Você está na página 1de 273

Cli ord D.

Simak

AS CIDADES
MORTAS
ff
SOBRE O EBOOK
Cli ord D. Simak
AS CIDADES
MORTAS
Este Ebook foi feito para a preservação da memória da ficção
científica e destina-se à pesquisa e aos fãs. Sua venda portanto é
proibida. O texto foi digitalizado em sua integralidade e revisado para
evitar erros de reconhecimento do OCR. Por uma questão de
otimização de recursos e tempo, a grafia antiga não foi adaptada e por
isso o texto mantém todas as características do original, não sendo
portanto atualizado para o novo acordo ortográfico. As linhas em
branco, usadas para separar cenas, ganharam o grafismo “***” para
garantir a separação original criada pelo autor (alguns softwares
eliminam as linhas em branco). Foram incluídas algumas notas
explicativas pontuais, para auxiliar a compreensão de termos muito
específicos e aumentar a imersão de leitura. A ilustração de capa
original foi substituída por outra de uma publicação mais recente.
Uma mini biografia foi criada exclusivamente para esta edição e é
uma surpresa no final do livro. Espero que gostem. Boa leitura.
ff
Clifford D. Simak
As cidades mortas
Título da edição original: “City”
Publicado originalmente em 1977
Capa original: Lima de Freitas

TRADUÇÃO DE EURICO DA FONSECA


.
EDIÇÃO “LIVROS DO BRASIL” LISBOA
COLECÇÃO ARGONAUTA

NÚMERO
117
A Coleção Argonauta, da editora portuguesa Livros do Brasil,
se tornou a mais importante referência em livros de icção
cientí ica a circular em Portugal e no Brasil. Iniciada em 1953,
a coleção publicou muitos dos escritores mais célebres da
FC à época, em um total são 564 livros de bolso.
f
f
INTRODUÇÃO
A presente obra, pela sua forma estranha e pelo seu tema perturbador,
ocupa um lugar à parte na literatura de ficção científica.
É um dos maiores clássicos dessa literatura. O maior de todos,
segundo o inquérito feito pela revista Amazing, em 1956.
Dez anos depois, em novo inquérito, os leitores dessa revista —
agora denominada Analog — voltaram a considerá-la como uma das
dez melhores obras do gênero, em todos os tempos.
E isso compreende-se, porque o drama do Homem — o divórcio
entre o progresso material e a maturidade espiritual — em caso algum
foi estudado tão profundamente e tão longe, quanto às suas
consequências.
Tão longe que a existência do Homem, perdido entre o
conhecimento daquilo que o cercava e o desconhecimento do que
havia dentro de si, já nem sequer era uma lenda, mas sim aquilo que
os cães — seus herdeiros sobre a Terra — consideravam como “um
artifício de narração”.
PREFÁCIO DO EDITOR
Estas histórias são aquelas que os cães contam quando as chamas
das fogueiras sobem alto e a nortada sopra. Então, os círculos
familiares reúnem-se, cada um em torno da sua lareira, e os cachorros
sentam-se em silêncio e escutam. Quando a história chega ao fim
fazem muitas perguntas:
— O que é “homem”?
Ou talvez:
— O que é uma cidade?”
Ou ainda:
— Que é uma guerra?
Não há nenhuma resposta concreta para qualquer destas perguntas.
Há suposições, teorias e muitas hipóteses, mas respostas, não.
Nos círculos familiares, muitos narradores de histórias têm-se visto
forçados a recorrer à antiga explicação de que se trata apenas de uma
“história”, que homens e cidades são coisas que não existem e que
não se deve procurar a verdade num simples conto, mas sim escutá-lo
por prazer e não ir mais além.
Explicações dessa natureza, ainda que possam satisfazer cachorros,
não são propriamente explicações. Há que procurar a verdade, mesmo
em contos como esses.
A lenda, composta de oito contos, vem sendo narrada a inúmeros
séculos. Tanto quanto é possível determinar-se, não tem ponto de
partida histórico. O seu estudo mais minucioso é absolutamente
incapaz de esclarecer a forma porque se desenvolveu. Não há dúvida
de que, de tanto ser contada, se estilizou, mas não há processo que
permita descobrir o sentido em que essa estilização se processou.
A prova de que é muito antiga e de que, como alguns escritores
afirmam, pode em parte ser de origem não canina, resulta da
abundância de algaraviada que surge nos contos — palavras e frases
(e, pior do que tudo, ideias) que não têm significado na actualidade e
talvez nunca o tenham tido. Tantas vezes os contos foram narrados
que essas palavras e frases acabaram por ser aceitas, tendo-lhes sido
atribuído, através do seu contexto, um certo valor arbitrário. No
entanto, é impossível saber se esses valores se aproximam sequer do
significado original das palavras.
Esta edição dos contos não pretende tomar qualquer posição nas
inúmeras discussões de carácter técnico referentes à existência ou não
existência de homem, ou do enigma da cidade, ou das várias teorias
relativas à guerra, ou ainda das muitas outras teorias que surgem para
afligir o estudioso que procura na lenda alguma prova da sua
verdadeira base, essencial ou histórica.
A finalidade desta edição é simplesmente fornecer o texto
completo, sem cortes, dos contos tal como eles hoje são narrados. No
início de cada capítulo são utilizadas notas para frisar os principais
motivos de especulação, mas sem tentar tirar quaisquer conclusões.
Para aqueles que desejarem uma compreensão mais profunda dos
contos ou das muitas dúvidas que se têm levantado sobre eles, há
exaustivos tratados escritos por cães.
A recente descoberta de fragmentos do que parece ter sido um
extenso movimento literário, foi apresentada como o mais moderno
argumento para a atribuição de, pelo menos, uma parte da lenda ao
mitológico (e discutível) “homem”, em detrimento dos cães. Mas, até
que se prove que de facto existiu o homem, poucas bases pode ter o
argumento de que os fragmentos descobertos são da autoria dele.
Particularmente significativo ou perturbador, segundo o ponto de
vista que se adopte, é o facto de o título aparente do fragmento
literário ser o mesmo que o de um dos contos da lenda aqui
apresentada. A palavra, de resto, não tem qualquer significado.
Evidentemente, a pergunta fundamental é se existiu, sequer,
alguma vez um ser como o “homem”. Neste momento, na ausência de
qualquer prova positiva, o raciocínio prudente leva-nos a concluir que
ele não existiu e que o homem, tal como é apresentado na lenda, é um
produto da imaginação popular. O homem pode ter surgido nos
primeiros tempos da cultura canina como um ser imaginário, uma
espécie de deus da raça, a quem os cães podiam pedir auxílio ou
conforto.
Apesar destas conclusões prudentes, há, no entanto, quem veja no
homem um deus verdadeiro, ainda mais antigo, um visitante vindo de
uma terra ou dimensão mística, que chegou, ficou por cá algum
tempo, ajudou-os e depois regressou ao lugar de onde viera.
Há ainda outros que supõem que o homem e o cão cresceram
simultaneamente como dois animais cooperadores e podem ter sido
complementares no desenvolvimento de uma cultura, mas que em
qualquer ponto distante no tempo os seus caminhos se dividiram.
Entre todos os factores perturbadores dos contos (e são muitos) o
mais perturbador é a sugestão da reverência de que o homem era alvo.
E difícil ao leitor vulgar aceitar essa reverência como uma simples
fantasia do narrador. Vai multo além da superficial adoração de um
deus tribal; sente-se instintivamente que está enraizada de uma
maneira profunda nalguma crença ou rito, hoje esquecido, referente à
pré-história da nossa raça.
Na verdade, são poucas as esperanças que actualmente existem de
que venham alguma vez a ser resolvidos quaisquer dos pontos de
controvérsia que têm a lenda por origem.
Aqui estão, pois, os contos para serem lidos com o espírito que
aprouver ao leitor — por simples prazer, em busca de qualquer
pormenor de significado histórico, ou procurando alguma sugestão de
um simbolismo oculto. O nosso melhor conselho para o leitor vulgar é
este: Não os tome demasiado a sério, porque a confusão total, senão a
loucura, o espreita a todo o momento.
NOTAS SOBRE O
PRIMEIRO CONTO
Não há dúvida que, de todos os contos, o primeiro é o mais difícil
para o leitor eventual. Não só a nomenclatura nele empregada é difícil
de compreender, como também a lógica e as ideias parecem, à
primeira leitura, absolutamente alheias. Talvez isso aconteça porque
nesta história não intervém nem sequer é mencionado qualquer cão. A
partir do parágrafo inicial, o leitor vê-se envolvido numa situação
absolutamente estranha, em que agem personagens igualmente
estranhas. Pode dizer-se contudo, em favor do conto, que, uma vez
lido, os outros, em comparação, parecem quase familiares.
O conceito de “cidade” domina todo o conto. Ainda que não haja
uma compreensão absoluta do que uma cidade poderia ou deveria ser,
concorda-se, de uma maneira geral, que deveria ter sido uma pequena
área que abrigava e sustentava um grande número de habitantes.
Algumas das razões para a sua existência são expostas de maneira
muito superficial no texto, mas Bounce1, que dedicou toda a sua vida
ao estudo dos contos, está convencido de que essa explicação não é
mais do que o hábil improviso de um antigo narrador de histórias para
auxiliar a compreensão de um conceito ininteligível. A maior parte
dos estudiosos é da mesma opinião de Bounce quanto ao facto de as
razões, tal como o texto as apresenta, estarem em desacordo com a
lógica, e alguns — Rover, por exemplo— suspeitam que se trata de
uma sátira antiga, cujo significado se perdeu.
Algumas autoridades em economia e sociologia consideram que
uma organização como a de uma cidade é uma estrutura impossível,

1Nome de cão, vulgar nos países anglo-saxônicos. como os dos outros


“historiadores” mencionados — Rover e Tige. (N. do T.)
tanto sob o aspeto econômico como sob o sociológico e psicológico.
Afirmam que nenhum ser com a complexa estrutura nervosa
necessária para poder desenvolver uma cultura conseguiria viver
dentro de uma tão restrita. Concluem essas autoridades que, se tal
fosse tentado, resultaria numa neurose coletiva que num curto espaço
de tempo destruiria a própria cultura que construira a cidade.
Rover é de opinião que no primeiro conto estamos em presença de
mitos quase puros, e que, consequentemente, nenhuma situação ou
afirmação deve ser aceita tal como se apresenta, e que o conto inteiro
deve estar repleto de um simbolismo cuja chave há muito se perdeu.
Todavia, se de facto se tratar de um conceito mítico, e nada mais, é
perturbador que a sua forma ainda não tenha sido enroupada pelos
conceitos simbólicos que caracterizam o mito. Neste conto, pouco há
que o leitor eventual possa classificar como mítico. O conto em si, é
talvez o mais magro do conjunto, seco e compacto, sem nenhum dos
laivos de sentimentalismo puro e de ideais elevados que estão
presentes no resto da lenda.
A linguagem do conto é particularmente confusa. Frases como o
clássico “diabos levem o garoto”, confundiram os semânticos durante
muitos séculos, e até hoje não se conseguiu encontrar significado
melhor, para muitas palavras e expressões, do que o sugerido pelos
estudiosos que deram pela primeira vez à lenda uma atenção séria.
A terminologia do homem pôde, apesar disso, ser bem
determinada. O plural dessa raça mítica é homens; a designação racial
é humana; as fêmeas são mulheres ou esposas (dois termos que
podem ter tido uma sútil diferença de significado, mas que hoje
devem ser considerados como sinônimos); os cachorros são crianças.
Um cachorrinho é um rapaz. Uma cachorrinho, uma rapariga.
Além de cidade, outro conceito que o leitor achará inteiramente
estranho à sua maneira de viver, e que pode até violar a sua própria
forma de pensar, é a ideia de guerra e de matar. “Matar” é um
processo que implica — em geral — o uso de violência, e pelo qual
um ser vivo põe termo à vida de outro ser vivo. “Guerra”, ao que
parece, era um processo de matar em massa, levado a uma escala
inconcebível.
Rover, no seu estudo da lenda, afirma que os contos são muito
mais primitivos do que em geral se supõe, pois é sua convicção que
conceitos como os de guerra e matar nunca poderiam desenvolver-se
na nossa cultura atual, e que, por isso, devem ter tido a sua origem em
qualquer era de selvajaria de que não existe memória alguma.
Tige, que é quase o único a afirmar que os contos têm verdadeiras
bases históricas e que a raça do homem existiu de facto nos dias
primitivos da era canina, sustenta que o primeiro conto é a história
autêntica do começo da ruína da cultura humana. Crê que o conto, tal
como hoje o conhecemos, deve ser uma simples sombra de outro
muito maior, uma epopeia gigantesca que em tempos pode ter sido tão
grande ou mesmo maior que a lenda inteira. Diz de que não parece
provável que um acontecimento tão grande como a queda de uma
gigantesca civilização mecânica possa ter sido condensada em tão
poucas palavras pelos contemporâneos do conto. Acrescenta Tige que
o que temos perante nós é apenas um dos muitos contos que
constituíam a descrição completa, e que pode ser que aquele que
chegou até nós seja um dos de menor importância.
I - A CIDADE

O Avô Stevens estava sentado numa cadeira de jardim, a observar


o trabalho da máquina de cortar relva, e sentia o suave calor do
Sol penetrá-lo até os ossos. A máquina chegou ao extremo do relvado,
cacarejou para si própria como uma galinha contente, deu uma volta
perfeita e pôs-se a rolar noutra carreira. O saco que guardava a relva
cortada estava quase cheio.
De repente o cortador parou, crepitando, excitado. Um braço
mecânico saiu de uma portinhola lateral. Garras de aço
esquadrinharam a relva e surgiram, triunfantes, com uma pedra que
lançaram num pequeno recipiente. O braço desapareceu de novo na
portinhola. O corta-relva gargarejou, rosnou e continuou a sua
carreira.
O Avô olhou para ele, desconfiado, e disse de si para si:
— Qualquer dia esta coisa maldita esquece-se de uma lambidela e
tem um ataque de nervos.
Recostou-se na cadeira e fitou o céu cheio de sol. Um helicóptero
pairava lá muito no alto. Em qualquer parte, dentro de casa, ligaram
um receptor de rádio e uma torturante onda de música inundou tudo.
O Avô, ao ouvi-la, tremeu e afundou-se na cadeira.
O jovem Charlie preparava-se para uma sessão de contorcionismo.
Diabos levassem o garoto!
O cortador de relva passou, como que a rir-se por entre dentes, e o
Avô olhou-o de soslaio, maldosamente.
— Automático!—disse para o céu. — Todas estas malditas coisas
são hoje automáticas. Qualquer dia, agarra-se uma máquina numa
esquina, murmura-se uma ordem ao ouvido, e aí vai ela a correr, fazer
o serviço.
A voz da filha chegou até ele, através da janela, tão aguda que se
sobrepunha à música:
— Pai!
O Avô agitou-se, inquieto.
— Que é Betty?
— Veja se se levanta quando o cortador de relva se aproximar de
si. Não queira ser mais teimoso do que ele. Bem sabe que é apenas
uma máquina. Da última vez deixou-se ficar aí e obrigou-o a cortar a
relva à sua volta. Não quer nunca dar-se por vencido.
Não respondeu. Deixou que a cabeça pendesse um pouco sobre o
peito, na esperança de que a filha o julgasse adormecido e o deixasse
em paz.
— Pai! — guinchou ela. — Ouve-me?
Ele viu que nada ganhava em insistir e disse-lhe:
— Sim, ouvi-te. Já estava a preparar-me para sair daqui.
Ergueu-se com lentidão, apoiando-se pesadamente na bengala.
Assim ela se arrependeria da maneira como o tratava, ao vê-lo tão
velho e alquebrado. Tinha de ter cuidado. Se ela soubesse que ele não
precisava da bengala para nada, começaria a procurar trabalhos para
lhe dar, e, por outro lado, se se apoiasse com demasiada força, ela iria
chamar aquele médico maluco, para o incomodar mais uma vez.
Resmungando, levou a cadeira para um sítio em que a relva já fora
cortada. O corta-relva, ao passar por ele, rosnou, em tom de desafio.
— Qualquer dia — disse o Avô — dou-te uma bengalada e parto-te
uma roda ou duas.
O cortador apitou para ele e continuou a percorrer a relva, com
toda a serenidade.
Da rua cheia de ervas veio um ruído de metais a baterem e uma
tosse espasmódica.
O Avô, já pronto a sentar-se, ergueu-se e escutou.
O som tornou-se mais nítido, o rumor das explosões de um motor
que falhava, um chocalhar de peças metálicas desapertadas.
— Um automóvel! — berrou o Avô. — Um automóvel, com mil
diabos!
Começou a correr para o portão, mas de repente lembrou-se de que
tinha de parecer alquebrado e passou a coxear, apressadamente.
— Deve ser o maluco do Ole Johnson. É o único que ainda tem um
carro. Diabos o levem, é demasiado teimoso para o pôr de parte.
Era de facto o Ole.
O Avô chegou ao portão a tempo de ver a velha, ferrugenta e
desconjuntada máquina surgir na esquina, aos solavancos, balouçando
e resfolegando através da rua abandonada. O vapor assobiava, ao sair
do radiador sobreaquecido, e uma nuvem de fumo azul surgia do
escape, sem silencioso há cinco anos ou mais.
Ole mantinha-se impassível ao volante, olhando de esguelha,
tentando evitar as partes piores do caminho, ainda que isso fosse
difícil porque as ervas e a relva haviam invadido as ruas e era difícil
ver o que se encontrava debaixo delas.
O Avô acenou com a bengala.
— Eh, Ole! — gritou:
Ole puxou o travão de mão. O carro engasgou-se, tossiu e morreu
com um suspiro horrível.
— Que combustível gastas ? — perguntou o Avô.
— Um pouco de tudo — respondeu Ole. — Petróleo de
iluminação, algum óleo de trator que encontrei num bidão, um pouco
de álcool canforado.
O Avô examinou a máquina com verdadeira admiração.
— Bons tempos aqueles — disse. — Eu tinha um que era capaz de
“dar” cento e sessenta por hora.
— Ainda é possível — respondeu Ole—, desde que se consiga
arranjar “gasosa” para andarem e peças para as reparações. Até há três
ou quatro anos ainda conseguia arranjar gasolina suficiente, mas
deixei de a ver há muito tempo. Creio que já não a produzem.
Disseram-me que não havia uso algum para a gasolina, uma vez que
temos energia nuclear.
— Sem dúvida — disse o Avô. — Talvez isso seja verdade, mas a
energia nuclear não é coisa que se cheire. A coisa mais agradável que
conheço é o cheiro da gasolina queimada. Os helicópteros e as outras
engenhocas que eles arranjaram tiraram de uma maneira ou de outra
todo o romantismo às nossas deslocações.
Olhou de esguelha para os barris e cestos amontoados sobre o
assento traseiro.
— Arranjaste hortaliça? — perguntou.
— Sim. Algum milho doce, batatas novas e uns cestos de tomates.
Pensei em vendê-los.
O Avô abanou a cabeça.
— Não o conseguirás, Ole. Ninguém os comprará; toda a gente
está convencida de que os novos produtos hidropônicos são as únicas
hortaliças que se podem comer. Dizem que são mais higiênicos e têm
melhor sabor.
— Não daria a ponta de um chavelho em troca de tudo quanto eles
produzem nesses tanques — afirmou Ole, agressivamente. — Há
qualquer coisa neles que não me sabe bem. Como digo à Marta, a
comida, para ter sabor, tem de sair do chão.
Inclinou-se para ligar a ignição.
— Não sei se valerá a pena levar isto à cidade, da maneira como
eles tratam das estradas — ou melhor, como não tratam delas. Há
vinte anos, a estrada estadual tinha uma boa faixa de betão e eles
reparavam-na e limpavam-na da neve todos os invernos. Faziam tudo,
gastavam todo o dinheiro que fosse preciso para a manterem aberta.
Agora, abandonaram-na. O betão está todo quebrado e já desapareceu
em parte. Os espinheiros crescem nele. Esta manhã tive de cortar aos
pedaços uma arvore que caíra e se atravessara no caminho.
— É a pura verdade — concordou o Avô.
O carro explodiu, tossiu, sufocou-se e por fim trabalhou. Uma
nuvem de denso fumo azul saiu debaixo dele. Com um estremeção
começou a mover-se e seguiu aos solavancos pela lua abaixo.
O Avô voltou para a cadeira, a coxear, e encontrou-a toda molhada.
O cortador automático, depois de ter aparado a relva, desenrolara a
mangueira e começara a operação de rega.
Resmungando venenosamente, esgueirou-se pela esquina e sentou-
se no banco ao lado do alpendre dos fundos. Não gostava de se sentar
ali, mas era o único lugar em que se sentia a salvo da engenhoca que
estava a trabalhar na frente da casa.
De certa maneira, a paisagem que se via do banco era um pouco
desoladora, uma vez que se compunha de ruas e ruas de casas desertas
e abandonadas e jardins descuidados, debaixo de ervas.
Tinha, no entanto, uma vantagem: ali, podia fingir que era
ligeiramente surdo e não ouvir aquela música danada que o rádio
estava a berrar.
Uma voz fez-se ouvir, vinda do jardim:
— Bill! Bill, onde estás?
O Avô voltou-se.
— Estou aqui, Mark. Nos fundos. Escondido desse maldito
cortador de relva.
Mark Bailey apareceu a coxear na esquina, com o cigarro quase a
pegar fogo aos bigodes.
— Ainda é um pouco cedo para o jogo, não é ? — perguntou o
Avô.
— Hoje não posso jogar — respondeu Mark.
Continuou a coxear até sentar-se no banco, ao lado do Avô.
— Vamo-nos embora — disse.
O Avô virou-se para ele, de um salto.
— Vais-te embora ?
— Sim. Vamos para o campo. Lucy conseguiu finalmente
convencer o Herb. Creio que não o deixou um minuto em paz. Dizia a
toda a gente que ia abalar para uma daquelas bonitas propriedades da
província e que não via razão alguma para que não fôssemos.
O Avô engoliu em seco.
— Para onde vão ?
— Não sei bem — disse Mark. — Nunca lá estive. É lá para o
Norte, junto a um dos lagos. Arranjamos dez hectares. Lucy queria
cem, mas Herb bateu com o pé no chão e disse que dez chegavam. No
fim de tudo, o pedacinho que tínhamos na cidade bastou-nos todos
estes anos.
— A Betty também está a tentar convencer, o John — disse o Avô
—, mas ele não se mostra disposto a isso. Limita-se a dizer que não
pode ir, que não parece bem que ele, secretário da Câmara de
Comércio e outras coisas, abandone a cidade.
— Está tudo doido — afirmou Mark. — Têm a loucura; no sangue.
— É verdade — concordou o Avô. — O que eles têm no sangue é o
campo. Olha para ali. — Apontou para as ruas ladeadas de casas
vazias. — Ainda me recordo de quando estes sítios eram lindos. Os
vizinhos eram bons. As mulheres corriam de porta em porta a trocar
receitas. E os homens saíam para cortar a relva. Não tardava multo
que os cortadores fossem todos postos para o lado e que os homens se
juntassem, para darem um pouco à língua. Gente amiga, Mark. E
agora é o que vês.
Mark agitou-se, inquieto.
— Tenho de voltar, Bill. Vim aqui num salto, só para te dizer que
íamos “cavar”. A Lucy mandou-me fazer as malas e ficará furiosa se
souber que fugi.
O Avô ergueu-se, muito direito, e estendeu-lhe a mão.
— Ainda te voltarei a ver? Para um último jogo?
Mark abanou a cabeça.
— Receio que não, Bill.
Apertaram as mãos um ao outro desajeitadamente, constrangidos.
— Tenho a certeza de que vou ter saudades dos nossos jogos —
disse Mark.
— Eu também — respondeu o Avô. — Não terei mais ninguém,
depois de te ires embora.
— Adeus, Bill — disse Mark.
— Adeus — disse o Avô.
Ficou de pé a ver o amigo dobrar a esquina, a coxear, e então
sentiu a garra gelada da solidão estender-se e tocá-lo com os seus
dedos frios. Uma solidão terrível. A solidão da idade — da idade e do
saber-se ultrapassado. Furioso, o Avô confessou-o a si próprio. Fora
ultrapassado. Pertencia a outra era. Vivera de mais, fora além do seu
tempo.
Com os olhos húmidos, procurou a bengala que encostara ao banco
e encaminhou-se devagar para a cancela empenada que dava para a
rua deserta, nas traseiras da casa.
Os anos tinham corrido depressa demais. Anos que haviam trazido
o avião e o helicóptero da família, deixando o automóvel encher-se de
ferrugem num canto qualquer e as estradas abandonadas, desfazendo-
se por falta de reparações. Anos que tinham acabado praticamente
com a lavoura, através do desenvolvimento de culturas hidropônicas.
Que tinham trazido terrenos baratos, em consequência de as
propriedades agrícolas terem deixado de ser unidades econômicas;
que haviam lançado a gente da cidade numa corrida para o campo,
onde cada homem, por preço muito inferior ao de um talhão citadino2,
podia ser senhor de grandes extensões de terreno. Anos que tinham
revolucionado a tal ponto a construção das casas que as famílias
abandonavam as suas antigas moradias para habitar outras que
podiam ser adquiridas, com as características exigidas por
encomenda, por menos de metade do preço das paredes de uma de
antes da guerra, e que podiam ser alteradas por pouco dinheiro, para
satisfazer as necessidades de mais espaço ou simplesmente um
capricho passageiro.
O Avô fungou. Casas que podiam ser alteradas todos os anos, tal
como quem muda os móveis de lugar. Que espécie de vida era
aquela?
Começou a caminhar, devagar e a custo, pelo caminho poeirento
que era tudo quanto restava do que poucos anos antes fora uma
movimentada rua residencial. Uma rua de fantasmas — disse o Avô a
si próprio. De fantasmas furtivos, pequenos, que murmuravam na
noite. Fantasmas de crianças a brincar, de triciclos voltados, de
carrinhos tombados. De linguareiras donas de casa. De saudações
gritadas. De lareiras acesas e de chaminés fumegando numa noite de
Inverno.
Nuvenzinhas de pó levantavam-se em volta dos seus pés e
embranqueciam-lhe as dobras das calças.
Lá estava a casa do velho Adams, do outro lado da rua. Recordava-
se de que ele tivera muito orgulho nela. Unia frontaria de pedra
cinzenta e largas janelas. Agora a pedra tornara-se verde com o musgo
que tudo cobria e as vidraças quebradas escancaravam-se de uma
maneira horrível e obscena. As ervas afogavam a relva e escondiam a
varanda. Um ulmeiro lançava os ramos contra a empena. O Avô ainda
se recordava do dia em que Adams o plantara.

2Talhão é a porção de terreno que se separa do todo para ser uma área
cultivada. Talhão citadino seria uma área de plantio dentro da cidade.
Parou por um momento naquela rua cheia de erva, os pés na
poeira, as mãos agarradas no castão da bengala. os olhos fechados.
Através do nevoeiro dos anos, ouvia os gritos das crianças que
brincavam, o cão de Conrad a ladrar ao fundo da rua. E lá estava o
Adams, nu da cintura para cima, manejando a pá, a abrir a cova, com
o ulmeiro, as raízes embrulhadas em serapilheira, deitado sobre a
relva.
Maio de 1946. Há quarenta e quatro anos. Exatamente depois de
ele e o Adams terem regressado juntos da guerra.
Passos surdos soaram sobre a poeira e o Avô, surpreendido, abriu
os olhos.
Na sua frente estava um jovem. Um homem de trinta anos, talvez.
Ou mesmo menos.
— Bom dia — disse o Avô.
— Espero não o ter assustado — disse o jovem.
— Viu-me aqui parado, com os olhos fechados, como um parvo,
não foi?
O jovem fez um movimento afirmativo com a cabeça.
— Estava a relembrar os velhos tempos — disse o Avô.
— Vive nestes sítios?
— No fundo da rua. Sou o último, nesta parte da cidade.
— Talvez possa ajudar-me.
— Vamos a ver.
O jovem gaguejou.
— Bem... compreende... é assim. Estou a fazer uma espécie de...
bem, pode chamar-lhe uma peregrinação sentimental...
— Compreendo — disse o Avô. — Também eu.
— Chamo-me Adams — disse o jovem. — O meu avô vivia aqui,
em qualquer parte. Gostaria de saber...
— Era mesmo ali.
Ficaram ambos a olhar para a casa.
— Era uma bela moradia. O seu avozinho plantou aquela árvore
quando voltou da guerra. Estive lá sempre com ele e voltámos juntos
para casa. Se você visse... que grande dia esse!
— Tenho pena — disse o jovem Adams. —Tenho pena...
Mas o Avô não o ouvia.
— O seu avozinho? — perguntou. — Creio que nunca mais soube
dele.
— Morreu. Há um bom par de anos.
— Andava metido na energia nuclear — disse o Avô.
— E verdade — disse Adams com orgulho. — Meteu-se nela assim
que autorizaram que a indústria a usasse. Logo depois do acordo de
Moscou.
— Logo depois de terem chegado à conclusão de que não
poderiam fazer mais guerras.
— Isso mesmo.
— E muito difícil fazer uma guerra quando não existem alvos.
— Fala das cidades?
— Claro — disse o Avô — e isso tem a sua piada. Apontem-lhes
todas as bombas atômicas que quiserem e não conseguirão assustá-
los. Mas dêem-lhes terrenos baratos e um avião familiar e eles fugirão
cada qual para seu lado, como outros tantos coelhos malucos.
***
John J. Webster subiu os largos degraus de pedra da Câmara
Municipal quando o espantalho ambulante que trazia uma carabina
debaixo do braço o alcançou e fez parar.
— Olá, Mr. Webster!
Webster fitou-o, surpreendido, e reconheceu-o de súbito.
— E o Levi! Como é que isso vai?
Levi Lewis sorriu-se, mostrando os dentes salientes.
— Menos mal. Os jardins vão crescendo e os coelhinhos começam
a dar uns belos petiscos.
— Não andas metido nessas patifarias que fazem para aí nas casas?
— Não, senhor. Somos vagabundos mas não cometemos delitos.
Respeitamos a Lei. Tememos a Deus. Estamos aqui porque não
conseguimos viver noutro lado. E viver nos sítios que os outros
abandonaram não faz mal a ninguém. A Policia anda para aí a dizer
que roubamos e somos responsáveis por outras coisas que para aí se
fazem, porque sabe que não nos podemos defender. Querem fazer de
nós os bodes expiatórios...
— Estou satisfeito por ouvir isso. O chefe quer queimar as casas.
— Se ele pensar nisso, vai ter uma bela surpresa. Correram-nos das
nossas propriedades com os seus tanques de cultura, mas não irão
mais além.
Cuspiu nos degraus.
— Não tem aí por acaso alguns trocos? Estou sem cartuchos e com
os coelhos a aparecerem...
Webster meteu os dedos no bolso do colete e tirou uma moeda de
meio dólar.
Levi sorriu-se.
— É muito bondoso, Mr. Webster. No Outono hei de trazer-lhe uns
esquilos.
O vagabundo levou dois dedos à aba do chapéu e desceu as
escadas. O cano da arma brilhava ao sol. Webster continuou a subir.
A reunião do Conselho Municipal já estava em pleno curso quando
ele entrou na sala.
Jim Maxwell, o chefe da Polícia, estava sentado à mesa, e o
presidente, Paul Cárter, falava.
— Não pensa que está a agir precipitadamente ao insistir numa
decisão quanto às casas?
— Não, não estou — declarou o chefe. — Exceto umas duas
dúzias, pouco mais ou menos, nenhuma dessas casas está ocupada
pelos seus verdadeiros donos, ou melhor, pelos proprietários originais.
Todas elas pertencem à cidade, por falta de pagamento dos impostos.
Têm um aspecto desagradável e são um perigo. Não possuem valor
algum. Nem mesmo pelos materiais. Madeira? Já não a usamos. Os
plásticos são melhores. Pedra? Usamos aço em vez de pedra.
Nenhuma dessas casas tem qualquer material com valor comerciável.
E, entretanto, transformaram-se em valhacouto de delinquentes e
elementos indesejáveis. Cobertas de ervas, como estão as áreas
residenciais, tornaram-se num esconderijo perfeito para toda a espécie
de criminosos. Um homem comete um crime e refugia-se nas casas.
Uma vez ali, está a salvo, porque nem que eu mandasse para lá mil
homens o poderia apanhar.
Nem valem sequer a despesa da demolição. E se não são uma
ameaça, são pelo menos um incômodo. Temos de livrar-nos delas e o
fogo é o processo mais rápido mais barato. Tomaremos todas as
precauções.
— Será isso legal ? — perguntou o presidente.
— Também tratei disso. Qualquer pessoa tem o direito de destruir
uma propriedade sua da maneira que lhe pareça mais conveniente,
desde que não ponha outros em perigo. Creio que a mesma lei pode
aplicar-se a um município.
O vereador Thomas Griffin pôs-se de pé num salto.
— Você irá espoliar uma porção de gente. Queimará muitos velhos
lares. Ainda há gente que continua ligada a eles, por laços
sentimentais...
— Se se importassem com as casas pagariam os impostos e
cuidariam delas. Por que razão as abandonaram e fugiram para o
campo? Pergunte ao Webster. Ele pode dizer-lhe o sucesso que tem
obtido ao tentar interessar essa gente nos lares dos seus antepassados.
— Está a falar nessa farsa da Semana do Velho Lar?— disse
Griffin. — Falhou. Tinha de falhar. Webster tornou tudo tão denso que
sufocou toda a gente. É o que faz sempre a mentalidade da Câmara de
Comércio.
O vereador Forrest King ergueu-se e gritou, furioso:
— Não há nada de errado na maneira de proceder da Câmara de
Comércio, Griffin. Lá porque você falhou no negócio, não há razão...
Griffin ignorou a interrupção.
— Os dias de festa já desapareceram. Para sempre. As aldrabices
de feira estão mortas e enterradas. Os tempos em que se podia ter dias
do milho-rei ou do dólar, ou inventar qualquer outra comemoração e
enfeitar o sítio com bandeiras para atrair multidões prontas a largar o
dinheirinho, já lá vão há muitos anos. Só vocês é que parecem não ter
dado por isso.
O sucesso dessas habilidades era devido ao facto de agradarem à
psicologia das multidões e à lealdade cívica. Não se pode exigir
lealdade cívica a uma cidade que morre de pé. Não se pode contar
com a psicologia das multidões quando não há multidões, quando
todos ou quase todos os homens têm ao seu dispor uma solidão de
quatro hectares.
— Senhores — implorou o presidente. — Senhores, isso está
absolutamente fora da ordem do dia.
King explodiu e quase virou a mesa.
— Não! Vamos esclarecer tudo. Está aqui o Webster e talvez posa
dizer-nos o que pensa do assunto.
Webster agitou-se, pouco à vontade, e disse:
— Duvido que tenha alguma coisa de interesse a dizer.
— Paciência — retorquiu Griffin. E sentou-se.
Mas King manteve-se de pé, o rosto vermelho, a boca a tremer de
cólera.
— Webster! — gritou.
Webster abanou a cabeça. King voltou a gritar:
— Você veio aqui com uma das suas grandes ideias. Vai apresentá-
la perante o Conselho. Levante-se, homem, e diga o que tem a dizer!
Webster ergueu-se devagar, com os lábios torcidos num sorriso
amargo.
— Talvez você tenha a cabeça muito dura para saber que a maneira
como procedeu me magoou.
King engasgou-se e depois explodiu:
— Cabeça dura! Diz isso a mim! Trabalhamos juntos e eu ajudei-o!
Nunca me chamou disso... seu...
— Nunca lhe chamei disso, é verdade — disse Webster, sempre
calmo. — Era natural. Não queria perder o meu emprego.
— Bem! Já não tem emprego! — rugiu King. — A partir deste
momento deixou de o ter.
— Cale-se! — ordenou Webster.
King fitou-o, espantado, como se alguém lhe houvesse dado uma
bofetada.
— E sente-se! — acrescentou Webster, a sua voz a rasgar a sala
como uma faca afiada.
Os joelhos de King dobraram-se e fizeram-no sentar de repente. O
silêncio era explosivo.
— Tenho uma coisa a dizer — explicou Webster. — Qualquer
coisa que devia ter dito há muito e que vocês devem ouvir. Só o que
me surpreende é que seja eu que tenha de a dizer. E no entanto, como
defendo os interesses da cidade há quinze anos, é lógico que seja eu a
dizer-vos as verdades.
O vereador Griffin disse que a cidade está moribunda e é assim
mesmo. Mas há uma coisa em que ele falhou e essa foi ter ficado
aquém da verdade. A cidade... esta cidade... todas as cidades... já estão
mortas.
A cidade é um anacronismo. Ultrapassou a época em que era útil.
Os produtos hidropônicos e os helicópteros ditaram o seu fim. A
princípio a cidade era um lugar tribal, uma área em que a tribo se
juntava para conseguir uma proteção mútua. Depois puseram-lhe uma
muralha à volta, para que a proteção fosse mais eficaz. Por fim a
muralha desapareceu, mas a cidade sobreviveu por causa das
vantagens que oferecia aos negócios e ao comércio. E continuou a
existir nos tempos modernos porque toda a gente era obrigada a viver
junto dos empregos e estes estavam na cidade.
Mas hoje isso já não acontece. Com o avião familiar, cem
quilômetros são uma distância mais curta do que eram cinco
quilômetros em 1930. Os homens podem voar centenas de
quilômetros até ao emprego e voltar para casa pelo mesmo processo
ao fim do dia. Já não necessitam de viver encarcerados numa cidade.
O automóvel iniciou a derrocada e o avião familiar consumou-a.
No princípio do século já isso era evidente — havia uma tendência
para que as pessoas se afastassem da cidade, com os seus impostos e a
sua atmosfera sufocante, uma fuga para os arredores e para os campos
próximos. A falta de transportes adequados e de dinheiro impedia
muita gente de seguir esse caminho. Mas agora, com as culturas em
tanques a destruir o valor das terras, um homem pode comprar uma
grande propriedade no campo por menos do que lhe custaria um
terreno na cidade, há quarenta anos. Com os aviões movidos por
energia nuclear já não há problemas de transportes.
Fez uma pausa e o silêncio manteve-se. O presidente parecia
estupefato. Os lábios de King moveram-se, mas deles não saiu
palavra. Griffin sorria-se.
— Que temos agora?— perguntou Webster. — Vou dizer-vos. Ruas
e ruas, quarteirões e quarteirões de casas desertas, casas que os
habitantes abandonaram, pura e simplesmente. Porque haviam de
ficar? Que vantagens lhes oferecia a cidade? Nenhuma das que
oferecera às gerações passadas, porque o progresso fizera desaparecer
a necessidade de tais benefícios. Perderam qualquer coisa, sob o
aspeto monetário, evidentemente, quando abandonaram as casas. Mas
o facto de poderem comprar uma casa duas vezes melhor pelo mesmo
dinheiro, de poderem viver como lhes apetecia, e de poderem
desenvolver as suas propriedades segundo as tradições dos ricaços da
geração anterior — tudo isso tinha para eles um significado maior que
o do abandono dos seus lares. Que temos agora? Alguns quarteirões
de casas comerciais. Alguns hectares de instalações industriais. Um
município organizado para cuidar de um milhão de pessoas mas sem
esse milhão de pessoas. Um orçamento que tornou os impostos tão
altos que até as casas comerciais acabarão por se mudar para outro
lado para fugir a eles. Impostos por pagar que nos deixaram
carregados de propriedades sem valor. É o que temos. Se pensam que
qualquer Câmara de Comércio, qualquer aldrabice de feira, qualquer
artimanha, vos dará a solução, é porque estão doidos. Só há uma
resposta e é simples. A cidade, como instituição humana, morreu.
Poderá ainda estrebuchar durante alguns anos, mas será tudo.
— Mr. Webster...— disse o governador.
Mas Webster não lhe deu atenção e continuou:
— Se não fosse o que aconteceu hoje teria ficado aqui, a brincar
com vocês às casinhas de bonecas. Teria continuado a fingir que a
cidade ainda representava uma preocupação. Brincaria comigo e
convosco. Mas, senhores, há uma coisa que se chama dignidade
humana.
O silêncio glacial foi quebrado pelo remexer dos papéis e pela
tosse abafada de qualquer ouvinte embaraçado.
Mas Webster ainda não acabara.
— A cidade falhou, e ainda bem que isso aconteceu. Em vez de
estarem aqui sentados a velarem o seu corpo desfeito, deviam erguer-
se e agradecer-lhe em voz alta o facto de ter falhado. Porque, se esta
cidade não tivesse deixado de ser útil, como aconteceu com todas as
outras — se as cidades do mundo não houvessem sido abandonadas,
teriam sido destruídas. Teria havido uma guerra, senhores — uma
guerra nuclear. Esqueceram já os anos de 50 e 60? Quando acordavam
de noite, à escuta da bomba que havia de vir, sabendo que não a
ouviriam quando ela viesse e que nada mais ouviriam se ela houvesse
vindo? Mas as cidades foram abandonadas, a indústria dispersou-se,
deixou de haver objetivos e a guerra não surgiu. Alguns dos senhores,
muitos de vós estão hoje vivos porque o povo abandonou a vossa
cidade. Por amor de Deus deixem-na permanecer morta. Alegrem-se
por ela ter morrido. Foi a melhor coisa que até agora aconteceu na
história da humanidade.
John J. Webster rodou sobre os calcanhares e abandonou a sala.
Lá fora, nos largos degraus de pedra, parou e olhou o céu sem
nuvens. Viu os pombos a sobrevoarem as torres e agulhas da Câmara
Municipal.
Sacudiu os pensamentos, como um cão ao sair da água.
Fora um doido, era certo. Agora teria de arranjar emprego e podia
levar tempo a encontrar um. Já estava um pouco velho para andar à
procura dele.
Apesar desses pensamentos, surgiu-lhe nos lábios uma canção.
Afastou-se rapidamente, a assobiar sem se fazer ouvir.
Não haveria mais hipocrisias. Tinham-se acabado as noites em
claro, a pensar no que havia de fazer — sabendo que a cidade
morrera, sabendo que aquilo que fazia de nada valia, sentindo-se
como um canalha por receber o salário que não merecia. E também a
estranha frustração de um trabalhador que sabe que o seu trabalho é
inútil.
Encaminhou-se a passos largos para o parque de estacionamento,
direto ao seu helicóptero.
Agora talvez pudesse ir para o campo, como Betty tanto desejava.
Talvez pudesse passar as tardes calcorreando a terra que fosse sua.
Um lugar com um riacho, para ele o encher com trutas.
Disse a si próprio, que quando chegasse a casa iria ao sótão
verificar o equipamento de voo.
***
Martha Johnson esperava junto ao portão do armazém quando o
velho carro apareceu a resfolegar pela rua abaixo.
Ole saiu do carro, muito direito, a fadiga estampada no rosto.
— Vendeste alguma coisa?— perguntou Martha.
Ole abanou a cabeça.
— É escusado. Não compram nada que seja criado na terra. Riram-
se de mim. Mostraram-me maçarocas duas vezes maiores que as
minhas, tão doces como elas e com os grãos mais alinhados. E melões
quase sem casca. Muito saborosos, segundo disseram.
Deu um pontapé num torrão e este desfez-se em pó.
— Não devemos enganar-nos a nós próprios — afirmou. — A
cultura em tanques arruinou-nos.
— Talvez seja melhor vendermos a quinta3 — sugeriu Martha.
Ole não disse nada.
— Podes arranjar trabalho num tanque. Foi o que fez o Harry e
gosta do trabalho.
Ole abanou a cabeça.
— Ou arranjar um lugar de jardineiro. Darias um excelente
jardineiro. Os ricaços que compraram grandes propriedades gostam
de ter quem lhes trate das flores e outras coisas. É mais elegante do
que trabalhar com máquinas.
Ole voltou a abanar a cabeça.
— Não poderia brincar com flores, depois de semear milho durante
mais de vinte anos.

