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Simak
AS CIDADES
MORTAS
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SOBRE O EBOOK
Cli ord D. Simak
AS CIDADES
MORTAS
Este Ebook foi feito para a preservação da memória da ficção
científica e destina-se à pesquisa e aos fãs. Sua venda portanto é
proibida. O texto foi digitalizado em sua integralidade e revisado para
evitar erros de reconhecimento do OCR. Por uma questão de
otimização de recursos e tempo, a grafia antiga não foi adaptada e por
isso o texto mantém todas as características do original, não sendo
portanto atualizado para o novo acordo ortográfico. As linhas em
branco, usadas para separar cenas, ganharam o grafismo “***” para
garantir a separação original criada pelo autor (alguns softwares
eliminam as linhas em branco). Foram incluídas algumas notas
explicativas pontuais, para auxiliar a compreensão de termos muito
específicos e aumentar a imersão de leitura. A ilustração de capa
original foi substituída por outra de uma publicação mais recente.
Uma mini biografia foi criada exclusivamente para esta edição e é
uma surpresa no final do livro. Espero que gostem. Boa leitura.
ff
Clifford D. Simak
As cidades mortas
Título da edição original: “City”
Publicado originalmente em 1977
Capa original: Lima de Freitas
NÚMERO
117
A Coleção Argonauta, da editora portuguesa Livros do Brasil,
se tornou a mais importante referência em livros de icção
cientí ica a circular em Portugal e no Brasil. Iniciada em 1953,
a coleção publicou muitos dos escritores mais célebres da
FC à época, em um total são 564 livros de bolso.
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INTRODUÇÃO
A presente obra, pela sua forma estranha e pelo seu tema perturbador,
ocupa um lugar à parte na literatura de ficção científica.
É um dos maiores clássicos dessa literatura. O maior de todos,
segundo o inquérito feito pela revista Amazing, em 1956.
Dez anos depois, em novo inquérito, os leitores dessa revista —
agora denominada Analog — voltaram a considerá-la como uma das
dez melhores obras do gênero, em todos os tempos.
E isso compreende-se, porque o drama do Homem — o divórcio
entre o progresso material e a maturidade espiritual — em caso algum
foi estudado tão profundamente e tão longe, quanto às suas
consequências.
Tão longe que a existência do Homem, perdido entre o
conhecimento daquilo que o cercava e o desconhecimento do que
havia dentro de si, já nem sequer era uma lenda, mas sim aquilo que
os cães — seus herdeiros sobre a Terra — consideravam como “um
artifício de narração”.
PREFÁCIO DO EDITOR
Estas histórias são aquelas que os cães contam quando as chamas
das fogueiras sobem alto e a nortada sopra. Então, os círculos
familiares reúnem-se, cada um em torno da sua lareira, e os cachorros
sentam-se em silêncio e escutam. Quando a história chega ao fim
fazem muitas perguntas:
— O que é “homem”?
Ou talvez:
— O que é uma cidade?”
Ou ainda:
— Que é uma guerra?
Não há nenhuma resposta concreta para qualquer destas perguntas.
Há suposições, teorias e muitas hipóteses, mas respostas, não.
Nos círculos familiares, muitos narradores de histórias têm-se visto
forçados a recorrer à antiga explicação de que se trata apenas de uma
“história”, que homens e cidades são coisas que não existem e que
não se deve procurar a verdade num simples conto, mas sim escutá-lo
por prazer e não ir mais além.
Explicações dessa natureza, ainda que possam satisfazer cachorros,
não são propriamente explicações. Há que procurar a verdade, mesmo
em contos como esses.
A lenda, composta de oito contos, vem sendo narrada a inúmeros
séculos. Tanto quanto é possível determinar-se, não tem ponto de
partida histórico. O seu estudo mais minucioso é absolutamente
incapaz de esclarecer a forma porque se desenvolveu. Não há dúvida
de que, de tanto ser contada, se estilizou, mas não há processo que
permita descobrir o sentido em que essa estilização se processou.
