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Inalterado por Mãos Humanas

Robert Scheckley

Título original: UNTOUCHED BY HUMAN HANDS Tradução: MARCELO CORÇÃO

EDITORA BRASILIENSE - 1970

Gênero: ficção científica

Numeração: rodapé, 158 p

Digitalizado e revisto por Virgínia Vendramini

Janeiro de 2020

Contracapa

Inalterado por mãos humanas

Pela primeira vez no Brasil apresentamos dez exemplos da' imaginação de Robert Sheckley,
provas mais que suficientes para confirmá-lo no pico da hierarquia de ficção científica. Seu
talento é extremamente individual. O impacto de suas estórias permanece por longo tempo.

Quem, senão Sheckley, poderia sonhar com um futuro onde os instintos agressivos do homem
se exprimiriam através de jogos reais de caçados e caçadores? Ao acompanharmos nosso
caçador, encontrarmos a vítima, tornarmo-nos cónscios das rígidas regras impostas aos
encontros, nossa simpatia nos é arrancada e os personagens se tornam vivos - vivos e
horripilantes de certo modo. E o desenlace - lógico, mas inesperado - é tão estarrecedor que
é sentido como um choque físico.

Cada estória neste volume é como uma pedra preciosa, algo a estudar, admirar e usufruir. O
efeito geral não é nada menos que fantástico.

Tom Boardman Jr.

Orelhas
INALTERADO POR MÃOS HUMANAS

A Décima Vítima, filme dirigido por ELIO PETRI e protagonizado por URSULA ANDRESS e
MARCELLO MASTROIANI, tirou seu roteiro do último conto do presente volume.

DESCUBRA A IMAGINAÇÃO DE ROBERT SHECKLEY...

Veja o que acontece quando alguns indivíduos, estranhos e minúsculos, aterrissam em seu
planeta e procuram iniciá-lo nas maneiras esquisitas deles, além de impedi-lo de matar sua
mulher cada vinte e cinco dias!

Ou imagine-se num futuro luxuoso, livre de preocupações, onde sua probabilidade de viver é
de mais de 100 anos e seu lar é cheio de aparelhos automáticos adquiridos em módicas
prestações... prestações que passarão para seu filho, quando você morrer!

Ou considere as vantagens dos robôs que podem eliminar todas as intenções criminosas - não
haverà mais crimes nem polícias. Mas quem dirá aos robôs o que é crime e o que é lícito?

Ou estabeleça-se nos últimos anos felizes de um explorador interplanetário a esperar a morte


ao lado do seu único companheiro, um poético robô...

Seu efeito atordoa e alarma.

Título original: UNTOUCHED BY HUMAN HANDS

Four Squares Edition - 1967-Londres

IDITÓRA brasiliense SOC. AN.

Rua Barão de Itapetininga, 93 - 12º andar


(SÃO PAULO - BRASIL

Robert Scheckley

Inalterado por Mãos Humanas

Tradução: MARCELO CORÇÃO

EDITORA BRASILIENSE

1970

Para Barbara

Capa KLARA KAISER

Revisão Ortográfica

JOSÉ JOAQUIM SOBRAL

Índice

OS MONSTROS 9

CUSTO DE VIDA 20

O ALTAR 31

MANTENHA SUA FORMA 38


O HOMEM PRECIPITADO NO TEMPO 57

INALTERADO POR MÃOS HUMANAS 76

PÁSSARO-VIGIA 91

QUENTE 115

O ESPECIALISTA 125

A SÉTIMA VÍTIMA 142

Biografia do Autor 157

Os Monstros

Cordovir e Hum estavam no pico da montanha rochosa observando a novidade. Ambos


sentiam-se animados com isso. Era, sem dúvida alguma, a coisa mais nova que acontecia
desde algum tempo.

- Pela maneira como o sol cintila sobre ele - disse Hum - diria que é feito de metal.

- Concordo - disse Cordovir - mas o que o sustenta no ar?

Ambos olharam fixamente para o fundo do vale onde acontecia a novidade. Um objeto
pontudo flutuava sobre o solo. De uma de suas extremidades jorrava uma substância
semelhante ao fogo.

- Está se equilibrando sobre o fogo - tornou Hum. Isso deveria estar evidente mesmo para sua
vista cansada.

Cordovir ergueu-se um pouco mais sobre sua cauda grossa para ter uma visão melhor. O
objeto pousou no solo e o fogo cessou.
- Vamos descer para ver de mais perto? - perguntou Hum. - Vamos. Penso que temos
tempo... espere! Que dia é hoje?

Hum calculou silenciosamente e respondeu: - O quinto dia de Luggat.

- Diabo! - exclamou Cordovir. - Tenho que ir para casa e matar minha mulher.

- Faltam ainda algumas horas para o pór do sol, - disse Hum. - Penso que você tem tempo
para fazer as duas coisas.

Cordovir não estava certo disso. - Detesto chegar atrasado. - Bem, você sabe como sou rápido
- insistiu Hum. - Se nos atrasarmos, volto correndo e mato-a eu mesmo. O que lhe parece?

- É muita gentileza de sua parte. Cordovir agradeceu ao jovem e juntos escorregaram pela
encosta do morro.

Em frente ao objeto de metal os dois homens pararam e sentaram-se em cima de suas caudas.

- Maior do que pensava - disse Cordovir, medindo o objeto de metal com a vista.

Calculou que era pouco mais comprido do que a aldeia onde viviam e quase a metade da
largura. Arrastaram-se em círculo em torno do objeto, observando que o metal era
trabalhado, possivelmente por tentáculos humanos.

Ao longe o sol menor tinha-se posto. - Penso que seria melhor voltarmos - lembrou Cordovir,
observando a interrupção da luz solar.

- Ainda tenho tempo - disse Hum, flexionando seus músculos complacentemente.


- Sim, mas um homem gosta de matar pessoalmente sua mulher.

- Como você quiser. E dirigiram-se para a aldeia com um passo alerta.

Em casa, a mulher de Cordovir estava terminando o jantar. Tinha as costas voltadas para a
porta, como exigia a etiqueta. Cordovir matou-a com uma única rabanada de sua cauda,
arrastou o corpo para fora e sentou-se para comer.

Depois da refeição e da meditação, dirigiu-se à Reunião. Hum, com a impaciência dos jovens,
jà estava lá, contando o que vira do objeto metálico. Provavelmente comera às pressas seu
jantar, pensou Cordovir com um leve desagrado.

Após o mais moço haver terminado sua narrativa, Cordovir apresentou suas impressões
pessoais. A única coisa que acrescentou foi a sugestão de que o objeto metálico poderia
conter criaturas inteligentes.

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- O que lhe faz pensar isso? - perguntou Mishill, um outro velho.

- Haver fogo saindo do objeto quando ele desceu - respondeu Cordovir - mais o fato que o fogo
cessou após o objeto. ter pousado no chão. Algum ser, na minha opinião, foi responsável por
essa interrupção.

- Não necessariamente - disse Mishill. Os homens da aldeia conversaram até tarde sobre o
caso. Em seguida puseram fim à reunião, enterraram as inúmeras esposas mortas e voltaram
para suas casas.

Deitado no escuro, Cordovir descobriu que não tinha uma opinião formada sobre o novo
objeto. Supondo que possuísse criaturas inteligentes, seriam elas morais? Teriam elas um
sentido do certo e do errado? Cordovir parecia duvidar disso, e acabou dormindo.
Na manhã seguinte, todos os homens da aldeia foram ver o objeto de metal. Isso estava
certo, uma vez que as ocupações dos homens consistiam em examinar as novidades e limitar a
população de mulheres. Formaram um círculo em volta do objeto, especulando sobre o que
poderia existir no seu interior.

- Acredito que são seres humanos - disse Esktel, o irmão mais velho de Hum. Cordovir sacudiu
vivamente o corpo em sinal de protesto.

- Monstros com maior probabilidade - disse este. - Se você levar em consideração ...

- Não necessariamente - atalhou Esktel. - Considere a lógica de nossa evolução física! Um


único Olho...

- Mas no grande espaço exterior - disse Cordovir - podem existir muitas raças estranhas, a
maioria de seres não-humanos. No infinito...

- Todavia - interrompeu Esktel - a lógica de nossa... - Como dizia - prosseguiu Cordovir - as


possibilidades de que esses seres se assemelham a nós são infinitesimais. O veículo deles,
por exemplo. Será que nós construiríamos...

- Mas num terreno exclusivamente lógico - disse Esktel - você pode ver...

Pela terceira vez Cordovir era interrompido. Com um único movimento da cauda, arremessou
Esktel contra o objeto metálico. Esse caiu morto no chão.

- Sempre considerei meu irmão um chato - desabafou Hum. - O que era mesmo que você
estava dizendo?

Cordovir porém foi interrompido de novo. uma peça de metal, pertencente ao objeto maior
de metal, rangeu, girou e levantou-se; - e uma criatura saiu do seu interior.
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Cordovir percebeu imediatamente que tinha razão. A coisa que engatinhava para fora do
buraco possuía duas caudas. Estava coberta no alto com algo que era em parte metal e em
parte couro. E sua côr! Cordovir sentiu um calafrio.

A coisa tinha a côr de carne fresca e esfolada. Todos os habitantes da aldeia haviam recuado,
observando o que a criatura iria fazer. A principio ela não fez nada. Ficou parada sobre a
superfície metálica e o objeto bulboso que cobria a parte superior do seu corpo movia-se de
um lado para o outro. Não havia contudo outros movimentos do corpo que emprestassem a
esse gesto um significado qualquer. Finalmente, a criatura levantou seus dois tentáculos e
produziu alguns ruídos.

- Você acha que ela está tentando se comunicar? - perguntou em voz baixa Mishill.

Três outras criaturas apareceram na abertura de metal, segurando varas metálicas com seus
tentáculos. As coisas faziam ruídos umas para as outras.

- Certamente não são humanos - disse Cordovir com convicção. - A dúvida seguinte é: serão
eles morais?

Uma das criaturas engatinhou pelo lado do objeto metálico e pisou no solo. Os outros dois
apontaram suas varas metálicas para o chão. Parecia uma espécie de cerimônia religiosa.

- Será que algo tão horrível pode ser moral? - indagou Cordovir, com a pele grossa do seu
corpo arrepiando-se de nojo.

Após uma observação mais atenta, as criaturas eram ainda mais horríveis do que se podia
imaginar. O objeto bulboso em seus corpos podia ser a cabeça. Assim pensou Cordovir, ainda
mesmo que fosse diferente de todas as cabeças que conhecia. E no meio daquela cabeça, em
lugar de uma superfície lisa e expressiva havia uma forte saliência. Havia ainda duas
reentrâncias redondas de cada lado e dois outros botões laterais. E a parte mais baixa da
cabeça - se é que aquilo era uma cabeça - era atravessada por uma fenda pálida e
avermelhada. Com algum esfôrço da imaginação, Cordovir supôs que aquilo deveria ser a
boca.
E não era tudo, observou Cordovir. As criaturas eram construídas daquele modo para revelar a
presença de ossos. Quando moviam seus membros, não possuíam gestos flexíveis e leves,
como o movimento fluido dos seres humanos. Era antes o movimento sacudido de um galho
de árvore.

-- Deus do céu - balbuciou Gilrig, um indivíduo de meia idade. - Deveríamos matá-los para por
fim à sua miséria.

Outros homens pareciam pensar de maneira semelhante, e os habitantes da aldeia


aproximaram-se do objeto metálico.

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- Esperem! - exclamou um dos moços. - Vamos comunicar-nos com eles, se isso fôr possível!
Talvez sejam criaturas morais. Lembrem-se que o espaço exterior é imenso e que tudo é
possível.

Cordovir era a favor de um extermínio imediato, mas os outros o impediram e discutiram o


assunto entre eles. Hum, com sua valentia costumeira, aproximou-se da criatura que estava
no chão.

- Olá - disse Hum. A criatura respondeu alguma coisa. - Não posso entendê-lo - tornou Hum e
fez menção de voltar. A criatura balançou seus tentáculos unidos - se é que eram tentáculos -
e apontou para um dos sóis no horizonte, Depois proferiu um ruído.

- Sim, está bem quente, não? - disse Hum com alegria. A criatura apontou para o solo e fez um
outro ruído. - Não tivemos boas colheitas este ano - afirmou Hum puxando conversa.

A criatura apontou para si mesma e fez um novo ruído. - Concordo - disse Hum - você é feio de
doer. Nesse momento os habitantes do lugar sentiram fome e arrastaram-se de volta para a
aldeia. Hum permaneceu onde estava, ouvindo os ruídos que as criaturas faziam dirigindo-se
a ele; Cordovir esperava com ansiedade por Hum.
- Sabe de uma coisa? - disse Hum, após ter-se reunido a Cordovir - penso que eles desejam
aprender nossa língua. Ou desejam que eu aprenda a deles.

- Não faça isso! - exclamou Cordovir, antevendo o abismo insondável de um grande mal.

- Pois acho que farei isso - murmurou Hum. E juntos subiram as encostas em direção à aldeia.

Aquela tarde Cordovir dirigiu-se ao cercado das mulheres extras e perguntou oficialmente a
uma mulher jovem se ela desejaria reinar em sua casa durante vinte e cinco dias. Como era de
esperar, a mulher aceitou o pedido cheia de gratidão.

A caminho de casa, Cordovir encontrou Hum, que também se dirigia ao curral.

- Acabei de matar minha mulher - disse Hum, superfluamente é verdade; senão por que outro
motivo estaria indo ao cercado das mulheres extras?

- Você vai voltar amanhã para ver as criaturas? - perguntou Cordovir.

- Acho que sim - respondeu Hum - se nada de novo acontecer até lá.

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- O negócio é saber se são criaturas morais ou monstros. - Certo! - exclamou Hum, e


continuou seu caminho. Houve uma Reunião aquela noite, depois do jantar. Todos os
habitantes da aldeia concordaram que as criaturas não eram humanas. Cordovir argumentou
firmemente que bastava a aparência delas para lhes negar qualquer vestígio de humanidade.
Nada tão horrível podia possuir padrões morais, um sentido do certo e do errado e, acima de
tudo, uma noção da verdade.
Os jovens não concordavam com essa ideia, talvez por haver uma escassez de novidades
ultimamente. Sugeriam que o objeto de metal era evidentemente um produto da
inteligência. A inteligência por sua vez significava logicamente padrões de diferenciação. E a
diferenciação implicava o certo e o errado.

Foi uma discussão deliciosa. Olgolel contradisse Arast e foi morto por esse. Mavrt, numa
explosão de fúria incomum num indivíduo tão tranquilo, matou os três irmãos Holian e foi
morto por Hum, num acesso de mau humor. Até mesmo as mulheres extras discutiam o
assunto, no curral onde moravam num canto da aldeia.

Cansados e felizes, os aldeões foram dormir. Nas semanas seguintes, as discussões


prosseguiram. A vida, entretanto, continuou da mesma forma de sempre. As mulheres saíam
de casa de manhã cedo, recolhiam mantimentos, preparavam-nos e punham ovos. Os ovos
eram levados para as mulheres extras que os partiam. Como acontecia geralmente, em cada
oito ovos femininos um apenas era masculino. No vigésimo quinto dia do casamento, ou
um pouco antes, cada homem matava sua mulher e tomava outra.

Os homens iam para junto da nave ouvir Hum aprender a língua; depois, quando isso se
tornava enfadonho, partiam para seus passeios costumeiros pelos morros e florestas,
procurando novidades.

Os monstros estrangeiros mantinham-se sempre próximos da nave, só saindo quando Hum


estava perto.

Vinte e quatro dias após a chegada dos não-humanos, Hum anunciou que podia comunicar-se
passavelmente com eles.

- Disseram que vêm de muito longe - contou Hum para toda a aldeia aquela noite. - Disseram
que são bissexuais, como nós, e que são humanos, como nós. Disseram que há razões para
serem diferentes, mas não entendi muito bem esse pedaço.

- Se os aceitarmos como humanos, disse Mishill, -- então tudo que dizem é verdade.

Os outros concordaram.
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- Disseram que não pretendem perturbar nossa vida, mas teriam muito interesse em observá-
la de perto. Gostariam por isso de vir até a aldeia.

- Não vejo razões em contrário, - disse um dos jovens. - Não permitam isso! - gritou Cordovir. -
Vocês estão deixando o mal se introduzir em nosso meio. Esses monstros são traiçoeiros.
Acredito até que são capazes de... dizer uma inverdade.

Os outros velhos concordaram; Cordovir contudo não apresentou nenhuma prova que
justificasse sua acusação maldosa ao ser interrogado mais objetivamente.

- Afinal, - sugeriu Sil, - só porque se parecem com monstros não é uma razão para se afirmar
que pensam também como monstros.

- É uma razão - disse Cordovir, mas ale perdeu na votação.

Hum prosseguiu: - Eles ofereceram a mim - ou a nós, não tenho certeza - alguns objetos de
metal que, segundo dizem, fazem várias coisas. Resolvi ignorar essa falta contra a etiqueta,
tanto mais que não pareciam estar informados dela.

Cordovir assentiu. O rapaz estava crescendo. Começava a mostrar, finalmente, que possuía
boas maneiras.

- Eles desejavam vir amanhã à aldeia. - Não! - gritou Cordovir, mas novamente a votação foi
contra sua opinião.

- Ah, sim, ia me esquecendo - acrescentou Hum, quando a reunião chegava ao fim. - Hà


muitas mulheres entre eles. As que têm bocas bem vermelhas são mulheres. Será
interessante ver como os homens as matam. Amanhã é o vigésimo quinto dia desde que
chegaram.
No dia seguinte as criaturas foram à aldeia, arrastando-se Ienta e penosamente sobre os
morros. Os habitantes do lugarejo puderam observar a extrema insegurança dos seus
membros, a terrível dificuldade de seus movimentos.

- Não têm beleza alguma, = murmurou Cordovir. - E todos se parecem.

Na aldeia as coisas agiram sem nenhuma decência. Entraram nas cabanas e saíram das
cabanas. Fizeram comentários diante do curral das mulheres extras. Apanharam os ovos no
chão e os examinaram. Observavam os habitantes através de coisas negras e brilhantes.

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Pelo meio da tarde, Rantan, um velho, decidiu que chegara o momento de matar sua mulher.
Afastou por conseguinte a criatura que estava examinando o interior de sua cabana e
massacrou sua mulher.

Imediatamente, duas criaturas trocaram ruídos uma com a outra e saíram apressadamente
da cabana.

Um delas tinha a boca vermelha de mulher. - Deve ter lembrado que estava na hora de matar
sua mulher, - observou Hum.

Os habitantes do lugar aguardaram mas nada aconteceu. - Talvez, - disse Rantan, - ele
gostasse que um outro a matasse em seu lugar. Deve ser o costume do país.

Sem mais, Rantan massacrou a criatura de boca vermelha, com sua cauda.

A criatura masculina proferiu um terrível ruído e apontou seu bastão de metal em direção a
Rantan. Esse caiu morto no chão.
- É estranho, - disse Mishill. - Pergunto-me se isso significa uma desaprovação.

Agora as criaturas do objeto de metal - oito ao todo - estavam juntas numa espécie de círculo.
Uma delas segurava a mulher morta e os outros apontavam as varas metálicas em todas as
direções. Hum adiantou-se e perguntou o que havia de errado.

- Não entendo - disse Hum, após ter falado com eles. - Empregam palavras que não conheço.
Mas percebo que o sentimento deles é de reprovação.

Os monstros estavam agora se afastando. Um outro habitante da aldeia, decidido que era o
momento, matou sua mulher que estava em pé diante da porta. O grupo de monstros parou
e trocaram palavras entre si. Depois aproximaram-se de Hum.

Hum manifestava incredulidade após ter conversado com eles.

- Se entendi corretamente - afirmou Hum - ordenam-nos que não matemos mais nossas
mulheres.

- O quê? - exclamaram Cordovir e uma dúzia de outros. - Vou interrogá-los novamente. Hum
voltou a conferenciar com os monstros que balançavam suas varas metálicas com seus
tentáculos.

- Não há dúvida - disse Hum. E sem maiores preâmbulos, ele deu uma rabanada atirando um
dos monstros do outro lado da praça. Imediatamente os outros começaram a apontar suas
varas metálicas enquanto se retiravam rapidamente.

16

Após terem desaparecido, os habitantes da aldeia perceberam que dezessete homens


estavam mortos. Hum, por alguma razão, não foi encontrado.
- Agora vocês me acreditam? - gritou Cordovir. - As criaturas disseram uma inverdade
deliberada. Disseram que não nos iam molestar e depois disso mataram dezessete de nós.
Não apenas um ato amoral - mas um ato premeditado de morte!

Era algo além da compreensão humana. - Uma inverdade deliberada! Cordovir proferiu aos
berros essa blasfêmia, enjoado. Os homens raramente discutiam a possibilidade de alguém
dizer uma inverdade.

Os habitantes do lugar ficaram fora de si mesmos de ódio e de revolta ao entenderem o


significado pleno de uma criatura falsa. Ademais, havia o ato deliberado de morte por parte
dos monstros.

Foi como se o mais terrível pesadelo houvesse se concretizado. De repente tornou-se evidente
que essas criaturas não matavam suas mulheres. Pelo visto deixavam que elas proliferassem
desimpedidamente. Só essa ideia era suficiente para fazer um homem vomitar.

As mulheres extras saíram de seus currais e, juntamente com as esposas legítimas, indagaram
a razão de tudo aquilo. Quando foram informadas, ficaram ainda mais indignadas do que os
homens, sendo essa a natureza das mulheres.

- Matem-nos! - bradavam as mulheres extras. - Não permitam que eles modifiquem nossos
costumes! Não permitam que eles introduzam a imoralidade!

- É verdade - disse Hiran tristemente. - Deveria ter previsto isto.

- Eles devem ser mortos imediatamente, - gritou uma mulher. Sendo uma extra, não possuía
nome próprio, mas compensava essa falta revelando uma personalidade ardente.

- Nós, mulheres, desejamos levar uma vida moral decente, partindo os ovos no curral até a
ocasião de nosso casamento. E então vinte e cinco dias de êxtase! Como poderíamos desejar
mais? Esses monstros vão destruir nossa maneira de ser. Eles nos tornarão tão horríveis
quanto são.
- Agora vocês entendem? - gritou Cordovir aos outros. - Eu os preveni, eu indiquei o que iria
acontecer e vocês não deram atenção. Os jovens devem ouvir os velhos nas épocas de crise.

Na sua fúria, matou dois jovens com um golpe do rabo. Os outros aplaudiram.

17

- Expulsem-nos do lugar, - gritou Cordovir, - antes que eles nos corrompam!

Todas as mulheres correram para matar os monstros. - Eles possuem varas mortais - observou
Hum. - As mulheres sabem disso?

- Não creio - disse Cordovir. Estava perfeitamente calmo agora. - Seria melhor você ir preveni-
las.

- Estou cansado - disse Hum de mau humor. - Estive traduzindo todo esse tempo. Por que
você não vai?

- Bem, vamos os dois - disse Cordovir, aborrecido com o mau humor do adolescente.

Acompanhados pela metade dos aldeões, correram atrás das mulheres. Encontraram-nas na
beira do penhasco que dava para o local onde estava o objeto metálico. Hum explicou às
mulheres o perigo das varas mortais enquanto Cordovir considerava o problema.

- Rolem pedras sobre eles! - disse depois às mulheres. - Talvez consigam assim partir o metal
do objeto.

As mulheres começaram a rolar pedras pelo morro abaixo com enorme energia. Algumas
pedras bateram contra o metal do objeto. Imediatamente linhas de fogo partiram do objeto e
muitas mulheres foram mortas. A terra tremeu.
- Vamos nos afastar! - exclamou Cordovir. - As mulheres se ocuparão do caso, mesmo porque
essa terra tremendo me dá tontura.

Juntamente com os demais homens, Cordovir afastou-se rara um local seguro e observou a
ação.

As mulheres morriam à esquerda e à direita do objeto; receberam contudo reforços das


mulheres de outras aldeias que haviam sido informadas da ameaça. Agora elas lutavam por
suas casas, por seus direitos e mostravam-se mais destemidas do que os homens jamais
teriam sido. O objeto metálico lançava chamas por todo o morro, mas o fogo ajudou a
deslocar as pedras que choviam sobre a coisa. Finalmente, chamas maiores surgiram de uma
das extremidades do objeto metálico.

Um desmoronamento principiou e o objeto ergueu-se no ar justo em tempo. Por pouco não


esbarrou contra uma das montanhas; depois subiu verticalmente, até se tornar um pequeno
ponto contra o sol maior. E desapareceu.

Aquela noite, verificou-se que cinquenta e três mulheres haviam morrido. Isso foi considerado
um benefício porquanto ajudava a reduzir o excesso da população feminina. Aliás, esse
problema se tornaria ainda mais agudo agora, uma vez que dezessete homens tinham
desaparecido ao mesmo tempo.

18

Cordovir sentia-se imensamente orgulhoso. Sua mulher morrera gloriosamente no combate,


mas ele tomou uma outra imediatamente.

- Talvez seja preferível matarmos nossas mulheres antes dos vinte e cinco dias - disse ele
durante a Reunião noturna. Até que as coisas voltem ao normal.

As mulheres sobreviventes, de volta ao curral, ouviram seu conselho e aplaudiram


freneticamente.
- Pergunto-me para onde a coisa pode ter ido - disse Hum, apresentando sua dúvida durante a
Reunião.

- Provavelmente para um outro lugar onde possa escravizar uma raça indefesa - disse
Cordovir.

- Não necessariamente - sugeriu Mishill, e a discussão noturna deu-se por encerrada.

19

***

Custo de Vida

Carrin concluiu que podia relacionar sua depressão atual com o suicídio de Miller na semana
passada. Isso porém não o libertou dos temores vagos e imprecisos que o atormentavam. Era
um absurdo. Afinal o suicídio de Miller não lhe dizia respeito.

Mas por que razão aquele homem gordo e jovial se matara? Miller possuía tudo para desejar
viver: mulher, filhos, um bom emprego e todas as comodidades maravilhosas da época.
Por que motivo agira então?

- Bom dia, querido! - exclamou sua esposa ao sentarem-se à mesa do café da manhã.

- Bom dia, querida! Bom dia, Billy! O filho murmurou algo incompreensível. Simplesmente
não é possível entender as pessoas, pensou Carrin, e discou seu café da manhã. A refeição foi
graciosamente preparada e servida pela nova Cozinheira Automática Avignon.

Seu mau humor continuou porém, o que o aborrecia bastante, uma vez que ele desejaria estar
em plena forma aquela manhã. Era seu dia de folga e o cobrador da Avignon ficara de passar
em sua casa. Era um dia importante, por conseguinte. Acompanhou o filho até a porta.
- Bom trabalho, Billy! O filho sacudiu a cabeça, apanhou os livros e partiu para o colégio sem
responder. Carrin indagou a si mesmo se algo preocupava também o filho. Esperava que não.
Uma preocupação na família jà era bastante.

20

- Até mais tarde, querida - disse ele beijando a mulher que ia fazer compras.

"Seja como fôr", pensou Carrin, observando-a afastar-se pela calçada, "ela está feliz".
Calculou mentalmente quanto tempo ela gastaria no centro de compras Avignon.

Olhando o relógio, percebeu que ainda tinha meia hora disponível antes do horário marcado
pelo cobrador da Avignon. A melhor maneira para se livrar da depressão era afogá-la, disse a
si mesmo, e dirigiu-se ao banheiro.

A sala de banho era uma maravilha resplandecente de plástico e o simples luxo dela serenou
seu espírito. Atirou a roupa no Lavador-Passador Automático Avignon e regulou o botão do
chuveiro para um furo acima de "revigorante". A água com cinco graus de temperatura acima
da do corpo jorrou contra seu físico magro e esbranquiçado. Delicioso! Depois uma
repousante massagem e secagem na Toalha Automática Avignon.

"Maravilhoso," pensou, enquanto a toalha estendia e amassava sua musculatura. Era natural
que fosse maravilhoso. Afinal a Toalha Automática Avignon, com os demais implementos para
barbear, custara trezentos e trinta dólares, mais o imposto de consumo.

Mas valia seu preço, concluiu Carrin, enquanto o Barbeador Automático Avignon saiu de um
canto da sala e raspou num instante sua barba rala. Afinal, de que valia a vida se não se
pudesse aproveitar as coisas boas?

Sua pele tinia quando desligou a Toalha Automática. Deveria estar sentindo-se maravilhoso,
mas não estava. O suicídio de Miller continuava a atormentá-lo, destruindo a tranquilidade
do seu dia de folga.
Havia alguma outra coisa que o preocupava? Certamente não havia nada errado em casa.
Seus recibos estavam em ordem para a visita do cobrador.

- Será que esqueci de alguma coisa? - disse alto. - O cobrador da Avignon estará aqui dentro
de quinze minutos - sussurrou a Parede de Recados Avignon no banheiro.

- Eu sei disso. Hà mais alguma coisa? A Parede de Recados desfilou suas informações
memorizadas: uma quantidade de minúcias sobre regar o jardim, vistoria do carro a jato,
comprar costeletas de carneiro para o domingo, e outras coisas no gênero. Coisas que ainda
não encontrara tempo para fazer.

21

- Está certo, basta. Permitiu depois que o Vestidor Automático Avignon o vestisse, cobrindo
jeitosamente seu corpo magro com sua novíssima coleção de tecidos. Por último, um borrifo
de perfume masculino muito em moda terminou sua toilette. Dirigiu-se então à sala de estar,
abrindo caminho entre os aparelhos inúmeros que se alinhavam pelas paredes.

Uma rápida inspeção nos painéis da parede assegurou-lhe que a casa estava em ordem. A
louça do café fora esterilizada e guardada, a casa estava limpa, espanada, encerada, a roupa
de sua mulher estava pendurada, os foguetes espaciais do filho estavam de volta no armário.

- Pare de se preocupar, seu hipocondríaco! - disse Carrin a si mesmo com irritação.

A porta anunciou: - O senhor Pathis do Crediário Avignon está aqui.

Carrin ia autorizá-la a abrir quando percebeu que o Barzinho Automático estava na sala.

Deus do céu, por que não pensara nisso antes? O Barzinho Automático era fabricado pela
Companhia Castile Motors. Comprara-o num momento de fraqueza. A Avignon não veria
aquilo com bons olhos, uma vez que fabricava um modelo semelhante.
Carrin empurrou o barzinho para a cozinha e disse à porta para abrir.

- Um bom dia para o senhor! - disse com animação o senhor Pathis.

Pathis era um homem alto e imponente; vestia um terno de casimira grossa de feitio
conservador. Seus olhos tinham os cantos enrugados dos homens que riem frequentemente.
Irradiava simpatia e apertou a mão de Carrin, olhando em volta para a sala repleta de objetos.

- Uma belíssima sala o senhor possui. Linda! Aliás, não creio que esteja transgredindo o
código da companhia informando-o que sua sala é o ambiente mais belo deste bairro.

Carrin sentiu um súbito orgulho ao ouvir isso, pensando nas fileiras de casas idênticas, tanto
no seu quarteirão quanto no seguinte, e no outro mais adiante.

- Então, está tudo funcionando perfeitamente? - perguntou o senhor Pathis, colocando sua
maleta sobre uma cadeira. - Está tudo em ordem?

22

- Tudo! - respondeu Carrin com entusiasmo. - A Companhia Avignon não perde uma bola.

- O forno funciona bem? Toca os discos durante dezessete horas sem interrupção?

- Sim, funciona perfeitamente - respondeu Carrin. Na verdade não tivera ainda a


oportunidade de experimentar o aparelho, mas era um belo móvel.

- O Projetor Realista funciona bem? Gostou dos programas? - Visão absolutamente perfeita. -
Carrin assistira um programa no mês passado e lhe parecera incrivelmente real.
- Como está a cozinha? A Cozinheira Automática continua em ordem? O Cardápio-chefe
escolhe bem os pratos?

- Um aparelho maravilhoso. Simplesmente fabuloso. O senhor Pathis prosseguiu indagando


sobre o refrigerador, o aspirador a vácuo, o automóvel, o helicóptero, a piscina subterrânea, e
sobre a centena de outros produtos que Carrin comprara na Companhia Avignon.

- Está tudo perfeito - disse Carrin, adulterando ligeiramente a verdade, uma vez que não
desempacotara ainda todos os produtos. - Simplesmente maravilhoso.

- Folgo em saber - tornou o senhor Pathis, acomodando-se com um suspiro de alívio. - O


senhor não tem ideia do quanto nos esforçamos para agradar aos nossos clientes. Se um
produto não funciona bem, a devolução é imediata, não se fazem perguntas. Nossa política é:
agradar aos nossos clientes.

- Fico muito satisfeito com isso, senhor Pathis. Carrin fazia votos que o representante da
Avignon não pedisse para ver a cozinha. Visualizava mentalmente o Barzinho da Castille
Motors encostado ali, como um porco-espinho num espetáculo de cães.

- Tenho orgulho em dizer que a maioria dos moradores deste bairro compra em nossa
companhia, - continuou o senhor Pathis. - Somos uma firma sólida.

- Porventura o senhor Miller era cliente da Avignon? - perguntou Carrin.

- Aquele homem que se suicidou? - disse Pathis franzindo ligeiramente as sobrancelhas. - Sim,
era, não se pode negar. E isso me surpreende, meu caro senhor, isso simplesmente me deixa
perplexo. Sim, não fazia um mês que comprara de mim um novo carro a jato, capaz de
desenvolver trezentas e cinquenta milhas em linha reta. Sentia-se feliz como uma criança, e
depois vai me fazer uma coisa dessas! Não há dúvida que seu carro aumentou ligeiramente
seu débito na firma.

23
- Evidentemente. - Mas que importância tinha isso? Possuía tudo que se podia desejar. E
depois vai e se enforca.

- Enforca-se? - Sim, - disse Pathis, franzindo novamente a testa. - Possuía todos os aparelhos
mais modernos em sua casa e enforcou-se com um pedaço de corda. Provavelmente que não
servia hà muito tempo.

A ruga sumiu do seu rosto e o sorriso costumeiro substituiu-a. - Mas mudemos de assunto!
Falemos a seu respeito. O sorriso ampliou-se quando Pathis abriu sua pasta. - Bem, vejamos
agora sua conta. O senhor nos deve, com sua última. compra, duzentos e três mil dólares e
nove cents. Confere?

- Certo - disse Carrin, lembrando-se da quantia anotada em seus recibos. - Aqui està minha
prestação.

Estendeu um envelope a Pathis que esse conferiu e colocou no bolso.

- ótimo. Como o senhor sabe, não é possível o senhor viver o suficiente para nos pagar
totalmente os duzentos mil dólares, não é verdade?

- Sim, creio que não seria possível - disse Carrin seriamente.

Ele tinha apenas trinta e nove anos, mais uma centena de anos pela frente, graças às
maravilhas da ciência médica, mas com um ordenado de três mil dólares por ano, não poderia
jamais pagar o débito inteiro e sustentar ao mesmo tempo sua família.

- Evidentemente, não desejamos privá-lo de coisas necessárias. Sem mencionar os artigos


fabulosos que serão lançados no próximo ano. Coisas que o senhor não gostaria de perder!

Carrin sacudiu a cabeça. Certamente que desejava os novos produtos.


- Bem, digamos que entremos no acordo costumeiro. Se o senhor prestar fiança sobre os
ordenados do seu filho durante seus primeiros trinta anos de vida adulta, poderemos
fàcilmente abrir-lhe una crédito.

O senhor Pathis apanhou rapidamente alguns papéis no interior de sua pasta e espalhou-os
diante de Carrin.

- Basta o senhor assinar aqui. - Bem - disse Carrin - não estou certo se devo. Gostaria de dar
ao meu garoto um início verdadeiro na vida, sem nenhum pêso morto em suas costas...

- Mas meu caro senhor - interferiu Pathis - isto serve para seu filho também. Ele mora aqui,
não mora? Ele tem o

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direito de usufruir das comodidades, das maravilhas da ciência moderna.

- Certo, - disse Carrin. - Só que... - Sim, meu caro, hoje em dia o homem comum vive como um
rei. Há uns cem anos atrás o homem mais rico do mundo não podia comprar o que possui hoje
o homem comum. O senhor não deve considerar isso um débito. Trata-se antes de um
investimento.

- Isso é verdade, - assentiu Carrin em dúvida. Pensou no filho e nos seus modelos de foguetes,
em suas cartas do céu, seus mapas. Seria aquilo direito? indagou a si mesmo.

- Alguma dúvida? - perguntou Pathis jovialmente. - Bem, estava pensando apenas, - disse
Carrin. - Assinar um compromisso sobre os ordenados futuros do meu filho.. o senhor não
acha que estou indo um pouco longe demais?

- Longe demais? Meu caro senhor! - disse Pathis explodindo numa gargalhada. - O senhor
conhece Melon, aquele que mora numa quadra abaixo da sua? Bem, não diga por favor que
lhe contei, mas ele jà empenhou os ordenados dos netos durante a vida inteira deles. E ainda
não possui a metade dos bens que gostaria de adquirir. Faremos um plano especial para Ele.
Prestar serviço ao cliente é nossa especialidade e estamos perfeitamente cientes disso.

Carrin estava visivelmente em dúvida. - E após sua partida - concluiu Pathis - os bens
comprados pertencem a seu filho.

Isso era verdade, pensou Carrin. Seu filho possuiria todas as coisas maravilhosas que enchiam
a casa. E afinal, eram somente trinta anos de compromisso numa vida de cento e cinquenta.

Assinou a fiança com um gesto de alívio. - Excelente! - disse Pathis. - Por falar nisso, sua casa
jà possui o Mestre-operador Avignon?

Não, não possuía. Pathis explicou que o Mestre-operador era o novo lançamento do ano,
um fantástico progresso em engenharia científica. Fora construído para se ocupar de todas as
funções de limpeza e da cozinha, sem que o dono da casa tivesse que mexer um dedo.

- Em lugar de correr o dia inteiro de um lado para o outro, apertando uma meia dúzia de
botões diferentes, com o Mestreoperador tudo que o senhor precisa é apertar um único
botão! Um aparelho formidável!

Uma vez que custava apenas quinhentos e trinta e cinco dólares, Carrin encomendou o
aparelho, aumentando dessa forma o débito do filho.

25

"Lei é lei", pensou Carrin, acompanhando o senhor Pathis à f porta. "Essa casa será de Billy
algum dia. Dale e de sua mulher.! Eles certamente desejarão estar em dia com as novas
invenções.''

Apenas um botão, pensou. Que economia de tempo não seria! Após a partida de Pathis,
Carrin sentou-se na sua poltrona ajustável e ligou o projetor realista. Após ter dado uma volta
inteira no Ezidial descobriu que não havia programa algum que desejasse ver. Inclinou pois a
cadeira para trás e tirou um cochilo.
Aquela coisa em sua cabeça o preocupava. - Alô, querido!

