria comum se não estivesse usando cota de malha
e uma capa verde-oliva, e não tivesse um disco prateado
como que tatuado na testa. A mulher era mais baixa que eu,
talvez tivesse menos de um metro e meio de altura. As
pontas de suas orelhas apareciam por entre a vasta cabeleira
negra, e ela tinha olhos azuis prateados como Papoula. Suas
roupas pareciam mais uma trepadeira estranha e escura
enrolada no corpo do que um tecido.
O homem e a mulher irromperam numa enxurrada de
palavras na língua do lalalá enquanto corriam até a mesa e
abraçavam Papoula juntos. Papoula tinha uma expressão tão
feliz que eu não conseguia olhá-lo por muito tempo. Então
apertei a mão de Danny e fiquei olhando para o chão.
A mulher se afastou um pouco e pegou o rosto de Papoula
em suas mãos com longos dedos. Ela beijou sua testa, depois
o repreendeu. Ele concordou com a cabeça, assentindo
várias vezes, depois se virou e o homem o abraçou,
murmurando coisas e também sorrindo.
Demorou uns cinco minutos até que algum deles erguesse os
olhos. O homem acariciou a cabeça de Papoula e depois,
ainda sorridente, olhou para mim e para Danny.
Apenas aquele olhar, apenas aquele sorriso, e eu senti como
se estivéssemos envoltos num manto quente de aprovação,
amor e respeito. Era um sentimento intenso de amor
paterno. Não sei por que pensei que era isso, pois nunca
senti algo assim vindo do meu pai. Mas eu sabia.
Danny relaxou ao meu lado. Fez que sim com a cabeça. O
homem respondeu ao gesto, depois sorriu para Jeff e
mamãe. Os dois se mexeram na cadeira.
O homem segurava Papoula pelos ombros, acariciava seus
braços. Disse alguma coisa para Papoula, ele olhou para nós
e por fim falou:
— Este é o meu pai! — Sua voz estava trêmula.
— Eu já tinha imaginado — disse. Minha voz também
estava meio embargada.
— E esta é a minha mãe. Eles estavam me procurando
juntos. Eles nunca fazem nada juntos!
A mulher deu tapinhas na bochecha de Papoula, passou os
dedos na boca dele e depois olhou para todos nós. Ela sorriu,
mas seu sorriso parecia mais um daqueles que se dá quando
alguém vai tirar uma fotografia e você não está muito a fim.
Ela falou.
— Ela disse que está muito agradecida por vocês terem cui-
dado de mim — traduziu Papoula.
— Não tem de quê — disse mamãe. A voz dela estava
embargada.
O pai de Papoula se voltou para mamãe. Ele perguntou
alguma coisa e Papoula respondeu. O pai soltou a mão de
Papoula e foi até mamãe. Segurou as mãos dela e ficou
olhando em seus olhos. Mamãe chorou, não soluçou, eram
apenas lágrimas escorrendo, e olhava nos olhos dele. Meu
coração ficou em pedaços.
O homem murmurou alguma coisa.
Papoula disse:
— Meu pai disse que não sabia se eu estava morto ou vivo,
mas que agora eles me encontraram, e havia pessoas
cuidando de mim. Ele disse que talvez do outro lado dos
portais haja alguém cuidando de sua filha também.
O homem apertou as mãos de mamãe. Ela fechou os olhos,
piscou para afastar as lágrimas e sorriu para o homem.
— Eu espero que sim — murmurou.
Ele pôs a mão no rosto dela e ficou olhando-a por um
tempo. A mulher falou mais uma vez. Papoula assentiu.
— Obrigado. Obrigado. Mamãe disse que se sente estranha
aqui e que não tem certeza se este é um lugar seguro para
ela, e ela quer me levar pra casa e... cozinhar para mim. Ela
não cozinha. Quer dizer, ela nunca cozinhou pra mim. O
quê?
O pai dele se afastou de mamãe, voltou para Papoula e a
mulher, abraçou os dois e falou:
— As energias são estranhas e os portais podem se
deformar, então temos de ir embora — traduziu Papoula. —
Eu não posso passar pelos portais sozinho e fazêdos
funcionar, mas meu pai e minha mãe podem me levar em
segurança. — Ele se soltou dos braços do pai e veio até mim.
— Becky, obrigado por salvar a minha vida. — Segurou
minhas mãos com firmeza e beijou meu rosto. Outro
contato formigante, tanto das mãos como dos lábios.
— Danny. — Ele beijou Danny no rosto. —Jeff. — Ele
beijou Jeff no rosto. — Sra. Silver. — Ele beijou mamãe no
rosto. Danny e Jeff ficaram em estado de choque, mas
mamãe acariciou o rosto de Papoula e sorriu para ele.
Sua mãe tinha descoberto as roupas dobradas e fedendo
sobre a mesa, disse alguma coisa que não parecia muito boa
e bateu com os dedos nelas. De repente, ficaram limpas. A
cozinha ficou com cheiro de jasmim e raios de sol.
— Posso ficar com suas roupas? — Papoula me pediu.
— Claro. — Minha voz ainda estava bem aguda.
Papoula pegou suas roupas velhas e trouxe-as até mim,
colocou-as nos meus braços.
— Você quer as minhas? Nós somos quase do mesmo tama-
nho, não é? E a única coisa que tenho pra dar.
— Claro que quero — respondi.
Ele me abraçou e correu para os pais. O pai disse alguma
coisa gentil para todos nós. A mãe e o pai seguraram a mão
dele e o pai disse mais alguma coisa. A coisa prateada que
havia em sua testa brilhou, e os três foram para lugar
nenhum.
Apertei as roupas de Papoula contra o meu peito. Raios de
sol, jasmim, um toque de baunilha. A lama de outros
mundos havia sumido.
As roupas pareciam algo que eu encontraria no shopping.
Pressionei a papoula bordada contra meu rosto, e ela fez um
zumbido na minha pele. Não, não pareciam, não.
— Isso foi... Isso... Ele estava mesmo aqui? — mamãe
indagou. Ela olhou fixo para o prato onde ele tinha comido.
Apenas restos e uma poça de melado. — Alucinação
coletiva? — ela murmurou.
Danny disse:
— Ele me beijou. Ele me beijou.
— Ele também me beijou — disse Jeff. E fez uma careta.
— Ele era de outro planeta — comentei. — Talvez isso
signifique outra coisa lá.
— Nunca contem a ninguém — declarou Danny. —
Nunca.
— Eu não vou contar. — Segurei a mão dele. — Você
também não pode falar com ninguém sobre ele, está bem?
Ele ergueu as sobrancelhas.
— Ah. Claro. — Ele olhou a cozinha. — Ah. Claro. Ainda é
sábado de manhã? Estou me sentindo como se tivesse caído
em outro lugar.
Fomos todos até a janela da cozinha e olhamos para fora. O
sol brilhava no quintal. Pássaros faziam barulho na
castanheira desfolhada. Havia poças da chuva do dia
anterior ao redor dos canteiros de flores. Nosso quintal de
inverno.