A prova de que é muito antiga e de que, como alguns escritores
afirmam, pode em parte ser de origem não canina, resulta da
abundância de algaraviada que surge nos contos — palavras e frases
(e, pior do que tudo, ideias) que não têm significado na actualidade e
talvez nunca o tenham tido. Tantas vezes os contos foram narrados
que essas palavras e frases acabaram por ser aceitas, tendo-lhes sido
atribuído, através do seu contexto, um certo valor arbitrário. No
entanto, é impossível saber se esses valores se aproximam sequer do
significado original das palavras.
Esta edição dos contos não pretende tomar qualquer posição nas
inúmeras discussões de carácter técnico referentes à existência ou não
existência de homem, ou do enigma da cidade, ou das várias teorias
relativas à guerra, ou ainda das muitas outras teorias que surgem para
afligir o estudioso que procura na lenda alguma prova da sua
verdadeira base, essencial ou histórica.
A finalidade desta edição é simplesmente fornecer o texto
completo, sem cortes, dos contos tal como eles hoje são narrados. No
início de cada capítulo são utilizadas notas para frisar os principais
motivos de especulação, mas sem tentar tirar quaisquer conclusões.
Para aqueles que desejarem uma compreensão mais profunda dos
contos ou das muitas dúvidas que se têm levantado sobre eles, há
exaustivos tratados escritos por cães.
A recente descoberta de fragmentos do que parece ter sido um
extenso movimento literário, foi apresentada como o mais moderno
argumento para a atribuição de, pelo menos, uma parte da lenda ao
mitológico (e discutível) “homem”, em detrimento dos cães. Mas, até
que se prove que de facto existiu o homem, poucas bases pode ter o
argumento de que os fragmentos descobertos são da autoria dele.
Particularmente significativo ou perturbador, segundo o ponto de
vista que se adopte, é o facto de o título aparente do fragmento
literário ser o mesmo que o de um dos contos da lenda aqui
apresentada. A palavra, de resto, não tem qualquer significado.
Evidentemente, a pergunta fundamental é se existiu, sequer,
alguma vez um ser como o “homem”. Neste momento, na ausência de
qualquer prova positiva, o raciocínio prudente leva-nos a concluir que
ele não existiu e que o homem, tal como é apresentado na lenda, é um
produto da imaginação popular. O homem pode ter surgido nos
primeiros tempos da cultura canina como um ser imaginário, uma
espécie de deus da raça, a quem os cães podiam pedir auxílio ou
conforto.
Apesar destas conclusões prudentes, há, no entanto, quem veja no
homem um deus verdadeiro, ainda mais antigo, um visitante vindo de
uma terra ou dimensão mística, que chegou, ficou por cá algum
tempo, ajudou-os e depois regressou ao lugar de onde viera.
Há ainda outros que supõem que o homem e o cão cresceram
simultaneamente como dois animais cooperadores e podem ter sido
complementares no desenvolvimento de uma cultura, mas que em
qualquer ponto distante no tempo os seus caminhos se dividiram.
Entre todos os factores perturbadores dos contos (e são muitos) o
mais perturbador é a sugestão da reverência de que o homem era alvo.
E difícil ao leitor vulgar aceitar essa reverência como uma simples
fantasia do narrador. Vai multo além da superficial adoração de um
deus tribal; sente-se instintivamente que está enraizada de uma
maneira profunda nalguma crença ou rito, hoje esquecido, referente à
pré-história da nossa raça.
Na verdade, são poucas as esperanças que actualmente existem de
que venham alguma vez a ser resolvidos quaisquer dos pontos de
controvérsia que têm a lenda por origem.
Aqui estão, pois, os contos para serem lidos com o espírito que
aprouver ao leitor — por simples prazer, em busca de qualquer
pormenor de significado histórico, ou procurando alguma sugestão de
um simbolismo oculto. O nosso melhor conselho para o leitor vulgar é
este: Não os tome demasiado a sério, porque a confusão total, senão a
loucura, o espreita a todo o momento.