Acordou com a mulher voltando das compras. Ela deu-lhe um beijo no ouvido.

- Veja.

Ela havia comprado na Avignon um novo modelo de peignoir bem sexy. Carrin ficou
agradavelmente surprêso ao constatar que aquilo fora tudo que comprara. Geralmente ela
voltava das compras carregada de novidades.

- Muito bonito - disse ele. Ela inclinou-se para receber um beijo, depois deu uma risadinha -
costume que havia adquirido da última estréia popular dos programas de televisão. Carrin
gostaria muito que ela perdesse esse costume.

- Vou discar o jantar, - avisou ela dirigindo-se à cozinha. Carrin sorriu, pensando que muito
em breve ela poderia discar os pratos sem ter que sair da sala de visitas. Ajeitou-se na
cadeira quando o filho entrou.

- Como foi na escola? - perguntou cordialmente. - Tudo bem, - respondeu Billy desanimado. -
Qual é o problema, filho? - O menino olhou para os pés sem responder. - Vamos, diga a seu
pai qual é seu problema.

Billy sentou-se em cima do empacotador de embrulhos e apoiou o queixo na mão. Olhou


pensativamente para o pai.

- Pai, eu poderia ser um Chefe de Consertos se quisesse? Carrin sorriu com a pergunta. Billy
estava em dúvida entre ser um Chefe de Consertos e um piloto de foguetes espaciais. Os
técnicos eletrônicos eram a elite. O trabalho deles era consertar as máquinas de consêrto
automáticas. As máquinas de consêrto podiam consertar qualquer coisa, mas não havia uma
máquina que consertasse as máquinas de consêrto. E era aí que entrava o Chefe de
Consertos.
Era porém um setor altamente competitivo e somente alguns indivíduos extremamente
dotados conseguiam diplomar-se. E embora Billy fosse um menino inteligente, não parecia
possuir um talento especial para engenharia.

26

- É possível, filho. Tudo é possível. - Mas é possível para mim? - Não sei - respondeu Carrin,
tão honestamente quanto podia.

- Bem, de qualquer forma não desejo ser um Chefe de Consertos - disse o menino, vendo que
a resposta era não. -

Quero ser um astronauta.

- Um astronauta, Billy? - perguntou Leela, voltando à sala.

- Mas não existem astronautas.

- Sim, existem - respondeu Billy. - Fomos informados no colégio que o governo pretende
mandar alguns homens a Marte.

- Eles vêm dizendo isso hà mais de cem anos - disse Carrin - e ainda não mandaram ninguém.

- Eles mandarão desta vez. - indagou Leda, - Por que você gostaria de ir a Marte?

piscando o olho em direção a Carrin. - Não existem meninas bonitas em Marte.

- Não estou interessado em meninas. Tudo que quero é ir a Marte.


- Você não gostaria da viagem, coração - disse Leela. - É um lugar velho e sujo, e sem ar para
respirar.

- Tem ar sim. Gostaria de ir até lá - insistiu o menino.

- Não gosto daqui.

- O quê? - exclamou Carrin sentando-se ereto na cadeira.

- Está faltando alguma coisa aqui? Alguma coisa que você deseja?

- Não, não falta nada. Tenho tudo que quero sim senhor.

Toda vez que o filho usava essa expressão, Carrin sabia que algo ia mal.

- Olha, filho, quando tinha sua idade eu também queria ir a Marte. Desejava aventuras. E
queria também ser um Chefe de Consertos.

- Então por que não foi?

- Bem, eu cresci. Compreendi que existem coisas mais importantes na vida. Primeiro,
deveria pagar o débito que meu pai me deixou... e depois conheci sua mãe...

Leela sorriu. - ... e queria ter uma casa própria. Será o mesmo com você. Você pagará seu
débito e se casará, da mesma forma que todos nós.

Billy manteve-se em silêncio durante alguns minutos. Depois afastou o cabelo prêto da testa,
liso como o de seu pai, e passou a lingua nos lábios.
27

- Como é que tenho débitos, pai? Carrin explicou minuciosamente. Falou sobre as coisas que
a família necessitava para levar uma vida civilizada e sobre o custo dos produtos. Como
deveriam ser pagos. Como era costume os filhos terem parte nos débitos dos pais, quando se
tornavam adultos.

O silêncio de Billy aborreceu-o. Era como se o filho o criticasse, após ter trabalhado como um
escravo durante anos para dar ao ingrato todos os bens deste mundo.

- Filho - disse Asperamente - você estudou História no colégio? Bom! Então você sabe como
foi no passado. Guerras. Você gostaria de morrer numa guerra?

O menino não respondeu. - Ou gostaria de suar durante oito horas por dia, fazendo o serviço
que uma máquina pode fazer? Ou passar fome o tempo todo? Ou frio, com a chuva batendo
em suas costas, sem lugar para dormir?

Aguardou uma resposta, que não veio, e prosseguiu: - Você vive na época mais feliz que a
humanidade já conheceu. Está cercado por todas as maravilhas da arte e da ciência. A melhor
música, os melhores livros, as melhores obras de arte, tudo ao alcance da mão. Tudo o que
você precisa fazer é apertar um botão. - Assumiu um tom mais amigável. - Então, em que
você està pensando?

- Estava pensando como fazer para ir a Marte - disse Billy. - Com o débito, é claro. Não creio
que possa me livrar disso.

- Não, não pode. - A menos que dê o fora num foguete. - Mas você não faria isso. - Não, claro
que não - disse o menino, sem muita convicção.

- Você ficará aqui e se casará com uma moça bem boazinha - disse Leela.

- Isso mesmo - disse Billy. Sorriu repentinamente. - Eu não estava falando a verdade sobre a
viagem a Marte. Era tudo brincadeira.
- Fico contente com isso - disse Leela.

- Esqueçam que falei sobre isso - acrescentou Billy, sorrindo sem jeito.

Levantou-se e subiu correndo as escadas.

- Provavelmente vai brincar com os foguetes - disse Leda. - Esse menino não tem jeito.

28

Os Carrins tiveram um jantar tranquilo. Depois chegou a hora do pai ir para o trabalho.
Pertencia à turma da noite naquele mês. Despediu-se da mulher com um beijo, entrou no seu
carro a jato e partiu a toda velocidade para a fábrica. Os portões automáticos o
reconheceram e se abriram. Estacionou o carro e penetrou na fábrica.

Os tornos eram automáticos, as prensas eram automáticas tudo era automático. A fábrica
era imensa e clara, e as máquinas zumbiam baixinho, enquanto faziam seu trabalho na
perfeição.

Carrin caminhou até a extremidade da linha de montagem das isik lavadoras automáticas para
substituir o empregado que estava ali.

- Tudo bem? - perguntou. - Tudo azul - respondeu o homem. - Não tive ainda nenhum
problema este ano. Esses novos modelos possuem vozes internas. Não acendem mais a luz
como os antigos.

Carrin sentou-se no lugar onde estivera sentado o outro homem e esperou que a primeira
máquina de lavar saísse da linha de montagem. Seu trabalho era a coisa mais simples do
mundo. Bastava apenas ficar sentado ali e as máquinas passavam em sua frente. Apertava o
botão em cada uma para ver se estava tudo em ordem. Sempre estava. Após passarem em
sua frente, as máquinas dirigiam-se para a expedição.
A primeira veio escorregando sobre uma comprida esteira de rolos. Carrin apertou o botão de
funcionamento no lado da máquina.

- Pronta para lavar - disse a máquina. Carrin apertou o botão de desligar e a máquina
prosseguiu seu caminho. "Esse meu filho", pensou consigo. "Será que vai crescer e assumir as
suas responsabilidades? Será que vai amadurecer e tomar seu lugar na sociedade?" Carrin
tinha suas dúvidas. O menino era um rebelde nato. Se alguém fosse um dia a Marte, seria
esse menino.

Esse pensamento porém não o preocupou. - Pronta para lavar. - Uma outra máquina passou
diante dele. Carrin lembrou-se de algo a respeito de Miller. O homem jovial sempre falava a
respeito das plantas, sempre brincava de ir a algum lugar e de conquistar. Não fora, contudo.
Suicidara-se.

- Pronta para lavar. Carrin tinha oito horas pela frente e afrouxou o cinto para se preparar
para elas. Oito horas de apertar botões e ouvir a máquina dizer que estava pronta para lavar.

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- Pronta para lavar. Apertou o botão de desligar. - Pronta para lavar. Sua atenção vagava
longe dali; aliás, o trabalho não exigia grande atenção. Compreendeu então o que o vinha
preocupando ultimamente.

Ele não gostava de apertar botões.

30

***

O Altar
Com um passo alerta, o senhor Slater desceu a Maple Street em direção à estação. Seu andar
revelava naquela manhã uma certa animação e seu rosto importante e bem barbeado não
escondia um sorriso. Era uma manhã belíssima de primavera.

Slater cantarolava baixo, contente com a distância de sete quarteirões que o separavam da
estação. Embora essa distância houvesse sido uma amolação durante o inverno, agora o
tempo agradável o favorecia. Era um prazer sentir-se vivo, uma alegria tomar o trem para o
escritório.

Exatamente nesse momento, foi interpelado por um homem com um sobretudo azul-claro.

- Por favor, - disse o homem - o senhor poderia me indicar o Altar de Baz-Matain?

O senhor Slater, absorto ainda com as belezas da manhã, tentou pensar.

- Baz-Matain? Não creio que ... o Altar de Baz-Matain? Foi isso que o senhor disse?

- Exatamente, - confirmou o desconhecido, com um sorriso de desculpa.

- Era um homem mais alto do que o comum, o rosto moreno e magro. O senhor Slater concluiu
tratar-se de um estrangeiro.

- Sinto muito, - disse ele, após um momento. - Não creio ter ouvido falar jamais nesse local.

- Obrigado de qualquer forma, - disse o homem; fez um

31

gesto com a cabeça e encaminhou-se para o centro da cidade. O senhor Slater continuou seu
caminho em direção à estação.
Após ter seu bilhete picotado pelo funcionário da estação, Slater pensou novamente no
incidente. Baz-Matain, repetiu consigo, enquanto o trem corria pelos campos brumosos e
acidentados de Nova Jersey. Baz-Matain. O senhor Slater concluiu por fim que o
desconhecido deveria estar enganado. North Ambrose, em Nova Jersey, era uma cidadezinha
pequena; bastante pequena para um morador conhecer todas as suas ruas, cada uma de suas
casas e lojas. Sobretudo um morador que ia completar quase vinte anos de residência, como
era o caso do senhor Slater.

Durante o dia no escritório, o senhor Slater percebeu-se batendo com o lápis no tampo de
vidro de sua mesa, pensando no homem de sobretudo azul-claro. Um indivíduo com
aparência estranha era uma singularidade em North Ambrose, um subúrbio sossegado,
elegante e bem situado. Os homens que residiam em North Ambrose usavam ternos de boa
qualidade e andavam sempre com pastas delgadas de couro marrom; alguns eram gordos e
outros eram magros, mas havia sempre um certo ar de família entre eles.

Slater não pensou mais no caso. Terminou seu dia de trabalho, tomou o metrô para Hoboken,
depois o trem para North Ambrose e por último andou a pé até sua casa.

A caminho, cruzou novamente com o mesmo homem.

- Encontrei, - disse o estranho. - Não foi fácil, mas acabei encontrando.

- Onde ficava? - perguntou o senhor Slater, fazendo alto. - Bem ao lado do Templo dos
Mistérios Negros de Ísis, - disse o outro. - Tolice minha. Deveria ter indagado por esse local.
Sabia que era aqui, mas nunca me ocorreu que...

- O templo de quê? - perguntou o senhor Slater. - Dos Mistérios Negros de Ísis, - respondeu o
homem moreno. - Não são concorrentes, na verdade. São, antes, videntes e feiticeiros,
praticam rituais da fertilidade e coisas no gênero. Nunca se aproxima do nosso setor.

- Entendo, - disse Slater, olhando fixamente para o estranho à luz crepuscular da primavera. -
A razão por que perguntei é que vivo nesta cidade há alguns anos, e não creio ter ouvido falar
jamais...
- Como! - exclamou o homem, olhando para seu relógio. - Não pensava que fosse tão tarde.
Vou atrasar a cerimônia se não correr.

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E com um aceno amigável despediu-se a toda pressa. O senhor Slater caminhou lentamente
para casa, pensando no ocorrido. Altar de Baz-Matain. Mistérios Negros de Ísis. Pareciam
seitas. Será que existiam tais locais na cidade? Parecia impossível. Ninguém alugaria casas
para pessoas deste gênero.

Depois do jantar, o senhor Slater consultou a lista telefônica. Mas não havia nenhum número
referente a Baz-Matain nem a Templo de Ísis. A telefonista de informações tampouco soube
informar.

"Curioso", pensou ele. Mais tarde, contou à mulher os dois encontros com o desconhecido.

- Bom, - disse ela, apertando o vestido em volta da cintura, - ninguém, provávelmente, vai
iniciar novos cultos nesta cidade. O Centro de Melhores Negócios não permitiria. Sem falar
no Clube das Mulheres ou na Associação dos Pais e Professores.

Slater concordou. O estranho deveria estar na cidade errada. Talvez os cultos fossem em
South Ambrose, uma cidade vizinha que possuía vários bares e um cinema, e um elemento
visivelmente indesejável na sua população.

A manhã seguinte era uma sexta-feira. O senhor Slater procurou pelo estranho mas encontrou
apenas o grupo conhecido de homens de negócio a caminho do trem. O mesmo ocorreu em
sua volta para casa. Pelo visto o indivíduo visitara o altar e partira. Ou trabalhava là em horas
que não correspondiam com seu horário do trem.

Na segunda-feira de manhã o senhor Slater saiu de casa alguns minutos atrasado e andava
depressa para apanhar o trem. Adiante avistou o sobretudo azul-claro.
- Olá! - chamou alto o senhor Slater. - Salve! - exclamou o homem moreno, seu rosto magro
abrindo-se num sorriso. - Estava pensando se não nos encontraríamos mais...

- Também eu - disse o senhor Slater, diminuindo o passo. O desconhecido estava passeando e


com toda certeza apreciando o magnífico dia primaveril. Slater sabia que iria acabar
perdendo o trem.

- E como estão as coisas no Altar? - perguntou. - Assim assim - respondeu o homem, com as
mãos passadas atrás das costas. - Para dizer a verdade, estamos enfrentando alguma
dificuldade.

- Ah, sim?

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- Pois é, - disse o homem moreno, com o rosto sério. - O velho Atherhotep, o prefeito, já
ameaçou suspender nossa licença em North Ambrose. Afirma que não estamos cumprindo
com o contrato. Mas eu lhe pergunto ... como seria possível? Quando o Dionisio-Africano se
estabelece do outro lado da rua, agarrando todo mundo que passa, e o Papa Legba-Damballa
abre duas portas adiante, admitindo até mesmo os indesejáveis ... que podemos nós fazer?

- Pelo visto a situação não està muito boa - concordou o senhor Slater.

- E não é só isso, - continuou o estranho. - Nosso sumo sacerdote está ameaçando deixar a
cidade se não tomarmos uma providência enérgica. Ele é um adepto do sétimo grau e só
Brama sabe onde iríamos encontrar um outro...

- Hummm - murmurou o senhor Slater. - É por isso que estou aqui. Caso eles comecem a
empregar certas práticas mais violentas, saberei revidar com outras ainda melhores. Eu sou o
novo gerente do negócio, por sinal.

- Ah, sim? - exclamou o senhor Slater, surprêso. - O senhor está reorganizando?


- De certa forma sim, - disse o estranho. - Sabe, é mais ou menos assim ...

Nesse momento um homem baixote e gordo apareceu correndo e segurou o homem moreno
pela manga do sobretudo azul.

- Elor, - disse o homem gordo ofegante. - Eu me enganei de data. É esta segunda-feira. Hoje, e
não na próxima semana.

- Diabos! - exclamou o homem moreno. - O senhor queira me desculpar - disse ao senhor


Slater. - Trata-se de um caso de urgência.

E saiu correndo com o homenzinho gordo.

Slater chegou meia hora atrasado no serviço aquela manhã, mas não se importou com isso.
Estava tudo explicado, pensou consigo, ao sentar-se diante de sua mesa. Um grupo de seitas
surgia em North Ambrose, cada qual competindo com as outras para angariar fiéis. E o
prefeito, em vez de afastá-las da cidade, não tomava nenhuma providência. Talvez recebesse
mesmo alguns subornos.

Slater tamborilou com o lápis no tampo de vidro da mesa. Como era possível acontecer
aquilo? Nada podia passar desapercebido em North Ambrose. Era uma cidadezinha tão
pequena. Ele mesmo, por sinal, conhecia uma boa parte dos seus habitantes

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por seus nomes próprios. Como era possível uma coisa daquelas passar desapercebida?

Irritado, estendeu a mão para o telefone. A telefonista de informações não soube esclarecê-lo
a respeito dos números de Dionisio-Africano, Papa Legba ou Damballa. O prefeito de North
Ambrose, segundo foi informado, não se chamava Atherhotep, mas sim Miller. O senhor
Slater telefonou para o prefeito.
A conversa deixou muito a desejar. O prefeito insistiu que conhecia todos os negócios da
cidade, todas as igrejas, todas as moradias. E se houvessem alguns novos cultos - o que não
era o caso - saberia igualmente da existência deles.

- O senhor està equivocado, meu amigo - disse o prefeito, numa maneira demasiado pomposa
para agradar ao senhor Slater. - Não existem pessoas com esses nomes na cidade, nem
organizações semelhantes. Nunca as toleraríamos em nosso meio.

Slater refletiu longamente a respeito do caso durante a volta no trem. Ao caminhar porém
pela plataforma da estação, viu Elor atravessando a Oak Street com passos rápidos e curtos.

Elor parou ao ouvir o chamado do senhor Slater. - Desculpe-me mas não posso me demorar, -
disse Elor jovialmente. - A cerimônia começa dentro de alguns minutos e devo estar presente.
Foi tudo culpa do idiota do Ligian.

Ligian, concluiu o senhor Slater, deve ser o homem gordo que abordou Bor esta manhã.

- Ele é tão descuidado, - prosseguiu Elor. - O senhor pode conceber um astrólogo


competente enganando-se de uma semana sobre a conjunção de Saturno com Escorpião?
Não importa. Realizaremos a cerimônia esta noite, desfalcados ou não.

- Eu poderia ir? - indagou o senhor Slater, sem hesitação. - Isto é, se estão desfalcados.

- Bem, - refletiu Elor. - É um caso sem precedente. - Realmente gostaria muito de ir, - insistiu o
senhor Slater, vendo uma oportunidade para penetrar o mistério.

- Não creio que seja possível, - atalhou Elor, com seu rosto magro e moreno pensativo. - Sem
nenhuma preparação e tudo o mais...

- Eu saberei o que fazer, - insistiu o senhor Slater. - Teria dessa maneira uma prova evidente
para atirar no rosto do prefeito se tudo desse certo. - Gostaria realmente de ir. O senhor me
deixou muito curioso.
- Está bom, então, - assentiu Elor. - Mas convém andarmos depressa.

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Desceram Oak Street em direção ao centro da cidade. Ali, ao alcançarem as primeiras lojas,
Elor fez uma volta. Conduziu o senhor Slater duas quadras acima e uma quadra abaixo, e
depois voltou atrás um quarteirão. Por fim tomou a direção da estação.

Estava começando a escurecer. - Não haveria um caminho mais simples? - indagou o senhor
Slater.

- Não, não há - respondeu Elor. - Este é o caminho mais curto. Se o senhor soubesse as voltas
que dei a primeira vez...

Caminharam mais, voltando alguns quarteirões, descrevendo círculos, atravessando ruas que
já haviam passado, indo para a frente e pra trás através da cidade que o senhor Slater
conhecia tão bem.

A medida que escurecia, porém, e que se aproximavam de ruas familiares por direções
estranhas, o senhor Slater sentiu-se meio confuso. Sabia onde estava, naturalmente, mas as
voltas constantes haviam-no atrapalhado.

"Que coisa estranha", pensou. "Uma pessoa pode se perder na sua própria cidade, mesmo
vivendo nela vinte anos".

Slater procurou descobrir a rua onde estavam sem olhar para a placa indicadora, quando
deram uma volta inteiramente inesperada. Havia acabado de descobrir que estavam
percorrendo de volta a Avenida Walnut quando percebeu que não seria capaz de se lembrar
qual era a próxima rua. Ao passarem pela esquina, olhou para a placa.

Estava escrito: Orifício Esquerdo. Slater não se lembrava de nenhuma rua em North Ambrose
que se chamasse Orifício Esquerdo.
Não havia lampiões na calçada e ele verificou que não reconhecia nenhuma das lojas. Isso era
estranho, porque pensava conhecer perfeitamente o bairro do comércio varejista de North
Ambrose. Sentiu uma espécie de calafrio ao passarem diante de um prédio escuro onde se
avistava uma pequena tabuleta luminosa.

A tabuleta dizia: Templo dos Mistérios Negros de Ísis. - Eles estão bastante silenciosos esta
noite, não? - disse Elor, acompanhando o olhar do senhor Slater em direção ao prédio. - Seria
melhor andarmos mais depressa. - E Elor apressou o passo, não dando ao senhor Slater a
oportunidade para fazer alguma pergunta.

Os edifícios tornavam-se cada vez mais estranhos à medida que caminhavam pela rua
sombria. Havia de todas as formas e

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tamanhos, alguns novos e brilhantes, outros antigos e delapidados. O senhor Slater não
imaginaria jamais que houvesse um bairro como aquele em North Ambrose. Seria aquilo uma
cidade dentro da cidade? Haveria uma North Ambrose à noite desconhecida dos habitantes
do dia? Uma North Ambrose a que só se poderia chegar mediante inúmeras voltas por ruas
conhecidas?

- Os ritos fálicos são aqui - disse Elor indicando um prédio alto e esguio.

Ao lado avistava-se uma pracinha tortuosa e inclinada. - Esta é a Praça Damballa, - disse Elor,
apontando com o dedo.

Na extremidade da rua encontrava-se um edifício branco. Era bastante comprido e baixo. O


senhor Slater não teve tempo porém para examiná-lo à vontade, porquanto Elor segurava-o
pelo braço e puxava-o apressadamente em direção à porta.

- Eu preciso realmente ser mais ligeiro, - murmurou Elor consigo mesmo.


Uma vez no interior, a escuridão era total. O senhor Slater pressentiu movimentos em sua
volta e logo depois avistou uma pequena luz branca. Elor conduziu-o naquela direção,
dizendo em termos amigáveis: - O senhor realmente me tirou de uma grande encrenca.

- Encontrou a pessoa? - perguntou uma voz fina atrás da luz.

O senhor Slater começou a perceber alguns vultos. A medida que seus olhos habituavam-se à
escuridão, podia avistar um velho minúsculo e coberto de rugas diante da luz.

O velho segurava uma faca de um comprimento fora do comum.

- Claro que sim - respondeu Elor. - Aliás, ele veio espontâneamente.

A luz branca foi suspensa sobre um altar de pedra. Como se fosse movido por um repentino
reflexo, o senhor Slater fez menção de correr, mas a mão de Elor segurava-o firme pelo braço.

- O senhor não pode nos deixar agora, - disse Elor com delicadeza. - Estamos prontos para
começar.

Aliás, logo outras mãos atiraram-se sobre o senhor Slater, braços e mãos inúmeros,
empurrando-o com firmeza em direção ao Altar.

37

***

Mantenha sua Forma

Pid, o Piloto, diminuiu ao máximo a velocidade da nave espacial e olhou ansiosamente para o
planeta verde embaixo.
Mesmo sem instrumentos, não era possível enganar-se. Terceiro do seu sol, era o único
planeta neste sistema que oferecia condições de vida. Flutuava pacificamente envolto em sua
gaze de nuvens.

Parecia muito inocente. E no entanto, vinte expedições anteriores de Grom haviam-se


preparado para invadir este planeta - e haviam desaparecido completamente, sem deixar
sinal.

Pid hesitou apenas um momento, antes de decidir descer definitivamente. Não havia razão
para vacilar e preocupar-se. Ele e os dois outros tripulantes estavam prontos para descer - e
jamais estariam em melhores condições. Os minúsculos Deslocadores estavam guardados em
bolsas no corpo, inativos mas prontos para uso.

Pid desejava dizer alguma coisa à sua tripulação, mas não sabia como.

A tripulação aguardava. fig, o Rádio-operador, havia enviado uma última mensagem ao


planeta Grom. Ger, o Detector, fazia a leitura simultânea de dezesseis painéis e comunicava
"Nenhum sinal de atividade adversa". As superfícies do seu corpo fluíam descuidadamente.

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Percebendo isso, Pid resolveu o que dizer a sua tripulação. Após deixarem o planeta Grom, a
disciplina da forma fora desagradavelmente relaxada. O Chefe de Invasão prevenira-o; mesmo
assim, deveria tomar alguma providência sobre o caso. Era seu dever, uma vez que as castas
inferiores, tais como as dos Rádiooperadores e Detectores, eram notôriamente inclinadas à
perda da forma.

- Uma grande esperança está depositada nesta expedição - começou Pid lentamente. -
Estamos muito distantes de casa agora.

Ger, o Detector, assentiu. Ilg, o Rádio-operador, saiu de sua forma prescrita e moldou-se
confortavelmente a uma parede.
- Contudo, - disse Pid com severidade - a distância não é uma desculpa para uma promíscua
Informidade.

Ilg apressou-se em se recompor na forma adequada de Rádio-operador.

- Formas exóticas serão certamente necessitadas - continuou Pid. - E para tanto temos uma
dispensa especial. Mas lembrem-se: qualquer forma que não fôr assumida por uma razão
estrita do dever é um estratagema indigno e proibido do Informe!

As superfícies do corpo de Ger pararam repentinamente de fluir.

- É tudo que tinha a dizer, - concluiu Pid, e voltou a seus controles.

A nave começou a descer, tão serenamente coordenada que Pid se sentiu orgulhoso.

Eram bons profissionais, pensou Pid. Não podia exigir dos outros dois que possuíssem uma
consciência tão grande da forma quanto um Piloto de casta superior. Aliás, o Chefe de
Invasão lhe dissera isso.

- Pid, - dissera-lhe este na sua última entrevista - necessitamos desesperadamente deste


planeta.

- Pois não, senhor - respondera Pid, prestando a máxima atenção e nunca se afastando da
Forma Ideal de um Piloto.

- Um de vocês - dissera o Chefe - precisa dar um jeito e colocar o Deslocador perto de uma
fonte de energia atômica. O exército estará de prontidão do lado de cá, pronto para entrar
em ação.
- Faremos isso, senhor - afirmou Pid. - Esta expedição tem que ser bem sucedida - disse o
Chefe e seus traços confundiram-se momentâneamente, tão grande era sua fadiga. - De
forma estritamente confidencial - prosseguiu ele - saiba que há uma grande agitação em
Grom. A casta dos mineiros, por exemplo, està em greve. Desejam uma nova forma para
cavar. Alegam que a antiga é ineficiente.

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Pid mostrou-se devidamente indignado. A forma dos mineiros fora estabelecida pelos Anciãos
cinquenta mil anos atrás, juntamente com as outras formas básicas. E agora esses arrivistas
de- sejavam mudá-la!

- E não é tudo - continuou o Chefe. - Descobrimos um novo Culto da Informidade. Reuniram


quase oito mil habitantes de Grom e não sei ao certo quantos mais nos faltam.

Pid sabia que a Informidade era uma armadilha do Informe, o maior de todos os males que
podia conceber a mente dos habitantes de Grom. "Mas por que", pensou ele, "tantos
habitantes de Grom foram seduzidos pelas ilusões do Informe?"

O Chefe adivinhou sua dúvida. - Pid - disse ele - suponho que lhe seja difícil entender isso.
Você sente prazer em pilotar?

- Muito, senhor - respondeu Pid com simplicidade. Gostar de pilotar! Era sua vida inteira!
Sem uma nave espacial, não era ninguém.

- Nem todos os Grom pensam da mesma maneira - disse o Chefe. - Eu também não entendo a
razão disso. Todos os meus antepassados foram Chefes de Invasão, desde o início dos
tempos. Por isso eu também quero ser um Chefe de Invasão. Não há nada mais natural, nem
mais legal. As castas inferiores, contudo, não pensam dessa forma. - O Chefe balançou o corpo
com tristeza. - Eu lhe conto tudo isso por uma razão. Nós de Grom necessitamos de mais
espaço. Esta agitação atual é provocada unicamente pela superpopulação. Todos os nossos
psicólogos dizem a mesma coisa. Um outro planeta onde possamos nos expandir solucionará
todos os nossos problemas. De sorte que contamos com você, Pid.

- Pois não, senhor - tornou Pid com um sentimento de orgulho.


O Chefe levantou-se para por fim à entrevista. Mas mudou de ideia e tornou a sentar-se.

- Você deve observar sua tripulação - disse ele. - São homens leais, não há dúvida, mas são de
casta inferior. E você sabe como são as castas inferiores.

Pid sabia perfeitamente. - Temos suspeitas que Ger, seu Detector, esconde algumas
tendências Alteracionistas. Foi certa vez multado por ter assumido uma forma de
Semicaçador. Contra Ilg, nunca tivemos uma acusação definida. Mas ouvi dizer que
permanece imóvel durante

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períodos tão longos que provocam suspeita. Possivelmente ele se imagina um Pensador.

- Mas senhor - protestou Pid - se eles são acusados de Alteracionismo e de Informidade, ainda
mesmo que de maneira superficial, por que então enviá-los nesta expedição?

O Chefe hesitou antes de responder. - Hà muitos Grom em quem confiaria - respondeu o


Chefe lentamente. - Mas esses dois possuem certas qualidades de recursos e de imaginação
que serão necessitadas para esta expedição. - Deu um suspiro. - Não entendo realmente por
que razão essas qualidades estão associadas geralmente à Informidade ...

- Certo, senhor - disse Pid. - Observe-os bem. - Pois não, senhor - tomou Pid e bateu
continência, compreendendo que a entrevista chegara ao fim. Na bolsa em seu corpo podia
sentir o Deslocador inativo pronto para transformar as fontes de energia do inimigo numa
ponte espacial para as multidões de Grom.

- Boa sorte - disse o Chefe. - Estou certo que irá necessitar dela.

A nave desceu silenciosamente em direção à superfície do planeta inimigo. Ger, o Detector,


analisou as nuvens embaixo e forneceu dados à Unidade de Camuflagem. A Unidade pôs-se
em operação. Em breve a nave tinha a aparência, em relação a todos os objetos exteriores,
de uma formação de cirros.

Pid deixou que a espaçonave descesse lentamente em direção à superfície do planeta


misterioso. Possuía agora a Forma Ideal do Piloto, a mais eficiente das quatro formas
permitidas à casta dos Pilotos. Cego, surdo e mudo, era uma extensão dos seus controles, e
toda sua atenção estava dirigida para igualar a velocidade das nuvens altíssimas,
permanecendo entre elas, tornando-se uma parte delas.

Ger permaneceu rigidamente numa das formas autorizadas para os Detectores. Fornecia
dados à Unidade de Camuflagem e a nave, na sua descida, transformou-se lentamente num
altocúmulo.

Não havia nenhum sinal de atividade proveniente do planeta inimigo.

Ilg localizou uma fonte de energia atômica e forneceu dados a Pid. O Piloto alterou a
trajetória da nave. Havia alcançado as camadas mais baixas das nuvens, cerca de uma milha
acima da

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superfície do planeta. A nave tinha agora a aparência de um cúmulo cheio e veloso.

E não havia ainda nenhum sinal de alarma. O destino desconhecido que sobrepujara as vinte
expedições anteriores ainda não se manifestara.

Nuvens de poeira arrastavam-se pela superfície do planeta enquanto Pid manobrava próximo
à instalação de energia atômica. Evitou as casas vizinhas e planou em cima de uma floresta.

A escuridão desceu e a lua verde e solitária do planeta estava coberta por nuvens.
Uma nuvem flutuava mais baixo. E aterrissou. - Depressa, todos para fora! - gritou Pid,
desprendendo-se dos controles da nave.

Assumiu a forma de Piloto mais apropriada para correr e saiu rapidamente pela portinhola da
nave. Ger e Ilg correram atrás dele. Pararam a umas cinquenta jardas adiante da nave e
aguardaram.

No interior da espaçonave um circuito pouco usado fechou. Seguiu-se uma trepidação


silenciosa e a nave começou a se dissolver. O plástico fundiu-se, o metal entortou. Em breve a
nave era um enorme monte de lixo, e ainda assim o processo continuava. Fragmentos
grandes transformavam-se em fragmentos menores, que se partiam e tornavam a se partir.

Pid sentiu-se repentinamente desamparado, observando sua nave desintegrar-se. Era um


Piloto, da casta dos Pilotos. Seu pai fora um Piloto e seu avô antes dele, numa linha
interminável que se perdia no passado longínquo em que os habitantes de Grom haviam
construído as primeiras naves espaciais. Passara sua meninice em volta de naves espaciais, e
sua inteira maturidade viajando nelas.

Agora, sem nave, estava nu num mundo estranho.

Dentro de alguns minutos havia apenas um monte de poeira indicando onde estivera a nave.
O vento da noite espalhou a poeira pela floresta. E depois não sobrou nada.

Os três aguardavam. Nada acontecia. O vento assobiava e as árvores rangiam. Os esquilos


faziam ruídos com os dentes e os pássaros mexiam-se nos seus ninhos. Um fruto caiu no
chão.

Pid deu um suspiro de alívio e sentou-se. A vigésima primeira expedição de Grom aterrara em
seguro.

Não havia nada a fazer até a manhã seguinte, de sorte que Pid começou a meditar seus
planos. Haviam aterrado tão perto
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da instalação de energia atômica quanto fora possível arriscar. Agora era preciso
aproximarem-se ainda mais. De alguma maneira, um deles teria que se aproximar o máximo
da sala do reator, a fim de ativar o Deslocador.

Era uma tarefa difícil, mas Pid estava certo do êxito. Afinal, os habitantes de Grom eram
famosos por sua engenhosidade.

Fortes em inventividade, pensou Pid amargamente, mas incrivelmente fracos em


radioatividade. Essa era a segunda razão da grande importância dessa expedição. Havia
pouco combustível radioativo em reserva, em qualquer um dos mundos de Grom. Séculos
atrás, os Grom haviam consumido suas reservas de materiais radioativos espalhando-se pelos
mundos vizinhos, ocupando aqueles que poderiam habitar.

Agora, a colonização mal se ajustava à crescente natalidade. Novos mundos eram uma
constante necessidade.

Este mundo particular, descoberto por uma expedição de observação, era necessário.
Convinha perfeitamente aos habitantes de Grom. Mas era demasiado distante. Os Grom não
possuíam combustível suficiente para construir uma frota de espaçonaves para a conquista.

Felizmente havia uma outra maneira. Uma maneira melhor. Durante séculos os cientistas de
Grom haviam aperfeiçoado o Deslocador. Um triunfo da Engenharia da Identidade, o
Deslocador permitia que uma massa fosse transportada instantâneamente entre dois pontos
em contato.

Uma extremidade fora colocada na única usina de energia atômica de Grom. A outra
extremidade deveria ser colocada na vizinhança de uma outra fonte de energia atômica - e ser
ativada. Uma força desviada corria então entre as duas extremidades, era modificada e
novamente modificada.

Assim, graças ao milagre da Engenharia da Identidade, os habitantes de Grom podiam andar


de um planeta para o outro; ou investirem numa massa imensa e avassaladora.
Era muito simples. Mas vinte expedições haviam fracassado na tentativa de colocar o
Deslocador na extremidade da Terra.

O que havia acontecido com elas era mistério. Nenhuma nave voltou a Grom para contar o
ocorrido.

Antes do nascer do sol os tripulantes arrastaram-se pela mata assumindo a coloração das
plantas em sua volta. Seus

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deslocadores pulsavam fracamente, pressentindo a proximidade da fonte de energia atômica.

Um pequeno quadrúpede passou correndo na frente deles. Instantâneamente Ger gerou


quatro pernas, um corpo comprido e afilado, e deu caça ao animal.

- Ger! Volte aqui! - gritou Pid ao Detector, com risco de ser ouvido.

Ger alcançou o animal e o derrubou. Tentou mordê-lo, mas esquecera-se de produzir dentes.
O animalzinho deu um salto, libertou-se e desapareceu. Ger produziu uma fileira de dentes e
preparou seus músculos para um novo salto.

- Ger! - chamou Pid em voz baixa. A contragosto, o Detector fez meia volta e correu em
silêncio para junto de Pid.

- Estava com fome - disse. - Você não estava - retrucou Pid com severidade. - Estava -
murmurou Ger, contorcendo-se sem jeito. Pid lembrou-se do que lhe dissera o Chefe de
Invasão. Ger possuía certamente tendências para Caçador. Seria preciso vigiá-lo mais
atentamente.
- Que isso não se repita - disse Pid. - Lembre-se: a ilusão de Formas Exóticas não é permitida.
Contente-se com a forma com que você nasceu.

Ger assentiu e se transformou novamente numa vegetação rasteira. Continuaram avançando.

Na extremidade da floresta podiam avistar a instalação de energia atômica. Pid disfarçou-se


numa moita e Ger assumiu a forma de um tronco velho. Ilg, após um momento de reflexão,
transformou-se num jovem carvalho.

A instalação possuía a forma de um prédio comprido e baixo, cercado por uma grade de ferro.
Havia um portão e guardas postados na frente.

A primeira tarefa, pensou Pid, era atravessar o portão. Começou a pensar nas maneiras e
possibilidades.

A partir dos relatórios incompletos das expedições anteriores de observação, Pid sabia que,
sob muitos aspectos, esta raça de Homens era semelhante aos habitantes de Grom. Possuíam
animais de estimação, como os Grom, casas e filhos, e uma cultura. Seus habitantes
possuíam habilidades mecânicas, como os de Grom.

Havia contudo algumas enormes diferenças. Os Homens possuíam formas fixas e imutáveis,
como as pedras e as árvores. Para compensar isso, o planeta deles produzia uma quantidade
fantástica de espécies, tipos e gêneros. E isso era inteiramente diferente

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da vida em Grom, onde só havia oito formas distintas de vida animal.

E, evidentemente, os Homens possuíam uma capacidade especial para perceber a presença de


invasores, pensou Pid. Se ao menos soubesse a razão porque as outras expedições haviam
fracassado ... Isso facilitaria imensamente seu trabalho.
Um homem passou na frente deles caminhando desajeitadamente sobre suas pernas rígidas.
A rigidez era evidente em cada um dos seus movimentos. Sem olhar para trás, passou
correndo.