— Sábado — disse mamãe, as mãos apertadas contra a face
onde o pai de Papoula a tocara. — Parece que se passaram
anos. — Ela foi até a pia, jogou água no rosto, pegou uma
toalha e se secou, depois olhou para o relógio. — Ai, meu
Deus, já é quase meio-dia. Tenho de estar no Índia Palace
para almoçar com Ari em cinco minutos.
Ela se agarrou à beirada da pia e vacilou. A cor voltava e saía
de suas faces.
— Mamãe? Você está bem?
— Não sei. — Ela se virou para me olhar. Seu rosto estava
tranquilo, relaxado. — Não consigo acreditar que tudo isso
aconteceu. Mas já me sinto melhor.
Fui até ela, arrastando Danny comigo.
— Veja. — Eu lhe estendi as roupas de Papoula.
Ela tocou a papoula. Sua mão se afastou com a vibração.
Nossos olhares se encontraram.
— Proteção — disse ela. Sorriu. — Você veste para eu ver?
— Claro.
— Por que vocês não vêm todos almoçar comigo? Deem-
me esse prazer. Eu sei que não faz muito sentido, mas não
queria ficar longe de vocês agora.
— Vou para casa — disse Danny.
— Não. Venha conosco, Danny. Por favor.
Ele hesitou.
— Tudo bem.
Eu me meti no armário do corredor e vesti a camisa de
Papoula. A papoula dava uma sensação de calor agradável.
Meu rosto vibrava. Minhas mãos formigavam. O calor
tomou minha pele. E abracei a mim mesma. O dia tinha sido
o mais estranho e agradável possível. Ainda era um tesouro
novo demais para que eu soubesse o que tinha encontrado, e
a perda ainda era recente demais para que doesse de
verdade.
O que tinha acontecido?
Alguma coisa que sacudiu nosso mundo.
Já tinha acabado?
Pressionei minha mão contra a papoula e tive certeza de
que não.
— Becky? — mamãe chamou. — Vamos.
Vamos.

Nina K i k i k i Hoffman é autora de seis romances


aclamados, entre eles, A Stir of Bonés (Viking). Ela também
escreveu e vendeu mais de duas centenas de contos para
antologias e revistas.
Seus contos e romances já foram finalistas dos prêmios
Nebula, World Fantasy e Endeavor. Seu livro The Thread
That Binds the Bones ganhou o prêmio Bram Stoker de
romance de estréia, e seu conto "A Step Into Darkness"
venceu o prêmio Escritores do Futuro em 1984.
Nina Hoffman vive em Eugene, Oregon, com gatos, amigos
e vários brinquedos esquisitos.

Nota da Autora
"Destroços" é um fragmento de uma obra maior. Há muito
tempo que venho contando a mim mesma histórias sobre
Papoula e seus pais no mundo em que eles nasceram. Há
dragões, princesas perdidas, seres que mudam de forma,
campos e cidades tomados por magia negra e pedaços da
terra das fadas em outras partes da história, mas eu sabia que
em algum ponto Papoula acabaria na Terra, e eu adoro
histórias de estrangeiros que chegam aqui de alguma forma,
como eles veem a nossa cultura e como resolvem lidar com
ela.
Gosto muito de Becky, e me pergunto como esse contato
com magia vai mudar sua vida.
Laurel Winter
A Mulher Voadora

Os barcos se agitavam na superfície do mar, aguardando a


hora de partir. O chefe Loah segurava o ombro de Raff com
uma mão e com a outra
puxava o rosto de Dannilla para cima.
— Jurem que não usarão seus poderes antinaturais para ir
embora desta ilha — ele disse. — Jurem pela vida de seu pai.
Seus dedos apertavam o queixo de Dannilla. O pai deles
estava sentado num dos barcos, o rosto brilhando com
lágrimas.
— Eu juro — ela disse. — Eu juro. Por favor, não o
machuque. Raff permaneceu em silêncio e respirou fundo ao
sentir a mão
do líder se fechar em volta do seu braço.
— Eu juro.
O líder o empurrou com força e soltou Dannilla. Ela caiu de
joelhos no mar, com os olhos turvos.
Antes mesmo que Raff pudesse recuperar o fôlego e sentar-se
de novo, o chefe Loah, o pai deles, os outros homens e barcos
já estavam pequenos e distantes. Depois sumiram.
Raff ficou sentado, massageando o próprio ombro por um
bom tempo. Dannilla sentia que o mar e a praia se tornavam
maiores a cada batida do seu coração, e sentia-se apequenar.
Não queria fazer a pergunta ao irmão, pois o que aconteceria
caso ele não soubesse a resposta? Finalmente, quando já se
sentia do tamanho de um grão de areia, não pôde mais evitar
a questão.
— O que vamos fazer? — indagou, a voz carregada de medo.
Raff a olhou e sorriu.
— Vamos explorar — ele explicou. — Achar comida.
Construir um abrigo. Fazer magia.
— Mas nós prometemos — ela contestou.
Ele balançou a cabeça.
— Prometemos não usar magia para fugir da ilha. — Ele
sorriu novamente, e dessa vez pareceu um sorriso genuíno. —
Encontre um pouco de magia pura.
— Mas e a mamãe? E aquela promessa?
Raff fechou os olhos por um momento.
— Eu prometi que esconderia meu poder de fazer magia o
melhor que pudesse, para que os outros não descobrissem —
ele observou com uma voz surpreendentemente jovial. — Nós
dois tentamos ser cuidadosos, não tentamos?
Dannilla concordou. Em geral, Raff só tinha feito magias
pequenas: fortalecer armadilhas, chamar mais animais
rastejadores para fora dos esconderijos para obter um cozido,
fazer frutas amadurecer. Longe dos outros. Contudo, não tão
longe assim, como haviam descoberto.
Ele continuou.
— Mas agora eles sabem. Aquela promessa não vale mais.
Podemos fazer magia quanto quisermos, quando quisermos.
Encontre um pouco de magia pura para mim.
Dannilla sentiu um estremecimento delicioso a percorrê-la.
Ali, eles não precisavam mais se esconder; essa era a
vantagem de terem sido apanhados.
— O que vai fazer? — ela perguntou.
— Você vai ver.
Eles sempre haviam agido juntos — Dannilla achava a magia
pura; Raff a usava. Por alguma estranha razão, ele não
conseguia perceber a magia pura. Ela podia, como se fosse
uma flor perfumada que não sabia como colher. Ela se virou
devagar e deixou a mente procurar. Vestígios de magia
estavam por toda a parte; ninguém a usava naquele lugar fazia
muito tempo, se é que alguém já havia usado. Um pouco mais
longe da praia, parecia mais profunda e mais rica.
— Aqui — ela afirmou.
Quando ele chegou ao lugar apontado por ela, ajoelhou-se,
estendeu as mãos e deixou que seus dedos abertos em leque
absorvessem a magia. Ondulações começaram a fluir pelas
suas mãos e pulsos até seus braços ficarem cobertos até o
cotovelo de magia pura, translúcida e brilhante.
Dannilla adorava essa parte. Raff ia reunindo a magia até a
irmã assentir para ele, avisando que já havia o bastante.