3 Quinta é uma pequena propriedade rural, com moradia.


— Talvez pudéssemos arranjar um daqueles aviõezinhos — disse
Martha.— E água encanada. E uma banheira, em vez de tomarmos
banho numa selha, ao pé da lareira.
— Não seria capaz de pilotar um avião.
— Tenho a certeza de que serias. São simples de manejar. Olha que
os miúdos do Anderson ainda não nos chegam aos joelhos e já os
sabem pilotar perfeitamente. Um deles andou para aí a fazer
disparates e caiu, mas...
— Vou pensar nisso — respondeu Ole, desesperado. — Tenho de
pensar.
Afastou-se, saltou a cerca e encaminhou-se para os campos.
Martha ficou junto do carro e viu-o afastar-se. Uma lágrima solitária
rolou-lhe pela face coberta de pó.
***
— Mr. Taylor espera-o — disse a rapariga.
John J. Webster gaguejou.
— Mas eu... nunca estive aqui. Ele não sabia que eu vinha.
— Mr. Taylor espera-o — insistiu a rapariga, virando a cabeça em
direção à porta, onde se lia:
DEPARTAMENTO DE READAPTAÇÃO
— Mas eu vim aqui para procurar emprego e não para ser
readaptado, nem coisa que se pareça — protestou Webster. — Isto
aqui não é o serviço de colocações da Comissão Mundial?
— É — confirmou a rapariga. — Não quer falar a Mr. Taylor ?
— Uma vez que insiste... — disse Webster.
A rapariga carregou num botão e disse ao intercomunicador:
— Mr. Webster está aqui.
— Mande-o entrar — disse uma voz.
De chapéu na mão, Webster atravessou a porta.
O homem sentado atrás da secretária tinha os cabelos brancos, mas
o seu rosto era o de um jovem. Apontou-lhe uma cadeira e disse:
— Tem andado à procura de emprego ?
— Sim, mas...
— Sente-se, por favor. Se está a pensar na tabuleta da porta,
esqueça-a. Não vamos tentar proceder à sua readaptação.
— Não consigo arranjar trabalho. Há semanas que tento tudo, mas
ninguém me quer. Portanto, e por fim, vim aqui.
— Não queria vir?
— Francamente, não. Um serviço de colocações é uma coisa...
Bem, tem uma implicação da qual não gosto.
Taylor sorriu-se.
— A terminologia talvez seja infeliz. Está a pensar nas agências de
empregos dos velhos tempos. Os lugares onde os homens iam quando
se sentiam desesperados perante o desemprego. Os serviços que o
Governo mantinha para encontrar trabalho para os homens, a fim de
que eles não se tornassem em encargos públicos.
— Desesperado estou eu, e bastante — confessou Webster.— Mas
ainda possuo algum orgulho e foi ele que tornou difícil a minha vinda
aqui. Mas por fim não havia mais nada a fazer. Compreende, tornei-
me num traidor...
— Quer dizer que pôs a verdade acima de tudo. Acima do seu
próprio emprego. O mundo dos negócios, não só aqui mas em toda a
parte, ainda não está preparado para essa verdade. O homem de
negócios ainda se agarra ao mito da cidade, ao mito da arte de vender.
Tempos virão em que ele reconhecerá que não precisa da cidade, que
os valores e os serviços honestos lhe trarão lucros mais substanciais
do que a arte de vender alguma vez lhe deu. Pergunto a mim próprio,
Webster, o que foi que o levou-a fazer o que fez ?
— Estava enjoado com tudo aquilo — disse Webster.— Enjoado de
ver homens com os olhos fechados, a fazer asneiras. De ver como
uma velha tradição continuava a ser cultivada, quando devia ser
abandonada. Do pretensioso entusiasmo cívico de King, quando todos
os motivos de entusiasmo deixaram de existir.
Taylor anuiu com um movimento da cabeça.
— Webster, você pensa que pode readaptar seres humanos?
Webster limitou-se a fitá-lo.
— Falo a sério — disse Taylor. — A Comissão Mundial vem a
fazê-lo há anos, calma e subtilmente. Muitas das pessoas que foram
readaptadas nem sequer sabem que o foram.
As mudanças que surgiram desde que a Comissão Mundial nasceu
das antigas Nações Unidas e tiveram como consequência a
inadaptação de muita gente. O aparecimento da energia atômica
comercial conduziu ao desemprego de centenas de milhares de
pessoas, que tiveram de ser instruídas e orientadas para novas
especialidades, algumas delas relacionadas com as próprias ciências
nucleares, e outras não. O aparecimento das culturas estanques
afastou os lavradores das suas terras. Foram eles, talvez, o nosso
maior problema, pois que, além dos conhecimentos necessários para
cultivar o terreno e criar animais, não tinham especialização alguma.
E a maior parte deles nem sequer desejava vir a tê-la. Sentiam uma
grande amargura por haverem sido forçados a abandonar o modo de
vida que tinham herdado dos seus antepassados. E sendo
individualistas por natureza, constituíram para nós um problema
psicológico pior que o de qualquer outra classe.
— Muitos deles — confirmou Webster — ainda andam por aí à
vontade. Cerca de cem estão instalados nas casas, vivendo do que
apanham. Caçam coelhos e esquilos, pescam um pouco, plantam
hortaliças e apanham frutos silvestres. Roubam o que podem e de vez
em quando pedem esmola na cidade alta.
— Conhece essa gente ? — perguntou Taylor.
— Alguns deles — disse Webster. — Um deles traz-me coelhos e
esquilos de vez em quando. Em troca, pede-me dinheiro para
munições.
— Opor-se-iam a ser reajustados, não é assim?
— Sem dúvida. E violentamente.
— Conhece um lavrador chamado Ole Johnson? Ainda agarrado à
sua quinta, por reconstruir?
Webster disse com a cabeça que sim.
— E se você tentasse convencê-lo a reajustar-se?
— Correr-me-ia da quinta.
— Os homens como Ole e os vagabundos são os nossos principais
problemas, na atualidade. A maior parte do mundo já está reajustada,
muito bem instalada no presente. Alguns deles ainda lamentam o
passado, mas é só para fazer ver. Ninguém os convenceria a voltar às
antigas maneiras de viver.
Anos atrás, quando o advento da energia nuclear industrial se
tornou um facto, a Comissão Mundial teve de tomar uma grave
decisão. Deviam as mudanças que significavam progresso para o
mundo ser introduzidas gradualmente, para que as pessoas se
adaptassem a elas de uma maneira natural, ou deveriam ser realizadas
o mais rapidamente possível, com a Comissão a auxiliar a necessária
readaptação? Mal ou bem, resolveu-se que o progresso viria primeiro,
quaisquer que fossem os seus efeitos sobre as pessoas. No fim, viu-se
que essa decisão fora acertada.
Sabemos, de resto, que em muitas circunstâncias a readaptação não
pode ser feita absolutamente às claras. Em certos casos, como, por
exemplo, em grandes grupos de trabalhadores deslocados, isso foi
possível, mas na maior parte dos casos individuais, como o do nosso
amigo Ole, já não o é. É preciso ajudar essa gente a encontrarem-se a
si próprios neste mundo novo, mas não devem saber que a ajudamos.
Se o soubessem, a sua confiança em si próprios e a sua dignidade
seriam destruídas, e a dignidade humana é a base de toda a
civilização.
— Já conhecia as readaptações feitas no âmbito da indústria, mas
não tinha ainda ouvido falar dos casos individuais.
— Não podemos fazer propaganda deles. Temos de trabalhar
praticamente às escondidas.
— Porque está a contar-me isso agora?
— Porque gostaríamos que trabalhasse conosco. Para começar,
ajude-nos a readaptar o Ole. Depois veremos o que se pode fazer,
quanto aos vagabundos.
— Não sei se serei capaz disso...
— Temos estado à sua espera e sabíamos que você acabaria por vir
aqui. Todas as possibilidades que você tivesse de arranjar qualquer
espécie de emprego seriam anuladas por King. Ele passou palavra e
você está na lista negra de todas as câmaras de comércio e grupos
cívicos do mundo.
— Talvez não tenha outra alternativa — concordou Webster.
— Não queremos que pense desse modo — disse Taylor. — Estude
a questão e volte depois. Mesmo que não aceite o trabalho
arranjaremos outro para si — apesar de King.
Ao sair do gabinete, Webster encontrou um espantalho a sua
espera. Era Levi Lewis. Não mostrava os dentes tortos. O seu sorriso
habitual desaparecera-lhe do rosto e trazia a espingarda debaixo do
braço.
— Alguns dos rapazes disseram-me que o tinham visto vir para
aqui. Portanto, esperei por si.
— Qual é o problema ? — perguntou Webster, uma vez que Levi
trazia a preocupação estampada no rosto.
— É a Polícia deles — disse Levi. E cuspiu no chão, com
desprezo.
— A Polícia?!— murmurou Webster, e o seu coração quase parou.
Conhecia bem o problema.
— Pois é — continuou Levi. — Querem queimar tudo para correr
conosco.
— Então o Conselho acabou por ceder?
— Vim mesmo agora do Comando da Polícia. Disse-lhes que era
melhor que tivessem cuidado. E que haveria tripas espalhadas por
todos os lados se o tentassem fazer.
Tenho os rapazes todos a postos à volta do sítio, com ordens de
atirar para matar.
— Não pode fazer isso, Levi — disse Webster.
— Não posso? — retorquiu Levi. — Já o fiz. Correram conosco
das nossas propriedades, obrigaram-nos a vendê-las porque não
podíamos ganhar com elas fosse o que fosse. E não voltarão a
expulsar-nos, seja de onde for. Ou ficamos aqui ou morremos aqui. Só
incendiarão essas casas depois de já não haver ninguém que os
impeça disso.
Puxou as calças e voltou a cuspir.
— E não somos os únicos que pensamos assim — acrescentou.—
O Avó também está cá fora, connosco.
— O Avô?!
— Nem mais. O velho que vive consigo. Assumiu o comando e é
agora como que o nosso general. Diz que se lembra de estratagemas
da guerra de que a Polícia nunca ouviu falar. Mandou alguns rapazes
a um dos centros da Legião roubar uma peça de artilharia. Diz que
podemos arranjar granadas para ela no Museu. E que depois de
termos tudo preparado avisaremos a Polícia de que, se ela tomar
qualquer iniciativa, dispararemos.
— Pode fazer-me um favor, Levi ?
— Certamente, Mr. Webster.
— Vá lá dentro e pergunte por Mr. Taylor. Insista em vê-lo. Diga-
lhe que já comecei a trabalhar.
— Sem dúvida, mas aonde vai o senhor ?
— Vou à Câmara Municipal.
— Não quer que vá consigo?
— Não. E melhor que eu vá sozinho. E, Levi...
— Que é?
— Diga ao Avô para aguentar a sua artilharia. Não dispare, a
menos que seja obrigado a fazê-lo — mas se tiver de o fazer, que
tome cuidado com a pontaria.
***
— O presidente está muito ocupado — disse Raymond Brown, o
secretário.
— Isso é o que você pensa — retorquiu Webster, encaminhando-se
para a porta.
— Não pode entrar, Webster! — berrou Brown.
Saltou da cadeira e, dando volta à secretaria, a correr, atirou-se
sobre Webster. Este fez rodar o braço de repente, apanhou Brown no
peito e lançou-o de novo contra a secretária, escorregando. Brown
agitou os braços, perdeu o equilíbrio e caiu no chão, com estrondo.
Webster escancarou a porta do gabinete do presidente. Os pés deste
saltaram de cima da secretária, ao mesmo tempo que exclamava:
— Eu disse a Brown...
Webster moveu afirmativamente a cabeça.
— E Brown disse-mo. Mas que lhe aconteceu, Cárter? Receia que
King descubra que estive aqui? Receia ser corrompido por algumas
boas ideias?
— Que é que você quer? — disse Cárter com rudeza.
— Sei que a Polícia vai queimar as casas...
— É verdade — confessou o presidente. E acrescentou, com toda a
convicção: — São uma ameaça para a comunidade.
— Qual comunidade?
— Ouça, Webster...
— Sabe bem que não há qualquer comunidade. Somente alguns
politiqueiros como você, que se conservam por cá para que se possa
dizer que são residentes e para que possa estar certo de ser reeleito
todos os anos e ir recebendo o seu salário. Estamos quase a chegar ao
ponto em que lhes bastará votar uns nos outros. As pessoas que
trabalham nos armazéns e nas lojas, e até aqueles que fazem os
serviços mais insignificantes nas fábricas, não moram dentro dos
limites da cidade. Os comerciantes já a abandonaram há muito tempo.
Negoceiam aqui, mas não residem cá.
— Mas isto ainda é uma cidade — afirmou o presidente.
— Não vim cá para discutir isso, mas sim para lhe fazer ver a
grande asneira que será queimar essas casas. Mesmo que não o
consiga compreender, as casas são os lares de pessoas que não têm
outros lares. Pessoas que vieram a esta cidade procurar refúgio e que
o encontraram perto de nós. De certo modo, somos responsáveis por
elas.
— Não somos — barafustou o presidente. — O que lhes acontece
deve-se apenas à sua má sorte. Não lhes pedimos para virem para cá.
Não as queremos cá. Não contribuem seja no que for para a
comunidade. Vai dizer-me que se trata de inadaptados. Pois sim, que
culpa temos disso? Vai dizer-me que não encontram trabalho. Pois eu
digo-lhe que só não o encontram porque não querem. Há muito
trabalho a fazer e haverá sempre. Têm os ouvidos cheios dessa
conversa do mundo novo e estão convencidos de que alguém deve
encontrar o sítio e o trabalho que lhes convém.
— Você está a falar como um individualista ferrenho — disse
Webster.
— E você diz isso como se pensasse que tem muita piada —
grunhiu o presidente.
— De facto, creio que tem a sua graça — retorquiu Webster. —
Tem graça e é trágico que alguém ainda pense assim.
— O mundo poderia ser bem melhor se houvesse mais alguns
individualistas ferrenhos — disse o presidente, com aspereza. — Olhe
para todos quantos conseguiram trepar...
— Como você?
— Sim, pode tomar-me como exemplo. Trabalhei muito.
Aproveitei as oportunidades. Tinha uma certa visão. Consegui...
— Quer dizer que lambeu as botas dos que não eram honestos e
calcou os que o eram. Você é o exemplo brilhante do tipo de pessoa
que o mundo de hoje não deseja. Você cheira a bafio, tão velhas são
as suas ideias. E o último dos politiqueiros, tal como eu fui o último
dos secretários da Câmara de Comércio. A única diferença é que você
ainda não o sabe. Eu sabia. Por isso fui-me embora. Ainda que isso
me custasse alguma coisa, saí, porque estava em jogo o respeito por
mim próprio. O seu gênero de politiquice morreu, e morreu porque
qualquer pobre-diabo com um pouco de lábia e boa apresentação pode
aspirar ao poder, desde que apele para a psicologia das multidões. E
você já não dispõe dela. Não pode haver psicologia das multidões
quando ninguém se interessa pelo que possa acontecer a uma coisa já
morta — um sistema político que se desmoronou sob o seu próprio
peso.
— Ponha-se lá fora! — berrou o presidente. — Ponha-se na rua
antes que eu chame a polícia!
— Você esquece que eu vim aqui para falarmos das casas —
observou Webster.
— Não ganha nada com isso. Pode ficar aí de pé toda a vida a falar
nesse assunto, que não servirá de nada. As casas vão ser queimadas. E
é tudo.
— Você quer ver o centro da cidade transformado num montão de
ruínas?
— A sua comparação é grotesca.
— Não estou a fazer comparações — disse Webster.
— Então de que está a falar? — perguntou o presidente.
— Apenas disto: logo que o primeiro archote tocar nas casas, cairá
sobre a Câmara Municipal a primeira granada. E a segunda atingirá o
Banco Nacional. Primeiro, os alvos mais importantes; depois virão os
outros.
Cárter ficou de boca aberta. Depois, a vermelhidão da cólera
começou a subir-lhe da garganta para o rosto.
— Isso não pega, Webster. Não me engana com tanta facilidade.
Julga que tenho medo de histórias do papão...
— Não se trata de papões, mas sim de canhões. Esses homens
dispõem de peças de artilharia, tiradas dos centros da Legião e dos
museus. E entre eles há quem saiba manejá-las. Na verdade, nem
precisavam disso. E impossível que falhem. Os alvos são muito
grandes e estão a descoberto.
Cárter estendeu a mão para o rádio, mas Webster impediu-o com
um gesto abrupto.
— Será melhor que pense um pouco antes de perder a cabeça. Você
está numa situação delicada. Se levar o seu plano por diante,
enfrentará uma verdadeira batalha. As casas poderão ser queimadas,
mas o centro da cidade será destruído. Os homens de negócios porão
a sua cabeça a prêmio.
A mão de Cárter afastou-se do rádio.
Ouviu-se um tiro ao longe.
— Será melhor mandá-los voltar para trás — avisou Webster.
O rosto de Cárter expressou a sua indecisão.
Outro tiro, outro e ainda outro...
— Dentro em pouco será tarde demais. Tão tarde que já não haverá
nada a fazer.
Um estrondo tremendo fez estremecer as janelas do gabinete.
Cárter saltou da cadeira.
Webster sentiu-se repentinamente frio e fraco. Mas fez o possível
por manter o rosto composto e a voz calma.
Cárter olhava para além da janela, tão hirto como se fosse de
pedra.
— Receio que neste momento já seja tarde demais.
O rádio colocado sobre a secretária assobiava insistentemente,
enquanto a luz vermelha acendia e apagava.
Cárter estendeu a mão, a tremer, e estabeleceu a ligação.
— Cárter! — chamava alguém. — Cárter! Cárter!
Webster reconheceu a voz. Era o mugido do chefe da Polícia, Jim
Maxwell.
— Que foi isto ? — perguntou Cárter.
— Eles tinham um canhão — disse Maxwell. — Explodiu quando
tentavam dispará-lo. Creio que as munições estavam estragadas.
— Um canhão? — perguntou Cárter. — Só um?
— Não vejo outros.
— Ouvi tiros de espingarda.
— Sim, atiraram contra nós. Feriram dois dos rapazes. Mas agora
retiraram-se para o fundo do matagal. Já não disparam.
— Muito bem — disse Cárter. — Avance e largue fogo às casas.
Webster avançou:
— Pergunte-lhe...
Mas o presidente desligou o aparelho.
— Que queria perguntar?
— Nada — respondeu Webster. — Não tinha importância.
Não lhe podia dizer que o Avô era o homem que sabia manejar o
canhão. Nem que ele estava lá quando o canhão explodira.
Tinha de sair dali, para chegar o mais depressa possível ao local da
explosão.
— Foi um bom estratagema, Webster — disse Cárter.— O pior é
que não pegou.
O presidente voltou-se para a janela que dava para as casas e disse:
— Já não se ouvem tiros. Desistiram depressa.
— Terá muita sorte se meia dúzia dos seus polícias voltarem vivos
— retorquiu Webster. — Esses homens que estão escondidos no
matagal podem acertar no olho de um esquilo, a cem metros, com as
suas armas.
Ouviram-se passos no corredor, lá fora, dois pares de pés que
corriam em direção à porta.
O presidente saiu de junto da janela. Webster rodou sobre os
calcanhares e gritou:
— O Avô!
— Olá, Johnny — arquejou o Avô, escorregando antes de
conseguir parar.
Atrás dele vinha um jovem que agitava qualquer coisa na mão —
um maço de folhas de papel que faziam barulho ao serem abanadas.
— Que querem ? — perguntou o presidente.
— Muitas coisas — respondeu o Avó.
Parou por um momento, para recuperar o fôlego, e depois disse,
ofegando:
— Apresento-lhe o meu amigo Henry Adams.
— Adams ? — perguntou o presidente.
— Sim. O seu avô vivia aqui, na Rua Vinte e Sete.
— Oh! — exclamou o presidente, como se alguém lhe tivesse dado
com um tijolo na cabeça. — Oh! Refere-se a F. J. Adams?
— Nem mais — disse o Avô. — Fizemos a guerra juntos.
Costumava passar noites inteiras a falar-me do filho.
Cárter cumprimentou Adams.
— Como presidente da Câmara Municipal desta cidade — disse
ele, tentando recuperar um pouco da sua dignidade — desejo-lhe
boas-vindas e...
— Não posso dizer que se trate de um acolhimento adequado —
interrompeu Adams. — Soube que está a queimar as minhas
propriedades.
— As suas propriedades?! — O presidente ficou sufocado, os olhos
incrédulos a fitarem o maço de papéis que Adams lhe mostrava.
— Sim, as propriedades dele! — gritou o Avô. — Acaba de as
comprar. Voltámos mesmo agora da Repartição de Finanças. Foram
pagos todos os impostos, multas, e essas alcavalas todas que vocês,
seus ladrões legais, pensaram em lançar sobre as casas.
— Mas, mas... — o presidente procurava as palavras, mas não
conseguia sequer encontrar o fôlego. — Não são todas, por certo.
Talvez somente a velha propriedade dos Adams.
— É tudo, de uma ponta a outra — disse o Avô, triunfante.
— E agora — disse Adams ao presidente — faça o favor de
ordenar aos seus homens para não continuarem a destruir as minhas
propriedades.
Cárter inclinou-se sobre a secretária e tentou ligar o rádio, mas as
suas mãos, de repente, pareciam ter deixado de lhe obedecer.
— Maxwell! — gritou. — Maxwell! Maxwell!
— Que quer? — berrou o chefe da Polícia.
— Pare com isso! — gritou Cárter.— Não incendeie mais nenhuma
casa. Chame os bombeiros. Faça tudo quanto quiser, mas apague os
fogos!
— Bolas! — respondeu Maxwell. — Resolva isso de uma vez para
sempre.
— Faça o que lhe digo! — uivou o presidente. — Apague os
fogos!
— Está bem — concordou Maxwell. — Está bem. Não dispa o
casaco. Mas os rapazes não vão gostar. Não se sentirão satisfeitos por
andarem a apanhar tiros para fazer um serviço que você não sabe se
quer ou não que seja feito.
Cárter afastou-se do rádio e disse:
— Asseguro-lhe, Mr. Adams, que tudo isto é um engano tremendo.
— E verdade — disse Adams, solenemente. — E um engano muito
grande, presidente. O maior da sua vida.
Durante um momento, os dois homens fitaram-se, cada qual do seu
lado da sala.
— Amanhã — disse Adams — enviarei uma petição aos tribunais,
pedindo a anulação do estatuto da cidade. Como proprietário da mais
importante porção de terreno incluída nos respetivos limites, tanto
quanto à extensão como quanto ao valor, tenho o direito legal de o
fazer.
— Baseando-se em quê?
— Baseando-me em que deixou de haver necessidade dele. Não
creio que seja difícil provar a minha tese.
— Mas... mas... isso significa...
— Sim — disse o Avô —, você sabe o que isso significa. Quer
dizer que você será posto na rua por uma orelha.
***
— Um parque — dizia o Avô agitando o braço sobre o matagal que
fora em tempos o bairro mais elegante da cidade. — Um parque em
que o povo possa recordar a maneira como os seus antepassados
viviam.
Estavam os três na colina da Torre, com o velho e ferrugento
depósito de água elevando-se sobre eles, as fortes vigas de aço
submersas num mar de relva que chegava à cintura.
— Não será bem um parque — explicou Henry Adams.— Será
melhor chamar-lhe uma memória. Uma memória da era de uma vida
comunal que terá sido esquecida daqui a cem anos. O conservatório
de um certo número de tipos peculiares de construção que surgiram
para satisfazer certas condições e o gosto de cada um. Sem nenhuma
sujeição a quaisquer concepções arquiteturais, apenas um esforço para
tornar a vida melhor. Dentro de cem anos os homens entrarão nestas
casas com o mesmo respeito e admiração com que hoje entram num
museu. Será para eles como que os restos de uma vida anterior, um
degrau no caminho para uma vida mais bela e mais completa. Artistas
passarão a vida a transpor estas casas para as suas telas. Os autores de
novelas históricas virão aqui colher o sopro da autenticidade.
— Mas você disse que queria restaurar todas as casas, pôr os
jardins e a relva como eram dantes — disse Webster.— Isso custará
uma fortuna. E será necessária outra, para a conservação.
— Tenho demasiado dinheiro — disse Adams. — Dinheiro a mais,
na verdade. Lembrem-se de que o meu avô e o meu pai lançaram-se
na indústria atômica logo que ela começou.
— O velhote era o melhor jogador de dados que eu conheci —
disse o Avô. — Deixava-me sempre sem um tostão nos dias de pré.
— Nos velhos tempos — disse Adams—, quando um homem tinha
dinheiro a mais, havia outras coisas em que ele o pudesse gastar. As
organizações de caridade, por exemplo. A investigação médica e
outras coisas do mesmo género. Mas hoje não há organizações de
caridade. O comércio não é suficiente para as sustentar. E desde que a
Comissão Mundial acertou o passo, há dinheiro de sobra para todas as
investigações, médicas ou não. Não pensava nisto quando vim cá para
visitar a velha casa do meu avô. Queria vê-la e era tudo. Ele falava-
me muito dela. De como plantara a árvore no jardim da frente. E do
roseiral que tinha nas traseiras. Quando a vi, encontrei-me perante um
fantasma que troçava de mim. Era uma coisa que fora esquecida. Uma
coisa que significara muito para alguém e que fora abandonada. Nesse
dia, ao encontrar-me em frente da casa com o Avô Stevens, ocorreu-
me que o melhor que poderia fazer seria conservar para a posteridade
um exemplo da maneira de viver dos meus antepassados.
Uma ligeira nuvem de fumo erguia-se sobre as árvores, lá em
baixo.
Webster apontou para ela.
— E eles ?
— Os vagabundos ficarão, se quiserem — disse Adams.— Haverá
trabalho com fartura, para eles. E terão sempre uma casa ou duas onde
possam viver. Só há uma coisa que me preocupa: não poderei estar
sempre aqui. Necessito de alguém para orientar o projeto. É trabalho
para uma vida inteira.
Olhou para Webster.
— Aceita, Johnny — disse o Avô.
— A Betty só pensa naquele pedaço de terra lá no campo.
— Não será obrigado a viver aqui — disse Adams.— Poderá vir de
avião todos os dias.
Do sopé da colina veio um grito.
— É o Ole! — exclamou o Avô.
Acenou com a bengala.
— Eh, Ole! Sobe!
Enquanto Ole subia a colina ficaram a olhá-lo, em silêncio.
— Queria falar contigo, Johnny — disse Ole. — Tive uma ideia.
Fiquei acordado a pensar nela, na noite passada.
— Conte lá isso — disse Webster.
Ole olhou de relance para Adams.
— Não há novidade — explicou Webster. — É Henry Adams.
Talvez se lembre do avô, o velho F. J.
— Lembro-me, sim. Era doido pela energia nuclear. Que tal se
saiu?
— Menos mal — disse Adams.
— Ainda bem. Afinal, era eu quem estava enganado. Dizia sempre
que ele não conseguiria nada, com aquela mania de sonhar acordado.
— Então, e essa ideia? — perguntou Webster.
— Ouviu falar nos dude ranches4 não ouviu?
Webster disse com a cabeça que sim.
— Eram lugares onde as pessoas costumavam ir, para se
convencerem a si próprias de que podiam viver como cowboys.
Ficavam satisfeitas porque nada sabiam da dureza do trabalho do
rancho e pensavam que era romântico andar a cavalo e...
— Ouça — perguntou Webster —, você não está a pensar em
transformar a sua quinta num dude ranch, pois não?
— Não — disse Ole. — Mas é possível que a transforme numa
atração turística. A gente de hoje já não sabe quase nada sobre
quintas, uma vez que estas quase deixaram de existir. E gostarão de
ouvir falar na geadas sobre as abóboras e da beleza das...
Webster fitou Ole.
— Tenho a certeza de que irão nisso — afinou. — Até se matarão
uns aos outros, na ânsia de passar as férias numa quinta antiga,
verdadeira, como Deus manda.
Dos arbustos no fundo da encosta saiu uma coisa brilhante que
tagarelava, gargarejava e chiava, as lâminas a relampejar e um braço
mecânico a abanar.
— Que di...—começou Adams a perguntar.
— É esse maldito cortador de relva! — gritou o Avô.— Aguardei
sempre o dia em que ele arrasaria uma engrenagem e ficaria
completamente doido!

4Dude Ranch é um tipo de rancho voltado para visitantes ou turismo. É


considerado uma forma de agroturismo.
NOTAS SOBRE O
SEGUNDO CONTO

Ainda que estranho, sob todos os aspectos, o segundo conto tem


um tom mais familiar que o primeiro. O leitor tem nele, pela primeira
vez, a impressão de que ele poderia ter nascido junto de uma fogueira
dos cães, o que era de todo inconcebível em relação ao primeiro
conto.
São nele citados alguns dos elevados conceitos morais e éticos que
os cães se habituaram a respeitar. Também se relata uma luta que um
cão pode entender, ainda que ela revele a decadência moral e mental
da personagem principal.
Ainda pela primeira vez, surge uma personagem com
características familiares — o autômato. No autômato Jenkins, que
começa a aparecer neste relato, reconhecemos alguém que há
milhares de anos é um favorito dos cachorrinhos. Jenkins é
considerado por Tige como o verdadeiro herói da lenda. Aquele
considera-o como uma extensão da influência do homem para além
do seu desaparecimento, um artifício mecânico através do qual o
pensamento humano continuou a guiar os cães muito depois de o
próprio homem ter desaparecido.
Ainda temos os nossos autômatos, pequenos mecanismos valiosos
e adoráveis que subsistem para um único fim — servirem-nos de
mãos. No entanto, com o correr dos anos, os autômatos dos cães
tornaram-se partes integrantes deles, a tal ponto que nenhum cão olha
o seu autômato como uma coisa independente de si.
A insistência, com que Tige afirma, que o autômato é uma
invenção do homem, uma herança que a nossa raça recebeu dele, tem
sido violentamente atacada por quase todos os outros investigadores.
Bounce considera que a ideia de que o autômato foi concebido e
oferecido aos cães para os auxiliar no desenvolvimento da sua cultura,
deve ser posta de parte sem reservas, pela sua própria natureza
romântica. Afirma ele que se trata de um artifício de narração, em
presença do qual e pelas razões indicadas, há que suspeitar desde o
principio.
Não é possível saber porque modo os cães teriam criado os
autômatos. Os poucos intelectuais que dedicaram algum tempo ao
estudo do desenvolvimento da automação afirmam que a utilização
altamente especializada que se dá aos autômatos indica que eles, de
facto, foram inventados por um cão. Dizem que, para serem tão
especializados, os autômatos tiveram necessariamente de ser
inventados e aperfeiçoados pela raça para cujo uso particular se
encontra tão perfeitamente adaptado. Em sua opinião, ninguém, a não
ser um cão, poderia ter realizado, por forma tão perfeita, uma
ferramenta tão complicada.
Dizer que nenhum cão conseguiria hoje construir um autômato é
fugir à questão. Se tal acontece é porque hoje isso não é necessário,
uma vez que os autômatos se constroem a si próprios. É evidente que,
quando tal foi necessário, um cão construiu um autômato e dotou-o
com a capacidade de se reproduzir que conduziu esse autômato à
construção de outros iguais a ele. Trata-se de uma solução tipicamente
canina.
Nesta história é também apresentada uma ideia que se mantém
durante o resto da lenda e que de há muito perturba todos os
investigadores e a grande maioria dos leitores: a de que é possível
sair-se fisicamente deste mundo para o espaço, atravessando-o até
alcançar outros mundos. Ainda que tal ideia, na sua maior parte, tenha
sido considerada como uma fantasia pura (o que, como é evidente, se
admite em qualquer lenda), tem sido objeto de estudos muito atentos.
A maior parte destes confirma que se trata de uma coisa impossível.
Para que o não fosse, seria necessário que as estrelas que vemos à
noite fossem mundos enormes, a grandes distâncias dos nossos
mundos. Toda a gente sabe, evidentemente, que se trata apenas de
luzes penduradas no céu e que na sua maior parte estão muito
próximas de nós.
Bounce sugere uma explicação que pode ser a mais perfeita, para a
origem da ideia dos mundos para além do espaço. Diz ele que os
narradores deformaram a descrição dos mundos dos penantes, cuja
existência os cães conhecem desde a mais remota antiguidade.
II - AGLOMERAÇÃO