- Já sei - disse Ger, após a criatura haver desaparecido. - Vou disfarçar-me em Homem,
atravessar o portão, entrar na sala do reator e ativar o Deslocador.

- Você não sabe falar a língua deles - objetou-lhe Pid. - Não vou falar nada. Vou ignorá-los.
Veja.. Rapidamente Ger transformou-se num Homem. - Não está nada mal - disse Pid. Ger
tentou dar alguns passos, procurando imitar o andar desajeitado do Homem.

- Mas tenho receio que isso não vai dar certo - continuou Pid.

- É perfeitamente lógico - sugeriu Ger. - Eu sei. Por isso mesmo as outras expedições devem
ter tentado esse recurso. E nenhuma delas voltou.

Não havia resposta para isso. Ger voltou à forma de tronco. - O que fazer então? -
perguntou. - Deixe-me pensar - disse Pid. Uma outra criatura passou diante deles, sobre
quatro pernas em vez de duas. Pid reconheceu ser um Cão, animal favorito do Homem.
Observou-o cuidadosamente.

O Cão trotou em direção ao portão, de cabeça baixa, sem pressa. Atravessou-o, sem ninguém
impedi-lo, e deitou-se na grama.

- Hummm - fez Pid. Continuaram observando. Um dos Homens passou apressadamente e


tocou na cabeça do Cão. O Cão pôs a lingua fora e rolou no chão.

- Eu também posso fazer isso - afirmou Ger com animação. - E fez menção de se transformar
num Cachorro.

- Não, espere - disse Pid. - Passaremos o resto do dia pensando. É algo demasiado importante
para nos precipitarmos.
Ger assentiu de mau humor. - Vamos voltar - disse Pid.

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Os dois partiram em direção à floresta. Lembraram-se então de Ilg.

- Ilg? - chamou Pid em voz baixa. Não houve resposta. - Ilg! - O quê? Ah, sim - disse um
carvalho, que se transformou num arbusto. - Perdão. O que vocês estavam falando?

- Vamos voltar - ordenou Pid. - Você estava por acaso Pensando?

- Oh, não - respondeu ele. - Estava apenas descansando. Pid não fez nenhum comentário.
Havia já o bastante com que se preocupar.

Discutiram o assunto durante o restante do dia, escondidos nas entranhas da floresta. As


únicas alternativas pareciam ser Homem e Cão. uma Árvore não poderia atravessar o portão,
uma vez que isso não estava na natureza das árvores. Nem qualquer outra coisa, sem
provocar suspeita.

Atravessar o portão como Homem parecia demasiado arriscado. Decidiram que Ger sairia na
manhã seguinte transformado em Cão.

- Agora durmam um pouco - disse Pid. Obedientemente seus dois ajudantes achataram-se,
tornando-se imediatamente Informes. Pid porém teve uma dificuldade maior.

Tudo parecia tão fácil. Por que a instalação atômica não estava melhor protegida?
Certamente os homens deviam ter aprendido alguma coisa das expedições que capturaram no
passado. Ou teriam matado os tripulantes sem interrogá-los?

Não era possível saber exatamente como agia um ser estranho. Seria aquele portão aberto
uma armadilha? Fatigado, Pid deixou-se assumir uma posição confortável em cima do mato
rasteiro. Mas logo se recompôs.
Tinha-se tornado Informe. O conforto não condizia com o dever, pensou consigo, e com
firmeza assumiu a Forma de Piloto.

Mas a Forma de Piloto não fora construída para dormir num chão úmido e irregular. Pid
passou uma noite inquieta, pensando em naves espaciais e desejando estar voando numa.

Acordou na manhã seguinte cansado e indisposto. Cutucou Ger.

- Vamos terminar o serviço! - disse. Ger saltou alegremente em pé.

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- Vamos, Jig! - disse Pid com raiva, olhando em volta. -

Acorde!

Não houve resposta. - Ilg! - chamou de novo. Nenhuma resposta. - Ajude-me a procurá-lo -
disse a Ger. - Ele deve estar por perto.

Juntos examinaram cada arbusto, árvore, tronco e moita na vizinhança. Mas nenhum deles
era Ilg.

Pid começou a ser assaltado por um pânico frio. O que tinha acontecido ao Rádio-operador?

- Talvez tenha decidido atravessar o portão sozinho - sugeriu Ger.

Pid refletiu sobre a possibilidade. Parecia pouco provável. Iig nunca demonstrara muita
iniciativa. Contentara-se sempre em obedecer às ordens.
Esperaram. Chegou o meio-dia e nenhum sinal de Ilg. - Não podemos esperar mais - disse Pid,
e partiram da floresta.

Pid indagava a si mesmo se Ilg tinha tentado atravessar o portão sózinho. Os tipos muito
calados escondem muitas vezes uma natureza temerária.

Não havia nada porém que indicasse que Ilg fora bem sucedido. Era preciso concluir que o
Rádio-operador estava morto ou fora capturado pelos Homens.

Restavam dois ainda para ativar o Deslocador. E ele ainda não sabia o que sucedera às outras
expedições.

Na orla da floresta, Ger transformou-se numa cópia exata de um Cão. Pid o examinou
cuidadosamente.

- O rabo um pouco menor, disse Pid. Ger encurtou o rabo. - Mais orelha. Ger encompridou as
orelhas. - Agora as iguale na altura. Elas se igualaram. Pid inspecionou o produto acabado.
Pelo visto, Ger estava perfeito, da ponta do rabo ao focinho úmido e prêto.

- Boa sorte - augurou-lhe Pid.

- Obrigado. Ger saiu da floresta cuidadosamente, caminhando à maneira bamboleante dos


Cães e dos Homens. No portão, o guarda chamou-o. Pid prendeu a respiração.

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Ger passou pelo homem, sem se deter. O homem começou a andar na sua direção. Ger
partiu na corrida.

Pid formou para si um par de pernas bem fortes, pronto para correr se Ger fosse apanhado.
Mas o guarda voltou ao portão. Ger imediatamente parou de correr e trotou tranquilamente
em direção à porta principal do edifício.

Pid dissolveu suas pernas com um suspiro de alívio ... mas logo tornou a ficar tenso.

A porta principal estava fechada. Pid fez votos para que Ger não tentasse abri-la. Isso não
estava na natureza dos Cães.

Enquanto observava a cena, um outro Cachorro chegou correndo para junto de Ger. Esse
afastou-se dele. O Cachorro aproximou-se e farejou-o. Ger farejou-o de volta.

E os dois saíram correndo em volta do edifício. "ótimo", pensou Pid. "Deve haver uma porta
nos fundos." Olhou de relance para o sol da tarde. Tão logo o Deslocador fosse ativado, os
exércitos de Grom começariam a chegar. Quando os homens se recuperassem do choque, um
milhão ou mais de combatentes de Grom jà estariam ali, com armas e tudo. Seguidos de
outros.

O dia passou lentamente e nada aconteceu. Pid observou com nervosismo a fachada do
edifício. A colocação não deveria levar tanto tempo se Ger houvesse sido bem sucedido.

Esperou até tarde na noite. Homens entravam e saíam da instalação e os Cães latiam em
volta dos portões. Mas Ger não aparecia.

Ger tinha falhado. Ilg desaparecera. Só restava ele. E não sabia ainda o que acontecera.

Na manhã seguinte, Pid estava completamente desesperado. Sabia que a vigésima primeira
expedição Grom para aquele planeta estava prestes a ser um completo fracasso. Agora
dependia tudo dele.

Viu os trabalhadores chegarem em grande número e atravessarem em grupos o portão.


Decidiu tirar partido da confusão e começou a tomar a forma de um Homem.
Um Cão entrou na floresta onde Ele se escondia. - Alô - disse o Cão. Era Ger.

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- O que aconteceu? - perguntou ele, com um suspiro de alívio. - Por que você demorou tanto?
Não foi possível entrar?

- Não sei - respondeu Ger, abanando o rabo. - Não tentei.

Pid ficou sem fala. - Andei caçando - disse Ger com bonomia. - Sabe, esta forma é ideal para
caçar. Saí pelo portão dos fundos com um outro Cachorro.

- Mas a expedição... seu dever... - Mudei de ideia - retorquiu Ger. - Sabe de uma coisa, Piloto,
eu nunca quis ser um Detector.

- Mas você nasceu um Detector. - Isso é verdade, - disse Ger. - Mas não adianta. Sempre quis
ser um Caçador.

Pid balançou o corpo aborrecido. - Não é possível - disse depois, bem devagar, como se
quisesse fazer-se entender de uma criança. - A forma de Caçador lhe é proibida.

- Não, aqui não é - retorquiu Ger, continuando a abanar o rabo.

- Chega de conversa! - exclamou Pid com irritação. - Entre naquela instalação e coloque o
Deslocador! Vou tentar ignorar essa heresia.

- Não - disse Ger - não desejo que os Grom venham para aqui. Eles arruinariam o lugar para
todos nós.
- Ele tem razão - disse um carvalho perto. - Ilg! - exclamou Pid. - Onde está você?

Galhos balançaram. - Estou aqui - disse ele. - Estive pensando.

- Mas... sua casta... - Piloto - tornou Ger com tristeza, - por que você não acorda? A maior
parte dos habitantes de Grom são pessoas miseráveis. Somente o costume nos leva a assumir
a casta de nossos antepassados.

- Piloto - disse Ilg - todos os habitantes de Grom nasceram Informes.

- E tendo nascido Informes, todos os habitantes de Grom deveriam possuir a Liberdade da


Forma, continuou Ger.

- Exatamente! - exclamou Ilg. - Mas ele nunca compreenderá isso. Agora me deem licença.
Desejo Pensar! - E o carvalho calou-se.

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Pid riu sem vontade. - Os Homens os matarão - afirmou - da mesma forma que mataram todas
as outras expedições.

- Ninguém de Grom foi morto, disse Ger. As outras expedições estão todas vivas.

- Vivas? - Claro. Os Homens nem mesmo sabem que existimos. Aquele Cachorro com quem
estava Caçando pertence a décima segunda expedição de Grom. Há centenas de outros aqui,
Piloto. Nós gostamos daqui.

Pid procurou entender. Sempre soubera que as castas inferiores eram displicentes no que
dizia respeito à consciência de Basta. Mas isso superava a medida.
A ameaça secreta deste planeta era: a liberdade. - Reúna-se a nós, Piloto! - sugeriu-lhe Ger. -
Encontramos um paraíso aqui. Sabe quantas espécies existem neste planeta? Um número
incalculável! Há uma forma para cada necessidade.

Pid procurou ignorá-los. "Traidores!" Faria o serviço sozinho. Então os Homens


desconheciam a presença dos habiatntes de Grom. Aproximar-se do reator não seria
portanto uma tarefa tão difícil. Os outros haviam malogrado em seus deveres porque
pertenciam às castas inferiores, fracas e irresponsáveis. Até mesmo os Pilotos entre ales
deveriam simpatizar secretamente com o Culto do Informe que o Chefe mencionara, caso
contrário esse planeta estranho não os teria jamais seduzido.

Que forma assumir para essa tarefa? Pid refletiu. A de Cão seria a mais recomendável. Sem
dúvida os Cães podiam andar por onde bem lhes agradasse. Se algo errado acontecesse, Pid
poderia assumir outra forma para enfrentar a situação.

- O Conselho Supremo se encarregará de vocês - murmurou Pid com irritação, e assumiu a


forma de um pequeno Cachorro de pelo castanho. - Vou colocar pessoalmente o Deslocador.

Examinou-se durante um momento, mostrou seus dentes para Ger e saiu correndo em
direção ao portão.

Correu uns três metros e parou tomado de pânico. Os aromas vinham em sua direção de
todas as direções possíveis. Aromas em profusão e numa variedade que jamais pensara existir.
Aromas ásperos, doces, agudos, pesados, misteriosos, dominadores. Aromas que
aterrorizavam. Estranhos, repulsivos e inevitáveis, os odores da Terra o golpearam como um
sôco.

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Cerrou os lábios e prendeu a respiração. Correu mais alguns passos e teve que respirar de
novo. Quase ficou sufocado.

Procurou tornar seu olfato de Cão menos sensível. Mas não conseguiu. Não era possível, pelo
menos enquanto mantivesse a forma de Cão. Uma tentativa para modificar o metabolismo
também não deu resultado.
Tudo isso durou dois ou três segundos. Estava imobilizado, lutando contra os diversos
cheiros, pensando no que deveria fazer.

Foi então que os ruídos o alcançaram. Era um alarido constante e desigual, dentro do qual o
mais leve sussurro era claro e distinto. Ruídos e mais ruídos - mais rumores do que jamais
ouvira durante toda sua vida. A floresta atrás de si pareceu-lhe repentinamente um hospício.

Inteiramente confuso, perdeu o controle e tomou-se Informe. Correu precipitadamente para a


primeira moita. Ali reassumiu sua forma- anterior, destruindo os ouvidos e o nariz de Cão
mediante golpes furiosos do pensamento.

A Forma de Cão desapareceu. Completamente. Uma tal agudeza de sensações deveria ser
excelente para um Caçador nato como Ger, que se deliciava provavelmente com elas. Mais
um outro momento daquelas impressões teria enlouquecido Pid, o Piloto.

E agora? Deitou-se na moita e pensou sobre o caso, enquanto sua mente gradualmente se
desembaraçava dos últimos efeitos do atordoante assalto dos sentidos.

Olhou para o portão. Os Homens que estavam ali não haviam certamente percebido o seu
fiasco. Estavam olhando numa outra direção.

... um Homem? Bem, valeria a pena tentar.

Examinando os Homens que estavam no portão, Pid assumiu cuidadosamente uma forma
exatamente semelhante - uma síntese, na realidade, incorporando uma qualidade deste e
uma outra daquele.

Saiu para fora da moita do lado oposto ao portão, andando sobre as mãos e os joelhos. Sentiu
o cheiro do ar, observando que os aromas percebidos pelo Homem não eram em absoluto
desagradáveis. Aliás, alguns eram pelo contrário muito agradáveis. Fora a acuidade do
olfato do Cão, o número de aromas percebidos e a intensidade deles que o haviam
perturbado.
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Por outro lado, os ruídos também não eram tão exasperantes. Somente alguns ruídos
próximos eram ouvidos. Tudo o mais confundia-se num sussurro.

Evidentemente, pensou Pid, havia muito tempo que os Homens deixaram de ser Caçadores.

Experimentou depois suas pernas, ficando em pé e dando alguns passos desajeitados. Golpe
surdo do pé no chão. Puxar a outra perna num arco pesado. Golpe surdo. Balançando-se de
um lado para o outro, andou para frente e para trás protegido pelo arvoredo. Seus braços
iam abertos como se procurasse equilibrarse. Sua cabeça pendia sobre o pescoço, até que se
lembrou de erguê-la. A cabeça levantada, os olhos abaixados, não viu uma pequena pedra. O
calcanhar escorregou sobre ela e caiu sentado no chão.

Os quadris doíam. Pid mordeu seus lábios humanos e arrastou-se de volta para a moita.

A Forma humana era insuportavelmente desajeitada. Era desagradável dar um passo de cada
vez. O corpo mantido rigidamente ereto. Os braços balançando. Houvera um dilúvio de
impressões sensoriais na Forma de Cão; havia agora uma inaptidão pesada, rígida e semiviva
na Forma humana.

Além do mais, era perigosa, agora que Pid refletiu melhor sobre o assunto; e muito
desagradável. Não poderia dominá-la perfeitamente. Não daria jamais a impressão correta.
Alguém poderia interrogá-lo. Havia muita coisa sobre os Homens que ele não sabia - nem
podia saber. A colocação do Deslocador era algo demasiado importante para malograr ainda
uma vez. Tivera muita sorte de não ser visto durante a chacina das sensações.

O Deslocador na bolsa em seu corpo pulsava e beliscava, insistindo vivamente para que se
dirigisse à sala do reator.

Com irritação, Pid soltou o último sopro que havia respirado com seus pulmões humanos e
dissolveu os pulmões.
Que outra forma assumir? De novo examinou o portão, os Homens que estavam em volta, o
edifício ao longe no qual estava o importantíssimo reator.

Necessitava de uma forma pequena. Uma forma rápida. Uma forma que passasse
despercebida.

Deitou-se e pensou. A moita crepitou em sua cabeça. Uma pequena forma castanha voara e
pousara num ramo. Saltou para outro ramo, piando. E saiu voando num repente,
desaparecendo em seguida.

Isso, pensou Pid, era o que precisava.

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Um Pardal que não era um Pardal saiu voando do interior da moita alguns momentos depois.
Um observador o teria visto dar a volta na moita, mergulhar, voar rasante, descrever círculos
no ar, como se praticasse todas as manobras possíveis a um Pardal.

Pid retesou os músculos do ombro, inclinou as asas. Deslizou para a direita e aproximou-se da
moita a uma velocidade fantástica, embora soubesse que essa impressão era devida apenas a
seu pequeno tamanho. No último momento levantou a cauda. Mas não tão rápido quanto
deveria. Passou voando pelo alto da moita, mas suas pernas rasparam nas folhas superiores,
seu bico inclinou-se para a frente e rodopiou no ar alguns metros, perdendo o equilíbrio.

Piscou os olhos pequenos como se fosse um desafio. De novo lançou-se em direção à moita
num voo rasante e passou por cima das folhas. Desta vez na perfeição.

Escolheu uma árvore. Voou para o meio dos seus galhos, descreveu inúmeras voltas em torno
do tronco, por cima e por baixo dos galhos que surgiam diante dele, através de forquilhas por
onde mal passava uma pena.

Finalmente descansou num ramo baixo e pôs-se a pipilar alegremente.


A árvore produziu uma extensão do ramo onde Pid estava pousado e tocou na sua asa e na
sua cauda.

- Interessante, - disse a árvore. - Vou experimentar essa forma algum dia.

Era Ilg. - Traidor - assobiou Pid, criando uma boquinha no peito para assobiar; em seguida fez
algo que provocou em Ilg uma exclamação indignada.

Pid voou para longe da floresta. Por cima das moitas rasteiras e pelo espaço aberto em
direção ao portão da fábrica.

Este corpo faria o serviço! Este corpo faria qualquer coisa! Subiu, em questão de algumas
poucas batidas de coração de um Pardal, para a altura de algumas centenas de pés. Dali o
portão, os Homens, o edifício pareciam pequenos, formas precisas contra uma esteira verde-
terra. Pid percebeu que podia avistar as coisas não apenas com uma clareza fora do comum,
como também com um raio de visão que o surpreendeu. À direita e à esquerda enxergava
longe no azul nevoento do céu, e quanto mais alto subia mais longe avistava.

Subiu mais alto. O Deslocador pulsava, lembrando-o do trabalho a ser feito.

53

Estendeu as asas e planou, pondo de lado com tristeza seu desejo de experimentar esta forma
maravilhosa, pelo menos presentemente. Após ter colocado o Deslocador, iria para bem longe
e voaria um pouco mais - em alguma parte onde Ger e Ilg não o pudessem avistar - antes que
o Exército de Grom chegasse e começasse a invasão.

Sentiu uma leve picada de culpa enquanto descrevia círculos no ar. Era Mau desejar manter
essa forma estranha além do tempo absolutamente necessário para a realização do seu
dever. Era uma tentação do Informe...
Mas o que dissera Ilg? Todos os habitantes de Grom nasceram Informes. Era verdade. As
crianças Grom eram amorfas, até crescerem o suficiente para serem instruídas na forma da
casta dos seus antepassados.

Talvez não fosse um pecado tão grande alterar sua Forma - pelo menos uma única vez na vida.
Afinal, a pessoa deveria conhecer perfeitamente a natureza do Mau a fim de rejeitá-la com
conhecimento de causa.

Perdera altitude descrevendo círculos. A pulsação do Deslocador aumentara. Por alguma


razão aquilo o irritava. Subiu mais alto em batidas fortes da asa, descrevendo círculos de
novo. O ar passava correndo por ele - um vento macio e murmurante, atravessado por seu
bico, passando invisivelmente por seus olhos penetrantes, criando na extensão do seu corpo
pequenas turbulências que sopravam suas penas contra a pele.

Ocorreu-lhe - ou antes assaltou-o com uma força considerável - que estava satisfazendo um
desejo de sua Casta de Piloto que era muito mais profundo do que Pilotar.

Voou poderosamente com suas asas, sentiu um vigor em suas costas, voou para cima e para
frente. Lembrou-se dos controles da sua espaçonave. Imaginou estar voando dentro deles,
tornando-se uma parte deles, como havia feito tantas vezes - e pela primeira vez em sua vida
esse pensamento não o entusiasmou.

Nenhuma xriáquina podia se comparar com isso! O que não daria para possuir asas
próprias! ... Afasta-te da minha frente, Informe! O Deslocador deveria ser colocado, ativado.
Todos os habitantes de Grom dependiam dele.

Olhou para o edifício, là em baixo. Passaria sobre ele. O Deslocador lhe diria por qual janela
entrar - qual delas ficava tão perto do reator que pudesse fazer seu serviço antes mesmo que
os Homens percebessem o que se passava.

Começou a descer quando o Gavião o atacou.

54
Estivera voando sobre sua cabeça. A primeira suspeita do perigo foi a dor forte das garras nas
suas costas e o golpe atordoante do bico em sua cabeça.

Aturdido, deixou suas costas perderem a forma. A substância do seu corpo fluiu pela ferrada
das garras. Desceu alguns metros e assumiu de novo a forma de pardal, ouvindo o pio terrível
do atacante.

Inclinou o corpo e olhou para cima. O Gavião o observava. As garras se estenderam


novamente. O bico forte abriu-se. O Gavião precipitou-se sobre ele.

Pid deveria lutar como pássaro. Estava a quatrocentos pés acima do solo.

De sorte que se transformou num Pássaro terrivelmente mortal. Cresceu duas vezes o
tamanho do Gavião. Cresceu um bico de- um pé de comprimento com dois bordos de corte.
Cresceu garras como cimitarras de seis polegadas. Seus olhos brilhavam vermelhos e
desafiadores.

O Gavião suspendeu sua bicada gritando alarmado. Apavorado, a cauda baixa e aberta, bateu
as asas vigorosamente e brecou a seis pés de distância de Pid.

Olhando pensativamente para Pid, mergulhou no espaço. Caiu cerca de cem pés, abriu as
asas, esticou o pescoço e voou tão rapidamente que suas asas se tornaram manchas.

Pid não viu razão para persegui-lo. Mas então, após um momento, partiu em sua perseguição.
Planou, mantendo o Gavião à vista, os pensamentos correndo, sentindo a novidade, o poder,
a maravilha da Liberdade da Forma.

Liberdade... Não desejava perdê-la. A forma de pássaro era maravilhosa. Faria experiências
com ela. Mais tarde, talvez se cansasse dela e assumisse uma outra - uma forma de se
arrastar ou de correr, ou talvez mesmo de nadar. As possibilidades de excitação, de aventura,
de realização e de simples prazer sensual eram inesgotáveis!
A Liberdade de Forma era - agora que pensava sobre isso - o direito legítimo dos habitantes de
Grom. E o sistema de castas era inteiramente artificial. Um recurso evidente para benefício
político e sacerdotal.

Afasta-te de mim, Informe ... isto não te diz respeito. Subiu a uns mil pés de altura, dois mil,
três mil. A pulsação do Deslocador tornou-se mais fraca - e finalmente cessou.

A quatro mil pés de altitude Pid soltou do corpo o Deslocador e observou-o rodopiar no
espaço, até desaparecer numa nuvem.

55

Depois partiu atrás do Gavião, que era agora um pequeno ponto no horizonte. Descobriria a
maneira como o Gavião havia interrompido seu voo no espaço - patinado para ser exato - e
gostaria imensamente de fazer isso também! Havia tantas coisas que gostaria de aprender
sobre o voo dos pássaros. Numa semana, pensou, estaria apto a copiar todas as habilidades
que os milhares de anos haviam evoluído na forma dos Pássaros. Então começaria realmente
uma vida nova.

Assumiu a forma de um torpedo com imensas asas e voou velozmente atrás do Gavião.

56

***

O Homem Precipitado no Tempo

PARA: CENTRO

Escritório 41 AT. DE: Supervisor Miglese DE: Empreiteiro Carienomen ASSUNTO: Metagaláxia
ATTALA
Prezado Supervisor Miglese:

Desejo informá-lo que terminei o contrato 13371A. Na região do espaço assinalada como
ATTALA I construí uma metagaláxia, incorporando 549 bilhões de galáxias, com a distribuição
habitual de grupos estelares, variáveis, novas, etc. Favor consultar a folha de especificações
anexa.

Os limites exteriores da metagaláxia ATTALA estão definidos no mapa anexo.

Em meu nome pessoal, como planificador-chefe, e no de minha companhia, estou confiante


que realizamos um judicioso trabalho de construção, bem como uma obra de grande mérito
artístico.

Apreciaremos sua inspeção. Havendo cumprido os termos do contrato, a quantia estipulada


pode ser paga a qualquer momento.

Respeitosamente,

Carienomen

Anexo: 1 folha de especificações das instalações 1 mapa da metagaláxia ATTALA

57

PARA: Escritório Central de Construções

334132, Setor 12 AT. DE: Planificador-chefe Carienomen DE: Supervisor Assistente Miglese
ASSUNTO: Metagaláxia ATTALA
Prezado Carienomen:

Examinamos sua construção e suspendemos por isso o pagamento da quantia estipulada.


Obra artística? Imagino que seja artística. Mas você não se esqueceu do nosso principal
objetivo na construção da obra?

É uma questão de coerência, apenas para lembrá-lo. Nossos inspetores descobriram uma
série de dados sem explicação que estão ocorrendo até mesmo em torno do centro
metagaláxico, região essa que seria de esperar fosse cuidadosamente edificada. Isso não
pode continuar. Felizmente a região é despovoada.

E não é tudo. Você poderia explicar seus fenômenos espaciais? Pelo caos em que vivemos, o
que significa este deslocamento para o vermelho* que foi construído? Li sua explicação sobre
o assunto e não faz nenhum sentido para mim. Como os observadores planetários o
considerarão?

Efeitos artísticos não são desculpa. Ademais, que espécies de átomos são esses que você está
utilizando? Carienomen, será que você està economizando dinheiro com material de
segunda? Uma boa porcentagem destes átomos é instável. Eles se partem ao contato dos
dedos, ou até mesmo sem o contato dos dedos. Será que você não poderia inventar uma
outra maneira de iluminar seus sóis?

Anexo vai uma folha de dados, apresentando as irregularidades descobertas por nossos
inspetores. O pagamento não sai enquanto elas não forem esclarecidas.

E há ainda um outro assunto importante, que me ocorreu agora. Evidentemente você não
deu muita atenção às tensões e desgastes em sua construção espacial. Descobrimos um
defeito no

(*) Alusão ao fenómeno denominado Deslocamento de Einstein: as linhas do espectro solar


tendem para o vermelho, graças à passagem de ondas luminosas por um campo gravitacional
forte. (N. do T. ).

58
tempo próximo à periferia de uma de suas galáxias. É pequeno, no momento, mas pode
aumentar. Sugiro que você se ocupe disso imediatamente, antes que tenha que reconstruir
uma galáxia ou duas.

Um dos habitantes do planeta, atingido pelo defeito no tempo, já sofreu um impacto; foi
precipitado no defeito temporal, e isso unicamente em consequência de um descuido seu.
Sugiro que você corrija isso antes que o indivíduo atingido saia de sua sequência de tempo
normal, criando paradoxos a torto e a direito.

Entre em contato com ele, se tal fôr o caso! Fora isso, fui informado da existência de
fenômenos inexplicáveis em alguns dos seus planetas; refiro-me aos porcos voadores,
montanhas movediças, fantasmas e outros casos semelhantes - como estão enumerados na
folha de reclamações.

Não desejamos que tais coisas aconteçam, Carienomem! Um paradoxo é algo inteiramente
proibido nas galáxias criadas, uma vez que o paradoxo é o antecessor inevitável do caos.

Procure resolver imediatamente o caso do indivíduo mencionado! Ignoro se o indivíduo


precipitado no tempo jà percebeu o ocorrido.

Miglese

Anexo:

1 folha de reclamações

Kay Masrin dobrou a última blusa na mala e, com o auxílio do marido, fechou-a.

- Pronto - disse Jack Masrin, levantando a enorme mala. - Está na hora de dizer adeus a nossa
velha moradia.
Os dois olharam em volta para o quarto mobiliado onde haviam habitado no último ano.

- Adeus, meu lar - despediu-se Kay. - Veja lá se não vamos perder o trem.

- Temos bastante tempo ainda. - Masrin encaminhou-se para a porta. - Vamos dizer adeus ao
Felizardo?

Haviam dado esse apelido ao senhor Harf, o senhorio, e isso porque ele sorria apenas uma vez
por mês, quando recebia o aluguel. Naturalmente, logo depois sua boca assumia o ar de
afetação costumeiro.

- É melhor não - disse Kay, ajeitando seu vestido. - Talvez ele nos deseje felicidades e sabe lá o
que poderia acontecer...

- Você tem razão - assentiu Masrin. - Não vale a pena recomeçar uma vida nova com a bênção
do Felizardo. Preferiria que a feiticeira de Endor me amaldiçoasse.

59

Acompanhado de Kay, Masrin dirigiu-se para o alto da escada. Olhou para o primeiro andar
em baixo, fez menção de dar o primeiro passo e parou abruptamente.

- O que foi? - perguntou Kay. - Não nos esquecemos de nada? - perguntou Masrin, franzindo a
testa.

- Examinei todas as gavetas e embaixo da cama. Vamos, já é tarde.

Masrin olhou novamente para a escada. Algo o preocupava. Procurou rapidamente a origem
de sua preocupação. Bem entendido, não possuíam pràticamente dinheiro algum. Mas isso
nunca o preocupara no passado. Tinha afinal um emprego de professor, ainda mesmo que
fosse em Iowa. E isto era o fato importante, após ter trabalhado durante um ano numa
livraria. Tudo ia se resolver. Por que haveria de se preocupar?
Desceu mais um degrau e parou novamente. O sentimento era estranho. Havia algo que não
deveria fazer. Olhou para Kay.

- Será que você odeia tanto se mudar? - perguntou Kay. - Vamos ou o Felizardo vai nos
cobrar mais um mês de aluguel, que, por alguma estranha razão, não temos meios de pagar.

Masrin contudo hesitava ainda. Kay passou na sua frente e desceu as escadas.

- Está vendo? - disse ela do primeiro andar. - Não tem problema. Vamos, sua mamãe está
chamando.

Masrin murmurou algumas pragas e começou a descer a escada. O sentimento tornou-se


ainda mais estranho.

Chegou ao oitavo degrau e... Estava numa planície coberta de relva. A transição foi
exatamente essa: repentina e inesperada.

Respirou com dificuldade e piscou os olhos. A mala estava ainda na sua mão. Mas onde
estava o arenito pardo da escadaria? Onde estava Kay? Onde estava afinal Nova Yorque?

Na distância avistava-se uma pequena montanha azulada. Havia um punhado de árvores


próximas. Diante das árvores estavam uma dúzia ou mais de homens.

Masrin parecia perplexo como se sonhasse. Observou, quase sem fazer caso, que os homens
eram pequenos, de pele escura, bem musculosos. Vestiam tangas e seguravam davas
maravilhosamente trabalhadas e esculpidas.

Eles o observavam e Masrin pensou que era difícil dizer quem estava mais surpréso.
Foi então que um deles murmurou alguma coisa e começaram todos a caminhar em sua
direção.

60

Um bastão atingiu sua mala. O susto terminou. Masrin voltou-se, largou sua mala e se pôs a
correr como um galgo. Um outro bastão atingiu suas costas, quase o derrubando. Estavam
em frente a uma colina; ele subiu correndo em direção ao alto, enquanto as flechas choviam..

Alguns passos mais adiante, percebeu que estava de volta em Nova Yorque.

Estava no alto da escada e ainda continuava correndo; antes que pudesse controlar-se, bateu
contra uma parede. Kay estava no primeiro andar, olhando para cima. Ela ficou boquiaberta
ao vê-lo, mas não disse nada.

Masrin olhou para as paredes familiares e sombrias côr de malva e depois para sua mulher.

Não havia mais selvagens. - O que aconteceu? - sussurrou Kay, o rosto lívido, subindo as
escadas.

- O que foi que você viu? - perguntou Masrin. - Ele não entendera completamente o que
sucedera. Idéias jorravam em sua cabeça, teorias, conclusões.

Kay hesitou, mordendo o lábio inferior: - Você desceu alguns degraus e depois desapareceu.
Não pude vê-lo mais. Fiquei parada ali, olhando e procurando. Foi então que ouvi um ruído e
você estava de volta na escada, correndo...

Voltaram para o quarto e abriram a porta. Kay sentou-se imediatamente na cama. Masrin
caminhava de um lado para o outro, prendendo a respiração. As ideias continuavam a jorrar
na sua cabeça e tinha dificuldade em analisá-las.
- Você não vai acreditar - disse ele. - Por que não? Experimente! Me contou-lhe a respeito
dos selvagens. - Você poderia me contar que estivera em Marte - disse Kay - que acreditaria.
Eu o vi desaparecer.

- Minha mala! - exclamou Masrin subitamente, lembrando-se que a tinha largado.

- Esqueça-se da mala - disse Kay. - Tenho que voltar para procurá-la - disse Masrin. - Não! -
Tenho que ir. Ouça, querida, està mais do que evidente o que aconteceu. Entrei por uma
espécie de defeito no tempo que me enviou de volta ao passado. Devo ter chegado à

61 pré-história, segundo posso julgar pela recepção que tive. E preciso voltar là para buscar
minha mala.

- Por quê? - perguntou Kay. - Porque não posso permitir que ocorra um paradoxo. Masrin
nem mesmo se perguntou como sabia disso. Seu egoísmo natural salvou-o de indagar a si
mesmo como essa ideia se formara em sua mente.

- Veja bem - disse ele - minha mala vai parar no passado. Nela tinha um barbeador elétrico,
algumas calças com ziper, uma escova plástica, uma camisa de nylon e uma dúzia de livros -
alguns publicados recentemente, em 1951. Inclusive o livro de Ettison, Western Ways, que é
um estudo sobre a civilização ocidental a partir de 1490 até agora. O conteúdo dessa mala
daria aos selvagens o incentivo para transformar sua história. E imagine se alguns asses
objetos caem nas mãos dos europeus, após terem descoberto a América? Como isso afetaria
o presente?

- Não sei - disse Kay. - E você tampouco sabe. - Claro que sei, - disse Masrin. Estava tudo claro
como água. Ele se admirava que sua mulher não compreendesse a lógica do raciocínio.

- Procure ver o fato desse ângulo - continuou Masrin. - As coisas pequenas fazem a história. O
presente é o resultado de um número tremendo de fatores infinitesimais, que por sua vez
formaram e moldaram o passado. Se nós acrescentarmos um outro fator ao passado vamos
ter um resultado diferente no presente. Mas o presente enquanto tal é imutável. Assim
temos um paradoxo. E lá não é possível a existência de paradoxos.
- Por que lá não é possível? - perguntou Kay. Masrin franziu a testa. Para uma jovem
inteligente, ela acompanhava seu raciocínio com dificuldade.

- Acredite-me - disse ele. - O paradoxo não é permitido num universo lógico.

Permitido por quem? ele tinha a resposta. - Segundo entendo - continuou Masrin, deve haver
um princípio regulador no universo. Todas as nossas leis naturais são expressões dele. Este
princípio não tolera o paradoxo, porque. porque... - Ele sabia que a resposta relacionava-se
com a supressão do caos fundamental, mas não sabia a razão disso.

- Seja como fôr, esse princípio não tolera o paradoxo. - De onde você tirou essa ideia? -
perguntou Kay. Ela nunca ouvira Jack falar daquela maneira.

- Faz muitos anos que penso nessas coisas - disse Masrin, com convicção. - Simplesmente não
havia motivo para falar sobre isso. De qualquer forma, vou voltar para apanhar minha mala.

62

Dirigiu-se para o patamar da escada acompanhado por Kay. - Desculpe não poder trazer
nenhuma lembrança - concluiu Masrin em tom de brincadeira. - Infelizmente, isso resultaria
num paradoxo. Tudo que existe no passado teve uma participação na feitura do presente.
Remova alguma coisa e é o mesmo que remover uma incógnita numa equação. Não terà mais
o mesmo resultado.

Dito isto, começou a descer os degraus da escada. No oitavo degrau, tornou a desaparecer.

Estava de volta à América pré-histórica. Os selvagens encontravam-se reunidos em torno da


mala, somente alguns passos adiante dele. Ainda não a tinham aberto, percebeu Masrin com
alívio. Naturalmente, só a mala jà era um artigo bastante paradoxal. Mas sua visão - bem
como a dele - seriam provavelmente absorvidas no mito e na legenda. O tempo possuía uma
certa parcela de flexibilidade.
Observando os selvagens, Masrin não podia decidir se eram os antepassados dos índios, ou
uma sub-raça separada que não sobreviveu. Pensou consigo mesmo se eles o consideravam
um inimigo ou um espírito maligno das matas.

Masrin correu, afastou dois índios de seu caminho e agarrou a mala. Correu de volta, em
torno da pequena colina, e parou.

Estava ainda no passado. "Com todos os diabos", pensou Masrin, "onde estava aquele buraco
no tempo?" sem nem perceber a estranheza do seu desejo. Os selvagens aproximavam-se,
cercando o pequeno morro. Masrin tinha quase a resposta, mas tornou a perdê-la quando
uma flecha passou zumbindo por ele. Saiu correndo, procurando manter a colina entre ele e
os índios. Suas pernas compridas voavam; um bastão bateu no chão atrás dele.

Onde estava aquele buraco no tempo? O que aconteceria se houvesse saído do lugar? O suor
escorria do seu rosto enquanto corria. Um outro bastão raspou seu braço; Masrin deu a volta
no morro, procurando aflitamente um abrigo.

Encontrou três selvagens agachados que correram em sua direção.

Masrin caiu no chão enquanto os selvagens balançavam seus cacetes e pisavam sobre seu
corpo. Outros aproximavam-se agora; levantou-se de um salto.

"Para cima!" O pensamento surgiu subitamente, interrompendo seu medo. "Para cima!"

63

Galgou o morro, certo de que nunca atingiria o alto vivo. E estava de volta na pensão,
segurando a mala na mão. - Está ferido, meu bem? - disse Kay passando o braço em volta de
seu pescoço. - O que aconteceu?

Masrin só tinha um pensamento racional na mente. Não se lembrava de nenhuma tribo


norte-americana pré-histórica que possuísse clavas tão bem esculpidas como as daqueles
selvagens. Era uma forma de arte quase única e desejou ter apanhado uma delas para doar a
um museu.