Com muito cuidado, ele levantou as mãos e ficou em pé.
Dannilla não conseguiu evitar se mexer um pouquinho. O que
ele ia fazer? Ele mexeu os lábios, falando silenciosamente com
a magia pura, depois estalou os dedos para a frente.
Gotas de luminosidade pularam. Ar cintilante! Antes, quando
a magia tinha de permanecer em segredo, Raff só gerava
pequenos espasmos de brilho, e mesmo isso era uma raridade.
Fragmentos coloridos caíram como chuva e ela se juntou a
ele, dançando loucamente enquanto o ar dançava ao seu
redor. Raff apenas ria e observava. Dannilla saltava e
rodopiava até os brilhos empalidecerem e desaparecerem,
deixando-a ofegante na areia.
— Venha — ele a chamou. — Temos de ver onde vamos
ficar. — Pegou a pequena bolsa com comida e água que
haviam deixado para eles e partiu.
Dannilla o seguiu, desejando que ele fosse mais devagar ou ao
menos esperasse que ela descansasse um pouquinho, mas as
sombras se estendiam ao seu redor e ela não queria que as
trevas chegassem antes que encontrassem um abrigo.
Algumas cavernas que pareciam mais agradáveis se ocultavam
nas laterais dos despenhadeiros, mas nenhum deles queria
começar a escalá-los àquela hora do dia.
— A gente podia construir uma casa numa árvore —
Dannilla sugeriu, apontando para a floresta exuberante que
escorria pelas montanhas a leste dos despenhadeiros.
Raff parou e olhou-a, os olhos castanhos bem abertos.
— Você é quase tão inteligente quanto seu irmão. Vai ser
uma casa na árvore.
Entretanto, nenhuma das árvores possuía galhos longos, então
eles acabaram construindo uma plataforma entre três árvores
— com a ajuda da magia pura que havia aflorado à superfície.
Tiveram de erguer e amarrar com trepadeiras as três
primeiras toras. Era uma estrutura pouco segura, na verdade,
mas Raff usou magia para fazer crescer galhos novos das
extremidades das velhas toras e para curvá-los ao redor das
árvores que serviam de apoio.
Depois disso, foi relativamente fácil colocar mais toras na
transversal do triângulo. A escuridão os circundou, mas Raff
ainda levou alguns minutos para fazer as trepadeiras crescer
por cima e por baixo das toras, juntando umas às outras para
servir de base e apoio com as árvores.
— Amanhã pensaremos num telhado — ele disse, a voz
rouca de exaustão, tanto de fazer magia como de levantar
toras, imaginou Dannilla. Ela mal conseguiu se arrastar até a
plataforma para engolir uns pedaços das frutas que havia na
sacola. As toras não eram exatamente confortáveis, mas as
trepadeiras ajudavam, de certa forma. Ela não passou muito
tempo se revirando antes que a noite de veludo se esgueirasse
para dentro de sua mente.
Acordou com fome e sede. Raff ainda dormia, um braço
pendendo para fora da plataforma. Dannilla revirou a sacola.
Eles não tinham sido generosos: muitas frutas ainda verdes,
um pouco de pão embrulhado em folhas secas e uma jarrinha
de água. Nada de doces, nada de carne. "Bem, não precisamos
disso", pensou Dannilla. "Nós somos aqueles que sempre têm
uma presa na armadilha." Ela atirou uma fruta numa árvore
próxima.
Pássaros explodiram de lá, piando alto. Raff sentou-se
rapidamente, os olhos amedrontados. Dannilla pediu
desculpas e lhe ofereceu metade do pedaço de pão.
— Vamos fazer uma armadilha — ela sugeriu, pulando da
plataforma. — Estou com fome de comida de verdade. — O
pão estava gostoso, mas não havia suficiente para uma
refeição.
Depois de tomarem direções diferentes para fazerem suas
necessidades, começaram a caçada. Dannilla manteve os
sentidos alertas para encontrar alguma magia pura e
selvagem, que seria necessária para Raff acender um fogo que
não se apagasse. Não encontrou nada. Teriam de contentar-se
em usar os métodos convencionais para acender o fogo e,
então, esperar que desse certo.
Armaram a primeira armadilha numa moita de capim grosso,
não muito longe da casa na árvore. Raff reforçou os troncos e
colocou um dos frutos da sacola no meio da moita — mas fez
com que ele parecesse mais saboroso, mais maduro,
explodindo de suco adocicado. Quando ele e Dannilla se
afastaram um pouco, acionou a armadilha.
Prepararam várias outras armadilhas, uma delas com uma tora
magicamente equilibrada, um tronco capaz de esmagar a
espinha de um porco ou outro animal de porte grande.
Aí voltaram para a primeira armadilha, com o estômago
roncando.
Ouviram sons de luta a certa distância. Sucesso. As longas
pernas de Raff o ajudaram a chegar lá primeiro, mas Dannilla
veio logo depois.
Normalmente, armadilhas pequenas pegavam animais
pequenos. De alguma forma a armadilha havia se enrolado em
volta da cabeça e do pescoço de um veado que tinha sido
atraído pela fruta. O agitado animal se debatia, pulava e
cavava um buraco no chão para tentar sair, mas continuava
preso.
— O que a gente faz agora? — perguntou Dannilla, ainda
ofegante.
Raff não respondeu de imediato.
— Se eu tivesse uma faca afiada, poderíamos cortar o pescoço
dele.
— Então faça uma — disse Dannilla. — De qualquer modo,
vamos precisar de uma pra cortar o bicho em pedaços.
— Não é assim tão fácil. — A voz de Raff parecia zangada.
O veado se debatia ainda mais enquanto eles conversavam,
mas a armadilha resistia. Dannilla começou a ficar com medo.
Os animais que eles normalmente apanhavam com
armadilhas eram pequenos, qualquer baque com uma pedra
em seus crânios era suficiente para abatê-los. E antes eles
sempre levaram as presas para onde houvesse ótimas facas de
pedra para cortar a carne — e adultos que sabiam como fazê-
lo. Nem tudo podia ser feito por meio de magia, ela percebeu.
Ou podia, mas Raff não sabia como. A mãe não tivera tempo
de ensinar-lhe tudo antes de morrer.
O bicho lutava, sua respiração saindo com dificuldade.
— Já sei — gritou Dannilla. Puxou uma trepadeira de um
galho suspenso e se aproximou da armadilha.
Assim que entendeu o que ela planejava fazer, Raff a ajudou.
Também era uma boa ideia, já que não seria simples
estrangular o veado com a trepadeira. Ambos acabaram
machucados, mas o combativo animal finalmente cedeu.
Raff o soltou da armadilha mágica e ambos ficaram olhando o
corpo macio deitado aos seus pés.
Pedras pontudas pouco ajudaram. Pedaços de pau afiados não
funcionaram. Por fim, Raff perdeu a paciência e pôs fogo no
animal. Ou pelo menos tentou. As chamas crepitavam e
apagavam, todas as vezes. Até que o fogo pegou.