A chuva miudinha caía do céu cinzento, como fumo através das


árvores nuas. As esquinas arredondavam-se, os contornos dos
edifícios escondiam-se no nevoeiro e as distâncias desapareciam. As
gotas brilhavam sobre a pele metálica dos autômatos e cobriam de
prata os ombros dos três seres humanos que escutavam as palavras do
homem vestido de negro que lia um livro oculto entre as suas mãos.
Porque Eu sou a Ressurreição e a Vida...
A estátua funerária, coberta de musgo, que se encontrava por cima
da porta do jazigo, parecia querer subir aos céus, como se todos os
cristais do seu corpo ansioso quisessem alcançar alguma coisa que
ninguém mais podia ver. Erguia-se desde o dia, já tão longe, em que
fora talhada no granito para adornar o túmulo da família, com um
simbolismo que agradara plenamente ao primeiro John J. Webster nos
últimos anos da sua vida.
E todo aquele que vive e crê em Mim...
Jerome A. Webster sentiu os dedos do filho apertarem-lhe o braço,
ouviu o soluçar abafado da mãe, viu as filas de autômatos, rígidos,
com a cabeça respeitosamente inclinada em derradeira homenagem ao
amo que tinham servido. O amo que ia agora para casa — para a
última casa de todos.
Meio confuso, Jerome A. Webster perguntou a si próprio se eles
compreenderiam — se saberiam o que eram a vida e a morte — o que
significava o facto de Nelson F. Webster estar ali deitado num caixão,
enquanto um homem com um livro recitava palavras sobre ele.
Nelson F. Webster, o quarto dos Websters que naquela propriedade
se haviam fixado, vivera e morrera ali, raras vezes se ausentando, e
caminhava agora para o descanso final, no túmulo que o primeiro
deles preparara para os vindouros — para a longa linha de
descendentes nebulosos que ali viveriam e respeitariam as coisas, a
maneira de ser e a vida que esse primeiro John J. Webster criara.
Jerome A. Webster contraiu as maxilas e sentiu um ligeiro tremor
percorrer-lhe o corpo. Por um segundo arderam-lhe os olhos e o
caixão desapareceu numa névoa e as palavras que o homem de preto
pronunciava confundiram-se com o murmúrio do vento entre os
ciprestes que guardavam os mortos. Recordações desfilaram-lhe no
cérebro: um homem de cabelos grisalhos a galgar montes e vales, a
aspirar a brisa da madrugada, de pé, as pernas firmes, em frente da
lareira ardente, com um cálice de brande na mão.
Orgulho — o orgulho da terra e da vida e a humildade e a grandeza
que uma vida calma dão ao homem. A satisfação de um ócio
ocasional e a firmeza das intenções. A independência de uma
segurança absoluta, o conforto de um ambiente familiar, a liberdade
dos campos.
Thomas Webster tocou-lhe no cotovelo.
— Pai! — sussurrava ele. — Pai!
A cerimônia terminara. O homem vestido de negro fechara o livro.
Seis autômatos avançaram e levantaram o caixão.
Vagarosamente, os três homens seguiram-no até ao jazigo,
guardaram silêncio enquanto os autômatos o colocavam no seu lugar,
fecharam a porta e colocaram nela a placa onde se lia:
———————
NELSON F. WEBSTER 2034-2117
————————
Era tudo. Apenas o nome e as datas. E isso, na opinião de Jerome
A. Webster, era o suficiente. Fora assim com todos os outros — a
começar com William Stevens (1920-1999). Webster lembrava-se de
que lhe chamavam “O Avô”. Pai da mulher daquele primeiro John J.
Webster, que também ali estava (1951-2020). E o filho, Charles F.
Webster (1980-2060). E o filho deste, John J. II(2004-2086). Webster
ainda se lembrava de John J. II, o avô que costumava adormecer junto
da lareira, com o cachimbo a cair-lhe da boca, ameaçando
constantemente pegar fogo aos bigodes.
Os olhos de Webster fixaram outra placa: Mary Webster, a mãe do
rapaz a seu lado. — Rapaz? Não. — Esquecia-se sempre de que
Thomas já tinha vinte anos e que dentro de uma semana, pouco mais
ou menos, partiria para Marte, como ele, quando jovem, para lá tinha
partido.
— Todos ali juntos — disse de si para si. — Os Websters, as
mulheres e os filhos. Ali juntos na morte, como na vida, adormecidos
no orgulho e na segurança do bronze e do mármore, com os ciprestes
lá fora e a figura simbólica que encimava a porta esverdeada pelo
tempo.
Os autômatos, terminada a sua tarefa, aguardavam em silêncio.
A mãe olhou para ele e disse-lhe:
— És agora o chefe da família, meu filho.
Ele apertou-a contra o peito. Chefe da família — do que dela
restava. Só três agora: a mãe, ele e o filho. E este partiria em breve
para Marte. Mas voltaria, talvez com uma esposa, e a família
perduraria. Não podia continuar somente com três membros. A casa
não permaneceria quase toda fechada, como estava agora. Houvera
uma altura em que doze membros da família, vivendo ao mesmo
tempo debaixo do grande teto, a haviam feito estremecer de vida. E
esse tempo voltaria, por certo.
Os três deixaram o jazigo e tomaram o caminho da casa que se
erguia perante eles, como uma enorme sombra cinzenta no meio da
névoa.
O fogo ardia na lareira. Jerome A. Webster inclinou-se, pegou no
livro que estava em cima da secretária e leu mais uma vez o título:
Fisiologia Marciana, Especialmente Referida ao Cérebro — pelo
Dr. Jerome A. Webster
Volumoso e meritório — o trabalho de uma vida. Quase a única
obra publicada naquele campo, baseava-se nos dados recolhidos
durante a peste dos cinco anos, em Marte — cinco anos em que
trabalhara noite e dia com os colegas da missão médica da Comissão
Mundial, enviada em socorro do planeta vizinho.
Alguém bateu ao de leve na porta.
— Entre — disse ele.
A porta abriu-se e entrou um autômato.
— O seu whisky, senhor.
— Obrigado, Jenkins — disse Webster.
— O padre já se retirou, senhor.
— Ah, sim. Espero que tenhas cuidado dele.
— Sim, senhor. Paguei-lhe a quantia usual e ofereci-lhe uma
bebida, que ele recusou.
— Foi um erro social. Os padres não bebem — disse Webster.
— Desculpe, senhor. Eu não sabia. Pediu-me que lhe dissesse que
fosse à igreja uma vez por outra.
— O quê ?!
— Disse-lhe que o senhor nunca saía.
— É verdade, Jenkins. Nenhum de nós vai aonde quer que seja.
Jenkins encaminhou-se para a porta, mas parou antes de lá chegar e
deu meia volta.
— Se me permite dizê-lo, senhor, foi uma cerimônia comovente. O
seu pai foi um bom ser humano, o melhor que até hoje existiu. Os
autômatos disseram que a cerimônia foi inteiramente adequada. Muito
digna. Ele teria gostado dela, se a pudesse ver.
— O meu pai — disse Webster — teria ficado ainda mais
satisfeito, se pudesse ouvir-te dizer isso, Jenkins.
— Muito obrigado, senhor — disse Jenkins, e saiu.
Webster ficou sentado junto da lareira, com o whisky e o livro,
sentindo o conforto de um quarto familiar a rodeá-lo, saboreando a
sensação de refúgio que nele encontrava.
Aquilo era o lar. Fora o lar dos Websters desde o dia em que o
primeiro John J. ali chegara e construíra o primeiro elemento daquela
casa cada vez maior. Escolhera-a por causa do riacho com trutas —
assim o dissera. Mas devia ter havido outra razão. Webster, pelo
menos, estava convencido disso.
John J., o primeiro, viera depois do abandono das cidades, depois
de os homens terem esquecido, uma vez por todas, as aglomerações
do século XX, e de se terem libertado do instinto tribal que os fazia
unir numa caverna ou numa clareira contra um inimigo ou um medo
comum. Um instinto que se extinguira por já não existiram inimigos
nem medos. Os homens haviam-se revoltado contra o instinto de
rebanho que as condições econômicas e sociais lhes tinham imposto
nas eras passadas. Uma nova segurança e uma nova abastança tinham
tornado possível essa revolta.
A tendência começara há mais de duzentos anos, no século XX, na
altura em que as populações debandaram para o campo, em busca de
ar puro, espaços largos e uma alegria de viver que a existência
comunal, no seu sentido mais estrito, nunca lhes dera.
E ali estava o resultado. Uma vida calma, uma paz que só podia
surgir com as coisas boas. A maneira de viver que os homens haviam
desejado durante muitos anos. Uma vida solarenga, baseada em
velhas mansões e grandes prados, com energia atômica e autômatos
em vez de servos.
Webster sorriu para a lareira, onde a lenha ardia. Era um
anacronismo saboroso, uma coisa que os homens haviam trazido das
cavernas. Ainda que o aquecimento nuclear fosse melhor, o fogo era
mais agradável. Não se podia estar sentado a olhar os átomos e a
sonhar e a construir castelos, como nas chamas.
Até o jazigo lá fora, onde haviam colocado o pai nessa tarde, fazia
parte da família. Tudo formava uma unidade perfeita. O orgulho
sombrio, a paz e a vida ociosa. Nos velhos tempos os mortos eram
enterrados em grandes terrenos, todos ao lado uns dos outros, bem
juntinhos, estranhos com estranhos...
Ele nunca sai.
Fora o que Jenkins dissera ao padre.
E era verdade. Que necessidade tinha ele de sair? Dispunha de tudo
ali. Bastava-lhe rodar um botão para se encontrar face a face com
quem desejava, e para ir, pelos sentidos se não em corpo, a qualquer
lado que quisesse. Podia ir ao teatro ou a um concerto ou vasculhar
uma biblioteca, até nos antípodas. Podia tratar de qualquer espécie de
negócio sem se levantar da cadeira.
Webster bebeu o whisky e virou-se para os mostradores do
aparelho que se encontrava ao lado da sua secretária.
Manejou os botões de memória, sem olhar para a escala. Sabia
onde ia.
Ligou um interruptor e a sala desapareceu — ou pareceu
desaparecer. Só ficou a cadeira onde se encontrava, parte da secretaria
e parte do próprio aparelho.
A cadeira encontrava-se agora numa encosta coberta de erva
dourada e salpicada por árvores enfezadas e torcidas pelo vento, uma
encosta que se prolongava até um lago escondido entre os píncaros
rubros das montanhas, os quais, por sua vez, eram enegrecidos por
longas raias do azul-acinzentado dos pinheiros distantes, que subiam
por eles em degraus irregulares, até se confundirem com os cumes
azulados e cobertos de neve que se viam mais além e acima,
formando como que os dentes de uma serra.
O vento soprava com violência, torcendo as árvores e agitando a
relva alta em súbitas rajadas. Os últimos raios de sol lançavam fogo
dos píncaros distantes.
Solidão e grandeza, a enorme extensão de terra ondulada, o lago
aprisionado, as sombras pontiagudas das cordilheiras distantes.
Webster recostou-se na cadeira, semicerrando os olhos para mais
facilmente ver os cumes das montanhas.
Uma voz disse quase junto dos seus ombros:
— Posso entrar?
Uma voz suave, sibilante, que de modo algum pertencia a um ser
humano. Mas Webster conhecia-a.
Moveu afirmativamente a cabeça.
— Sem dúvida, Juwain.
Voltou-se um pouco e viu um complicado pedestal, com a figura
peluda, de olhos meigos, do marciano, agachadas sobre ele. Outras
estranhas peças de mobiliário erguiam-se atrás do pedestal, meio
visíveis nessa moradia em Marte.
O marciano apontou a mão peluda para a cordilheira e disse:
— Você gosta disto. Consegue compreender a paisagem. E eu
compreendo que isso aconteça, mas sinto nela mais terror do que
beleza. E qualquer coisa que nós não concebemos em Marte.
Webster estendeu a mão, mas o marciano fê-lo parar com um gesto
e disse:
— Deixe-se estar. Sei porque veio aqui. Eu não teria vindo numa
ocasião destas se não tivesse pensado que talvez um amigo...
— É bondade sua — respondeu Webster. — Estou satisfeito por ter
vindo.
— Seu pai — disse Juwain — era um grande homem. Lembro-me
de como você costumava falar-me dele, naqueles anos que passou em
Marte. Disse então que havia de voltar. Porque não o fez?
— Bem... — desculpou-se Webster.— E que nunca...
— Não diga — disse o marciano. — Já sabia.
— O meu filho parte para Marte dentro de dias — informou
Webster. — Dir-lhe-ei para o visitar.
— Será um prazer — disse Juwain. — Aguardá-lo-ei.
Agitou-se, inquieto, sobre o pedestal.
— Talvez ele continue a tradição.
— Não — respondeu Webster. — Está a estudar Engenharia.
Nunca se interessou pela cirurgia.
— Tem o direito de seguir a vida que escolheu — observou o
marciano. — Mas nós também temos o direito de sonhar.
— É certo — concordou Webster. — Mas agora é tarde. Talvez ele
venha a ser um grande engenheiro. A estrutura do espaço. Fala em
naves capazes de alcançar as estrelas.
— Talvez a sua família já tenha feito o suficiente pelas ciências
médicas — sugeriu Juwain. — Você e o seu pai...
— E o pai dele, o meu avô.
— O seu livro deixou Marte em dívida para consigo. Talvez chame
mais atenções para a especialização dos marcianos. O meu povo não
dá bons médicos. Não possui tradições quanto a isso. É estranho
como a mentalidade das raças pode ser diferente. É estranho que em
Marte nunca se houvesse pensado na Medicina — assim mesmo,
ninguém pensou nela. A sua necessidade era satisfeita pelo culto do
fatalismo. Ainda que na nossa história primitiva, quando os homens
ainda viviam nas cavernas...
— Há muitas coisas em que vocês pensaram e nós não. Coisas de
que nos admiramos nunca ter pensado. Aptidões que vocês
desenvolveram e nós ignoramos. A vossa especialidade, a Filosofia,
tão diferente da nossa. Uma verdadeira ciência, enquanto a nossa não
foi mais do que uma busca às escuras, com um pouco de ordem. A
vossa Filosofia é ordenada, lógica, utilizável, prática, aplicável —
uma verdadeira ferramenta.
Juwain começou a falar, hesitou, e depois continuou:
— Estou quase a conseguir qualquer coisa que pode ser nova e
surpreendente. Qualquer coisa que será uma ferramenta, tanto para
vós, humanos, como para os marcianos. Trabalho nela há anos,
baseando-me em alguns conceitos que me surgiram no espírito
quando os homens chegaram aqui, vindos da Terra. Não disse nada
porque não tinha a certeza.
— E agora tem?
— Não em absoluto — disse Juwain. — Ainda não cheguei a uma
conclusão positiva, mas estou prestes a alcançá-la.
Ficaram sentados em silêncio, observando as montanhas e o lago.
Uma ave pousou numa das árvores raquíticas e cantou. Nuvens negras
acumulavam-se para além da cordilheira e os cumes, cobertos de
neve, pareciam pedras tumulares. O Sol mergulhou num lago de
sangue e o seu brilho desceu, até por fim parecer o de uma fogueira
quase extinta.
Ouviu-se uma pancada na porta e Webster agitou-se na cadeira,
subitamente chamado à realidade e ao seu gabinete.
Juwain desaparecera. O velho filósofo viera, passara uma hora de
contemplação junto do seu amigo e depois retirara-se em silêncio.
Ouviu-se de novo bater.
Webster inclinou-se para a frente, premiu o comutador e as
montanhas desapareceram. O gabinete voltou a ser um gabinete. A
penumbra filtrava-se através das altas janelas e o fogo estava agora
reduzido a alguns pontos rosados, nas cinzas.
— Entre — disse Webster.
Jenkins abriu a porta e disse:
— O jantar está na mesa, senhor.
— Obrigado — disse Webster, e ergueu-se vagarosamente da
cadeira.
— O seu lugar, senhor, é agora à cabeceira da mesa — observou
Jenkins.
— Ah, sim — disse Webster. — Obrigado, Jenkins. Muito
obrigado por ter me lembrado.
***
Webster permaneceu na larga rampa do espaçoporto a observar a
forma que desaparecia no céu, com um débil cintilar de pontos
vermelhos através da luz invernosa.
Manteve-se ali muito tempo depois de ela ter desaparecido por
completo, as mãos enclavinhadas no Varão do parapeito, os olhos
fixos no céu.
Moveu os lábios e disse:
— Adeus, meu filho. — Mas nenhum som se ouviu.
A pouco e pouco, tomou consciência do que o rodeava. Soube que
outras pessoas se moviam na rampa, que a plataforma de aterragem
parecia estender-se interminavelmente até ao horizonte, salpicado
aqui e ali com coisas convexas, que eram naves espaciais à espera de
largar. Tratores trabalhavam ao pé de um hangar, removendo o que
restava da neve que caíra na noite anterior.
Webster teve um arrepio e estranhou o facto, pois o sol estava
quente. Teve outro arrepio.
Voltou-se devagar e encaminhou-se para o edifício da
administração. Durante um momento, sentiu um medo irracional e
perturbador daquela faixa de cimento que formava a rampa. Um medo
que o deixou a tremer em espírito, enquanto arrastava os pés para a
porta.
Um homem vinha em sentido contrário, com uma pasta na mão. Ao
vê-lo, Webster desejou com fervor que ele não lhe falasse.
O homem não lhe falou, passou por ele sem o olhar e Webster
sentiu-se aliviado.
Se estivesse em casa, disse Webster para consigo, teria já acabado
de almoçar e iria dormir a sesta. O lume estaria aceso na lareira e o
brilho das chamas refletir-se-ia nos atiçadores. Jenkins trar-lhe-ia um
cálice de licor e dir-lhe-ia uma ou duas palavras — palavras breves,
para passar o tempo.
Correu para a porta, apertando o passo, ansioso por se afastar da
amplidão fria e nua da enorme rampa.
Era curioso, o que sentira no momento da partida de Thomas. Era
natural que não gostasse de o ver partir. Mas já não o era o medo
horroroso que descobrira dentro de si nos últimos minutos. Horror da
viagem através do espaço, horror da terra desconhecida de Marte —
que já nem sequer era desconhecida. Há mais de um século que os
habitantes da Terra a conheciam, tinham lutado nela, vivido com ela;
alguns, mesmo, tinham-se habituado a amá-la.
Só por um extraordinário esforço de vontade, nos breves minutos
que tinham precedido a largada da nave, não correra pelo campo fora,
a gritar por Thomas, para lhe pedir que não partisse.
Nada teria resolvido com isso, evidentemente. Seria um
exibicionismo estúpido e humilhante, uma Ação que um Webster não
podia praticar.
No fim de contas — pensou ele —, uma viagem a Marte não era
uma aventura perigosa. Os tempos em que o havia sido já tinham
desaparecido para sempre. Ele próprio, na sua juventude, fizera uma
viagem a Marte e lá ficara durante cinco longos anos. Acontecera isso
— e a sua respiração suspendeu-se ao pensá-lo — há quase trinta
anos.
A balbúrdia e o barulho do átrio bateram-lhe em cheio no rosto
quando o autômato lhe abriu a porta. Havia ali qualquer coisa que lhe
inspirava terror. Hesitou um momento e depois entrou. A porta
fechou-se suavemente atrás dele.
Manteve-se encostado à parede, evitando a multidão, e dirigiu-se
para uma cadeira, a um canto. Sentou-se encostou-se, assentando com
força o corpo sobre as almofadas. Observou a fauna humana que
povoava o salão.
Pessoas barulhentas, apressadas, de rostos estranhos e pouco
acolhedores. Todos desconhecidos. Pessoas que partiam para outros
planetas, ansiosas por partir, preocupadas com os últimos pormenores,
correndo de um para outro lado.
Na multidão surgiu um rosto familiar. Webster deu um salto.
— Jenkins! — gritou. Imediatamente se arrependeu de tal ter feito,
ainda que ninguém parecesse tê-lo notado.
O autômato caminhou na sua direção e parou na sua frente.
— Diz a Raymond que preciso regressar imediatamente —
ordenou Webster. — Que traga o helicóptero.
— Peço desculpa, senhor — observou Jenkins —, mas não
podemos partir já. Os mecânicos descobriram uma avaria no reator
nuclear. Estão a instalar um novo. Vai demorar algumas horas.
— Com certeza que a reparação poderia ser feita noutra altura.
— O mecânico disse que não, senhor. Podia provocar uma
explosão em qualquer momento. A carga inteira...
— Sim, sim — concordou Webster. — Claro.
Apalpou o chapéu.
— Lembrou-me de repente que tinha um assunto a tratar. Um
assunto que precisa ser tratado imediatamente. Preciso ir a casa. Não
posso ficar horas à espera.
Soergueu-se na cadeira com os olhos fitos na multidão.
Rostos, rostos.
— Talvez possa televisar — sugeriu Jenkins.— Talvez um dos
autômatos pudesse tratar do caso. Há ali uma cabina...
— Espera, Jenkins — disse Webster. Hesitou um momento. — Não
tenho nenhum assunto a tratar em casa. Absolutamente nada. Mas
preciso voltar, não posso ficar aqui. Se ficar, dou em doido. Tive
medo ali, na rampa. Ainda estou numa confusão incrível. Tenho uma
sensação estranha e terrível, Jenkins. Eu...
— Compreendo, senhor — disse Jenkins. — Também acontecia
isso a seu pai.
Webster susteve a respiração.
— A meu pai?
— Sim, senhor, e por isso nunca saía. Tinha aproximadamente a
sua idade quando o descobriu. Tentou fazer uma viagem à Europa,
mas foi obrigado a desistir a meio do caminho. Dava um nome
qualquer a essa sensação.
Webster permaneceu algum tempo em silêncio, amedrontado.
— Chamava-lhe qualquer coisa — disse finalmente.— Claro que
isto tem um nome. Meu pai também a sentiu. E meu avó também a
sentia?
— Isso não sei, senhor — respondeu Jenkins. — Quando fui
construído já seu avô era bastante velho. Mas pode ser que sim. Ele
também nunca saía.
— Então tu compreendes-me — disse Webster. — Sabes como é.
Sinto-me como se estivesse doente, fisicamente doente. Vê se podes
alugar um helicóptero, qualquer coisa, desde que me leve a casa.
— Sim, senhor — respondeu Jenkins afastando-se.
Webster chamou-o.
— Jenkins... Mais alguém conhece o caso? Alguém...
— Não, senhor — tranquilizou-o Jenkins. — Seu pai nunca se
referiu ao assunto e eu pensei que ele não queria que o divulgassem.
— Obrigado, Jenkins — disse Webster.
Webster deixou-se cair de novo na cadeira, sentindo-se triste, só e
deslocado. Estava só numa sala barulhenta que pulsava de vida; uma
solidão que o esmagava. Sentiu-se dorido e fraco.
Saudades de casa. Puras, simples e vergonhosas saudades de casa,
como as que os rapazes sentem quando saem de casa pela primeira
vez, para uma longa demora.
Havia uma palavra engraçada para isso — “agorafobia”, o medo
mórbido dos espaços abertos — da raiz grega de “medo” —
literalmente, do “mercado”.
Se fosse à cabina de televisão — e bastava atravessar a sala para o
fazer —, poderia ligar para casa e falar com a mãe ou qualquer dos
autômatos, ou, melhor ainda, ficar a olhar a sala até Jenkins o vir
chamar.
Tentou levantar-se, mas deixou-se cair na cadeira novamente. Era
escusado. Falar com alguém ou ficar a olhar o gabinete não era a
mesma coisa que estar lá. Não podia sentir o cheiro dos pinheiros no
céu invernal, nem podia ouvir o ruído familiar da neve sob os passos,
nem estender a mão para a casca de um dos carvalhos que ladeiam o
caminho. Não podia sentir o calor do fogo, nem tocar com firmeza e
carinho aquilo que lhe pertencia ou formar um todo com um pedaço
de terra e tudo quanto sobre ela cresce.
E, contudo, talvez o aliviasse um pouco. Não muito, talvez, mas
um pouco. Tentou levantar-se novamente e ficou gelado. Os poucos
degraus que o separavam da cabina eram feitos de terror, um terror
envolvente e terrível. Para os atravessar teria de correr, correr para
fugir aos olhos perscrutadores, aos sons estranhos, à proximidade
angustiosa de tanto rosto desconhecido.
Sentou-se abruptamente.
A voz aguda de uma mulher atravessou a sala e ele encolheu-se
para lhe fugir. Sentiu-se terrivelmente mal. Desejou que Jenkins
voltasse depressa.
***
O primeiro sopro da Primavera entrou pela janela, enchendo o
estúdio com promessas de degelo, aparecimento das folhas e das
flores, da migração das aves aquáticas para o norte, através do céu
azul, e das trutas espiando os insetos nas poças de água.
Webster levantou os olhos das folhas de papel que tinha sobre a
secretária, aspirou a brisa, sentiu-a afagar-lhe o rosto. Estendeu a mão
para o cálice de brande, mas, encontrando-o vazio, deixou-o no
mesmo sítio.
Inclinou-se novamente sobre os papéis, pegou no lápis e riscou
uma palavra.
Com ar crítico, leu os últimos parágrafos:
Dos duzentos e cinquenta homens convidados a visitarem-me,
apenas três vieram, apesar de se lhes ter sugerido que se tratava de
uma missão da maior importância. O facto não prova,
necessariamente, que todos, à exceção destes três, sofram de
agorafobia. Alguns terão tido razões plausíveis para não aceitar o
meu convite. Mas tudo indica que há um crescente desejo, da parte
dos homens integrados no modo de vida estabelecido na Terra depois
do desaparecimento das cidades, de permanecer nos locais que lhes
são familiares, e a existência de um instinto cada vez mais profundo
para se fixarem nos locais e propriedades que, no seu entender, se
associam à ideia de alegria e vida feliz.
Qual será o resultado desta tendência ninguém pode por ora dizê-
lo com precisão, pois só é ainda aplicável a uma pequena parte da
população da Terra. Entre as famílias mais numerosas, a pressão
econômica força os filhos a procurar fortuna noutros locais da Terra
ou mesmo noutros planetas. Alguns procuram deliberadamente
aventuras e oportunidades no espaço, ao passo que outros se dedicam
a profissões ou negócios que tornam impossível uma existência
sedentária.
Voltou a página, pegando na última.
Sabia que era um bom trabalho, mas não podia publicá-lo já.
Talvez depois da sua morte. Ninguém, tanto quanto lhe fora possível
determinar, tinha dado tanta importância a esta tendência; tinha-se
tornado natural os homens não saírem de casa. Afinal de contas,
porque haviam de sair?
Podem reconhecer-se certos perigos na...
O televisor tocou a seu lado. Ligou o comutador.
O quarto desvaneceu-se. Encontrou-se em face de um homem
sentado a uma secretaria, como se estivesse do outro lado da sua. Era
um homem de cabelos brancos, com uns olhos tristes assomando por
detrás de umas grossas lentes.
Por um momento Webster fixou-o, procurando-o na memória.
— Poderá ser?... — perguntou, e o homem sorriu gravemente.
— Mudei muito — disse ele —, e você também. Chamo-me
Clayborne. Lembra-se? Da missão médica a Marte...
— Clayborne! Quantas vezes pensei em si! Você ficou em Marte.
Clayborne assentiu.
— Li o seu livro, doutor. É um verdadeiro tratado. Sempre pensei
que devia escrever-se um livro sobre o assunto. Eu mesmo pensei
escrever um, mas nunca tive tempo. E ainda bem. Você fez um belo
trabalho. Especialmente no que se refere ao cérebro.
— O cérebro marciano sempre me intrigou — confessou Webster.
— Certas particularidades. Receio ter passado grande parte desses
cinco anos a tomar notas. Havia outras coisas a fazer.
— Ainda bem que assim procedeu — disse Clayborne.— Foi por
isso que liguei para si. Tenho um doente para operar ao cérebro, e só
você pode operá-lo.
Webster susteve a respiração; as mãos tremiam-lhe.
— Você vai trazê-lo?
Clayborne abanou a cabeça.
— Não pode deslocar-se. Creio que o conhece: Juwain, o filósofo.
— Juwain! — exclamou Webster. — É um dos meus melhores
amigos. Ainda há dias estivemos a conversar.
— Foi um ataque súbito — disse Clayborne. — Ele tem chamado
por si.
Webster ficou calado e sentiu um frio que o percorria e vinha não
sabia donde. Um frio que lhe encheu a testa de suor e lhe amarrou os
pulsos.
— Se partir imediatamente — disse Clayborne —, ainda pode
chegar a tempo. Já entrei em contacto com a Comissão Mundial para
colocar imediatamente uma nave à sua disposição. Precisamos agir
com muita rapidez.
— Mas — disse Webster—, mas... eu não posso ir.
— Não pode vir?!
— É impossível — confirmou Webster. — De qualquer maneira,
duvido que a minha presença seja em absoluto necessária. Com
certeza você...
— Não posso — disse Clayborne. — Ninguém pode a não ser
você. Ninguém domina o assunto como você. Você tem a vida de
Juwain nas mãos. Se vier, viverá; se não vier, morrerá.
— Não posso fazer uma viagem através do espaço — respondeu
Webster.
— Toda a gente pode fazer uma viagem através do espaço —
ripostou Clayborne. — Já não é corno antigamente. Tomam-se todas
as precauções.
— Mas você não me compreende — suplicou Webster. — Você...
— Não, não compreendo — disse Clayborne. — Francamente, não
compreendo. Recusar-se a salvar a vida de um amigo...
Os dois homens fitaram-se longamente, sem palavras.
— Pedirei à Comissão que envie imediatamente uma nave a sua
casa — disse por fim Clayborne. — Espero que até lá se decida a vir.
Clayborne desapareceu e a parede voltou a ser visível, a parede e
os livros, a lareira e os quadros, o mobiliário usado e a promessa de
Primavera que entrava pela janela aberta.
Webster permaneceu enregelado na sua cadeira, fixando a parede
em frente.
Juwain, com o seu rosto peludo e enrugado, a voz sibilante, com a
sua amizade e compreensão. Juwain, que transformava a matéria dos
sonhos em lógica, em regras de vida e de conduta. Juwain, que
utilizava a filosofia como uma ferramenta, como uma ciência, como
um degrau para uma vida melhor.
Webster escondeu o rosto nas mãos e tentou combater a agonia que
o invadia.
Clayborne não o compreendera. Não podia esperar que isso
acontecesse, pois não sabia, não podia saber. E, mesmo que soubesse,
poderia compreender? Mesmo ele, Webster, não o teria compreendido
outrem, antes de o ter descoberto em si próprio, o medo terrível de
deixar a sua lareira, a sua terra, as suas propriedades, os pequenos
símbolos que tinha construído. Não só ele, mas todos os Websters, a
começar no primeiro John J. Homens e mulheres que tinham
estabelecido um culto da vida, uma tradição de comportamento.
Ele, Jerome A. Webster, tinha ido a Marte quando jovem e nem
sequer suspeitara do veneno psicológico que lhe corria nas veias.
Mesmo quando Thomas partira para Marte há uns meses atrás. Mas
trinta anos de vida calma naquele retiro a que os Websters chamavam
lar tinham revelado esse veneno, tinham-no desenvolvido sem que ele
desse por isso. Aliás, não tinha tido oportunidade de o conhecer.
Era clara a forma como o veneno se desenvolvera, clara como um
cristal. O hábito, o padrão mental, a feliz associação com certos
dados, dados que não possuíam valor em si próprios, mas a que uma
família, através de cinco gerações, atribuíra um valor concreto,
definido.
Não era de admirar que todos os outros locais parecessem
estranhos, não era de admirar que os outros horizontes aparecessem
manchados de terror.
E nada podia remediar o mal, nada, a não ser que cortasse todas as
árvores, queimasse a casa e mudasse o curso dos riachos. E, mesmo
assim... mesmo assim...
O televisor tocou. Webster levantou a cabeça e ligou-o.
A sala brilhou, sem imagens. Uma voz disse:
— Mensagem secreta. Mensagem secreta.
Webster fez deslizar uma placa no aparelho, girou dois
comutadores, ouviu o zumbido surgir numa imagem brilhante que
escondia a sala.
— Ligação secreta estabelecida — disse.
O brilho desapareceu e um homem surgiu, sentado no outro lado da
sua secretária. Um homem que já vira frequentes vezes no jornal
televisionado: Henderson, presidente da Comissão Mundial.
— Recebi uma comunicação de Clayborne — disse Henderson.
Webster anuiu, sem falar.
— Disse-me que você se recusa a partir para Marte.
— Eu não me recusei — corrigiu Webster. — Quando Clayborne
desligou, a pergunta ficou em aberto. Eu tinha lhe dito que me era
impossível ir, mas ele não quis aceitar a minha afirmação, não quis
compreender.
— Webster, é preciso que vá — disse Henderson. —Você é o único
homem com conhecimento necessário do cérebro marciano para
poder realizar esta operação. Se fosse uma operação vulgar, talvez
houvesse alguém que a pudesse realizar. Mas não. é.
— É possível que o seja — disse Webster —, mas...
— Não se trata apenas de salvar uma vida — disse Henderson. —
A vida de uma personagem importante como Juwain. Está em jogo
mais alguma coisa. Juwain é seu amigo. Talvez lhe tenha dado a
entender que descobriu qualquer coisa.
— Sim — confirmou Webster —, sim, deu. Um novo conceito
filosófico.
— Um conceito que nos é absolutamente necessário — continuou
Henderson. — Um conceito que reorganizará o sistema solar, que fará
a humanidade progredir cem mil anos no breve espaço de duas
gerações, que propõe um caminho nem sequer sonhado até agora.
Uma nova verdade, compreende? Uma verdade que nunca ocorreu a
ninguém.
As mãos de Webster agarraram-se à secretária até ficarem com os
nós dos dedos brancos.
— Se Juwain morrer — continuou Henderson —, esse conceito
morre com ele e pode perder-se para sempre.
— Tentarei — disse Webster. — Tentarei.
Os olhos de Henderson estavam duros.
— É o máximo que pode prometer-me?
— É — respondeu Webster.
— Mas há de haver uma razão, homem! Uma explicação!
— Nenhuma que eu deseje dar — respondeu Webster.
Inclinou-se e cortou a ligação, com firmeza.
Webster ficou sentado, olhando fixamente as mãos. Mãos hábeis e
conhecedoras. Mãos que podiam salvar uma vida, se conseguisse
levá-las até Marte. Mãos de que dependiam o sistema solar, a
humanidade, os marcianos, uma ideia — uma ideia nova — que os
faria avançar cem mil anos em duas gerações.
Mãos amarradas por uma fobia que nascera da sua vida calma.
Decadência, uma estranha decadência, estranhamente bela e
mortífera.
Os homens tinham já esquecido, há mais de duzentos anos, as
cidades superlotadas, os locais das aglomerações. Tinham vencido os
antigos inimigos e os antigos medos que os reuniam em volta de uma
fogueira; tinham-se libertado dos espíritos malignos das cavernas.
E contudo... contudo...
Este era outro local de aglomeração. Não para o corpo, mas para o
espírito. Uma fogueira psicológica que ainda prendia o homem no
círculo da sua luz.
Mas Webster sabia que era preciso abandonar aquela luz. Do
mesmo modo que os homens tinham abandonado as cidades há
duzentos anos, ele precisava abandoná-la, sem olhar para trás.
Tinha de ir a Marte — pelo menos partir para Marte. Não havia
desculpa possível, tinha de ir.
Se sobreviveria à viagem, se conseguiria realizar a operação, não o
sabia. Pensou vagamente em se a agorafobia seria fatal. Na sua forma
mais exagerada talvez o fosse.
Estendeu a mão para a campainha, mas hesitou. Não era preciso
chamar Jenkins para fazer as malas. Ele as faria, e assim se
conservaria entretido até chegar a nave.
Da prateleira superior do guarda-fatos, no quarto de dormir, tirou
um saco. Estava coberto de pó. Soprou-lhe, mas o pó não saiu. Era o
pó de muitos anos.
Enquanto arrumava a roupa, o quarto discutia com ele, usando
aquela linguagem muda com que as coisas inanimadas, mas
familiares, podem falar às pessoas.
— Não podes ir — disse-lhe o quarto. — Não podes deixar-me.
E Webster respondia-lhe, meio suplicante, meio racionalizante.
— Preciso ir. Não percebes? É um amigo, um velho amigo. E eu
voltarei.
Arrumada a roupa, Webster regressou ao gabinete e afundou-se na
sua cadeira.
Precisava ir e, contudo, não podia ir. Mas quando a nave chegasse,
na hora da partida, sabia que se levantaria e entraria nela.
Fixou nisso o seu espírito, e tentou afastar dele todos os
pensamentos que não fossem os de que ia partir.
Os objetos da sala penetravam-lhe no cérebro como elementos de
uma conspiração para o conservar ali. Objetos que via como que pela
primeira vez. Objetos velhos, muitas vezes recordados, que
subitamente se tornavam novos: o relógio que marcava o tempo da
Terra e de Marte, os dias do mês, as fases da Lua; a fotografia da
mulher morta, sobre a secretária; a taça que ganhara na escola
preparatória; o bilhete, agora emoldurado, que lhe custara dez dólares,
para a sua primeira viagem a Marte.
Olhou para tudo, primeiro contrariado, depois ansiosamente,
enchendo o cérebro com a recordação destes objetos. Via-os como
componentes separados de um quarto que tinha aceitado todos estes
anos como um simples conjunto, sem nunca ter pensado que fora
necessária uma multidão de coisas para formar esse conjunto.
Aproximava-se o por-do-sol, o pôr-do-sol primaveril, o por-do-sol
onde se sentia o odor dos salgueiros.
A nave devia ter chegado há muito. Surpreendeu-se a escutar,
mesmo quando percebeu que não podia ouvi-la. Uma nave movida
por motores atômicos era silenciosa, exceto quando acelerava. Ao
levantar e ao pousar flutuava sem o mínimo ruído.
Em breve chegaria. Era preciso que chegasse depressa, ou não
partiria. Sabia que uma longa espera faria desmoronar a sua resolução
como um monte de poeira sob a chuva. Não poderia manter durante
muito mais tempo a sua decisão contra a súplica do quarto, contra o
brilho do fogo, contra o murmúrio da terra em que cinco gerações de
Websters tinham vivido e morrido.
Fechou os olhos e lutou contra o arrepio que lhe percorria o corpo.
Não podia deixar-se vencer, disse para consigo. Tinha de resistir.
Quando a nave chegasse, era preciso levantar-se e caminhar para ela.
Deram uma leve pancada na porta.
— Entre — ordenou Webster.
Era Jenkins; o fogo da lareira refletiu-se na sua pele metálica.
— Já me tinha chamado, senhor? — perguntou.
Webster abanou a cabeça.
— Julguei que sim — explicou Jenkins —, e fiquei a pensar se
devia vir ou não. Aconteceu uma coisa extraordinária, senhor. Vieram
dois homens numa nave e disseram que o senhor ia partir para Marte.
— Vieram ? — gritou Webster. — E tu não me disseste nada?
Pôs-se de pé de um salto.
— Pensei que não queria ser incomodado, senhor — esclareceu
Jenkins. — Consegui por fim convencê-los de que por nada o senhor
partiria para Marte.
Webster ficou rígido e sentiu um arrepio de medo tocar-lhe o
coração. Com as mãos apoiou-se na borda da secretária e, deixando-se
cair na cadeira, sentiu as paredes da sala fecharem-se sobre ele, uma
armadilha que nunca mais o deixaria escapar.
NOTAS SOBRE O
TERCEIRO CONTO

Os milhares de leitores que gostam deste conto, preferem-no por


ser nele que os cães aparecem pela primeira vez. Para os estudiosos
tem motivos de interesse muito mais importantes. Na sua essência, é
uma história de culpas e futilidades. Nela continua a descrição do
desmoronar da raça humana, com o homem invadido por um
sentimento de culpa e perseguido pela instabilidade da qual resultam
os mutantes.
O conto tenta racionalizar essas mutações, e tenta até apresentar os
cães como sendo modificações da estirpe original. A narração diz que
nenhuma raça pode progredir sem mutações, mas não alude à
necessidade de um certo fator estático na sociedade para assegurar a
sua estabilidade. Através da lenda torna-se bem evidente que a raça
humana dava pouca importância à estabilidade.
Tige, que analisou a lenda em pormenor para reforçara sua tese de
que os contos são de facto de origem humana, crê que nenhum
narrador canino poderia ter imaginado a teoria da mutação, visto ser
um conceito que contraria sob todos os aspectos o credo canino.
Afirma ele que uma ideia como essa teria necessariamente de nascer
de um espírito alheio.
No entanto, Bounce observa que ideias diametralmente opostas à
lógica canina são muitas vezes apresentadas sob uma luz favorável,
através da lenda. Em sua opinião, trata-se apenas do estilo de um bom
narrador — uma deformação de valores destinada a obter certos
efeitos dramáticos.
Não pode haver dúvida de que o homem é apresentado como um
ser consciente das suas próprias limitações. Neste conto, um humano,
Grant, fala de um “sulco de lógica” e torna-se evidente que ele sente
que há qualquer coisa errada na lógica humana. Diz a Nathaniel que a
raça humana está sempre preocupada. Deposita uma esperança quase
infantil na teoria de Juwain, considerando-a como capaz de salvar
ainda, a raça humana.
E Grant, no final, vendo a inevitável tendência da sua raça para a
destruição, entrega o destino da humanidade a Nathaniel.
De todas as personagens que aparecem na lenda, Nathaniel pode
ser a única que tem uma verdadeira base histórica. Noutros contos que
nos chegaram do passado racial, esse nome é mencionado muitas
vezes. Ainda que, evidentemente, seja impossível que Nathaniel tenha
realizado todos os feitos que lhe são atribuídos nesses contos, crê-se
de uma maneira geral que ele na verdade viveu e foi uma figura
importante.
A família humana dos Websters, que foi apresentada no primeiro
conto, continua a manter um lugar proeminente durante o resto da
lenda. Ainda que esse facto possa ser usado como mais uma prova em
favor da teoria de Tige, é possível que, mais uma vez, a família
Webster não seja mais do que um artifício de narração, usado para
estabelecer a continuidade numa série de contos que de outro modo
não teriam qualquer outra ligação íntima.
Para aqueles que tomam as coisas demasiado à letra, a sugestão de
que os cães são o produto da intervenção do homem pode parecer um
pouco chocante. Rover, que sempre considerou a lenda como um.
puro mito, pensa que se trata de uma tentativa primitiva para explicar
as origens raciais. Para esconder a verdadeira falta de conhecimento,
teria sido apresentada no conto uma explicação que corresponde a
uma intervenção divina. Para a mentalidade primitiva teria sido uma
maneira plausível e satisfatória de explicar qualquer coisa sobre a
qual nada se sabe.
III - CENSO

R ICHARD Grant descansava junto da pequena nascente que


brotava na encosta e a descia aos tropeções e às curvas. Um
esquilo passou por ele e trepou a uma nogueira. Atrás do esquilo, num
turbilhão de folhas açoitadas, veio um cão.
Quando viu Grant, o cão refreou a marcha, até parar, e ficou a
olhá-lo, a cauda a abanar, os olhos a dançarem-lhe de alegria.
Grant sorriu.
— Olá! — saudou.
— Viva! — correspondeu o cão.
Grant endireitou-se com um salto, a boca aberta. O cão gargalhou,
com a língua vermelha fora da boca.
Grant estendeu o polegar para a nogueira.
— O teu esquilo está ali.
— Obrigado — disse o cão —, mas já sabia. Cheirei-o.
Espantado, Grant olhou rapidamente em volta, suspeitando de
alguma partida. Talvez ventriloquismo. Mas não havia ninguém à
vista. Na mata estavam apenas ele, o cão, a nascente e o esquilo, que
tagarelava no alto da árvore.
O cão aproximou-se.
— Chamo-me Nathaniel — declarou.
As palavras. Não havia dúvida. Quase igual à fala humana, salvo o
serem pronunciadas cuidadosamente, como alguém que está a
aprender uma língua. E um sotaque, um acento estranho, uma
entonação exótica.
— Vivo no cimo da colina — continuou Nathaniel—, com os
Websters.
Sentou-se e bateu com a cauda no chão, espalhando folhas secas.
Parecia extremamente feliz.
Grant deu um estalido com os dedos.
— Bruce Webster! Agora percebo. Devia ter pensado nisso. Muito
prazer em conhecer-te, Nathaniel.
— Quem é você? — perguntou Nathaniel.
— Eu? Sou Richard Grant, o recenseador.
— O que é um recen... recen...
— Um recenseador é um indivíduo que conta as pessoas —
explicou Grant. — Estou a fazer o censo.
— Há muitas palavras que não sei pronunciar — explicou
Nathaniel.
Levantou-se, foi até à nascente e bebeu ruidosamente. Quando
acabou, estendeu-se ao lado do homem.
— Quer caçar o esquilo? — perguntou.
— Queres que o cace?
— Claro que quero — disse Nathaniel.
Mas o esquilo tinha desaparecido. Esquadrinharam ambos a árvore,
procurando-o em todos os ramos. Não descobriram a cauda peluda
nem os olhinhos brilhantes. Enquanto falavam, o esquilo batera em
retirada.
Nathaniel parecia um bocado aborrecido, mas tentou disfarçar.
— Porque não passa a noite connosco? — convidou ele.
— Amanhã poderíamos ir à caça. Caçar todo o dia.
Grant gargalhou.
— Não quero incomodar-vos. Estou habituado a acampar.
Nathaniel insistiu:
— Bruce ficaria contente por vê-lo. E o Avô não se importava. De
qualquer maneira, ele não dá por metade das coisas que se passam lá
em casa.
— Quem é o Avô ?
— Chama-se Thomas — respondeu Nathaniel —, mas todos o
tratamos por Avô. É o pai de Bruce. É já muito velho. Limita-se a
ficar sentado, pensando no passado.
Grant anuiu.
— Eu sei, Nathaniel: Juwain.
— É isso — concordou Nathaniel. — Que quer isso dizer?
Grant abanou a cabeça.
— Gostaria de poder responder-te, Nathaniel. Gostaria de sabê-lo.
Compôs a sacola no ombro, baixou-se e afagou a orelha do cão.
Nathaniel fez uma careta de felicidade.
— Obrigado — disse. E partiu pelo atalho acima.
Grant seguiu-o.
Thomas Webster estava sentado na sua cadeira de rodas, no parque,
com os olhos pregados nas colinas distantes.
“Amanhã faço oitenta e seis anos”, pensava ele. “Oitenta e seis. E
muito. Talvez demais. Especialmente quando se não pode andar e os
olhos fraquejam.
Elsie far-me-á um bolo estúpido, com montes de velas, os
autômatos dar-me-ão um presente e os cães de Bruce virão dar-me os
parabéns, com o rabo a abanar. Haverá umas quantas chamadas pelo
televisor, não muitas. Eu baterei no peito e gritarei que hei de fazer
cem anos e toda a gente se rirá, tapando a cara com as mãos,
murmurando: Ouçam o velho tonto.
Oitenta e seis aos, e havia duas coisas que queria fazer: uma fiz, a
outra não.
Um corvo sobrevoou o pico distante e mergulhou na sombra de um
vale. De muito longe, do rio, veio o grasnar de um bando de patos
bravos.
Em breve apareceriam as estrelas. Este ano nasciam cedo. Gostava
de olhar para elas. As estrelas! Afagou o braço da cadeira, com
orgulho. As estrelas, por Deus, eram o seu mundo. Seria uma
obsessão? Talvez, mas ao menos serviam para esquecer aquele
estigma antigo: eram o escudo que servia para manter a família longe
dos linguareiros, dos historiadores picuinhas. E Bruce também estava
a ajudar. Aqueles seus cães...
Ouviu uns passos atrás de si, na relva.
— O seu whisky, senhor — disse Jenkins.
Thomas Webster fixou o autômato, tirando o cálice da bandeja.
— Obrigado, Jenkins — disse.
Girou o cálice entre os dedos.
— Há quanto tempo serves bebidas a esta família, Jenkins ?
— Servi seu pai, senhor — elucidou Jenkins—, e seu avô.
— Há alguma novidade ? — perguntou o velho.
Jenkins abanou a cabeça:
— Não, senhor.
Thomas Webster sorveu a bebida.
— Isso quer dizer que eles estão muito para além do sistema solar.
Demasiado distantes, mesmo, para serem captados pela estação de
Plutão. A meio caminho da Alfa do Centauro. Só queria viver o
suficiente para...
— Viverá, senhor — disse-lhe Jenkins. — Sinto-o nos ossos.
— Mas tu não tens ossos — observou o velho.
Acabou de sorver a bebida, devagar, apreciando-lhe o sabor. Água
em demasia, outra vez. Mas não valia a pena. Não ganhava nada em
pintar o diabo com Jenkins. Aquele médico! Dizer a Jenkins para
deitar mais água! Privar um homem de uma bebida decente nos
últimos anos de vida!
— O que é aquilo, ali em baixo? — perguntou, apontando o atalho
que subia a colina.
— Parece-me, senhor — disse ele—, que Nathaniel traz uma visita.
***
Os cães tinham vindo em fila indiana para dizer “boa-noite” e
haviam-se retirado.
Bruce Webster tinha-lhes sorrido.
— Boa pandilha — disse ele.
Voltou-se para Grant:
— Imagino como Nathaniel o assustou esta tarde.
Grant levantou o cálice de brande e examinou a luz-através dele.
— Efetivamente — confirmou. — Por um momento apenas.
Depois lembrei-me de já ter lido qualquer coisa sobre o que se
passava aqui. Não está no âmbito da minha profissão, claro, mas o seu
trabalho tem sido difundido, divulgado em linguagem mais ou menos
comum.
— A sua profissão? — perguntou Webster... — Pensei...
Grant riu.
— Percebo o que quer dizer. Um recenseador. É tudo o que sou,
garanto-lhe.
Webster mostrava-se confundido, um pouco embaraçado.
— Espero, Mr. Grant, não ter...
— De maneira nenhuma — respondeu Grant. — Já estou
habituado a ser tomado por uma pessoa que assenta nomes e idades e
passa ao agrupamento humano seguinte. Persiste ainda a antiga noção
de censo: contagem de narizes, assunto de estatística. No fim de
contas, o último censo foi feito há mais de trezentos anos. E os
tempos mudaram.
— Está a interessar-me — declarou Webster. — Você consegue dar
um ar sinistro a essa contagem de narizes.
— Não é sinistro — protestou Grant.— É lógico. É uma avaliação
da população humana. Não se trata apenas de uma contagem para
saber quantos são, mas como são, o que pensam e o que fazem.
Webster enterrou-se mais na cadeira, estendendo as pernas para a
lareira.
— Não me diga que me vai fazer um exame psicológico, Mr.
Grant!
Grant esvaziou o cálice de brande e depositou-o sobre a mesa.
— Não é necessário — disse. — A Comissão Mundial sabe tudo o
que necessita saber acerca de pessoas como o senhor. Mas os outros
— os montanheses, como lhes chamam aqui? No norte são um bando
de selvagens. Para o sul são qualquer outra coisa. É uma população
escondida, uma população quase esquecida, a que se refugiou nas
florestas. Aquela que se desmembrou quando a Comissão Mundial
alargou as rédeas do Governo.
Webster resmungou.
— Era necessário alargar essas rédeas. A História encarregar-se-á
de o provar. Mesmo antes da formação da Comissão Mundial a
máquina governativa estava demasiado sobrecarregada de elementos.
Eram tão desnecessários os Governos locais há trezentos anos como
hoje o é um Governo mundial.
— Tem absoluta razão — disse Grant —, e, contudo, quando as
rédeas do Governo foram alargadas, o domínio sobre a vida de cada
homem diminuiu também. Para aqueles que queriam escapar-se e
viver fora do Governo, perdendo os benefícios a que tinham direito e
as obrigações que lhes competiam, tudo se tornou mais fácil. A
Comissão Mundial não se importou. Tinha outras coisas a preocupá-
la, além dos irresponsáveis e dos descontentes, e havia muitos. Os
lavradores, por exemplo, que perderam o seu modo de vida devido
aos produtos hidropônicos. Muitos deles tiveram dificuldade em
integrar-se na vida industrial. E então? Então fugiram. Regressaram a
uma vida primitiva. Fizeram umas sementeiras, caçaram, cortaram
madeira, roubaram uma vez por outra. Privados do seu modo de vida,
regressaram à terra, retrocedendo no caminho andado, e a terra
tomou-os à sua guarda.
— Isso foi há trezentos anos — observou Webster. — A Comissão
Mundial não se importou com eles. Fez o que pôde, evidentemente;
não se importou, contudo, por lhe escaparem alguns entre os dedos.
Então porquê esse súbito interesse?
— Penso — replicou Grant — que resolveu estudar de novo a
questão.
Olhou atentamente para Webster, estudando-o. Aqui, descansando
à lareira, a sua face exalava força; as sombras das chamas criavam-lhe
relevos nas feições, tornando-as quase surrealistas.
Grant procurou nos bolsos, descobriu o cachimbo e encheu-lhe o
fornilho.
— Há ainda outra coisa — disse ele.
— Hem? — perguntou Webster.
— Há ainda outra coisa neste censo. Talvez tenham pensado nele
porque, enfim, uma estimativa da população da Terra deve ser
conhecida, deve ser uma informação sempre à mão. Mas não é tudo.
— As mutações — disse Webster.
Grant anuiu.
— É isso. Não o supunha capaz de adivinhar.
— Trabalho nisso — frisou Webster. — Dediquei toda a minha
vida às mutações.
— Têm surgido umas formas de cultura estranhas — disse Grant.
— Material sem precedentes. Formas literárias com a marca de
personalidades novas. Música que quebrou os laços tradicionais. Uma
arte nunca vista. E, na maior parte, obras anônimas ou escondidas sob
um pseudónimo.
Webster riu-se:
— Isso é um mistério profundo para a Comissão Mundial.
— E mais alguma coisa do que isso — explicou Grant.— A
Comissão não se interessa tanto por arte e literatura como se interessa
por outras coisas, as coisas que se escondem. Se está a ter lugar um
renascimento nos bastidores, virá primeiro à luz, naturalmente,
através de novas formas de arte e literatura. Mas um renascimento não
diz só respeito a arte e a literatura.
Webster afundou-se ainda mais na cadeira, cruzou as mãos sob o
queixo e disse:
— Penso que sei aonde você quer chegar.
Ficaram um longo momento sentados em silêncio. Ouvia-se apenas
o crepitar do fogo, o murmurar fantástico do vento outonal, lá fora,
entre as árvores.
— Tivemos uma oportunidade — notou Webster, como se falasse
consigo. — Uma oportunidade de novos pontos de vista que poderiam
vencer a confusão de quatro mil anos de pensamento humano. Um
homem fez perder essa oportunidade.
Grant torceu-se, pouco à vontade, e, de súbito, ficou quieto,
receando que Webster o tivesse visto mover-se.
— Esse homem — declarou Webster — foi meu avô.
Grant sentiu que devia dizer qualquer coisa, que não podia ficar ali
sentado sem dizer nada.
— Juwain podia estar errado — disse. — Nem sabemos se tinha ou
não descoberto um novo fundamento para a filosofia.
— É uma hipótese — declarou Webster — com que costumamos
consolar-nos. Todavia, é bastante improvável. Juwain era um grande
filósofo marciano, talvez o maior que Marte conheceu. Se vivesse,
não tenho a menor dúvida de que teria desenvolvido uma nova
filosofia. Mas não viveu. Não viveu porque meu avô não foi capaz de
partir para Marte.
— Seu avô não teve culpa — disse Grant. — Ele tentou. A
agorafobia é um mal que se não pode vencer...
Webster agitou a mão, como para afastar as palavras.
— Perdeu-se para sempre. É uma coisa que não pode ser
recuperada. Devemos aceitar o facto e começar de novo. E desde que
foi a minha família, desde que foi meu avô...
Grant estremeceu perante o pensamento que lhe ocorreu.
— Os cães. É por isso...
— Sim, os cães — confirmou Webster.
De longe, do rio, veio um som gritante, que se confundiu com o
vento que bramia entre as árvores.
— Um racoon5 — disse Webster. — Se o ouvem, os cães ficam
doidos por sair.
O grito ouviu-se de novo e pareceu ter sido mais próximo.
Imaginação, talvez.
Webster inclinara-se na cadeira e endireitara-se para a frente, com
os olhos fixos nas chamas.
— E no fim de contas, porque não? — perguntou.— Um cão tem
personalidade. Percebemos isso em cada cão que encontramos. Não
há dois que sejam absolutamente idênticos em temperamento. São
todos inteligentes, em graus variáveis. E é tudo o que é preciso —
uma personalidade consciente e um certo grau de inteligência.
Não tiveram ainda uma boa oportunidade, mais nada. Possuíam
dois handicaps6. Não falavam e não caminhavam eretos, e, porque
não caminhavam eretos, as suas mãos não se desenvolveram. Mas, se
não fossem a fala e as mãos, nós podíamos ser cães e os cães homens.