Depois olhou apavorado para as paredes sombrias côr de malva, imaginando ver os selvagens
saindo para fora delas. Ou talvez sua mala contivesse alguns homens pequenos. Lutou para
controlar-se. A parte de sua mente que refletia dizia-lhe para não se alarmar; defeitos no
tempo eram possíveis, e ele fora precipitado no interior de uma dessas fendas temporais.
Tudo mais decorria logicamente. Tudo que tinha a fazer...

Uma outra parte porém de sua mente não estava interessada em lógica. Continuava
analisando friamente a impossibilidade total da ocorrência, sem se deixar influenciar pelos
argumentos racionais. Essa parte reconhecia uma impossibilidade quando se deparava com
uma e o informava disso.

Masrin deu um grito e perdeu os sentidos.

PARA: CENTRO

Escritório 41 AT. DE: Supervisor Assistente Miglese DE: Empreiteiro Carienomen ASSUNTO:
Metagaláxia ATTALA

Prezado senhor:

Considero sua atitude injusta. Sem dúvida, utilizei algumas ideias novas no caso desta
metagaláxia. Permiti-me a latitude da arte, sem jamais me ocorrer que seria assaltado pelos
gritos de um CENTRO estático e reacionário.

Acredite-me, estou tão interessado quanto o senhor em nossa grande obra - a de suprimir o
caos fundamental. Mas ao realizar isso, não devemos sacrificar nossos valores.

Anexo segue uma defesa relacionada com meu uso do desvio para vermelho e uma
declaração das vantagens obtidas pela utilização de uma pequena porcentagem de átomos
instáveis com a finalidade de iluminação e energia.
Quanto ao defeito no tempo, isso foi simplesmente um pequeno erro no fluxo de duração e
não tem nada a ver com a construção espacial que é, posso assegurar-lhe, de primeira
qualidade.

64

Aconteceu de fato, como o senhor indica, que um indivíduo foi atingido pelo defeito no
tempo, o que torna o reparo do erro, algo ligeiramente mais árduo. Entrei em contato com o
indivíduo, indiretamente é claro, e consegui fornecer-lhe uma compreensão limitada de sua
função.

Caso ele não perturbe em demasia o defeito no tempo me- diante viagens no tempo, serei
capaz de remediar o mal sem maiores dificuldades. Não sei contudo se este recurso serà
possível. Minha relação com o indivíduo em questão é bastante precária, e parecem existir
algumas fortes influências em sua vizinhança, aconselhando-o a mover-se.

Poderia praticar naturalmente uma extração - e talvez seja, em última instância, o que faça.
Por esse motivo, se o caso escapar do meu controle, serei forçado a extrair o planeta inteiro.
Espero que tal não ocorra, uma vez que implicaria a eliminação de toda essa parte do espaço,
onde existem também observadores locais. Isto, por sua vez, exigiria a reconstrução da galáxia
inteira.

Entretanto, espero ter resolvido o problema até a próxima vez que me comunicar consigo.

O distúrbio no centro metagaláxico foi provocado pelo fato de alguns trabalhadores terem
deixado uma unidade de distribuição aberta. Ela já foi fechada.

Os fenômenos tais como montanhas ambulantes, etc., estão sendo resolvidos da forma
habitual.

O pagamento combinado continua sendo aguardado.


Respeitosamente

Carienomen

Anexo: 1 relatório, 5.541 páginas, Deslocamento para Vermelho 1 relatório, 7.689 páginas,
Átomos Instáveis

PARA: Escritório Central de Construções

334132, Setor 12 AT. DE: Empreiteiro Carienomen DE: Supervisor Assistente Miglese
ASSUNTO: Metagaláxia ATTALA

Carienomen:

Você serà pago após ter mostrado a mim um trabalho lógico e decentemente construído.
Lerei seus relatórios quando e se tiver oportunidade. Ocupe-se com o impacto causado pelo
defeito no tempo antes que abra um buraco em toda a construção espacial!

Miglese

65

Masrin recuperou-se em meia hora. Kay colocou uma compressa na inflamação que tinha no
braço. Masrin começou a andar de um lado para o outro do quarto. Ainda uma vez, estava na
perfeita posse de suas faculdades. As ideias começavam a voltar.

- O passado està embaixo - disse ele, pensando em voz alta. - Talvez não seja realmente
"embaixo" que quero dizer; mas toda vez que tomei essa direção, rolei pelo buraco do tempo.
É um caso de mudança conjunta de dimensionalidade.

- O que significa isso? - perguntou Kay, arregalando os olhos para seu marido.
- Acredite no que estou dizendo - respondeu Masrin. - Não posso descer!

Não sabia explicar melhor seu pensamento. Não havia palavras que expressassem esse
conceito.

- E subir você pode? - perguntou Kay, completamente confusa.

- Não sei. Suponho que se subisse, iria para o futuro. - Ah, não posso entender isso, - disse
Kay. - O que se passa com você? Como você sairá daqui? Como você conseguirá descer essa
escada assombrada?

- Ainda estão em casa? - grosnou a voz do senhor Harf no corredor.

Masrin dirigiu-se à porta e abriu-a. - Creio que vamos nos demorar um pouco mais, disse ao
senhorio.

- Não é possível, - disse Harf. - Já aluguei esse quarto para outra pessoa.

O Felizardo Had era um homem pequeno e ossudo, com a cabeça estreita e lábios finos como
um fio de aranha. Entrou no quarto procurando alguns sinais de danos causados a sua
propriedade. Uma das pequenas idiossincrasias do senhor Had era a convicção que as
melhores pessoas do mundo eram capazes de cometer os piores crimes.

- Quando chegam os novos inquilinos? - perguntou Masrin. - Hoje à tarde. E desejo que
deixem o quarto antes da chegada deles.

- Não seria possível dar um jeito? - indagou Masrin. A impossibilidade da situação o


perturbou. Não podia descer as escadas. Caso Harf o forçasse a deixar o quarto, teria que
voltar à Nova Yorque pré-histórica, onde estava certo que sua volta era ansiosamente
aguardada.
Fora isso, havia o terrível problema do paradoxo. - Estou doente, - disse Kay com a voz
sumida. - Não posso sair agora.

66

- Que doença a senhora tem? Eu chamo uma ambulância se estiver doente, - disse Harf,
olhando com desconfiança em volta do quarto à procura de algum sintoma de peste
bubônica.

- Pagarei de boa vontade o dôbro do aluguel para ficarmos um pouco mais, - disse Masrin.

Harf coçou a cabeça e olhou friamente para Masrin. Esfregou o nariz com as costas da mão e
disse: - Onde está o dinheiro?

Masrin lembrou-se que só tinha dez dólares no bolso e suas passagens de trem. Ele e Kay
pretendiam pedir um adiantamento tão logo chegassem ao colégio.

- Está sem dinheiro, - disse Harf. - Pensei que o senhor tivesse um emprego num colégio.

- E ele tem, - retrucou Kay com firmeza. - Então por que não vão para là e saem do meu
quarto? perguntou Harf. Os dois ficaram em silêncio. Harf olhou para eles. - Muito esquisito.
Saiam antes do meio-dia ou chamo a polícia!

- Espera aí! - exclamou Masrin. - Pagamos a conta até hoje. O quarto é nosso até meia-noite
em ponto.

Harf olhou para os dois. Esfregou de novo o nariz, pensativamente.

- Não fiquem um minuto a mais, - impôs, saindo do quarto.


Mal Harf saiu, Kay correu fechar a porta. - Meu bem, - disse ela, - por que você não chama
alguns cientistas de Nova Yorque e lhes conta o que aconteceu? Tenho certeza que farão
alguma coisa, até que... quanto tempo deveremos permanecer aqui?

- Até que o defeito seja reparado, - disse Masrin. - Mas não podemos revelar isso a ninguém;
sobretudo, não podemos informar a nenhum cientista.

- Por quê? - insistiu Kay. - Ouça, a coisa importante, como lhe disse, é evitar um paradoxo.
Isto significa que devo me manter distante tanto do passado quanto do futuro, entende?

- Se é assim ... - O que aconteceria se convocasse uma equipe de cientistas? Naturalmente,


são todos céticos. Desejam ver para crer. De sorte que teria de repetir o fenômeno.
Imediatamente, chamariam outros colegas. E eles me veriam desaparecer. Entenda, durante
todo esse tempo não há nenhuma prova de que voltei ao passado. Tudo que eles sabem é
que se descer as escadas, desapareço da vista.

67

Fotógrafos serão chamados para garantir que não estou hipnotizando os cientistas.
Depois pedem uma prova. Pedem-me que traga do passado um escalpo, ou uma das davas
esculpidas. Os jornais se apoderam do assunto. É inevitável que em algum momento da
experiência eu produza um paradoxo. E você sabe o que aconteceria nesse caso?

- Não, nem você tampouco. - Eu sei, - afirmou Masrin com firmeza. - Uma vez provocado um
paradoxo, o agente, o homem que o causou, desaparece. Para sempre. E ele entra para os
livros como mais um mistério insolúvel. Dessa forma, o paradoxo é solucionado da forma
mais simples - eliminando o elemento paradoxal.

- Se você acredita que corre perigo, então nesse caso naturalmente não devemos chamar
cientista algum, - disse Kay. - Embora eu desejasse saber o que significa tudo isso, não entendi
nada do que você disse.

Kay dirigiu-se à janela e olhou para fora: là estava Nova Yorque e além, em alguma parte,
estava Iowa - local para onde se dirigiriam. Ela olhou para o relógio. Já tinham perdido o trem.
- Telefone para o colégio, - disse Masrin. - Diga-lhes que me atrasarei alguns dias.

- Isso vai levar apenas alguns dias? - indagou Kay. - Como você vai fazer para sair daqui?

- Bem, o buraco no tempo não é permanente, - disse Masrin com convicção. - Ele vai ser
reparado... contanto que não me meta mais nele.

- Mas só podemos ficar aqui até a meia-noite. O que faremos depois?

- Não sei, - respondeu Masrin. - Esperemos que o defeito tenha sido reparado até lá.

PARA: CENTRO

Escritório 41 AT. DE: Supervisor Assistente Miglese DE: Empreiteiro Carienomen ASSUNTO:
Metagaláxia MORSTT

Prezado Senhor:

Anexo d presente segue meu projeto de trabalho para a nova metagaláxia na região
denominada MORSTT. Caso o senhor tenha ouvido as discussões recentes nos círculos
artísticos, verificará que minha utilização dos átomos instáveis na Metagaláxia ATTALA foi
proclamada "o primeiro grande progresso realizado na engenharia criadora desde a invenção
do fluxo de tempo variável". Favor consultar os artigos anexos.

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Minha arte provocou muitos comentários favoráveis. A maior parte das incoerências -
incoerências naturais, permita-me lembrar-lhe - ocorrida na Metagaláxia ATTALA foi corrigida.
Estou ainda me ocupando com o indivíduo atingido pelo defeito no tempo. Ele está
cooperando devidamente; pelo menos, age tão cooperativamente quanto possível, levando-
se em conta as influências que o rodeiam.

No momento, já soldei as extremidades do defeito e estou deixando endurecerem. Espero


que o indivíduo permaneça imóvel, uma vez que não é do meu desejo eliminar quem quer que
seja, ou coisa alguma. Afinal, cada pessoa, cada planeta, cada sistema estelar por menor que
seja possui uma parte integral no meu esquema metagaláxico.

Pelo menos artisticamente. Sua inspeção é bem-vinda mais uma vez. Favor observar as
configurações galáxicas em torno do centro metagaláxico. Elas são um sonho de beleza que o
senhor desejará ter sempre consigo.

Rogo examinar minha sugestão para o projeto da Metagaláxia MORSTT à luz das minhas
realizações passadas.

O pagamento correspondente à Metagaláxia ATTALA continua sendo aguardado.

Respeitosamente

Carienomen

Anexo:

1 sugestão, para o projeto da Metagaláxia MORSTT 3 artigos sobre a Metagaláxia ATTALA

- São onze e quarenta e cinco, querido, - lembrou Kay com nervosismo. - Você acha que
podemos sair agora?

- Vamos esperar alguns minutos mais, - disse Masrin. Ele podia ouvir Harf andando de um
lado para o outro do patamar, esperando ansiosamente que o relógio desse a meia-noite.
Masrin observava o ponteiro dos segundos no seu relógio. Quando faltavam cinco para a
meia-noite, chegou à conclusão que seria preciso experimentar. Caso o buraco não houvesse
sido reparado, não seriam mais cinco minutos que adiantariam.

Colocou a mala sobre a cômoda e aproximou uma cadeira. - O que você está fazendo? -
indagou Kay. - Não gostaria de descer essas escadas à noite, - disse Masrin. - Já basta ter que
correr dos índios pré-históricos durante o dia. Vou tentar subir, em vez disso.

69

Kay lançou-lhe um olhar que significava: agora-eu-sei-quevocê-está-louco-varrido.

- Não é a escada que importa, - disse Masrin. - É o ato de descer ou de subir. A distância
crítica parece estar acima de cinco pés. Esta cadeira servirà perfeitamente.

Kay observou a ação com nervosismo, apertando e soltando as mãos, enquanto Masrin subia
na cadeira e colocava um pé em cima da cômoda. Depois o outro e ficou em pé.

- Penso que vai dar resultado, - acrescentou, vacilante. - Vou tentar subir um pouco mais.

Subiu em cima da mala. E desapareceu.

Era dia e estava numa cidade. A cidade porém não parecia Nova Yorque. Era
surpreendentemente bela - tão bela que Masrin não ousava respirar, com receio de desfazer
sua frágil beleza.

Era uma cidade de tôrres e edifícios delicados e finos. Como eram também as pessoas. "E
que pessoas", pensou Masrin, respirando com um suspiro.

As pessoas possuíam peles azuis. A luz era verde, proveniente de um sol tingido de verde.
Masrin aspirou profundamente e sentiu-se asfixiado. Respirou novamente e sentiu que perdia
o equilíbrio. Não havia ar no lugar! Pelo menos um ar que pudesse respirar. Procurou dar um
passo para trás e tropeçou...

Indo cair, asfixiado e convulso, no chão do seu quarto.

Após alguns momentos podia respirar de novo. Ouviu Harf batendo na porta. Masrin
levantou-se rapidamente e procurou pensar em alguma coisa. Conhecia Harf; o homem estava
agora certo Que Masrin chefiava a Máfia. Chamaria um guarda se não saíssem da casa. E isso
resultaria finalmente em...

- Ouça, - disse para Kay. - Tenho uma ideia. Sua garganta ardia em consequência da atmosfera
do futuro. Contudo, pensou consigo, não havia razão para estar surprêso. Havia dado um
grande salto para a frente. A composição da atmosfera da terra deveria ter mudado, pouco a
pouco, e as pessoas haviam se adaptado a ela. Mas era um veneno para ele.

- Há duas possibilidades agora, - disse para Kay. - Uma, que sob uma camada pré-histórica
exista uma outra, uma camada mais antiga. A segunda, que a camada pré-histórica é apenas
uma

70

descontinuidade temporária. Aquela abaixo dessa é a atual cidade de Nova Yorque.


Entendeu?

- Nada. - Vou tentar ir abaixo da camada pré-histórica. Talvez me leve ao andar térreo. Na
pior das hipóteses, não poderá ocorrer nada pior do que a situação presente.

Kay refletiu um instante sobre a lógica de voltar alguns milhares de anos no passado a fim de
andar uns dez passos, mas não disse nada.

Masrin abriu a porta e desceu as escadas, seguido por Kay. - Deseje-me boa sorte! - disse ele.
- Boa sorte coisa nenhuma, - disse o senhor Had no patamar. - Vamos dando o fora daqui!
Masrin mergulhou na escada.

Era manhà ainda na cidade pré-histórica de Nova Yorque e os selvagens continuavam


aguardando-o Masrin calculou que transcorrera apenas uma meia hora naquele lugar. Não
teve tempo para indagar a razão disso.

Ele os apanhara de surprêsa e estava a umas vinte jardas de distância antes deles o
perceberem. Os selvagens o perseguiram e Masrin procurou uma depressão no terreno.
Deveria descer cinco pés a fim de sair daquele local.

Encontrou um barranco e saltou. Estava dentro dágua. Não na superfície da água, mas
embaixo dágua. A pressão era tremenda e Masrin não podia ver a luz do sol sobre sua cabeça.

Atingira provavelmente uma época em que esta parte da terra estava submersa pelo
Atlântico.

Masrin esperneou violentamente, os ouvidos estourando. Começou a subir para a superfície


e...

Estava de volta na planície, enxarcado dágua. Desta vez, os selvagens ficaram perplexos.
Olharam para ele, materializado em sua frente, deram um grito de terror e partiram
correndo.

O espírito da água era forte demais para eles. Exausto, Masrin voltou para a colina, subiu até o
alto e encontrou-se de volta na escada de pedra da pensão.

Kay estava olhando para ele e Harf o considerava de boca aberta. Masrin sorriu sem forças.

- Senhor Harf, - disse, - quer chegar até o meu quarto? Há algo que desejo lhe contar.
71

PARA: CENTRO

Escritório 41 AT. DE: Supervisor Assistente Miglese DE: Empreiteiro Carienomen ASSUNTO:
Metagaláxia MORSTT Prezado Senhor:

Não posso compreender sua resposta à minha oferta para o trabalho de construção da
Metagaláxia MORSTT. Além disso, não creio que a obscenidade esteja em seu devido lugar
numa carta comercial.

Se o senhor deu-se ao trabalho de inspecionar meu serviço recente na Metagaláxia ATTALA,


verificará que se trata, tudo bem considerado, de uma belíssima obra que marca um grande
passo na eliminação do caos fundamental.

O único detalhe em suspenso é o caso do homem atingido. Receio que serei forçado a extrair.

O defeito estava se corrigindo perfeitamente quando ele caiu de novo dentro dele, piorando
ainda mais as coisas. Ainda não ocorreu até agora nenhum paradoxo, mas posso vislumbrar
um que se aproxima.

A menos que o indivíduo em questão consiga controlar seu ambiente, e isso imediatamente,
serei obrigado a dar o passo necessário. O paradoxo não é permitido.

Considero do meu dever solicitar-lhe que reconsidere minha oferta para o projeto da
Metagaláxia MORSTT.

E espero que o senhor me perdoe se insistir nesse assunto, mas o pagamento continua sendo
aguardado.

Respeitosamente,
Carienomen

- Eis toda a história, senhor Harf, - concluiu Masrin, uma hora mais tarde. - Sei perfeitamente
quão fantástica ela parece, mas o senhor presenciou com seus olhos meu desaparecimento.

- Isso é verdade, - disse Harf. Masrin foi até o banheiro pendurar sua roupa molhada. - Sim, -
continuou Harf, - vejo que o senhor desapareceu mesmo.

- Não há dúvida que desapareci. - E o senhor não deseja que os cientistas saibam do seu
pacto com o diabo? - perguntou Harf meio sem jeito.

- Não é isso! Eu lhe expliquei a respeito do paradoxo... - Bem, deixem-me pensar, - disse Harf.
Esfregou o nariz

72

vigorosamente. - Esses cacêtes esculpidos que o senhor disse que os selvagens possuem...
Não seria um deles valioso para um museu? O senhor disse que não se conhece nada igual.

- O quê? - disse Masrin saindo do banheiro. - Escute, eu não posso tocar em nada daquilo.
Resultaria em um ...

- Claro, - assentiu Harf. - Mas eu poderia chamar em vez disso alguns jornalistas. E alguns
cientistas. Talvez eu me fizesse uma bela fortuna com essa história de feitiçaria.

- Não seria possível, - disse Kay, lembrando apenas que seu marido havia dito algo sobre os
melefícios da emprêsa.

- Sejam cordatos! - acrescentou Harf. - Tudo o que desejo é um ou dois desses cacêtes. Isso
não vai criar encrenca alguma. Basta apenas pedir ao diabo...
- Não há nenhum diabo nisso, - insistiu Masrin. - O senhor não tem ideia do que representa
para a história uma dessas davas. A dava que eu apanhasse poderia matar o homem que
mais tarde uniria asses povos, e os índios norte-americanos enfrentariam os europeus como
uma nação unida. Pense só na mudança que ocorreria ...

- Não estou interessado nessa história, - disse Harf. - O senhor vai ou não vai me trazer um
desses porretes?

- Jà lhe expliquei a razão, - disse Masrin cansado. - Não me interessa a mínima história de
paradoxo. Aliás, não entendo nada disso. Mas estou disposto a rachar o lucro meio a meio se
o senhor me trouxer um dos cacêtes.

- Não. - Certo, então. Nós nos veremos, - disse Harf dirigindo-se à porta.

- Espere! - Sim? - disse Harf, com sua boca fina sorrindo de novo. Masrin examinou o pior dos
males. Caso trouxesse de volta uma dava indígena, havia a possibilidade de criar um
paradoxo, removendo tudo o que a dava poderia ter feito no passado. Mas se não trouxesse,
Harf chamaria os jornalistas e os cientistas. Acabariam descobrindo se Harf estava ou não
falando a verdade simplesmente fazendo-o descer a escada; a polícia tomaria certamente
alguma providência. Masrin iria desaparecer e então...

Quanto mais pessoas tomassem parte na história mais inevitável seria o paradoxo. E a Terra
inteira, muito possivelmente, teria que ser removida. Embora não soubesse o motivo certo
disso, Masrin estava convencido que assim era e assim seria.

Estava perdido com ambas as alternativas, mas apanhar a dava parecia a medida mais
simples.

73

- Vou trazer a dava, - disse Masrin. Dirigiu-se à escada seguido por Kay e Harf. Kay apertava
sua mão.
- Não vá, - disse ela.

- Não tenho outra alternativa, - disse Masrin. Pensou um momento em matar Harf. Mas isso
resultaria apenas na cadeira elétrica. Naturalmente, podia matar Harf e levar seu corpo para
o passado, enterrando-o lá.

Mas o cadáver de um homem do século vinte na América préhistórica constituiria talvez um


paradoxo. Imaginem se fosse desenterrado!

Fora isso, não estava na sua índole matar um homem. Masrin beijou a mulher e desceu a
escada. Não havia selvagens à vista na planície, embora Masrin pudesse pressentir seus olhos
observando-o. Encontrou duas davas no chão. Aquelas que o haviam atingido eram tabu,
pensou ele, e apanhou uma delas, esperando que uma outra partisse sua cabeça a qualquer
momento. Mas a planície estava silenciosa.

- Rapaz! - exclamou Harf. - Deixa-me ver! Masrin estendeu-lhe a dava. Depois aproximou-se
de Kay e beijou-a. Era um paradoxo agora, tão certamente quanto se houvesse matado seu
trisavô antes de nascer.

- É um belo objeto, declarou Harf admirando a dava na luz do corredor. Podem considerar o
aluguel pago até o fim do mês.

A dava desapareceu da sua mão. Harf desapareceu. Kay perdeu os sentidos. Masrin levou-a
para a cama e borrifou água no seu rosto. - O que aconteceu? - perguntou ela voltando a si. -
Não faço ideia, - disse Masrin, subitamente perplexo com os acontecimentos. - Tudo que sei é
que vamos ficando por aqui pelo menos mais duas semanas. Ainda mesmo que tenhamos de
viver de arroz e feijão...

PARA: CENTRO

Escritório 41 AT. DE: Supervisor Assistente Miglese DE: Empreiteiro Carienomen ASSUNTO:
Metagaláxia MORSTT Senhor:
Sua oferta para um trabalho de reparação das estrelas atingidas é um insulto tanto para minha
companhia quanto para mim

74

pessoalmente. Permita-me apresentar-lhe meu trabalho realizado no passado, exposto numa


brochura anexa. Como é possível oferecer um trabalho tão insignificante a uma das maiores
companhias do CENTRO?

Ainda uma vez, gostaria de apresentar uma solicitação para o serviço a ser executado na nova
Metagaláxia MORSTT.

No que se refere à Metagaláxia ATTALA - o serviço foi terminado, e obra mais perfeita não
pode ser encontrada neste lado do caos. O local é uma maravilha.

O homem precipitado no tempo está fora de perigo. Fui forçado a extrair. Contudo, não
extraí o homem em questão. Em vez disso, consegui remover uma das influências externas
que o assediavam. Agora ele pode viver normalmente.

Um belo serviço, o senhor terá que admitir, e solucionado com a argúcia que caracteriza todos
os meus trabalhos.

Meu dilema era: Por que extrair um homem bom, quando podia salvá-lo, em vez de perder o
corrompido que estava a seu lado?

Ainda uma vez, sua inspeção será bem-vinda. Solicito que o assunto relativo à Metagaláxia
MORSTT seja reconsiderado.

O PAGAMENTO AINDA ESTÁ SENDO AGUARDADO!


Respeitosamente,

Carienomen

Anexo: 1 brochura, 9.978 páginas.

75

***

Inalterado por Mãos Humanas

Hellman espetou o último rabanete da lata com um compasso. Segurou-o espetado para que
Casker o admirasse e depois colocou-o cuidadosamente sobre a mesa de trabalho ao lado da
navalha.

- Raios de refeição para dois adultos, - disse Casker, deixando-se cair no assento acolchoado
de segurança da espaçonave.

- Se você não faz questão de sua parte... - sugeriu Hellman.

Casker sacudiu a cabeça rapidamente. Hellman sorriu, apanhou a navalha e examinou o fio
atentamente.

- Não faça tanta história, - disse Casker, lançando um olhar para os instrumentos da nave.
Estavam aproximando-se de uma anã vermelha, o único sol possuidor de planeta daquela
região. - Precisamos ter acabado de jantar antes de nos aproximarmos do planeta.

Hellman fez um primeiro ensaio de incisão no rabanete, acompanhando com a vista o fio da
navalha. Casker chegou para perto, com a boca aberta. Hellman apoiou delicadamente a
navalha e cortou o rabanete em duas partes iguais.
- Não vai rezar? - perguntou Hellman. Casker murmurou algo e enfiou a metade do rabanete
na boca. Hellman mastigou mais lentamente. O gosto forte parecia explodir em suas papilas
desabituadas.

76

- Não tem muito valor nutritivo, - disse Hellman. Casker não respondeu. Estava ocupado em
examinar a anã vermelha.

Ao engolir o último pedaço do rabanete, Hellman deu um sorriso. A última refeição fora três
dias antes - se é que dois biscoitos e um copo de água podem ser chamados de refeição. Este
rabanete, descansando agora no imenso vazio de seus estômagos, era o último grama de
alimento a bordo.

- Dois planetas, - disse Casker. - Um deles está completamente torrado.

- Então vamos descer no outro. Casker assentiu e picotou uma espiral de redução de
velocidade na fita elétrica da nave.

Hellman pensava pela centésima vez de quem era a culpa. Teria ele calculado mal quando
fizera sua requisição de alimentos na estação de Calao? É possível, porque dedicara a maior
parte de sua atenção ao equipamento de mineração. Ou teria a tripulação de terra esquecido
de reabastecer as últimas caixas preciosas?

Apertou o cinto de segurança no quarto novo furo que havia feito.

Não adiantava especular. Qualquer que fosse a razão, estavam agora numa enrascada. Por
ironia, possuíam combustível mais do que suficiente para voltar a Calao. Mas seriam um par
de cadáveres singularmente magros no momento em que a nave chegasse àquele local.

- Estamos descendo, - disse Casker. E para tornar as coisas ainda piores, esta região
inexplorada do espaço possuía sóis e poucos planetas. Talvez houvesse uma remota
possibilidade de reabastecer o suprimento de água, mas as possibilidades de encontrar
alguma coisa para comer eram muito mais remotas.

- Olhe aquele local! - murmurou Casker. Hellman acordou do seu devaneio. O planta era
como um porco-espinho redondo e castanho. Os espinhos de um milhão de montanhas
pontudas como agulhas brilhavam sob a luz fraca da anã vermelha. A medida que descreviam
espirais na descida, dando voltas em torno do planeta, as montanhas pontudas pareciam
levantar-se para recebê-los.

- Não é possível que seja tudo montanha, - disse Hellman.

- Não é. Sim, havia certamente oceanos e lagos, do interior dos quais subiam montanhas
escarpadas em forma de ilhas. Não havia porém sinal de terra plana, nenhum vestígio de
civilização, nem mesmo de vida animal.

77

- Pelo menos possui uma atmosfera de oxigênio, - disse Casker.

A espiral de desaceleração lançou-os em volta do planeta, penetrando nas camadas inferiores


da atmosfera, diminuindo a velocidade contra elas. E ainda assim não avistavam nada senão
montanhas e lagos e oceanos e mais montanhas.

Na oitava volta, Hellman avistou um edifício solitário no alto de uma montanha. Casker
freou impetuosamente a nave, cujo casco ficou vermelho em brasa. Na décima primeira volta,
fizeram uma tentativa para aterrar.

- Estúpido lugar para construir, - murmurou Casker. O edifício tinha a forma de um pequeno
bôlo arredondado e combinava perfeitamente com o alto da montanha. Possuía uma cratera
plana e grande em sua volta, onde Casker abriu um sulco ao aterrar a nave.
Do alto, o edifício parecera simplesmente grande. Do chão, era imenso. Hellman e Casker
dirigiram-se para ele lentamente. Hellman tinha seu lança-chamas pronto, mas não havia sinal
de vida.

- O planeta parece estar abandonado, - disse Hellman num sussurro.

- Qualquer um em seu perfeito juízo abandonaria este local. Hà excelentes planetas por perto,
sem ser preciso morar na ponta de uma agulha.

Chegaram à porta. Hellman tentou abri-la mas descobriu que estava trancada. Olhou em
volta para a paisagem espetacular das montanhas.

- Sabe de uma coisa, - disse, - quando este planeta ainda se encontrava num estado de fusão,
deve ter sido afetado por diversas luas gigantescas que agora se partiram. As tensões,
externas e internas, desfiguraram-no no seu presente estado de picos e...

- Chega de conversa! - exclamou Casker com rispidez. - Bem se vê que você era bibliotecário
antes de decidir enriquecer-se com urânio.

Hellman deu de ombros e abriu um buraco na porta com o fogo do lança-chamas.


Aguardaram um momento.

O único ruído que ouviam no alto da montanha era o ronco de seus estômagos vazios.

Entraram. A fantástica sala cuneiforme era evidentemente um depósito de materiais diversos.


Os artigos estavam empilhados até o teto, espalhados pelo chão, amontoados ao acaso contra
as paredes.

78

Havia caixotes e recipientes de todos os tamanhos e formatos, alguns suficientemente


grandes para conter um elefante, outros do tamanho de um dedal.
Perto da porta encontrava-se uma pilha empoeirada de livros. Imediatamente Hellman
abaixou-se para examiná-los.

- Deve haver comida em algum lugar aqui, - lembrou Casker, e seu rosto iluminou-se pela
primeira vez naquela última semana. Apressou-se em abrir o caixote mais próximo.

- Este é interessante, - disse Hellman, desfazendo-se de todos os livros com exceção de um.

- Vamos comer primeiro! - disse Casker, arrancando a tampa do caixote.

Dentro havia uma poeira marron. Casker olhou para ela, cheirou-a e fez uma careta.

- Muito interessante na realidade, - continuou Hellman, folheando o livro.

Casker abriu uma pequena lata que continha uma pasta lodosa, esverdeada, e brilhante.
Fechou-a e abriu uma outra. Continha um lodo alaranjado.

- Hummm, - murmurou Hellman, continuando a ler. - Hellman! Seria possível você deixar de
lado esse livro e me ajudar a procurar comida?

- Comida? - repetiu Hellman, olhando para o alto. - O que lhe faz pensar que há alguma coisa
para comer aqui? Na melhor das hipóteses, isso seria uma fábrica de tinta.

- É um armazém, - gritou Casker. Abriu uma lata em forma de rim e retirou de dentro uma
vareta mole e púrpura. Ela secou rapidamente e transformou-se em poeira enquanto ele
tentatava cheirá-la. Apanhou um punhado da poeira e levou-a à boca.

- Talvez seja extrato de estricnina, - disse Hellman casualmente.


Casker jogou fora bruscamente a poeira e limpou as mãos. - Pois bem, - sugeriu Hellman, -
uma vez admitido que isto seja um armazém, um depósito secreto se você quiser, não
sabemos ainda o que seus últimos habitantes consideravam bons quitutes. Quem sabe se era
salada verde com ácido sulfúrico como tempêro? ...

- Está certo, - disse Casker, - mas precisamos comer. O que você pretende fazer com essas
coisas? - perguntou ele apontando para as centenas de caixotes, latas e garrafões.

- O que se deve fazer, - disse Hellman com vivacidade, - é começar com uma análise
qualitativa de quatro ou cinco

79

amostras. Podemos principiar com uma simples titulometria, sublimar o ingrediente principal,
verificar se forma um precipitado, calcular sua estrutura molecular e.

- Hellman, você não sabe do que está falando. Você é um bibliotecário inveterado, lembra-se?
E eu sou um piloto de uma escola por correspondência. Não temos a menor ideia de
titulometria e sublimação.

- Eu sei disso, - disse Hellman, - mas deveríamos ter. Essa é a maneira certa de agir.

- De acordo. Mas por enquanto, até que surja um químico. que vamos nós fazer?

- Isto pode nos ajudar, - disse Hellman levantando o livro. - Sabe do que se trata?

- Não, - disse Casker, procurando manter a paciência. - É um dicionário de bolso e um guia


da língua Helg. - Helg? - O planeta onde estamos. Os símbolos correspondem aos dizeres
impressos nos caixotes.
Casker levantou uma pálpebra: - Nunca ouvi falar em Helg. - Não creio que este planeta jamais
tenha tido contato com a Terra, - disse Hellman. - Este dicionário não é Helg-Inglês. É Helg-
Alumbrigiano.

Casker lembrou-se que a Alumbrigia era o planeta de uma raça de répteis pequena e
aventureira, perto do centro da nossa galáxia.

- Onde foi que você aprendeu a ler o Alumbrigiano? - perguntou Casker.

- Oh, ser bibliotecário não é uma profissão completamente inútil, - disse Hellman com
modéstia. - Nos meus tempos livres...

- Sei. E a respeito de ... - Sabe de uma coisa, - continuou Hellman, - os Alumbrigianos


provavelmente ajudaram os Helgans a sair do seu planeta e encontrar um outro. Eles vendem
serviços desta espécie. Nesse caso, este edifício muito provavelmente é um esconderijo de
alimentos!

- Que tal se você começasse a traduzir... - sugeriu Casker meio desanimado. - Talvez
encontremos algo para comer.

Abriram várias caixas até que encontraram substância de melhor aparência. Com grande
dificuldade, Hellman traduziu os caracteres escritos.

- Entendi - disse ele - está escrito: USE SNIFFERS - O MELHOR... ABRASIVO.

80

- Pelo visto não é algo comível - disse Casker. - Creio que não. Encontraram outro caixote,
onde estava escrito: vIGRUM!

ENCHE TODOS OS SEUS ESTÔMAGOS E OS ENCHE BEM!


- Que espécie de animais você imagina que eram esses Helgans? - perguntou Casker.

Hellman sacudiu os ombros. O rótulo seguinte levou quinze minutos para ser traduzido.
Estava escrito: ARGOSEL TORNA SEU PASSO BEM AGITADO. CONTÉM TRINTA ARPS DE SOPA
DE CAPIM, PARA LUBRIFICAÇÃO DA CASCA.*

- Deve haver alguma coisa aqui para se comer - exclamou Casker com a voz do desespêro.

- Espero que sim - replicou Hellman. Ao final de duas horas, não estavam mais avançados.
Haviam traduzido dezenas de rótulos e cheirado tantas substâncias que seus sentidos
olfativos estavam mortos de enjoo.

- Vamos raciocinar primeiro! - aconselhou Hellman sentando-se em cima de um caixote onde


estava escrito: VORMITASH

- BOM COMO SEU NOME INDICA!

- De acordo - disse Casker, esparramando-se no chão. - Fale!

- Se descobrirmos que espécie de criaturas habitavam este planeta ficaremos sabendo que
espécie de alimento utilizavam, e se ele serve ou não para nós.

- Tudo que sabemos até agora é que eles redigiam rótulos perfeitamente idiotas.

Hellman não lhe deu atenção. - Que espécie de pessoas iriam evoluir num planeta formado
unicamente por montanhas?

- Pessoas estúpidas - disse Casker. Isso não ajudava em nada. Segundo Hellman, não era
possível tirar uma conclusão a partir das montanhas. A situação geográfica não lhe informava
se os últimos habitantes de Helg comiam silicatos, proteínas ou alimentos iodados ou
qualquer outra coisa.

- Logo - disse Hellman - devemos decidir esse problema pela pura lógica... Està me ouvindo?

- Claro - disse Casker. - Bom. Há um velho ditado que se aplica perfeitamente à nossa
situação: "O alimento de um é veneno para o outro."

- A tradução desses dizeres é conjetura]. O texto inglês é propositadamente incompreensível.


Lê-se: "ARCOSEL MAKES YOUR TINmRA ALL Trzzy.

CONTAINS THIRTY ARPS OF RAMSTAT PULZ, FOR SHELL LUBRICATION''.

81

- Isso mesmo - disse Casker. Ele sabia, como dois mais dois são quatro, que seu estômago
havia encolhido para o tamanho aproximado de uma bola de gude.

- Suponhamos primeiro - disse Hellman - que o alimento deles seja nosso alimento.

Casker procurou afugentar a visão de cinco bifes suculentos que dançavam tentadoramente
em sua frente.

- E se o alimento deles fôr veneno para nós? Que fazer? - Nesse caso - disse Hellman -
poderemos supor que o veneno deles é nosso alimento.

- E no caso do veneno e do alimento deles ser veneno para nós?...

- Morreremos de fome.
Certo! - disse Casker, levantando-se. - Por que suposição começaremos?

- Bem, não há razão para desesperar. Esse planeta possui oxigênio, o que já significa alguma
coisa. Suponhamos primeiro que podemos comer alguns alimentos básicos deles. Se não fôr
possível, então tentaremos alguns venenos.

- Caso estivermos vivos até lá - disse Casker. Hellman começou a traduzir os rótulos
novamente. Deixaram de lado certos produtos com rótulos tais como: ANDROGINITES
DELEITE e VERBELL PARA ANTENAS MAIS COMPRIDAS, SENSÍVEIS E ENROLADAS - até que
encontraram uma pequena caixa cinza, com cerca de seis polegadas de comprimento por
três de altura e de largura. Estava escrito nela: VALKORIN - O DELEITE UNIVERSAL DO
PALADAR, PARA TÔDAS AS APTIDÕES DIGESTIVAS.

- Tem boa cara - disse Heiman abrindo a caixa. Casker aproximou-se e cheirou seu conteúdo. -
Não tem cheiro - disse.

Dentro da caixa encontraram um bloco vermelho, retangular e elástico. Mexia-se


ligeiramente, como geléia.

- Dá uma mordida! - disse Casker. - Eu? - perguntou Hellman. - Por que não você? - Foi você
quem descobriu. - Prefiro olhar apenas, - disse Hellman com dignidade. - Aliás, não estou com
fome.