Dannilla se afastou do cheiro de pelo queimado e da fumaça
que fazia os olhos arder. Ela gostaria de carregar o bicho até o
círculo de choupanas e pedir a Kamessa que cortasse o animal
com sua faca de lâmina preta e o descarnasse. Ela levaria as
tripas do animal num carrinho feito de folhas de malek e as
enterraria. Queria também poder ver o animal estalando na
fogueira, receber a pequena porção que eles ofereciam às
crianças e, mais tarde, o que ela conseguisse tirar da carcaça,
quando os adultos tivessem comido sua parte e se saciado.
Piscou os olhos para evitar chorar. Agachou-se e ficou
olhando o veado queimar tremeluzente, em meio a uma
camada de lágrimas.
Um pouco depois, Raff aproximou-se dela.
— Aqui — disse ele, entregando-lhe um naco de carne que
havia retirado de um dos flancos do veado com uma pedra
afiada. Em seu rosto havia traços pretos, e ela notou que ele
tinha queimado os dedos. Ele não disse nada sobre suas
lágrimas, então ela enxugou o rosto e olhou para a carne.
Estava quente, com pelos queimados e pele ainda grudados à
carne tostada. Dannilla comeu, retirando os pelos da língua.
Quando havia ingerido a parte comestível, foi até a carcaça
fumegante e arrancou outro pedaço.
A maior parte da carne estava destruída, mas os dois
conseguiram encher a barriga. Ao acabarem, puxaram o corpo
queimado para longe da casa na árvore.
Na volta, banharam-se no riacho. Dannilla se sentia cansada e
dolorida. Será que todos os dias seriam assim? Ela jogou água
no rosto e nos braços. Um machucado grande na canela
esquerda marcava seu encontro com o veado. Sentia saudades
do pai. Jogou mais água no rosto para esconder as lágrimas.
— Já sei — gritou Raff, saindo da água. Correu até a sacola de
comida e ergueu a última fruta da sacola, triunfante. Dannilla
ficou olhando-o. — Encontre magia pura.
Eles já tinham consumido a maior parte de magia pura
disponível naquela área, e não houvera tempo suficiente para
ela se restabelecer, mas Dannilla achou um pouco mais
adiante. Raff ajuntava com uma mão, enquanto com a outra
segurava a fruta. Quando já coletara bastante, ele colocou a
fruta no chão, perto da casa na árvore, e pingou magia sobre
ela.
A fruta estremeceu, despedaçou-se e renasceu. Um caule
cresceu, logo se transformando em tronco. Galhos frondosos
começaram a surgir, flores brotaram, floresceram e tornaram-
se frutos. Raff se desvencilhou do resto da magia pura e o
encantamento cessou. Ele pegou a polpa de uma fruta
carnuda e entregou-a a Dannilla.
Era uma delícia após o churrasco queimado. Ela lambeu o
suco da fruta que restara em seus dedos e subiu até a
plataforma. As copas de folhas formavam um teto verde —
um teto, ela sabia, que deixaria a chuva respingar sobre eles. E
também precisavam de paredes, ou o vento úmido os
encharcaria quando soprasse lateralmente. Folhas de malek
costuradas umas às outras ou coladas com resina de árvore
poderiam ser boas para um abrigo temporário, mas secavam e
rachavam. A não ser que pudessem ser mantidas crescendo...
Fazer folhas de malek germinar nos galhos de outras árvores
— Raff não achava fácil, mas funcionava. Agora eles tinham
uma casa.
Criaram uma rotina de vida. Passavam as manhãs examinando
o terreno e colocando armadilhas. A noite, limavam as pontas
de pedras e conchas, tentando aperfeiçoar as lâminas que
usavam para cortar as carnes. Nos intervalos, colhiam frutas,
nadavam ou exploravam a ilha, e Dannilla descobria poças,
fontes e veios de magia pura.
Ela ainda se surpreendia por Raff não conseguir senti-la, e por
ninguém que ela conhecesse também ser capaz disso. Sua
lembrança mais remota era a de quando aprendera a andar,
cambaleando em caminhos tortos para não pisar nos lugares
onde a magia era mais intensa.
A mãe conseguia vê-la e usá-la. Havia ensinado a Raff magias
secretas, descobrira seu talento e lhe apontava onde havia
magia pura, até que sangrou até morrer no nascimento de
Dannilla. Sua magia não a salvara.
Às vezes Dannilla se perguntava se ela teria mais saudades da
mãe do que Raff, mesmo não a tendo conhecido. Mas claro
que isso parecia impossível, já que ele tinha sete anos quando
a mãe morrera, idade suficiente para possuir lembranças
fortes na memória. Quando estava de bom humor, ele
contava a Dannilla histórias daqueles tempos, bons tempos,
quando ele e a mãe trabalhavam com magia juntos na floresta,
longe de todo mundo.
Após erguer as paredes e o telhado da casa na árvore, quando
se deitaram na escuridão verde, esperando o sono chegar, Raff
esteve num desses momentos de bom humor.
— Eu imagino se nossa mãe veio de um lugar como este. Ela
não era como os outros, nem como papai, embora se parecesse
mais com ele do que com qualquer outra pessoa. — Dannilla
ouviu um farfalhar de trepadeiras e imaginou que o irmão
estivesse tentando enxergada na escuridão, ver seu rosto fino
e vigoroso, seus cabelos ondulados e castanhos e sua pele da
mesma cor. — Mamãe era como você. Dannilla sentiu uma
ponta de orgulho.
— Ela era parecida comigo?
— Não — ele explicou, rindo. — Você é que se parece com
ela. — Ele se parecia com o pai e o resto das pessoas, alto e
bronzeado, cabelos pretos lisos. — Ela me mostrou a magia
pura e me ensinou a usada. Papai estava sempre feliz. Ele, às
vezes, voltava da caçada no meio do dia só para poder ficar
com ela. Os outros homens riam e debochavam dele, mas
mamãe era uma raridade. — Sua voz fraquejou e o silêncio
preencheu a escuridão. Dannilla estava quase dormindo
quando ele falou de novo. — Eu quero ter uma mulher que
me faça querer voltar pra casa no meio de uma caçada, só para
rir com ela.
"Mas não há mais ninguém na ilha", pensou Dannilla, ao
deslizar para dentro dos sonhos.
Por algum tempo, eles até foram felizes, mas logo haviam
explorado a ilha, e as pedras já estavam todas afiadas. Raff pas-
sou a caminhar pelas praias, contemplando o mar, espantando
Dannilla com palavras ásperas caso ela chegasse muito perto.
Ele não contou mais histórias sobre a mãe — sobre mais nada,
aliás. Dannilla se sentia cada vez mais só.
A casa na árvore começou a ficar pequena e provisória.
— Vamos nos mudar para uma das cavernas — ela sugerira,
mais de uma vez. Raff assentia ou dava de ombros, mas não
queria fazer nada realmente.
E então o vento úmido começou.
Ele soprava com mais força ali do que no lugar de onde
tinham vindo, ou talvez eles tivessem construído a casa no
lugar errado. Rasgava até mesmo as folhas de malek vivas, e
golpeou os dois com frio, gotas grossas e pequenos destroços.