5 Um guaxinim

6Em inglês, a palavra handicap signi ica um obstáculo ou uma


desvantagem.
f
— Nunca tinha visto a questão por esse prisma — confessou
Grant. — Quer dizer, os cães, como uma raça pensante...
— Não — disse Webster, e havia uma certa amargura nas suas
palavras. — É evidente que não. Você via-os como o resto do mundo
ainda os vê. Como curiosidades, como animais de feira, como
mascotes engraçadas. Mascotes que sabem falar.
“Mas há mais alguma coisa, Grant. Juro-lho. Até aqui o homem
caminhou sozinho. Uma raça pensante, inteligente, sozinha. Pense em
como teríamos caminhado mais longe e muito mais depressa se duas
raças pensantes e inteligentes tivessem agido juntas. Porque, repare,
elas não pensariam da mesma maneira. Comparariam os seus
pensamentos. O que uma não fosse capaz de pensar pensá-lo-ia a
outra. A velha história das duas cabeças.
“Pense nisso, Grant. Uma mentalidade diferente da humana que
trabalhasse em cooperação com ela. Que veria e compreenderia coisas
de que a mentalidade humana se não apercebe, que desenvolveria
filosofias de que a mentalidade humana não é capaz. — Estendeu as
mãos para o fogo, umas mãos de dedos compridos, com nós
impiedosos e proeminentes. — Não sabiam falar e eu ensinei-os. Não
foi fácil, porque a língua do cão não está apetrechada para falar. Mas
a cirurgia... primeiro um expediente... a cirurgia e o enxerto. Mas
agora...agora, creio, penso... é demasiado cedo para falar.”
Grant tinha-se inclinado para a frente, tenso.
— Quer dizer que os cães estão a transmitir as mudanças que lhes
operou? Que as correções cirúrgicas se transmitem por
hereditariedade?
Webster abanou a cabeça.
— E demasiado cedo para falar. Dentro de vinte anos talvez possa
dizer alguma coisa.
Levantou a garrafa do brande da mesa, oferecendo-a.— Obrigado
— disse Grant.
—Sou um anfitrião bastante ordinário — observou Webster. —
Podia ter-se servido.
Ergueu o cálice até à luz.
— Tinha bom material para começar o trabalho. O cão é esperto.
Mais esperto do que supomos. O cão comum, o vadio, reconhece
cinquenta palavras ou mais. Cem já não é vulgar. Se lhe juntar mais
cem, pode entender um discurso. Talvez tenha reparado nas palavras
simples que Nathaniel utiliza. Inglês básico, quase.
Grant anuiu.
— Palavras de uma e duas sílabas. Disse-me que havia muitas
palavras que não era capaz de pronunciar.
— Há ainda muito a fazer — disse Webster. — Muito, muito a
fazer. Ler, por exemplo. O cão não vê como nós. Tenho feito
experiências com lentes — lentes de correção — para que vejam
como nós. Se as lentes falharem, há ainda outra possibilidade: o
homem deve procurar descobrir uma maneira de os cães verem —
aprender a imprimir livros que eles possam ler.
— Que pensam os cães de tudo isto? — perguntou Grant.
— Os cães?—disse Webster. — Quer acredite, quer não, Grant,
divertem-se como gente grande.
Fitou o fogo.
— Deus os abençoe — disse.
***
Grant subiu atrás de Jenkins as escadas que levavam ao seu quarto.
Ao passarem por uma porta semicerrada, uma voz chamou-os.
— É você, o visitante?
Grant parou e voltou-se.
Jenkins murmurou:
— É o velhote, senhor. Dorme pouco.
— Sim — disse Grant, alto.
— Está com sono ? — perguntou.
— Não muito — respondeu Grant.
— Entre um bocado — convidou o velho.
Thomas Webster estava sentado na cama, com um barrete listrado
na cabeça. Reparou que Grant olhava para o barrete
—Estou a ficar careca — cacarejou ele. — Não me sinto bem com
a cabeça nua. Não posso usar chapéu na cama.
Gritou para Jenkins:
— Que estás aí a fazer? Não vês que ele quer beber?
— Sim, senhor — disse Jenkins desaparecendo.
— Sente-se — ordenou Thomas Webster. — Sente-se e ouça. Falar
ajuda-me a adormecer. Além disso, não se veem caras novas todos os
dias.
Grant sentou-se.
— Que pensa do meu filho? — perguntou o velho.
Grant espantou-se com a estranha pergunta.
— Penso que é formidável. O trabalho que está a realizar com os
cães...
O velho riu, silenciosamente.
— Ele e os seus cães! Já lhe contei aquela de o Nathaniel andar às
voltas com uma doninha fedorenta? Claro que não contei. Só lhe disse
ainda duas ou três palavras.
Apalpou a coberta da cama com as mãos, os dedos compridos
puxando o tecido, nervosamente.
— Tenho outro filho, sabe? Allen, mas eu chamo-lhe Al. Está agora
mais longe da Terra do que qualquer homem já esteve. Vai em direção
às estrelas.
Grant acenou que sim.
— Eu sei. Li nos jornais. A expedição à Alfa do Centauro.
— Meu pai era cirurgião — disse Thomas Webster.— Queria que
eu o fosse também. Magoei-o muito quando recusei. Mas, se pudesse
saber, esta noite teria orgulho de nós.
— Não deve preocupar-se por causa do seu filho — disse Grant. —
Ele...
O olhar do velho fê-lo calar-se.
— Eu mesmo construí aquela nave. Desenhei-a e vi-a crescer. Se é
apenas uma questão de navegar no espaço, ela chegará ao seu destino.
E o rapaz é bom. É capaz de levar aquela caranguejola até ao Inferno.
— Endireitou-se mais na cama, batendo com o barrete nas almofadas
empilhadas. — E tenho outra razão para pensar que chega lá e
regressa. Na altura não pensei muito nisso, mas agora tenho estudado
o assunto, repisado nele, perguntando-me se não significaria... se não
seria...— Respirou fundo, sufocado. — Não pense que sou
supersticioso.
— Claro que não — respondeu Grant.
— Claro que não sou — disse Webster.
— Talvez um sinal de qualquer espécie — sugeriu Grant. — Uma
sensação, um pressentimento.
— Nada disso — declarou o velho. — É um conhecimento, quase
uma certeza, de que o destino está comigo. Que fui predestinado para
realizar a nave que devia fazer esta viagem. Como se alguém ou
alguma coisa tivesse decidido que era tempo de o homem chegar às
estrelas e dar-lhes uma ajuda.
— O senhor parece estar a falar de um incidente realmente havido
— disse Grant. — Como se houvesse alguma prova positiva de que a
expedição terá êxito.
— Nem mais — confirmou Webster. — É isso, precisamente, o
que eu quero dizer. Aconteceu há uns vinte anos, ali, no jardim desta
casa. — Endireitou-se ainda mais, respirando fundo e assobiando. —
Sabe que eu estava desesperado? O sonho desmoronava-se. Anos e
anos de trabalho para nada. O princípio básico que eu tinha estudado
e desenvolvido a fim de obter a velocidade necessária para o voo
interstelar falhara. E o pior de tudo é que eu sabia estar quase certo.
Sabia que bastava um pequeno pormenor, uma leve alteração teórica.
Simplesmente, não conseguia encontrá-la.
“Estava então sentado no jardim, com pena de mim próprio, com
um esboço do plano na minha frente. Eu vivia só para aquilo,
compreende. Levava-o para toda aparte com uma vaga esperança de
que, olhando constantemente para ele, o erro me saltasse à vista. Sabe
que, às vezes, isto acontece.”
Grant concordou com um sinal de cabeça.
— Estava ali sentado quando apareceu um homem. Um daqueles
montanheses. Sabe o que é um montanhês?
— Sei — respondeu Grant.
— O tipo aproximou-se. Era formidavelmente desajeitado e
deambulava por ali como quem não tem problemas de nenhuma
espécie. Parou, espreitou por cima do meu ombro e perguntou que
desenhos eram aqueles. “Um sistema de propulsão espacial”, disse eu.
Ele inclinou-se para pegar na folha de papel e eu deixei-o. Porque
não? Ele não percebia uma linha daquilo, que, de resto, não prestava
para nada. Passado um bocado, devolveu-me o papel com o dedo
espetado num ponto do desenho. “O seu erro está aqui”, disse-me ele.
Voltou-se e afastou-se rapidamente. Fiquei a olhá-lo, tão espantado
que não pude dizer uma palavra, nem para o chamar.
O velho endireitou-se completamente sobre o leito, com os olhos
fixos na parede e o barrete às três pancadas. O vento batia nos beirais
com um grito cavo. E naquele quarto, tão bem iluminado, sentiam-se
sombras estranhas, embora Grant soubesse que não as havia.
— Conseguiu encontrá-lo? — perguntou Grant.
O velho abanou a cabeça.
— Nem a sombra dele — disse.
Jenkins entrou com um cálice, que depôs na mesinha-de-cabeceira.
— Voltarei para o acompanhar ao seu quarto, senhor — disse para
Grant.
— Não vale a pena — respondeu Grant. — Diga-me onde é.
— Como queira, senhor — disse Jenkins. — Já é o terceiro. Vou
abrir-lhe a luz e deixar a porta aberta.
Ficaram sentados, ouvindo os passos do autômato no corredor.
O velho olhou para o whisky e tossiu.
— Devia ter dito a Jenkins para me trazer um — disse ele.
— Oh, não faz mal — observou Grant. — Beba este. Na verdade,
não me apetece.
— Sério?
— Sério.
O velho aceitou, bebeu um gole e suspirou com gosto.
— Isto é que é uma mistura perfeita — disse. — O médico
ordenou a Jenkins que pusesse água no meu.
Havia qualquer coisa de estranho na casa. Qualquer coisa que fazia
as pessoas sentirem-se estranhas, nuas e inconfortáveis no calmo
murmúrio das suas paredes.
Sentado na borda da cama, Grant desapertou vagarosamente os
sapatos e deixou-os cair no tapete.
Uma autômato que servia a família há quatro gerações, que falava
de homens desaparecidos como se lhes tivesse servido whisky na
véspera. Um velho preocupado com uma nave que atravessava o
espaço desconhecido para além do sistema solar. Um homem que
sonhava com uma outra raça capaz de caminhar de mãos dadas com o
homem pelo trilho do destino.
E, pairando sobre tudo isto, silenciosa e inconfundível, a sombra de
Jerome A. Webster, o homem que tinha traído um amigo, o cirurgião
que tinha atraiçoado o seu dever.
Juwain, o filósofo marciano, tinha morrido na véspera de uma
grande descoberta porque Jerome A. Webster fora incapaz de
abandonar a sua casa; a agorafobia encerrara-o numa propriedade
com alguns quilômetros quadrados.
Com as peúgas calçadas, Grant foi até à mesa onde Jenkins
colocara as suas coisas. Desapertou as correias e retirou um volumoso
caderno. De novo na cama, sentou-se e começou a percorrer as folhas
de papel.
Registos, centenas de registos. A história de centenas de vidas
humanas registrada em papel. Não só o que lhe tinham dito, as
perguntas a que tinham respondido, mas dezenas de pequenas outras
coisas, coisas que observara por ter vivido com elas, durante umas
horas ou um dia.
Porque as pessoas que procurava através do labirinto daquelas
montanhas aceitavam-no. Era obrigação sua fazer-se aceitar.
Admitiam-no porque vinha a pé, arranhado e cansado, com uma
sacola ao ombro. Não mostrava um modernismo que o teria separado
delas e o tornaria suspeito. Era uma maneira fatigante de fazer o
censo, mas a mais eficaz para obter o que queria — e necessitava — a
Comissão Mundial.
Alguém, um dia, estudando folhas de papel como aquelas que se
encontravam sobre a cama, descobriria o que procurava, descobriria o
indício de uma vida que divergia do padrão humano. Qualquer
pormenor de comportamento que distinguiria essa vida de todas as
outras.
As mutações humanas eram comuns, na verdade. Muitas eram
conhecidas em homens que exerciam altos cargos. A maior parte dos
membros da Comissão Mundial eram mutantes, mas as suas
qualidades e aptidões mutacionais tinham sido modificadas e
adaptadas ao padrão mundial, por um condicionamento subconsciente
que casara os seus pensamentos e reações com os dos outros homens.
Houvera sempre mutantes; de outra forma a raça não teria
progredido. Mas até há cerca de cem anos não se lhe reconhecia essa
qualidade. Antes disso os mutantes tinham-se limitado a ser grandes
homens de negócios, grandes cientistas ou grandes bandidos. Ou
talvez excêntricos, que apenas tinham sofrido a troça ou a piedade da
raça que não queria tolerar divergências do normal.
Os que haviam obtido êxito tinham-se adaptado ao mundo que os
rodeava, ajustando o seu maior poder mental ao padrão de Ação
aceito. O facto enfraquecera-lhes a utilidade, limitara-lhes a
capacidade, cortara-lhes as aptidões com restrições inventadas por
pessoas menos extraordinárias.
E ainda então, os mutantes conhecidos achavam-se cortados,
subconscientemente, por um padrão estabelecido por um sulco através
do qual a lógica tinha de prosseguir, e que era algo de terrível.
Mas, perdidos em qualquer parte do mundo, havia dúzias — talvez
centenas — de outros seres humanos que eram um pouco mais do que
humanos — pessoas cujas vidas se mantinham alheias à rigidez da
complexa vida humana. As suas aptidões não se achavam limitadas,
não tinham de seguir esse sulco da lógica.
Do caderno, Grant extraiu um delgado maço de papéis e leu o
título do manuscrito quase com reverência: Proposição Filosófica
Inacabada e Notas, de Juwain.
Seria necessária uma mentalidade que não conhecesse nenhuma
imposição da lógica, uma mentalidade não deformada por quatro mil
anos de pensamento humano para levantar mais alto o facho que a
mão moribunda do filósofo marciano tinha momentaneamente
erguido. Um archote que iluminaria o caminho para um novo conceito
de vida e de fins, que mostraria um atalho mais fácil e mais direto.
Uma filosofia que teria feito a humanidade avançar cem mil anos no
espaço de duas gerações.
Juwain morrera, e naquela casa um homem arrastara os seus
últimos dias povoados de pesadelos, escutando a voz do amigo morto,
fugindo à censura de uma raça ludibriada.
Um arranhar discreto veio-lhe da porta. Sobressaltado, Grant
endireitou-se e escutou. Ouviu-se de novo o arranhar. Depois, um
queixume baixo.
Rapidamente, Grant enfiou as folhas na pasta e dirigiu-se à porta.
Ao abri-la viu Nathaniel enfiar o focinho, como uma sombra negra.
— Oscar não sabe que estou aqui — disse ele. — Dava-mas boas
se o soubesse!
— Quem é Oscar?
— E o autômato que nos guarda.
Grant sorriu para o cão.
— Que queres, Nathaniel?
— Falar consigo — respondeu Nathaniel. — Já falou com toda a
gente, com Bruce e com o Avô. Mas ainda não falou comigo e, no fim
de contas, fui eu que o encontrei.
— Está bem — concordou Grant. — Fala.
— Você está preocupado — observou Nathaniel.
Grant franziu o sobrolho.
— Sim, talvez esteja. A raça humana anda sempre preocupada. Já
devias saber isso, Nathaniel.
— Você está preocupado por causa de Juwain. Como o Avô.
— Não é bem preocupado — protestou Grant. — Apenas
pensativo. E esperançado.
— Mas que importância tem Juwain? — perguntou Nathaniel. —
Quem é ele e...
— Para falar verdade, não é ninguém — declarou Grant. — Quer
dizer, foi alguém, mas morreu há muitos anos. Agora é apenas uma
ideia, um problema, um desafio. Matéria para pensar.
— Eu sei pensar—declarou Nathaniel triunfantemente.— Às vezes
penso muito. Mas não devo pensar como os seres humanos, diz
Bruce. Segundo ele, devo ter pensamentos de cão e deixar de lado os
pensamentos humanos. Que os pensamentos de cão são tão bons
como os dos homens, ou talvez melhores.
Grant anuiu com seriedade.
— Há uma certa verdade nisso, Nathaniel. De facto deves pensar
do maneira diferente dos homens. Deves…
— Há muitas coisas que os cães sabem e os homens não —
recomeçou Nathaniel. — Vemos e ouvimos coisas que os homens não
veem nem ouvem. Às vezes uivamos à noite e os homens afastam-
nos. Mas se pudessem ver e ouvir ficavam transidos de medo. Bruce
diz que somos... que somos...
— Psíquicos ? — perguntou Grant.
— Isso — concordou Nathaniel. — Não consigo lembrar-me de
todas as palavras.
Grant pegou nos pijamas.
— Queres passar a noite comigo, Nathaniel? Podes ficar aos pés da
cama.
Nathaniel olhou para ele, arregalando os olhos.
— Eh! Quer que passe a noite consigo?
— Claro. Se os homens e os cães vão ser aliados, será melhor
começarmos a tratar-nos de igual para igual.
— Não sujo a cama. Palavra que não sujo — disse Nathaniel. —
Oscar deu-me banho esta noite.
Coçou uma orelha.
— Mas parece que deixou escapar uma ou duas pulgas — disse
ele.
***
Grant olhou perplexo para a pistola atômica. Sub-objecto simples,
capaz de realizar vários serviços, desde isqueiro a arma mortífera.
Construído para durar mil anos, à prova de tudo, segundo dizia o
anúncio. Nunca se avariava, exceto agora, que não funcionava.
Apontou a arma para o chão e sacudiu-a vigorosamente; continuou
sem funcionar. Bateu suavemente com ela na pedra, sem resultado.
A noite caía sobre as montanhas. Longe, no vale, um mocho piou
longamente. As primeiras estrelas, pequenas e calmas, subiram a leste
e a oeste e o brilho verde-alaranjado que marcava o pôr-do-Sol
fundia-se na noite.
Os ramos secos, bem como os troncos, estavam empilhados, à
mão, para manter a fogueira acesa durante a noite. Se a arma não
funcionasse, não haveria lume.
Grant praguejou em voz baixa, pensando no frio que ia apanhar e
na comida gelada.
Bateu com a arma na rocha outra vez e com mais força. Nada.
Um ramo estalou na escuridão e Grant pôs-se de pé, de um salto.
Junto ao tronco sombrio de um dos gigantes da floresta que se
destacavam no crepúsculo estava um vulto, alto e desengonçado.
—Viva! — saudou Grant.
— Algum azar, amigo?
— A minha pistola... — explicou Grant, e parou. Não ganhava
nada dizendo ao vulto que estava desarmado.
O homem avançou com a mão estendida.
— Não funciona, hem?
Grant sentiu que lhe tiravam a arma.
O visitante acocorou-se no chão, rindo baixinho. Grant esforçou-se
por ver o que ele fazia, mas a escuridão cada vez maior fazia das
mãos do outro um borrão escuro que se mexia sobre o metal brilhante
da arma.
Ouviu-se o som do metal. O homem respirou fundo e riu-se.
Ouviu-se de novo o som do metal e o homem ergueu-se, estendendo a
arma.
— Já está — disse ele. — Talvez melhor do que dantes.
Um ramo estalou de novo.
— Eh, espere! — gritou Grant, mas o homem já tinha
desaparecido, sombra negra a mover-se entre árvores
fantasmagóricas.
Um arrepio que não vinha da noite percorreu Grant da cabeça aos
pés. Um arrepio que o deixou a bater os dentes, ergueu-lhe os cabelos
da nuca e eriçou-lhe a pele.
Não se ouvia ruído algum, exceto o murmúrio da água na
escuridão, o riachozito que corria perto do acampamento.
Tiritando, ajoelhou-se junto da pilha de ramos e premiu o gatilho.
Uma leve chama azul saltou e os ramos começaram a arder.
***
Grant encontrou o velho Dave Baxter empoleirado na cerca,
lançando uma fumarada do cachimbo que os bigodes quase
escondiam.
— Viva, amigo! — saudou Dave. — Suba e sente-se um bocado.
Grant subiu, olhou para o campo coberto de trigo, alegre com as
suas espigas amareladas.
— A passear? — perguntou o velho Dave.— Ou a espiar ?
— A espiar — admitiu Grant.
Dave tirou o cachimbo da boca, cuspiu e tornou a metê-lo na boca.
Os bigodes fecharam-se amigável e perigosamente sobre ele.
— Escavações?— perguntou o velho Dave.
— Não — disse Grant.
— Andou aí um tipo, há uns quatro ou cinco anos — disse Dave
—, que era pior que um perdigueiro para escavar. Descobriu um local
onde tinha havido uma cidade e virou-o do avesso. Uma vez, fez tudo
quanto pôde para que eu lhe falasse da cidade, mas eu seja cão se me
lembro dela. Esse tipo trazia um monte de mapas que estava sempre a
consultar, mas parece-me que não percebia nada daquilo.
— Andava à procura de antiguidades — sugeriu Grant.
— Talvez — replicou o velho Dave. — Mantive-me sempre
afastado. Mas ainda houve outro pior. Esse andava à procura de uma
estrada que passou por aqui antigamente. Também tinha mapas. Foi-
se embora convencido de que a tinha encontrado, e eu não tive
coragem de lhe dizer que aquele era o caminho das vacas. — Piscou
os olhos para Grant, maliciosamente. — O senhor não anda à procura
de estradas velhas, pois não?
— Não — respondeu Grant. — Sou recenseador.
— É o quê?
— Recenseador — explicou Grant. — Saber o seu nome, a idade e
o lugar onde mora.
— Para quê ?
— O Governo quer saber — disse Grant.
— Mas nós não damos aborrecimentos ao Governo — declarou o
velho Dave. — Porque há de o Governo aborrecer-nos ?
— O Governo não vai aborrecê-los — replicou Grant.
— Até pode ser que decida pagar-lhes qualquer coisa. Nunca se
sabe.
— Nesse caso é diferente — disse o velho Dave.
Continuava empoleirado na cerca, olhando através dos campos.
Subia fumo de uma chaminé que o brilho do Sol escondia. Um riacho
serpenteava através de um prado da cor do Outono e mais além
subiam as montanhas.
Assim escarranchado, Grant sentiu o calor do Sol outoniço nas
costas e cheirou o trigo do campo.
“Que boa vida!”, disse para consigo. “Boas colheitas, lenha, muita
caça. Uma vida feliz!”
Olhou de soslaio para o velho escarranchado a seu lado e viu as
rugas de preocupação que lhe enchiam acara. Tentou, por um
momento, imaginar uma vida como aquela — uma vida simples,
pastoril, semelhante à dos históricos tempos da fronteira americana,
com todas as compensações dela e sem nenhum dos seus perigos.
O velho Dave tirou o cachimbo da boca e apontou os campos.
— Ainda há muito que fazer — anunciou ele —, mas ninguém faz
coisa nenhuma. Os garotos não valem nada. Só querem caçar e pescar.
Os aparelhos estão quase estragados. O Joe há muito tempo que não
aparece. Tem um jeitão para a mecânica, aquele Joe.
— Joe é seu filho?
— Não. É um tipo meio doido que vive na mata. Uma vez ou outra
aparece, conserta umas coisas e desaparece de novo. É raro falar. Não
espera que lhe agradeçam. Levanta-se e parte. Há anos que faz isso. O
Avô dizia que era garoto quando Joe veio pela primeira vez. E
continuou a vir.
Grant susteve a respiração.
— Espere aí. Não pode ser a mesma pessoa.
— Isso é que é estranho — disse o velho Dave. — Talvez não
acredite, amigo, mas ele não está nada mais velho do que quando o
conheci. Um caso engraçado. Contam-se histórias e mais histórias
acerca dele. O Avô costumava dizer que ele lidava com formigas.
— Formigas ?
— Pois. Construiu uma casa — uma casa de vidro, sabe?, em cima
de um formigueiro, e quando o Inverno chegou aqueceu-a. Era o que
o Avô contava. Jurava que tinha visto, mas eu não acredito numa
palavra desta história. O Avô era o maior mentiroso de toda a região.
Era ele que o dizia.
Uma campainha de bronze tocou na chaminé escondida pelo Sol.
O velho desceu da cerca e bateu com o cachimbo, semicerrando os
olhos.
Ouviu-se de novo a campainha na calmaria outonal.
— É a mãe — disse o velho Dave. — O jantar está pronto. Carne
de esquilo, aposto. E boa como sei lá o quê. Vamos depressa.
Um doido que aparecia de vez em quando, consertava avarias e
não esperava por agradecimentos. Um homem que em cem anos não
envelhecera um dia. Um tipo que construíra uma casa de vidro sobre
um formigueiro e a aquecia quando chegava o Inverno.
Não fazia sentido, e, contudo, o velho Baxter não mentira. Não se
tratava de nenhuma daquelas bravatas nascidas na floresta e que ainda
corriam de boca em boca, aproximando-se muito do folclore.
Todo o folclore possuía um tom familiar, uma certa semelhança,
um padrão definido de sabedoria característica que o identificava.
Mas aquilo não. Construir uma casa sobre um formigueiro e aquecê-la
no Inverno era um ato sem humor, mesmo para a mentalidade dos
homens da floresta. Para ser humorista, uma história daquelas
precisava de ter um vigor que aquela não tinha.
Grant revolveu-se no pouco confortável colchão de palha de milho,
puxando a coberta até ao pescoço.
“Os sítios em que eu já dormi”, pensou. “Hoje num colchão de
folhelho de milho, ontem num acampamento, na noite anterior num
colchão macio, com lençóis lavados, em casa dos Websters.”
O vento entrava por um buraco, parava um instante para sacudir
uma tábua solta e, no, regresso, brincava de novo com ela. Um rato
passou, na escuridão. Da cama do andar superior veio o som de uma
respiração regular — dois dos garotos de Baxter dormiam ali.
Um homem que consertava coisas e não esperava por
agradecimentos. Fora o que lhe acontecera com a pistola. Era o que
acontecia há anos na quinta de Baxter. Um tipo doido chamado Joe,
que não envelhecia e tinha umas mãos hábeis para as engenhocas.
O pensamento não o largava. Grant afastou-o, tentou sufocá-lo.
Não era motivo para esperança. Espia, faz perguntas discretas. Olho
vivo, Grant. Não faças perguntas muito às claras, se não queres que
eles se calem.
Tipos engraçados, aqueles montanheses. Tipos que nada tinham
querido obter do progresso — que não haviam se beneficiado dele.
Tipos que tinham voltado costas à civilização e regressado à vida
descuidada da terra e da floresta, do sol e da chuva.
Havia muito lugar para eles na Terra. Havia muito espaço para toda
a gente, porque a população da Terra tinha diminuído nos últimos
anos, canalizada pelos pioneiros que partiam, em rebanhos, para
outros planetas, tentando estabelecer a economia humana noutros
mundos do sistema.
Havia muito espaço, terra e caça.
Talvez assim fosse melhor. Grant lembrou-se de que muitas vezes,
percorrendo montes e vales, lhe ocorrera isso. Em situações
semelhantes, no conforto da coberta feita à mão, na eficiência rude do
colchão de palha, como vento murmurando nas tábuas soltas do
telhado. Situações como quando se sentara no cimo da cerca e a vista
se espraiara pelas espigas douradas amadurecendo ao sol.
Ouviu um ruído na escuridão — o ruído do colchão de palha em
que dormiam os dois garotos. Depois o bater dos pés descalços
caminhando no soalho.
— Está a dormir, senhor? — perguntaram num sussurro.
— Não! Queres deitar-te aqui?
O garoto enfiou-se sob a coberta, encostando os pés frios ao
estômago de Grant.
— O Avô falou-lhe de Joe?
Grant disse que sim com a cabeça, na escuridão.
— Disse que ele não tem aparecido ultimamente.
— Falou-lhe nas formigas?
— Pois claro. Sabes alguma coisa delas?
— Eu e o Bill encontrámo-las há tempo, mas é segredo. Só
dizemos ao senhor. Temos de lhe dizer, pois o senhor é do Governo.
— Há de facto uma casa de vidro sobre o formigueiro?
— Sim, e... e... — a voz do garoto gaguejava, excitada — e não é
tudo. As formigas tinham carroças e do formigueiro saíam chaminés a
deitar fumo. E... e...
— Sim, e que mais?
— Não quisemos ver mais. Eu e o Bill tivemos medo. Fugimos.
O garoto meteu-se mais entre os lençóis.
— Eh! Já viu uma coisa assim? Formigas a puxar carroças ?
***
As formigas puxavam carroças. E havia chaminés espreitando do
formigueiro, chaminés que lançavam leves rolos de fumo com um
cheiro que fazia lembrar o do minério em fusão.
Com a cabeça a latejar, Grant acocorou-se, observando as carroças
que seguiam aos solavancos ao longo do caminho que levava à terra
virgem. Carroças vazias que iam, carroças cheias que voltavam —
cheias de sementes e de um ou outro corpo desmembrado de um
inseto. Pequeninas carroças que se moviam rapidamente, aos
solavancos, puxadas por formigas ajaezadas!
A redoma de vidro que outrora cobrira o ninho ainda lá estava, mas
quebrada e abandonada, como se tivesse existido para um fim ora
inexistente.
O vale era selvagem, formado de terra quebradiça que rolava até às
margens do rio, atolado de barragens, alternando com pequenas
manchas de ervas e poderosas florestas de carvalhos. Um lugar
solitário que nunca ouvira uma voz, exceto a voz do vento no topo das
árvores e as vozes pequeninas das coisas selvagens que caminhavam
por atalhos secretos.
Era um lugar onde as formigas podiam viver sem ser incomodadas
pelo arado ou por um pé distraído, numa continuação dos seus
milhões de anos de existência sem sentido que começara um dia antes
do aparecimento do homem — um dia antes do primeiro pensamento
abstrato que apareceu na Terra. Um destino fechado e imutável, sem
nenhuma outra finalidade que a de permitir que as formigas vivessem.
E repentinamente alguém alargara o âmbito desse destino, alguém
o orientara para outro caminho e dera às formigas o segredo da roda,
o segredo de trabalhar metais. Quantos outros handicaps naturais
teriam sido desfeitos naquele formigueiro, violando a lei rígida do
progresso?
Talvez a pressão da fome fosse um handicap cultural que
desaparecera para as formigas. Desde que tivessem alimentação
abundante, teriam tempo para outras coisas além da procura do
sustento.
Outra raça a caminho da grandeza, desenvolvendo-se segundo a
base social que nascera naquele remoto dia em que uma coisa
chamada “homem” conhecera pela primeira vez a sensação da
grandeza.
Aonde iria? Como seria a formiga dentro de um milhão de anos?
Poderiam a formiga e o homem vir a encontrar um denominador
comum, como encontrariam o cão e o homem para realizar um
destino cooperativo?
Grant abanou a cabeça. As probabilidades eram poucas. Porque, se
no cão e no homem corria sangue comum, a formiga e o homem eram
coisas à parte, formas de vida que nunca se compreenderiam. Não
possuíam nenhuma base comum como a que, na era paleolítica, unira
o cão e o homem, que, cabeceando junto da fogueira acesa, se
defendiam dos olhos que rondavam na escuridão.
Grant sentiu mais do que ouviu o ruído de pés sobre a erva alta,
atrás de si. Ereto, girou sobre os calcanhares e viu o homem na sua
frente. Um homem desengonçado, de ombros dobrados e mãos que
pareciam maços, mas cujos dedos se adivinhavam brancos e suaves.
— Você é o Joe? — perguntou Grant.
O homem confirmou:
— E você é o homem que anda a perseguir-me.
Grant respirou fundo.
— Talvez. Não a você em particular, mas a alguém como você.
— Alguém diferente de mim — disse Joe.
— Porque não ficou, naquela noite? — perguntou Grant. — Porque
fugiu? Queria agradecer-lhe por ter-me consertado a arma.
Joe limitou-se a olhá-lo, mas para além dos lábios silenciosos
Grant sentia-o divertido, com um divertimento secreto e enorme.
— Como diabo sabia você que a arma estava avariada?—
perguntou Grant. — Tinha-me estado a observar?
— Ouviu-o pensar que estava avariada.
— Ouviu-me pensar?
— Sim — disse Joe —, como o ouço agora pensar.
Grant riu-se, pouco à vontade. Era desconcertante, mas lógico.
Devia ter esperado aquilo — aquilo e muito mais.
Apontou para o formigueiro.
— Estas formigas são suas?
Joe anuiu e o divertimento tornou-se evidente nos seus lábios.
— Porque se está a rir? — atirou Grant.
— Não me estou a rir — replicou Joe; e, sem saber porquê, Grant
sentiu-se culpado, culpado e pequeno, como uma criança esbofeteada
por uma ação que sabia não dever praticar.
— Devia duplicar os seus apontamentos — disse Grant.— Podiam
ser correlacionados com os trabalhos de Webster.
Joe encolheu os ombros.
— Não tenho apontamentos — disse ele.
— Não tem apontamentos?!
O homem desengonçado aproximou-se do formigueiro e olhou-o.
— Talvez você já tenha adivinhado porque fiz isto — declarou ele.
Grant assentiu gravemente.
— Devia ter pensado nisso. Curiosidade experimental,
provavelmente. Talvez compaixão por uma forma de vida inferior.
Talvez pelo sentimento de que, por ter partido à cabeça, o homem não
tem direito ao monopólio desse avanço.
Os olhos de Joe brilharam ao sol.
— Curiosidade, talvez. Nunca tinha pensado nisso.
Sentou-se junto do formigueiro.
— Já alguma vez pensou por que motivo a formiga avançou tanto e
de repente parou? Por que razão construiu uma organização social
quase perfeita e ficou por aí? O que a fez parar?
— A pressão da fome, pelo menos — disse Grant.
— Isso e a hibernação — declarou o homem desengonçado. —
Compreende, a hibernação apagou o padrão da memória de uma
estação para outra. Todas as Primaveras começavam de novo, partiam
do nada. Não podiam se beneficiar dos erros passados, progredir por
acumulação do conhecimento.
— Então você alimentou-as...
— E aqueci o formigueiro — disse Joe—, para não serem
obrigadas a hibernar. Assim não eram obrigadas a recomeçar todas as
Primaveras.
— E as carroças ?
— Fiz algumas e deixei-as aí. Levaram dez anos, mas acabaram
por descobrir para que serviam.
Grant apontou para as chaminés.
— Fizeram-nas elas — respondeu Joe.
— Mais alguma coisa?
Joe ergueu os ombros, com ar cansado.
— Como posso saber ?
— Mas, homem, você observou-as. Apesar de não ter notas,
observou-as.
Joe abanou a cabeça.
— Há quase quinze anos que as não via. Vim hoje porque o vi
encaminhar-se para aqui. Sabe, estas formigas já não me divertem.
Grant abriu a boca e fechou-a de novo. Por fim disse:
— É então essa a resposta. Foi por isso que o fez. Por pura
diversão.
Não havia vergonha, nem defesa, no rosto de Joe: apenas uma
expressão magoada pedindo que se não falasse das formigas.
E Joe disse:
— Claro, porque havia de ser?
— A minha arma ? Também o divertiu ?
— A arma não — disse Joe.
“Não era a arma”, disse o cérebro de Grant. “Não era a arma, meu
estúpido, mas tu. Tu é que o divertias. E estás a diverti-lo agora.
“Consertar a maquinaria agrícola do velho Baxter e partir sem
ouvir os agradecimentos devia ter uma piada doída para ele.
Provavelmente andou dias e dias a torcer-se com gargalhadas
silenciosas, depois de ter apontado ao velho Thomas Webster onde
estava o erro do seu propulsor espacial.
“Como um garoto traquina pregando partidas a um cachorrinho.”
A voz de Joe quebrou-lhe o fio dos pensamentos.
— Você é recenseador, não é? Porque não me faz perguntas?
Agora, que me encontrou, não pode partir sem me registar.
Especialmente a minha idade. Tenho cento e sessenta e três anos e sou
apenas um adolescente. Viverei pelo menos mais mil anos.
Apontou os joelhos ossudos contra o peito e embalou-se
suavemente.
— Mais mil anos, se tiver cuidado comigo...
— Mas isso não é tudo — disse-lhe Grant, tentando manter-se
calmo. — Há mais alguma coisa. Uma coisa que você pode fazer por
nós.
— Por nós ?
— Pela sociedade — esclareceu Grant. — Pela raça humana.
— Porquê?
Grant fitou-o, espantado.
— Quer dizer que não se importa?
Joe abanou a cabeça e o gesto não era de bravata, nem de desafio
às convenções. Era a rude afirmação de um facto.
— Dinheiro ? — sugeriu Grant.
Joe estendeu as mãos para as montanhas que os rodeavam, para o
vale onde corria o rio.
— Tenho isto — disse ele. — Não preciso de dinheiro.
— Fama, talvez ?
Joe não cuspiu, mas deu a entender, pela expressão, que o teria
feito com gosto.
— Gratidão da raça humana?
— É transitória — disse Joe, e a troça apareceu-lhe de novo nas
palavras. Sentia-se que estava divertido pela expressão dos seus
lábios.
— Ouça, Joe — pediu Grant, e, embora tentasse ocultá-lo, a sua
voz era suplicante. — O que quero que você faça é importante...
importante para as gerações futuras, importante para a raça humana,
um marco no nosso destino...
— E porque havia eu de fazer alguma coisa por aqueles que ainda
não nasceram? — perguntou Joe. — Quando morrer, morrerei e toda
a gritaria e toda a glória, todas as bandeiras e cornetas, nada serão
para mim. Não saberei se a minha vida foi rica ou pobre.
— A raça — disse Grant.
Joe riu-se, com uma gargalhada alta.
— A preservação da raça, o progresso da raça. É o que você quer.
Mas porque há de preocupar-se com isso? Ou eu ?
O ricto do riso abrandou-se e ele abanou o dedo numa admoestação
trocista.
— A preservação da raça é um mito... um mito que todos vocês
aceitam — um produto da vossa estrutura social. A raça morre todos
os dias. Quando um homem morre, a raça acaba para ele; quanto ao
que lhe diz respeito, deixou de haver raça.
— Você não se interessa — disse Grant.
— É o que lhe tenho estado a dizer — confirmou Joe.
Olhou para a mochila e um sorriso perpassou-lhe nos lábios.
— Se me interessasse, talvez...— sugeriu.
Grant abriu a mochila, tirou o caderno. Quase com relutância,
puxou o monte de papéis e leu o título:
Proposição Filosófica...
Estendeu-o a Joe e ficou a vê-lo ler rapidamente, e ao observá-lo
sentiu que a consciência de um malogro terrível se apossava do seu
cérebro.
Em casa de Webster tinha sonhado com uma mentalidade que não
conhecesse nenhumas obrigações lógicas, uma mentalidade não
deturpada por quatro mil anos de confuso pensamento humano.
Talvez fosse a solução — tinha pensado.
Aqui estava ela, e contudo não bastava. Faltava qualquer coisa —
qualquer coisa em que não tinha pensado, qualquer coisa em que nem
os homens de Genebra tinham pensado. Qualquer coisa, uma parte da
caracterologia humana que todos, até então, tinham tomado por
garantida.
A pressão social tinha mantido a raça humana unida através dos
milênios — tinha-a mantido unida como a pressão da fome mantivera
as formigas escravizadas a um padrão social.
A necessidade que cada ser humano tem da aprovação do seu
semelhante, a necessidade de se cultivar a camaradagem — a
necessidade psicológica, quase fisiológica, da aprovação do
pensamento e da ação de cada um. Uma força que impedia os homens
de fugir por tangentes não sociais, uma força orientada para a
segurança social e solidariedade humana, para o trabalho unido da
família humana.
Os homens morriam para ter essa aprovação, sacrificavam-se por
ela e por ela viviam vidas odiadas. Porque sem ela o homem estava
só, banido, como um animal escorraçado do rebanho.
Conduzia inevitavelmente a coisas temíveis — a uma psicologia de
multidões, a uma perseguição racial, a atrocidades em massa feitas em
nome do patriotismo ou da religião. Mas, simultaneamente, era o elo
que mantinha unida a raça, a razão que desde o início tornara possível
a sociedade humana.
E Joe não a possuía. Joe não queria saber disso. Não queria saber
do que pudessem pensar dele. Tanto lhe importava que o aprovassem
como não.
Grant sentia o sol quente nas costas, ouvia o murmúrio do vento
caminhando entre as árvores. E, num ramo, uma ave começou a
cantar.
Era essa a tendência das mutações? Este afastamento do instinto
básico que fizera do homem o membro de uma sociedade?
Teria este homem, que a seu lado lia o testamento de Juwain, teria
este homem descoberto dentro de si, através da sua mutação, uma
vida tão completa que lhe permitia prescindir da aprovação dos seus
semelhantes? Teria ele, finalmente, e ao fim de tantos anos, alcançado
aquele estágio de civilização em que o homem se erguia
independente, desdenhando todo o artificialismo da sociedade ?
Joe levantou os olhos.
— Muito interessante — disse ele. — Porque não acabou ele isto?
— Morreu — disse Grant.
Joe encheu a boca de ar.
— Há uma coisa em que ele estava errado — Percorreu as páginas
e apontou com o dedo. — Aqui. Aqui está o erro. Foi o que o impediu
de continuar.
Grant gaguejou.
— Mas... mas não devia haver erro nenhum. Ele morreu, mais
nada. Morreu antes de acabar.
Joe dobrou cuidadosamente o manuscrito e meteu-o no bolso.
— Mesmo assim — disse ele. — Provavelmente teria estragado
tudo.
— Você pode acabá-lo? Você...
Grant sabia que não valia a pena continuar. Lera a resposta nos
olhos de Joe.
— Você acha, realmente — respondeu Joe, e as palavras eram
tensas e medidas —, que eu era capaz de entregar isto aos miseráveis
humanos que sois?
Grant admitiu a derrota.
— Penso que não. Devia tê-lo adivinhado. Um homem como
você...
— Eu posso utilizar isto para mim — disse Joe.
Levantou-se vagarosamente. Atirou com um pé preguiçoso e abriu
um rasgão no formigueiro, derrubando as chaminés fumarentas,
enterrando as carroças laboriosas.
Com um grito, Grant levantou-se de um salto, doido de cólera, uma
cólera cega que o levou a pegar na pistola.
— Pare com isso! — ordenou Joe.
O braço de Grant estacou, mantendo a arma ainda apontada para o
chão.
— Calma, menino — disse Joe. — Sei que gostaria de matar-me,
mas não o deixarei fazê-lo. Tenho os meus planos, sabe? E, no fim de
contas, você não me mataria pela razão que pensa.
— Que importa a razão por que o mato? — gritou Grant. — Morre,
não morre ? Ao menos não anda à solta com a filosofia de Juwain.
— Mas — replicou Joe, quase gentilmente — não é por isso que
me quer matar. Quer matar-me porque o enfureceu o ter quase
destruído o formigueiro.
— De início talvez fosse essa a razão — confessou Grant—, mas
agora não...
— Não tente — disse Joe. — Antes de premir o gatilho apanha
você.
Grant hesitou.
— Se pensa que estou a tentar enganá-lo — avisou Joe —,
experimente.
Durante um longo momento os dois homens mediram-se, a arma
apontada ainda para o chão.
— Porque não se junta a nós? — convidou Grant.— Precisamos de
homens como você. Foi você quem ensinou ao velho Thomas Webster
como deveria construir o propulsor espacial. O trabalho que você fez
com as formigas...
Joe avançou rapidamente e Grant levantou a arma. Viu o punho
avançar, como uma maça, poderoso, a assobiar na sua prodigiosa
velocidade.
Um punho mais rápido do que o seu dedo no gatilho.
***
Uma coisa húmida e quente roçava na cara de Grant. Levantou a
mão e tentou afastá-la.
Mas a coisa continuou a percorrer-lhe a cara.
Abriu os olhos e Nathaniel fez uma pirueta.
— Está bem — disse Nathaniel. — Tive tanto medo...
— Nathaniel! — exclamou Grant com voz rouca. — Que fazes
aqui?
— Fugi — respondeu Nathaniel. — Quero ir consigo.
Grant abanou a cabeça.
— Não podes ir comigo. Vou para longe. Tenho um trabalho a
fazer.
Pôs-se de gatas e esquadrinhou o solo. Quando tocou no metal frio,
apanhou a arma e pô-la no coldre.
— Deixei-o fugir — disse ele —, e não posso deixá-lo ir. Dei-lhe
uma coisa que pertence à humanidade e não posso consentir que a
use.
— Posso segui-lo— disse Nathaniel. — Sigo esquilos e tudo o
mais.
— Tens coisas mais importantes a fazer — disse Grant ao cão. —
Sabes?, descobri hoje uma coisa. Vislumbrei um caminho — um
caminho que toda a humanidade pode vir a seguir. Não hoje, nem
amanhã, nem talvez daqui a mil anos. Talvez nunca, mas é uma coisa
que não deve-mos desperdiçar. Pode ser que o Joe esteja apenas um
pouco à frente de nós no caminho e que nós possamos segui-lo mais
depressa do que pensamos. Podemos todos acabar como o Joe. E é
isso que vai acontecer. E é assim que tudo vai terminar, vocês, os
cães, têm um grande trabalho à vossa frente.
Nathaniel ergueu os olhos para ele. Fundas rugas de preocupação
vincavam-lhe o focinho.
— Não compreendo — suplicou ele. — Usa palavras que não
entendo.
— Ouve, Nathaniel. Pode ser que os homens venham a ser
diferentes daquilo que hoje são. Pode ser que mudem. E se mudarem
continuarão vocês. Peguem no sonho e continuem-no. Terão de fingir
que são homens.
— Os cães assim farão — prometeu Nathaniel.
— Não acontecerá antes de milhares e milhares de anos —
esclareceu Grant. — Terão tempo para se prepararem. Mas é preciso
que saibam. É preciso que passem a palavra. Não devem esquecer-se.
— Eu sei — disse Nathaniel. — Nós, cães, diremos aos cachorros,
e os cachorros dirão aos seus cachorros.
— Isso mesmo — confirmou Grant.
Baixou-se e coçou a orelha de Nathaniel. O cão, abanando a cauda,
ficou a vê-lo subir a colina.
NOTAS SOBRE O QUARTO
CONTO