NOTAS SOBRE O
PRIMEIRO CONTO
Não há dúvida que, de todos os contos, o primeiro é o mais difícil
para o leitor eventual. Não só a nomenclatura nele empregada é difícil
de compreender, como também a lógica e as ideias parecem, à
primeira leitura, absolutamente alheias. Talvez isso aconteça porque
nesta história não intervém nem sequer é mencionado qualquer cão. A
partir do parágrafo inicial, o leitor vê-se envolvido numa situação
absolutamente estranha, em que agem personagens igualmente
estranhas. Pode dizer-se contudo, em favor do conto, que, uma vez
lido, os outros, em comparação, parecem quase familiares.
O conceito de “cidade” domina todo o conto. Ainda que não haja
uma compreensão absoluta do que uma cidade poderia ou deveria ser,
concorda-se, de uma maneira geral, que deveria ter sido uma pequena
área que abrigava e sustentava um grande número de habitantes.
Algumas das razões para a sua existência são expostas de maneira
muito superficial no texto, mas Bounce1, que dedicou toda a sua vida
ao estudo dos contos, está convencido de que essa explicação não é
mais do que o hábil improviso de um antigo narrador de histórias para
auxiliar a compreensão de um conceito ininteligível. A maior parte
dos estudiosos é da mesma opinião de Bounce quanto ao facto de as
razões, tal como o texto as apresenta, estarem em desacordo com a
lógica, e alguns — Rover, por exemplo— suspeitam que se trata de
uma sátira antiga, cujo significado se perdeu.
Algumas autoridades em economia e sociologia consideram que
uma organização como a de uma cidade é uma estrutura impossível,
2Talhão é a porção de terreno que se separa do todo para ser uma área
cultivada. Talhão citadino seria uma área de plantio dentro da cidade.
Parou por um momento naquela rua cheia de erva, os pés na
poeira, as mãos agarradas no castão da bengala. os olhos fechados.
Através do nevoeiro dos anos, ouvia os gritos das crianças que
brincavam, o cão de Conrad a ladrar ao fundo da rua. E lá estava o
Adams, nu da cintura para cima, manejando a pá, a abrir a cova, com
o ulmeiro, as raízes embrulhadas em serapilheira, deitado sobre a
relva.
Maio de 1946. Há quarenta e quatro anos. Exatamente depois de
ele e o Adams terem regressado juntos da guerra.
Passos surdos soaram sobre a poeira e o Avô, surpreendido, abriu
os olhos.
Na sua frente estava um jovem. Um homem de trinta anos, talvez.
Ou mesmo menos.
— Bom dia — disse o Avô.
— Espero não o ter assustado — disse o jovem.
— Viu-me aqui parado, com os olhos fechados, como um parvo,
não foi?
O jovem fez um movimento afirmativo com a cabeça.
— Estava a relembrar os velhos tempos — disse o Avô.
— Vive nestes sítios?
— No fundo da rua. Sou o último, nesta parte da cidade.
— Talvez possa ajudar-me.
— Vamos a ver.
O jovem gaguejou.
— Bem... compreende... é assim. Estou a fazer uma espécie de...
bem, pode chamar-lhe uma peregrinação sentimental...
— Compreendo — disse o Avô. — Também eu.
— Chamo-me Adams — disse o jovem. — O meu avô vivia aqui,
em qualquer parte. Gostaria de saber...
— Era mesmo ali.
Ficaram ambos a olhar para a casa.
— Era uma bela moradia. O seu avozinho plantou aquela árvore
quando voltou da guerra. Estive lá sempre com ele e voltámos juntos
para casa. Se você visse... que grande dia esse!
— Tenho pena — disse o jovem Adams. —Tenho pena...
Mas o Avô não o ouvia.
— O seu avozinho? — perguntou. — Creio que nunca mais soube
dele.
— Morreu. Há um bom par de anos.