Um galho quebrado chicoteou no ar, cortando o rosto de
Dannilla. Até Raff parecia amedrontado ao tirada da
plataforma, puxando-a sob as toras. Dannilla não conseguiu
conter o choro. Raff deu-dhe um abraço apertado e um
sorriso fraco.
— Devíamos nos mudar para uma das cavernas — ele gritou,
mais alto que o som do vento.
Dannilla deixou escapar um riso em meio aos soluços e então
os dois começaram a rir juntos, apesar de estarem molhados e
infelizes.
Quando o vento abrandou, no dia seguinte — uma coisa
temporária —, eles escalaram as pedras úmidas para chegar à
caverna mais baixa.
— Esta aqui não serve — disse Raff, manuseando pedaços de
conchas que pegara do chão da caverna. — O mar vem até
aqui.
A próxima, penhasco acima, porém, sempre fora a preferida
de Dannilla.
— Venha ver — ela disse, virando uma curvinha mais atrás,
onde a água escorria pela parede rochosa.
Raff não foi. Ela deu uma olhadela de canto e o viu olhar
fixamente para o horizonte.
— Tem alguma coisa... — sua voz sumiu e ele ensombreceu
os olhos. — Tem alguém no mar.
Dannilla correu para a abertura e examinou o mar revolto,
turbulento após a noite de tempestade. Nada além de ondas.
Raff apontou.
— Ali.
Perto da praia. Alguns destroços.
— É só uma tora — ela anunciou. — Madeira flutuante. — E
foi aí que ela viu um braço e o que parecia ser uma onda, mas
agora havia se transformado em roupas. — Você tem razão.
Raff já tinha descido metade da encosta. Dannilla o seguiu
com cautela, o coração batendo tão forte como as ondas do
mar contra a praia. E se fosse o pai? Ou um dos outros do
povoado? A pessoa devia estar viva, ou seu braço já teria
soltado a tora de madeira. Não teria? Haveria mais uma pessoa
na ilha. Mesmo se fosse um estranho...
Quando Dannilla conseguiu transpor a encosta e descer para
perto da arrebentação, Raff já tinha mergulhado. Ele alcançou
a tora no exato momento em que o braço escorregava e a
pessoa desaparecia sob a superfície. Raff também desapareceu,
e Dannilla abriu aboca para gritar, mas não havia ar suficiente
em seus pulmões. E se ele não voltasse? E se ela ficasse
totalmente só na ilha, para sempre?
Mas ele voltou, arfando, nadando com um braço e segurando
alguém pelos cabelos. Não era o pai, pois tinha cabelo
comprido e claro. Estavam quase chegando à margem quando
Dannilla se enfiou na água e ajudou Raff a puxar o estranho
para a areia.
Estranha. Aquele ser não era uma mulher humana, mas
seguramente uma criatura do sexo feminino. Seios apareciam
através de rasgos na vestimenta molhada. Apesar de
machucado e cinzento pelo frio, o rosto parecia humano, mas
as grandes asas esfarrapadas que brotavam dos ombros, não.
Não dava para saber se aquilo — ela — estava viva.
— Me ajude — gritou Raff, a voz trêmula, de frio ou de
emoção; Dannilla não sabia o que era.
— A fazer o quê? — perguntou ela. A criatura estava deitada
a seus pés, aparentemente morta. Ela estremeceu.
— Encontre um pouco de magia pura. — Ele se ajoelhou e
massageou os braços e o rosto da estranha. — E também
madeira seca. Precisamos fazer uma fogueira.
Dannilla olhou ao redor. Não conseguia se concentrar, focar
sua atenção. Aqui e ali havia migalhas de magia pura, mas não
lhe pareciam adequadas. E não haveria um pedaço de madeira
seca em nenhum lugar da ilha após a terrível noite de vento
úmido.
— Não há nada — gritou.
Raff praguejou e puxou-a para o chão.
— Faça isto — ordenou, pegando as mãos dela e fazendo-a
esfregar para cima e para baixo os braços gelados.
— Ela está morta — Dannilla resmungou, tentando se
afastar.
Raff não deixou.
— Não está — contestou ele, furioso. — Continue massa-
geando. Temos de aquecê-la. — Ele a olhou e soltou suas
mãos. — Precisamos fazer isso. — Ele se levantou. Dannilla
voltou a massagear os braços coalhados de areia. Raff assentiu
e começou a juntar pedaços úmidos de madeira que o mar
agitado havia jogado na praia.
Dannilla o observava. Era mais fácil que olhar a estranha
criatura, tão fraca sob suas mãos. Quando Raff juntou uma
pilha de madeira, estendeu as mãos cegamente para reunir
uma magia pura que não era capaz de sentir. Várias vezes
tentou acender o fogo. Nada. Nada. Parecia que os braços de
Dannilla iam cair. Nada. De repente, fumaça. Finalmente,
Raff tinha conseguido acender uma pequena fogueira.
Arrastaram a débil criatura para perto do fogo. Raff passou a
fazer a massagem e Dannilla se agachou ao seu lado,
abraçando os joelhos com os braços doloridos. Estaria morta?
A fumaça subia com o vento e envolvia os três. Dannilla
fechou os olhos, que ardiam, e tossiu. Ela ouviu a tosse de Raff
também, e mais tossidas, e um som de alguém querendo
vomitar. Abriu os olhos e viu a mulher voadora apoiada de
lado, arfando e cuspindo água do mar.
Parecia impossível carregar a criatura trêmula pelo penhasco
para a caverna, mas eles conseguiram. Raff fez uma escada de
toras e trepadeiras. Descansaram durante longo tempo na
primeira caverna, com as ondas respingando neles
furiosamente, antes de seguir com dificuldade para a segunda.
Dannilla notou que a mulher alada, com a pele pálida e
machucada e o cabelo quase incolor, não era bonita, mas era
jovem. Não devia ser mais velha que Raff.
Depois que subiram, com ele na frente levando a estranha
pela mão enquanto Dannilla seguia atrás, fazendo o máximo
que podia para orientar seus pés. Raff puxou a escada de
madeira e começou a quebrá-la em pedaços.
— O que você está fazendo? — Dannilla gritou.
— Precisamos fazer uma fogueira. Não há mais nada para
queimar.
Ele tentou várias vezes começar a fogueira com os restos da
escada, mas não havia bastante magia pura, nem do tipo
errado, ali na caverna. Por fim, ele teve de sair de novo, até os
restos da fogueira na praia e trazer pelo menos um pedaço de
madeira em brasa. Dannilla teve de virar o rosto; dava muito
medo olhar sua figura exausta fazendo tanto esforço para
subir a encosta, apoiando-se com apenas uma mão.
A mulher voadora tremia, encostada à parede. Seus olhos
dourados estavam abertos, observando Dannilla,
inexpressivos. Era como se ela não tivesse forças para estar
grata, aterrorizada ou qualquer outra coisa.
As forças de Dannilla também tinham se esvaído e, embora
não sentisse nenhuma ameaça por parte da figura patética que
haviam salvado, um estranho arrepio de medo a atravessava.