De todos os contos, é este que tem cansado maior angústia


naqueles que procuram um significado e uma explicação para a lenda.
Mesmo Tige admite que se trata de um mito, e nada mais. Mas, se
é um mito, o que significa? Se este conto é um mito, não o serão
também todos os outros?
Supõe-se que Júpiter, onde a ação decorre, é um dos outros mundos
que se encontram no espaço. A impossibilidade cientifica da
existência de outros mundos foi já apontada noutro local. A aceitar a
teoria de Bounce de que os outros mundos a que a lenda se refere não
passam da própria multiplicidade dos nossos mundos, é legitimo
supor que desde então até hoje teria havido tempo suficiente para o
localizar, se ele existisse. É do conhecimento comum que alguns dos
mundos dos penantes estão fechados, mas a razão disso é bem
conhecida, e nenhum deles está fechado em virtude das condições que
este quarto conto nos descreve.
Alguns acadêmicos pensam que o quarto conto nada tem que ver
com a lenda, onde teria sido intercalado. É difícil aceitar esta
conclusão, visto o conto estar, na realidade, ligado à lenda e fornecer
um dos principais eixos sobre os quais gira a história.
A personalidade de Towser, neste conto, tem sido citada em muitas
ocasiões como inconsistente com a dignidade da nossa raça.
Contudo, embora Towser possa ser antipático para os leitores
exigentes, nesta história ultrapassa os humanos. É Towser, e não o
homem, quem primeiro aceita a situação que surge; é Towser, e não o
homem, quem primeiro a compreende. E a mentalidade de Towser,
uma vez libertada do domínio do homem, mostra-se, pelo menos,
igual à dele.
Towser, ainda que cheio de pulgas, é uma personagem de que não
devemos envergonhar-nos.
Embora pequeno, este conto é, provavelmente, o mais importante
dos oito. Recomenda-se que seja lido com calma e ponderação.
IV - DESERÇÃO

Q uatro homens, dois a dois, tinham entrado no redemoinho


gigante de Júpiter e não haviam regressado. Penetraram no
vento cortante — ou melhor, correram com a barriga colada ao
chão e os membros molhados brilhando sob a chuva.
Porque eles não tinham penetrado sob a forma humana.
Agora o quinto homem estava em frente da secretária de Kent
Fowler, chefe da estação n.º 3 da Comissão de Estudos de Júpiter.
Sob a secretária de Fowler, o velho Towser coçou uma pulga e
preparou-se para readormecer.
Com um sobressalto, Fowler verificou que Harold Hallen era
jovem — demasiado jovem. Possuía a confiança fácil da juventude, a
expressão de quem nunca conhecera o medo. Era estranho. Nas
estações de Júpiter os homens conheciam o medo e a humilhação. Era
difícil para o homem conciliar o seu pequeno ser com as forças
poderosas do planeta monstruoso.
— Compreende — disse Fowler — que não é obrigado a fazer
isto? Compreende que não é obrigatório ir?
Era um pró-forma, claro. Tinha dito a mesma coisa aos outros
quatro, mas eles haviam partido. Fowler sabia que o quinto também
iria. Mas, repentinamente, sentiu a esperança estúpida de que Allen se
negasse.
— Quando parto ? — perguntou Allen.
Noutra altura Fowler teria tido orgulho nesta resposta, mas não
agora. Estremeceu ligeiramente.
— Dentro de uma hora — disse.
Allen ficou calmo, esperando.
— Quatro homens foram já e não voltaram — disse Fowler. —
Você sabe isso, evidentemente. Nós queremos que volte. Não
queremos que se arme em herói salvador. A questão principal, a única
questão, é voltar para provar que o homem pode viver sob a forma
dos habitantes de Júpiter. Vá até ao primeiro marco topográfico e
volte — não vá mais longe. Não se arrisque. Não faça investigações.
Volte, é só o que lhe peço.
Allen anuiu.
— Compreendo perfeitamente.
— Miss Stanley vai trabalhar com o conversor — continuou
Fowler. — Até aí não tenha medo. Os outros foram convertidos sem
inconvenientes. Saíram do conversor em condições aparentemente
perfeitas. Você está em boas mãos. Miss Stanley é a melhor operadora
de conversores do sistema solar. Tem a experiência da maioria dos
outros planetas, e é por isso que aqui está.
Allen sorriu para a mulher e Fowler viu qualquer coisa atravessar
as feições de Miss Stanley, coisa que tanto poderia ser piedade, como
raiva ou, mais simplesmente, medo. Mas desapareceu logo, e ela
retribuiu sorriso ao jovem que estava na frente da secretária. Sorriu
com aquela sua maneira discreta, tipo mestre-escola, como se se
odiasse por fazê-lo.
— Espero ansiosamente a minha conversão — disse Allen.
A maneira como falou transformou a frase numa piada, numa
enorme piada.
Mas não o era.
Era um assunto sério, mortal. Fowler sabia que o destino dos
homens em Júpiter dependia destas experiências. Se elas obtivessem
êxito, os recursos do planeta gigantesco seriam desvendados. O
homem instar-se-ia em Júpiter como já o tinha feito nos planetas
menores. Mas se falhassem?
Se falhassem, o homem continuaria amarrado e esmagado pela
pressão terrível, pela força da gravidade mais elevada, pelas
extraordinárias ações químicas do planeta. Continuaria fechado nas
estações, impedido de pôr o pé no planeta, impossibilitado de o
observar diretamente, forçado a recorrer aos tratores desajeitados e
aos televisores, forçado a trabalhar com ferramentas estúpidas, ou
com autômatos igualmente estúpidos.
Porque o homem, na sua forma natural e desprotegido, seria
esmagado pela terrível pressão de Júpiter — uma tonelada por
centímetro quadrado —, uma pressão que fazia os fundos dos oceanos
terrestres parecerem rarefeitos.
Nenhum dos mais fortes dos metais que os homens da Terra
pudessem conceber poderia suporta uma tal pressão — a pressão e as
chuvas alcalinas que caíam incessantemente no planeta. Tornar-se-ia
quebradiço, desfar-se-ia em migalhas, como a cal, ou correria em
pequenos riachos e poças de sais de amônio. Só aumentando a dureza
e a força desse metal, por elevação da sua tensão eletrônica, se
poderia aguentar o peso dos milhares de quilômetros dos gases
rodopiantes e asfixiantes que constituíam a atmosfera. E depois era
necessário cobrir tudo com uma camada de rijo quartzo para afastar a
chuva — a amônia líquida que corria como a chuva.
Fowler escutava o ruído das máquinas no subsolo da estação —
máquinas que trabalhavam incessantemente. Tinham de trabalhar e
trabalhar, pois se parassem, a potência que lançavam nas paredes
metálicas desapareceria, a tensão eletrônica diminuiria e seria o fim
de tudo.
Towser mexeu-se debaixo da secretária de Fowler e coçou outra
pulga, batendo a perna com força contra o chão.
— Mais alguma coisa? — perguntou Allen.
Fowler abanou a cabeça.
— Talvez você tenha alguma coisa para fazer. Talvez você...
Ia dizer para ele escrever uma carta, mas ficou satisfeito por ter
conseguido dominar-se a tempo.
Allen olhou para o relógio.
— Voltarei a tempo — disse.
Girou sobre os calcanhares e dirigiu-se para a porta.
Fowler sabia que Miss Stanley o observava, mas não quis voltar-se
para a encarar. Brincou com um monte de papéis sobre a secretária.
— Durante quanto tempo vai durar isto? — perguntou Miss
Stanley, pronunciando maliciosamente cada palavra.
Fowler rodou a cadeira para a encarar. Tinha uns lábios finos e os
cabelos muito puxados para trás davam-lhe um ar estranho, como se o
rosto fosse uma máscara funerária.
Ele tentou dar à voz um ar frio e indiferente.
— Enquanto for necessário — respondeu. — Enquanto houver
uma esperança.
— Vai continuar a condená-los à morte — disse ela. — Vai
continuar a obrigá-los a enfrentar Júpiter. E você, aqui sentado
confortavelmente, envia-os para a morte.
— Nada de sentimentalismos, Miss Stanley — opôs Fowler,
tentando evitar que a cólera transparecesse nas suas palavras. — Sabe
tão bem como eu a razão por que fazemos isto. Você sabe bem que o
homem, na sua forma normal, não pode lutar com Júpiter. A única
solução é dar aos homens outra forma para poderem lutar com o
planeta. Procedemos assim noutros planetas.
“Se alguns homens morrerem mas tivermos um êxito final, o preço
é pequeno. Através da História os homens deram as suas vidas por
coisas insignificantes. Porque hesitaríamos, portanto, perante algumas
mortes numa empresa desta envergadura?”
Miss Stanley manteve-se rígida e direita, com as mãos cruzadas no
regaço, a luz a brilhar-lhe nos cabelos grisalhos, e Fowler,
observando-a, tentou imaginar o que ela sentiria e pensaria. Não tinha
medo dela, mas na sua presença não se sentia à vontade. Aqueles
penetrantes olhos azuis viam demasiado, aquelas mãos eram
demasiado sabedoras. Podia ser a “Tia não sei de quem” sentada na
cadeira de balanço, fazendo malha. Mas não era, era a melhor
operadora de conversores do sistema solar e não gostava da maneira
como ele estava a ver as coisas.
— Há um erro qualquer, Sr. Fowler — declarou ela.
— Precisamente — concordou Fowler. — É por isso que mando
Allen sozinho. Pode ser que ele descubra alguma coisa.
— E se não descobrir?
— Mandarei outro.
Ela levantou-se vagarosamente da cadeira e encaminhou-se para a
porta. Parou em frente da secretária.
— Ainda virá a ser um homem famoso, um dia — disse ela. —
Não deixa escapar uma única oportunidade. Esta é a sua. Soube disso
quando escolheram esta estação para as experiências. Se vencer,
subirá dois ou três degraus. Pouco importa que morram alguns
homens, o essencial é trepar os dois ou três degraus.
— Miss Stanley — pronunciou ele com voz ríspida —, o jovem
Allen vai partir dentro de momentos. Certifique-se de que o seu
aparelho...
— O meu aparelho — replicou ela friamente — não tem culpa
nenhuma. Opera de acordo com as coordenadas estabelecidas pelos
biólogos.
Ficou encostado à secretária, ouvindo-lhe os passos perderem-se
no corredor.
Ela dissera a verdade, sem dúvida, os biólogos tinham estabelecido
as coordenadas. Mas os biólogos podiam enganar-se. Uma diferença
da grossura de um cabelo, uma alteração mínima, e o conversor daria
uma coisa que não era o que se pretendia. Um mutante que podia
estoirar, desorientar-se ou ser detido por condições ou pressões de
todo insuspeitadas.
Porque o homem não sabia muito bem o que se passava lá fora.
Apenas sabia o que os instrumentos lhe diziam. E as amostras dos
acontecimentos, fornecidas por esses instrumentos e mecanismos, não
passavam de amostras, pois Júpiter não tinha fim e eram bem poucas
as estações.
Mesmo o trabalho dos biólogos, que colhiam elementos acerca dos
galopadores, que eram a forma de vida mais avançada em Júpiter,
levara mais de três anos de intenso estudo e mais dois de verificação.
Um trabalho que na Terra seria feito em poucas semanas. Neste caso,
porém, o trabalho não podia ser feito na Terra, porque a vida de
Júpiter não podia ser transportada para lá. A pressão de Júpiter não
podia ser igualada em nenhum outro ponto e sob a pressão da Terra os
galopadores evolar-se-iam.
Contudo, esse trabalho tinha de ser feito se o homem pretendia vir
a mover-se em Júpiter sob a forma de galopador. Porque, antes de o
conversor transformar um homem noutra forma de vida, tinham de ser
conhecidas as mais pormenorizadas características — com segurança
e certeza, sem margem para falhas.
***
Allen não regressou.
Os tratores, pesquisando no terreno próximo, não encontraram
traço dele, a menos que o ser encontrado por um deles fosse o
desaparecido homem da Terra sob a forma de galopador.
Os biólogos exibiram o mais acadêmico dos sorrisos quando
Fowler lhes sugeriu que as coordenadas poderiam estar erradas. As
coordenadas funcionavam, frisaram eles cautelosamente. Quando se
introduzia um homem num conversor e se ligava o comutador,
transformava-se num galopador. Abandonava o aparelho e
desaparecia na atmosfera que o envolvia.
Fowler falou de peculiaridades, de pequenos desvios da forma do
galopador, de diferenças menores. Os biólogos afirmavam que, a
havê-las, levariam anos a descobrir.
E Fowler sabia que eles tinham razão.
Eram agora cinco homens, não quatro, e Harold Allen entrara em
Júpiter em vão. No que respeitava ao conhecimento do planeta, era
como se não tivesse partido.
Fowler inclinou-se sobre a secretária e pegou no ficheiro do
pessoal, delgado maço de papéis presos uns aos outros. Receava-o,
mas tinha de fazê-lo. Tinha de descobrir a razão destes estranhos
desaparecimentos. E só havia uma forma: enviar mais homens.
Ficou sentado, ouvindo o bramido do vento sobre a estação, o
vento violento e constante que varria o planeta na sua cólera fervente.
Haveria alguma ameaça lá fora?, perguntou-se. Algum perigo que
desconhecessem? Alguma coisa que, à espreita, engolia os
galopadores, sem fazer distinção entre os autênticos e os galopadores-
homens ? Para esses devoradores não havia diferença, evidentemente.
Ou teria sido um erro escolher os galopadores como o tipo de vida
mais adaptado para a sobrevivência sobre o planeta? A inteligência
evidente deles fora um dos fatores que determinara a escolha. Porque
se aquilo em que o homem se transformava não tinha inteligência, o
próprio homem, sob essa forma, perderia a sua.
Teriam os biólogos insistido em excesso nesse pormenor para
contrabalançar qualquer outro que pudesse ser prejudicial ou, até,
desastroso? Era improvável. Os biólogos eram arrogantes, mas
sabedores.
Ou era tudo impossível, condenado desde o início? A conversão
noutras formas de vida resultara noutros planetas, mas isso não
provava que devesse resultar também em Júpiter. Talvez a inteligência
do homem não funcionasse corretamente sob a forma de Júpiter.
Talvez os galopadores estivessem tão distantes que não existia uma
plataforma comum em que o conhecimento humano e a concepção da
existência em Júpiter se pudessem encontrar e cooperar.
Ou talvez o erro estivesse somente no homem, talvez fosse inerente
à raça. Podia existir uma aberração mental que, em contacto com o
que se encontrava no exterior, não o deixava regressar. Talvez não
fosse uma aberração, no sentido humano do termo, pelo menos.
Talvez se tratasse de uma simples característica da mentalidade
humana, considerada como comum na Terra, mas tão oposta à
existência em Júpiter, que destruía o espírito humano.
Ouviu-se um rastejar e o arranhar de unhas no corredor. Ouvindo-
as, teve Fowler um sorriso pálido. Era Towser que regressava da
habitual visita ao seu amigo cozinheiro.
Towser entrou com um osso na boca. Abanou a cauda, em intenção
de Fowler, e estirou-se ao lado da secretária, com o osso entre as
patas. Durante um pedaço os seus olhos ramelosos olharam para o
dono e Fowler inclinou-se e coçou-lhe a orelha.
— Ainda gostas de mim, Towser? — perguntou Fowler; Towser
abanou o rabo. — Ainda és o único — acrescentou seguidamente.
Endireitou-se e virou-se de novo para a secretária.
Pegou outra vez no ficheiro.
Bennett? Tinha a noiva à sua espera, na Terra.
Andrews? Pensava regressar a Marte, para frequentar a Escola
Técnica, logo que juntasse o dinheiro suficiente para se manter
durante um ano.
Olson? Estava em vésperas de reforma. Passava a vida a dizer à
rapaziada que ia retirar-se para cultivar rosas.
Cuidadosamente, Fowler pousou o ficheiro.
Condenar homens à morte, dissera Miss Stanley, quase sem mover
os lábios no seu rosto de pergaminho. Enviar homens para a morte
enquanto ele, Fowler, ficava comodamente sentado.
Diziam-no em toda a estação, não tinha dúvidas, sobretudo desde
que Allen não regressara. Não o diziam na sua frente, claro. Mesmo
aqueles a quem comunicava que tinham de partir não lho diziam na
cara.
Mas lia-o nos seus olhos.
Pegou de novo no ficheiro. Bennett, Andrews, Olson. Havia outros,
mas não valia a pena continuar.
Kent Fowler não podia continuar, não podia encará-los, não podia
enviar mais homens para a morte.
Inclinou-se e ligou o comutador do telefone interno.
— Sim, Mr. Fowler.
— Miss Stanley, faça-me o favor.
Esperou por Miss Stanley, ouvindo Towser roer o osso com pouco
entusiasmo. Os dentes do Towser já não eram grande coisa.
— Miss Stanley — pronunciou a voz de Miss Stanley.
— Queria apenas dizer-lhe, Miss Stanley, que se preparasse para
enviar mais dois.
— Não receia — interrogou Miss Stanley — gastá-los todos?
Enviando um de cada vez, duram mais e terá uma satisfação dupla.
— Um deles — disse Fowler — será um cão.
— Um cão?
— Sim: Towser.
Sentiu que uma cólera repentina gelava a voz da mulher.
— O seu cão! Tem vivido sempre consigo...
— Pois é isso mesmo — disse Fowler. — Towser sentir-se-ia
infeliz se eu o deixasse ficar.
***
Não era o Júpiter que conhecera através do televisor. Já esperava
encontrar diferenças, mas não tantas. Esperava encontrar um inferno
de chuva de amônia, vapores malcheirosos e o tumulto ensurdecedor
da tempestade. Esperava encontrar nuvens rodopiantes, nevoeiro e o
relampejar atroador de terríveis faíscas.
Nunca supusera que a chuva desabalada se reduzisse a uma leve
neblina purpúrea, que se movia como uma sombra esvoaçante sobre
um prado vermelho e púrpura. Nem sequer sonhara que as faíscas
súbitas pudessem ser relâmpagos de puro êxtase cortando o céu
deslumbrante.
Enquanto esperava por Towser, Fowler fletiu os músculos do
corpo, espantando-se com a força suave que descobriu. O físico não é
mau, admitiu, e fez uma careta ao recordar-se de como tinha
lamentado os galopadores ao observá-los através do televisor.
Era difícil imaginar um organismo vivo à base de amônia e
hidrogênio em vez de água e oxigênio; acreditar que uma tal forma de
vida pudesse conhecer as mesmas emoções de vida que a humanidade
conhecia. Ou conceber uma vida naquele redemoinho viscoso que era
Júpiter, porque não se sabia, evidentemente, que não era um
redemoinho viscoso quando visto através dos olhos de Júpiter.
O vento roçou por ele e parecia o toque de uns dedos suaves;
lembrou-se, com um sobressalto, de que, de acordo com o padrão da
Terra, aquele sopro era uma ventania trepidante, um furacão
carregado de gases mortíferos a uma velocidade de mais de trezentos
quilômetros por hora.
Perfumes agradáveis penetraram-lhe no corpo. Não eram bem
perfumes, pois não se tratava do sentido do olfato tal como o
recordava. Era como se todo o seu ser se enchesse de alfazema — não
era bem alfazema. Sabia que não existia a palavra exata —
indubitavelmente este era um dos primeiros e muitos enigmas da
terminologia. As palavras que conhecia, os símbolos de pensamento
que lhe bastavam como homem da Terra, não tinham utilidade como
galopador.
A escotilha da parede lateral da estação abriu-se e Towser rolou
para fora — ou o que ele pensou ser Towser.
Tentou chamar o cão, procurando formar as palavras que queria
dizer. Mas não podia, não tinha possibilidades de o fazer, porque não
tinha maneira de as dizer.
Por um longo segundo o seu pensamento foi invadido por um
terror nebuloso, um medo cego que se revolvia no seu cérebro em
pânico.
Como falavam os habitantes de Júpiter? Como...
Repentinamente, deu por Towser. Com intensidade, deu pela
amizade ansiosa do animal peludo que o seguira desde a Terra para
tantos planetas. Como se Towser se tivesse sentado dentro do seu
cérebro.
E das confusas sensações que o invadiam nasceram palavras.
— Olá, camarada!
Não eram bem palavras, na realidade. Eram símbolos de
pensamento no seu cérebro, símbolos comunicáveis que possuíam
gradações de significado que as palavras nunca teriam.
— Olá, Towser! — disse ele.
— Sinto-me bem — disse Towser. — Como um cachorrinho.
ultimamente tenho-me sentido bastante mal — as pernas fracas e os
dentes a cair. Com dentes assim é difícil roer um osso. Além disso, as
pulgas não me largavam. Antigamente não lhes ligava nenhuma,
pulga a mais, pulga a menos...
— Mas... mas... — os pensamentos de Fowler atropelaram-se
desajeitadamente — tu estás a falar comigo!
— Pois estou — disse Towser. — Sempre falei contigo, mas não
podias ouvir-me. Tentei dizer-te muitas coisas, mas nunca encontrei o
tom necessário.
— Eu compreendia-te — assentiu Fowler.
— Não muito bem — corrigiu Towser. — Sabias quando eu queria
comer, beber e sair, mas ficavas por aí.
— Desculpa — disse Fowler.
— Não faz mal — replicou Towser. — Vamos fazer uma corrida
até ao barranco?
Pela primeira vez Fowler viu o barranco, aparentemente a muitos
quilômetros de distância, com uma estranha beleza cristalina que
resplandecia sob a sombra projetada por nuvens de muitas cores.
Fowler hesitou.
— É muito longe...
— Ora, anda daí — disse Towser, e partiu em direcção ao
barranco.
Fowler seguiu-o experimentando as pernas, a força deste seu novo
corpo, duvidando a princípio, espantando-se um momento depois,
começando a correr logo a seguir com uma alegria total que se casava
com o prado vermelho e púrpura, com o fumo leve da chuva.
Correndo, veio-lhe a consciência da música, uma música que lhe
penetrava no corpo e o traspassava, que o erguia nas asas da
velocidade. Uma música semelhante à dos sinos dos campanários no
cimo de uma colina soalheira.
A medida que o barranco se aproximava, a música tornava-se mais
profunda e enchia o universo com as ondas do seu fantástico som.
Descobriu que a música vinha da água que tombava do barranco
brilhante.
Sabia, contudo, que não era uma queda de água, mas sim uma
queda de amônia, e que o barranco alvíssimo era oxigénio
solidificado.
Deslizou até parar junto de Towser. A água quebrava-se num arco-
íris de muitas centenas de cores. Muitas centenas de cores, pois ali
não existia a gradação que vai de uma cor a outra, tal como os
humanos viam. Havia uma seleção nítida que dividia o prisma até à
última classificação.
— A música — disse Towser.
— Sim, e então?
— A música é vibração — disse Towser. — Vibração da água a
cair.
— Mas tu não sabes nada de vibrações, Towser.
— Sei, sim — opôs-se Towser. — Ocorreu-me agora.
Fowler, mentalmente, engoliu em seco.
— Ocorreu-te!
E repentinamente surgiu-lhe no cérebro uma fórmula — a fórmula
que permitiria aos metais suportarem a pressão de Júpiter.
Olhou espantado para a queda de água, e com rapidez separou
mentalmente as várias cores e colocou-as na sequência devida do
espectro. Assim, de repente, como que vindo do céu, do nada, pois
nada sabia de cores ou metais.
— Towser! — gritou.— Towser, está a acontecer-nos qualquer
coisa!
— Eu sei — respondeu Towser.
— O nosso cérebro — continuou Fowler. — Usamo-lo todo,
totalmente. Usamo-lo e descobrimos coisas que já devíamos saber.
Talvez os cérebros terrenos vejam as coisas nebulosamente e com
dificuldade. Talvez sejamos a raça mais estúpida do universo. A nossa
constituição obriga-nos a marchar pelos caminhos mais difíceis.
E, na clareza do pensamento que parecia apoderar-se dele, sabia
que não seria só com as cores da queda de água e os metais que
resistiriam à pressão de Júpiter. Sentia outras coisas, pouco claras
ainda. Um murmurar distante que lhe deixava adivinhar descobertas
maiores, mistérios inatingidos pelo espírito humano e até pela
imaginação humana. Mistérios — factos, lógica racional. Descobertas
que todos os cérebros podiam fazer-se utilizassem todo o seu poder de
raciocínio.
— Ainda estamos muito terrenos — disse ele. — Estamos a
aprender algumas das muitas coisas que viremos saber — coisas que
se conservaram fora do alcance dos seres humanos, exatamente
porque somos seres humanos, porque o nosso corpo é um corpo
pobre. Pobremente equipado para raciocinar e para sentir. Talvez nos
faltem até alguns dos sentidos necessários para alcançarmos a
verdadeira sabedoria.
Olhou para trás, para a estação, que era, agora, uma pequena
mancha negra perdida na distância.
Ali viviam homens incapazes de compreender a beleza de Júpiter.
Homens que pensavam que a chuva violenta e o vento rodopiante
obscureciam a face do planeta. Cegos olhos humanos. Pobres olhos.
Olhos incapazes de ver a beleza das nuvens, que não conseguiam
olhar através da tempestade. Corpos incapazes de sentir emoção da
música que a água fazia ao cair.
Homens solitários, de uma terrível solidão, falando por intermédio
da língua, como escuteiros que decifram uma mensagem, incapazes
de estender a mão e tocarem o pensamento dos outros, como ele podia
tocar o pensamento do Towser. Afastados para sempre do contacto
pessoal e íntimo com todas as coisas vivas.
Ele, Fowler, esperara encontrar o terror que inspiram as coisas
desconhecidas, esperara amedrontar-se perante a ameaça de seres
misteriosos, tinha-se couraçado contra a surpresa de encontrar um
ambiente diferente do da Terra.
Em vez disso encontrara uma coisa maior do que o maior dos
sonhos do homem. Um corpo mais rápido e mais são. Uma sensação
de júbilo e um mais profundo sentido da vida. Um raciocínio mais
apurado. Uma beleza que nenhum dos sonhadores da Terra tinha
imaginado.
— Vamos — pediu Towser.
— Para onde?
— Para qualquer lado — disse Towser. — Começamos por aqui e
havemos de acabar em algum lado. Tenho um pressentimento... tenho
um pressentimento...
— Eu sei — confirmou Fowler.
Também tinha o mesmo pressentimento, o pressentimento de um
destino enorme, uma sensação de grandeza. A certeza de que, além do
horizonte, o esperavam a aventura e coisas maiores do que a aventura.
Os outros cinco também o tinham sentido. A necessidade de partir,
a sensação forte de que ali encontrariam uma vida total e um
conhecimento completo.
Por isso não tinham regressado.
— Não voltarei — disse Towser.
— Não podemos atraiçoá-los — respondeu Fowler.
Fowler deu dois passos na direção da estação e parou.
Regressar à estação, regressar àquele corpo dorido e cheio de
veneno que abandonara. Não o sabia dorido então, mas sabia-o agora.
Regressar àquele cérebro confuso, ao raciocínio nebuloso, às bocas
escancaradas para construírem sinais que os outros compreendessem.
Regressar àqueles olhos seria agora pior do que a cegueira total.
Regressar à miséria, à sordidez, à ignorância.
“Talvez um dia”, disse para consigo.
— Temos muito que fazer e que ver — disse Towser.— Temos
muito que aprender. Encontraremos coisas...
Sim, encontrariam coisas. Civilizações, talvez. Civilizações que
tornariam mesquinha a civilização do homem. A beleza e o mais
importante, a compreensão da beleza. Uma camaradagem que nunca
ninguém conhecera — que nenhum cão e nenhum homem haviam
conhecido até então. Uma vida. A rapidez da vida depois do que
parecera uma existência envenenada.
— Não posso regressar — disse Towser.
— Nem eu — confirmou Fowler.
— Transformavam-me outra vez em cão — disse Towser.
— E a mim em homem — disse Fowler.
NOTAS SOBRE O QUINTO
CONTO

Pouco a pouco, à medida que a lenda se desenrola, o leitor obtém


uma imagem cada vez mais perfeita da raça humana. A pouco e pouco
adquire-se a convicção de que a existência dela não passa de pura
fantasia. Era impossível a uma tal raça erguer-se das mais humildes
origens até à imensa cultura com que nos aparece dotada nestes
contos. O seu equipamento é demasiado pobre.
Até aqui a sua falta de estabilidade tornou-se evidente. A sua
preocupação por uma civilização mecânica, em detrimento de uma
cultura baseada em conceitos mais sãos e mais válidos, indica uma
falta de carácter básico.
Neste conto tomamos contacto com as limitações de comunicação
de que era dotada, numa situação que, de nenhum modo, podia
conduzir ao progresso. A incapacidade que o homem teria de
apresentar e apreciar os pensamentos e pontos de vista dos seus
semelhantes era uma barreira intransponível que nenhum artifício
mecânico poderia vencer.
A ansiedade com que procurava conhecer a filosofia de Juwain
prova que o homem tinha consciência das suas limitações. É de notar,
todavia, que a não procurava pela compreensão que poderia dar-lhe,
mas para obter o poder, a glória e o conhecimento que ela tornaria
possíveis. O homem via a filosofia como um meio para progredirem
mil anos em duas gerações.
Através destes contos torna-se evidente que o homem disputava
uma corrida, se não consigo próprio, ao menos com um perseguidor
imaginário que o seguia de perto, fazendo-lhe sentir o bafo nas costas.
O homem envolveu-se numa louca disputa pelo poder e pelo
conhecimento, mas em nenhum ponto se nota a mais leve referência
ao que faria depois de atingido esse objetivo.
De acordo com a lenda, o homem apareceu nas cavernas cerca de
um milhão de anos antes. E, contudo, somente cem anos antes da
época em que decorre a lenda tinha conseguido fazer desaparecer o
assassínio como ato básico da sua maneira de viver. Aqui se vê a
verdadeira medida da sua selvajaria: só passado um milhão de anos
conseguira eliminar o crime, e é com grande admiração que nota o
acontecimento.
Depois de lerem este conto, será fácil a muitos leitores aceitar a
teoria de Rover: o homem é deliberadamente apresentado como a
antítese do cão — uma espécie de espantalho mítico, uma fábula
sociológica.
Isto é confirmado pela evidente falta de objetivo do homem, pela
sua corrida para mais e mais além, pela submissão a uma maneira de
viver que constantemente iludia, possivelmente por não saber o que
realmente queria.
V - O PARAÍSO