— Andava metido na energia nuclear — disse o Avô.
— E verdade — disse Adams com orgulho. — Meteu-se nela assim
que autorizaram que a indústria a usasse. Logo depois do acordo de
Moscou.
— Logo depois de terem chegado à conclusão de que não
poderiam fazer mais guerras.
— Isso mesmo.
— E muito difícil fazer uma guerra quando não existem alvos.
— Fala das cidades?
— Claro — disse o Avô — e isso tem a sua piada. Apontem-lhes
todas as bombas atômicas que quiserem e não conseguirão assustá-
los. Mas dêem-lhes terrenos baratos e um avião familiar e eles fugirão
cada qual para seu lado, como outros tantos coelhos malucos.
***
John J. Webster subiu os largos degraus de pedra da Câmara
Municipal quando o espantalho ambulante que trazia uma carabina
debaixo do braço o alcançou e fez parar.
— Olá, Mr. Webster!
Webster fitou-o, surpreendido, e reconheceu-o de súbito.
— E o Levi! Como é que isso vai?
Levi Lewis sorriu-se, mostrando os dentes salientes.
— Menos mal. Os jardins vão crescendo e os coelhinhos começam
a dar uns belos petiscos.
— Não andas metido nessas patifarias que fazem para aí nas casas?
— Não, senhor. Somos vagabundos mas não cometemos delitos.
Respeitamos a Lei. Tememos a Deus. Estamos aqui porque não
conseguimos viver noutro lado. E viver nos sítios que os outros
abandonaram não faz mal a ninguém. A Policia anda para aí a dizer
que roubamos e somos responsáveis por outras coisas que para aí se
fazem, porque sabe que não nos podemos defender. Querem fazer de
nós os bodes expiatórios...
— Estou satisfeito por ouvir isso. O chefe quer queimar as casas.
— Se ele pensar nisso, vai ter uma bela surpresa. Correram-nos das
nossas propriedades com os seus tanques de cultura, mas não irão
mais além.
Cuspiu nos degraus.
— Não tem aí por acaso alguns trocos? Estou sem cartuchos e com
os coelhos a aparecerem...
Webster meteu os dedos no bolso do colete e tirou uma moeda de
meio dólar.
Levi sorriu-se.
— É muito bondoso, Mr. Webster. No Outono hei de trazer-lhe uns
esquilos.
O vagabundo levou dois dedos à aba do chapéu e desceu as
escadas. O cano da arma brilhava ao sol. Webster continuou a subir.
A reunião do Conselho Municipal já estava em pleno curso quando
ele entrou na sala.
Jim Maxwell, o chefe da Polícia, estava sentado à mesa, e o
presidente, Paul Cárter, falava.
— Não pensa que está a agir precipitadamente ao insistir numa
decisão quanto às casas?
— Não, não estou — declarou o chefe. — Exceto umas duas
dúzias, pouco mais ou menos, nenhuma dessas casas está ocupada
pelos seus verdadeiros donos, ou melhor, pelos proprietários originais.
Todas elas pertencem à cidade, por falta de pagamento dos impostos.
Têm um aspecto desagradável e são um perigo. Não possuem valor
algum. Nem mesmo pelos materiais. Madeira? Já não a usamos. Os
plásticos são melhores. Pedra? Usamos aço em vez de pedra.
Nenhuma dessas casas tem qualquer material com valor comerciável.
E, entretanto, transformaram-se em valhacouto de delinquentes e
elementos indesejáveis. Cobertas de ervas, como estão as áreas
residenciais, tornaram-se num esconderijo perfeito para toda a espécie
de criminosos. Um homem comete um crime e refugia-se nas casas.
Uma vez ali, está a salvo, porque nem que eu mandasse para lá mil
homens o poderia apanhar.
Nem valem sequer a despesa da demolição. E se não são uma
ameaça, são pelo menos um incômodo. Temos de livrar-nos delas e o
fogo é o processo mais rápido mais barato. Tomaremos todas as
precauções.