No dia seguinte, fizeram várias viagens febris para carregar
madeira, comida, folhas e o que restara de seus pertences na
casa da árvore. Na maior parte do tempo, a mulher voadora
dormiu ao lado da fogueira, às vezes acordando para tomar
um pouquinho de caldo.
Raff ainda não tinha voltado de sua ronda às armadilhas.
Dannilla amassava frutas para que se tornassem fáceis de
engolir. A mulher voadora fez força para se sentar e falou
algumas palavras numa língua estranha, com muitos sons
guturais. Dannilla gemeu. Seria realmente demais esperar que
pudessem se entender. Antes que dissesse qualquer coisa, a
mulher tentou de novo, com palavras que soavam totalmente
diferentes, suaves e fluentes, mas ainda incompreensíveis.
— Não entendo — ela disse. Tocou o peito com o dedo. —
Dannilla. — Apontando para a outra, fez o que esperava ser
uma expressão interrogativa.
A mulher voadora suspirou.
— Dannilla. Meu nome é Sherremy. — Sua voz arranhava
um pouco.
— Você sabe falar comigo! Como?
— Meu dever é... trocar palavras de uma língua para outra.
— Ela se deitou, mas não voltou a fechar os olhos. — Muitos
no meu povo fazem isso.
— Só porque você sabe voar? Só porque você conhece todos
os povos?
A expressão no rosto de Sherremy a fez recordar o tempo em
que havia levado um carregamento de frutas ainda verdes até
o povoado, quando criança.
— Ninguém conhece todos os povos. Nem mesmo nossos
maiores. Mas, sim, conhecemos muitos povos e muitas
línguas.
— Como é voar?
Sherremy voltou-se para a parede e não respondeu. Suas asas
tremiam com seu choro.
Ela chorou durante horas, até bem depois que Raff chegou
com um saco de roedores mortos pendurados no ombro. Nada
do que ele fez a consolou, e as únicas palavras que ela dizia
eram:
— Vá embora. Deixe-me em paz. — Por fim, adormeceu
ainda soluçando.
Raff estava exultante porque ela era capaz de entendê-los e
falar com eles.
— Ela será nossa amiga — ele disse para Dannilla. Dannilla
deu de ombros.
— Talvez. Ou talvez ela bata asas assim que melhorar. —
Parecia-lhe uma deslealdade para com Raff, que claramente
desejava que Sherremy ficasse, mas esperava um dia vê-la se
lançar no ar e desaparecer. Talvez fosse o jeito com que Raff
olhava para Sherremy, mas, desde que tinham sido
abandonados na ilha, era a primeira vez que se sentia tão
insegura.
Logo a hóspede readquiriu forças, mas era claro que ainda
estava impossibilitada de voar. Era difícil para ela subir e
descer da caverna se o vento estivesse soprando, pois ele se
embrenhava em suas asas e ameaçava puxá-la da face da
encosta. Dannilla também achava isso perigoso, pois seus
braços ainda eram pequenos. Por isso, ela e Sherremy ficavam
frequentemente juntas na caverna enquanto Raff examinava
armadilhas, pegava frutas ou carregava lenha.
Dannilla detestava esses momentos. Sherremy só conversava
com ela quando estava muito entediada ou se Dannilla fizesse
perguntas — e às vezes nem assim. Passava longas horas
limpando as penas das asas, as lágrimas escorrendo dos olhos.
Raff parecia determinado a não notar sua tristeza. Ele lhe
trazia as melhores frutas, examinava as armadilhas duas vezes
ao dia, subia nos lugares mais altos e perigosos para pegar
ovos de gaivotas, que ela engolia direto da casca. Ele lhe fazia
perguntas sobre seu mundo, tão maior que o deles.
Por algum tempo, funcionou. Raff teve a ousadia de se
oferecer para pentear seu longo cabelo embaraçado, e suas
mãos se moviam neles suaves e lentas como sussurros.
Dannilla sentia um aperto no coração ao vê-los: Sherremy
sentada com a cabeça jogada para trás e os olhos fechados;
Raff ajoelhado atrás dela com os lábios entreabertos. As vezes,
Dannilla virava de lado e olhava para a parede da caverna,
mas saber que eles estavam ali atrás dela tornava o silêncio
mais alto, pulsante e insuportável. "Por que ela não vai
embora?", Dannilla perguntava-se a toda hora.
Sherremy, contudo, embora só não parecesse estar infeliz nos
momentos em que Raff a penteava, não ia. Ela não voava de
jeito nenhum. Dannilla queria lhe perguntar por quê, mas
Sherremy criou uma cortina de silêncio ao seu redor que
parecia impenetrável. Até que uma noite, quando Dannilla
fingia dormir, olhando-os por entre dos cílios, Raff deixou o
pente de madeira entalhada escorregar de seus dedos. Suas
mãos desceram pela curva das asas de Sherremy.
Sherremy estremeceu visivelmente. Suas asas se alargaram,
escondendo Raff de seu olhar. Somente ficavam visíveis os
dedos dele — acariciando as pontas das asas — e seus joelhos
dobrados.
Dannilla fechou os olhos e virou-se até ficar de cara para a
parede.
Estranhamente, Sherremy parecia ainda menos feliz depois
do que acontecera. Ela passava muito tempo com Raff — ele a
seguia por toda a parte —, mas ela nunca sorria, nunca ria.
Quase não falava, nem mesmo com Raff.
Em dias de ventania, nem saía da caverna, apenas se encolhia
de cócoras na entrada da caverna com o olhar perdido.
Dannilla teve a impressão, entretanto, de que ela nunca via as
ondas, só o céu.
— Por que você não levanta voo e vai embora? — Dannilla
lhe perguntou uma vez.
Sherremy se voltou sobre os calcanhares.
— Você não acha que eu iria, se pudesse? Acha que eu ficaria
aqui com você e seu irmão patético se eu tivesse escolha? —
Seu rosto estava tão pálido quanto o cabelo. Suas asas batiam
no ar, criando um vento dentro da caverna que rivalizava
com o vento de fora. Dannilla se encolheu num canto. — Eu
maldigo a magia que me privou de voar e me deixou aqui sem
ninguém da minha espécie, só com vermes rasteiros.
Dannilla fugiu para o vento, que secava suas lágrimas quase
tão rapidamente quanto elas caíam. Quando Raff voltou com
um grande pássaro na mão, ela estava sentada na areia na base
do penhasco.
— O que houve? — ele gritou. O vento açoitava suas
palavras.
— Ela não gosta de estar aqui — explicou Dannilla. — Ela
quer ficar com o povo dela, não com a gente.
Raff olhava para o chão.
— Não é verdade — ele contestou, num tom feroz.
— E, sim. Ela quer voar para longe, mas uma magia não a
deixa. — Dannilla agora olhava para a areia. — Talvez você
possa usar sua magia para ajudada a voltar a voar.
— Não — ele gritou. — Eu prometi. Nós prometemos nunca
usar magia para sair da ilha.
— Para nós sairmos — ela disse.