A estação era uma forma estranha, atarracada, que não pertencia à


névoa purpúrea de Júpiter — uma estrutura confusa e
aterrorizada que parecia encolher-se contra o enorme planeta.
O ser que fora Kent Fowler manteve-se em frente da construção,
bem apoiado nas suas grossas pernas.
“Uma coisa desconhecidas”, pensou. “Eis a distância que me
afastei da raça humana, pois na verdade não é desconhecida, ao
menos para mim. É o lugar em que vivi, sonhei, projetei. É o lugar
que abandonei receoso. É o lugar a que regresso — forçado e receoso.
Forçado pela recordação daqueles que eram como eu antes de ser o
que sou, antes de conhecer a vivacidade, a capacidade, a felicidade
possíveis por não ser um ser humano.”
Towser moveu-se a seu lado e Fowler sentiu a amizade do ex-cão,
a amizade expressa, a camaradagem e o amor que sempre tinham
existido, mas que não conhecera enquanto tinham sido homem e cão.
Os pensamentos do cão penetraram-lhe no cérebro.
— Não consegues, camarada — observou Towser.
A resposta de Fowler foi um queixume.
— É preciso, Towser. Foi para isso que vim, para descobrir a
realidade de Júpiter. Agora posso-lhes revelar o mistério.
“Devias ter feito isso há muito”, disse uma voz do mais profundo
de si mesmo, uma distante e débil voz humana que sufocava dentro da
sua personalidade de galopador. “Mas sempre foste cobarde e
odiavas, odiavas. Fugiste porque tiveste medo de regressar. Tiveste
medo de voltar a ser homem.”
“Ficarei sozinho”, disse Towser, sem o dizer. Não houve, pelo
menos, palavras; foi antes uma sensação de solidão, um triste grito de
despedida. Como se, por um momento, Fowler tivesse partilhado dos
pensamentos de Towser.
Fowler permaneceu silencioso, sentindo crescer a revolta. Revolta
perante a ideia de voltar a ser homem — a ideia de voltar à ineficácia
do corpo e do espírito humanos.
— Iria contigo se pudesse suportar a transformação — disse-lhe
Towser. — Morria antes de conseguir entrar. Lembra-te de que eu
estava quase naufragado. Velho, cheio de pulgas, com os dentes a cair
— e tinha más digestões. E pesadelos? Quando era cachorro
costumava correr atrás de coelhos, mas ultimamente eram os coelhos
que corriam atrás de mim.
— Tu ficas — disse Fowler. — Eu voltarei.
Se conseguisse fazê-los compreender, pensou, se conseguisse, se
pudesse explicar-lhes...
Levantou a enorme cabeça e contemplou a linha de elevações
formada pelos picos das montanhas cobertos por aquela neblina rosa e
púrpura. Um relâmpago serpenteou no céu e as nuvens e a neblina
acenderam-se num êxtase de fogo.
Arrastou-se para a frente, vagarosamente, com relutância. Uma
baforada de brisa agradavelmente cheirosa veio e o seu corpo bebeu-
a, como um cão rebolando-se na relva. Não era bem um cheiro,
embora fosse a melhor palavra que encontrara para o designar. Num
futuro próximo a raça humana seria forçada a empregar uma nova
terminologia.
Ficou a pensar em como seria capaz de explicar a neblina que
cobria o solo e o perfume que era um puro deleite. Sabia que
compreenderiam as outras coisas, que não era preciso comer nem
dormir, que não existiam as neuroses depressivas de que o homem era
vítima. Tudo isto eles o compreenderiam, pois podia ser dito em
termos simples, podia ser explicado com os termos comuns.
Mas as outras coisas — os fatores que necessitavam de um novo
vocabulário? As emoções que o homem nunca conhecera, as aptidões
que o homem nunca sonhara, a clareza de pensamento e de
compreensão — a capacidade de utilizar o cérebro até à mais remota
célula —, todas as coisas que conhecia e fazia indistintamente e que o
homem nunca faria, pois o seu corpo não possuía os sentidos
necessários para o conseguir?
Escreverei tudo, murmurou para consigo. Com tempo, escreverei
tudo. Mas a escrita era uma ferramenta pobre, concluiu desalentado.
O televisor surgiu do seu esconderijo na parede da estação e
encaminhou-se na sua direção. Lufadas de neblina bateram no
televisor e ele moveu-se de novo para ficar na sua frente.
Não que ele pudesse ver alguma coisa, mas era necessário que os
homens o vissem — os homens que estavam permanentemente de
vigia, observando a brutalidade de Júpiter, os ventos chicoteantes e as
chuvas de amônia, as nuvens leves carregadas de metano,
anunciadoras da morte. Porque era assim que os homens viam Júpiter.
Levantou a pata da frente e escreveu rapidamente na humidade da
vigia; escreveu as letras ao contrário.
Era preciso que soubessem quem ele era, para que não houvesse
engano possível, para que utilizassem as coordenadas apropriadas. De
outra forma podiam convertê-lo num outro corpo, usar matrizes
erradas e transformar-se-ia numa outra pessoa — o jovem Allen,
talvez, ou Smith, ou Pelietier. E isso podia ser fatal.
A amônia caía e fez desaparecer o que escrevera. Escreveu de novo
o nome.
Saberiam quem era. Saberiam que um dos homens que tinha sido
transformado em galopador regressara.
Deixou-se cair no chão e virou-se para a porta que deveria abrir-se.
Esta abriu-se vagarosamente para fora.
— Adeus, Towser — disse Fowler familiarmente.
Um grito de alarme nasceu-lhe no cérebro: Ainda não é tarde;
ainda não entraste; ainda podes mudar de ideias; ainda podes voltar
para trás e fugir.
Avançou resoluto, cerrando uns dentes que só existiam no seu
cérebro. Sentiu o metal sob os pés e a porta que se fechava atrás de si.
Recebeu o último pensamento fragmentário de Towser e depois foi a
escuridão.
A câmara de conversão era em frente e avançou pela rampa até a
alcançar.
Pensou: Saiu um homem com um cão e agora o homem regressa.
***
A conferência com a imprensa correra bem. Havia coisas
satisfatórias para relatar.
— Sim — disse Tyler Webster aos jornalistas—, o
descontentamento em Vênus tem diminuído; foi questão de convencer
os vários partidos a discutirem em comum. As experiências sobre a
vida progrediam satisfatoriamente nos gelados laboratórios de Plutão.
A expedição para o Centauro partira, como estava previsto e apesar
dos boatos que corriam. A Comissão de Comércio estabelecera novos
acordos financeiros, para a distribuição de vários produtos
interplanetários, a fim de fazer desaparecer certas diferenças.
Nada de sensacional. Nenhuma notícia para grandes cabeçalhos.
Nada para chamar as atenções.
— E Jon Culver pediu-me para lhes lembrar — acrescentou
Webster — que hoje passa o 125.° aniversário do último crime
cometido no sistema solar. Cento e vinte e cinco anos sem uma única
morte premeditada.
Encostou-se ao espaldar da cadeira, sorrindo para disfarçar o receio
da pergunta temida.
Mas eles não queriam ainda fazê-la — havia uma norma a
observar, uma agradável norma.
Stephen Andrews, o corpulento chefe da redação do Notícias
Interplanetárias, pigarreou, como quem vai fazer uma comunicação
importante, e perguntou com uma cômica gravidade:
— E o garoto, como vai?
Um sorriso abriu-se no rosto de Webster:
— Vou a casa passar o fim de semana — disse. — Levo-lhe um
brinquedo.
Inclinou-se e levantou da secretária um pequeno tubo.
— Um brinquedo antigo — explicou. — Garantido. Uma empresa
lançou-os agora. Leva-se aos olhos, gira-se com ele e vêem-se figuras
bonitas — desenhos construídos com pedaços de vidro colorido. Há
um nome que se dá a isto...
— Caleidoscópio — disse um dos jornalistas apressadamente. —
Li qualquer coisa sobre o assunto numa velha história de usos e
costumes do século XX.
— Já o experimentou, senhor Presidente?
— Não — respondeu Webster. — Para dizer a verdade, ainda não o
experimentei. Comprei-o esta tarde e tenho estado muito ocupado.
— Onde o comprou, senhor Presidente? — perguntou uma voz. —
Quero comprar um para o meu garoto.
— Numa das lojas ali da esquina. Uma loja de brinquedos.
Chegaram hoje.
Era agora a altura de partirem, pensava Webster. Um bocado de
conversa amiga e agradável e partiriam.
Mas não se levantaram — e ele percebeu o que queriam. Percebeu-
o pelo repentino murmúrio que o remexer de papéis logo cobriu.
E Stephen Andrews fez a pergunta que Webster receava. Por um
momento Webster ficou contente por ser Andrews a fazê-la. De uma
maneira geral, Andrews fora sempre compreensivo e o Notícias
Interplanetárias publicava as notícias objetivamente, nunca usando as
palavras com segundo sentido, norma habitual entre autores
interpretativos.
— Senhor Presidente — disse Andrews—, consta que um homem
que foi convertido em galopador regressou. Desejávamos saber se a
notícia é verdadeira.
— É verdadeira — respondeu Webster rigidamente.
Esperaram e Webster esperou também, imóvel.
— Deseja fazer algum comentário? — perguntou por fim Andrews.
— Não — disse Webster.
Webster relanceou os olhos pela sala para observar os rostos.
Rostos tensos que adivinhavam parte da verdade por trás da sua
recusa de discutir o assunto; faces divertidas, cérebros deturpadores
que pensavam já em como deformar as poucas palavras que
pronunciara. Rostos irados, ultrajados, que escreveriam artigos sobre
os direitos do povo.
— Lamento, meus senhores — disse Webster.
Andrews levantou-se pesadamente.
— Muito obrigado, Sr. Presidente — disse.
Webster ficou sentado, vendo-os sair, e sentiu a solidão e a frieza
da sala vazia.
“Vão crucificar-me”, pensou. “Pregar-me-ão na portado estábulo e
não poderei libertar-me. É impossível.”
Levantou-se da cadeira, atravessou a sala e ficou a contemplar,
através das janelas, o jardim sob o sol da tarde.
Não podia dizer-lhes, apesar de tudo.
O Paraíso! O Céu aberto! E o fim da humanidade! O fim de todos
os ideais e sonhos da humanidade, o fim da própria raça.
A luz verde brilhou sobre a secretária. Voltou para trás.
— Que é? — perguntou.
O pequeno visor brilhou e apareceu uma casa.
— Os cães acabam de comunicar, senhor, que Joe, o mutante, foi a
sua casa e Jenkins deixou-o entrar.
— Joe?! Tem a certeza?
— Foi o que os cães disseram, e os cães nunca se enganam.
— Claro — confirmou Webster vagarosamente—, nunca se
enganam.
A casa desapareceu do visor e Webster sentou-se pesadamente.
Inclinou-se sobre a secretária e, de cor, premiu o comutador, com
dedos que pareciam de chumbo.
A casa apareceu no visor — a casa na América do Norte, assente
na encosta ventosa. Uma construção que se mantinha há quase mil
anos, o lugar onde uma longa descendência de Websters vivera,
sonhara e morrera.
Um corvo voava no céu azul, sobre a casa, e Webster sorriu,
imaginando ouvir o grasnar da ave, trazido pelo vento. .
Tudo estava calmo — ou assim parecia. A casa surgia na luz
matutina e podia ver-se a estátua do jardim — a estátua daquele
remoto antepassado que desaparecera a caminho das estrelas, Allen
Webster, o primeiro homem que saíra do sistema solar em direção do
Centauro, ainda quando a expedição de Marte ia partir.
Nada se movia na casa. A quietude era completa.
A mão de Webster desligou o comutador. O visor apagou-se.
Jenkins tomará conta de tudo, pensou. Talvez melhor do que se
fosse um homem. No fim de contas, tem quase mil anos de sabedoria
armazenados naquela carapaça metálica. Em breve me comunicará o
que se passa.
Estendeu a mão e estabeleceu outra combinação.
Esperou algum tempo, até que a casa apareceu no visor.
— Que há, Tyler? — perguntaram de casa.
— Recebi a comunicação de que Joe...
Jon Culver anuiu.
— Também recebi. Estou a verificar.
— Que pensa disto?
No rosto do chefe da Segurança Mundial desenhou-se a indecisão.
— Talvez tenha desistido. Temos andado em cima de Joe e dos
outros mutantes. Os cães têm feito um belo trabalho.
— Mas nada nos indica que seja assim — protestou Webster. — Os
relatórios não dizem nada a esse respeito.
— Ouça — disse Culver. — Há mais de cem anos que sabemos
tudo o que eles fazem, até quando respiram fundo. Está tudo escrito.
Bloqueámos todos os seus movimentos. A princípio julgavam tratar-
se de um acaso, mas agora sabem que o não é. Talvez tenham chegado
à conclusão de que estão perdidos e querem desistir.
— Não penso assim — disse Webster solenemente. — Quando
aqueles cavalheiros entenderem que estão liquidados, o melhor será
começar a procurá-los noutro lado.
— Manter-me-ei alerta — replicou Culver. — Estarei em contacto
consigo.
O visor apagou-se e ficou reduzido a uma placa de vidro. Webster
ficou absorto, olhando.
Os mutantes não estavam liquidados, nem coisa que se parecesse.
Sabia-o, tal como Culver. E, contudo...
Porque fora Joe procurar Jenkins? Porque não entrava em contacto
com o Governo, em Genebra? Para salvar as aparências, talvez.
Utilizar um autômato como intermediário. No fim de contas, Joe
conhecia Jenkins há muito, muito tempo.
Sem o querer, Webster sentiu orgulho. Orgulho por, a ser assim,
Joe ter procurado Jenkins. Porque Jenkins, apesar da sua carapaça
metálica, era também um Webster.
Orgulho, pensou Webster. Vitórias e derrotas, mas sempre
importantes. Todos eles, através dos tempos: Jerome, que perdera para
o mundo a filosofia de Juwain; Thomas, que dera ao mundo o
principio da navegação no espaço (agora aperfeiçoado); o filho de
Thomas, Allen, que tentara alcançar as estrelas e falhara; Bruce, o
primeiro que concebera a cooperação entre o homem e o cão; e agora
ele, Tyler Webster, presidente da Comissão Mundial.
Sentado à secretária, com as mãos cruzadas sobre o ventre, olhava
a luz vespertina que entrava pela janela.
A espera, confessou. À espera do sinal que lhe indicaria ser Jenkins
a dar-lhe notícias de Joe. Se ao menos...
Se ao menos pudesse chegar-se a um acordo; se ao menos os
homens e os mutantes pudessem trabalhar em conjunto; se pudessem
esquecer aquela guerra subterrânea, podiam ir longe, unidos os três —
o homem, o cão e o mutante.
Webster abanou a cabeça. Era esperar demasiado. As diferenças
eram muito grandes, o fosso demasiado largo. Suspeita por parte dos
homens e uma ironia tolerante da parte dos mutantes conservá-los-
iam sempre afastados. Porque os mutantes constituíam uma raça
diferente, uma ramificação que avançara demasiado. Homens que não
necessitavam da sociedade, da aprovação dos outros homens, isentos
do instinto de rebanho que conservara a raça unida, imunes às
pressões sociais.
E devido aos mutantes o pequeno grupo de cães mutantes tinha
sido, até agora, de bem pouca utilidade para o irmão mais velho, o
homem. Porque os cães estavam de vigília há mais de cem anos, eram
a força de policia que mantinha os mutantes sob permanente
observação.
Webster inclinou-se na cadeira, abriu uma gaveta e pegou num
maço de papéis.
Ligou para o seu secretário particular.
— Diga, Mr. Webster.
— Vou visitar Mr. Fowler — disse Webster. — Se vier alguma
chamada...
A voz do secretário estremeceu ligeiramente.
— Entrarei imediatamente em contacto consigo.
— Obrigado — disse Webster.
Desligou o comutador.
Já sabem, pensou. Toda a gente neste edifício espera as notícias,
com as línguas penduradas.
Kent Fowler estava estirado numa cadeira do jardim, observando o
pequeno terrier preto que cavava cuidadosamente, procurando um
coelho imaginário.
— Sabes, Rover — disse Fowler—, não consegues enganar-me.
O cão parou de cavar e, olhando por cima do ombro, com os dentes
arreganhados, ladrou, excitado. Depois continuou a cavar.
— Um dia destes dás-te a conhecer — continuou Fowler — e
deixarás escapar duas ou três palavras que te deitarão a perder.
Rover continuou a cavar.
Diabinho esperto, pensou Fowler. Esperto como um rato. Webster
pô-lo de guarda e ele tem representado bem o seu papel. Caçou
coelhos, estragou os canteiros, coçou as pulgas — um perfeito retrato
de um perfeito cão. Mas eu estou alerta. Estou de olho alerta para
todos.
Alguém pisou a relva e Fowler ergueu os olhos.
— Boa tarde — saudou Tyler Webster.
— Tenho estado à sua espera — disse Fowler, ríspido.— Sente-se e
diga o que tem a dizer, sem rodeios. Não acredita em mim, pois não?
Webster deixou-se cair numa cadeira e pousou o maço de papéis
sobre os joelhos.
— Compreendo o que sente — disse.
— Duvido — ripostou Fowler. — Regressei com uma informação
que considerava importante. Uma informação que me custou mais do
que pode imaginar. — Inclinou-se para a frente. — Não sei se pode
compreender que cada hora passada como ser humano é uma tortura
mental para mim.
— Lamento — disse Webster. — Mas era preciso ter a certeza,
esperar a confirmação daquilo que diz.
— E fazer experiências?
Webster anuiu.
— Rover, por exemplo ?
— Não se chama Rover — disse Webster suavemente.— Se lhe
tem dado esse nome, ofendeu-o. Todos os cães têm nomes humanos.
Este chama-se Elmer.
Elmer deixara de cavar e avançou para eles. Sentou-se ao lado da
cadeira de Webster e esfregou os bigodes com a pata suja de terra.
— Então, Elmer? — perguntou Webster.
— É humano, não há dúvida — disse o cão —, mas não
completamente. Também não é um mutante. Uma coisa diferente,
desconhecida.
— Era de esperar — disse Fowler. — Fui galopador durante cinco
anos.
Webster concordou.
— Manteve parte da personalidade, o que se compreende. E o cão
notou-o. São sensíveis a coisas desse gênero, quase psíquicos. É por
isso que os pomos a vigiar os mutantes. Cheiram-nos onde quer que
estejam.
— Quer dizer que me acredita ?
Webster alisou os papéis cuidadosamente.
— Receio que sim.
— Receia? E porquê?
— Porque — explicou Webster — você é a maior ameaça que a
humanidade jamais conheceu.
— Ameaça?! Homem, não estou a compreendê-lo! Ofereço-lhe...
ofereço-lhe...
— Eu sei — disse Webster. — A palavra apropriada é Paraíso.
— E receia-a?
— Causa-me terror — respondeu Webster. — Tente imaginar o que
aconteceria se o disséssemos ao povo e este acreditasse. Todos
desejariam partir para Júpiter, transformando-se em galopadores. O
facto de eles viverem milhares de anos bastaria, ainda que .não
houvesse outros motivos.
“Seríamos obrigados a descobrir um sistema que nos permitisse
enviar tanta gente para Júpiter. Ninguém desejaria continuar a ser
humano. Ao fim acabariam os homens — todos os homens seriam
galopadores. Já tinha pensado nisso?”
Fowler humedeceu os lábios com nervosismo.
— Certamente. Era o que eu esperava.
— Desapareceria a raça humana — disse Webster com solenidade.
— Seria varrida. Tornaria inútil todo o progresso criado desde há
milhares de anos. Desapareceria o momento em que vai dar o seu
maior passo.
— Mas você não sabe — protestou Fowler—, não pode saber.
Você nunca foi galopador. Eu já o fui. — Bateu no peito. — Sei como
é.
Webster abanou a cabeça.
— Não contesto isso. Estou pronto a admitir que é melhor ser
galopador do que homem. O que não admito é que isso justifique o
desaparecimento da raça humana — não admito que troque o que a
humanidade já fez por aquilo que os galopadores poderão fazer. A
raça humana tem um futuro brilhante. Talvez esse futuro não seja tão
agradável, tão concreto, como o dos seus galopadores, mas, no fim de
contas, estou convencido de que podemos ir mais longe. Possuímos
uma herança e um destino raciais que não podemos abandonar.
Fowler inclinou-se para a frente.
— Ouça — disse —, eu fiz jogo franco. Contactei consigo e com a
Comissão Mundial. Podia ter falado à imprensa e à rádio, forçando
assim a sua decisão, mas não o fiz.
— Quer você dizer — sugeriu Webster — que a Comissão Mundial
não tem o direito de agir só, que o povo deve ser consultado?
Fowler concordou, de lábios cerrados.
— Francamente — disse Webster—, não confio no povo. Obteria
uma reação de multidão, que é uma reacção egoísta. Nenhum deles
pensaria na raça, mas apenas em si próprio.
— Quer dizer — perguntou Fowler — que tenho razão, mas admite
que nada pode fazer?
— Não é bem isso. É preciso encontrar uma solução. Transformar
Júpiter num asilo de velhos, ou coisa no gênero. Cada homem, depois
de ter vivido uma vida útil...
Fowler emitiu um som cavo, horrorizado.
— Uma recompensa — ripostou. — Como se faz aos cavalos
velhos: deixamo-los pastar à vontade. O Paraíso, por especial
deferência.
— Assim — frisou Webster — salvaríamos a raça humana e
teríamos ainda Júpiter.
Fowler pôs-se de pé com um movimento rápido.
— Estou farto — gritou. — Trouxe-lhe a informação que você
desejava. Uma informação que lhe custou milhares de milhões de
dólares e centenas de vidas humanas. Instalou estações de conversão
em todo o planeta, enviou homens às dúzias e, como eles não
regressassem, julgou-os mortos e enviou outros. Nenhum deles voltou
— porque não queriam voltar, porque não podiam voltar, porque não
suportavam a ideia de voltar a ser homens. Eu voltei, e o que se
ganhou? Conversa fiada... perguntas, dúvidas. Por fim admite que
tenho razão, mas não devia ter regressado.
Deixou cair os braços e dobrou os ombros.
— Sou livre, suponho eu — disse. — Posso ir para onde quiser.
Webster concordou.
— Claro que é livre. Foi sempre livre. Apenas lhe pedi que ficasse
até tirar informações.
— Posso regressar a Júpiter?
— Nestas circunstâncias — respondeu Webster — acho que é uma
boa ideia.
— Surpreende-me que o não tenha sugerido antes — observou
Fowler, amargamente. — Seria uma boa saída para si. Arquivava o
caso, esquecia-o e continuava a girarem em torno do sistema solar
como uma criança brincando no jardim. A sua família tem-se
arrastado século atrás de século e o povo tem-no consentido sempre.
Um dos seus antepassados deixou perder para o mundo a filosofia de
Juwain, outro bloqueou todos os esforços humanos de cooperação
com os mutantes...
Webster interrompeu com rudeza:
— Deixe a minha família em paz, Fowler. "É maior...
Fowler gritava e as palavras corriam-lhe da boca com violência.
— Mas não consinto. O mundo já perdeu demasiado devido aos
Websters e agora vou dar-lhe uma oportunidade. Vou dizer ao povo
como é Júpiter. Falarei à imprensa e à rádio. Gritarei do cimo das
casas. Farei...
Soluçou e os ombros tremeram-lhe.
A voz de Webster era fria com uma súbita cólera.
— Combatê-lo-ei, Fowler. Virei desmenti-lo. Não consinto que
faça uma coisa dessas.
Fowler deu meia volta e encaminhou-se para o portão.
Petrificado na cadeira, Webster sentiu uma pata na sua perna.
— Quer que o agarre, patrão? — perguntou Elmer.— Quer que o
apanhe?
Webster abanou a cabeça.
— Deixa-o ir. Tem tanto direito como eu de fazer o que deseja.
Um vento frio surgiu sobre o muro do jardim e fez esvoaçar a capa
que Webster trazia sobre os ombros.
As palavras cantavam-lhe no cérebro — as palavras que neste
jardim tinham sido pronunciadas há poucos segundos, palavras que
vinham dos séculos transatos. Um dos seus antepassados perdeu para
o mundo a filosofia de Juwain. Um dos seus antepassados...
Webster cerrou os punhos até sentir as unhas enterrarem-se-lhe na
carne.
Uma nódoa, eis o que somos, pensou Webster. Uma nódoa sobre a
humanidade. A filosofia de Juwain. E os mutantes. Mas os mutantes
possuíam a filosofia de Juwain há séculos e nunca a tinham utilizado.
Joe roubara-a a Grant e Grant passara o resto da vida a tentar
recuperá-la, sem o ter conseguido.
Webster tentou consolar-se. Talvez não valesse grande coisa. Se o
valesse, já os mutantes a teriam utilizado. Ou talvez — talvez — os
mutantes estivessem a fazer bluff. Talvez entendessem dela tanto
como os humanos.
Ouviu-se uma ligeira tosse metálica e Webster levantou os olhos.
Um pequeno autômato cinzento estava à entrada da porta.
— A chamada, senhor — disse o autômato. — A chamada que
esperava.
No visor surgiu o rosto de Jenkins — um rosto velho, obsoleto e
feio. Nada que se parecesse com os rostos suaves, quase humanos,
dos últimos modelos de autômatos.
— Desculpe-me incomodá-lo, senhor — disse ele —, mas passa-se
uma coisa extraordinária. Joe entrou e perguntou se podia utilizar o
televisor para falar consigo. Não disse o que quer, senhor. Diz que é
uma visita cordial a um velho vizinho.
— Chama-o — ordenou Webster.
— Ele tem procedido de uma maneira estranha, senhor — insistiu
Jenkins. — Esteve mais de uma hora a passear de um lado para o
outro, mascando, antes de me dizer o que queria. Na minha opinião
— e se me permite dizê-la —, é muito estranho.
— Eu sei — disse Webster. — Joe é um tipo estranho em muitas
coisas.
O rosto de Jenkins desapareceu do visor e foi substituído pelo de
Joe, o mutante. Tinha uma expressão decidida, com uma pele
enrugada que parecia de couro, e os olhos cinzento-azulados
piscavam constantemente. O cabelo estava agora grisalho sobre as
têmporas.
— Jenkins não tem confiança em mim, Tyler — disse Joe, e
Webster sentiu que os cabelos se lhe eriçavam ao sentir o riso que se
escondia sob as palavras.
— Quanto a isso — respondeu com violência —, eu também não.
Joe deu um estalo com a língua.
— Mas, Tyler, nós nunca te incomodamos. Nenhum de nós.
Observámos-te: tens-te preocupado connosco, mas nunca te fizemos
mal. Puseste tanto cão a vigiar-nos que tropeçamos constantemente
neles. Tens relatórios a nosso respeito, estudaste-nos, tens-nos
torturado tanto que já devíamos estar fartos de tudo.
— Nós conhecemos todos os mutantes — reconheceu Webster
sorrindo. — Sabemos a vosso respeito mais do que vós próprios.
Sabemos quantos sois e conhecemos cada um de vós em particular.
Quer saber o que um qualquer de vocês fez nestes últimos cem anos?
Pergunte, que nós lho diremos.
A voz de Joe era fria.
— E durante todo esse tempo nós pensávamos nos humanos com
simpatia. Pensávamos em como poderíamos ajudar-vos.
— Então porque não nos ajudaram? — atirou Webster.—
Estávamos prontos a cooperar convosco, de início. Mesmo depois de
você ter roubado a Grant a filosofia de Juwain...
— Roubado? — estranhou Joe. — Certamente, Tyler, estás a fazer
confusão. Apenas nos apoderamos dela para a estudar. Estava toda
errada, sabes?
— Não me admira que você a tenha decifrado logo que a viu —
replicou Webster friamente. — De que estava à espera? Assim que
no-la oferecesse, saberíamos que estava connosco e teríamos
colaborado. Teríamos retirado os cães e ter-lhos-íamos aceitado.
— Tem piada — observou Joe. — Nunca nos incomoda-mos com
o sermos ou não aceites.
E a antiga gargalhada surgiu de novo, a gargalhada de um homem
autossuficiente, que olhava para a estrutura da sociedade humana
como para uma enorme anedota. Um homem solitário que gostava de
o ser. Um homem para quem a raça humana era cômica e talvez um
pouco perigosa — e ainda mais cômica por ser perigosa. Um homem
que não tinha necessidade da amizade do homem, que a recusava
porque a considerava tão provincianamente patética como as
associações de encorajamento do século XX.
— Está bem — disse Webster rudemente. — Se é assim que o quer.
Julguei que vinha propor um acordo, uma possibilidade de
conciliação. Não queremos que as coisas continuem como estão;
preferimo-las de outra maneira, é verdade, mas isso depende de
vocês.
— Então, Tyler — protestou Joe—, não ganhas nada em te zangar.
Pensei que tinhas o direito de saber umas coisas sobre a filosofia de
Juwain. Já quase te esqueceste dela, mas houve uma altura em que
todo o sistema fervilhava à sua volta.
— Diga lá então — disse Webster, e o tom da sua voz fazia
entender que não julgava Joe capaz de o fazer.
— Fundamentalmente — começou Joe—, vocês os humanos, são
tipos solitários. Nunca conheceram o vosso semelhante. Não podem
conhecê-lo, pois não possuem o toque de compreensão que é
necessário para o conhecerem. Têm amizades, é fora de dúvida, mas
essas amizades são baseadas em puras emoções e nunca na verdadeira
compreensão. Resolvem os vossos problemas pelo acordo mútuo, mas
esse acordo não é mais do que a vitória dos mais fortes sobre os mais
fracos.
— Que tem isso que ver com a questão ?
— Tudo — replicou Joe. — De posse da filosofia de Juwain
conseguiriam essa compreensão.
— Telepatia ? — perguntou Webster.
— Não exatamente — disse Joe. — Nós, mutantes, somos
telepáticos. Mas isso é uma coisa diferente. A filosofia de Juwain
fornece a capacidade de sentir o ponto de vista do adversário. Não
obriga a concordar com esse ponto de vista, mas obriga ao seu
reconhecimento. Não só se fica a saber o que diz o oponente, como se
compreende o seu sentir. Com a filosofia de Juwain é-se obrigado a
aceitar a validade das ideias e o conhecimento de outrem, não pelas
palavras que pronuncia, mas pelos pensamentos que as geram.
— Semântica — disse Webster.
— Se insistes no termo — replicou Joe. — O que realmente
acontece é que se consegue compreender, não só o significado
intrínseco, como o significado implícito do que o arguente diz. Quase
telepatia, mas um pouco diferente. E um pouco melhor, em certa
medida.
— E, Joe, como se consegue isso? Como...
A gargalhada nasceu de novo.
— Pensa nisso, Tyler... pensa em como isso vos é necessário.
Depois falaremos.
— Negociante de cavalos — disse Webster.
Joe anuiu.
— E armador de ratoeiras, suponho — acrescentou Webster.
— Algumas — admitiu Joe. — Descobre-as e falaremos.
— Que querem vocês, afinal de contas ?
— Tanta coisa — disse Joe. — Talvez valha a pena.
O visor apagou-se e Webster ficou-se a olhá-lo sem o ver.
Ratoeiras? Certamente. De princípio a fim.
Webster fechou os olhos e sentiu o sangue afluir-lhe no cérebro.
Que se tinha dito da filosofia de Juwain naquele dia distante em
que desaparecera? Que faria progredir a humanidade cem mil anos no
espado de duas gerações, ou coisa parecida.
Talvez se exagerasse um pouco, mas não muito. E o exagero
justificava-se.
Os homens compreender-se-iam uns aos outros, aceitariam as
ideias de todos, cada homem poderia ir para além das palavras, veria
o que viam os outros e todos os conceitos em globo. Integrá-los-iam
no próprio conhecimento que viriam depois a utilizar, quando
necessário. Desapareceriam as incompreensões, os preconceitos, as
discórdias — e obter-se-ia o domínio de todas as fontes de desacordo
acerca dos problemas humanos. Era aplicável a tudo, a todos os tipos
de empresas humanas. À sociologia, tal como à psicologia, à
engenharia e a todas as facetas de uma complexa civilização. Acabar-
se-iam as confusões, as discussões, para ficar apenas o acordo sincero
e honesto entre as ideias existentes.
Cem mil anos em duas gerações? Não era assim tanto.
Com ratoeiras? Ou não? Iriam realmente os mutantes oferecê-la?
Por que preço? Podia ser mais uma isca que punham diante dos olhos
da humanidade, enquanto se torciam de riso pelos cantos.
Os mutantes não a tinham utilizado porque, na verdade, não tinham
necessidade dela. Possuíam já a telepatia, e isso lhes bastava. Os
individualistas fariam pouco uso de um artifício que lhes desse o
conhecimento dos outros, pois com esses pouco se importavam.
Aparentemente, os mutantes davam-se bem: toleravam todos os
contactos necessários para a defesa e segurança dos seus interesses.
Mas era tudo. Trabalhavam em conjunto para alvar a pele, mas não
tiravam disso nenhum prazer.
Uma oferta honesta? Uma isca, um estratagema para chamar a
atenção do homem sobre uns, enquanto os outros faziam uma das
suas? Uma simples piada cheia de ironia? Ou uma oferta com o
intuito de ferir?
Webster abanou a cabeça. Era impossível dizê-lo, não havia
maneira de adivinhar as intenções dos mutantes.
Uma luz brilhante e suave surgiu nas paredes e no teto do escritório
quando o dia findou; aquela luz automática e oculta que se tornava
mais forte quando chegava a escuridão. Webster olhou para a janela e
reparou que era um retângulo de escuridão, ponteado por alguns
anúncios luminosos que brilhavam na atmosfera da cidade.
Inclinou-se, premiu um comutador e falou com o secretário no
outro compartimento.
— Desculpe tê-lo feito esperar tanto tempo. Não dei pelas horas.
— Não faz mal, senhor — disse o secretário. — Esta aqui uma
visita, Mr. Fowler.
— Fowler ?
— Sim, o sujeito de Júpiter.
— Bem sei — respondeu, cansado, Webster. — Diga-lhe que entre.
Quase se tinha esquecido de Fowler e da sua ameaça.
Olhou distraidamente para a secretária e reparou no caleidoscópio
que ali deixara. Um brinquedo engraçado, pensou. Uma ideia original.
Um objeto simples para as mentalidades do passado. Mas o garoto iria
delirar com ele.
Estendeu a mão e, pegando nele, levou-o aos olhos. A luz teceu um
desenho de cores estranhas, como um pesadelo geométrico. Fez girar
o tubo e o desenho mudou. Outra vez e...
O seu cérebro foi acometido por súbito mal-estar e a cor
transformou-se numa tortura brilhante.
O tubo caiu e tilintou sobre a secretária. Webster olhou para as
mãos e segurou-se na borda da secretária.
No seu cérebro insistia o mesmo pensamento: Que brinquedo para
uma criança!
O mal-estar desapareceu e ficou rígido, com o cérebro outra vez
claro e a respiração regular.
Engraçado, pensou. É engraçado acontecer isto. Ou teria sido por
outra razão e não devido ao caleidoscópio? Uma sensação qualquer,
uma reação do coração. Era muito jovem para aquilo e ainda há pouco
tempo fora examinado.
A porta bateu e Webster levantou os olhos.
Fowler atravessou a sala com passos circunspectos, até a secretaria.
— Que deseja, Fowler?
— Saí daqui encolerizado — disse Fowler—, e não desejo isso.
Talvez compreendesse, talvez não. Estava incomodado, percebe?
Regressei de Júpiter com a sensação de que, e por fim, todos os anos
que passara nas estações se justificavam, que valera a pena toda a
angústia que sentira ao ver os homens partir. Trazia notícias,
compreende, notícias que todo o mundo esperava. Para mim era a
coisa mais maravilhosa, e julguei que você pensaria o mesmo. Era
como se lhe viesse dizer que tínhamos o Paraíso ao alcance das mãos.
Porque o é, Webster... porque o é...
Apoiou as mãos na secretaria e inclinou-se para afrente,
murmurando:
— Compreende, Webster, compreende ao menos um pouco?
As mãos de Webster estremeceram e ele pô-las nos joelhos,
apertando-as até lhe doerem os dedos.
— Sim — murmurou —, penso que sei.
Porque, na verdade, compreendia.
Compreendia para além do que lhe diziam as palavras.
Compreendia a angústia, a ânsia e o amargo desapontamento que as
palavras ocultavam. Compreendia como se ele próprio tivesse
pronunciado as palavras — como se ele fosse Fowler.
A voz de Fowler soou, alarmada:
— Que há, Webster? Que tem você?
Webster tentou falar, mas não o conseguiu. A garganta contraiu-se-
lhe até lhe doer a maçã-de-adão.
Tentou de novo e as palavras vieram, lentas e forçadas.
— Diga-me, Fowler: aprendeu em Júpiter muitas coisas? Coisas
que o homem não conhece, ou conhece mal, como a telepatia em alto
grau, ou... ou...
— Sim — concordou Fowler —, muitas coisas. Mas não as trouxe.
Quando regressei à forma humana tudo se perdeu. Era um homem,
mais nada. Lembro-me de muita coisa e sinto... chamemos-lhe uma
ânsia...
— Quer dizer que não possui nenhuma das aptidões que adquiriu
como... como galopador?
— Nem uma única.
— Não podia, por exemplo, fazer-me compreender uma ideia de
que me quisesse falar? Obrigar-me a sentir como você?
— Não — disse Fowler.
Webster estendeu a mão e empurrou o caleidoscópio, que rolou,
para parar de novo.
— Porque voltou ? — perguntou Webster.
— Para lhe dar uma explicação — respondeu Fowler. — Para lhe
dizer que não estava completamente zangado. Para tentar mostrar-lhe
o meu ponto de vista, que se tratava de uma simples divergência de
opiniões. Pensei que poderíamos ficar amigos.
— Compreendo. E ainda pensa informar o povo?
Fowler anuiu.
— Tenho de o fazer, Webster. Compreende isso, com certeza. É...
é... é quase uma religião para mim, uma coisa em que totalmente
acredito. Tenho de dizer aos outros que há uma vida e um mundo
melhores. Sou obrigado a revelar-lhes o segredo.
— Um novo Messias — disse Webster.
Fowler endireitou-se.
— Era isso que eu receava. Troçar não...
— Não troço — respondeu Webster quase gentilmente.
Pegou no caleidoscópio, poliu o tubo na palma da mão, com ar
pensativo. Ainda não, pensou. Ainda não. Tenho de pensar. Desejo
realmente que ele me compreenda como o compreenda a ele?
— Ouça, Fowler — disse. — Espere um ou dois dias. Espere um
pouco. Um ou dois dias. Depois falaremos de novo.
— Já esperei demasiado.
— Mas quero que pense nisto. O homem surgiu há um milhão de
anos — um animal. Desde então não deixou de subir na escala da
cultura. Pouco a pouco, dolorosamente, desenvolveu um padrão de
vida, uma filosofia, uma maneira de agir. O seu progresso foi
geométrico. Hoje consegue fazer mais do que ontem e amanhã mais
do que hoje. Pela primeira vez na História, o homem vai pelo
caminho certo. Teve um bom princípio, um primeiro passo, poder-se-á
dizer. Irá muito mais longe, em menos tempo.
“Não será tão agradável como em Júpiter, talvez muito diferente. A
humanidade, comparada às formas de vida de Júpiter, será talvez
monótona. Mas é a vida do Homem. E aquilo porque ele tem lutado, é
obra sua. É o destino que construiu.
“É-me penoso pensar, Fowler, que no momento em que nos
orientamos vamos destruir o nosso destino, na mira de um outro que
desconhecemos, de que não temos a certeza.”
— Esperarei — disse Fowler. — Só um ou dois dias. Mas aviso-o
de que não consegue livrar-se de mim. Não consegue fazer-me mudar
de ideias.
— É tudo quanto peço — concordou Webster. Levantou-se e
estendeu a mão. — Quer apertar ? — perguntou.
Mas, mesmo ao apertar a mão de Fowler, Webster sabia que não
daria resultado. Com ou sem a filosofia de Juwain, a humanidade
caminhava para o abismo. Um abismo ainda maior em virtude da
filosofia de Juwain. Os mutantes não perderiam o espetáculo. Se esta
era a piada, se esta era a maneira de se livrarem da raça humana, não
descurariam nenhum processo. Amanhã de manhã todos os homens,
mulheres e crianças teriam espreitado através de um caleidoscópio. Só
Deus sabia quantos outros processos podia haver.
Seguiu Fowler com os olhos até a porta se fechar. Depois
encaminhou-se para a janela e olhou para fora. Brilhando no céu da
cidade, havia um novo anúncio. Um anúncio louco que formava cores
loucas na noite. A acender e a apagar, como num caleidoscópio.
Webster permaneceu com os olhos fixos nele, os lábios cerrados.
Devia ter contado com isso.
Pensou em Joe e uma fúria assassina atravessou-lhe o cérebro.
Porque aquela visita não passava de uma brincadeira, um gesto
traquinas com o fim de dar a entender ao homem o que se passava,
para o informar de que estava irremediavelmente perdido.
Devíamos tê-los morto a todos, pensou Webster, e surpreendeu-o a
fria calma com que o pensou. Devíamos tê-los eliminado como a uma
doença perigosa.
Mas o homem esquecera a violência como política mundial e
individual. Há cento e vinte e cinco anos que dois grupos não se
atacavam com violência.
Quando Joe me chamou, a filosofia de Juwain estava sobre a
secretária. Bastava estender a mão e tocá-la, pensou.
Ficou rígido com este pensamento. Bastava estender a mão e tocá-
la. E foi o que fiz.
Mais do que telepatia, mais do que adivinhação. Joe sabia que ele
havia de pegar no caleidoscópio — devia saber. Previsão — a
capacidade de ver o futuro. Só uma hora, mas bastaria.
Joe e os outros mutantes, claro, sabiam do caso Fowler. As suas
mentalidades telepáticas tinham-lhes dito tudo. Mas isto era diferente.
Continuou à janela a olhar para o anúncio. Milhares de pessoas o
veriam. Vê-lo-iam e sentiriam aquele súbito impacto no pensamento.
Webster estremeceu, admirando o padrão inconstante das luzes.
Talvez se tratasse de um choque psicológico sobre determinada zona
do cérebro. Uma zona do cérebro ainda não utilizada — uma parte do
cérebro que, no decorrer do desenvolvimento humano, viria a
funcionar normalmente. Uma função que estava agora a ser forçada.
A filosofia de Juwain, finalmente! O que os homens procuravam
desde há séculos surgia agora. Era oferecida ao homem numa altura
em que se passaria melhor sem ela.
Fowler escrevera no seu relatório: Não posso fornecer uma
descrição pormenorizada por não existirem palavras para exprimir o
que quero dizer. Não possuía ainda essas palavras, evidentemente,
mas tinha uma coisa melhor — uma audiência capaz de compreender
a sinceridade e a grandeza escondida nas palavras que possuía. Uma
audiência com um sentido recém-descoberto que os tornava capazes
de apreender o poderoso alcance do que Fowler tinha para dizer.
Assim o planeara Joe. Esperara o momento. Utilizara a filosofia de
Juwain como arma contra a raça humana.
Porque, possuindo a filosofia de Juwain, os homens partiriam para
Júpiter. Para melhor ou para pior, mas partiriam para Júpiter.
A única oportunidade de vencer Fowler era contar com a sua
incapacidade de descrever o que vira e sentira, em alcançar o povo
com uma clara exposição da mensagem que trazia. Só com as
palavras humanas, a mensagem teria sido vaga, confusa, e, embora ao
princípio o povo se sentisse inclinado a acreditar, hesitaria nesse
crédito e ouviria outros argumentos.
Mas estava perdida essa oportunidade, agora, pois as palavras não
seriam vagas nem confusas. O povo saberia, com tanta clareza e
vibração, como o próprio Fowler, como era Júpiter.
O povo partiria para Júpiter, entraria numa vida diferente da
humana.
E o sistema solar, todo o sistema solar, à exceção de Júpiter, ficaria
à mercê dos mutantes; poderiam desenvolver a cultura que quisessem
— uma cultura que pouco se aproximaria da raça que lhes dera o ser.
Webster afastou-se da janela e voltou à secretária. Baixou-se, abriu
uma gaveta e rebuscou no interior. A mão saiu, agarrando um objeto
que nunca julgara vir a utilizar — uma relíquia, uma peça de museu
que para ali atirara há anos.
Com um lenço limpou o metal da arma, experimentou-lhe, com os
dedos trementes, o maquinismo.
Fowler era a solução. Se Fowler morresse...
Se Fowler morresse e as estações de Júpiter fossem desmontadas e
abandonadas, os mutantes estariam perdidos. O homem possuiria a
filosofia de Juwain e dominaria o destino. A expedição a Centauro
cruzaria o céu. As experiências sobre a vida continuariam em Plutão.
O homem seguiria o caminho traçado pela sua cultura.
Mais rápido do que nunca. Mais rápido do que poderia sonhar-se.
Dois grandes passos. A renúncia à violência como atitude humana
— a compreensão que trazia a filosofia de Juwain. Os dois grandes
fatores que acelerariam o progresso do homem.
A renúncia à violência e a...
Webster olhou para a arma que apertava na mão e ouviu o rugido
de um vento tumultuoso atravessar-lhe o cérebro.
Dois grandes passos — e estava prestes a esquecer o primeiro.
Em cento e vinte e cinco anos nenhum homem assassinara outro;
havia mais de mil anos que o assassínio deixara de ser um fator
normal na regularização dos assuntos humanos.
Depois de mil anos de paz, uma morte podia destruir tudo. Um tiro
na noite poderia fazer ruir toda a estrutura, poderia atirar de novo com
o homem para o pensamento bestial.
“Se Webster pôde matar, porque não posso eu fazê-lo também? De
resto, há alguns homens que devem ser mortos. Webster procedeu
bem, mas não devia ter morto apenas um. Não sei porque o
condenaram à forca; devia antes ser condecorado. Devíamos começar
pelos mutantes. Se não fossem eles...”
Seria assim que falariam.
Era assim, pensou Webster, que o vento lhe rugia no cérebro.
O brilho do anúncio de cores doidas formou um desenho
fantasmagórico nas paredes e no sobrado.
Fowler está a vê-lo, pensou Webster. E, mesmo que o não esteja,
ainda tem o caleidoscópio.
Virá ver-me, sentar-se-á e conversaremos. Sentar-se-á e
conversaremos...
Atirou a arma para a gaveta e encaminhou-se para a porta.
NOTAS SOBRE O SEXTO
CONTO

Se os outros contos admitiam dúvidas quanto a sua origem,


nenhumas podem existir quanto a este. Reconhecemos nele as
caraterísticas de uma narrativa canina. Possui aquele valor emocional
mais profundo, aquela cuidada atenção pelas questões éticas, que são
afirmados em todos os outros mitos caninos.
Todavia, e por estranho que pareça, é precisamente neste conto que
Tige encontra a maior prova da existência da raça humana. Afirma
que nele se nos deparam as provas de que os cães narravam estes
contos à fogueira, quando se sentavam a falar sobre o homem
sepultado em Genebra ou ido a caminho de Júpiter. Nele se nos
oferece o relatório da primeira tentativa dos cães em direção aos
mundos dos penantes, os seus primeiros passos no desenvolvimento
de uma fraternidade animal.
Também pensa ele que, neste conto, encontramos provas de que o
homem era outra raça contemporânea que até certa altura caminhou
de mãos dadas com os cães. Se aconteceu ou não o desastre a que este
conto se refere como responsável pelo desaparecimento do homem,
não possuímos a certeza, afirma Tige. Admite, contudo, que através
dos séculos o conto, tal como hoje o conhecemos, foi embelezado e
alterado, mas, mesmo assim, fornece boas e substanciais provas de
que o desastre aconteceu de facto.
Rover, que não admite a evidência dos factos que Tige apresenta,
acredita antes que o narrador, neste conto, leva a uma conclusão
lógica a cultura que o homem teria desenvolvido. Sem o mínimo
propósito, sem uma certa estabilidade, nenhuma cultura pode
sobreviver, e Rover vê neste conto uma lição.
O homem, nesta história, é tratado com uma certa ternura, ausente
de qualquer dos outros contos. É simultaneamente um ser solitário e
digno de dó, mas possui também uma certa auréola. É característico
da sua maneira de ser o fazer, no final, um grande gesto, que lhe
confere um carácter divino, por autoimolação.
Contudo, a adoração de que é alvo por parte de Benzer tem certos
fatores perturbantes que são ponto de amarga discórdia entre aqueles
que têm estudado a lenda.
No seu livro O Mito do Homem, Bounce pergunta:
— Se o homem tivesse seguido um caminho diferente, não poderia,
no futuro, vir a ser tão grande como o cão?
Esta pergunta é, talvez, a que muitos leitores terão feito a si
próprios.
VI - PASSATEMPOS