— Será isso legal ? — perguntou o presidente.
— Também tratei disso. Qualquer pessoa tem o direito de destruir
uma propriedade sua da maneira que lhe pareça mais conveniente,
desde que não ponha outros em perigo. Creio que a mesma lei pode
aplicar-se a um município.
O vereador Thomas Griffin pôs-se de pé num salto.
— Você irá espoliar uma porção de gente. Queimará muitos velhos
lares. Ainda há gente que continua ligada a eles, por laços
sentimentais...
— Se se importassem com as casas pagariam os impostos e
cuidariam delas. Por que razão as abandonaram e fugiram para o
campo? Pergunte ao Webster. Ele pode dizer-lhe o sucesso que tem
obtido ao tentar interessar essa gente nos lares dos seus antepassados.
— Está a falar nessa farsa da Semana do Velho Lar?— disse
Griffin. — Falhou. Tinha de falhar. Webster tornou tudo tão denso que
sufocou toda a gente. É o que faz sempre a mentalidade da Câmara de
Comércio.
O vereador Forrest King ergueu-se e gritou, furioso:
— Não há nada de errado na maneira de proceder da Câmara de
Comércio, Griffin. Lá porque você falhou no negócio, não há razão...
Griffin ignorou a interrupção.
— Os dias de festa já desapareceram. Para sempre. As aldrabices
de feira estão mortas e enterradas. Os tempos em que se podia ter dias
do milho-rei ou do dólar, ou inventar qualquer outra comemoração e
enfeitar o sítio com bandeiras para atrair multidões prontas a largar o
dinheirinho, já lá vão há muitos anos. Só vocês é que parecem não ter
dado por isso.
O sucesso dessas habilidades era devido ao facto de agradarem à
psicologia das multidões e à lealdade cívica. Não se pode exigir
lealdade cívica a uma cidade que morre de pé. Não se pode contar
com a psicologia das multidões quando não há multidões, quando
todos ou quase todos os homens têm ao seu dispor uma solidão de
quatro hectares.
— Senhores — implorou o presidente. — Senhores, isso está
absolutamente fora da ordem do dia.
King explodiu e quase virou a mesa.
— Não! Vamos esclarecer tudo. Está aqui o Webster e talvez posa
dizer-nos o que pensa do assunto.
Webster agitou-se, pouco à vontade, e disse:
— Duvido que tenha alguma coisa de interesse a dizer.
— Paciência — retorquiu Griffin. E sentou-se.
Mas King manteve-se de pé, o rosto vermelho, a boca a tremer de
cólera.
— Webster! — gritou.
Webster abanou a cabeça. King voltou a gritar:
— Você veio aqui com uma das suas grandes ideias. Vai apresentá-
la perante o Conselho. Levante-se, homem, e diga o que tem a dizer!
Webster ergueu-se devagar, com os lábios torcidos num sorriso
amargo.
— Talvez você tenha a cabeça muito dura para saber que a maneira
como procedeu me magoou.
King engasgou-se e depois explodiu:
— Cabeça dura! Diz isso a mim! Trabalhamos juntos e eu ajudei-o!
Nunca me chamou disso... seu...
— Nunca lhe chamei disso, é verdade — disse Webster, sempre
calmo. — Era natural. Não queria perder o meu emprego.
— Bem! Já não tem emprego! — rugiu King. — A partir deste
momento deixou de o ter.
— Cale-se! — ordenou Webster.
King fitou-o, espantado, como se alguém lhe houvesse dado uma
bofetada.
— E sente-se! — acrescentou Webster, a sua voz a rasgar a sala
como uma faca afiada.
Os joelhos de King dobraram-se e fizeram-no sentar de repente. O
silêncio era explosivo.
— Tenho uma coisa a dizer — explicou Webster. — Qualquer
coisa que devia ter dito há muito e que vocês devem ouvir. Só o que
me surpreende é que seja eu que tenha de a dizer. E no entanto, como
defendo os interesses da cidade há quinze anos, é lógico que seja eu a
dizer-vos as verdades.