- Nem eu tampouco - disse Casker. Sentaram-se no chão e contemplaram o bloco gelatinoso.


Após dez minutos, Hellman bocejou, inclinando-se para trás e fechou os olhos.

- Está certo, seu covarde - disse Casker com irritação. - Vou provar. Lembre-se porém que se
eu morrer envenenado você nunca sairá deste planeta! Você não sabe pilotar.

82

- Prove então só um pedacinho! - disse Hellman. Casker inclinou-se para a frente e observou
de perto o bloco. Depois mexeu nele com o polegar.
O bloco mole e vermelho deu uma risadinha. - Você ouviu isso? - gritou Casker recuando. -
Não ouvi nada - disse Hellman, com as mãos trêmulas. - Continue!

Casker cutucou novamente o bloco. Esse riu mais alto, desta vez com um risinho horrível de
zombaria.

- Bom, o que vamos fazer agora? - Por quê? O que há de errado com isso? - Não vou comer
uma coisa que está rindo desse jeito - disse Casker com firmeza.

- Pense bem - disse Hellman. - As criaturas que fabricaram este bloco podem ter procurado
criar um ruído estético juntamente com uma forma e uma côr agradáveis. Talvez esse
risinho seja apenas para diversão da pessoa que come.

- Então morda você um pedaço! - sugeriu Casker. Hellman olhou para ele mas não fez nenhum
movimento em direção ao bloco mole. Finalmente disse: - Vamos tirá-lo do nosso caminho!

Empurraram o bloco para um canto. Ele continuou rindo ali baixinho.

- E agora? - perguntou Casker. Hellman olhou em volta para as pilhas amontoadas de


artigos estranhos e incompreensíveis. Avistou uma porta em cada lado da sala.

- Vamos dar uma espiada nas outras portas! - sugeriu. Casker sacudiu os ombros sem
entusiasmo. Vagarosamente caminharam até a porta situada na parede esquerda. Estava
trancada e Hellman abriu-a com o lança-chamas.

Era um salão cuneiforme, repleto de artigos estranhos e incompreensíveis.

A travessia da sala em direção a outra porta pareceu levar horas. Hellman apontou o lança-
chamas para a porta e olharam para o interior.
Era um salão cuneiforme, repleto de artigos estranhos e incompreensíveis.

- A mesma coisa sempre - disse Casker abatido. - Evidentemente, há uma série dessas salas
dando a volta no edifício, disse Hellman. Valeria a pena explorá-las?

Casker calculou a distância em volta do prédio, comparou-a com as forças que lhe restavam e
sentou-se pesadamente sobre um comprido objeto cinza.

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- Para quê? - perguntou. Hellman procurou raciocinar. Certamente acabaria encontrando


alguma pista, algum indício que lhe informaria o que poderiam comer. Mas onde?

Examinou o objeto sobre o qual Casker estava sentado. Era do tamanho e da forma de um
grande caixão, com uma pequena depressão no alto. Era construído de uma substância
dura e rugosa.

- O que você imagina que é isso? - perguntou Hellman. - Interessa saber? Hellman olhou para
os caracteres escritos ao lado do objeto. depois procurou o significado no dicionário.

- Fascinante - murmurou após alguns minutos. - É algo de comer? - perguntou Casker, com
uma leve esperança.

- Não. Você está sentado em cima de alguma coisa que se chama: o SUPERTRANSPORTE
MOROG IDEAL PARA O HELGAN EXIGENTE QUE DESEJA POSSUIR O MELHOR EM
TRANSPORTE VERTICAL. Trata-se de um veículo.

- Ah, sim - disse Casker entediado. - É algo importante. Examine-o! Como será que funciona?
Casker subiu cansado sobre o Supertransporte Ideal Morog e examinou-o cuidadosamente.
Descobriu quatro separações quase invisíveis nos seus quatro cantos.
- Rodas que encolhem, provavelmente. Mas não vejo... Hellman leu: - Recomenda-se colocar
três anfos de combustível Integor de alto ganho, uma carroça de lubrificante Tonder e não
correr acima de três mil Ruls durante os primeiros cinquenta mungus."

- Vamos descobrir alguma coisa para comer! - suplicou Casker.

- Você não percebe a importância disso? - perguntou Hellman. - Isto poderia solucionar nosso
problema. Se pudermos deduzir a lógica estranha inerente na construção deste veículo,
poderemos saber o tipo de raciocínio próprio aos Helgans. E isto, por sua vez, nos esclarecerá
sobre o sistema nervoso deles, que está relacionado com a estrutura bioquímica.

Casker ficou imóvel, pensando se possuía forças suficientes para estrangular Hellman.

- Por exemplo - continuou Hellman - que espécie de veículo seria utilizado num lugar como
este? Não um com rodas, uma vez que só existem subidas e descidas. Antigravidade? Talvez.
Mas que espécie de antigravidade? E por que razão os habitantes imaginaram uma caixa em
vez de ...

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Casker concluiu tristemente que não possuía força suficiente para estrangular Hellman, por
mais agradável que isso fosse. Muito tranquilamente disse: - Pare por favor de falar como
um cientista! Vamos ver se existe alguma coisa para se engolir!

- Bom - disse Hellman sem muito entusiasmo. Casker observou seu companheiro andar por
entre as latas, garrafas e caixotes. Indagava a si mesmo vagamente onde Hellman conseguira
aquela energia e chegou à conclusão de que era demasiado cerebral para sentir quando estava
morto de fome.

- Aqui está alguma coisa - disse Hellman em pó diante de um grande tonel amarelo.

- O que està escrito? - perguntou Casker. - É meio difícil de traduzir. Mas traduzido
livremente, lê-se: VOOZY DE MORISHILL, COM LACTO-ECTO ADICIONADO PARA A
SENSAÇÃO DE UM NOVO PALADAR. TODOS BEBEM VOOZY. BOM ANTES E DEPOIS DAS
REFEIÇÕES, SEM EFEITOS POSTERIORES DESAGRADÁVEIS. BOM PARA AS CRIANÇAS. A
BEBIDA DO UNIVERSO.

- Isso está com boa cara - admitiu Casker, concluindo afinal que Hellman não era tão idiota
quanto parecia.

- Esta bebida nos dirá de uma vez por todas se o alimento deles é nosso alimento. Este Voozy
parece ser o que há de mais próximo de uma bebida universal que jà encontrei.

- Talvez - disse Casker esperançoso - seja água pura. - Veremos. Helman abriu a tampa da
caixa com a ponta do lança-chamas. Dentro do tonel havia um líquido claro como água.

- Não tem cheiro - disse Casker, inclinando-se sobre o tonel.

O líquido transparente levantou-se para alcançá-lo. Casker recuou tão rapidamente que caiu
por cima de um caixote. Hellman ajudou-o a ficar em pé e ambos se aproximaram
novamente do barril. Ao chegarem perto, o líquido levantou-se sozinho cerca de uns três pés
de altura e dirigiu-se para eles.

- O que foi que você fez agora? - exclamou Casker, recuando cuidadosamente.

O líquido escorreu lentamente sobre o lado do tonel. Começou a correr na direção de Casker.

- Hellman! - gritou Casker. Hellman se afastara do local; o suor escorria do seu rosto enquanto
lia no dicionário com a máxima atenção.

- Penso que me equivoquei na tradução - disse ele. - Faça alguma coisa! - berrou Casker. O
líquido tentava cercá-lo num canto.

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- Não posso fazer nada - disse Helman, continuando a leitura. Ah, aqui está o erro. Não dizia
"Todos bebem Voozy." O sujeito estava errado. "Voozy bebe todos." Isso explica tudo! Os
Helgans devem ter empapado seus poros de líquido. Naturalmente, preferiam estar bêbados
em vez de beber simplesmente.

Casker procurou contornar o líquido, mas esse impediu sua tentativa com um alegre borbulho.
Desesperado, Casker apanhou um pequeno fardo e atirou-o contra Voozy. Voozy apanhou o
fardo e bebeu-o. Depois se desembaraçou dele e voltou-se contra Casker.

Hellman lançou uma outra caixa. Voozy bebeu-a, depois uma terceira e uma quarta que
Casker atirou. Enfim, aparentemente exausto, recolheu-se em seu tonel.;,

Casker pôs a tampa e sentou-se em cima, tremendo violentamente.

- Nada boa essa experiência - disse Hellman. - Estávamos certos que os Helgans tinham
hábitos alimentares semelhantes aos nossos. Mas, sem dúvida, isso não significa
necessariamente ...

- Não, isso não significa. Não senhor, isso certamente não significa. Creio que podemos ver
que isso não significa. Qualquer um pode ver que isso não significa.

- Pare com isso! - exclamou Hellman com severidade. - Não temos tempo para histeria.

- Desculpe. - Casker afastou-se lentamente do tonel de Voozy.

- Creio que devemos concluir que o alimento deles é veneno para nós, - disse Hellman
pensativamente. - Verificaremos agora se o veneno deles é nosso alimento.

Casker não fez nenhum comentário. Estava pensando no que teria acontecido se Voozy o
houvesse bebido.
No canto da sala, o bloco gelatinoso continuava rindo baixinho.

- Bem, temos aqui algo que parece veneno - disse Hellman, meia hora mais tarde.

Casker tinha se recuperado completamente, exceto no que dizia respeito a um tremor


ocasional, dos lábios.

- O que diz aí? - perguntou. Hellman rolou um pequeno tuba;; na palma da mão. - Chama-se
Tapador Pvastkin. O rótulo diz: ATENÇÃO! PERIGOSÍSSIMO! TAPADOR PVASTKIN FOI
FABRICADO PARA TAPAR BURACOS OU FENDAS DE ATÉ DOIS VINIS CÚBICOS.
CONTUDO... O TAPADOR NÃO DEVE SER COMIDO EM HIPÓTESE ALGUMA. SEU

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INGREDIENTE ATIVO, RAMATOL, QUE TORNA PVASTKIN UM ENTUPIDOR TÃO


EXTRAORDINÁRIO, É PERIGOSÍSSIMO QUANDO INGERIDO.

- Parece excelente - disse Casker. - Provavelmente nos lançará no céu.

- Você tem alguma outra sugestão? - perguntou Hellman,. Casker pensou um momento. O
alimento do plarieta Helg' era evidentemente intolerável para os humanos. Nesse caso, talvez
o veneno deles fosse

... mas não seria preferível morrer de fome do que experimentar essas coisas?

Após um momento de reflexão com seu estômago, Casker decidiu que morrer de fome não
era melhor.

- Vamos ver - disse. Hellman enfiou o lança-chamas embaixo do braço e desatarrachou a


tampa do pequeno frasco. Sacudiu-o.
Nada aconteceu. - Está selado - sugeriu Casker. Hellman perfurou o selo de segurança com a
unha e deitou o frasco no chão. Uma espuma esverdeada e de cheiro nauseabundo começou
a borbulhar.

Hellman olhou com suspeita para a espuma. Estava se congelando em uma pasta que se
espalhava pelo chão.

- Fermento talvez, - disse ele, segurando com força o lança-chamas.

- Vamos, vamos. Um coração covarde não enche um estômago vazio.

- Eu não estou lhe segurando - disse Hellman. A pasta inchou do tamanho da cabeça de um
homem. - Bem - disse Hellman - está anunciado como sendo um tapador... Suponho.; ti seja
sua função... expandir-se para tapar os buracos.

- Certo. Mas qual? - Infelizmente não sei qual é a medida correspondente a dois vims
cúbicos. - Mas não pode continuar muito mais...

Boquiabertos, observaram que o Tapador jà enchera quase um quarto da sala e não mostrava
sinais de parar.

- Deveríamos ter acreditado no rótulo! - gritouR Casker Ïlellman do outro lado do monte de
pasta que crescia. Isso 'é perigoso!

À medida que o Tapador ampliava sua superfície, começou também a acelerar seu
crescimento. Uma ponta pegajosa atingiu Hellman que saltou para trás.

- Cuidado!

---- Cuidado!
Não podia mais reunir-se a Casker, que estava do'outro lado da gigantesca esfera de pasta.
Hellman tentou dar a volta mas

87

o Tapador tinha-se espalhado, dividindo a sala pelo meio. Começou a alastrar-se em direção
às paredes.

- Corra para longe! - gritou Hellman e precipitou-se para a porta que estava atrás de si.

Conseguiu abri-la no momento exato em que a pasta o alcançava. Do outro lado da sala
ouviu uma porta fechar-se. Hellman não esperou mais. Saiu correndo e fechou a porta atrás
de si.

Ficou parado um momento, ofegante, com o lança-chamas na mão. Não tinha percebido até
então quão fraco se sentia. Aquela corrida esgotara perigosamente suas reservas de energia e
estava prestes a sofrer um colapso. Felizmente Casker conseguira salvar-se também.

Mas estava ainda em perigo. O Tapador escorria alegremente pela porta arrombada para
dentro da sala. Hellman desferiu um tiro sobre ele, mas o Tapador era evidentemente
impenetrável... como deveria ser, pensou ele, todo bom Tapador.

O produto não mostrava sinais de fadiga. Hellman correu para a parede distante. A porta
estava trancada, como as outras, de sorte que a arrombou com fogo e entrou.

- Até quanto poderia a pasta se expandir? Quanto eram dois vims cúbicos? Duas milhas
cúbicas, talvez? Pelo que entendia, o Tapador era utilizado para reparar fendas na crosta do
planeta.

No quarto seguinte, Hellman parou para tomar fôlego. Lembrou-se que o edifício era circular.
Abriria seu caminho a fogo pelas portas restantes e chegaria até Casker. Abririam então o
caminho a fogo para fora e...
Casker porém não possuía um lança-chamas. Hellman ficou branco com o choque. Casker
refugiara-se na sala da direita, que fora aberta anteriormente. O Tapador estava com certeza
penetrando naquela sala agora, pela porta arrombada - e Casker não poderia sair dali. O
Tapador estava à sua esquerda e uma porta fechada à sua direita.

Reunindo suas últimas forças, Hellman começou a correr. Caixotes pareciam ter sido
colocados propositadamente em seu caminho, atrapalhando-o, diminuindo sua marcha.
Explodiu a porta seguinte e correu para a próxima. Depois para a outra. E ainda uma outra.

O Tapador não podia se expandir completamente na sala de Casker. Ou podia?

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As salas em forma de cunha, cada uma delas sendo um segmento de um círculo, pareciam
esticar-se diante dele sem fim à vista, um aglomerado de portas fechadas, artigos estranhos,
mais portas, mais objetos. Hellman caiu sobre um engradado, levantou-se e tornou a cair.
Atingira o limite de suas energias e con- tinuava avançado. Casker afinal era seu amigo.

Além disso, sem um piloto, jamais sairia daquele local. Hellman avançou com dificuldade
através de mais duas salas com as pernas trêmulas e depois caiu no chão, exausto, diante da
terceira porta.

- É você Hellman? - ouviu Casker perguntar, do outro lado da porta.

- Você está bem? - balbuciou Hellman. - Não tenho muito espaço livre, disse Casker, mas o
Tapador parou de crescer. Hellman, tire-me daqui!

Hellman continuou deitado e ofegante. - Um momento - disse. - Um momento uma ova! -


berrou Casker. - Tire-me daqui! Eu encontrei água.

- O quê? Como? - Tire-me daqui! Hellman tentou ficar em pé, mas suas pernas não o
ajudavam.
- O que aconteceu? - perguntou. - Quando eu vi a pasta enchendo a sala, pensei em fazer
funcionar o Supertransporte Ideal Morog. Pensei que talvez ele pudesse derrubar a porta
para sair dali. De forma que o enchi com o combustível de alto ganho Integor.

- Sim? - disse Hellman, tentando levantar-se. - Este Supertransporte Ideal é um animal,


Hellman! E o combustível Integor é água. Agora tire-me daqui!

Hellman tornou a deitar-se com um suspiro de satisfação. Caso tivesse um pouco mais de
tempo, teria descoberto sozinho o segredo, por pura lógica. Mas estava tudo evidente
agora. A máquina mais eficiente para caminhar sobre aquelas montanhas verticais e
cortantes era um animal, provavelmente com sugadores retráteis. Era conservado em
hibernação durante as viagens. Ora, se esse animal bebia água, era sinal que seus outros
alimentos serviam ao homem. Sem dúvida, eles ainda não sabiam muita coisa a respeito
dos últimos habitantes daquele planeta, mas indubitavelmente.

- Derrube essa porta com fogo! - gritou Casker, com a voz do desespêro.

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Hellman estava meditando sobre a ironia de tudo aquilo. Se o alimento de um homem - e seu
veneno - era um veneno para outros, então a solução era comer alguma outra coisa. Tão
simples, na verdade.

Havia porém uma coisa que ainda o intrigava. - Como foi que você descobriu que era um
animal do tipo da Terra? - indagou.

- Pela respiração, seu burro! Ele aspira e respira, e cheira como se tivesse comido cebola.

Hellman ouviu o barulho de latas caindo e garrafas quebrando.

- Corre aqui! - O que foi? - perguntou Hellman, finalmente pondo-se de pé e segurando o


lança-chamas.
- É o Supertransp. - Ele me encurralou atrás de uma pilha de caixotes. Hellman, pensa que
eu sou seu alimento!

- É o Supertransp. Ì, Pie me encurralou atrás de uma pilha de caixotes.11man, pensa que


eu sou seu alimento!

90

***

Pássaro - Vigia

Quando Gelsen entrou na sala, percebeu que os demais fabricantes de pássaros-vigias já


estavam presentes. Havia seis deles, sem contar Gelsen, e a sala estava azulada com a
fumaça de charutos caros.

- Olá, Charlie! - exclamou um deles quando Gelsen entrou.

Os restantes interromperam por um momento a conversação e lhe lançaram um aceno


convencional. Enquanto fabricante de pássaros-vigias, era um elemento militante da
salvação, pensou Gelsen com certo ceticismo. Muito exclusivo. Era preciso ter um contrato
legal do governo para salvar a raça humana.

- O representante do governo ainda não chegou - disse-lhe um dos presentes. - Está sendo
aguardado a qualquer momento.

- Estamos esperando o sinal verde - acrescentou um outro.

- Ótimo. Gelsen encontrou uma cadeira vazia junto à porta e olhou em volta da sala. Parecia
uma convenção ou uma reunião de escoteiros. Os seis homens compensavam a falta de
número com o mero volume de suas presenças. O presidente da Southern Consolidated
falava aos berros a respeito da enorme durabilidade dos pássaros-vigias. Os dois outros
presidentes com os quais conversava sorriam, balançavam a cabeça, um deles tentando
interromper o outro para contar os resultados de um teste realizado sobre os

91

recursos dos pássaros-vigias, enquanto o primeiro discorria sobre os novos aparelhos de


recarga.

Os outros três homens formavam um pequeno círculo, pronunciando o que parecia ser um
panegírico do pássaro-vigia.

Gelsen observou que todos eles se mantinham eretos e desempenados, como os salvadores
que se acreditavam ser. Não achou graça nisso. Até alguns dias atrás, também ele
experimentara a mesma sensação. Considerava-se a si mesmo um santo barrigudo e
ligeiramente calvo.

Gelsen deu um suspiro e acendeu um cigarro. No início do projeto mostrara-se tão entusiasta
quanto os outros. Lembrava-se de haver dito a seu engenheiro-chefe: - "Mac, um novo dia
começa. Pássaro-vigia é a solução." E Macintyre concordara plenamente - mais um convertido
aos pássaros-vigias.

Que maravilha lhe parecera então o projeto! Uma solução tão simples e segura para um dos
maiores problemas da humanidade, inteiramente embrulhada e empacotada num meio quilo
de metal incorruptível, cristal e plásticos.

Talvez fosse exatamente por essa razão que duvidava dela agora. Gelsen desconfiava que não
era possível solucionar os problemas humanos com tanta facilidade. Alguma coisa deveria
estar errada.

Afinal, o crime era um velho problema e o pássaro-vigia uma solução demasiado nova.
- Senhores...

Estavam todos conversando tão animadamente que não perceberam a entrada do


representante do governo. Agora a sala tornou-se repentinamente silenciosa.

- Senhores - continuou o gordo representante do governo - o Presidente, com a aprovação do


Congresso, determinou criar uma divisão de pássaros-vigias para todas as capitais e demais
cidades do país.

Os presentes aplaudiram ruidosamente. Finalmente tinham a oportunidade de salvar o


mundo, pensou Gelsen, e indagou a si mesmo, com preocupação, o que havia de errado nisso.

Ouviu com atenção o representante do governo apresentar o esquema de distribuição. O


país seria dividido em sete áreas; cada uma delas seria abastecida e servida por um fabricante.
Isto significava um monopólio, evidentemente, mas era necessário. Como o serviço
telefônico, correspondia ao supremo interesse do

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público. Não era possível haver concorrência no serviço dos pássaros-vigias. Os pássaros-
vigias pertenciam a todos.

- O Presidente espera - continuou o representante - que um completo serviço de pássaros-


vigias esteja instalado dentro do prazo mais curto possível. O senhores terão prioridade na
compra de metais estratégicos, aquisição de mão-de-obra, etc.

- Por minha parte - disse o presidente de Southern Consolidated - posso ter a primeira remessa
de pássaros-vigias distribuída dentro de uma semana. A produção jà està programada.

Os outros fabricantes estavam igualmente prontos. As fábricas estavam equipadas para


produzir pássaros-vigias durante os próximos meses. O equipamento normal definitivo já fora
aprovado e só estava faltando a autorização presidencial.
- Ótimo - disse o representante do governo. - Se só se trata disso, penso que podemos...
existe alguma dúvida?

- Sim - acrescentou Gelsen. - Desejo saber se o modelo atual é o que vamos fabricar.

- Sem dúvida - disse o representante. - É o mais aperfeiçoado.

- Tenho uma objeção. Gelsen levantou-se. Seus colegas olhavam com firmeza em sua
direção. Indiscutivelmente ele estava atrasando o advento da idade de ouro.

- Qual é sua objeção? - perguntou o representante do governo.

- Antes de mais nada, permita-me esclarecer que sou cem por cento a favor de uma máquina
de combate ao crime. É uma necessidade antiga. Faço objeção apenas aos circuitos de
aprendizado instalados nos pássaros-vigias. Esses servem, com efeito, para animar a máquina
e lhe dar uma pseudoconsciência. Não aprovo esse sistema.

- Mas, senhor Gelsen, o senhor mesmo afirmou que o pássaro-vigia não seria
completamente eficaz a menos que fossem introduzidos nele esses circuitos. Sem eles, os
pássaros-vigias só poderiam eliminar cerca de setenta por cento dos crimes.

- Eu sei disso - confirmou Gelsen, sentindo-se extremamente inconfortável. - Acredito que


haja um perigo moral ao permitir a uma máquina tomar certas decisões que são, por direito,
exclusivas do homem.

- Mas como, Gelsen! - disse um dos presidentes da entidade. - Não - se trata disso. O pássaro-
vigia unicamente

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confirmará as decisões tomadas por homens honestos desde o início dos tempos.
- Concordo com essa opinião - continuou o representante oficial. - Mas posso entender como
o senhor Gelsen se sente. É triste colocarmos um problema humano nas mãos de uma
máquina, e mais triste ainda a necessidade de recorrer a uma máquina para reforçar nossas
leis. Mas rogo-lhe que se lembre, senhor Gelsen, que não existe outra maneira de impedir
um crime antes que ele se concretize. Seria injusto para com os inúmeros inocentes que são
assassinados todos os dias se limitássemos a atuação dos pássaros-vigias a considerações
filosóficas. Não concorda comigo?

- Sim, creio que estou de acordo - disse Gelsen sem muito entusiasmo.

Já havia repetido isso a si mesmo uma centena de vezes. mas mesmo assim algo ainda o
preocupava. Talvez discutisse o assunto com Macintyre.

No momento em que a reunião terminou, ocorreu-lhe um pensamento que o fez sorrir


consigo mesmo: uma boa quantidade de policiais ficaria sem trabalho.

- O que você pensa disso? - perguntou o guarda-civil Celtrics. - Estou há quinze anos no
Setor de Homicídios e agora uma máquina vai me substituir. - Celtrics esfregou sua grossa
mão vermelha contra a testa e apoiou-se na mesa do capitão. - A ciência não é mesmo uma
coisa maravilhosa?

Dois outros policiais, novatos no Setor de Homicídios, concordaram taciturnos.

- Não se preocupe com isso! - disse o capitão. - Vamos encontrar uma situação para você no
Setor de Roubos, Celtrics. Você gostará do ambiente.

- Não consigo entender esse negócio - disse Celtrics em tom de queixa. - Uma porcaria de um
produto de lata e de vidro vai solucionar todos os crimes.

- Não é bem assim - afirmou o capitão. - Os pássarosvigias impedem apenas os crimes antes
que eles ocorram.
- Então como é possível saber se são crimes? - perguntou um dos guardas. - Imagino que não
se pode enforcar uma pessoa por assassinato antes que ela pratique um assassinato, não é
verdade?

- Não se trata disso - disse o capitão. - O pássaro-vigia deve impedir os indivíduos de cometer
um crime.

- E ninguém prende o indivíduo? - perguntou Celtrics.

94

- Não sei como eles vão resolver esse problema - admitiu o capitão.

Os homens ficaram em silêncio durante um momento. O capitão bocejou e olhou para o


relógio.

- O negócio que não entendo - disse Celtrics, apoiando-se na mesa do capitão - é: como é que
eles vão fazer isso? Como foi que tudo isso começou, capitão?

O capitão examinou 'o rosto de Celtrics em busca de uma possível ironia; afinal, os pássaros-
vigias haviam sido assunto dos jornais durante meses. Mas depois lembrou-se de que
Celtrics, como seus colegas, raramente lia outra coisa além das páginas de esporte.

- Bem - disse o capitão - procurando lembrar o que lera nos suplementos dominicais, alguns
cientistas trabalhavam no setor de criminologia. Estudavam os criminosos para descobrir a
razão do comportamento deles. E descobriram então que os criminosos emitiam um tipo de
onda cerebral diferente da dos homens comuns. Também suas glândulas possuíam um
comportamento estranho. E todas essas coisas aconteciam quando estavam prestes a
cometer um crime. De sorte que os cientistas inventaram uma máquina especial que acendia
uma luz vermelha ou algo parecido quando essas ondas cerebrais eram emitidas.

- Esses cientistas - disse Celtrics com azedume. - Bem, depois de inventar essa máquina, os
cientistas não sabiam o que fazer com ela. Era grande demais para andar de um lado para o
outro, e os criminosos por sua vez não passavam toda hora em frente dela para fazê-la
acender. De forma que eles construíram uma unidade menor e a experimentaram em
algumas delegacias. Penso que experimentaram uma no norte do país. Mas o resultado não
foi sensacional. Não se podia evitar o crime em tempo. Essa a razão porque construíram os
pássaros-vigias.

- Não creio que esses pássaros vão impedir criminoso algum de agir - insistiu um dos
policiais.

- Claro que vão. Eu li os resultados dos testes. Podem pressentir o criminoso antes que ele
cometa um crime. E quando o alcançam, dão-lhe um poderoso choque ou algo parecido. E
isso pára o criminoso.

- Quer dizer então que o setor de Homicídios vai fechar, capitão? - perguntou Celtrics.

95

- Não. Vou manter uma turma de esqueletos até ver como funcionam esses pássaros-vigias.

- Essa é boa! - exclamou Celtrics. - Uma turra de esqueletos!

- Isso mesmo - disse o Capitão. - De qualquer forma vou conservar alguns homens. Pelo jeito,
os pássaros não impedem todos os crimes.

- Por que não? - Alguns criminosos não emitem essas ondas cerebrais - respondeu o capitão,
procurando lembrar-se do que estava escrito no jornal. - Parece que suas glândulas não
funcionam ou qualquer coisa assim.

- E quais são os crimes que eles não impedem? - perguntou Celtrics com sua curiosidade
profissional.
- Não sei. Mas ouvi dizer que os cientistas estão dando um jeito para que os pássaros
impeçam todos os crimes muito em breve.

- Como é que estão fazendo? - Eles aprendem. Os pássaros aprendem, bem entendido. Da
mesma forma que as pessoas.

- Você está brincando!... - Nem sombra. - Bem - disse Celtrics - de qualquer forma vou
guardar o meu trabuco bem lubrificado. Não se pode confiar nesses cientistas.

- Claro. - Pássaros! - exclamou Celtrics zombando.

O pássaro-vigia levantou voo sobre a cidade descrevendo uma curva longa e preguiçosa. Sua
carcassa de alumínio brilhava ao sol da manhã e pontos de luz dançavam nas suas asas
abertas. Voava silenciosamente.

Silenciosamente mas com todos os sentidos funcionando. Cinésicos automáticos informavam


ao pássaro-vigia sua situação e o mantinham numa longa curva de inspeção. Seus olhos e
ouvidos operavam como uma unidade, procurando, observando.

E então algo aconteceu. Os rápidos reflexos eletrônicos do pássaro-vigia recebem a onda


emitida por uma sensação. O centro associativo testou-a, comparando-a com outros dados
elétricos e químicos existentes nas fichas memorizadas. Um mecanismo de contato pôs-se
em movimento.

96

O pássaro-vigia descreveu espirais descendentes, aproximando-se da sensação cada vez mais


forte. Ele cheirava a secreção de certas glândulas, provava uma onda cerebral anômala.

Perfeitamente alerta e armado, descrevia voltas com as asas inclinadas na luz branca da
manhã.
Dinelli estava tão atento que não percebeu a aproximação do pássaro-vigia. Apontava sua
arma e seus olhos ameaçavam o corpulento vendeiro.

- Não se aproxime! - Seu patife sem-vergonha - disse o vendeiro e deu mais um passo em
frente. - Veio me roubar? Pois eu lhe partirei todos esses ossos raquíticos ...

O vendeiro, demasiado estúpido ou demasiado corajoso para entender a ameaça da arma


apontada, avançou sobre o pequeno ladrão.

- Pois bem - disse Dinelli, tomado de pânico. - Muito bem então, seu otário, tome lá...

Um choque elétrico atingiu-o nas costas. O tiro partiu, destruindo um cartazinho na porta da
venda.

- Que diabo é isso? - exclamou o vendeiro, olhando para o ladrão inconsciente. - E só então
viu um clarão de asas prateadas. - Raios o partam! Ésses pássaros-vigias trabalham
mesmo.

Acompanhou-o com a vista até que as asas desapareceram no céu. Em seguida telefonou à
polícia.

O pássaro-vigia voltou a descrever suas curvas pesquisadoras. Seu centro de pensamento


associou os fatos que havia aprendido sobre o crime. Muitos deles não conhecia antes.

Esta nova informação foi simultâneamente comunicada a todos os outros pásaros-vigias e as


informações destes voltaram para o primeiro.

Novas informações, métodos e definições estavam constantemente passando de uns para os


outros.

Agora que os pássaros-vigias estavam saindo normalmente da linha de produção, Gelsen


permitiu-se um momento de descanso. Um burburinho de satisfação inundava a fábrica. Os
pedidos estavam sendo executados em tempo, com prioridade para as principais cidades de
sua área, atendendo em seguida As cidades menores.

- Tudo em dia - disse Macintyre, aproximando-se da porta,

97

Acabara de completar uma inspeção de rotina. - Õtimo. Sente-se. O corpulento engenheiro


sentou-se e acendeu um cigarro. - Jul faz algum tempo que trabalhamos nisso - costumava
dizer Gelsen quando não encontrava outro assunto de conversa.

- É verdade - concordou Macintyre. Inclinou-se para trás na cadeira e aspirou


profundamente. Fora um dos engenheiros consultores do projeto original dos pássaros-vigias.
Isto fora há seis anos atrás. Trabalhara para Gelsen desde então e os dois tornaram-se bons
amigos.

- O que lhe queria perguntar é o seguinte... - disse Gelsen fazendo uma pausa. Não sabia
como indagar o que desejava saber. Em lugar disso perguntou: - O que você pensa dos
pássaros-vigias, Mac?

- Quem, eu? - sorriu nervosamente o engenheiro. Ele comera, bebera e sonhara com os
pássaros-vigias desde o início do projeto. Nunca pensara ser necessário tomar uma atitude a
esse respeito. - Bem, eu acho que são uma coisa excelente.

- Não falo nesse sentido - contraveio Gelsen. Percebeu que seu desejo era que alguém
entendesse seu ponto de vista. - Minha pergunta é a seguinte: você acha que pode haver
algum perigo numa máquina que pensa?

- Não, não creio. Por que me pergunta isso? - Olha, eu não sou cientista nem engenheiro.
Controlo apenas o custo e a produção, e deixo o resto por conta de vocês. Mas embora leigo
no assunto, os pássaros-vigias começam a me assustar.
- Não há razão para isso. - Não aprecio a ideia dos circuitos de aprendizagem. - Mas por que
motivo? - perguntou Macintyre rindo de novo sem jeito. - Bem, eu entendo. Você é como
muita gente que tem medo das máquinas acordarem e dizerem: "O que é que estamos nós
fazendo aqui? Vamos sair e governar o mundo." Não é isso?

- Mais ou menos - admitiu Gelsen. - Não existe esse risco - disse Macintyre. - Os
pássarosvigias são complexos, admito, mas um computador M.I.T. é muito mais complexo.
E nem por isso possui consciência.

- Não. Mas os pássaros-vigias podem aprender. - Não há dúvida. Mas os novos computadores
também podem. Você acredita por isso que eles vão se associar aos pássaros-vigias?

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Gelsen aborreceu-se com Macintyre e ficou mais aborrecido ainda consigo mesmo por
parecer ridículo.

- Não se pode negar que os pássaros-vigias podem por seu conhecimento em ação. Ninguém
os supervisiona.

- Isso é verdade - assentiu Macintyre. - Estive pensando em sair desse negócio - disse Gelsen,
e somente então ele percebeu o significado do seu desejo.

- Escuta - reteve-o Macintyre. - Aceita o conselho de um engenheiro?

- Sim, diga. - Os pássaros-vigias não são mais perigosos do que os au- tomóveis, um
computador BM ou um termômetro. Não possuem maior consciência ou vontade do que
esses produtos. Os pássaros-vigias foram construídos para responder a certos estímulos e
para realizar certas operações ao receberem esses estímulos.

- E os circuitos de aprendizagem? - eles são indispensáveis - disse Macintyre com paciência,


como se explicasse o assunto a um menino de dez anos. - A finalidade dos pássaros-vigias é
frustrar todas as tentativas de crime, não é verdade? Pois bem, somente certos criminosos
produzem esses estímulos. A fim de impedir todos eles de agir, o pássaro-vigia deve procurar
novas definições de crimes e associá-las às que já conhece.

- Penso que isso é desumano - declarou Gelsen. - Essa é a principal qualidade deles. Os
pássaros-vigias não possuem emoções. O raciocínio deles não é antropomórfico. Não é
possível suborná-los ou drogá-los. Nem é preciso tampouco temê-los.

O aparelho de comunicação interna zumbiu sobre a mesa de Gelsen. Ele não lhe deu atenção.

- Eu sei de tudo isso - disse Gelsen. - Mas mesmo assim, em certas ocasiões, sinto-me como o
homem que inventou a dinamite, pensando que ela só seria utilizada para arrancar os troncos
das árvores.

- Mas você não inventou o pássaro-vigia. - Sinto-me contudo moralmente responsável por
fabricá-los. O interfone tocou novamente e Gelsen irritado apertou um botão.

- Chegaram os relatórios da primeira semana de operação dos pássaros-vigias - disse a


secretária.

- Que tal são eles? - Maravilhosos, senhor. - Traga-os por favor daqui a quinze minutos. -
Gelsen desligou o aparelho e voltou-se para Macintyre, que limpava as

99

unhas com um palito de fósforo. - Você não acha que isso representa uma tendência do
pensamento humano? O deus mecânico? O pai eletrônico?

- Creio que você deveria estudar mais atentamente os pássaros-vigias - replicou-lhe


Macintyre. - Sabe o que existe dentro dos circuitos?

- Muito vagamente. - Primeiro, existe uma finalidade: que é a de impedir os organismos vivos
de cometerem crimes. Segundo, o crime pode ser definido como um ato de violência,
consistindo na destruição, injúria, maltrato ou interrupção de qualquer outra forma, das
funções de um organismo vivo por outro organismo vivo. Terceiro, a maior parte dos crimes
são perceptíveis mediante certas transformações químicas e elétricas.

Macintyre fez uma pausa para acender um outro cigarro. - Essas condições aplicam-se às
funções de rotina. Mas para os circuitos de aprendizagem existem duas outras condições.
Quarto, existem certos organismos vivos que cometem crimes sem os indícios mencionados
no item três. Quinto, esses indícios podem ser descobertos mediante dados aplicáveis ao
item dois.

- Entendo - disse Gelsen. - Percebe agora como o sistema é seguro? - Creio que sim. - Gelsen
hesitou um momento. - Penso que é tudo que desejava saber.

- Bom - concluiu o engenheiro saindo da sala. Gelsen pensou durante alguns momentos. Não
podia haver nada errado com os pássaros-vigias.

- Traga os relatórios por favor! - disse à secretária pelo interfone.

Bem acima dos edifícios iluminados da cidade, o pássaro-vigia planava. Era noite, mas o
pássaro-vigia podia avistar um outro pássaro ao longe e mais outro adiante. Porque aquela
era uma grande cidade.

Para impedir o crime... Havia mais fatos para observar agora. Novas informações haviam
cruzado as rêdes invisíveis que ligavam todos os pássaros-vigias. Novos dados, novas técnicas
para descobrir a violência do crime.

Lá! A onda de uma sensação! Dois pássaros-vigias mergulham simultâneamente. Um recebera


a mensagem olfativa uma

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fração de segundo antes do outro. Continuou descendo enquanto o outro retomou a


supervisão da cidade.
Condição quarta: há certos organismos vivos que cometem crimes sem os sinais mencionados
na condição três.

Mediante essa nova informação, o pássaro-vigia sabia por dedução que este organismo vivo
tinha tendência para o crime, ainda que estivessem ausentes os aromas químicos e
elétricos característicos.

O pássaro-vigia, com todos os sentidos aguçados, aproximava-se do organismo. Encontrava o


que buscava e mergulhava.

Roger Greco estava apoiado contra um edifício, com as mãos nos bolsos. Na sua mão
esquerda estava o cano frio de uma pistola 45. Greco esperava pacientemente.

Não pensava em nada em particular; descansava apenas contra uma parede esperando
seu homem. Greco não sabia porque deveria matar aquele homem. Não se preocupava com
isso. A falta de curiosidade de Greco era parte de seu valor. A outra parte era sua habilidade.

Uma bala, colocada com precisão na cabeça do homem que ele não conhecia. Isso não o
excitava nem repugnava. Era um trabalho igual a qualquer outro. Você matou um homem. E
daí?