O coelho escondeu-se atrás de um arbusto e o pequeno cão preto


correu atrás dele. Repentinamente, estendeu as unhas e parou.
No seu trajeto estava um lobo com o corpo ensanguentado e trêmulo
do coelho entre os dentes.
Ebenezer ficou quieto e arfante, com a língua vermelha fora da
boca e com um certo mal-estar à vista de tal espectáculo.
Era um coelho tão engraçado!
Ouviu passos atrás de si. Sombra apareceu a correr e parou a seu
lado.
O lobo deslizou os olhos do cão para o pequeno autômato e de
novo para o cão. O frio brilho de selvajaria desapareceu dos seus
olhos.
— Não devias ter feito isso, lobo — disse Ebenezer suavemente.
— O coelho sabia que eu não o magoava e tudo era brincadeira. Mas
ele correu na tua direção e tu apanhaste-lo.
— Não ganhas nada em falar com ele — sibilou Sombra através do
canto da boca. — Não compreende o que dizes, e se não tomas
cuidado apanha-te também.
— Se estiveres aqui, não me apanha — disse Ebenezer. — Além
disso, já nos conhecemos. Pertence à alcateia que alimentamos no
Inverno passado.
O lobo avançou vagarosamente, com passos cautelosos, até ficar
aproximadamente a meio metro do pequeno cão. Então, muito
devagar e com infinito cuidado, colocou com o focinho.
Sombra emitiu um estranho som:
— Deu-te o coelho!
— Bem vejo — disse Ebenezer calmamente. — Disse-te que nos
conhecíamos. Foi a este que o Jenkins curou uma orelha ferida.
O cão deu um passo em frente, abanando a cauda, o focinho no ar.
O lobo hesitou um momento, depois baixou a enorme cabeça e
fungou. Durante um segundo os dois focinhos quase se tocaram;
depois o lobo recuou.
— Vamos embora — pediu Sombra. — Vai à frente, que eu cubro a
retirada. Se ele tentar...
— Não nos fará mal — retrucou Ebenezer. — É nosso amigo e não
devemos censurá-lo pelo que fez ao coelho. Não pode compreender; é
assim que vive. Para ele um coelho é um pedaço de carne.
Como, pensou ele, já o foi para nós. Antes de o primeiro cão se
sentar com o homem junto do fogo na boca de uma caverna, e muito
tempo depois disso. Ainda hoje um coelho, às vezes...
Com movimentos lentos, quase a pedir desculpa, o lobo avançou e
pegou de novo no coelho com os seus grandes dentes. Moveu a cauda
num quase agradecimento.
— Vês! — gritou Ebenezer, enquanto o lobo desaparecia. As patas
levantaram uma nuvem de poeira, e uma sombra escondeu-se na
floresta.
— Levou-o outra vez — esbravejou Sombra. — O canalha...
— Ele deu-mo — disse Ebenezer triunfante. — Mas tinha tanta
fome que não conseguiu manter a oferta. Fez uma coisa pouco vulgar
entre os lobos. Por um momento foi mais do que um animal.
— Quem dá e tira...
— Teve vergonha quando o apanhou de novo. Viste como abanou a
cauda? Era a explicar-me que tinha fome e precisava do coelho mais
do que eu.
O cão ficou a olhar para as copas verdes das árvores encantadas,
sentiu o cheiro das folhas outonais, da hepática e das outras flores
silvestres, e o odor repentino e suave das flores novas, prenúncio da
Primavera.
— Talvez um dia... — murmurou ele.
— Eu sei — continuou Sombra. — Talvez um dia se civilizem
também. E os coelhos, e os esquilos, e todos os pequenos seres da
floresta. E vocês, com essa mania do devaneio...
— Nós não devaneamos — protestou Ebenezer. — Sonhamos. Os
homens costumavam sonhar. Sentavam-se e sonhavam. Foi assim que
nós aparecemos. Um homem chamado Webster pensou em nós,
cuidou-nos, modificou-nos a garganta de modo a podermos falar.
Construiu lentes para que pudéssemos ler. Fez...
— Muita coisa boa fez o homem com os seus sonhos—
interrompeu Sombra com maldade.
Essa é a verdade integral, pensou Ebenezer. Há poucos homens
agora. Apenas alguns mutantes sentados nas suas torres a fazer sabe
Deus o quê e uma Colônia pequena de autênticos homens em
Genebra. Os outros há muito que partiram, para Júpiter. Partiram para
Júpiter e tomaram forma diversa da humana.
Vagarosamente, com a cauda abaixada, Ebenezer voltou-se e
começou a descer o caminho.
Foi pena, pensou. Era um coelho tão engraçado, corria tão bem! E
não tinha medo. Tinha corrido atrás dele tanta vez, pelo simples
prazer de correr...
Mas mesmo assim Ebenezer não podia censurar o lobo. Para este o
coelho não era um brinquedo, pois não possuía nem rebanhos, nem
carne, nem leite, nem campos de trigo para fazer biscoitos.
— O que eu devia fazer — resmungou Sombra sem remorsos—
era dizer a Jenkins que fugiste. Bem sabes que é proibido.
Ebenezer não respondeu. Continuou a marchar. Sabia que Sombra
tinha razão. Em vez de andar a perseguir coelhos, devia estar na Casa
Webster à escuta — escutando os sons, as sensações, a concretização
de coisas próximas, como encostar o ouvido a uma parede e ouvir o
que se dizia do outro lado; mas neste caso tudo era esbatido, muitas
vezes distante e difícil de entender. E, na maior parte dos casos, difícil
de compreender.
O animal que ainda existe em mim, pensou Ebenezer. Caçar
pulgas, roer ossos, coisas que não me deixam ser eu próprio e me
obrigam a fugir para caçar coelhos quando devia ficar à escuta, que
me obrigam a fugir para a floresta quando devia ficar a ler os velhos
livros que enchem as paredes do estúdio.
O nosso desenvolvimento foi rápido. Mas assim era preciso.
O homem, levou milhares de anos a transformar os seus grunhidos
em fala, milhares de anos para descobrir o fogo e milhares de anos
para inventar o arco e a flecha, milhares de anos para aprender a
lavrar a terra e conhecer o tempo das colheitas, milhares de anos para
abandonar a caverna e construir a sua casa.
Mas em pouco mais de mil anos, desde o dia em que aprendemos a
falar, ficamos entregues a nós próprios. Ficamos entregues a nós
próprios é como quem diz: há o Jenkins.
A floresta alargava-se na encosta salpicada de enormes carvalhos,
dobrados como velhos a passear.
A casa ficava no cimo da colina, uma construção confusa que
lançara raízes e se pegara à terra, tão velha que tomara a cor do que a
rodeava, da erva, das flores e das árvores, do céu, do vento e da
chuva. Uma casa construída por um homem que a amara como os
cães a amavam agora. Tinha sido construída por uma família lendária
que nela vivera e morrera, deixando um rasto meteórico através do
tempo. Homens que emprestavam a sua sombra às histórias contadas
à lareira nas noites de tempestade, quando o vento penetrava pelas
frestas. Histórias de Bruce Webster e do primeiro cão, Nathaniel; de
um homem chamado Grant, que encarregara Nathaniel de transmitir
uma mensagem aos outros cães; de outro homem que tentara alcançar
as estrelas e do velho que o esperava numa cadeira de rodas no
jardim. E outras histórias de monstruosos mutantes que os cães
tinham vigiado durante muitos anos.
Agora os homens tinham desaparecido, a família não passava de
um nome e os cães continuavam a obra, como Grant, há tanto tempo
já, dissera a Nathaniel que aconteceria.
Como se fossem homens, como se os cães fossem homens. Essa
tinha sido a fórmula usada há dez séculos, e chegara agora a altura.
Os cães regressaram a casa quando os homens partiram; vieram
dos quatro cantos da Terra para o local onde o primeiro cão
pronunciara a primeira palavra; onde o primeiro cão lera pela primeira
vez — para a Casa Webster, onde um homem, há muito tempo,
sonhara uma civilização binária, o homem e o cão caminhando de
mãos dadas.
— Fizemos o que pudemos — disse Ebenezer como se falasse a
alguém. — E vamos continuar.
Do outro lado da colina veio o som de um chocalho e um ladrar
irado. Os cachorros traziam as vacas para serem mungidas.
Sentia-se a poeira dos séculos, uma poeira cinzenta, amiga, parte
da própria casa, da parte que morrera com o passar dos anos.
Jon Webster absorveu o odor acre da poeira que enchia o quarto,
ouviu a canção interior do silêncio. Uma lâmpada de rádio brilhava
sobre a prateleira.
Receando perturbar o silêncio adormecido, Webster moveu-se
cuidadosamente, quase esmagado pelo peso do tempo que vinha do
teto. Estendeu o dedo e tocou no comutador como se esperasse não o
encontrar, como se tivesse necessidade do seu contacto para ter a
noção da sua existência.
Lá estava ele. As placas, os mostradores com uma única lâmpada.
Era tudo. Ali nada mais existia.
Exatamente como o mapa indicava.
Jon Webster abanou a cabeça, pensando. Devia saber que o mapa
está certo. Os mapas nunca esquecem. Nós é que esquecemos —
esquecemos ou nunca soubemos, ou nunca nos interessamos. Sabia
que a última afirmação era a verdadeira: “não nos interessámos”.
Não era provável que aquele recanto fosse conhecido. E era melhor
assim. Havia muito tempo...
Olhou pensativamente para o vão da janela. Levantou
vagarosamente a mão, mas voltou a descê-la. É melhor não mexer,
disse consigo, é melhor não lhe tocar, continuou a dizer consigo, é
melhor não lhe tocar, porque o mapa não lhe indica a finalidade, não
lhe descreve a mecânica.
Defesa, era tudo quanto o mapa dizia.
Defesa! Claro, há mil anos era necessária a defesa. Uma defesa
nunca utilizada, mas todavia necessária — existia a incerteza. Nessa
altura a irmandade dos povos era precária, capaz de se desmoronar ao
primeiro choque. Mesmo depois de dez séculos de paz, a memória da
guerra ainda estava presente — uma possibilidade sempre presente no
pensamento da Comissão Mundial, para a qual se devia estar
preparado.
Webster endireitou-se, rígido, escutando a maneira como a história
vibrava no quarto. A história percorrera o seu curso e terminara;
chegara a um beco sem saída — um rio tinha desaguado nas águas de
algumas centenas de fúteis vidas humanas e era agora um lago
estagnado e imperturbável perante o redemoinho e a luta das
realizações humanas.
Encostou a mão à pedra fria da parede e sentiu o frio e a poeira
colarem-se-lhe à mão.
A fundação de um império, pensou. O subsolo de um império. A
pedra mais profunda da gigantesca construção erguera-se com
orgulhosa força até à superfície — um grande prédio outrora pleno de
preocupações acerca do sistema solar, um império sem o sentido de
conquista, mas um império de relações humanas ordenadas, baseadas
no respeito mútuo e na compreensão tolerante.
Um Governo humano dava uma confiança fácil por intermédio de
um fator psicológico: uma defesa adequada e sem falhas. Os homens
desse tempo nada queriam arriscar, não deixavam escapar o mais
ínfimo pormenor. Tinham aprendido à sua custa e sabiam orientar-se.
Webster voltou-se vagarosamente e olhou para o rasto que os seus
pés tinham deixado na poeira. Em silêncio e cuidadosamente,
retrocedeu sobre os próprios passos e, abandonou a sala, fechando a
porta com o cadeado.
Enquanto subia as escadas pensou: Posso agora escrever a minha
história. Os meus apontamentos estão quase completos e sei como
ordená-los. Será um brilhante e exaustivo trabalho, que interessará
quantos o lerem.
Mas sabia que ninguém o leria. Ninguém dispunha do tempo e do
interesse necessários para tal.
Durante um longo momento, Webster permaneceu nos largos
degraus de mármore, em frente da casa, olhando a rua. Uma rua
bonita, pensou, a mais bonita de Genebra, com as suas árvores e os
seus canteiros bem cuidados, os passeios brilhando por força do
constante cuidado dos autômatos.
Ninguém caminhava na rua. Os autômatos tinham terminado cedo
o trabalho e, no alto de uma árvore, uma ave entoou uma canção que
se uniu ao sol e às flores, uma canção feliz que espalhava uma alegria
sem limites.
Uma rua limpa, aquecida pelo sol, e uma enorme e orgulhosa
cidade que perdera a sua finalidade. Uma avenida que devia estar
cheia dos risos das crianças, com parzinhos amorosos e velhos
aquecendo-se ao sol. E a cidade, a última cidade da Terra, a única
cidade da Terra, não tinha o mais leve ruído.
Uma ave cantava e um homem estava de pé, nos degraus, olhando;
as tulipas oscilavam sob a mão da brisa que enchia a rua com um
agradável aroma.
Webster virou-se para a porta, abriu-a e penetrou no átrio.
A sala tinha um aspeto solene, como uma catedral, com os seus
vitrais e as tapeçarias suaves. Sobre a lareira existia um enorme
quadro de cores esbatidas — uma casa no cimo de uma colina, uma
casa que lançara raízes e se agarrava à terra vigorosamente. Saía fumo
da chaminé, um fumo que o vento arrastava e alastrava no céu
cinzento que anunciava tempestade. Silenciosamente, Webster
atravessou a sala. Os tapetes, pensou, protegem a calma desta sala.
Randall quis desfazer-se deles, mas ainda bem que o não deixei tocar
em nada. Um homem precisa de uma coisa antiga, de uma recordação
a que possa agarrar-se e que seja simultaneamente uma herança, um
legado e uma promessa.
Chegou à secretária e acendeu a luz. Deixou-se cair vagarosamente
na cadeira e pegou nos apontamentos. Virou a capa e olhou para o
título: Estudo do Desenvolvimento Funcional da Cidade de Genebra.
Um bom título. Digno e erudito. Estava ali muito trabalho, vinte
anos de trabalho, vinte anos de pesquisas nos arquivos poeirentos,
vinte anos de leituras e comparações, de avaliação da autoridade e das
palavras dos que tinham partido já. Uma escolha atenta, a dedução
dos factos, a evolução da cidade e dos seus homens. Sem heróis e sem
lendas, apenas factos. E os factos eram difíceis de precisar.
Ouviu um ruído. Virou-se na cadeira e viu um autômato junto do
círculo luminoso.
— Peço desculpa, senhor — disse o autômato — mas venho
comunicar-lhe que Miss Sara o espera à beira-mar.
Webster olhou-o fixamente.
— Miss Sara?! Há muito tempo que não vem cá.
— É verdade, senhor — confirmou o autômato. — O regresso dela
faz-me lembrar os velhos tempos.
— Obrigado por mo teres vindo dizer, Óscar — disse Webster. —
Vou imediatamente, e tu leva-me as bebidas.
— Ela trouxe bebidas, senhor — respondeu Óscar. — Mr.
Ballentree foi quem as preparou.
— Ballentree! — exclamou Webster. — Espero que não estejam
envenenadas.
— Estive a observá-la — replicou Oscar. — Ela bebeu e sente-se
bem.
Webster levantou-se da cadeira e, atravessando a sala, dirigiu-se ao
vestíbulo. Abriu a porta e, piscando os olhos sob a luz intensa do Sol,
examinou a areia quente da praia que se estendia até ao mar. O oceano
estava manchado de vagas brancas de espuma.
A areia rangeu sob os seus pés e procurou distinguir qualquer
coisa, apesar do intenso brilho da luz. Viu Sara sentada numa das
cadeiras de lona sob as palmeiras, tendo a seu lado um frasco
amarelo, pouco feminino.
O ar sabia a sal e o vento que vinha do mar refrescava a atmosfera
aquecida pelo sol.
A mulher ouviu e, levantando-se, esperou-o com as mãos
estendidas. Ele apressou o passo, agarrou-lhe nas mãos e ficou a olhá-
la.
— Estás na mesma — disse. — Estás tão bonita como da primeira
vez que te vi.
Ela sorriu e os olhos brilharam-lhe.
— E tu, Jon. Estás um bocado grisalho, mas mais atraente.
Ele riu-se.
— Trouxe-te uma coisa — disse Sara. — A última obra-prima de
Ballentree. Far-te-á rejuvenescer trinta anos.
Ele resmungou.
— Admira-me como Ballentree ainda não matou metade da
população de Genebra com as drogas que fabrica.
— Esta é boa de verdade.
E era. Era suave e tinha um sabor estranho, quase metálico.
Webster pegou numa cadeira e sentou-se junto de Sara, olhando-a.
— Tens uma bela casa — disse Sara. — Foi o Randall que a
construiu, não foi?
Webster moveu afirmativamente a cabeça.
— Divertiu-se à grande. Tive de lhe dar uma tarefa. E aqueles seus
autômatos! São ainda mais doidos do que ele!
— Mas faz coisas maravilhosas. Fez um quarto marciano para o
Quentin que é mesmo do outro mundo.
— Bem sei — disse Webster. — Também me queria construir um.
Dizia que era o local ideal para meditar. Ficou furioso quando lhe
disse que não.
Esfregou as costas da mão esquerda com o polegar direito, os olhos
presos na névoa azul do oceano. Sara inclinou-se e prendeu-lhe o
polegar.
— Ainda tens verrugas — disse ela.
Jon sorriu.
— Pois tenho. Já as podia ter tirado, mas nunca tive tempo. Tenho
tido muito que fazer. Já fazem parte de min.
Ela largou-lhe o polegar e ele voltou a esfregar as verrugas com ar
distante.
— Tens tido muito que fazer! — observou ela. — Nem te tenho
visto. Como vai o livro?
— Vou começar a escrevê-lo — respondeu Webster. — Estou
agora a dividir os capítulos. Fui hoje verificar os últimos pormenores.
Preciso ter a certeza de tudo quanto vou dizer, compreendes. Há uma
sala na cave do velho Edifício da Administração Solar, uma espécie
de sala de comando de um posto de defesa. Baixa-se uma alavanca e...
— E o quê?
— Não sei — disse Webster.— Deve acontecer qualquer coisa.
Devia experimentar, mas não tive coragem. Há vinte anos que ando a
rebuscar na poeira e estou farto.
— Parece-me que perdeste a coragem, Jon. Estás cansado. Não
deves cansar-te. Não há razão para isso. Diverte-te. Vai outro cálice?
Abanou a cabeça.
— Não, obrigado, Sara. Não me apetece. Tenho medo, Sara; tenho
medo.
— Medo?
— Medo desta sala — esclareceu Webster. — É uma ilusão. Os
espelhos dão a ilusão da distância, os leques levantam vento sobre
uma camada salgada, as bombas fazem ondas. O sol é artificial. Se
não quiser apanhar sol, basta-me girar um comutador e aparece a Lua.
— Ilusão — disse Sara.
— É isso mesmo — disse Webster. — É tudo o que possuímos.
Não trabalhamos a sério, não temos um emprego a sério. Não temos
finalidade alguma nesse trabalho. Trabalhei durante vinte anos para
escrever um livro que ninguém lerá. Podiam passar o tempo a lê-lo,
mas ninguém quer perder esse tempo. Não se interessam. Bastava que
pedissem um exemplar — e, mesmo que não o fizessem e eu soubesse
que alguém queria lê-lo, eu próprio lho iria levar com prazer. Mas
quê! Ficará nas prateleiras, como todos os outros livros. E que ganho
eu? Espera... eu digo. Vinte anos de trabalho, vinte anos que levei a
enganar-me a mim mesmo, vinte anos de boa saúde.
— Compreendo — disse Sara suavemente. — Compreendo, Jon.
Os últimos três quadros...
Ele levantou os olhos de repente.
— Mas, Sara...
Ela abanou a cabeça.
— Não, Jon, ninguém os quis. Estão fora de moda, já se não usam
os quadros naturalistas: agora admiram o impressionismo.
Pinceladas...
— Somos demasiado ricos — disse Webster —, possuímos
demasiado. Deixaram-nos tudo, tudo e nada. Quando a humanidade
emigrou para Júpiter, os poucos que ficaram herdaram a Terra,
demasiado grande para eles. Não puderam dominá-la, era-lhes
impossível. Julgavam possuí-la, mas eram eles os possuídos —
possuídos e dominados.
Ela pousou-lhe a mão no braço.
— Pobre Jon — disse.
— É impossível fugir — disse ele. — Um dia teremos de enfrentar
a verdade. Devemos começar de novo: partir do nada.
— Eu...
— Que é, Sara ?
— Eu vim despedir-me.
— Despedir-te?
— Vou entrar no sono.
Ele levantou-se bruscamente, horrorizado.
— Não, Sara!
Ela riu, forçadamente.
— Porque não vens comigo, Jon? Algumas centenas de anos.
Talvez tudo seja diferente quando acordarmos.
— Só porque ninguém compra os teus quadros, só porque...
— Devido a tudo quanto disseste ainda há pouco. A ilusão, Jon.
Sabia-o, sentia-a, mas nada podia fazer.
— Mas o sono também é uma ilusão.
— Bem sei. Mas não sabes que é ilusão, pensas que é verdadeiro.
Não tens nem inibições nem medos, a não ser os medos
deliberadamente traçados. É natural, Jon, mais natural do que a vida.
Fui ao Templo e explicaram-me tudo.
— E quando acordas?
— Fica-se adaptado para qualquer vida, em qualquer era, como se
sempre lhe tivéssemos pertencido. Ou melhor ainda que isso, quem
sabe? Ou melhor ainda...
— Duvido — replicou Jon, sério. — Duvido que alguém descubra
a solução. Um povo que se entrega ao sono não moverá um dedo.
Ela deixou-se cair na cadeira e ele sentiu-se envergonhado.
— Perdoa-me, Sara. Não estava a referir-me a ti, nem a ninguém
em particular, mas ao grupo que constituímos.
As palmeiras estremeciam violentamente, abanadas pelo vento.
Pequenas poças de água, deixadas pela maré cheia, brilhavam ao sol.
— Não tentarei dissuadir-te — disse Webster.— Tiveste tempo de
pensar nisso e sabes o que queres.
A raça humana não foi sempre assim, pensou. Houve uma altura,
há mil anos, em que um homem teria discutido este assunto. Mas o
juwanismo acabou com todas as pequenas discussões agradáveis. O
juwanismo matou muita coisa.
— Sempre pensei — replicou suavemente Sara — que, se
pudéssemos ficar juntos...
Ele fez um gesto de impaciência.
— É outra das coisas que perdemos, que a raça humana deixou
perder. Perdemos muitas coisas, de facto — os laços familiares, o
comércio, o trabalho, o objetivo...— Voltou-se e olhou-a bem de
frente.— Se quiseres voltar, Sara...
Ela abanou a cabeça.
— Não daria resultado, Jon. Passaram já muitos anos.
Ele anuiu. Não valia a pena negá-lo.
Ela levantou-se e estendeu-lhe a mão.
— Se alguma vez decidires entrar no sono, procura a minha data.
Pedirei que te reservem um lugar a meu lado.
— Duvido que isso venha a acontecer — respondeu ele.
— Como queiras. Adeus, Jon.
— Ainda um momento, Sara. Não disseste uma palavra sobre o
nosso filho. Via-o muitas vezes, mas agora...
Ela riu-se.
— Tom é quase um homem, Jon, é esquisito. Ele...
— Há muito tempo que o não vejo — insistiu Jon.
—Não admira. Vem poucas vezes à cidade. Tem um passatempo —
uma herança tua. Resolveu tornar-se — como direi ? — em pioneiro.
— Queres dizer uma investigação nova, invulgar?
— É invulgar, não há dúvida, mas não investigação. Vai para a
floresta e vive sozinho, com dois ou três amigos. Levam um saco de
sal, arcos, flechas... É estranho, não o duvido — admitiu Sara —, mas
diverte-se imenso. Garante-me que está farto de aprender coisas.
Parece saudável como um lobo. Esguio e forte, com os olhos
brilhantes.
Rodou sobre os calcanhares e afastou-se.
— Acompanho-te à porta — disse Webster.
— Não, prefiro que não — disse ela abanando a cabeça.
— Esqueceste o frasco.
— Fica com ele, Jon. Para onde vou não preciso dele.
***
Webster enfiou o seu “chapéu de pensar”, de plástico, e carregou
no botão do escritor, na secretária.
Capitulo vinte e seis, pensou, e o escritor mexeu-se, crepitou e
escreveu: “Capítulo XXVI”.
Por um momento Webster ficou com o pensamento vago, reunindo
apontamentos, esboçando o capítulo, e depois recomeçou. O escritor
mexeu-se outra vez, crepitou, zumbiu e começou a trabalhar com
regularidade:
As máquinas, guiadas por autômatos que o tinham sido também,
continuaram a trabalhar, produzindo todas as coisas que estavam
habituadas a produzir.
Os autômatos trabalhavam como sabiam ser o seu direito — o seu
direito e o seu dever — e realizavam, os trabalhos para que tinham
sido construídos.
As máquinas e os autômatos continuaram a produzir riqueza,
como se existissem homens para a utilizar, como se houvesse um
milhão de homens em vez de uns escassos cinco mil. E os cinco mil
que tinham ficado ou sido abandonados encontraram-se subitamente
senhores de um mundo construído para milhões de seres.
Não havia Governo e não era necessário, pois todos os crimes e
abusos que o Governo tinha evitado eram, da mesma forma, evitados
pela riqueza herdada pelos cinco mil. Ninguém roubava, pois lhe
bastava estender a mão para obter o que desejava, sem recorrer ao
roubo. Ninguém disputaria com o vizinho acerca dos limites da
propriedade, pois o mundo inteiro era propriedade comum. Os
direitos de propriedade tornaram-se, da noite para o dia, numa
expressão sem sentido num mundo em que tudo existia em excesso.
Os crimes por violência tinham sido há muito eliminados da
sociedade humana, e com a pressão econômica que fazia desaparecer
os direitos de propriedade, que deixavam de ser um pomo de
discórdia, o Governo tornou-se prescindível. Na realidade, não havia
necessidade dos usos e costumes que o homem mantivera desde que
aparecera o comércio. O dinheiro, o câmbio, não tinham significado
num mundo em que bastava estender a mão para obter tudo o que se
desejava.
O mundo tinha-se libertado da pressão econômica e as pressões
sociais eram mais brandas. Depois da descoberta de Júpiter, o
homem deixou de sujeitar-se aos padrões e atos característicos da
época em que o comércio tinha um significado.
A religião, que durante séculos, fora perdendo terreno,
desapareceu totalmente. A unidade familiar, conservada pela
tradição, aliada à necessidade econômica de um chefe e de um
protetor, ruiu. Homens e mulheres viviam em conjunto se o desejavam
e separavam-se quando achavam conveniente, pois não existiam,
barreiras sociais e econômicas a impedi-lo.
Webster descansou e a máquina fez um ruído. Ergueu as mãos para
desapertar o “chapéu” e releu o último parágrafo.
Eis a raiz de tudo, pensou. Se as famílias se tivessem mantido
unidas, se Sara tivesse ficado comigo...
Coçou as verrugas da costa da mão, pensando: Tom quererá usar o
meu nome ou o dela? Geralmente preferem o da mãe. Foi o que eu fiz
até que minha mãe me pediu que o mudasse. Disse-me que isso
agradaria a meu pai e ela não se importava. Tinha orgulho no nome
que ele usava; era o seu único filho, ao passo que ela tinha outros.
Se nos tivéssemos mantido unidos, havia alguma coisa pela qual
valia a pena viver. Se nos tivéssemos mantido unidos, Sara não
escolheria o sono, não se iria deitar num tanque de fluido, numa
suspensão de vida, com o “chapéu de dormir” na cabeça.
Que sonho teria ela escolhido? Que espécie de vida sintética teria
ela escolhido? Quis perguntar-lhe, mas não o ousei. De resto, são
coisas que não se perguntam.
Pegou de novo no “chapéu”, colocou-o na cabeça, retomou o fio do
discurso. O escritor começou a funcionar:
O homem ficou confuso, mas por pouco tempo. Tentou encontrar
uma solução, mas também, por pouco tempo.
Os cinco mil não podiam continuar o trabalho dos milhões que
tinham partido para Júpiter em busca de uma vida melhor num
mundo estranho.
Esses cinco mil não possuíam a aptidão, a imaginação, a iniciativa
necessárias.
E havia os fatores psicológicos. O que pesava no cérebro dos
homens que ficaram. O do juwanismo que forçava os homens a serem
honestos para consigo e para com os outros, que forçava os homens a
terem consciência da inutilidade das coisas que procuravam. O
juwanismo não permitia uma falsa coragem. E era o que os cinco mil
homens mais precisavam — uma falsa e ousada coragem, que
desconhecia os perigos a enfrentar.
O que sofreram, comparativamente com o que antes se fizera,
dera-lhes a consciência de que o sonho humano do milhões era
demasiado vasto para as possibilidades dos cinco mil.
A vida era boa. Para quê preocuparmo-nos com ela? Havia
comida, vestuário, companheiros, diversões — tudo o que o homem,
pode desejar.
O homem, desistiu. O homem passou a divertir-se. As realizações
humanas reduziram-se a zero e a vida humana-a um paraíso sem.
sentido.
Webster tirou de novo o “chapéu” e desligou o escritor.
Ainda se alguém o lesse depois de escrito, pensou. Se alguém, o
lesse e compreendesse. Se alguém, compreendesse o caminho que a
humanidade segue.
Podia dizer-lhes a verdade. Podia falar com eles, um a um, até lhes
dizer tudo o que penso. Compreenderiam, porque a isso os obriga, o
juwanismo. Mas não me dariam atenção. Arrumariam tudo a um canto
do cérebro para um possível uso futuro, que nunca chegaria; não
quereriam incomodar-se.
Continuariam a proceder da mesma, maneira incoerente, ocupados
nos seus passatempos inúteis. Randall, com a sua equipa de autômatos
loucos, só pensava em reformar as casas dos vizinhos. Ballentree
passava horas sem fim a inventar novas misturas alcoólicas. Sim, e
ele, Jon Webster, perdera vinte anos a investigar a história de uma
cidade.
A porta soltou um leve estalido e Webster voltou-se. O autômato
entrou na ponta dos pés.
— Que é, Oscar?
O autômato parou, figura esbatida na meia-luz do crepúsculo que
enchia a sala.
— São horas do jantar, senhor. Vim saber...
— O que quiseres — disse Webster. — E, Oscar, podes preparar o
fogo.
— O lume já está preparado, senhor.
Oscar atravessou a sala e inclinou-se para a lareira. Uma chama
brilhou-lhe na mão, pegando-se depois à madeira.
Webster recostou-se na cadeira, olhando as chamas que lambiam a
madeira, e escutou o primeiro e débil crepitar do fogo, a tiragem da
chaminé a funcionar.
— É bonito, senhor — disse Oscar.
— Também gostas?
— Muito.
— Memórias ancestrais — disse Webster sombriamente.— Uma
recordação da forja que te construiu.
— Acha que sim, senhor? — perguntou Oscar.
— Não, Oscar, estava a brincar. Somos ambos um anacronismo.
Há poucas pessoas que usem a lareira, hoje em dia. Não são
necessárias. Mas possuem qualquer coisa que as torna sãs e
confortáveis.
Olhou para a tela, na parede, iluminada agora pelo brilho das
chamas. Oscar acompanhou o amo.
— Lamento o que se passou com Miss Sara, senhor.
Webster abanou a cabeça.
— Não, Oscar, ela assim o quis. Foi corno se abandonasse uma
vida para começar outra nova. Ficará deitada no Templo, adormecida
por muitos anos, e viverá outra vida — uma vida feliz, Oscar, como
ela teria planeado.
O pensamento voltou-se para o quadro de tempos atrás.
— Foi ela que pintou este quadro, Oscar — disse ele.— Levou
muito tempo, a fim de fixar todos os pormenores que exprimissem o
que queria. Costumava rir-se e dizer que eu também estava no quadro.
— Não o vejo, senhor — observou Oscar.
— Pois não, eu não estou lá. E talvez esteja, pelo menos parte de
mim. Parte do local donde vim. Essa casa, óscar, é a Casa Webster, na
América do Norte, e eu sou um Webster. Estou muito longe de casa
— e muito longe dos homens que a construíram.
— A América do Norte não fica assim tão longe, senhor.
— Pois não — respondeu Webster.— Em distância, não; mas fica
muito longe em muitos outros aspectos.
Sentiu o calor do fogo encher a sala até o tocar.
— Longe, demasiado longe e na direção errada.
O autômato moveu-se suavemente e abandonou a sala.
***
Ela trabalhou durante muito tempo, de modo a poder exprimir o
que queria.
E que queria ela exprimir? Nunca lho perguntara e ela nunca lho
dissera. Sempre pensara, lembrava-se agora, que era a maneira como
o fumo saía da chaminé, batido pelo vento, a maneira como a casa se
enraizava na terra, dobrada, como as árvores e a erva, protegendo-se
contra a tempestade que galgava a colina.
Mas talvez fosse outra coisa. Um simbolismo qualquer, qualquer
coisa que estabelecesse um paralelo entre a casa e aqueles que a
tinham construído.
Levantou-se e aproximou-se. Ficou na frente do fogo com a cabeça
erguida. Lá estavam as pinceladas; o quadro parecia menos uma
pintura, quando olhado de certa distância. Uma boa técnica. As
pinceladas fundamentais e os sombreados que conseguiam criar a
ilusão.
Segurança, segurança pela maneira como a casa surgia, quadrada e
sólida. Tenacidade por fazer parte da própria terra. Firmeza, teimosia
e uma certa melancolia.
Durante muitos dias desenhara ela com o visor apontado para a
casa, desenhara com cuidado, pintara vagarosamente, e durante muito
tempo ficou a observar o trabalho realizado. Havia cães e autômatos,
dissera ela, mas não os pintaria, pois só lhe interessava a casa. Uma
das poucas casas que ainda existiam em campo aberto. Abandonadas,
as outras tinham ruído com o correr dos séculos e a terra voltara a ser
floresta.
Mas nesta havia autômatos e cães. Um autômato grande, dissera
ela, e muitos autômatos pequenos.
Webster não lhe dera atenção — estava demasiado ocupado.
Voltou-se e regressou à secretária.
Que coisa estranha, cães e autômatos vivendo juntos. Há muito
tempo um Webster fizera experiências com cães, tentara habilitá-los a
construir uma cultura própria, a fim de desenvolverem uma
civilização binária entre o homem e o cão.
As recordações afluíram-lhe — pequenos fragmentos das lendas
que haviam corrido a respeito da Casa Webster. Um autômato
chamado Jenkins que servira a família desde o início; um velho
sentado numa cadeira de rodas, no parque, com os olhos presos às
estrelas, esperando um filho que nunca regressaria. E uma maldição
pairava sobre a casa por ter perdido para o mundo a filosofia de
Juwain.
O visor estava a um canto da sala, como uma peça de mobiliário
quase esquecida. Poucas vezes era usado. Não era necessário. O
mundo estava reduzido à cidade de Genebra.
Webster levantou-se e dirigiu-se para ele. Parou e pensou: As
marcações do mostrador estavam no guia; mas onde estava o guia?
Talvez na secretária.
Voltou à secretária e começou a procurar nas gavetas.
Excitado, rebuscava furiosamente, como um terrier que procurasse
um osso.
***
Jenkins, o velho autômato, esfregou o queixo metálico com os
dedos metálicos. Era um gesto habitual que costumava ter quando
mergulhava em profundos pensamentos — um gesto irritante e sem
sentido que aprendera no seu longo contacto com a raça humana.
Voltou os olhos para o cãozito preto sentado no chão, a seu lado.
— Com que então, o lobo foi gentil — disse Jenkins.— Ofereceu-
lhe o coelho.
Ebenezer mexeu-se, excitado.
— Era um daqueles que alimentamos no Inverno passado, daquela
alcateia que aqui apareceu e tentamos amansar.
— Eras capaz de o reconhecer?
Ebenezer moveu afirmativamente a cabeça e disse:
— Conheço-lhe o cheiro, e posso reconhecê-lo.
Sombra arrastou os pés no chão.
— Ouve, Jenkins, não lhe bates? Devia ter ficado à escuta e fugiu.
Sabe muito bem que não tem nada que correr atrás dos coelhos...
Jenkins respondeu com aspereza:
— Tu é que devias apanhar, Sombra, pela tua atitude. Tens
Ebenezer a teu cargo, fazes parte dele. Não és um indivíduo, és as
mãos de Ebenezer. Se ele tivesse mãos, não precisava de ti. Não és
nem o seu mentor, nem a sua consciência. As mãos apenas. Não te
esqueças.
Sombra arrastou os pés, revoltado.
— Vou fugir — declarou.
— Vais juntar-te aos autômatos selvagens, pela certa — disse
Jenkins.
Sombra anuiu.
— Ficavam contentes comigo. Estão a fazer muitas coisas e
precisam de ajuda.
— Faziam-te em pedaços — respondeu Jenkins num tom cáustico.
— Não tens treino nem aptidões para seres um deles. — Voltou-se
para Ebenezer. — Nós temos outros autômatos.
Ebenezer abanou a cabeça.
— Sombra é bom. Sei lidar com ele, conhecemo-nos bem. Ele não
me deixa ser preguiçoso, anda-me sempre em cima.
— Ainda bem — disse Jenkins. — Vão-se embora, andem.
Ebenezer, se quando andares atrás dos coelhos vires o lobo, tenta
ensinar-lhe alguma coisa.
Os últimos raios de sol entravam pela janela, enchendo a velha sala
de uma atmosfera primaveril.
Jenkins permaneceu calmamente sentado na cadeira, escutando os
sons que vinham de fora — o tilintar dos chocalhos, o ladrar dos
cachorritos, o bater do machado que cortava toros para a lareira.
Pobre criatura, pensou Jenkins. Fugir para andar atrás dos coelhos,
quando devia estar à escuta. Tinha mandado muito depressa. É preciso
estar alerta, é preciso evitar que retrocedam. No Outono deixaremos o
trabalho durante uma ou duas semanas, para fazermos umas caçadas
aos racoons. Deve fazer-lhes bem.
Há de chegar o dia em que não haverá racoons para caçar, nem
coelhos para perseguir, o dia em que os cães terão domesticado todos
os animais, e todos os animais selvagens serão seres que pensam,
falam e trabalham. Um belo e longínquo sonho — mas nem mais belo
nem mais longínquo que alguns dos sonhos do homem.
Ou talvez melhor que os sonhos do homem, pois os cães não
possuíam nada da rudeza da raça humana, não pretendiam atingir a
brutalidade mecânica que o homem alcançara.
Uma nova civilização, uma nova cultura, uma nova maneira de
pensar. Mística ou visionária, mas também o homem fora um
visionário. Poderiam, aprofundar mistérios que o homem desdenhara
por achá-los indignos de si, superstições sem base científica.
Coisas que acontecem à noite. Coisas que vagueiam pela casa. Os
cães acordam, e uivam, mas na neve não há pegadas. Os cães uivam
quando alguém morre.
Os cães sabiam. Os cães sabiam antes de poder falar e de
possuírem lentes de contacto para ler. Não tinham avançado tanto
como o homem — não eram nem cínicos, nem céticos. Acreditavam
nas coisas que ouviam e sentiam. Não inventaram a superstição como
unia forma de pensamento, como um escudo contra as coisas
invisíveis.
Jenkins voltou à secretária, pegou na caneta e dobrou-se sobre o
caderno de apontamentos. A caneta arranhava ao escrever:
“Ebenezer comunicou ter encontrado um lobo cordial. Recomendo
que o Conselho dispense Benzer da escuta e o encarregue de entrar
em contacto com o lobo.”
Os lobos, meditou Jenkins, seriam bons amigos. Dariam
esplêndidos vigias, bem melhores que os cães — são mais fortes,
mais rápidos, mais hábeis. Ficariam de vigia aos autômatos selvagens,
do outro lado do rio, e os cães seriam substituídos. Podiam dar
também, uma olhadela pelos castelos dos mutantes.
Jenkins abanou a cabeça. Não se podia confiar em ninguém,
naqueles tempos. Os autômatos pareciam decentes. Eram, amáveis,
apareciam uma vez por outra e ajudavam quando podiam. Eram bons
vizinhos, para dizer a verdade. Era impossível pensar que estavam a
construir máquinas.
Os mutantes nunca tinham incomodado ninguém, raro se viam.
Mas era preciso vigiá-los também. Nunca se sabia que patifaria
preparavam. Visse-se o que tinham feito aos homens. Aquela
miserável manobra com o juwanismo, revelando-o exatamente
quando destruiria a raça.
Os homens. Eram deuses para nós e desapareceram. Abandonaram-
nos. Ainda existem, alguns em Genebra, claro, mas não podem ser
incomodados, não se interessam por nós.
Ficou sentado no crepúsculo, pensando nos whiskies que servira,
nas viagens que fizera, nos dias em que os Websters viviam e
morriam naquela casa.
E agora era o padre confessor dos cães. Pequenos diabinhos
espertos lançados numa grande tentativa.
Uma campainha tocou suavemente e Jenkins endireitou-se,
surpreendido. Tocou de novo e uma luz verde piscou no televisor.
Jenkins pôs-se de pé e ficou perplexo, olhando para a luz verde sem
acreditar.
Alguém fazia uma chamada! Passados mil anos, uma chamada!
Avançou aos tropeções, deixou-se cair na cadeira e com os dedos
trêmulos manejou os botões.
A parede desapareceu e encontrou-se em frente de um homem
sentado a uma secretaria. Atrás do homem as chamas da lareira
deixavam ver uma sala com grandes janelas envidraçadas.
— És o Jenkins — disse o homem, e a sua expressão obrigou
Jenkins a soltar um grito.
— É... é...
— Sou Jon Webster — disse o homem.
Jenkins espalmou as mãos sobre o televisor, ficou rígido, receoso
das emoções pouco comuns aos autômatos que o invadiam.
— Conhecê-lo-ia em qualquer lado — disse Jenkins.— parecido
com eles e reconhecê-lo-ia. Trabalhei muito tempo para vós. Servia
bebidas e...
— Bem sei — respondeu Webster. — O teu nome acompanhou-nos
sempre. Sempre nos lembramos de ti.
— Está em Genebra, Jon? — Mas de súbito lembrou-se. — Quero
dizer, senhor.
— Deixa-te disso — disse Webster. — Prefiro que me chames Jon.
Sim, estou em Genebra, mas gostaria de vos ver. Posso?
— Quer vir cá?
Webster anuiu.
— Mas está tudo cheio de cães, senhor.
Webster sorriu.
— Os cães que falam?
— Sim — respondeu Webster. — Ficarão contentes ao vê-lo.
Sabem tudo acerca da família. A noite costumam contar histórias dos
velhos tempos e... e...
— E o quê, Jenkins?
— Também terei prazer em vê-lo, senhor. Sinto-me tão só!
***
Deus tinha vindo.
Ebenezer estremeceu ao pensar isso e encolheu-se na escuridão. Se
Jenkins soubesse que eu estava aqui, pensou, dava cabo de mim.
Jenkins disse-nos que o deveríamos deixar só, ao menos por
enquanto.
Ebenezer avançou cautelosamente, com pés de lã, e cheirou a porta
do gabinete, que estava entreaberta; uma fresta só!
Deitou-se sobre a barriga, escutando, mas não ouviu ruído algum.
Sentiu apenas um cheiro, um cheiro desconhecido, forte, que lhe fez
eriçar os pelos da nuca, num êxtase.
Olhou rapidamente por cima das espáduas. Não sentiu qualquer
movimento. O Jenkins estava na sala de jantar dizendo aos cães como
deviam comportar-se e Sombra andava longe, em qualquer serviço.
Cuidadosamente, sem fazer ruído, Ebenezer empurrou a porta com
o nariz e abriu-a um pouco mais. Outro empurrão ainda, e ficou
semiaberta.
Em frente da lareira estava sentado um homem, com as compridas
pernas cruzadas e as mãos pousadas sobre o estômago.
Ebenezer encostou-se mais ao soalho, fazendo um ruído
involuntário.
Ouvindo o som, Jon Webster endireitou-se.
— Quem está aí?
Ebenezer sentiu-se gelar e o coração bateu-lhe violentamente.
— Quem está aí ? — insistiu Webster, e viu o cão.
A voz tornou-se-lhe mais suave e disse:
— Entra, amigo, entra.
Ebenezer não se mexeu.
Webster chamou-o, estalando os dedos.
— Não te faço mal, entra. Onde estão os outros?
Ebenezer tentou levantar-se, tentou rastejar, mas tinha os ossos de
borracha e o sangue em água.
O homem avançou na sua direção, em grandes passadas.
Viu o homem que se debruçava para ele e sentiu uma das mãos
fortes que lhe pegavam para o levantarem. E o cheiro que sentira à
entrada da porta — o cheiro divino — entrou-lhe em turbilhão pelas
narinas.
As mãos conservaram-no apertado contra o estranho tecido que o
homem usava em vez dos pelos e uma voz dirigiu-se-lhe — não eram
palavras, mas confortava.
— Então vieste ver-me? — disse Jon Webster. — Fugiste e vieste
ver-me.
Ebenezer anuiu, francamente.
— Não está zangado, pois não? Não vai dizer a Jenkins ?
Webster abanou a cabeça:
— Não, não digo a Jenkins.
Sentou-se com Ebenezer ao colo. O cão mirou-lhe o rosto — um
rosto forte, bem desenhado, com as linhas mais acentuadas pelo brilho
das chamas.
Com a mão, Webster afagou a cabeça de Ebenezer, que se torceu
de felicidade canina.
— Parece que regressei a casa — disse Webster sem falar com o
cão. — Como se tivesse estado fora durante muito tempo e agora
regressasse e não reconhecesse o lugar. Não conheço o mobiliário,
nem o desenho do soalho. Só sei, devido a um sentimento secreto, que
é um velho lugar familiar, e estou contente por ter vindo.
— Eu gosto de estar aqui — disse Ebenezer, referindo-se ao colo
de Webster. Mas Webster não percebeu.
— Claro que gostas — disse. — A casa é tanto tua como minha,
mais tua, talvez, pois ficaste e olhaste por ela e eu esquecia-a.
Afagou a cabeça de Ebenezer e puxou-lhe uma orelha.
— Como te chamas? — perguntou.
— Ebenezer.
— E o que fazes tu, Ebenezer?
— Escuto.
— Escutas ?
— Pois, é o meu trabalho. Escuto os penantes.
— E tu ouves os penantes ?
— Não muito. Começo a pensar nos coelhos e não presto muita
atenção.
— Que fazem os penantes?
— Muitas coisas. Caminham, tropeçam e às vezes conversam. E
pensam muito.
— Ouve lá, Ebenezer, onde é que estão esses penantes?
— Não estão em parte alguma — disse Ebenezer. — Na Terra, pelo
menos.
— Não entendo.
— Suponha uma casa grande com muitos quartos — esclareceu
Ebenezer. — Os quartos são ligados por portas. Se estamos num
quarto, podemos ouvir o que se passa nos outros, mas não podemos
ver.
— Claro que podemos — disse Webster. — Basta abrira porta.
— Mas isso não se pode fazer — respondeu Ebenezer.— Nem
sequer sabemos se há portas. É como se estivéssemos no único quarto
da casa. Mesmo que soubéssemos que havia uma porta, não podíamos
abri-la.
— Estás a falar em dimensões.
Ebenezer enrugou a testa, preocupado.
— Não conheço essa palavra “dimensões”. Disse-lhe o que Jenkins
nos ensinou: que não se tratava de uma casa nem de quartos
verdadeiros e que as coisas que ouvíamos eram diferentes de nós.
Webster deu a mão à palmatória. Assim é que devia proceder.
Devagar, com cuidado. Não os confundir com palavras esquisitas.
Deixá-los primeiro compreender as coisas e introduzir então a
terminologia científica — e seria uma nova terminologia. Aqui estava
uma palavra nova. Penantes — as coisas atrás da parede, as coisas que
ouvimos e não identificamos: os habitantes do quarto vizinho.
Penantes.
Os penantes darão cabo de ti se não tens cuidado.
Assim procedem os homens. Não compreendem uma coisa, não a
podem ver, não a podem analisar. Muito bem, a coisa não existe. São
fantasmas, espíritos malignos, penantes.
Os penantes darão cabo de ti...
É mais simples assim, mais cômodo. Tens medo? Claro, mas só na
escuridão. Não te perseguem. Tenta esquecê-los. Faz deles fantasmas
ou espíritos malignos e ri-te — mas de dia.
Uma língua quente lambeu o queixo de Webster e Ebenezer torceu-
se, deleitado.
— Gosto de si — disse Ebenezer. — Jenkins nunca pegou em mim
desta maneira. Nunca me pegaram assim.
— Jenkins tem muito que fazer — disse Webster.
— Pois tem — concordou Ebenezer. — Tira apontamentos das
coisas que nós, cães, ouvimos e das coisas que devemos fazer.
— Já ouviste falar dos Websters? — perguntou o homem.
— Já, pois. Sabemos tudo deles. O senhor é um Webster.
Julgávamos que não havia mais nenhum.
— Há, sim — respondeu Webster. — Houve um aqui, sempre.
Jenkins é um Webster.
— Nunca nos disse isso.
— Ele nunca o diria.
O lume apagou-se e a sala escureceu. Das achas subiam labaredas
débeis, que se refletiam nas paredes e no pavimento.
Alguma coisa mais existia. Ruídos e murmúrios frágeis vindos das
paredes. Era uma casa antiga, cheia de recordações, em que a própria
estrutura tinha vida. Dois mil anos de existência. Fora construída para
durar e durara. Fora e ainda era um lar — uma construção sólida que
abraçava os seus moradores e os aquecia e lhes dava conforto.
Sentiu passos no cérebro — passos do passado, passos que se
tinham calado há séculos. “Os passos dos Websters, de todos os
Websters antes de mim, daqueles que Jenkins serviu durante toda a
sua vida.”
A história soltava-se dos cortinados e do soalho, senta-se nos
cantos, olhava das paredes. Uma história viva que se sentia nos ossos,
encostada no ombro — o choque dos olhos há tanto tempo fechados
que voltavam da noite.
Outro Webster, hem! Nem parece. Não prestas, a família
degenerou. Não és como nós e vais ser o último.
Jon Webster estremeceu.
— Não, o último não — protestou. — Tenho um filho...
Isso não tem importância. Ele diz que tem um filho, mas de nada
valerá.
Webster ficou rígido e Ebenezer escorregou-lhe do colo.
— Não é verdade — gritou Webster. — O meu filho...Calou-se.
O seu filho passava a vida na floresta, à caça, com arcos e flechas,
divertindo-se.
Sara tinha dito que era um passatempo, antes de mergulhar nos
cem anos de sono.
Um passatempo que não era um negócio, nem uma maneira de
viver, nem uma necessidade.
Um passatempo.
Uma coisa artificial, sem princípio nem fim. Uma coisa que se
podia abandonar sem que ninguém desse por isso.
Como inventar receitas de bebidas.
Como pintar quadros que ninguém queria.
Como ter uma equipa de autômatos doidos para reformar todas as
casas.
Como escrever histórias pelas quais ninguém se interessava.
Como brincar aos índios, aos homens das cavernas ou aos
pioneiros, com arcos e flechas.
Como inventar sonhos que duravam séculos para os homens e
mulheres cansados de viver e que desejavam fantasia.
O homem permaneceu sentado, olhando o nada que tinha diante de
si, sentindo a ameaça e o terrível vazio do amanhã.
Sem pensar, uniu as mãos e com o polegar direito coçou as costas
da mão esquerda.
Ebenezer avançou na escuridão. Pôs as patas no joelho do homem
e olhou-o.
— Dói-lhe a mão? — perguntou.
— O quê ?
— Dói-lhe a mão? Está a coçá-la...
Webster riu-se.
— Não, são verrugas.
Mostrou-as ao cão.
— Olha, verrugas! — exclamou Ebenezer. — Quer tê-las?
— Não. — Webster hesitou. — Não, claro que não. Nunca tive
tempo para as tirar.
Ebenezer inclinou o focinho e lambeu as costas da mão de Webster.
— Aí tem — anunciou triunfante.
— Tenho o quê?
— Olhe para as verrugas — convidou Ebenezer.
Uma acha caiu e Webster levantou a mão, examinando-a à breve
luz da chama.
As verrugas tinham desaparecido e a pele ficara lisa e limpa.
Jenkins permaneceu na escuridão, escutando o silêncio, o silêncio
suave que abandonava a casa às sombras, aos passos quase
esquecidos, à frase há muito tempo pronunciada, às línguas que
murmuravam na parede e cantavam nos cortinados.
Ajustando ligeiramente as suas lentes, poderia transformar a noite
em dia, mas o velho autômato recusara-se a modificar os olhos.
Preferia assim, pois esta era a hora da meditação, a hora suave em que
o presente se retirava para que o passado voltasse e vivesse.
Os outros dormiam, mas não Jenkins, porque os autômatos não
dormem. Dois mil anos acordado. Vinte séculos de existência sem um
momento de inconsciência.
É muito tempo, pensou Jenkins. É muito tempo, mesmo para um
autômato. Porque, mesmo antes de os homens partirem para Júpiter, a
maior parte dos velhos autômatos tinha sido posta de lado, destruída,
para dar lugar aos modelos mais novos, mais parecidos com os
homens, menos ásperos e mais bem parecidos, falando melhor e
respondendo mais rápido, mercê dos melhores cérebros de metal.
Mas Jenkins, porque era um servo antigo e dedicado, porque a
Casa Webster não seria a mesma sem ele, ficara.
Gostam de mim, disse Jenkins para consigo, e estas palavras
davam-lhe um profundo conforto — conforto num mundo em que o
não havia, um mundo em que um servo se transformava em chefe e
queria voltar a ser servo.
Continuou à janela contemplando o pátio, os vultos dos carvalhos
que desciam a colina. Escuridão. Nem uma luz. Em nenhuma parte. Já
lá ia o tempo em que as luzes brilhavam e as janelas pareciam
lanternas amigas, na larga extensão de terra que se estendia para além
do rio.
Mas os homens tinham partido e as luzes apagaram-se. Os
autômatos não precisavam de luz porque viam na escuridão, como
Jenkins podia ver, se o quisesse. E os castelos dos mutantes eram tão
escuros à noite como assustadores de dia.
Os homens haviam voltado — um homem. Viera, mas tornaria a
partir. Durante algumas noites dormiria no quarto de dormir dos
amos, no segundo andar, e voltaria para Genebra. Atravessaria as
velhas terras abandonadas, desceria até ao rio, percorreria os livros
alinhados na parede do gabinete e partiria.
Jenkins voltou-se. Vou ver como ele está, pensou. Vou, ver se
precisa de alguma coisa. Talvez queira uma bebida, embora receie que
o whisky esteja estragado. Mil anos é tempo demais mesmo para um
bom whisky.
Atravessou a sala e uma paz quente desceu sobre ele, a paz última
e próxima dos velhos tempos, de quando realizava, feliz como um
terrier, as suas tarefas.
Entoou uma canção enquanto se dirigia para a escada.
Ia apenas ver se Jon Webster estava adormecido, e se o não
estivesse diria: — Está bem, senhor? Deseja alguma coisa, senhor?
Deseja alguma coisa? Um toddy quente, talvez ?
Subiu os degraus dois a dois.
Porque estava de novo ao serviço de um Webster.
Jon Webster estava estendido na cama, com as almofadas
empilhadas sob a cabeça. A cama era dura e pouco confortável e o
quarto fechado e abafado — diferente do seu quarto em Genebra, em
que se deitava ao lado de um ribeiro ladeado de erva e podia olhar
para as estrelas artificiais que brilhavam no céu artificial. Podia sentir
o cheiro artificial dos lilases artificiais que floresceriam até depois de
o homem desaparecer. Aqui não se ouvia o murmúrio da queda de
água oculta, nem se notávamos pirilampos cativos — uma cama e um
quarto puramente funcionais.
Webster estendeu as mãos sobre o cobertor que lhe tapava as
pernas e dobrou os dedos, pensativo.
Ebenezer tinha-se limitado a tocar nas verrugas e elas tinham
desaparecido. Não fora um acaso — fora intencional. Não tinha sido
milagre, mas um poder consciente. Os milagres, por vezes, não
acontecem, e Ebenezer tinha a certeza.
Um poder retirado do quarto ao lado, um poder roubado aos
penantes que Ebenezer escutava.
Um poder de cura em que não intervinham nem medicamentos
nem a medicina, apenas um certo conhecimento, um conhecimento
muito especial.
Nos tempos mais remotos alguns homens tinham afirmado o poder
de fazer desaparecer as verrugas, poder que se comprava por alguns
centavos ou trocava por qualquer outra coisa, realizando uma
cerimônia mágica, e às vezes, e depois de um certo tempo, as
verrugas desapareciam.
Teriam estes estranhos homens escutado também os penantes?
A porta rangeu ligeiramente e Webster endireitou-se.
Uma voz veio da escuridão:
— Está bem, senhor? Deseja alguma coisa?
— Jenkins ? — perguntou Webster.
— Sim, senhor — respondeu Jenkins.
Uma forma escura atravessou a porta, suavemente.
— Sim — disse Webster. — Quero falar contigo.
Olhou a figura escura e metálica que estava ao lado da cama.
— Acerca dos cães — acrescentou Webster.
— Eles teimam tanto — disse Jenkins.—E difícil para eles, porque
não têm ninguém, absolutamente ninguém.
— Têm-te a ti.
Jenkins abanou a cabeça.
— Mas não basta, compreende? Eu sou apenas... diga-mos, uma
espécie de mentor. É dos homens que eles precisam. A necessidade
dos homens cresceu dentro deles. Há milhares de anos que o homem e
o cão são amigos. Caçaram e guardaram rebanhos, combateram
inimigos comuns. O homem dormia enquanto o cão vigiava e o
homem dava-lhe o último bocado de comida, mesmo que ficasse com
fome.
Webster anuiu.
— Sim, parece ter sido sempre assim.
— Falam dos homens todas as noites — disse Jenkins —, antes de
se deitarem. Fazem uns grupos e o mais velho deles conta uma
história das que têm passado de geração em geração. Os cães quedam
pensativos, esperançados.
— Mas que fazem eles? Que tentam fazer? Têm algum plano?
— Há um — disse Jenkins. — Uma ideia remota do que poderá vir
a suceder. Eles são psíquicos, sabe? Sempre o foram. Não têm o
sentido mecânico, o que se compreende. O homem interessa-se pelos
metais, os cães pelos fantasmas.
— Fantasmas?
— Os homens chamam-lhes assim; mas não o são, tenho a certeza.
São qualquer coisa que existe no quarto ao lado, uma outra forma de
vida num outro plano.
— Queres dizer que podem existir muitos planos de vida
coexistindo simultaneamente na Terra?
Jenkins confirmou.
— Começo a acreditá-lo, senhor. Tenho um caderno de
apontamentos cheio das coisas que os cães ouviram e viram, e agora,
no fim de tantos anos, começo a esboçar uma visão de conjunto.
Continuou apressadamente:
— Posso estar enganado, senhor, visto que não tenho preparação.
Não passava de um servo, senhor. Tentei dirigir as coisas, depois...
depois de Júpiter, mas foi-me difícil. Um outro autômato ajudou-me a
construir os primeiros automatozinhos para os cães, e agora esses
pequenos autômatos produzem outros iguais na oficina, quando são
necessários.
— Mas os cães limitam-se a escutar...
— Oh, não, senhor. Fazem muitas outras coisas. Tentam tornar-se
amigos dos animais e vigiam os autômatos selvagens e os mutantes.
— E esses autômatos selvagens? São muitos?
Jenkins anuiu.
— Muitos, senhor. Espalhados por todo o mundo em pequenos
agrupamentos. São os que foram abandonados, os que deixaram de ter
utilidade quando o homem partiu para Júpiter. Agruparam-se e
trabalham.
— Trabalham em quê?
— Não sei, senhor. Constroem máquinas. Gostaria de saber o que
fazem, as máquinas que constroem, o uso que lhes dão.
— Também eu — respondeu Webster.
Ficou com os olhos mergulhados na escuridão e pensou — pensou
em como os homens encerrados em Genebra haviam perdido o
contacto com o mundo; em como os homens ignoravam a tentativa
dos cães, dos agrupamentos dos autômatos selvagens, os castelos dos
odiados e temidos mutantes.
Perdemos o contacto, pensou Webster, fechamos o mundo do lado
de fora. Inventámos um ninho e juntamo-nos nele — a última cidade
do mundo. Não sabíamos o que acontecia fora da cidade, não
podíamos saber. Poderíamos ter sabido, mas não nos importamos.
É a altura de tomarmos o comando de novo.
Estávamos perdidos e desorientados, e inicialmente tentamos, para
desistir depois.
Pela primeira vez, os poucos que tinham ficado compreenderam a
grandeza da raça, viram o poderoso trabalho que a mão do homem
tinha realizado. Tentaram continuá-la, mas não puderam. E
racionalizaram — como o homem racionaliza quase tudo.
Enganaram-se a si próprios dizendo que não havia fantasmas e
designando as coisas que fazem ruídos noturnos pelo primeiro nome
que lhes veio à cabeça.
Não pudemos continuá-los, e por isso racionalizámos, refugiando-
nos num mar de palavras, acuados pelo juwanismo. Quase voltamos à
adoração dos antepassados. Procuramos glorificar a raça humana. Não
pudemos continuar o trabalho anterior, e então tentamos glorificá-lo,
coroando os que o tinham feito, da mesma forma que tentamos
glorificar e coroar as coisas boas que morrem.
Transformamo-nos numa raça de historiadores, remexemos com
dedos ansiosos as ruínas da raça, apertamos contra o peito cada
pequenino facto irrelevante como fartamos a uma pedra preciosa. Esta
foi a primeira fase. O passatempo que nos ocupou quando
descobrimos o que realmente éramos — as últimas gotas na taça vazia
da humanidade.
Mas vencemos isso. Oh, sim, vencemos isso. O homem é um ser
adaptável, sobrevive a tudo. Não podíamos construir grandes naves
espaciais, não podíamos alcançar as estrelas, não podíamos desvendar
os segredos da vida. E então? Éramos os beneficiários de uma
herança. Estávamos melhor do que qualquer raça. Uma vez mais
racionalizamos e esquecemos a glória da raça, pois, embora fosse uma
coisa brilhante, era um conceito inútil e humilhante.
— Jenkins — disse Webster sombriamente—, perdemos dez
séculos.
— Perderam não — corrigiu Jenkins. — Descansaram, talvez. Mas
é possível que possam agora voltar para nós.
— Vocês querem-nos?
— Os cães precisam de vós — respondeu Jenkins. — E os
autômatos também, porque ambos foram servos do homem. Sem vós
estão perdidos. Os cães estão a construir uma civilização, mas muito
vagarosamente.
— Talvez seja uma civilização melhor do que a construída por nós
— disse Webster. — Talvez consigam vencer. Nós não o
conseguimos, Jenkins.
— Será uma civilização melhor — admitiu Jenkins—, mas pouco
prática. Uma civilização baseada na fraternidade dos animais, na
compreensão psíquica e talvez numa eventual comunicação entre
mundos inter-relacionados. Uma civilização de pensamento e
compreensão, mas pouco construtiva. Não tem finalidade, desconhece
a mecânica, não passa da procura da verdade numa direção que o
homem desprezou.
— E pensas que o homem os podia ajudar?
— O homem podia tomar o comando — disse Jenkins.
— Um comando adequado?
— É difícil responder.
Webster limpou as mãos suadas ao cobertor que lhe cobria o corpo.
— Diz-me a verdade — pediu ele com voz amarga. — Dizes que o
homem podia tomar o comando. Mas também é verdade que ele podia
tentar dominar. Podia desprezar o trabalho dos cães por o julgar pouco
prático. Podia apoderar-se dos autômatos e utilizar a sua aptidão
mecânica de acordo com antigos padrões. Tanto o cão como os
autômatos se curvariam perante o homem.
— Evidentemente — disse Jenkins —, porque já foram servos.
Mas o homem é inteligente.
— Obrigado, Jenkins — disse Webster. — Muito obrigado.
Olhou para a escuridão, como se a verdade ali estivesse escrita.
***
Ainda lá se mantinham as suas pegadas e o odor acre da poeira
pairava na atmosfera. Uma lâmpada de rádio brilhava sobre o vão da
janela e o interruptor, o volante e os mostradores aguardavam o dia
em que seriam inúteis.
Webster ficou à porta, sentindo a humidade da pedra vir até ele
através da poeira.
Defesa, pensou, fixando os olhos no mostrador. Defesa — um
aviso para afastar as pessoas, um artificio para isolar um local contra
todas as armas reais ou imaginárias que um hipotético exército
pudesse trazer.
E, sem dúvida, a mesma defesa que afastasse os inimigos prenderia
os defendidos. Não necessariamente, mas...
Atravessou a sala e parou defronte do interruptor. Agarrou-o e
moveu-o vagarosamente, tendo a certeza de que ia funcionar.
Moveu mais rapidamente o braço. Lá do fundo subiu um silvo
baixo e suave de máquinas que começam a funcionar. As agulhas do
mostrador oscilaram.
As mãos hesitantes de Webster pegaram no volante, movendo-o.
As agulhas estremeceram de novo e avançaram no mostrador. Com
mão firme, Webster fez guiar o mostrador e as agulhas bateram na
outra extremidade.
Virou-se rapidamente, saiu do quarto, fechando aporta atrás de si, e
subiu os degraus carcomidos.
Se ao menos desse resultado!..., pensou. Se ao menos desse
resultado!...
Apressou o passo e o sangue subiu-lhe à cabeça.
Se ao menos desse resultado!
Recordou o silvo das máquinas quando ligara o motor. Isso
significava que o mecanismo de defesa funcionava — pelo menos
parte dele.
Mas, mesmo funcionando, daria resultado? Que aconteceria se
afastasse os inimigos sem conseguir prender os defendidos? Que
aconteceria se...
Quando chegou à rua viu que o céu tinha mudado. Nuvens
cinzentas tinham escondido o céu e a cidade estava mergulhada num
crepúsculo que os candeeiros automáticos aliviavam. Uma brisa leve
acariciou-lhe a face.
Na lareira ainda estavam as cinzas dos apontamentos e do mapa
queimados. Webster atravessou a sala, pegou no atiçador e esmagou
as cinzas, raivosamente, até que o último vestígio desapareceu.
Acabou-se, pensou. Desapareceu a última, pista. Sem o mapa, sem
conhecer a cidade como aprendi a conhecê-la em vinte anos de
estudo, ninguém descobrirá aquele quarto, escondido com o
interruptor, o volante e os mostradores.
Ninguém saberá o que aconteceu. E mesmo que alguém
desconfiasse, não poderia ter a certeza. E mesmo que pudesse ter a
certeza, nada, modificaria. Há mil anos teria sido diferente. Nessa
altura, e servindo-se da mais ligeira pista, o homem, teria resolvido
qualquer problema.
Mas o homem, tinha mudado. Tinha perdido a antiga sabedoria e as
antigas possibilidades. O seu pensamento tornara-se flácido. Vivia o
dia a dia sem nenhuma finalidade. Conservara os antigos vícios que,
segundo o seu ponto de vista, eram virtudes altas. Conservava
ferozmente a crença de que era a única espécie, a única vida com
interesse — o egoísmo atroz que fez dele o senhor Auto eleito de toda
a criação.
Ouviram-se passos apressados na rua e Webster afastou-se da
lareira para espreitar pelas janelas altas e estreitas.
Consegui despertá-los, pensou. Correm excitados, tentam saber o
que se passa. Há séculos que não saem da cidade, e agora, que não
podem fazê-lo, é que têm desejos de o fazer.
Sorriu abertamente.
Sacudi-os tanto que talvez façam alguma coisa. Os ratos, quando
assustados, fazem coisas incríveis e às vezes endoidecem.
E, se conseguirem sair, estão no seu direito. Se conseguirem sair,
ganham o direito de voltar.
Atravessou a sala e parou por um momento à porta, com os olhos
fixos no quadro que estava sobre a lareira. Desajeitadamente acenou
com a mão num adeus triste, uma saudação desesperada. Dirigiu-se
depois para a porta da rua e subiu a colina — o caminho seguido por
Sara poucos dias antes.
Os autômatos do Templo eram amáveis, respeitosos e dignos.
Conduziram-no ao local onde estava Sara e mostraram-lhe o
compartimento que ela lhe tinha reservado.
— Certamente deseja escolher um sonho — disse o chefe dos
autômatos. — Temos muitas amostras e podemos adaptá-las aos seus
gostos. Podemos...
— Obrigado — disse Webster —, mas não quero sonhar. O
autômato concordou, compreensivo.
— Percebo, senhor. Quer apenas esperar, passar o tempo.
— Sim — disse Webster. — É isso, pouco mais ou menos.
— Durante quanto tempo?
— Quanto tempo?
— Sim, quanto tempo deseja esperar ?
— Ah, já entendo! — disse Webster. — Que tal para sempre?
— Para sempre?
— Para sempre é uma maneira de dizer — explicou Webster. —
Podia ter dito até à eternidade, mas a diferença é pequena. Não vale a
pena discutir com duas palavras que nos dizem mais ou menos a
mesma coisa.
— Sim, senhor — disse o autômato.
Não valia a pena discutir, era evidente, porque não queria correr
risco algum. Podia ter dito dez mil anos, e então talvez cedesse e
descesse a colina para desligar o comutador.
Era preciso que isso não acontecesse. Os cães precisavam ter uma
oportunidade. Precisavam que os deixassem tentar o êxito onde o
homem falhara. Enquanto houvesse um elemento humano essa
oportunidade não lhes chegaria. O homem tomaria o comando para
pisar e destruir tudo; rir-se-ia dos penantes que falavam do outro lado
da parede, opor-se-ia à domesticação e civilização de todos os seres
selvagens da Terra.
Um novo padrão — uma nova maneira de pensar e de agir, uma
nova solução para os velhos problemas sociais, que precisava ser
tentada sem a influência do homem.
À noite os cães sentar-se-iam em grupo, depois de terminado o
trabalho, e falariam do homem. Contaríamos velhos, muito velhos
contos, desfiariam a velha, muito velha história, e o homem seria um
deus.
Era melhor assim.
Porque um deus não pode errar.
NOTAS SOBRE O SÉTIMO
CONTO