O vereador Griffin disse que a cidade está moribunda e é assim
mesmo. Mas há uma coisa em que ele falhou e essa foi ter ficado
aquém da verdade. A cidade... esta cidade... todas as cidades... já estão
mortas.
A cidade é um anacronismo. Ultrapassou a época em que era útil.
Os produtos hidropônicos e os helicópteros ditaram o seu fim. A
princípio a cidade era um lugar tribal, uma área em que a tribo se
juntava para conseguir uma proteção mútua. Depois puseram-lhe uma
muralha à volta, para que a proteção fosse mais eficaz. Por fim a
muralha desapareceu, mas a cidade sobreviveu por causa das
vantagens que oferecia aos negócios e ao comércio. E continuou a
existir nos tempos modernos porque toda a gente era obrigada a viver
junto dos empregos e estes estavam na cidade.
Mas hoje isso já não acontece. Com o avião familiar, cem
quilômetros são uma distância mais curta do que eram cinco
quilômetros em 1930. Os homens podem voar centenas de
quilômetros até ao emprego e voltar para casa pelo mesmo processo
ao fim do dia. Já não necessitam de viver encarcerados numa cidade.
O automóvel iniciou a derrocada e o avião familiar consumou-a.
No princípio do século já isso era evidente — havia uma tendência
para que as pessoas se afastassem da cidade, com os seus impostos e a
sua atmosfera sufocante, uma fuga para os arredores e para os campos
próximos. A falta de transportes adequados e de dinheiro impedia
muita gente de seguir esse caminho. Mas agora, com as culturas em
tanques a destruir o valor das terras, um homem pode comprar uma
grande propriedade no campo por menos do que lhe custaria um
terreno na cidade, há quarenta anos. Com os aviões movidos por
energia nuclear já não há problemas de transportes.
Fez uma pausa e o silêncio manteve-se. O presidente parecia
estupefato. Os lábios de King moveram-se, mas deles não saiu
palavra. Griffin sorria-se.
— Que temos agora?— perguntou Webster. — Vou dizer-vos. Ruas
e ruas, quarteirões e quarteirões de casas desertas, casas que os
habitantes abandonaram, pura e simplesmente. Porque haviam de
ficar? Que vantagens lhes oferecia a cidade? Nenhuma das que
oferecera às gerações passadas, porque o progresso fizera desaparecer
a necessidade de tais benefícios. Perderam qualquer coisa, sob o
aspeto monetário, evidentemente, quando abandonaram as casas. Mas
o facto de poderem comprar uma casa duas vezes melhor pelo mesmo
dinheiro, de poderem viver como lhes apetecia, e de poderem
desenvolver as suas propriedades segundo as tradições dos ricaços da
geração anterior — tudo isso tinha para eles um significado maior que
o do abandono dos seus lares. Que temos agora? Alguns quarteirões
de casas comerciais. Alguns hectares de instalações industriais. Um
município organizado para cuidar de um milhão de pessoas mas sem
esse milhão de pessoas. Um orçamento que tornou os impostos tão
altos que até as casas comerciais acabarão por se mudar para outro
lado para fugir a eles. Impostos por pagar que nos deixaram
carregados de propriedades sem valor. É o que temos. Se pensam que
qualquer Câmara de Comércio, qualquer aldrabice de feira, qualquer
artimanha, vos dará a solução, é porque estão doidos. Só há uma
resposta e é simples. A cidade, como instituição humana, morreu.
Poderá ainda estrebuchar durante alguns anos, mas será tudo.
— Mr. Webster...— disse o governador.
Mas Webster não lhe deu atenção e continuou:
— Se não fosse o que aconteceu hoje teria ficado aqui, a brincar
com vocês às casinhas de bonecas. Teria continuado a fingir que a
cidade ainda representava uma preocupação. Brincaria comigo e
convosco. Mas, senhores, há uma coisa que se chama dignidade
humana.