Quando a vítima de Greco saiu do prédio, Greco retirou a pistola 45 do bolso. Soltou a trava
de segurança e engatilhou a arma com sua mão direita. Continuava não pensando em nada
enquanto fazia a pontaria.

E foi derrubado no chão. Greco pensou que tivesse sido baleado. Levantou-se com
dificuldade, olhou em volta e viu confusamente sua vítima.

De novo foi derrubado no chão. Desta vez deixou-se ficar, procurando fazer pontaria naquela
posição. Não lhe ocorreu desistir do seu intento, porque Greco era um profissional.
Com o golpe seguinte, tudo se tornou negro. Permanentemente, porque o dever do pássaro-
vigia era proteger o objeto da violência - a qualquer preço para o assassino.

A vítima caminhou para seu carro. Não observara nada fora do comum. Tudo transcorrera
em perfeito silêncio.

Gelsen sentia-se em excelente disposição. Os pásaros-vigias estavam operando


perfeitamente. Os crimes de violência foram reduzidos pela metade, e de novo reduzidos. As
alamêdas escuras

101

não eram mais bocas do horror. Os parques e jardins não eram mais locais para se evitar
depois de escurecer.

Sem dúvida, havia ainda roubos. Os pequenos crimes floresciam, bem como os assaltos, o
furto, as falcatruas e uma dezena de outros crimes menores.

Mas isso não era tão importante. Era possível reaver o dinheiro furtado - mas nunca uma
vida.

Gelsen estava disposto a admitir que estivera errado a respeito dos pássaros-vigias. Faziam
um trabalho que os homens haviam sido incapazes de realizar.

O primeiro indício de algo errado surgiu aquela manhã. Macintyre entrou na sua sala.
Permaneceu em silêncio diante de sua mesa, parecendo aborrecido e meio embaraçado.

- O que aconteceu, Mac? - perguntou Gelsen. - Um dos pássaros-vigias desceu num


matadouro e matou o empregado que trabalhava ali.
Gelsen refletiu um momento sobre o caso. Sim, os pássaros-vigias fariam isso. Com seus
novos circuitos de aprendizado, haviam provavelmente definido a morte dos animais como
um crime.

- Diga ao pessoal dos frigoríficos para mecanizarem o serviço nos matadouros. Aliás, eu nunca
apreciei esse trabalho.

- Pois não - disse Macintyre. Mordeu os lábios, balançou os ombros e saiu.

Gelsen ficou em pé ao lado de sua mesa, refletindo. Poderiam os pássaros-vigias distinguir


entre um assassino e um homem empregado numa profissão legítima? Não, evidentemente
não podiam. Para eles a morte era a morte. Não havia exceções. Franziu a testa. Seria
preciso introduzir uma certa flexibilidade nos circuitos.

Mas não muita, concluiu apressadamente. Apenas torná-los mais discriminadores.

Sentou-se novamente e ocupou-se de suas tarefas rotineiras, procurando evitar o


pressentimento de um antigo temor.

Prenderam o prisioneiro na cadeira e ajustaram o elétrodo em sua perna.

- Ah, ah - murmurou o homem, numa semiconsciência do que pretendiam.

Enfiaram o capacete em sua cabeça raspada e apertaram as últimas correias. O homem


continuou a murmurar baixinho.

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E foi então que o pássaro-vigia entrou voando. Como chegara ali, ninguém sabe. As prisões
são grandes e fortes, com muitas portas trancadas, mas o pássaro-vigia estava ali ...

Para impedir uma morte violenta. - Expulsem esse negócio daqui! - gritou o guardião e
aproximou-se da chave elétrica.

O pássaro-vigia derrubou-o no chão. - Parem com isso! - gritou um outro guarda e agarrou a
chave elétrica.

Foi derrubado no chão junto ao guardião. - Isso não é um crime, seu idiota! - disse um
outro guarda.

E sacou o revólver para atirar contra o pássaro metálico que brilhava e dava voltas.

Antecipando-se à sua intenção, o pássaro-vigia jogou-o contra uma parede. Houve um


silêncio na sala. Após um momento, o homem com o capacete começou a rir. Depois parou.

O pássaro-vigia mantinha-se de guarda, revoando a meia altura ... Certificando-se que


nenhum crime seria cometido ali. Novos dados correram pelas rêdes de pássaros-vigias.
Independentes, sem supervisão, os milhares de outros pássaros receberam as informações e
agiram de acordo.

A destruição, injúria, maltrato ou qualquer outra interrupção das funções de um organismo


vivo por outro organismo vivo. Novos atos a serem impedidos.

- Toca pra frente, seu pangaré dos diabos! - gritou o fazendeiro Olllester levantando
novamente o chicote.

O cavalo empacou; a carroça sacudia e balançava enquanto o animal se afastava de lado.

- Seu pangaré duma figa, toca pra frente! - gritou o fazendeiro e levantou novamente o
chicote.
Mas não chegou a descê-lo sobre o animal. Um pássarovigia alerta, pressentindo a violência,
derrubou o fazendeiro da boléia.

Um organismo vivo? o que é organismo vivo? Os pássaros-vigias ampliavam suas definições à


medida que se tornavam mais conscientes de um maior número de fatos. E, naturalmente,
isto lhes aumentava as áreas de trabalho.

O veado surgiu na ourela da floresta. O caçador levantou sua espingarda e fez uma cuidadosa
pontaria.

Não teve tempo porém para disparar a arma.

103

Com sua mão livre, Gelsen enxugou o suor do rosto. - Está certo - confirmou pelo telefone.
Ouviu a corrente de insultos do outro lado da linha, depois colocou o telefone com delicadeza
sobre o gancho.

- Quem era agora? - perguntou Macintyre. Estava sem fazer a barba, com a gravata sôlta e a
camisa desabotoada.

- Um outro pescador - disse Gelsen. - Parece que os pássaros-vigias não querem deixá-lo
pescar, ainda mesmo que sua família morra de fome. Deseja saber que providências vamos
tomar ...

- Quantas centenas no mesmo caso? - Não sei. Não abri ainda a correspondência. - Bom,
creio que descobri onde está o problema - disse Macintyre com o ar sombrio, como o
semblante do homem que sabe como fez explodir a Terra - embora seja tarde demais.

- Diga. - Todos estavam certos que desejávamos impedir todos os crimes. Imaginamos que os
pássaros-vigias iriam pensar da mesma forma. Deveríamos ter qualificado as condições.
- Suponho - disse Gelsen - que deveríamos saber primeiro o que é o crime e por que tal coisa é
um crime, antes de podermos qualificar as condições adequadamente. E se soubéssemos
isso, não teríamos necessidade de pássaros-vigias.

- Ah, não entendo dessas coisas. Os pássaros simplesmente deveriam ser informados que
certos atos que parecem crimes e não são crimes.

- Mas por que motivo eles impedem os pescadores de pescar? - perguntou Gelsen.

- Por que não haveriam? Os peixes e os animais são organismos vivos. Nós simplesmente não
consideramos um crime matá-los.

O telefone tocou. Gelsen olhou para o aparelho e apertou o interfone.

- Eu lhe disse que não atendia mais chamados, fosse de quem fosse.

- Este é de Washington - disse a secretária. - Pensei que o senhor.

- Desculpe. - Gelsen apanhou o telefone. - Sim. Não há dúvida que é grande aborrecimento...
Como? Eles fizeram isso? Certo, irei sem falta. - E colocou o telefone no gancho.

- Claro como água - disse a Macintyre. - Vamos parar temporariamente os pássaros-vigias.

- Não vai ser fácil - disse Macintyre. - Eles operam independentemente de qualquer controle
central, como você sabe.

104
Voltam apenas uma vez por semana para as revisões habituais. Só então podemos desligá-los,
um a um.

- Bem, vamos fazer isso. Monroe, fabricante da costa do Pacífico, desligou um quarto dos
seus pássaros.

- Penso que posso bolar um circuito mais limitado - disse Macintyre.

- Ótimo - respondeu Gelsen com amargura. - Você me faz muito feliz.

Os pássaros-vigias estavam aprendendo rapidamente, expandindo e acrescentando dados ao


conhecimento que jà possuíam. Abstrações livremente definidas eram adicionadas, elaboradas
e reampliadas.

Impedir o crime... O metal e os elétrons raciocinam bem, mas não à maneira humana.

Um organismo vivo? Qualquer organismo vivo. Os pássaros-vigias propuseram-se a tarefa de


proteger todas as criaturas vivas.

Uma mosca voou pela sala, pousou em cima da mesa, descansou um momento e depois saiu
voando em direção à janela.

O velho saiu atrás dela com um jornal dobrado na mão. Assassino! Os pássaros-vigias
desceram e salvaram a mosca no momento exato.

O velho se contorceu durante um instante no chão e depois se calou. Recebera apenas um


choque leve mas fora suficiente para seu coração fraco e dilatado.

Sua vítima fora salva, contudo, e isso era o fato importante. Salvar a vítima e dar ao agressor
seu castigo merecido.
Gelsen perguntou com raiva: - Por que eles não foram desligados ainda?

O engenheiro-assistente do controle fez um gesto: no canto da sala de consertos estava caído


o engenheiro-chefe. Estava voltando a si.

- Ele tentou desligar um deles - disse o engenheiro-assistente. O homem fazia um esfôrço


visível para não tremer, e apertava com força as duas mãos.

- Isso é ridículo. Eles não possuem nenhum instinto de conservação.

105

- Então tente desligá-los! Aliás, não creio que mais nenhum vai voltar.

O que teria acontecido? Gelsen começou a encontrar uma explicação. Os pássaros-vigias


ainda não sabiam distinguir os limites dos organismos vivos. Quando alguns deles foram
desligados na fábrica Monroe, os outros receberam certamente as informações.

De sorte que foram levados a pensar que eram organismos vivos também.

Ninguém nunca lhes informara do contrário. Não havia dúvida que realizavam a maior parte
das funções dos organismos vivos.

Foi então que os velhos temores se apoderaram de Gelsen. Sentiu um tremor e saiu
rapidamente da sala de consertos. Desejava encontrar urgentemente Macintyre.

A enfermeira passou a esponja ao cirurgião. - O bisturi. Ela colocou na sua mão. O cirurgião
começou a fazer a primeira incisão. E nesse momento teve consciência de um distúrbio.

- Quem deixou essa coisa entrar? - Não sei - disse a enfermeira, com a voz abafada pela sua
máscara.
- Tirem-no daqui! A enfermeira balançou os braços para a coisa alada e brilhante, mas o
pássaro continuou revoando sobre sua cabeça.

O cirurgião prosseguiu com a incisão - tão comprida quanto era possível.

O pássaro-vigia afastou-o da mesa e montou guarda. - Telefonem para a companhia dos


pássaros-vigias! - ordenou o cirurgião. Mandem desligar essa coisa!

O pássaro-vigia impedia que se cometesse uma violência contra um organismo vivo.

O cirurgião não podia fazer nada enquanto seu paciente morria na mesa de operação.

Voando bem acima das estradas de rodagem, o pássaro-vigia observava e aguardava. Estivera
trabalhando permanentemente durante semanas, sem descanso nem consertos. Descanso e
consertos eram coisas impossíveis porque o pássaro-vigia não podia consentir ser morto -
sendo ele um organismo vivo. E era isso que acontecia toda vez que os pássaros-vigias
voltavam para a fábrica.

106

Havia uma ordem automática para que voltassem, após um certo período. Mas o pássaro-
vigia tinha uma ordem mais estrita para obedecer: a preservação da vida, inclusive a sua.

As definições de crime tinham agora se estendido ao infinito, e eram impossíveis de ser


enfrentadas. O pássaro-vigia porém não se preocupava com isso. Respondia aos estímulos,
toda vez que surgiam e de onde quer que fosse.

Havia uma nova definição de organismo vivo que fora memorizada. Era o resultado da
descoberta pelo pássaro-vigia que todos os demais pássaros-vigias eram igualmente
organismos vivos. E isso tinha múltiplas ramificações.
O estímulo surgiu. Pela centéssima vez naquele dia o pássarovigia inclinou suas asas descendo
rapidamente para impedir um crime.

Jackson bocejou e encostou o carro na beira da estrada. Não percebeu o ponto luminoso no
céu. Aliás, não havia razão para se preocupar com isso. Jackson não estava pensando
cometer um crime, pelo menos segundo um conceito humano.

Aquele era um bom local para tirar um sono, pensou ele. Estivera dirigindo durante sete horas
seguidas e seus olhos começavam a ficar embaçados. Fez menção de desligar a chave do
motor... E foi golpeado contra o banco do carro. - Que diabo tem você? - perguntou
indignado. - Desejo apenas...

De novo tentou desligar o contato e foi novamente golpeado. Jackson não tentou uma
terceira vez. Estivera ouvindo o rádio e sabia o que os pássaros-vigias faziam com os
violadores obstinados.

- Seu cretino mecânico - disse para o pássaro de metal que o vigiava. - Um carro não é um ser
vivo. Não estou tentando matá-lo.

Mas o pássaro-vigia sabia apenas que uma certa operação resultava na parada do organismo.
O carro certamente era um organismo em funcionamento. Não era ele de metal como os
pássaros-vigias? Não funcionavam?

Macintyre disse: - Sem as devidas revisões eles vão acabar parando.

E afastou da sua frente uma pilha de folhas de especificações. - Após quanto tempo? -
perguntou Gelsen. - Dentro de seis meses a um ano. Digamos um ano, sem contar os
acidentes.

107

- Um ano - repetiu Gelsen. - Nesse meio tempo tudo vai parar. Sabe da última?
- Qual. - Os pássaros-vigias concluíram que a terra é um organismo vivo. Não vão permitir
mais que os fazendeiros façam covas para plantar. E, naturalmente, tudo mais é um
organismo vivo: coelhos, bezouros, moscas, lôbos, mosquitos, leões, crocodilos, gralhas e
formas menores de vida, tais como as bactérias.

- Eu sei disso - assentiu Macintyre. - E você ainda me diz que eles vão se gastar em seis meses
ou um ano. Que fazer agora? Que vamos comer daqui a seis meses?

O engenheiro esfregou o queixo. - Temos que fazer algo urgentemente. O equilíbrio ecológico
foi para o inferno.

- Urgentemente não é a palavra. Instantâneamente seria preferível. - Gelsen acendeu seu


trigésimo quinto cigarro do dia. - Pelo menos tenho a amarga satisfação de dizer: "Eu os
preveni." Embora eu seja tão responsável quanto os demais loucos adoradores da máquina.

Macintyre não estava ouvindo. Estava pensando nos pássaros-vigias.

- Como a praga de coelhos na Austrália - disse em voz alta.

- O índice de mortes está subindo - continuou Gelsen. - Fome. Enchentes. Não se pode cortar
as árvores. Os médicos não podem mais. O que foi que você disse sobre a Austrália?

- Os coelhos - repetiu Macintyre. - Não sobrou mais nenhum.

- Por quê? Como fizeram? - Oh, encontraram uma espécie de micróbio que atacava apenas
os coelhos. Penso que era propagado pelos mosquitos.

- Reflita sobre isso - disse Gelsen. - Talvez encontre alguma solução. Pegue o telefone e
convoque uma reunião de emergência com os outros engenheiros das demais companhias.
Depressa. Juntos talvez vocês encontrem uma solução.
- Certo - disse Macintyre. Apanhou na mesa um punhado de folhas de papel e correu para o
telefone.

- O que foi que lhe disse? - Comentou o guarda-civil Celtries. Sorriu para o capitão. - Não lhe
dizia que os cientistas eram malucos?

108

- Mas eu não disse que você estava errado, eu disse? perguntou o capitão.

- Não, mas você não tinha certeza. - Bem, agora estou certo. É melhor você ir andando. Há
um mundo de trabalho a ser feito.

- Eu sei disso. - Celtrics tirou o revólver do coldre, examinou-o e tornou a colocá-lo no lugar. -
Todos os rapazes já voltaram, capitão?

- Todos? - O capitão deu uma risada forçada. - O homicídio aumentou de cinquenta por cento.
Hà mais crimes agora do que nunca.

- Pois é, disse Celtrics. Os pássaros-vigias estão demasiado ocupados tomando conta de


carros e de aranhas. - Dirigiu-se para a porta, depois voltou para fazer um último comentário. -
Ouça o que lhe digo, capitão. As máquinas são estúpidas.

O capitão sacudiu a cabeça.

Milhares de pássaros-vigias procurando impedir milhões de crimes - uma tarefa impossível.


Mas os pássaros-vigias não viam a impossibilidade. Sem consciência, não possuíam nenhum
sentido de realização, nenhum medo do malogro. Continuavam pacientemente fazendo seu
trabalho, obedecendo a todos os estímulos que os atingiam.

Não podiam estar em toda a parte ao mesmo tempo, mas isso não era necessário. As pessoas
aprenderam rapidamente o de que os pássaros-vigias não gostavam e evitavam fazer isso.
Mesmo assim não era seguro. Graças a sua alta velocidade e seus sentidos ultra-rápidos, os
pássaros-vigias chegavam rapidamente em qualquer lugar.

E estavam dispostos a trabalhar. Nas suas diretrizes originais, havia a possibilidade de matar o
assassino, quando todos os outros meios malogravam.

- Por que poupar um criminoso? O tiro saiu pela culatra. Os pássaros-vigias concluíram que o
assassinato e os crimes violentos haviam aumentado geometricamente desde que começara a
operação. E isto era verdade, porquanto suas novas definições aumentavam as possibilidades
de crime. Mas para o pássaro-vigia, o aumento significava que os primeiros métodos haviam
malogrado.

Simples questão de lógica. Se A não funciona, experimente B. Os pássaros-vigias davam


agora choques mortais.

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Os matadouros de Chicago pararam e os rebanhos morriam de fome nos currais, porque os


fazendeiros do Centro Oeste não podiam cortar feno ou colher cereais.

Ninguém informara dos pássaros-vigias que toda vida depende do equilíbrio de certos crimes.

A fome não interessava aos pássaros-vigias, uma vez que era um ato de omissão.

O interesse deles estava unicamente nos atos de comissão. Os caçadores ficavam em suas
casas, observando os pontos prateados no céu, desejando derrubá-los. Mas, na maior parte
dos casos, não tentavam. Os pássaros-vigias percebiam imediatamente as intenções
criminosas e as puniam.

Os barcos de pesca balançavam serenamente em seus ancoradouros de San Pedro e


Gloucester. Os peixes eram organismos vivos.
Os fazendeiros amaldiçoavam, cuspiam e morriam, procurando colher seus campos. O cereal
era um ser vivo e por isso merecedor de proteção. As batatas eram tão importantes para os
pássaros-vigias quanto qualquer outro organismo vivo. A morte de um pé de capim era igual
ao assassinato do Presidente ... Para os pássaros-vigias. E, evidentemente, certas máquinas
eram vivas. Isso decorria do fato de os pássaros-vigias serem máquinas e estarem vivos.

Ai de quem maltratava seu rádio! Desligá-lo significava matá-lo. Evidentemente sua voz era
silenciada, o brilho vermelho de suas válvulas se apagava e esfriava.

Os pássaros-vigias procuravam observar suas outras ocupações. Os lôbos eram mortos, ao


tentarem matar os coelhos. Os coelhos eram eletrocutados, ao tentarem comer os legumes.
As trepadeiras eram queimadas, ao tentarem estrangular as árvores.

Uma borboleta foi executada, ao ser apanhada no ato de ultrajar uma rosa.

Esse controle era espasmódico, devido ao pequeno número de pássaros-vigias. Um bilhão de


pássaros-vigias não teria podido realizar o ambicioso projeto iniciado por alguns milhares.

O efeito possuía uma força assassina, dez mil choques de eletricidade irracional devastando o
país, disparando milhares de vezes por dia.

Choques que antecipavam os movimentos e puniam as intenções.

- Senhores, por favor - suplicou o representante do governo. - Devemos nos apressar.

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Os sete fabricantes silenciaram. - Antes de iniciarmos oficialmente esta reunião - disse o


presidente da Monroe - desejo dizer algumas palavras. Não nos sentimos responsáveis por
esta infeliz situação. Foi um projeto governamental; o governo deve assumir a inteira
responsabilidade, tanto moral quanto econômica, dessa operação.
Gelsen sacudiu os ombros. Era difícil acreditar que aqueles homens, somente algumas
semanas atrás, pareciam tão dispostos a aceitar a glória de salvar o mundo. Agora desejavam
eximir-se da responsabilidade, já que a salvação malograra.

- Sei perfeitamente que isso não vem ao caso agora - afirmou o representante do governo
tranquilizando-o. - Devemos nos apressar. Seus engenheiros fizeram um excelente trabalho.
Sinto-me orgulhoso com o espírito de cooperação que os senhores manifestaram nesta
emergência. Os senhores estão autorizados a dar andamento ao novo projeto.

- Um momento - disse Gelsen. - Não há tempo a perder. - O projeto não serve. - O senhor
não acredita que ele vá dar resultado? - Certamente que vai. Mas receio que a cura seja pior
do que a doença.

Os demais fabricantes davam a impressão de que teriam apreciado muitíssimo esganar Gelsen.
Mas ele não hesitou.

- Será que ainda não aprendemos? - perguntou. - Os senhores não percebem que não é
possível curar os problemas humanos mediante a mecanização?..

- Senhor Gelsen - disse o presidente da Monroe - eu apreciaria ouvi-lo filosofar, mas,


infelizmente, pessoas estão morrendo. As plantações estão se arruinando. Há fome em
algumas regiões do país. Os pássaros-vigias devem ser eliminados imediatamente.

- Também o crime devia ser eliminado. Lembro-me que todos nós concordamos com isso. E
no entanto não era por aquele meio.

- O que o senhor sugere? - perguntou o representante do governo.

Gelsen respirou fundo. O que ia dizer tirou-lhe toda a coragem.

- Deixem os pássaros-vigias se desgastarem sozinhos - aconselhou.


111

Houve um começo de tumulto. O representante do governo abafou-o.

- Vamos aprender a lição - insistiu Gelsen; - admitir que estávamos tentando erradamente
curar os problemas humanos através de meios mecânicos. Vamos começar de novo. Utilizar
máquinas, sim, mas não como juízes, professores e pais.

- Ridículo - disse o representante com frieza. - Senhor Gelsen, o senhor està esgotado. Sugiro
que se controle. - Pigarreou. - Todos os senhores estão incumbidos pelo Presidente de por
em prática o projeto que submeteram à apreciação do Presidente. - O representante olhou
com insistência para Gelsen. - Não agir dessa forma será considerado traição.

- Farei tudo o que estiver dentro de minhas possibilidades - afirmou Gelsen.

- Bom. As linhas de produção programadas devem estar funcionando dentro de uma semana.

Gelsen saiu da sala de reunião sozinho. Sentia-se agora novamente confuso. Conduzira-se
certo ou era simplesmente um outro visionário? A verdade é que não se fizera entender com
muita clareza.

Estava convencido de suas ideias? Gelsen praguejou baixo. Desejava saber por que nunca
podia ter certeza de nada. Será que não possuía mais valores sobre os quais se apoiar?

Correu para o aeroporto e dali para sua fábrica.

Os pássaros-vigias operavam agora de maneira precária. Muitas de suas delicadas partes


estavam desajustadas, gastas pelo funcionamento contínuo. Mesmo assim, contudo,
respondiam elegantemente quando surgia um estímulo.
Uma aranha atacava uma mosca. O pássaro-vigia picou em sua ajuda.

Ao mesmo tempo percebeu que havia algo em cima de sua cabeça. Deu meia volta para
enfrentar o possível inimigo.

Súbito uma detonação acompanhada de um poderoso projétil que passa zumbindo pela asa
do pássaro-vigia. Enfurecido, o pássaro-vigia responde com um violento choque.

O atacante porém estava perfeitamente isolado. De novo golpeou o pássaro-vigia, e desta vez
um projétil atingiu sua asa. O pássaro-vigia fugiu, mas o atacante perseguiu-o velozmente,
disparando sua poderosa arma.

112

O pássaro-vigia foi finalmente derrubado, mas conseguiu enviar antes sua mensagem.
Urgente! Uma nova ameaça para os organismos vivos - e a mais mortal que apareceu até
agora.

Outros pássaros-vigias espalhados pelo país completaram a mensagem. Seus centros


mentais procuraram encontrar uma solução.

- Então, meu caro, eles derrubaram uns cinquenta hoje - disse Macintyre entrando no
escritório de Gelsen.

- Ótimo - desabafou Gelsen - sem levantar os olhos para o engenheiro.

- Não foi tão ótimo assim - disse Macintyre sentando-se. - Meu Deus como estou cansado!
Ontem foram setenta e dois.

- Eu sei. Sobre a mesa de Gelsen estavam dezenas de processos que dirigia ao governo.
- Mas eles vão aumentar o número de novo, continuou Macintyre com otimismo. Os Gaviões
foram construídos especialmente para caçar os pássaros-vigias. São mais fortes, mais rápidos
e possuem uma armadura mais resistente. Nós realmente os fabricamos numa correria, ein?

- Sim, não há dúvida. - Mas os pássaros-vigias também são bons - admitiu Macyntire. - E estão
aprendendo a se defender. Estão tentando uma série de manobras no ar. Fora isso, cada um
deles informa aos demais alguma coisa nova.

Gelsen não respondeu. - Mas tudo que os pássaros-vigias fazem, os Gaviões fazem melhor -
disse Macintyre com alegria. - Gaviões possuem circuitos especiais para aprender a caçar.
São mais flexíveis do que os pássaros-vigias. Aprendem mais depressa.

Gelsen levantou-se com o rosto sério, esticou o corpo e foi até a janela. O céu estava limpo.
Olhando para o alto, percebeu que suas incertezas haviam terminado. Certo ou errado,
chegara a uma decisão.

- Diga-me uma coisa - perguntou Gelsen continuando a olhar para o céu, - o que vão caçar os
Gaviões depois que exterminarem os pássaros-vigias?

- Ahn? - murmurou Macintyre. - Por que ... - Apenas por uma questão de segurança, seria
bom projetar alguma coisa que caçasse os Gaviões. Apenas por uma questão de segurança, é
claro.

113

- Você acha que... - Tudo que sei é que os Gaviões são autocontrolados. Da mesma forma
que os pássaros-vigias. O controle remoto teria sido demasiado lento - essa a razão dada. A
ideia era caçar pássaros-vigias e caçá-los o mais rapidamente possível. Isso significa: circuitos
abertos.

- Nós podemos bolar alguma outra coisa - disse Macintyre sem convicção.
- Vocês têm agora uma máquina agressiva no ar. Uma máquina assassina. Antes disso era
uma máquina antiassassina. A próxima máquina deverá ser ainda mais eficaz, não é mesmo?

Macintyre não respondeu. - Eu não o considero responsável por isso - disse Gelsen. - Sou eu o
responsável. Somos todos nós.

No espaço, do lado de fora da janela, avistava-se um ponto veloz.

- É esse o resultado - disse Gelsen - de entregar a uma máquina o trabalho que era de nossa
inteira responsabilidade.

No alto, um Gavião atacava um pássaro-vigia. A robusta máquina assassina aprendera uma


quantidade de coisas em alguns poucos dias. Sua única função era matar. No momento
estava dirigida contra um certo tipo de organismo vivo, metálico como ela própria.

Mas o Gavião acabara de descobrir que havia outros tipos de organismos vivos ... Que
deveriam ser mortos.

114

***

Quente

Anders está deitado na sua cama, inteiramente vestido com exceção dos sapatos e da gravata
borboleta preta, considerando com uma certa preocupação a perspectiva da noite inteira
diante dele. Dentro de vinte minutos iria apanhar Judy no apartamento dela - e era isso que
o preocupava.

Havia descoberto, alguns segundos antes, que a amava. Bem, confessaria seu amor. A noite
seria memorável. Faria uma proposta de casamento, haveria beijos e o selo da aceitação
seria, por assim dizer, estampado na sua testa.
Não era uma perspectiva muito agradável, concluiu. Seria muito mais cômodo não estar
apaixonado. O que causara isso? Um olhar, um carinho, um pensamento? Não fora tanto, ele
sabia, e estendeu os braços para um bocejo enorme.

- Socorro! - disse uma voz. Seus músculos sofreram uma contração, interrompendo
repentinamente o bocejo. Sentou-se ereto na cama, depois deu um sorriso e tornou a deitar-
se.

- Você precisa me ajudar - insistiu a voz. Anders sentou-se de novo, apanhou um sapato
brilhante e calçou-o, dando a máxima atenção ao laço.

- Você està me ouvindo? - perguntou a voz. - Você está, não é verdade?

Foi o bastante. - Sim, estou ouvindo - respondeu Anders, ainda de ótimo humor. - Não me
diga que você é meu subconsciente culpado,

115

assaltando-me por um trauma infantil que nunca me preocupei em solucionar. Imagino que
na sua opinião eu deveria entrar num mosteiro.

- Não sei do que você está falando - disse a voz. - Eu não sou o subconsciente de ninguém.
Eu sou eu. Você me ajudará?

Anders acreditava em vozes como qualquer um: isto é, não acreditava absolutamente nelas,
até ouvi-las. Inventariou rapidamente as possibilidades. Esquizofrenia era a melhor resposta,
naturalmente, e aquela com a qual seus colegas concordariam. Mas Anders possuía uma
lamentável confiança na sua saúde mental. Nesse caso...

- Quem é você? - perguntou. - Não sei - respondeu a voz. Anders percebeu que a voz estava
falando dentro da sua mente. Muito estranho.
- Você não sabe quem você é - declarou Anders. - Muito bem. Onde você está?

Não sei também. - A voz fez uma pausa e depois prosseguiu. - Olha, eu sei quão ridículo isso
pode parecer. Acredite-me, estou numa espécie de limbo. Não sei como vim parar aqui nem
quem sou eu, mas desejo desesperadamente sair daqui. Você me ajudará?

Lutando ainda contra a ideia da voz falando dentro de sua cabeça, Anders sabia que sua
próxima decisão era vital. Tinha que aceitar - ou rejeitar - sua própria normalidade.

Ele aceitou. - Muito bem - disse Anders, amarrando seu outro sapato. - Vou admitir que você
seja uma pessoa em dificuldade e que você entrou numa espécie de contato telepático
comigo. Há alguma outra coisa a me comunicar?

- Receio que não - respondeu a voz, com uma tristeza infinita. - Você terá que descobrir isso
sozinho.

- Você pode entrar em contato com mais alguém? - Não. - Então como você pode falar
comigo? - Não sei. Anders dirigiu-se ao espelho em cima de sua cômoda e acertou o nó da
gravata borboleta preta, assobiando baixinho. Tendo acabado de descobrir que estava
apaixonado, não permitiria que uma coisa tão insignificante quanto uma voz interior o
perturbasse.

- Realmente não sei como posso ajudá-lo - disse Anders, escovando uma penugem no seu
casaco. - Você não sabe onde

116

està e pelo visto não existe aí nenhuma indicação precisa de lugar. Como é possível encontrá-
lo?

Voltou-se e procurou pelo quarto para ver se havia esquecido alguma coisa.
- Eu saberei dizer quando você estiver perto - disse a voz. - Você estava quente hà pouco.

- Hà pouco? Tudo que fizera fora dar uma espiada pelo quarto. Repetiu a operação, movendo
a cabeça lentamente de um lado para o outro. E foi quando algo aconteceu.

O quarto, visto de um certo ângulo, parecia diferente. Tornara-se súbitamente uma mistura
de cores embaralhadas, em lugar dos tons pastel cuidadosamente combinados que havia
escolhido. As linhas da parede, do chão e do teto estavam estranhamente fora de proporção,
descreviam ziguezagues, destoavam umas das outras.

Depois tudo voltou ao normal. - Você esteve bem quente, disse a voz. Anders resistiu ao
desejo de coçar a cabeça, com receio de despentear seu cuidadoso penteado. O que avistara
não tinha nada de estranho. Todo mundo vê uma ou outra coisa em sua vida que o faz
duvidar de sua normalidade, duvidar de sua sanidade mental, duvidar de sua própria
existência. Durante um momento, o Universo organizado se desagrega e a estrutura da
convicção é abalada.

Mas esses momentos passam. Anders lembrou-se que uma vez, em criança, acordou no
meio da noite. Como tudo parecia tão estranho no seu quarto! As cadeiras, mesa, tudo estava
fora de proporção, ampliado na escuridão. O teto parecia cair, como num sonho.

Mas isso também passou. - Bem, meu velho - disse ele - se eu ficar de novo, avise-me
quando!

- Eu avisarei - murmurou a voz em sua cabeça. - Tenho certeza que você vai me encontrar.

- Fico contente - disse Anders alegremente; apagou a luz do quarto e saiu.

Bela e sorridente, Judy recebeu-o na porta. Fixando-a, Anders pressentiu o conhecimento


que ela tinha da ocasião. Percebera ela alguma mudança nele? Ou apenas previra o desfecho?
Ou era o amor que o fazia sorrir como um idiota?
117

- Você gostaria de beber alguma coisa antes da festa? - perguntou ela.

Anders concordou e Judy conduziu-o para o absurdo sofá amarelo. Ao sentar-se, Anders
decidiu contar tudo a ela quando voltasse com a bebida. Não adiantava adiar o momento
fatal. Um pequeno esquilo apaixonado, pensou consigo.

- Você està esquentando de novo - avisou a voz. Havia quase esquecido seu amigo invisível.
Ou inimigo, quem sabe. O que diria Judy se lhe contasse que estava ouvindo vozes?
"Pequenas coisas como essa", pensou ele, "terminam muitas vezes com os melhores
romances."

- Aqui está! - disse ela estendendo-lhe o copo. "Continua sorrindo", observou Anders. O
sorriso número dois - dirigido a um pretendente, provocante e compreensivo. Tinha sido
precedido, na relação deles, pelo sorriso número um da moça boazinha, o sorriso que
significava não-me-tome-por-outra, que era usado em todas as ocasiões até que as palavras
certas houvessem sido pronunciadas.

- É assim mesmo - disse a voz. - Essa é a maneira como você vê as coisas.

"Vê o quê?" Anders olhou para Judy, aborrecido com seus pensamentos. Se pretendia agir
como namorado, que agisse de uma vez. Mesmo através da névoa astigmática do amor,
podia apreciar os olhos azuis acinzentados dela, sua pele delicada (sem reparar numa mancha
azulada na têmpora esquerda) seus lábios, levemente retocados pelo baton.

- Como foi de colégio hoje? - perguntou ela. Claro, ela iria acabar perguntando isso, pensou
Anders. O amor marca passo.

- Tudo bem - disse ele. - Ensinando psicologia para uns macaquinhos...


- Oh, sem brincadeira! - Mais quente - sussurrou a voz. "Õ que se passa comigo?" pensou
Anders. "Ela é realmente uma jovem atraente. A gestalt que é Judy, um tipo de pensamento,
de expressão, de movimentos, formando a jovem que eu..."

"Que eu o quê?" "Amo?" Anders mudou de posição seu comprido corpo no sofá. Não
entendia como se originara sua atual sequência de pensamentos. Isso aborrecia-o. O jovem
professor analítico ficava melhor na sala de aula. A ciência não poderia esperar até as 9 e
meia da manhã?

118

- Pensei em você hoje - disse Judy, e Anders sabia que ela havia percebido a mudança ocorrida
com ele.

- Está vendo? - segredou-lhe a voz. - Você está se saindo muito melhor.

"Não vejo como" - pensou Anders, mas a voz tinha razão. Era como se possuísse uma linha
mais clara de inspeção na mente de Judy. Os sentimentos dela estavam evidentes para ele,
tão sem sentido quanto seu quarto estivera durante o instante que durou a visão deformada.

- Estive realmente pensando a seu respeito - repetiu Judy. - Agora ouça! - disse a voz. Anders,
observando a expressão de Judy, sentiu algo estranho descer sobre ele. Estava de volta no
pesadelo do momento anterior em seu quarto. Desta vez era como se observasse uma
máquina no laboratório. O objeto de sua operação era a evocação e a preservação de um
determinado sentimento. A máquina avança por um processo de busca, invocando certas
associações de ideias para realizar um objetivo desejado.

- Ah, sim? - perguntou ele, admirado com essa nova perspectiva.

- Sim... Fiquei pensando no que você estava fazendo à tarde - disse a máquina na sua frente
sentada no sofá, expandindo levemente a forma do seu busto.
- Bom - afirmou a voz - elogiando-o pela sua percepção. - Sonhando com você, naturalmente -
disse Anders para o esqueleto de carne atrás da gestalt total Judy. A máquina de carne
endireitou suas pernas e alargou a boca para demonstrar prazer. O mecanismo pesquisava
através de um complexo de temores, esperanças e preocupações, através de lembranças
vagas de situações análogas, de soluções análogas.

E era isso que ele amava. Anders viu claro demais e odiou a si mesmo por ter visto. Através
dessa nova percepção de pesadelo, o absurdo da sala inteira o surpreendeu.

- Você estava mesmo? - perguntou-lhe o esqueleto falante. - Está chegando mais perto -
sussurrou a voz. Perto de quê? Da personalidade? Não havia tal coisa. Não havia verdadeira
coesão, profundidade, nada exceto uma teia de reações de superfície, estendida sobre
movimentos automáticos viscerais.

Ele estava chegando mais perto da verdade. - Claro que sim - disse com azedume. A máquina
moveu-se, procurando uma resposta.

119

Anders sentiu um repentino tremor de medo diante da qualidade inteiramente estranha de


seu ponto de vista. Seu sentido do formalismo fora abandonado, suas reações aceitas
ultrapassadas. O que aconteceria em seguida?

Estava vendo claramente, pensou, como talvez nenhum homem vira antes dele. Era um
pensamento estranhamente estimulante.

Mas seria possível retornar à normalidade? - Aceita mais uma bebida? - perguntou a máquina
de reação.

Naquele momento Anders estava tão completamente distante do amor coma era possível a
um homem. Enxergar o objeto de amor como uma peça de máquina assexual e
despersonalizada não era algo especialmente propício ao amor. Mas era bastante
estimulante, intelectualmente.
Anders não desejava a normalidade. Uma cortina fora levantada e ele desejava ver o que
estava atrás. O que fora mesmo que dissera certo cientista russo... Ouspensky, se não me
engano?

"Pense em outras categorias." Era isso que estava fazendo e continuaria fazendo. - Adeus -
disse súbitamente Anders. A máquina observou-o boquiaberta enquanto ele se dirigia para a
porta. O circuito de reações atrasado manteve-a silenciosa até ouvir a porta bater.

- Você estava bem quente lá dentro - murmurou a voz dentro de sua cabeça, quando Anders
chegou à rua. Mas você ainda não compreende tudo.

- Diga-me então! - exclamou Anders, admirando-se de sua equanimidade.