Raff, porém, já tinha começado a subir o penhasco, as penas
coloridas do pássaro morto mexendo de um lado para o outro
conforme ele subia.
Dannilla ficou no mesmo lugar. Alguns minutos depois, o
pássaro caiu diante dela, formando uma mancha brilhante na
areia.
Sherremy parou de comer. Não completamente, mas era
óbvio que as poucas mordiscadas que dava todo dia não eram
suficientes para mantê-la de pé. Não dava a menor atenção a
eles, não parecia se importar se Raff penteava seu cabelo, nem
sequer parecia notar. Seu rosto ficou encovado e sem ânimo.
Só as asas não mudavam.
Ela dormia a maior parte do tempo, enroladinha como uma
bola, as asas encolhidas contra as costas.
O rosto de Raff também começou a ganhar uma aparência
encovada.
— Temos de fazer alguma coisa ou ela vai morrer — disse
Dannilla.
— Eu não vou ajudá-la a ir embora — Raff fechou os olhos e
cerrou os punhos. — Eu preciso dela. Eu a amo.
— Mas ela vai morrer. Você quer que ela morra? Sem
ninguém da sua espécie por perto?
Raff abriu os olhos devagar.
— Encontre um pouco de magia pura para mim — ele pediu.
— O que você vai fazer?
— Lembra de quando costumávamos atrair mais animais,
quando um não era suficiente?
Ela assentiu com relutância.
— Mas ela não é...
— Pode funcionar do mesmo jeito. Tenho que tentar.
Eles desceram o penhasco juntos, deixando a triste figura
sozinha, adormecida.
Raff tocou na magia pura que Dannilla havia encontrado para
ele. Olhava para a entrada da caverna, no alto, uma escuridão
no despenhadeiro. Dannilla passou a trançar e destrançar os
pequenos dedos morenos enquanto Raff levantava suas mãos
brilhantes e começava a fazer magia.
Era uma magia difícil e longa, que parecia não acabar mais.
De repente, uma mulher voadora se materializou na areia,
uma mulher poderosa e nua. Suas asas batiam e a levantavam
no ar. Ela olhava para eles com o rosto de Sherremy, os olhos
dourados de Sherremy.
— Raff, o que você fez? — gritou Dannilla.
— Não sei — respondeu, com a voz que quase se perdia com
o barulho do bater de asas da nova Sherremy, que flutuava no
ar, subindo, descendo e se inclinando. Ele parecia pasmo. —
Talvez a magia sempre tenha feito isso, tenha chamado o
mesmo animal de novo, em vez de chamar outro da mesma
espécie.
A voadora desceu à areia.
— Eu vou partir agora — declarou.
— Não — pediu Raff. — Espere. Ela precisa... Você precisa
comer um pouco antes de ir.
Ela assentiu.
— Há comida na caverna — disse Raff, apontando.
Essa outra Sherremy, tão igual e tão diferente da primeira,
lançou-se no ar mais uma vez.
— Estamos chegando — Raff gritou.
— O que você pretende fazer agora? — perguntou Dannilla,
enquanto subiam o penhasco.
— Ela vai ver a si mesma lá em cima. Vai perceber que tem
de ficar.
Mas quando os dois conseguiram chegar à caverna, a primeira
Sherremy, tremendo de fraqueza, soluçava sem parar.
A nova tinha carne na mão. O suco de frutas manchava seu
queixo e escorria pelo peito.
— Mantenham-na longe de mim — ela disse. Seus olhos
estavam ferozes e frios.
— Ela precisa de você — explicou Raff. — Você tem de ficar
com ela.
A mulher nua voltou-se para a entrada da caverna.
— Ela não precisa de mim. Ela precisa voar. E assim que nós
somos. — Ela flexionou as pernas e pulou para fora, suas asas
apanhando o ar.
Foi-se. Deu duas piruetas pelo puro prazer de voar, depois se
equilibrou e voou, batendo as asas com firmeza. Para longe.
Longe. Bem longe.
— Não, não, não — gritou uma voz aguda e lamurienta. —
Não vá sem mim. Ajude-me. — Ela cambaleou e teria se
jogado penhasco abaixo se Raff e sua própria fraqueza não a
tivessem impedido. — Ajude-me — ela disse várias vezes, as
asas batendo fracamente.
Dannilla ajudou Raff a segurá-la e carregá-la para a cama,
onde ela desmoronou, ainda tremendo e soluçando.
Por fim, Sherremy ficou quieta, mergulhada no sono de tanta
exaustão. Dannilla limpou as lágrimas do rosto. Não havia
nada a dizer. O que eles tinham feito tornara as coisas muito
piores. Eles se sentaram juntos, encostados na parede, durante
muito tempo.
Então, de um jeito que o fez parecer um velho, Raff pôs-se de
pé.
— Venha — ele disse, a voz sem vida.
Dannilla teve de segui-lo.
— Encontre um pouco — ele pediu, quando ambos estavam
na areia.
— Mas... — Dannilla tentou dizer.
— Por favor. — Ele virou de costas para ela. — Por favor.
Dannilla olhou para o irmão e viu sua dor e decisão. Ela
concordou.
Novamente uma magia longa e difícil. Dannilla percebeu que
estava tremendo. Abraçou o corpo para se aquecer.
Desta vez, nenhuma mulher alada apareceu diante deles. Raff
deixou os braços cair: o único sinal de que a magia estava
completa.
E aí ouviram um grito vindo da caverna.
Dannilla olhou para cima. Sherremy estava parada na entrada
da caverna, as asas estendidas. Ela se apoiou nas pedras por
um momento. Dannilla perdeu o fôlego. Sherremy empurrou
o corpo para a frente, com as asas batendo. Quase caiu na
areia antes de ganhar controle e subir. Imediatamente, ela se
dirigiu para o mar.
— Não vá — sussurrou Raff, tão baixo que Dannilla mal pôde
ouvir. — Não me abandone.
Juntos, observaram o voo imperfeito. Dannilla não disse o que
sabia que aconteceria — Sherremy não estava forte o bastante
para encontrar terra. Será que cairia no mar e seria comida
por um peixe grande? "Por favor", pensou Dannilla, furiosa,
"não a deixe cair até que esteja fora do nosso campo de visão.
Raff não suportaria."
De alguma forma, apesar da falta de comida e dos dias que
passara encolhida na cama, a pequena criatura permaneceu
no ar até reduzir-se a nada na distância.
Raff ficou parado, os dentes trincados, seus olhos ainda
tentando vê-la.
— Ela se foi — disse Dannilla. — Venha.
Tentou puxá-lo para o despenhadeiro, mas ele largou sua
mão.
— Me deixe em paz.

A caverna de repente tornou-se um fardo pesado demais.


Dannilla foi para a floresta. Examinaria as armadilhas. Se
houvesse algum pássaro preso, ela o soltaria. Ela colheria
umas frutas, nadaria na enseada e tomaria conta de Raff até
que sua alma voasse de volta para dentro dele. Com o tempo.
E depois disso, de alguma forma — o pai que os perdoasse —,
ela os tiraria da ilha, mesmo que precisassem usar de magia.