O silêncio glacial foi quebrado pelo remexer dos papéis e pela
tosse abafada de qualquer ouvinte embaraçado.
Mas Webster ainda não acabara.
— A cidade falhou, e ainda bem que isso aconteceu. Em vez de
estarem aqui sentados a velarem o seu corpo desfeito, deviam erguer-
se e agradecer-lhe em voz alta o facto de ter falhado. Porque, se esta
cidade não tivesse deixado de ser útil, como aconteceu com todas as
outras — se as cidades do mundo não houvessem sido abandonadas,
teriam sido destruídas. Teria havido uma guerra, senhores — uma
guerra nuclear. Esqueceram já os anos de 50 e 60? Quando acordavam
de noite, à escuta da bomba que havia de vir, sabendo que não a
ouviriam quando ela viesse e que nada mais ouviriam se ela houvesse
vindo? Mas as cidades foram abandonadas, a indústria dispersou-se,
deixou de haver objetivos e a guerra não surgiu. Alguns dos senhores,
muitos de vós estão hoje vivos porque o povo abandonou a vossa
cidade. Por amor de Deus deixem-na permanecer morta. Alegrem-se
por ela ter morrido. Foi a melhor coisa que até agora aconteceu na
história da humanidade.
John J. Webster rodou sobre os calcanhares e abandonou a sala.
Lá fora, nos largos degraus de pedra, parou e olhou o céu sem
nuvens. Viu os pombos a sobrevoarem as torres e agulhas da Câmara
Municipal.
Sacudiu os pensamentos, como um cão ao sair da água.
Fora um doido, era certo. Agora teria de arranjar emprego e podia
levar tempo a encontrar um. Já estava um pouco velho para andar à
procura dele.
Apesar desses pensamentos, surgiu-lhe nos lábios uma canção.
Afastou-se rapidamente, a assobiar sem se fazer ouvir.
Não haveria mais hipocrisias. Tinham-se acabado as noites em
claro, a pensar no que havia de fazer — sabendo que a cidade
morrera, sabendo que aquilo que fazia de nada valia, sentindo-se
como um canalha por receber o salário que não merecia. E também a
estranha frustração de um trabalhador que sabe que o seu trabalho é
inútil.
Encaminhou-se a passos largos para o parque de estacionamento,
direto ao seu helicóptero.
Agora talvez pudesse ir para o campo, como Betty tanto desejava.
Talvez pudesse passar as tardes calcorreando a terra que fosse sua.
Um lugar com um riacho, para ele o encher com trutas.
Disse a si próprio, que quando chegasse a casa iria ao sótão
verificar o equipamento de voo.
***
Martha Johnson esperava junto ao portão do armazém quando o
velho carro apareceu a resfolegar pela rua abaixo.
Ole saiu do carro, muito direito, a fadiga estampada no rosto.
— Vendeste alguma coisa?— perguntou Martha.
Ole abanou a cabeça.
— É escusado. Não compram nada que seja criado na terra. Riram-
se de mim. Mostraram-me maçarocas duas vezes maiores que as
minhas, tão doces como elas e com os grãos mais alinhados. E melões
quase sem casca. Muito saborosos, segundo disseram.
Deu um pontapé num torrão e este desfez-se em pó.
— Não devemos enganar-nos a nós próprios — afirmou. — A
cultura em tanques arruinou-nos.
— Talvez seja melhor vendermos a quinta3 — sugeriu Martha.
Ole não disse nada.
— Podes arranjar trabalho num tanque. Foi o que fez o Harry e
gosta do trabalho.
Ole abanou a cabeça.
— Ou arranjar um lugar de jardineiro. Darias um excelente
jardineiro. Os ricaços que compraram grandes propriedades gostam
de ter quem lhes trate das flores e outras coisas. É mais elegante do
que trabalhar com máquinas.
Ole voltou a abanar a cabeça.
— Não poderia brincar com flores, depois de semear milho durante
mais de vinte anos.
5 Um guaxinim