Numa hora transpusera a ponte que levava a um ponto de vista completamente diferente,
embora isso lhe parecesse perfeitamente natural.

- Não posso - disse a voz. - Você precisa encontrar sozinho.

- Bem, vejamos então, - começou Anders. Olhou em volta para a massa de construções, para
a convenção de ruas atravessando as pilhas arquitetônicas. "A vida humana," pensou, "é uma
série de convenções. Quando alguém olha para uma moça, supõe ver... um tipo, e não a
inteira falta de forma subjacente."

- Isso é verdade - concordou a voz, mas com uma sombra de dúvida.

- Basicamente não existe a forma. O homem produz gestalts, e corta formas a partir da
superabundância do nada. É como se alguém olhasse para um conjunto de linhas e dissesse
que representam uma figura. Olhamos para uma massa de material,

120
retiramo-la do seu contexto e dizemos que é um homem. Mas na verdade não existe tal coisa.
Existem apenas os traços humanizados que nós - mlopemente - assocíamos a ele. A matéria é
unida, uma questão de ponto de vista.

- Você não está vendo isso agora - disse a voz. - Raios! - exclamou Anders. - Tinha certeza que
estava na pista de algo grande, talvez definitivo. Todos nós já tivemos essa experiência. Em
algum momento da vida, qualquer um olha para um objeto familiar e não encontra sentido
nele. Momentaneamente a gestalt falha, mas o verdadeiro momento da visão passa. A
mente volta para o tipo superposto. A normalidade continua.

A voz não comentou nada. Anders caminhou através da cidade gestalt.

- Há alguma coisa mais, não é verdade? - perguntou Anders.

- Sim. "O que poderia ser?" indagou a si mesmo. Com a vista clara, Anders olhou para a
formalidade que denominava seu mundo.

Indagou-se momentaneamente se teria chegado a esse resultado se a voz não o tivesse


guiado. "Sim," concluiu, após alguns momentos, "era inevitável."

Mas quem era a voz? E o que deixara ele de fora? - Vejamos como se parece uma festa neste
momento! - disse para a voz.

A festa era um baile à fantasia: todos os convidados exibiam seus próprios rostos. Para
Anders, os motivos deles, individual e coletivamente, estavam penosamente evidentes. Foi
então que sua visão começou a se tornar mais clara.

Percebeu que as pessoas não eram verdadeiramente indivíduos. Eram massas descontínuas
de carne participando de um vocabulário comum, embora não fossem nem verdadeiramente
descontínuas.

Os montes de carne faziam parte da decoração da sala e quase não se distinguiam dela. Eram
uma coisa só com as luzes que possibilitavam suas pequenas percepções. Uniam-se aos sons
que produziam, alguns ruídos fracos diante da grande possibilidade do som. Confundiam-se
às paredes.

A visão caleidoscópica veio tão rapidamente que Anders teve dificuldade em distinguir suas
novas impressões. Sabia agora que essas pessoas existiam unicamente como tipos, da mesma
forma que os sons que produziam e as coisas que pensavam ver.

Gestalts, peneiradas do vasto e insuportável mundo real.

121

- Onde está Judy? - perguntou-lhe um monte descontínuo de carne.

Este monte em particular possuía suficientes maneirismos nervosos para convencer os outros
de sua realidade. Usava uma vistosa gravata como uma evidência extra disso.

- Ela está doente - disse Anders. A carne assumiu uma simpatia instantânea. Linhas de alegria
formal se transformaram em tristeza formal.

- Espero que não seja nada sério - observou a carne vocal. - Você està mais quente - disse a
voz para Anders. Anders olhou para o objeto que estava na sua frente. - Ela não vai viver
muito - disse com calma. A carne tremeu. O estômago e o intestino contraíram-se em
temores de simpatia. Os olhos se esbugalharam, a boca tremeu.

A gravata vistosa permanecia idêntica. - Meu Deus! Você está falando sério? - O que é você?
- perguntou Anders calmamente. - A que você está se referindo? - exclamou a carne indignada
prêsa à gravata. Serena dentro de sua realidade, olhava boquiaberta para Anders. A boca
torcida era uma prova evidente que era real e suficiente. - Você está bêbado - disse com
desprezo.

Anders riu e saiu da festa. - Há ainda uma coisa que você não sabe - disse a voz. - Mas você
esteve quente. Podia senti-lo perto de mim.
- O que é você? - perguntou Anders novamente. - Não sei - admitiu a voz. - Sou uma pessoa.
Eu sou eu. Estou prêso.

- Todos nós estamos - disse Anders. Caminhou sobre o asfalto, rodeado de montanhas de
concreto, silicatos, ligas de alumínio e ferro. Montanhas informes e sem sentido que faziam a
cidade gestalt.

E depois havia as linhas imaginárias que separavam as cidades de uma outra cidade, os limites
artificiais da água e da terra.

Tudo ridículo. - Me dá um dinheiro para tomar um café, seu moço? - pediu alguma coisa, algo
indistinto de todas as outras coisas.

- O velho bispo Berkeley teria dado um dinheiro não-existente para sua presença não-existente
- disse alegremente.

- Eu estou realmente necessitado - choramingou a voz do mendigo e Anders percebeu que


não passava de uma série de vibrações moduladas.

- Sim! Em frente! - ordenou a voz na cabeça.

122

- Se o senhor pudesse me dar um trocadinho... - disse a série de vibrações, com uma profunda
intenção de significado.

Bem, o que existia afinal por trás dos tipos sem sentido? Carne, massa. O que era aquilo?
Tudo feito de átomos.

- Estou realmente com fome - murmurou os átomos complexamente organizados.


Tudo átomos. Reunidos. Não havia uma verdadeira separação entre o átomo e o átomo. A
carne era pedra, a pedra era luz. Anders olhou para a massa de átomos que pretendiam ter
uma solidez, um significado e uma razão de ser.

- Não pode me ajudar? - perguntou o punhado de átomos. Esse punhado porém era idêntico a
todos os outros átomos. uma vez que se ignorassem os tipos sobrepostos, era possível ver os
átomos espalhados ao acaso.

- Não acredito em você - disse Anders. A pilha de átomos havia partido. - Sim! - exclamou a
voz. - Sim! - Não acredito em nada disso - afirmou Anders. - Afinal, o que é um átomo.

- Em frente! - gritou a voz. - Você está quente. Em frente!

O que era um átomo? Um espaço vazio cercado por um espaço vazio.

Absurdo! - Então tudo é falso - disse Anders. - E ele estava sozinho sob as estrelas.

- Isso é verdade - gritou a voz dentro da cabeça. - Nada! "Mas as estrelas," pensou Anders.
"como era possível acreditar ...

As estrelas desaparecem. Anders estava num nada cinzento, no vazio. Não havia nada em
volta dele a não ser o cinza informe.

Onde estava a voz? Desaparecera. Anders percebeu a ilusão por trás do cinza e então não
havia mais nada.

O perfeito nada, e ele dentro disso. Onde estava ele? O que significava isso? A mente de
Anders procurou calcular.

Impossível. Aquilo não podia ser verdade. Novamente o resultado foi calculado, mas a mente
de Anders não admitia o resultado. Desesperada, a mente esgotada apagou todos os
números, apagou o conhecimento, apagou-se a si mesma.
- Onde estou?

123

No vazio. Sozinho. Prêso. - Quem sou eu? Uma voz. A voz de Anders procurou o nada,
gritou: Tem alguém ai? Nenhuma resposta. Mas havia alguém. Todas as direções eram a
mesma, embora caso seguisse por uma talvez entrasse em comunicação ... com alguém. A
voz de Anders procurou alguém que pudesse salvá-lo.

- Salve-me! - disse a voz para Anders, que estava deitado na cama inteiramente vestido, com
exceção dos sapatos e da gravata borboleta preta.

124

***

O Especialista

A tempestade de fótons despencou sem um aviso, precipitando-se sobre a Espaçonave, vinha


de trás de um aglomerado de estrelas vermelhas gigantescas. Olho mal teve tempo para
enviar um aviso de última hora através de Falante antes que a tempestade os atingisse.

Era a terceira viagem de Falante no espaço profundo e sua primeira tempestade de pressão
de luz. Sentiu um calafrio quando a Nave desviou-se violentamente, recebeu todo o impacto
da onda frontal virou de cabeça para baixo. Depois o medo desapareceu, sendo substituído
por uma forte pulsação de excitamento.

"Por que teria medo," perguntou a si mesmo... "não fora treinado justamente para uma
emergência desta ordem?"
Estava conversando com Alimentador quando a tempestade desabou e a conversa foi
interrompida bruscamente. Esperava que Alimentador estivesse bem. Era a primeira viagem
no espaço profundo do jovem.

Os filamentos que constituíam a maior parte do corpo de Falante estendiam-se por toda a
Nave. Rapidamente ele os recolheu todos, com exceção dos que o ligavam a Olho, Motor e
Paredes. Agora o trabalho era exclusivamente deles. O restante da Tripulação deveria contar
consigo mesmo até que a tempestade passasse.

Olho achatara seu corpo em forma de disco contra uma Parede e tinha um órgão de visão do
lado de fora da Nave. Para

125

maior concentração, o restante dos seus órgãos visuais tinha sido retraído, reunido a seu
corpo.

Através do órgão visual de Olho, Falante observava a tempestade. Traduzia a imagem


puramente visual de Olho na direção de Motor, que dirigia a Nave ao encontro das ondas.
Quase ao mesmo tempo, Falante traduzia a direção em velocidade para as Paredes que se
enrijeciam para resistir aos choques.

A coordenação era rápida e segura: Olho medindo as ondas, Falante transmitindo as


mensagens para Motor e Paredes, Motor dirigindo a Nave de frente ao encontro das ondas, e
as Paredes se enrijecendo para enfrentar os choques.

Falante esqueceu todo o medo que podia sentir tal a rapidez de operação da equipe. Não
tinha tempo para pensar. Enquanto fosse o sistema de comunicação da Nave, deveria traduzir
e expedir suas mensagens com a máxima rapidez, coordenando as informações e dirigindo a
ação.

Em questão de minutos a tempestade cessou. - Bem - disse Falante - vamos ver se houve
alguns danos! - Seus filamentos haviam se embaraçado durante a tempestade; ele os
desembaraçou e os estendeu ao longo da Nave, ligando os outros em circuito. - Motor?
- Estou bem - respondeu Motor. O fantástico camarada umedecera suas placas durante a
tempestade, diminuindo assim as explosões atômicas no seu estômago. Nenhuma
tempestade apanharia de surprêsa um astronauta experiente como Motor.

- Paredes. As Paredes responderam uma por uma, o que levou bastante tempo. Eram quase
mil criaturas magras e retangulares, constituindo toda a superfície da Nave. Naturalmente
haviam reforçado sua periferia durante a tempestade, dando resistência à Nave inteira. Uma
ou duas, contudo, apresentavam alguns danos severos.

Doutor comunicou que estava perfeitamente bem. Removeu o filamento de Falante da sua
cabeça, desligando-se do circuito, e foi atender às Paredes empipocadas. Feito quase todo de
mãos, Doutor agarrara-se a um Acumulador durante a tempestade.

- Vamos voar um pouco mais depressa agora! - disse Falante, lembrando que havia ainda o
problema de determinar onde se encontravam. Abriu o circuito dos quatro Acumuladores. -
Como estão vocês? - perguntou.

Não houve resposta. Os Acumuladores dormiam. Haviam mantido seus receptores abertos
durante a tempestade e estavam empanturrados de energia. Falante deu um puxão nos
filamentos que os rodeavam, mas os Acumuladores não responderam.

126

- Deixe-me experimentar! - pediu Alimentador. Alimentador passara por um mau bocado


antes de plantar seus cilindros de sucção nas Paredes, mas sua "forma" estava intacta. Era o
único elemento da tripulação que nunca necessitava dos cuidados do Doutor; seu corpo era
capaz de se reparar a si mesmo.

Correu pelo chão sobre uma dúzia de tentáculos e deu um ponta-pé no Acumulador mais
próximo. A grande unidade cônica de energia abriu um olho, depois tornou a fechá-lo.
Alimentador golpeou-o novamente, sem receber resposta. Rodou por fim a válvula de
segurança do Acumulador e retirou o excesso de carga.
- Pare com isso! - disse o Acumulador. - Então acorde e responda! - disse Falante. Os
Acumuladores disseram, ôbviamente, que estavam todos bem, como qualquer idiota podia
perceber. Tinham-se agarrado ao piso durante a tempestade.

O restante da inspeção prosseguiu rapidamente. Pensador estava bem e Olho estava


deslumbrado com a beleza da tempestade. Ocorrera apenas uma morte.

Impulso estava morto. Sendo bípede, não possuía a estabilidade do restante da Tripulação. A
tempestade o surpreendera no meio de um corredor, atirara-o contra uma Parede rígida e
partira vários ossos importantes do seu corpo. Estava além das possibilidades clínicas do
Doutor.

Todos se mantiveram em silêncio durante algum tempo. Era sempre um acontecimento sério
quando um membro da Nave morria. A Nave era uma unidade cooperativa, composta
unicamente da Tripulação. A perda de qualquer um dos seus membros era um golpe dirigido
aos demais.

Agora, sobretudo, era algo especialmente grave. Vinham de desembarcar um carregamento


num porto situado a vários milhares de anos-luz do Centro Galáxico. Não havia maneira de
saber onde estavam.

Olho arrastou-se até uma Parede e estendeu um órgão visual para fora. As Paredes deixaram-
no passar, depois fecharam-se em torno dele. O órgão de Olho avançou no espaço, bem
distante da Nave, de modo que pudesse avistar a esfera inteira das estrelas. A visão voltou
para Falante que a comunicou a Pensador.

Pensador estava num canto da sala; era uma grande massa informe de protoplasma. No seu
interior estavam todas as memórias de seus antepassados astronautas. Pensador examinou a
visão, comparou-a rapidamente com outras memorizadas nas suas células e disse: "Não
existem planetas galáxicos por perto."

Falante imediatamente traduziu a informação para os demais. Era isso que temiam.

127
Olho, com auxílio de Pensador, calculou que estavam há vários milhares de anos-luz de sua
trajetória, na periferia galáxica.

Todos os membros da Tripulação sabiam o que isso significava. Sem um Impulso que
acelerasse a Nave para um múltiplo da velocidade da luz, jamais retornariam ao ponto de
partida. A viagem de volta, sem um Impulso, levaria mais tempo do que permitiam suas
vidas.

- O que você sugere? - perguntou Falante a Pensador. Era uma pergunta demasiado vaga para
a mente liberal de Pensador. Pediu por isso que a pergunta fosse refeita.

- Qual seria nossa melhor linha de ação - perguntou Falante - para voltarmos para um planeta
galáxico?

Pensador precisou de vários minutos para percorrer todas as possibilidades memorizadas em


suas células. Nesse interim, Doutor havia reparado as Paredes e pedia alguma coisa para
comer.

- Daqui a pouco todos nós vamos comer, - anunciou Falante, balançando seus filamentos com
nervosismo.

Embora fosse o segundo membro mais moço da Tripulação - somente Alimentador era mais
jovem - a responsabilidade caía quase toda sobre ele. Tratava-se ainda de uma situação de
emergência; deveria coordenar as informações e dirigir a ação.

Uma das Paredes sugeriu que bebessem e se divertissem. Esta solução irrealista foi vetada
imediatamente. Era uma atitude típica das Paredes, no entanto. Eram trabalhadores
excelentes e bons companheiros de viagem, mas quanto ao resto criaturas folgazãs. Quando
voltassem para seus planetas de origem, gastariam provavelmente todo o ordenado numa
farra.
- A perda do Impulso impede a Nave de manter velocidades superiores à da luz - começou
Pensador sem preâmbulos. - O planeta galáxico mais próximo está a quatrocentos e cinco
anos-luz.

Falante traduziu a informação instantaneamente por seu corpo formado de ondas.

- Duas ações são possíveis. Primeira, a Nave pode dirigir-se para o planeta galáxico mais
próximo mediante a força atômica do Motor. Isso levará aproximadamente duzentos anos.
Motor poderá ainda estar vivo nessa altura, embora nenhum dos outros estarão.

"Segunda, localizar um planeta primitivo nesta região, onde existam Impulsos latentes.
Encontrar um deles e treiná-lo. E fazê-lo depois impulsionar a Nave de volta para território
galáxico.

Pensador mantinha-se em silêncio, após ter fornecido todas as possibilidades que pudera
encontrar na memória dos seus antepassados.

128

Os tripulantes voltaram rapidamente e adotaram a segunda alternativa. Não havia outra


escolha, aliás. Era a única possibilidade que lhes dava alguma esperança de regressar a seus
lares.

- Certo então - disse Falante. - Vamos comer! Penso que todos nós merecemos isso.

O corpo do Impulso morto foi enfiado na boca do Motor, que o consumiu imediatamente,
transformando os átomos em energia. Motor era o único membro da Tripulação que se
alimentava de energia atômica.

Quanto aos outros, Alimentador avançou e se empanturrou com o Acumulador mais próximo.
Depois transformou o alimento numa substância adequada a cada um dos outros. Sua
química do corpo transformou, alterou e adaptou, produzindo alimentos diferentes para toda
a Tripulação.
Olho vivia exclusivamente de uma cadeia complexa de clorofila. Alimentador reproduziu essa
substância para ele, depois forneceu a Falante seus hidrocarbonatos, e às Paredes seus
compostos de cloro. Para o Doutor sintetizou uma cópia idêntica de um fruto silicato que
nascia no planeta nativo do Doutor.

Finalmente a refeição terminou e a Nave voltou ao normal. Os Acumuladores foram postos a


um canto, dormindo serenamente de novo. Olho procurava avistar o mais longe possível,
adaptando seu órgão visual a uma poderosa recepção telescópica. Mesmo durante esta
emergência, Olho não resistiu à tentação de escrever alguns versos. Anunciou que estava
trabalhando num novo poema narrativo, intitulado Brilho Periférico. Ninguém desejava ouvi-
lo, porém, de sorte que Olho comunicou-o a Pensador, que memorizava tudo, bom ou mau,
certo ou errado.

Motor não dormia nunca. Estando bem alimentado com Impulso, acelerou a Nave várias
vezes à velocidade da luz.

As Paredes discutiam entre si quem ficara mais bêbado durante as últimas férias.

Falante resolveu por-se à vontade. Soltou seu controle das Paredes e balançou-se no ar, seu
pequeno corpo redondo suspenso por uma rede intrincada de filamentos.

Pensou um instante no Impulso. Estranho. Impulso fora amigo de todos e estava agora
esquecido. E não era por indiferença; era porque a Nave formava uma Unidade. A perda dos
membros era sentida, sem dúvida, mas a coisa mais importante para a unidade era prosseguir
viagem.

A Nave corria por entre sóis da periferia. Pensador lançou uma espiral de sondagem,
calculando que a probabilidade de encontrarem um planeta de Impulsos era de quatro para
um. Uma semana mais tarde encontram um planeta

129
de Paredes primitivas. Perdendo altitude, podiam avistar os seres retangulares e resistentes
aquecendo-se ao sol, arrastando-se sobre rochas, adelgaçando-se a si mesmas para flutuar na
brisa.

Todas as Paredes da Nave suspiraram de saudade. Sentiam-se em casa.

Essas Paredes do planeta primitivo não haviam entrado em contato com uma equipe galáxica
e não tinham consciência do seu grande destino: entrar para a grande Cooperação Galáxica.

Havia uma grande quantidade de mundos mortos na espiral, e mundos demasiado jovens para
possuir vida. Encontraram um planeta de Falantes. Os Falantes haviam estendido suas linhas
de comunicação por uma extensão de meio continente.

Falante observou-os ansioso, através de Olho. Uma onda de autocompaixão assaltou-o...


Lembrou-se de casa, da família, dos amigos. Lembrou-se da árvore que iria comprar quando
voltasse.

Durante um momento, Falante ficou em dúvida do que estava fazendo ali, parte de uma Nave
num ponto distante da Galáxia.

Procurou libertar-se da emoção. Acabariam encontrando um planeta de Impulsos, se


procurassem com afinco.

Pelo menos assim esperava. Passaram por uma longa extensão de mundos áridos enquanto a
Nave viajava pela periferia inexplorada. Depois encontraram um planeta repleto de Motores
primitivos, nadando num oceano radiativo.

- Este é um território rico - afirmou Alimentador para Falante. - O Centro Galáxico deveria
enviar uma missão de contato aqui.

- Provavelmente fará isso depois que voltarmos - disse Falante.


Eram bons amigos, acima e além da amizade comum da Tripulação. Não era apenas porque
os dois eram os membros mais jovens da Tripulação, embora isso também explicasse em
parte a amizade. Ambos possuíam as mesmas funções, o que favorecia uma certa relação
mútua. Falante traduzia línguas; Alimentador transformava os alimentos. Fora isso, os dois se
pareciam. Falante era um núcleo central com filamentos que se irradiavam; Alimentador era
um núcleo central com tentáculos que se irradiavam.

Falante pensou que Alimentador era o segundo indivíduo mais consciente da Nave. Nunca
pudera compreender como eram os mecanismos conscientes dos outros.

Mais sóis, mais plantas! Motor começou a superaquecer. Geralmente, ele era usado apenas
para o lançamento e para o

130

pouso, fora algumas manobras complicadas num grupo planetário. Agora estivera
funcionando durante semanas, tanto acima quanto abaixo da velocidade da luz. O esfôrço
começava a transparecer.

Alimentador, com auxílio do Doutor, improvisou um sistema de resfriamento para Motor. Era
grosseiro, mas funcionava. Alimentador recombinou os átomos de nitrogênio, oxigênio e
hidrogênio e para resfriarem o sistema. Doutor diagnosticou um longo repouso para Motor.
Disse que o bravo camarada não poderia suportar aquele esfôrço mais uma semana.

A busca prosseguiu, com a boa disposição da Tripulação diminuindo gradativamente.


Todos perceberam que os Impulsos eram raros na Galáxia, comparados com as férteis Paredes
e Motores.

As Paredes começavam a apresentar buracos redondos em sua periferia provocados pela


poeira interestelar. Queixavam-se de que necessitariam de um completo tratamento de
beleza quando regressassem 'As suas casas. Falante tranquilizou-as dizendo que a companhia
arcaria com as despesas.

Até mesmo Olho sofria de inflamação de tanto olhar para o espaço.


Descobriram um outro planeta. Suas características foram enviadas a Pensador, que meditou
sobre elas.

Mais perto e poderiam perceber as formas. Impulsos! Impulsos primitivos! Tornaram a


ganhar altitude para fazer os planos. Alimentador apresentou vinte e três espécies diferentes
de produtos inebriantes para celebrarem a descoberta.

Durante três dias a Nave estêve inapta para funcionar. - Todos prontos agora? - perguntou
Falante, meio tonto ainda.

Curtia uma ressaca que ardia pelas suas extremidades nervosas. Que pileque ferrara!
Tinha a vaga lembrança de haver abraçado Motor e de tê-lo convidado para dividir consigo
sua árvore quando estivessem de volta.

Agora tremia diante dessa ideia. O restante da Tripulação também estava bastante grogue. As
Paredes deixavam o ar sair; estavam tontas demais para selar convenientemente sua
superfície. O Doutor perdera os sentidos.

O pior de todos porém era Alimentador. Uma vez que seu sistema podia se adaptar a
aqualquer tipo de combustível com exceção do atômico, estivera provando tudo que
produzia, como iodo não-balanceado, oxigênio puro ou ester supercarregado. Sentia-se
realmente muito mal. Seus tentáculos, geralmente um líquido transparente, estavam
manchados com riscos laranja. Seu

131

sistema funcionava furiosamente, purgando-se de tudo, e Alimentador sofria com isso.

Os únicos sóbrios eram Pensador e Motor. Pensador não bebia, o que era algo bastante
inusitado entre os astronautas, embora fosse típico dos Pensadores, e Motor não podia beber.
Todos ouviam agora os dados extraordinários comunicados por Pensador. A partir da visão de
Olho da superfície do planeta, Pensador concluíra da existência de construções metálicas.
Apresentou a sugestão alarmante que os Impulsos primitivos haviam construído uma
civilização mecânica.

- Isso é impossível - disseram três Paredes com a máxima convicção, e a maior parte da
Tripulação estava inclinada a concordar com elas. Todo o metal que conheciam havia sido
enterrado ou empilhado em montes enferrujados sem valor algum.

- Você quer dizer que eles constroem coisas de metal? perguntou Falante. - De um simples
metal morto? O que podem fazer disso?

- Não podem fazer nada - disse Alimentador com conhecimento de causa. O metal deteriora-
se constantemente. Isto é, o metal não sabe quando està enfraquecendo.

De qualquer forma, a informação parecia verdadeira. Olho ampliou sua visão e todos podiam
ver que os Impulsos haviam construído enormes abrigos, veículos e outros artigos de uma
matéria inanimada.

A razão para isto não estava evidente, mas não era mesmo assim um bom sinal. Contudo, a
parte realmente dura da busca terminara. O planeta dos Impulsos fora encontrado. Agora
restava apenas o trabalho relativamente fácil de convencer um Impulso nativo.

Isso não seria muito difícil. Falante sabia que a cooperação era a palavra-chave na Galáxia,
mesmo entre os povos primitivos.

A Tripulação decidiu que não convinha aterrar numa região povoada. Naturalmente, não
havia razão para se temer uma recepção hostil, mas era trabalho da Equipe de Contato entrar
em entendimento com os habitantes na condição de raça. Tudo que desejavam agora era um
indivíduo isolado.

Em vista disso, escolheram uma região escassamente povoada e aproximaram-se dela


enquanto aquele lado do planeta estava escuro.
Quase imediatamente conseguiram localizar um Impulso solitário.

Olho adaptou sua vista para enxergar no escuro e acompanharam atentamente os


movimentos do Impulso. Este deitou-se,

132

passado um momento, junto a uma pequena fogueira. Pensador informou aos demais que
este era um hábito conhecido entre os Impulsos quando desejavam descansar.

Pouco antes do amanhecer, as Paredes abriram-se e Alimentador, Falante e o Doutor


desembarcaram.

Alimentador adiantou-se e deu um tapa no ombro da criatura. Falante acompanhou-o com


um cabo de comunicação.

O Impulso abriu seus órgãos da visão, piscou e fez um movimento com seu órgão de comer.
Depois deu um salto e saiu correndo.

Os três membros da Tripulação ficaram admirados. O Impulso não esperara nem mesmo para
saber o que os três desejavam!

Falante estendeu rapidamente um filamento e apanhou o Impulso, cinquenta pés adiante, por
uma perna. O Impulso caiu no chão.

- Trate-o com delicadeza! - disse Alimentador. - Ele deve estar assustado com nossa
aparência. - E sacudiu seus cabos ao pensar que um Impulso, uma das criaturas mais
estranhas da Galáxia, com seus órgãos múltiplos, pudesse assustar-se com a aparência de
alguém.

Alimentador e Doutor correram para o Impulso caído, apanharam-no e levaram-no para a


Nave.
As Paredes fecharam-se de novo. Soltaram então o Impulso e se prepararam para conversar.

Tão logo viu-se livre, o Impulso saltou em pé e correu para o local que as Paredes haviam
fechado. Bateu contra elas histericamente, seu órgão da alimentação abrindo e vibrando.

- Pare com isso! - disse a Parede. - Ela se estufou e o Impulso caiu no chão. Imediatamente
ficou em pé e começou a correr.

- Segurem-no! - gritou Falante. - Ele pode se ferir. Um dos Acumuladores acordou e rolou
sobre o caminho do Impulso. Este caiu, levantou-se novamente e começou a correr.

Falante possuía filamentos também na frente da Nave e apanhou o Impulso que correra para
lá. Este começou a despedaçar os filamentos, de sorte que Falante soltou-o rapidamente.

- Liguem-no ao sistema de comunicação! - gritou Alimentador. - Talvez possamos argumentar


com ele.

Falante avançou um filamento em direção à cabeça do Impulso, emitindo um sinal universal de


comunicação. O Impulso porém continuou com seu comportamento estranho, pulando de
um lado para o outro. Segurava um pedaço de metal na mão e o balançava freneticamente.

133

- O que você pensa que ele vai fazer com isso? - perguntou Alimentador.

Impulso começou a atacar os lados da Nave, investindo contra uma das Paredes. A Parede
enrijeceu instintivamente e o metal entortou.

- Deixem-no em paz - disse Falante. - Talvez ele se acalme.


Falante consultou Pensador, mas ninguém sabia o que fazer com Impulso. Ele não queria
entrar em comunicação. Toda vez que Falante estendia um filamento, Impulso manifestava os
sinais de um pânico extremo. Por enquanto, estavam num impasse.

Pensador vetou a ideia de encontrarem um outro Impulso no planeta. Considerava o


comportamento deste Impulso como típico; não ganhariam nada abordando um outro. Fora
isso, o planeta só deveria ser visitado oficialmente por uma Equipe de Contato.

Caso não conseguissem entrar em comunicação com este Impulso, jamais o conseguiriam com
um outro Impulso do planeta.

- Penso que sei qual é o problema - disse Olho - subindo sobre um Acumulador. Esses
Impulsos criaram uma civilização mecânica. Pensem um momento como isso foi possível.
Eles desenvolveram o uso de seus dedos, como o Doutor, para trabalhar o metal. Utilizaram
seus órgãos visuais, como eu. E provavelmente um número incontável de outros órgãos. -
Olho fez uma pausa para acentuar o efeito de suas palavras. - Esses Impulsos se tornaram
não-especializados.

Discutiram sobre o assunto durante horas. As Paredes insistiam que nenhuma criatura
inteligente podia ser não-especializada. Era um fato desconhecido na Galáxia. Mas a
evidência estava ali, diante deles - as cidades dos Impulsos, seus veículos... Este Impulso
presente, ilustrando o caso dos demais, parecia capaz de uma multidão de coisas.

Pensador apresentou uma explicação parcial. - Este não é um planeta primitivo. É


relativamente velho e deveria pertencer à Cooperação hà muitos milhares de anos. Uma vez
que não pertence, podemos concluir que os Impulsos que o habitam foram roubados de suas
prerrogativas naturais. A capacidade deles, sua especialidade, era impulsionar, mas não havia
nada no planeta para impulsionar. E por essa razão criaram uma cultura marginal.

"Exatamente o que é essa cultura, só podemos ter uma ideia vaga. Mas apoiados na evidência
dos fatos, há razão para se acreditar que esses Impulsos não são cooperativos..."

Pensador tinha o costume de pronunciar as afirmações mais importantes da maneira mais


tranquila possível.
134

- É bem possível - continuou Pensador inexoravelmente - que esses Impulsos não queiram ter
nada conosco. Nesse caso, as probabilidades são duzentas e oitenta e três contra uma de
encontrar um outro planeta semelhante.

- Não podemos ter certeza de que ele não quer cooperar - disse Falante - antes de entrarmos
em comunicação com ele. Falante achava inacreditável que uma criatura inteligente não
desejasse cooperar espontâneamente.

- Mas como se comunicar? - perguntou Alimentador. Decidiram por em execução uma nova
tentativa. O Doutor aproximou-se lentamente do Impulso que fugiu dele. Nesse meio
tempo, Falante estendeu um filamento por fora da Nave, deu a volta nela e entrou pelo lado
posterior do Impulso.

O Impulso encostou-se contra uma Parede - e Falante introduziu o filamento pela cabeça do
Impulso, até atingir o centro de comunicação no seu cérebro.

Impulso perdeu os sentidos.

Quando voltou a si, Alimentador e o Doutor tiveram que segurar com força seus membros,
caso contrário teria arrancado as linhas de comunicação. Falante exercitou sua habilidade
aprendendo a lingua do Impulso.

Não era difícil. Todas as linguas dos Impulsos eram da mesma família e este não fazia exceção
à regra. Falante conseguiu aprender um número suficiente de pensamentos superficiais para
estabelecer um sistema.

Tentou então se comunicar com o Impulso. Este manteve-se em silêncio. - Penso que ele está
com fome - disse Alimentador. Lembraram-se que jà era o segundo dia que mantinham o
Impulso a bordo da Nave. Alimentador produziu uma alimentação comum aos Impulsos e
ofereceu-a.
- Meu Deus! Um bife! - exclamou o Impulso. A Tripulação saudou alegremente pelos circuitos
de comunicação ligados a Falante. O Impulso pronunciara suas primeiras palavras.

Falante examinou as palavras e pesquisou sua memória. Conhecia cerca de duzentas línguas
dos Impulsos e muitas outras variações. Concluiu que este Impulso falava uma mistura de
duas línguas.

Após ter-se alimentado, Impulso olhou em sua volta. Falante apreendeu seu pensamento e
transmitiu-o à Tripulação.

135

Impulso tinha uma maneira estranha de enxergar a Nave. Via-a como um pandemônio de
cores. As Paredes ondulavam. Na sua frente estava algo que se parecia com uma aranha
gigantesca, colorida de verde e de prêto, com seu fio percorrendo a nave inteira e entrando
pela cabeça de outras criaturas. Viu Olho como um animalzinho estranho e nu, algo entre um
coelho tosquiado e uma gema de ovo - ou qualquer outra coisa no gênero.

Falante estava fascinado pela nova perspectiva que Impulso lhe fornecia. Nunca vira antes as
coisas daquela maneira. Mas agora que o Impulso as revelava, não havia dúvida que Olho era
uma criatura bastante engraçada.

Decidiram entrar em comunicação. - Que diabo de coisas são vocês? - perguntou Impulso,
bem mais calmo agora do que durante os dois dias anteriores. - Por que vocês me agarraram?
Fiquei louco por acaso?

- Não - respondeu Falante - você não é um psicótico. Nós somos uma nave mercante galáxica.
Fomos afastados de nossa rota por uma tempestade e nosso Impulso morreu.

- Bem, e o que tenho eu a ver com isso? - Gostaríamos que você fizesse parte de nossa
tripulação - disse Falante - para ser nosso novo Impulso.
Impulso refletiu longamente após terem-lhe explicado a situação. Falante podia perceber o
sentimento de conflito no pensamento do Impulso. Não havia decidido ainda se deveria ou
não aceitar aquilo como uma situação real. Finalmente o Impulso concluiu que não estava
louco.

- Ouçam uma coisa, rapazes - disse ele - não sei quem são vocês nem como isso se explica.
Mas tenho que sair daqui. Estou de licença e se não volto logo o Exército norte-americano vai
se mostrar muito interessado em saber meu paradeiro.

Falante pediu a Impulso que lhe fornecesse algumas informações mais detalhadas sobre a
palavra "exército", e passou-as a Pensador.

- Esses Impulsos travam combates pessoais - concluiu Pensador.

- Mas por quê? - perguntou Falante. - Ele admitia com tristeza que Pensador concluíra
acertadamente; o Impulso não manifestava sinais de que desejasse cooperar.

- Gostaria muito de ajudá-los - afirmou o Impulso - mas não sei de onde vocês tiraram a ideia
que possa empurrar uma coisa desse tamanho. Seria preciso uma divisão inteira de tanques
para mexer essa nave.

- Você aprova as guerras? - perguntou Falante, recebendo uma sugestão de Pensador.

136

- Ninguém gosta das guerras ... pelo menos os que morrem nelas.

- Então por que vocês travam guerras? Impulso fez um gesto com seu órgão da alimentação,
que Olho observou e enviou para Pensador.

- É matar ou morrer. Vocês sabem o que a guerra significa, não sabem?


- Nós não temos guerras - disse Falante. - Vocês têm sorte - comentou Impulso amargamente.
- Nós temos. Centenas delas.

- Claro - disse Falante. Ele tinha agora a explicação completa transmitida por Pensador. - Você
gostaria de por fim às guerras?

- Claro que sim. - Então venha conosco! Seja nosso Impulso! Impulso levantou-se e dirigiu-se
a um Acumulador. Sentou-se em cima dele e cruzou seus membros superiores.

- Como é possível, santo Cristo, que eu possa acabar com as guerras? - exclamou o Impulso. -
Ainda mesmo que me dirigisse aos poderosos e lhes dissesse ...

- Não é preciso isso - disse Falante. - Tudo que você tem a fazer é vir conosco. Impulsionar-
nos para nossa base. A Galáxia enviará uma Equipe de Contato a seu planeta. Isso terminará
com todas as guerras.

- Com todos os diabos - replicou Impulso. - Vocês estão presos aqui, hein? ótimo! Só assim a
Terra não será invadida por monstros.

Perplexo, Falante procurou entender o raciocínio do Impulso. Dissera algo errado? Seria
possível que o Impulso não compreendesse?

- Pensei que você quisesse terminar com as guerras - disse Falante.

- Claro que quero. Mas não quero que ninguém nos faça parar. Não sou um traidor. Prefiro
lutar.

- Ninguém vai fazer você parar. Você vai parar simplesmente porque não haverà mais
necessidade de lutar.
- Vocês sabem por que lutamos? - É evidente. - Ah, sim? Qual é sua explicação? - Vocês,
Impulsos, foram separados da corrente principal da Galáxia - explicou Falante. - Vocês
possuem uma especialidade - a de impulsionar - mas não têm nada para impulsionar. Por
causa disso, não possuem trabalhos verdadeiros. Vocês brincam

137

com as coisas - metais, objetos inanimados - mas não encontram nisso uma satisfação real.
Roubados de sua verdadeira vocação, vocês lutam por simples frustração.

"Uma vez que vocês encontrarem seus lugares na Cooperação Galáxica - e posso assegurar
que se trata de um lugar importante - a luta de vocês irà parar. Por que haveriam vocês de
lutar, o que é uma atividade antinatural, quando poderiam impulsionar? Por outro lado, essa
civilização mecânica também terminará, uma vez que não haverà mais necessidade dela.

O Impulso balançou a cabeça, o que pareceu a Falante um gesto de confusão.

- O que é afinal esse negócio de impulsionar? - pergun- tou ele.

Falante procurou explicar-lhe da maneira mais clara possível. Mas como essa tarefa estava
fora de suas aptidões, só tinha uma vaga ideia do que fazia um Impulso.

- Você quer dizer que é isso que todo habitante da terra deveria fazer?

- Exatamente - disse Falante. - É essa sua grande especialidade.

Impulso refletiu sobre o assunto vários minutos. - Penso que vocês necessitam é de um físico
ou de um mentalista ou coisa parecida. Eu não poderia jamais fazer esse serviço. Sou apenas
um arquiteto jovem. E além disso ... bem, é difícil explicar.
Falante porém jà entendera a objeção do Impulso. Viu uma Impulso-fêmea nos seus
pensamentos. Não, duas, três. E percebeu também um sentimento de solidão, de distância. O
Impulso estava repleto de dúvidas. Tinha medo.