Eles cruzariam o mar e achariam o povo de sua mãe. Raff
encontraria uma mulher que o fizesse rir. Dannilla acharia
um professor.
Ela se curvou e enfiou os dedos dentro de uma poça de magia
pura. Um dia. E tocou a testa para selar o juramento.

Laurel Winter já teve poemas e contos publicados em


diversas revistas literárias dedicadas à ficção contemplativa.
Ela ganhou dois prêmios Asimov's Reader's Poll e, com sua
poesia, dois Rhysling Awards, além de ter recebido por Sky
Eyes o prêmio World Fantasy 2000 de melhor novela. Seu
primeiro romance, Growing Wings (Firebird), foi finalista do
prêmio Mythopoeic; recentemente, ela ganhou uma bolsa
McKnight Artist para escrever seu segundo romance, ainda
em andamento.
Visite o site de Laurel Winter em www.winters.ws/laurel.
Nota da Autora
Vocês podem pensar, ao ler minha ficção {Growing Wings e "A
mulher voadora"), que tenho fixação por asas e voos. Não
nego ter, embora a maioria dos meus sonhos de "voar" seja
mais do tipo "flutuar a três centímetros de distância do chão".
De certa forma, porém, o personagem mais importante da
história, para mim, é Dannilla, que sabe que tem capacidades
não desenvolvidas dentro de si e está determinada a usá-las.
Eu acho que frequentemente as pessoas são condenadas ao
ostracismo exatamente pelas próprias características que as
tornam maravilhosas, que definem quem elas são. Possa a
magia abençoar a todos nós, que somos teimosos o suficiente
para desenvolver nossos potenciais, mesmo que isso signifique
quebrar alguns tabus, ou, no mínimo, ser démodé num mundo
em que impera a "modernice".

Agradecimentos

etesto quando há páginas e mais páginas de


agradecimentos no início de um livro e são todos
afetados ou inexplicáveis. Vejamos se posso fazer melhor...
Já que na verdade o selo Firebird é um esforço coletivo, há
várias pessoas que merecem créditos. Agradeço a...
Tracy Tang, presidente e editora da Puffin, que apoiou o selo
Firebird desde o início; Gerard Mancini e Phil Airoldi, nossos
editores gerais, que garantem que os livros passem de A (meu
cérebro e/ou computador e/ou mesa) para B (as prateleiras das
livrarias); Pat Shuldiner e Jennifer Tait, duas copidesques
muito pacientes; Deborah Kaplan, nossa brilhante editora de
arte, que comanda um departamento igualmente brilhante:
Linda McCarthy, Stefanie Rosenfeld, Nick Vitiello, Jim
Hoover e Kristina Duewell (e Lori Thorn, que criou o
logotipo do Firebird); e Amy White e Jason Primm, nossos
supervisores de produção, verdadeiros heróis desconhecidos.
Eu não poderia querer um defensor melhor que Doug
Whiteman, o presidente da seção de livros para jovens
leitores do Penguin Group nos Estados Unidos, nem Mariann
Donato, Eileen Kreit, Jackie Engel, Robyn Fink e Nancy
Feldman na parte de vendas; todos os nossos representantes, a
quem eu adoro; e o maravilhoso departamento de marketing,
de Gina Maolucci, Emily Romero, Katrina Weidknecht,
Susan Hawk e Lucy dei Priore. Uma menção especial para Bill
May, primeiro designer do site do selo Firebird.
Quero fazer um agradecimento especial a Regina Hayes,
presidente e editora da Viking, que ampliou a lista de modo a
incluir meus escritores de fantasia e ficção científica e agora
diz ser uma "convertida".
Eu estaria afogada em papéis sem meus estagiários. Por esse
cargo já passaram Stacey Bakula, Andréa Halim, Azadeh
Houshyar, Jacqui Shine e Emily Shaffer. Todos eles foram e
ainda são incríveis (assim como Nancy Conescu).
Meus pares adultos na Penguin são Susan Allison, Ginjer
Buchanan e Anne Sowards (Ace); Laura Anne Gilman e
Jennifer Heddle (Roc); Betsy Wollheim, Sheila Gilbert, Debra
Euler e Sean Fodera (DAW), e todos já me ajudaram de tantas
formas que chega a ser impossível enumerá-las. Entrei nesse
negócio sem saber nada a respeito da publicação de fantasia e
ficção científica — de maneira muito generosa, eles me
mostraram como isso funciona, assim como outros editores do
gênero o fizeram (como Gordon Van Gelder, Shawna
McCarthy, Patrick e Teresa Nielsen Hayden, Diana Gill,
Betsy Mitchell, Anne Groell, Eilen Asher, Rodger Turner,
Jaime Levine e Charles N. Brown e Jenni Hall, da Locus).
O gênero "ficção científica e literatura fantástica" está repleto
de pessoas peculiares e extraordinárias que torceram por mim
e me encorajaram. Conheci algumas delas na internet e outras
em convenções e leituras. Todas têm ideias: escritores e
artistas a recomendar, sugestões para lançamentos que não
tinham passado pela minha cabeça, comentários que me
alegraram algum dia em particular. Vocês sabem quem são:
obrigada.
Sou grata a Eilen Datlow e Terri Windling, supremas organi-
zadoras de antologias, que (sem que soubessem) me deram um
modelo a seguir neste livro.
O universo da edição de livros infanto-juvenis tem suas pró-
prias estrelas — bibliotecários, professores de literatura e lín-
guas, críticos e livreiros que amam o que fazem — e todos
eles me apoiaram com entusiasmo desde o início.
Agradecimentos especiais Cathi Dunn MacRae, autora de
Young Adult Fantasy Fiction e organizadora de Voice ofYouth
Advocates.
Gostaria de agradecer a Angus Killick pela ideia inicial para
esta antologia, Tamora Pierce pelo seu título original e Cliff
Nielsen pela capa estonteante da edição norte-americana.
Os muitos outros artistas que trabalharam em nossas capas
merecem uma salva de palmas: eles são visionários e mudam a
cabeça das pessoas.
Também preciso mencionar os dois conselhos editorias do
Firebird. O conselho "adulto" inclui muitos escritores, alguns
cujos trabalhos vocês leram aqui, além de bibliotecários,
críticos e livreiros; o conselho adolescente é composto,
sempre, só de adolescentes. Ambos os conselhos me mantêm
na direção correta, e há certas decisões que eu jamais teria
pensado em tomar se não fosse por eles.
Mais uma vez desejo agradecer aos escritores cujas obras
fazem parte desta antologia e também aos seus agentes. Tenho
sorte por ter conhecido todos vocês e ter tido a oportunidade
de trabalharmos juntos. É um sonho de leitora que se
realizou.
Por fim, sou grata ao meu padrinho adotivo, Lloyd Alexander,
cujas Crônicas de Prydain foram as primeiras histórias de
fantasia que li na vida (aos nove anos), e a razão pela qual eu
faço o que faço; e a Andy Burton, meu namorado e melhor
companheiro, que, com toda a paciência do mundo, me escuta
falar sem parar de tudo que diz respeito ao Firebird.

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