- Quando alcançarmos a galáxia - disse Falante, esperando que sua suposição fosse verdadeira
- você encontrará outros Impulsos. Impulsos-fêmeas também. Todos os Impulsos se
parecem, de sorte que você logo se tomará de amizade por eles. No que se refere à solidão
na Nave - ela simplesmente não existe. Você ainda não compreendeu a ideia de Cooperação.
Ninguém se sente sozinho na Cooperação.

Impulso pensava ainda na possibilidade de existirem lá outros semelhantes; Falante não podia
entender por que isso o admirava tanto. A Galáxia estava repleta de Impulsos, Alimentadores,
Falantes e muitas outras espécies, duplicadas ao infinito.

- Não acredito que alguém possa terminar com todas as guerras - disse Impulso. - Como posso
saber se vocês não estão mentindo?

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Falante sentiu como se houvesse sido atingido no ponto sensível. Pensador tinha razão
quando afirmava que os Impulsos não cooperariam. Seria esse o fim da carreira de Falante?
Passariam ele e os outros membros da Tripulação o resto de suas vidas no espaço, devido à
estupidez de um punhado de Impulsos?

Ainda assim, Falante sentiu pena do Impulso. Deve ser terrível, pensou. A dúvida, a incerteza,
nunca confiar em ninguém. Se esses Impulsos não encontrarem rapidamente seu lugar na
Galáxia, vão acabar se exterminando uns aos outros. O lugar deles na Cooperação era hà
muito uma necessidade.

- Que posso fazer para convencê-lo? - disse Falante. Em desespêro, abriu todos os circuitos
para o Impulso. Permitiu que este visse a grosseria bonachona do Motor, o humor displicente
das Paredes; mostrou-lhe as tentativas poéticas de Olho e a simplicidade petulante do
Alimentador. Abriu sua própria mente e mostrou ao Impulso o panorama do seu planeta de
origem. de sua família, a árvore que planejava comprar quando voltasse para casa.
Esses quadros contavam a história de todos eles, de diferentes planetas, representando éticas
diferentes, unidos por um laço comum - a Cooperação Galáxica.

O Impulso observou tudo em silêncio. Após um momento, sacudiu a cabeça. O Pensamento


que acompanhava o gesto era incerto, fraco... mas negativo.

Falante disse às Paredes para se abrirem. Elas se abriram e o Impulso olhou para fora
admirado.

- Você pode sair - disse Falante. - Basta remover a linha de comunicação e ir embora.

- O que vocês vão fazer? - Vamos procurar um outro planeta de Impulsos. - Qual? Marte?
Vênus? - Não sabemos ainda. Fazemos votos contudo que exista um outro nesta região.

Impulso olhou para a abertura, depois para a Tripulação. Hesitou e seu rosto se contorceu
numa careta de indecisão.

- Tudo que vocês me mostraram é verdade? Não era necessário responder. - Bem - disse o
Impulso subitamente. - Irei com vocês. Posso ser um louco varrido, mas irei. Se isto significa o
que você disse - deve significar o que você disse!

Falante percebeu que a agonia da decisão do Impulso colocara-o fora de contato com a
realidade. Pensava que estava num sonho, onde as decisões são fáceis e sem consequência.

139

- Só existe um pequeno problema - disse Impulso com a leviandade da histeria. - Rapazes,


quero morrer se sei impulsionar alguma coisa. Vocês disseram alguma coisa a respeito de
velocidades acima da luz? Olhem, eu não consigo nem mesmo correr uma milha por hora.
- Sem dúvida que você pode impulsionar, - garantiu Falante, esperando estar certo. Ele sabia
quais eram as capacidades dos Impulsos; mas deste em particular ...

- Tente pelo menos. - Claro - disse Impulso. - De qualquer forma, é possível que acorde
depois disto.

Fecharam a Nave para a partida enquanto Impulso falava consigo mesmo.

- Engraçado - disse Impulso - pensei que um acampamento fosse uma maneira excelente para
aproveitar a licença e agora me acontecem esses pesadelos!

Motor lançou a Nave para o alto. As Paredes estavam hermeticamente fechadas e Olho os
guiava para longe do planeta.

- Estamos em pleno espaço agora - disse Falante. Ouvindo os pensamentos do Impulso, fazia
votos para que sua mente estivesse inteira. - Olho e Pensador vão dar uma direção. Eu a
transmitirei a você e você impulsiona a Nave.

- Você està louco - murmurou Impulso. - Vocês devem ter descido no planeta errado.
Gostaria que esse pesadelo terminasse.

- Você está na Cooperação agora - disse Falante desesperadamente. - Aqui está a direção.
Impulsione!

O Impulso não fez nada durante um momento. Estava lentamente acordando de sua fantasia,
descobrindo afinal que não se tratava de um sonho. Sentiu a Cooperação. Olho para
Pensador, Pensador para Falante, Falante para Impulso, todos intercoordenados com as
Paredes, e com cada um dos outros.

- O que é isso? - perguntou Impulso. - Sentiu a união da Nave, o grande calor, a intimidade
realizada unicamente mediante a Cooperação.
E impulsionou. Nada aconteceu. - Tente de novo - rogou Falante. Impulso pesquisou sua
mente. Encontrou um poço profundo de dúvidas e temores. Olhando para dentro, viu seu
próprio rosto torturado.

Pensador iluminou-o para ele. Os Impulsos viviam há séculos com suas dúvidas e temores.

140

Os Impulsos haviam lutado em consequência do temor, matado por dúvida.

Eis onde estava o órgão do Impulso! Humano - especialista - Impulso - ele penetrou
plenamente na Tripulação, mergulhou dentro dela, atirou seus braços mentais em volta dos
ombros de Pensador e Falante.

De repente, a Nave partiu na direção prevista numa velocidade pito vezes superior à da luz. E
continuou a acelerar.

141

***

A Sétima Vítima

Stanton Frelaine sentou-se diante de sua mesa de trabalho, procurando parecer tão ocupado
quanto deveria estar um diretor de firma às nove e meia da manhã. Era impossível. Não
podia concentrar-se no anúncio que escrevera na noite anterior, não podia pensar nos
negócios. Não pensava em outra coisa senão na entrega da correspondência.

Estivera esperando há duas semanas por sua comunicação. O Governo estava atrasado, como
de praxe.
A porta de vidro do seu escritório tinha os dizeres Morger e Frelaine, Confecções. Ela se abriu
e E. J. Morger entrou, puxando levemente de uma perna, consequência de um velho
ferimento de bala. Seus ombros eram curvados, mas com a idade de setenta e três anos,
Morger não se preocupava muito com o porte.

- Então, Stan? - perguntou Morger. - Como está aquele anúncio?

Frelaine associara-se a Morger dezesseis anos atrás, quando tinha vinte e sete anos. Juntos
haviam transformado o ramo Roupas-Protetoras num negócio de milhões.

- Creio que você pode publicá-lo - disse Frelaine - estendendo uma folha de papel a Morger. -
"Se ao menos a correspondência chegasse mais cedo," - pensou.

- "Você possui uma Roupa-Protetora?" leu Morger em voz alta, segurando o papel perto da
vista. "A melhor confecção do mundo foi empregada na Roupa-Protetora de Morger e
Frelaine, para torná-la a última palavra em moda masculina!"

142

Morger pigarreou e olhou em direção a Frelaine. Sorriu e continuou.

- "Roupa-Protetora é a mais segura e a mais elegante. Toda Roupa-Protetora vem com um


bolso especial para porte de arma, com garantia de indeformabilidade. Ninguém jamais
saberá que você leva uma arma - a não ser você mesmo. O bolso da arma é de facílimo
acesso, permitindo um sacar rápido e desimpedido. O bolso pode vir na cintura ou no peito." -
Muito bom, comentou Morger.

Frelaine assentiu sem entusiasmo. - "A Roupa-Protetora Especial possui o bôisp de


sacarrápido, a maior descoberta moderna em matéria de proteção pessoal. Um toque no
botão escondido atira a arma em sua mão, engatilhada, com a trava de segurança sôlta. Por
que não dar um pulo na Loja-Protetora mais próxima? Por que não se proteger?"
- Excelente - disse Morger. - É um anúncio muito sério e convincente. Refletiu um momento,
torcendo seus bigodes brancos. - Não seria interessante mencionar que a Roupa-Protetora é
produzida numa variedade de estilos, com casaco simples ou jaquetão, com uma ou duas
fileiras de botões, com ofuscamento profundo ou superficial?

- Certo. Esqueci-me disso. Frelaine apanhou de volta a folha de papel e acrescentou uma
nota na margem. Depois ficou em pé, alisando o casaco sobre seu estômago preeminente.
Tinha quarenta e três anos, estava um pouco acima do pêso normal e apresentava um começo
de calva, Era um homem de aparência simpática e de olhos frios.

- Acalme-se - disse Morger. - A comunicação virá hoje. Frelaine procurou sorrir. Tinha
vontade de andar de um lado para o outro, mas em vez disso sentou-se na beira da mesa.

- Parece até que é minha primeira morte - disse depois - com um sorriso sem jeito.

- Eu sei como é isso - disse Morger. - Antes de haver aposentado minha arma, não podia
dormir durante um mês, esperando uma comunicação. Eu sei como é isso.

Os dois homens esperaram. O silêncio já se tornava insuportável quando a porta se abriu. Um


empregado entrou e depositou em cima da mesa de Frelaine a correspondência.

Frelaine deu uma rápida volta e apanhou as cartas. Percorreu-as rapidamente e encontrou a
que estivera esperando - o comprido envelope branco do ECB, com o carimbo do governo
estampado nele.

143

- É este! - exclamou Frelaine, sorrindo. - E este o maroto!

- Ótimo.
Morger olhou com interesse para o envelope mas não pediu a Frelaine para abri-lo. Seria uma
indelicadeza, bem como uma violação aos olhos da lei. Ninguém deveria conhecer o nome da
Vítima a não ser o Caçador.

- Tenha uma boa caça, - disse Morger. - Assim espero, - respondeu Frelaine com confiança.
Sua escrivaninha estava em ordem, como estivera durante uma semana. Apanhou sua pasta.

- uma boa morte lhe fará um bem imenso - disse Morger, colocando a mão de leve sobre o
ombro acolchoado de Frelaine. - Você foi promovido.

- Eu sei - disse Frelaine sorrindo e apertou a mão de Morger.

- Gostaria de ser jovem - disse Morger, olhando para sua perna defeituosa com um olhar de
saudade irônica. - Isso me dá vontade de pegar novamente numa arma.

Morger fora na juventude um excelente Caçador. Dez caçadas com êxito o haviam qualificado
a ingressar no fechado Clube dos Dez. E, naturalmente, após cada caçada, Morger servira de
Vítima para outro, de sorte que tinha vinte mortes a seu favor.

- Faço votos que minha Vítima não se pareça com você - disse Frelaine em tom de brincadeira.

- Não se preocupe com isso. Que número é essa caçada? - A sétima. - O sete é um número de
sorte. Pode ir sossegado - disse Morger. - Você chegará certamente à décima.

Frelaine acenou com a mão e dirigiu-se para a porta. - Mas não se descuide - advertiu Morger.
- Uma pequena distração e terei que procurar um novo sócio. Lembre-se que gosto muito do
meu sócio atual.

- Terei cuidado - prometeu Frelaine. Em vez de tomar um ônibus, Frelaine foi a pé para o
apartamento onde morava. Desejava acalmar-se. Não havia razão para se conduzir como
uma criança em sua primeira morte.
Enquanto caminhava, Frelaine mantinha os olhos voltados para a frente. Olhar para alguém
significava pràticamente receber um tiro, caso o outro estivesse servindo de Vítima. Algumas
Vítimas atiravam simplesmente se alguém olhava de relance para elas. Camaradas nervosos.
Frelaine olhou prudentemente acima da cabeça das pessoas que passavam.

144

Na sua frente estava um enorme cartaz oferecendo ao público os serviços de J. F. O'Donovan.

"Vítimas!" - dizia o cartaz em letras vermelhas enormes. - "Por que correr um risco à toa? Use
um Localizador garantido O'Donovan. Confie a nós a localização de seu matador. Pague
somente após tê-lo apanhado!"

O cartaz despertou Frelaine. Telefonaria para Ed Morrow tão logo chegasse em casa.

Atravessou a rua, apertando o passo. Tinha pressa em chegar em casa, abrir o envelope e
descobrir quem era sua vítima. Seria ela estúpida ou inteligente? Rica, como a quarta Vítima
ou pobre, como a primeira e a segunda? Recorreria ela a um serviço de localização
organizado, ou agiria sôzinha?

A excitação da caça era maravilhosa, percorria suas veias, acelerava a batida do coração. De
um quarteirão distante, ouviu um tiro. Dois estampidos breves e depois um último.

Alguém apanhara seu homem, pensou Frelaine. Sorte dele. Era um sentimento grandioso,
pensou consigo. Estava vivo de novo.

No seu apartamento de um quarto, a primeira coisa que fez foi ligar para Ed Morrow, seu
localizador. Ed trabalhava como recepcionista numa garagem entre as chamadas.

- Alô, Ed? E Frelaine. - Como está, senhor Frelaine? Podia ver o rosto magro e cheio de graxa
do homem sorrindo de lábios fechados do outro lado da linha.
- Vou sair à procura de um, Ed. - Boa sorte, senhor Frelaine - disse Ed Morrow. - Imagino que
o senhor deseja minha ajuda.

- Pois é. Não espero ficar fora mais do que uma ou duas semanas. Receberei provavelmente
minha comunicação da Condição da Vítima três meses depois da sua morte.

- Eu lhe darei então uma mãozinha. Boa caçada, senhor Frelaine.

- Muito obrigado. Até a vista. Desligou o telefone. Era uma sábia providência manter um
localizador de primeira categoria. Após ter matado sua Vítima, seria a vez dele servir de
Vítima. E então, ainda uma vez, Ed Morrow lhe serviria de seguro de vida.

Que localizador espantoso era Morrow! Sem educação, estúpido mesmo. Mas que Olho para
descobrir as pessoas! Morrow era um primitivo. Seus olhos pálidos identificavam um
estranho

145

num relance. Era diabolicamente inteligente ao armar uma cilada. Um homem indispensável.

Frelaine apanhou o envelope, sorrindo consigo mesmo, lembrando-se de alguns estratagemas


que Morrow inventara para os Caçadores. Ainda sorrindo, olhou para as informações contidas
dentro do envelope.

Janet-Marie Patzig. Sua Vítima era uma mulher. Frelaine levantou-se e andou alguns
momentos de um lado para o outro. Depois tornou a ler a carta. Janet-Marie Patzig. Não
havia engano. Uma moça. Três fotografias vinham juntas, seu enderêço e os dados descritivos
habituais.

Frelaine franziu a testa. Nunca havia matado uma mulher. Hesitou um momento, depois
apanhou o telefone e discou para o ECB.
- Escritório de Catarse Emocional, Departamento de Informações, respondeu uma voz
masculina.

- Uma informação por favor - disse Frelaine. - Acabei de receber minha comunicação e saiu
uma mulher. Está certo isso? - Deu ao funcionário o nome da jovem.

- Está tudo em ordem - respondeu o funcionário após ter consultado os microfilmes do


arquivo. - A jovem registrou-se espontâneamente. A lei afirma que ela possui os mesmos
direitos e privilégios que os homens.

- O senhor poderia me informar quantas mortes ela possui? - Sinto muito. A única informação
permitida é a condição legal da vítima e os dados descritivos que o senhor recebeu.

- Entendo. - Frelaine fez uma pausa. - Posso tirar um outro número?

- O senhor pode recusar a caça, naturalmente. Faz parte do seu direito. Mas o senhor não
terá direito a uma outra Vítima até haver servido. O senhor deseja recusar?

- Oh, não - disse Frelaine rapidamente. - Perguntei por perguntar. Muito obrigado.

Desligou o telefone e sentou-se na poltrona, afrouxando o cinto. Este caso exigia uma certa
reflexão.

"Malditas mulheres," murmurou consigo mesmo, "sempre querendo entrar nos jogos
masculinos. Por que não ficam em casa?"

Mas elas eram cidadãs livres, lembrou-se. Ainda assim, aquilo não era algo muito feminino.

Sabia que, históricamente falando, o Escritório de Catarse Emocional fora fundado para os
homens e unicamente para os
146

homens. O Escritório fora criado no fim da Quarta Guerra Mundial - ou sexta, segundo a
enumeração de alguns historiadores.

Naquela época surgira uma necessidade urgente por uma paz permanente e duradoura. A
razão era prática, como eram os homens que a inventaram.

Simplesmente isso: a aniquilação ficava à mão da esquina mais próxima.

Nas guerras mundiais, as armas haviam crescido em importância, eficiência e poder de


exterminação. Os soldados habituavam-se a elas e hesitavam cada vez menos em empregá-
las.

Mas o ponto de saturação fora atingido. Uma outra guerra seria realmente a guerra definitiva
que acabaria com todas as guerras. Não haveria mais ninguém vivo para começar uma outra.

De sorte que esta paz deveria durar para sempre, mas os homens que a projetaram eram
homens práticos. Reconheciam as tensões e as deslocações presentes, os caldeirões nos quais
as guerras eram preparadas. Indagavam a si mesmos por que razão a paz nunca fora
duradoura no passado.

- Porque os homens gostam de lutar - era a resposta que davam.

- Oh não! - gritavam os idealistas. Mas os homens que projetaram a paz foram forçados a
admitir, com tristeza, a presença de uma necessidade de violência numa larga percentagem
da humanidade.

Os homens não são anjos. Nem são demônios. São simplesmente seres humanos, com um
alto grau de combatividade.
Com o conhecimento científico e o poder que possuíam naquela época, os homens práticos
teriam levado um tempo considerável para extirpar essa tendência da raça humana. Muitos
imaginavam que essa era a solução.

Os homens práticos contudo não pensavam assim; reconheciam a validez da competição, o


amor do combate, a coragem diante de situações difíceis. Segundo esses, todos os
sentimentos mencionados eram aspectos admiráveis de uma raça e a garantia de sua
perpetuação. Sem esses traços, a raça regrediria.

A tendência para a violência, pensavam eles, estava inexoravelmente associada à


engenhosidade, à flexibilidade e à disposição.

O problema portanto era: estabelecer uma paz que se mantivesse após a morte dos seus
inventores. Impedir que a raça se destruísse a si mesma, sem eliminar os traços responsáveis
por isso.

A única maneira de conseguirem isso, concluíram, era recanalizar a violência do homem.

Proporcionar-lhe um derivativo, uma expressão.

147

A primeira grande providência era a legalização dos espetáculos de gladiadores,


complementados com sangue e trovoadas. Mas isso não bastava. A sublimação só funcionava
até certo ponto. Depois as pessoas exigiam a coisa real.

Não existe substituto para o crime. De sorte que o crime foi legalizado, numa base
estritamente individual e somente para aqueles que o desejavam. Os governos foram
levados a criar os Escritórios de Catarse Emocional.

Após um período de experiências, regras uniformes foram adotadas.


Todo aquele que desejava matar podia se inscrever no ECB. Fornecendo certos dados e
garantias, recebia em troca uma Vítima.

Todo aquele que se inscrevesse para matar, segundo as leis governamentais, deveria por sua
vez assumir a função de Vítima alguns meses depois - caso estivesse vivo.

Estes, em essência, eram os estatutos. O indivíduo podia praticar quantos crimes desejasse.
Mas entre cada um deles, deveria sujeitar-se à condição de Vítima. Caso conseguisse matar
seu Caçador, poderia parar, ou inscrever-se para uma outra morte.

Após dez anos de existência, calculou-se que um terço do mundo civilizado inscrevera-se pelo
menos uma vez com a intenção de matar. O número desceu mais tarde para um quarto e se
manteve aí.

Os filósofos sacudiam a cabeça, mas os homens práticos estavam satisfeitos. A guerra estava
no lugar que pertencia: nas mãos dos particulares.

Sem dúvida, havia ramificações para o jôgo, Ibem como aperfeiçoamentos. Uma vez que sua
existência foi aceita, o jôgo tornou se um grande negócio. Havia firmas que prestavam
assistência aos Caçadores e às Vítimas.

O Escritório de Catarse Emocional sorteava ao acaso o nome das Vítimas. O Caçador tinha
duas semanas de prazo para realizar a caçada. Esta deveria ser levada a cabo por sua própria
engenhosidade, sem ajuda de outros. Era-lhe fornecido o nome de sua Vítima, enderêço e
descrição física, e era-lhe permitido utilizar uma arma de calibre-padrão. Não poderia usar
nenhuma espécie de colete à prova de bala.

A Vítima era informada uma semana antes do Caçador. Diziam-lhe apenas que fora escolhido
para Vítima. Não sabia o nome do Caçador. Era-lhe permitida a escolha de uma proteção
física. Podia contratar localizadores. O localizador não podia matar; somente a Vítima e o
Caçador tinham esse direito. Mas o localizador podia descobrir um estranho na cidade, ou
desentocar um atirador nervoso.

148
A Vítima podia recorrer a qualquer tipo de armadilha para matar seu Caçador.

Havia penalidades severas para quem matasse ou ferisse a pessoa errada, uma vez que não se
permitia qualquer outra espécie de crime. Crimes por dinheiro ou assaltos a mão armada
eram punidos com a pena de morte.

A beleza do sistema estava no fato de as pessoas que desejavam matar terem a liberdade de
matar. Aqueles que não desejavam - e eram a maioria - não eram obrigados a matar.

Pelo menos, não havia mais grandes guerras. E nem mesmo a iminência de uma outra.

Apenas centenas de milhares de pequenas guerras particulares. Frelaine não apreciou


especialmente a ideia de matar uma mulher; mas ela se inscrevera. Não era culpa dele. E não
pretendia perder sua sétima caçada.

Passou o resto da manhã memorizando os dados relativos à sua Vítima; depois guardou a
carta.

Janet Patzig vivia em Nova Yorque. Era um bom começo. Gostava de caçar numa grande
cidade, e sempre desejara conhecer Nova Yorque. Não sabia a idade da mulher, mas julgando
por sua fotografia estaria na casa dos vinte.

Frelaine telefonou para uma agência e reservou passagem de jato para Nova Yorque; depois
tomou um banho de chuveiro. Vestiu-se elegantemente com uma Roupa-Protetora Especial
feita para a ocasião. Apanhou uma arma em sua coleção, limpou-a e lubrificou-a; colocou-a
em seguida no bolso especial do casaco. Por fim pegou sua maleta.

Uma excitação febril percorria suas veias. Estranho, pensou, como cada nova morte era uma
emoção diferente. Não se cansava nunca desse esporte, como acontecia frequentemente com
outros passatempos: patisserie francesa, mulheres, bebidas ou qualquer outra coisa. Era
sempre algo novo e diferente.
Antes de sair, olhou em sua estante para ver que livros levaria consigo.

Sua biblioteca possuía todos os bons livros sobre o assunto. Não iria necessitar de livros sobre
Vítimas, como o de L. Fred Tracy, Táticas para a Vítima, com sua insistência num ambiente
rigidamente controlado; ou o livro do Dr. Frisch, Não Pense como Vítima!

Estaria muito interessado nesses livros dentro de alguns meses, quando fosse novamente uma
Vítima. Agora desejava livros de caça.

149

Táticas para Caçar Humanos era a obra básica e definitiva, mas ele a sabia quase de cor. O
Aperfeiçoamento da Cilada não se adaptava às suas necessidades presentes.

Escolheu por isso Caçando na Cidade, de Mitwell e Clark, Localizando o Localizador, de


Algreen e a Classificação das Vítimas, do mesmo autor.

Tudo estava em ordem. Deixou um recado para o leiteiro, fechou o apartamento e tomou um
táxi para o aeroporto.

Em Nova Yorque, hospedou-se num hotel meio central, não muito distante da residência de
sua Vítima. Os empregados do hotel mostraram-se sorridentes e prestativos, o que aborreceu
Frelaine. Não gostava de ser reconhecido tão fàcilmente como um matador de outra cidade.

A primeira coisa que viu no seu quarto foi um folheto na sua mesa de cabeceira. Como Tirar o
Máximo Proveito de sua Catarse Emocional, era o seu título, com os cumprimentos do
gerente. Frelaine sorriu e folheou-o rapidamente.

Como era sua primeira visita a Nova Yorque, passou a tarde percorrendo as ruas da vizinhança
de sua Vítima. Depois disso, visitou algumas lojas.
A loja Martinson e Black era um local fascinante. Percorreu o departamento de Caçadores e
Caçados. Havia ali roupas leves à prova de bala para as Vítimas e chapéus Richard Arlington,
com copas à prova de bala.

Num dos lados da sala havia uma grande vitrine com uma nova arma calibre 38.

"Use a pistola de pricisão Malvern!" - dizia o cartaz. - "Aprovada pelo ECB. Possui uma carga
de 12 tiros. Desvio de tiro garantido de menos de 0,001 polegadas numa distância de 1.000
pés. Não erre sua Vítima! Não arrisque sua vida sem o melhor! Ande seguro com Malvern!"

Frelaine sorriu. O anúncio era bom e a pequena arma preta parecia incrivelmente eficiente.
Mas ele estava satisfeito com a sua.

Havia uma venda especial de bengalas que escondiam um pente de quatro tiros, garantindo
segurança e discrição. Quando jovem, Frelaine sempre fora um entusiasta de novidades, mas
agora sabia que as armas antigas eram as melhores.

Do lado de fora da loja, quatro homens do Departamento de Saúde transportavam um


cadáver recente. Frelaine sentiu não haver presenciado o feito.

Jantou num bom restaurante e foi dormir cedo. No dia seguinte, tinha uma porção de coisas
para fazer.

150

Acordou com o rosto de sua Vítima impresso na memória e deu uma volta pela sua
vizinhança. Não olhou atentamente para ninguém. Em vez dispo, caminhou rapidamente,
como se estivesse indo numa direção determinada, exatamente como faria um velho
Caçador.

Passou em frente a vários bares e parou num deles para tomar um refrigerante. Depois
prosseguiu seu caminho, por uma rua lateral a Lexington. Avenue.
Encontrou ali um agradável café ao ar livre. Frelaine passou diante dele.

E là estava ela! Ele nunca poderia ter-se enganado com seu rosto. Era Janet Patzig, sentada
numa mesa, olhando para sua bebida. Ela não levantou a cabeça quando ele passou.

Frelaine caminhou até o fim do quarteirão. Virou a esquina e parou, com as mãos trêmulas.

Estaria a moça louca, expondo-se num local aberto? Será que pensava possuir urn feitiço
qualquer?

Fez sinal para urn táxi e disse ao motorista para dar a volta no quarteirão. Não havia engano,
ela estava sentada no café. Frelaine observou-a cuidadosamente.

Parecia mais meia do que nos retratos, mas não podia ter certeza da idade. Não lhe daria
mais de vinte e poucos anos. Seu cabelo prêto estava dividido ao meio e penteado sobre as
orelhas, o que lhe dava uma aparência de freira. Sua expressão, enquanto Frelaine podia
julgar, era de uma resignada tristeza.

Ela não iria ao menos fazer uma tentativa para se defender? Frelaine pagou o motorista e
correu para uma loja. Ao encontrar um telefone desocupado, ligou para o Escritório de
Catarse Emocional.

- Os senhores têm certeza que uma Vítima de nome JanetMarie Patzig foi comunicada?

- Um momento, por favor. Frelaine batia com o pé no chão enquanto o funcionário procurava
a informação.

- Foi, sim senhor. Temos sua confirmação pessoal. Há alguma coisa errada?

- Não, disse Frelaine. Queria apenas uma confirmação. Afinal, não era responsabilidade de
ninguém se a jovem não queria se defender.
Ele tinha, mesmo assim, o direito de matá-la. Era sua vez.

151

Adiou porém a morte e foi a um cinema. Depois do jantar, voltou para o quarto do hotel e leu
o folheto do ECB. Depois deitou-se e olhou para o teto.

Tudo o que tinha a fazer era despachar-lhe uma bala. Bastava apenas passar em frente ao bar
de táxi e matá-la.

Ela estava se conduzindo contra todas as regras do jôgo, pensou ele com irritação, ajeitando-
se para dormir.

Na tarde do dia seguinte, Frelaine passou novamente pelo bar. A jovem estava lá, sentada na
mesma mesa. Frelaine apanhou um táxi.

- Dê uma volta no quarteirão bem devagar, - disse ao motorista.

- Pois não, - disse o motorista, sorrindo com uma sabedoria sardônica.

No interior do táxi, Frelaine procurou avistar algum localizador. Pelo visto, a jovem não tinha
nenhum. Ela estava com as duas mãos em cima da mesa.

Um alvo fácil e parado. Frelaine apertou o botão do seu jaquetão. Uma dobra abriu-se e a
arma saltou na sua mão. Soltou o tambor e examinou as balas; depois tornou a fechá-lo com
um tranco.

- Bem devagar agora, disse ao motorista. O táxi passou lentamente diante do bar. Frelaine fez
uma pontaria cuidadosa, apontando para a jovem. Seu dedo fazia pressão sobre o gatilho.
- Raios! - exclamou. Um garçon passara em frente à jovem. Não queria correr o risco de ferir
outra pessoa.

- Dê outra volta no quarteirão - disse ao motorista. O motorista sorriu de novo e acomodou-se


no assento do carro. Frelaine indagou a si mesmo se o motorista se sentiria tão feliz se
soubesse que ele estava pretendendo matar uma mulher.

Desta vez não havia nenhum garçon por perto. A jovem estava acendendo um cigarro, seu
rosto tristonho olhando atentamente para o isqueiro. Frelaine fez pontaria, mirou-a no centro
da testa e prendeu a respiração.

Depois balançou a cabeça e tornou a guardar a arma no bolso. A jovem idiota estava
roubando-o do maior benefício de sua catarse.

Pagou ao motorista e saiu andando. "É fácil demais," disse consigo. Estava acostumado a uma
caçada verdadeira. As primeiras seis mortes, na sua maioria, haviam sido bem difíceis. As
Vítimas tinham apelado para todas

152

as formas de defesa. Uma delas contratara pelo menos uns dez localizadores. Mas Frelaine
vencera a todas alterando suas táticas segundo as necessidades do momento.

Uma vez vestira-se como leiteiro, outra vez como cobrador. Dera caça à sexta Vítima na Serra
Nevada. O homem perseguido conseguira atingi-lo, mas Frelaine levara a melhor.

Que orgulho podia sentir ao matar esta Vítima? O que iriam dizer os membros do Clube dos
Dez?

Este pensamento provocou-lhe um sobressalto. Desejava entrar para o Clube. Ainda mesmo
que tivesse êxito com esta jovem teria que se defender contra um Caçador. Se saísse vivo,
dependia ainda de mais quatro caçadas para entrar na sociedade. Nesse passo, pensou,
jamais entraria.
Começou novamente a andar na calçada em frente ao bar, quando, de repente, seguindo um
impulso, parou.

- Olá - disse. Janet Patzig levantou os olhos azuis e tristes para ele, mas não respondeu.

- Com licença - disse Frelaine sentando-se. - Se estou sendo incômodo, diga-me que irei
embora. Sou um estranho na cidade. Vim aqui numa convenção e gostaria de encontrar uma
jovem para conversar. Se você não se importar...

- Não me importo - disse Janet Patzig sem entonação. - Um conhaque - disse Frelaine ao
garçon. O copo de Janet estava ainda pela metade. Frelaine olhou para a moça e sentiu seu
coração palpitando. Que emoção - tomar uma bebida na companhia de sua Vítima!

- Eu me chamo Stanton Frelaine - disse, sabendo que isso não faria diferença.

- Janet. - Janet do quê? - Janet Patzig. - Muito prazer em conhecê-la - disse Frelaine, com a
voz perfeitamente natural. - Você pensa fazer alguma coisa hoje à noite, Janet?

- Provavelmente vou ser morta hoje à noite - disse ela calmamente.

Frelaine observou-a cuidadosamente. Ela sabia porventura quem era ele? Ocorreu-lhe a
suspeita que ela tinha um revólver apontado para ele embaixo da mesa. Manteve por isso sua
mão próxima ao botão do casaco que soltava a arma.

- Você é uma Vítima? - perguntou ele.

153

- Como você adivinhou? - disse ela com ironia. - Se fosse você, ficaria longe de mim. Não há
razão para sair ferido por engano.
Frelaine não podia entender a calma da moça. Seria ela uma suicida? Talvez não se
importasse simplesmente de morrer. Talvez desejasse mesmo morrer.

- Você não tem nenhum localizador? - perguntou ele, procurando parecer admirado.

- Não. Ela olhou fixamente para ele e Frelaine percebeu uma coisa que ainda não notara.

Ela era muito bonita. - Eu sou uma moça muito, muito má, disse ela em tom de brincadeira.
Ocorreu-me a ideia que gostaria de praticar um crime e por isso me inscrevi no ECB. E agora...
não tenho coragem para continuar.

Frelaine balançou a cabeça, simpatizando com sua atitude. - Mas continuo inscrita,
naturalmente, disse ela. Ainda mesmo que não mate, sou forçada a ser Vítima.

- Mas por que você não contratou alguns localizadores? - Não conseguiria matar ninguém -
disse ela. - Simplesmente não conseguiria. Não possuo nem mesmo uma arma.

- Você tem muita coragem de se expor publicamente. No íntimo, ele estava admirado de sua
estupidez. - Que posso fazer? - perguntou ela desanimadamente. - Não é possível uma pessoa
se esconder de um Caçador. Pelo menos quando se trata de um verdadeiro Caçador. E não
tenho bastante dinheiro para encontrar uma boa maneira de sumir.

- Uma vez que se trata de sua defesa, eu diria... começou Frelaine, mas ela o interrompeu.

- Não. Mesmo porque, cheguei à seguinte conclusão: tudo isso està errado, o sistema inteiro.
Ainda mesmo que tivesse minha Vítima na mira... ainda mesmo se percebesse com que
facilidade eu poderia... eu poderia...

Ela se controlou rapidamente. - Ah, vamos esquecer isso - disse sorrindo. Frelaine achou seu
sorriso fascinante. Depois disso conversaram sobre diversos assuntos. Frelaine contou-lhe a
respeito de suas atividades; ela falou-lhe a respeito de Nova Yorque. Tinha vinte e dois anos e
era uma atriz sem sucesso.
Jantaram juntos. Quando ela aceitou seu convite para irem ao espetáculo de gladiadores,
Frelaine sentiu-se absurdamente excitado.

154

Chamou um táxi - parecia-lhe que gastava a maior parte do seu tempo em Nova Yorque
dentro dos táxis - e abriu a porta para ela entrar. Ela entrou. Frelaine hesitou. Poderia terlhe
desferido um tiro naquele momento. Teria sido bem fácil.

Mas conteve-se. Por um momento mais, pensou. O espetáculo de Gladiadores era o mesmo
que levavam em outros lugares, só que havia um pouco mais de talento entre os atores.
Davam os acontecimentos históricos de praxe, homens com espadas e homens com redes,
duelos com sabre e com florete.

A maior parte dos combates, naturalmente, terminava com a morte de um dos contendores.

Depois houve lutas contra touros, leões e rinocerontes, seguidas de fatos mais modernos.
Lutas atrás de barricadas com arco e flecha. Duelos na corda bamba.

A noite passou agradavelmente. Frelaine acompanhou a jovem até sua casa, com as palmas
das mãos úmidas de suor. Nunca conhecera uma jovem de quem gostasse tanto. E no
entanto ela era sua Vítima legítima.

Não sabia o que ia fazer. Ela convidou-o a entrar e sentaram-se os dois num sofá. A jovem
acendeu um cigarro com um grande isqueiro e depois se acomodou.

- Você vai embora logo? - perguntou. - Creio que sim - disse Frelaine. - A convenção termina
depois de amanhã.

- Vou sentir sua falta - disse ela após um momento. Ficaram em silêncio durante algum
tempo. Depois Janet levantou-se e foi preparar-lhe uma bebida. Frelaine acompanhou-a
com os olhos. Agora era o momento. Colocou a mão junto ao botão do casaco.
Mas o momento havia passado para ele, irremediavelmente. Não iria mais matá-la. Não era
possível matar a moça que amava.

A descoberta de que a amava foi surpreendente. Viera para matar e não para encontrar uma
esposa.

Janet voltou com a bebida e sentou-se em sua frente, olhando para o vazio.

- Janet - disse ele - eu te amo. Ela continuou sentada, olhando para ele. Havia lágrimas nos
seus olhos.

- Você não pode... - protestou ela. - Eu sou uma Vítima. Não vou viver muito...

- Você não vai ser morta. Eu sou seu Caçador.

155

Ela olhou para ele um momento e depois riu sem saber o que pensar.

- Você vai me matar? - perguntou. - Não seja ridícula - disse ele. - Vou me casar com você.

Subitamente ela estava em seus braços. - Oh, meu Deus! - murmurou. - Essa espera... estava
tão assustada.

- Agora tudo acabou. Pense na história que vamos contar aos nossos filhos. como eu vim
disposto a matá-la e depois nos casamos.

Ela beijou-o, depois sentou-se novamente e acendeu um outro cigarro.


- Vamos fazer as malas - disse Frelaine. - Eu quero... - Espere um pouco - disse Janet
interrompendo-o. - Você ainda não me perguntou se eu o amo.

- O quê? Ela continuava a sorrir e o isqueiro estava apontada para ele. Na sua extremidade
havia um orifício prêto. Um orifício do tamanho de uma bala calibre 38.

- Não brinque - disse ele levantando-se. - Não estou brincando, querido - disse ela. Numa
fração de segundo, Frelaine teve tempo para pensar como fora possível imaginar que ela não
tinha mais de vinte e poucos anos. Olhando para ela agora - olhando realmente para ela -
percebeu que não podia ter menos de trinta anos. Cada minuto de sua existência tensa e
angustiada deixara sinais no seu rosto.

- Eu não te amo, Stanton - disse ela em voz baixa, apontando o isqueiro.

Frelaine respirou com dificuldade. Uma parte dele admirava a fabulosa artista que ela era.
Provavelmente ela sabia tudo desde o início.

Frelaine apertou o botão do casaco e o revólver saltou na sua mão, engatilhado e pronto.

O tiro que o atingiu no peito derrubou-o sobre uma mesa de café. O revólver caiu da sua
mão. Ofegante e meio inconsciente, Frelaine observou-a mirar cuidadosamente para o tiro de
misericórdia.

- Agora posso entrar para o Clube dos Dez, foram as últimas palavras que a ouviu dizer
enquanto apertava o gatilho.

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Biografia do autor
Robert Sheckley nasceu em Nova Yorque em 1925. É antes de tudo escritor do imaginário.
Vive atualmente em Manhatten onde escreve regularmente para revistas americanas e
continua se dedicando à ficção científica. Entre suas obras destacam-se White Death, The
Shards of Space, Notions: Unlimited, Dead Run, Ca. libre 50, Pilgrimage to Earth, Citizen in
Space, Immortality Inc. e o presente volume.

Este livro foi composto e impresso na GRÁFICA URUPÉS

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