Há alguns anos atrás foi encontrado um fragmento literário muito


antigo. Embora parecesse fazer parte de uma extensa obra e o
fragmento fosse muito pequeno, os poucos contos que continha
bastavam para indicar tratar-se de um grupo de fábulas a respeito de
uma fraternidade animal. Os contos são arcaicos e os pontos de vista,
assim como a maneira de narrar, parecem-nos estranhos. Um grande
número de acadêmicos que estudou os fragmentos concorda com Tige
no que respeita à sua origem não canina.
O seu título é Esopo. O título deste conto é também “Esopo”, e o
título permanece intacto desde a mais remota antiguidade.
Que significa isso?, perguntam os acadêmicos. Naturalmente Tige
crê estar em presença de mais uma confirmação da sua teoria da
origem humana da presente lenda. A maior parte dos outros
estudiosos não está de acordo, mas até à data não deram nenhuma
outra explicação.
Tige afirma ainda que este sétimo conto certifica que a falta de um
indício histórico acerca da existência do homem é prova de ele ter
sido deliberadamente esquecido e de a sua memória ter sido varrida
para assegurar a continuação da cultura canina na sua forma mais
pura.
Neste conto os cães esqueceram o homem. Nos poucos membros
da raça humana não reconhecem eles o homem e dão a esses
estranhos seres o nome da velha família Webster. A palavra “webster”
tornou-se um nome comum, em vez de um nome próprio. Os cães
chamam a todos os homens “webster” e só Jenkins os trata
conservando o W maiúsculo.
— O que são homens? — pergunta Impus a Bruin, que o não
consegue explicar, ainda que o tente.
Jenkins diz no conto que os cães nada devem saber acerca do
homem. Descreve para nós, no decorrer da história, os passos que deu
para fazer desaparecer a recordação do homem.
— Desapareceram os velhos contos à lareira — diz Jenkins. Tige
vê nesta frase uma deliberada conspiração de esquecimento, para
salvar a dignidade canina, uma conspiração talvez bem menos
altruísta do que Jenkins quer dar a entender. — Os contos acabaram—
diz Jenkins — e não devem voltar. — Mas, aparentemente, não
acabaram. Num recanto perdido do mundo eles continuaram a ser
contados, e por isso os conhecemos hoje.
Mas, embora os contos persistissem, o homem desapareceu, ou
quase. Os autômatos selvagens ainda existiam, mas, esses mesmos, se
não passaram de pura imaginação, desapareceram hoje também. Os
mutantes desapareceram e são uma parte do homem. Se o homem
existiu, os mutantes existiram também, muito provavelmente.
Toda a controvérsia gerada pela lenda pode ser resumida numa
mesma pergunta: existiu de facto o homem? Se ao ler estes contos o
leitor se encontrar indeciso, está em boa companhia. Os próprios
peritos e acadêmicos, que passaram a vida a estudar a lenda, podem
possuir mais dados, mas estão tão perturbados como o leitor.
VII - ESOPO

A sombra cinzenta arrastou-se sobre o penhasco em direção à


caverna, lamentando o insucesso e o seu amargo
desapontamento, porque as Palavras tinham falhado. A luz do Sol, que
começava a descer no horizonte, mostrou um rosto, uma cabeça e um
corpo indistintos e negros, como a neblina matutina ao levantar-se.
De súbito a rocha cortou-se a pique e a sombra parou, confundida,
agarrada à parede rochosa — a caverna não estava lá! A parede
desaparecia antes de chegar caverna!
Girou como um pião e olhou para trás, para o vale. O rio estava
deslocado, corria mais próximo do escarpado que anteriormente.
Havia um ninho de andorinha na parede rochosa, onde nunca houvera
ninhos de andorinha.
A sombra permaneceu rígida e os tentáculos que tinha acima das
orelhas ergueram-se e procuraram no ar.
Havia vida! O seu cheiro sentia-se vagamente no ar, vibrava sobre
os cumes das colinas.
A sombra estremeceu e avançou vagarosamente ao longo do recife.
Não havia caverna, o rio era diferente e um ninho de andorinha
prendia-se ao recife.
A sombra estremeceu mentalmente.
As Palavras haviam sido verdadeiras. Não tinham falhado. Era um
mundo diferente.
Um mundo diferente, em muitos aspectos. Um mundo tão cheio de
vida que se sentia no ar. Uma vida que talvez não pudesse caminhar
tão depressa ou esconder-se tão bem.
***
O lobo e o urso encontraram-se sob o grande carvalho e pararam
para passar um bocado de tempo.
— Ouvi dizer que tem havido mortes — disse Lupus.
Bruin resmungou.
— Mortes estranhas, irmão. Matam mas não comem.
— Mortes simbólicas — comentou o lobo.
Bruin abanou a cabeça.
— Não me vais convencer de que existem mortes simbólicas. Esta
nova psicologia que os cães nos estão a ensinar vai demasiado longe.
Quando se mata, ou é por fome ou é por ódio. A mim não me
apanham a matar nada que não seja para comer. — Apressou-se a
corrigir: — Não que eu tenha morto alguma coisa, irmão, tu sabes
bem.
— Claro que não — disse o lobo.
Bruin fechou preguiçosamente os olhos pequeninos, abriu-os e
piscou-os.
— Não quer dizer que eu, de longe em longe, não volte uma rocha
e não coma uma ou duas formigas.
— Acho que os cães não consideram isso matar — disse Lupus
gravemente. — Os insetos são um bocadinho diferentes dos animais e
das aves. Nunca nos disseram que não podíamos matar insetos.
— Estás enganado — replicou Bruin. — Os cânones dizem
claramente: Não deves destruir vidas, não deves tirar a vida de
outrem.
— Tens razão — admitiu, condescendente, o lobo.— Mas mesmo
os cães não se importam muito com os insetos. Imagina: andam
sempre a procurar um pó melhor para as pulgas. E com que fim?,
pergunto eu. Para matar as pulgas, naturalmente. E as pulgas são vida,
são seres vivos.
Bruin atirou maldosamente a língua a uma pequena mosca verde
que lhe pousara no nariz.
— Vou à estação de alimentação — disse o lobo.— Queres vir daí?
— Não tenho fome — respondeu o urso. — E, além disso, ainda é
cedo, ainda não são horas de comer.
Lupus lambeu o focinho.
— As vezes vou até lá, como se fosse por acaso, e o webster que
dirige a estação dá-me qualquer coisa extra.
— Tem cautela — disse Bruin. — Ele não dá ponto sem nó; tem
alguma fisgada. Não confio nos websters.
— Este é um tipo decente — declarou o lobo. — Dirige a estação
sem ser obrigado. Qualquer autômato o podia fazer. Foi ele que pediu
o emprego. Cansou-se de não fazer nada a não ser a brincar. Senta-se,
ri e fala, como se fosse um de nós. E um bom tipo.
O urso pigarreou.
— Um dos cães contou-me que Jenkins lhe disse que o nome deles
não é websters, que não são websters, mas sim homens...
— O que são homens ? — perguntou Lupus.
— Oh, só estava a contar-te o que Jenkins disse.
— Jenkins está tão velho que já não sabe o que diz — declarou
Lupus. — Tem mais de mil anos.
— Sete mil anos — disse o urso. — Os cães querem fazer-lhe uma
grande festa de aniversário. Vão dar-lhe um corpo novo de presente.
O que usa está todo gasto; vai à oficina de reparações quase todos os
meses.
O urso abanou a cabeça com ar selvagem.
— Diga-se o que se disser, Lupus, a verdade é que os cães fizeram
muito por nós. Construíram as estações de alimentação, espalharam
autômatos médicos e tudo o mais. Imagina que ainda o ano passado
tive uma horrível dor de dentes...
O lobo interrompeu:
— Mas as estações de alimentação podiam ser melhores. Garantem
que a levedura vale tanto como a carne, que tem o mesmo valor
nutritivo, etc. A verdade é que não tem o mesmo sabor da carne...
— Como é que sabes? — perguntou Bruin.
O lobo hesitou um segundo.
— Oh, o... o meu avô dizia-me. Era um bom maganão, o meu avô.
Uma vez por outra metia-se na carniça. Falou-me do sabor da carne
crua. Nesse tempo não havia tantos guardas como agora.
Bruin fechou os olhos e voltou a abri-los.
— Gostava de saber qual é o sabor do peixe — disse. — Há uma
data de trutas na angra do Pinheiro. Tenho-as observado. Basta
estender a pata para as apanhar. — Acrescentou rapidamente: —
Claro, nunca tentei.
— Claro que não — disse o lobo.
***
Um mundo após outro, como uma corrente. Um mundo que seguia
nos calcanhares do outro. Hoje um mundo, amanhã outro. Ontem é
amanhã e amanhã é o passado. Mas não havia passado. Não havia
outro passado além de uma leve recordação que flutuava como um
objeto com asas de noite na sombra dos pensamentos. Não havia um
passado que pudesse tocar-se. Não havia quadros pintados na parede
do tempo. Não havia filmes que pudessem correr-se ao contrário para
saber o que uma vez tinha sido.
Joshua levantou-se e sacudiu-se. Sentou-se e coçou uma pulga.
Ichabod estava rigidamente sentado à mesa, batendo nela com os seus
dedos metálicos.
— Confere — disse o autômato. — Nada podemos fazer. Os
fatores estão certos. Não podemos viajar no passado.
— Não — disse Joshua.
— Mas nós sabemos onde estão os penantes — acrescentou
Ichabod.
— Sim — concordou Joshua —, sabemos onde estão os penantes.
Talvez possamos alcançá-los, porque sabemos o caminho a tomar.
Um caminho estava aberto, outro fechado. Não estava fechado,
evidentemente, porque nunca existira, porque não havia passado,
nunca houvera; não havia espaço para o passado. Onde devia haver o
passado havia um outro mundo.
Como dois cães a caminharem um atrás do outro — a pata de um
onde estivera a pata do outro. Como uma longa, interminável fila de
balas caminhando num sulco, quase a tocarem-se. Como elos de uma
cadeia sem-fim rolando numa roda com biliões de biliões de dentes.
— Estamos atrasados — disse Ichabod, olhando para o relógio. —
Já devíamos estar prontos para a festa de Jenkins.
Joshua sacudiu-se de novo.
— Tens razão. É um grande dia para Jenkins, Ichabod. Imagina
tu... sete mil anos.
— Eu estou pronto — disse Ichabod com orgulho. — Escovei-me
todo esta manhã, mas tu estás todo despenteado, todo desleixado.
— Sete mil anos — continuou Joshua. — Eu não gostava de viver
tanto tempo.
Sete mil anos e sete mil mundos seguindo as pisadas uns dos
outros. Mas era mais do que isso — um mundo por dia. Trezentos e
sessenta e cinco vezes sete mil. Ou talvez um mundo por minuto, ou
por segundo. Num segundo podiam caber um mundo, dois mundos.
Trezentos e sessenta e cinco vezes sete mil vezes vinte e quatro vezes
sessenta vezes sessenta...
Cada segundo era definitivo. Porque não havia passado, não era
possível voltar atrás, para verificar tudo o que Jenkins contava —
verdades e mentiras deturpadas por sete mil anos. Não era possível
voltar atrás para confirmar a lenda nebulosa de uma casa e de uma
família de websters e a existência de uma cúpula vazia, mas fechada,
sobre as montanhas muito depois do mar.
Ichabod avançou para ele com um pente e uma escova. Joshua
esquivou-se.
— Deixa-te de fitas, que não te magoo — disse Ichabod.
— Da última vez quase me deixaste sem pelo — disse Joshua. —
Anda lá com jeito.
***
O lobo entrara, esperando um petisco entre as refeições, mas
ninguém lhe deu nada, e ele era demasiado polido para pedir. Estava
agora sentado, o rabo entre as pernas, vendo Peter trabalhar com a
faca sobre o tronco suave.
Fatso, o esquilo, caiu, do ramo de uma árvore, sobre o ombro de
Peter.
— Que tens aí ? — perguntou.
— Um pau para atirar — disse Peter.
— Mas podes atirar qualquer pau — disse o lobo. — Não precisas
fazer um todo bonito, basta apanhares um qualquer.
— Mas este é diferente — disse Peter. — Uma coisa que pensei e
fiz, mas não sei o que é.
— Não tem nome ? — perguntou Fatso.
— Ainda não — disse Peter —, mas vou pensar nisso.
— Mas — insistiu o lobo — podes atirar qualquer pau.
— Não tão longe nem com tanta força — disse Peter. Girou a vara
entre os dedos, sentindo-lhe a macieza redonda, e levou-a aos olhos,
para verificar se estava direita.
— Não o atiro com o braço — explicou Peter. — Atiro-o com
outro pau e uma corda.
Apanhou o objeto que estava encostado à árvore.
— O que eu não percebo — disse Fatso — é para que queres tu
atirar o pau.
— Eu também não — respondeu Peter. — Faço-o porque é
divertido.
— Vocês, websters, são uns animais engraçados — disse o lobo
severamente. — Às vezes pergunto a mim mesmo se têm alguma
espécie de juízo.
— Acerta-se em tudo — continuou Peter — se o pau é direito e a
corda boa. Não serve qualquer pedaço de madeira. É preciso procurar
e procurar...
— Mostra lá — disse Fatso.
— Assim — disse Peter erguendo a vara de nogueira.— É dura,
sabes?, e flexível. Se a dobrares, endireita-se outra vez. Ato as duas
extremidades com uma corda, coloco assim o pau de atirar, com uma
extremidade encostada à corda, puxo...
— Disseste que podias acertar em tudo — disse o lobo.— Mostra
lá isso.
— Onde queres que acerte ? — perguntou Peter. — Escolhe.
Fatso apontou com excitação:
— Naquele pintarroxo que está pousado na árvore.
Peter levantou rapidamente os braços, a corda dobrou-se e o pau
curvou-se sobre o arco, zunindo no ar. O pintarroxo caiu do tronco
num fremir de penas. Tombou no chão com um som cavo e ficou
deitado de costas, pequenino, perdido, com as patitas apontando o
topo das árvores. Corria-lhe sangue pelo bico e sujava a folha em que
descansava a cabeça.
Fatso ficou rígido no ombro de Peter e o lobo pôs-se de pé. Desceu
uma calma onde nem as folhas ondulavam, uma calma com nuvens
flutuando no céu azul.
A voz de Fatso estalou, horrorizada:
— Mataste-o! Está morto! Mataste-o!
Peter protestou, cheio de medo:
— Eu não sabia. Nunca tinha atirado a um ser vivo. Experimentava
em alvos...
— Mas mataste-o, e nunca deves matar.
— Bem sei — disse Peter. — Sei que nunca se deve matar. Tu
disseste-me para lhe acertar, foste tu que o apontaste. Tu...
— Não te disse para o matares — gritou Fatso. — Julguei que lhe
ias apenas tocar, que o ias amedrontar. Era tão gordo e assustadiço...
— Eu disse-te que o pau ia com força.
Ia longe e com força, pensou. Longe, com força e velozmente.
O webster estava pregado ao chão.
— Calma, amigo — disse a voz macia do lobo. — Sabemos que
não querias matá-lo. Fica entre nós os três. Não o diremos a ninguém.
Fatso saltou do ombro de Peter e foi já de um ramo que lhe gritou:
— Eu vou dizer — esganiçou—, vou dizer a Jenkins.
O lobo rosnou para ele, com os olhos incendiados de cólera.
— Seu miserável traidor! Maldito traidor!
— Vou dizer — berrou Fatso. — Esperem e verão. Vou dizer a
Jenkins.
Subiu mais, correu pelo ramo e saltou para outra arvore.
O lobo teve um movimento rápido.
— Espera — disse Peter rudemente.
— Não pode andar sempre em cima das árvores — disse o lobo
rapidamente. — Terá de descer para atravessar o pátio. Não te
preocupes.
— Não — disse Peter. — Não quero mais mortes. Uma basta.
— Ele vai dizer, bem o sabes.
Peter anuiu.
— Sim, tenho a certeza de que o dirá.
— Eu podia impedi-lo.
— Alguém te veria e iria contar — disse Peter. — Não, Lupus, não
te deixo fazer isso.
— Então é melhor dares o fora — aconselhou Lupus.— Sei de um
lugar onde te podes esconder. Nem daqui a mil anos te encontram.
— Era escusado. — disse Peter. — Há olhos que espreitam na
floresta, muitos olhos que diriam onde me tinha refugiado. Hoje é
impossível alguém esconder-se.
— Tens razão — disse o lobo vagarosamente. — Sim, tens razão.
Voltou-se e olhou para o pintarroxo caído.
— E se fizéssemos desaparecer as provas? — perguntou.
— As provas...
— Pois claro...
O lobo avançou rapidamente e baixou a cabeça. Ouviu-se mastigar
ruidosamente. Lupus lambeu os beiços e sentou-se, com a cauda
enrolada nos pés.
— Podíamos ir longe — disse. — Não há dúvida, tenho a
impressão de que podíamos ir longe. Somos tão parecidos.
Uma pena tombou e roçou-lhe pelo nariz.
***
O corpo era um mimo.
Não se amolgava, nem se enferrujava. E tinha mil e um apetrechos.
Era o presente de anos de Jenkins. Uma placa gravada no peito
dizia:
PARA JENKINS — DOS CÃES
“Nunca o usarei”, disse Jenkins consigo. “É demasiado bonito para
mim, excessivamente bonito para um autômato velho como eu.
Sentia-me deslocado numa coisa daquelas.”
E aloucou-se vagarosamente na cadeira de balanço, escutando o
vento que assobiava nos beirais.
“A intenção era boa, e não quero magoá-los por nada deste mundo.
Terei de o usar uma vez ou outra, por causa das aparências, só para
agradar aos cães. Nem me ficava bem não o usar, depois de tanto
trabalho que tiveram para mo oferecer. Mas todos os dias não; só nos
grandes dias.
Talvez no dia do piquenique Webster. Nesse dia quero aparecer em
forma. É um grande dia. Nessa altura todos os Websters do mundo,
todos os Websters vivos, se juntam e querem que eu vá também,
porque eu sou um autômato Webster. Sim, senhor, sempre o fui e
continuarei a sê-lo.”
A cabeça pendeu-lhe e mastigou palavras que eram um murmúrio
na sala. Palavras que ele e a sala recordavam. Palavras de há muito
tempo.
A cadeira rangeu e misturou-se com a sala manchada de tempo,
com o vento nos beirais e com o murmurada chaminé.
“Lume — pensou Jenkins. — Há muito tempo que não temos
lume. Eles gostavam de se sentar junto do fogo, ficar a olhar para ele
e construir figuras nas chamas. E sonhos...
— Mas os sonhos dos homens — disse Jenkins, falando consigo —
os sonhos dos homens desapareceram. Foram para Júpiter, estão
enterrados em Genebra e surgem vagamente nos Websters de hoje.
“O passado — disse ele. — O passado está demasiadamente em
mim e tornou-se inútil. Tenho tantas recordações, tantas, que se
tornam mais importantes do que as coisas que tenho para fazer. Vivo
no passado, e isso não é viver.
Joshua diz que não há passado, e Joshua sabe o que diz. De todos
os cães, é o que mais sabe, porque tentou descobrir um passado em
que pudesse viajar, viajar para trás no tempo e verificar o que lhe
tenho contado. Pensa que já não regulo bem, que giro à volta dos
velhos contos de autômatos, meio verdade, meio fantasia, retocados
para serem contados.
Não admite isso por nada deste mundo, mas é o que o patife pensa.
Não sabe que eu sei.
Não me engana — disse Jenkins, rindo-se consigo —, nenhum
deles me engana. Ajudei Bruce Webster a descobrir o primeiro deles,
ouvi a primeira palavra que pronunciaram. E se eles esqueceram, eu
não — nem um gesto, nem um olhar.
É natural que eles esqueçam. Deixei que o fizessem, interferindo
pouco, na melhor das intenções. Jon Webster disse-me que assim
deveria ser, numa noite de há muito tempo. Foi por isso que Jon
Webster fechou a cidade de Genebra. Porque foi Jon Webster quem a
fechou; tinha de ser ele, não podia ter sido mais ninguém.
Enclausurou os homens para deixar a Terra livre aos cães. Mas
esqueceu-se de uma coisa. Oh, sim — disse Jenkins —, esqueceu-se
de uma coisa. Esqueceu-se do filho e do seu grupo de maníacos do
arco e da flecha que nesse dia tinham saído para brincar aos homens
das cavernas — e também às mulheres das cavernas.
Brincavam ao que acabou por se tornar uma amarga realidade —
pensou Jenkins. — Uma realidade de quase mil anos, até que os
encontramos e os trouxemos de novo para casa, para a Casa Webster,
onde tudo começara.”
Jenkins dobrou as mãos no regaço, curvou a cabeça e balouçou-se.
A cadeira de balanço rangeu, o vento atirou-se contra os beirais, as
janelas trepidaram. A lareira falava de outros tempos e de outras
gentes, de outros ventos que sopravam de leste.
“O passado — pensou Jenkins. — Uma coisa sem fim, uma coisa
estúpida quando há tanto que fazer, tantos problemas que os cães têm
de enfrentar.
A superpopulação, por exemplo. Já conversara demasiado sobre
isso. Há demasiados coelhos porque as raposas e os cães não os
matam. Há demasiados veados porque os leões das montanhas e os
lobos não os comem. Demasiados texugos, demasiados ratos,
demasiados porcos-espinhos, demasiados ursos.
Ao proibir-se a liberdade de matar, fica-se com vidas a mais.
Dominam-se as doenças, tratam-se as epidemias com os autômatos
médicos de deslocação rápida e outro passo está dado.
Os homens pensaram nisso — disse Jenkins. — Sim, os homens
tinham pensado nisso. Os homens matavam tudo o que lhes impedia o
caminho, tanto homens como animais.
Os homens nunca pensaram numa enorme sociedade animal, nunca
sonharam que o texugo, o racoon e o urso pudessem caminhar juntos,
resolver problemas em conjunto, ajudarem-se uns aos outros, pôr de
lado todas as diferenças.
Mas os cães pensaram nisso e fizeram-no.
Como a história do Coelho Espertalhão — pensou Jenkins. —
Como a fantasia infantil de eras passadas. Como a história do Bom
Livro sobre o leão e o cordeiro que se deitavam um ao lado do outro.
Como um desenho animado de Walt Disney, com a diferença de que o
desenho animado nunca possuíra veracidade, porque se baseava na
filosofia humana.”
A porta abriu-se com um estalido e ouviram-se pés no soalho.
Jenkins voltou-se na cadeira.
— Olá, Joshua!— disse. — Olá, Ichabod! Não querem entrar?
Tenho estado a pensar.
— Passamos por aqui — disse Joshua — e vimos uma luz.
— Estava a pensar nas luzes — disse Jenkins abanando a cabeça
sombriamente. — Estava a pensar numa noite de há cinco mil anos.
Jon Webster tinha vindo de Genebra — o primeiro homem que aqui
aparecia depois de centenas de anos. Estava lá em cima na cama,
todos os cães dormiam e eu tinha ficado à janela a olhar para além do
rio. Não havia luzes. Nem uma única sequer. Como um manto de
escuridão. Fiquei ali a recordar o tempo em que havia luzes e se
algum dia voltaria a havê-las.
— Há-as agora — disse Joshua com voz suave. — Hoje há luzes
em todo o mundo, até na cavernas.
— Sim, bem sei — respondeu Jenkins.— E até melhor que dantes.
Ichabod atravessou a sala até ao canto onde estava o novo corpo do
autômato, estendeu a mão e roçou-a pelo metal, quase com ternura.
— Os cães foram muito simpáticos — disse Jenkins — dando-me
esse corpo. Mas não deviam tê-lo feito. Com um ou dois remendos o
velho ainda serve.
— É porque gostamos de ti — disse Joshua. — Era o menos que
podíamos fazer. Tentamos outras coisas, mas nunca nos deixaste.
Quisemos construir-te uma nova casa, novinha em folha, com todos
os inventos recentes.
Jenkins abanou a cabeça.
— Não valia a pena, porque era incapaz de lá viver. Sabes, esta é a
minha casa, sempre foi. Serei feliz se continuar como estou.
— Mas estás só.
— Não estou, não — replicou Jenkins. — A casa está cheia de
gente.
— Cheia? — perguntou Joshua.
— Cheia de pessoas que conheci — disse Jenkins.
—Ena — disse Ichabod—, que corpo! Gostaria de o experimentar.
— Ichabod! — gritou Joshua. — Vem cá. Tira as mãos desse...
— Deixa o garoto em paz — disse Jenkins. — Se ele cá vier uma
vez por outra, quando eu não tiver que fazer...
— Não — disse Joshua.
Um ramo raspou no beiral e bateu com dedos leves na vidraça. O
vento caminhou pelo telhado, dançando.
— Estou satisfeito por teres vindo — disse Jenkins.— Sete mil
anos é muito mais do que eu poderia esperar durar.
— Com o novo corpo — disse Joshua — poderás durar três vezes
sete mil.
Jenkins abanou a cabeça.
— Não é no corpo que estou a pensar. É no cérebro. É mecânico,
sabem? Foi bem construído, para durar muito tempo, mas não
eternamente. Há de chegar a altura em que qualquer coisa se avaria e
o cérebro deixa de funcionar.
A cadeira rangeu no quarto silencioso.
— Isso significa morte — disse Jenkins. — Será o meu fim. E
assim é que deve ser. porque já não presto. Já levei o tempo em que
eu era útil.
— Precisaremos sempre de ti — disse Joshua suavemente. — Não
podíamos continuar sem ti.
Mas Jenkins continuou, como se o não tivesse ouvido:
— Quero falar-te dos Websters. Quero falar-te deles. Quero que
compreendas.
— Tentarei compreender — disse Joshua.
— Vocês, cães, chamam-lhes websters, e está certo — disse
Jenkins. — Não importa o que lhes chamam, desde que saibam o que
eles são.
— Às vezes — disse Joshua — chamas-lhes homens e outras
websters. Não compreendo.
— Eram homens — disse Jenkins — e governaram o mundo. Entre
eles havia uma família que se chamava Webster. E foi ela que fez tudo
isto por vós.
— O quê ?
Jenkins voltou-se na cadeira e ficou quieto.
— Tenho má memória — resmungou. — Esqueço-me com
facilidade. E confundo-me.
— Falavas de qualquer coisa que os websters fizeram por nós.
— Ah, sim — recomeçou Jenkins. — Pois era. Precisam vigiá-los.
Cuidem deles e vigiem-nos. Principalmente tu.
Balouçou-se e os pensamentos correram-lhe o cérebro,
pensamentos ritmados pelo balancear da cadeira.
“Quase o fizeste”, disse para si. “Quase estragaste o sonho. Mas
lembrei-me a tempo. Sim, Jon Webster, reparei a tempo. Continuo a
ter fé, Jon Webster.
Não disse a Joshua que houve um tempo em que os cães eram
mascotes dos homens, que foram os homens que os ergueram até
onde hoje estão. É preciso que nunca o saibam. É preciso que
mantenham a cabeça erguida para poderem continuar o trabalho. Os
velhos contos à lareira desapareceram, e é preciso que assim se
mantenham.
Embora gostasse de lhes dizer — só Deus sabe como gostaria de
lhes dizer, avisá-los contra o que pode ameaçá-los. Dizer-lhes como
arrancamos as velhas ideias trazidas da Europa pelos homens das
cavernas, como os fizemos desaprender as coisas que sabiam. Como
deixamos os seus pensamentos vazios de armas, como lhes ensinamos
o amor e a paz.
E como devemos precaver-nos contra o dia em que trilharemos
novos caminhos da velha maneira humana de pensar.”
— Mas tu disseste...— insistiu Joshua.
Jenkins acenou com a mão.
— Não é nada, Joshua. Uma ideia parva de um velho autômato. Há
alturas em que o meu cérebro se confunde e digo coisas que não
quero dizer. Penso muito no passado — e tu dizes que não há passado.
Ichabod acocorou-se no chão e olhou para Jenkins.
— Claro que não há — disse ele. — Verificámos tudo, está tudo
certo. Todos os fatores estão de acordo. Não há passado.
— Não há espaço — disse Joshua. — Se viajarmos para trás ao
longo da linha do tempo, não encontramos passado, mas sim outro
mundo, outro plano de consciência. A Terra seria a mesma,
compreendes, ou quase a mesma. As mesmas árvores, os mesmos
rios, as mesmas colinas, mas um mundo diferente daquele que
conhecemos. Porque viveu uma vida diferente, desenvolveu-se de
maneira diferente. O segundo no passado de cada um de nós é
diferente do segundo de todos, é um sector de tempo totalmente
diferente. Vivemos eternamente no mesmo segundo de tempo.
Movemo-nos de acordo com o plano desse segundo, esse ínfimo
pedaço de tempo que foi fixado no nosso mundo particular.
— Está errada a maneira como marcamos o tempo — disse
Ichabod. — Isso é que nos impediu de pensar de maneira correta.
Sempre pensamos que passávamos através do tempo, e isso não é
verdade, nunca o foi. Limitávamo-nos a mover-nos ao longo dele.
Dizíamos: “passou um segundo, haverá outro minuto, outra hora,
outro dia”, quando, de facto, o segundo, o minuto, a hora, não tinham
passado. Foi sempre o mesmo minuto. Apenas se tinha deslocado, e
nós com ele.
Jenkins anuiu.
— Compreendo. Como a corrente de um rio. Como as madeiras
que o rio arrasta. A cena modifica-se ao longo das margens do rio,
mas a água é a mesma.
— É isso, pouco mais ou menos disse Joshua. — Com a diferença
de que o tempo é uma corrente rígida e os mundos diferentes são mais
firmes do que as madeiras que o rio arrasta.
— E os penantes vivem nesses mundos?
— Tenho a certeza — asseverou Joshua.
— E agora — disse Jenkins — estás a tentar descobrir a maneira
de viajar até eles.
Joshua catou uma pulga, suavemente.
— Isso mesmo — disse. — Precisamos de espaço.
— Mas os penantes...
— Pode ser que não estejam em todos os mundos — disse Joshua.
— Pode ser que haja mundos vazios. E senão encontrarmos espaços, a
superpolução trará uma onda de crimes. E uma onda de crimes vai
obrigar-nos a voltar ao princípio.
— Já houve crimes — disse Jenkins calmamente.
Joshua franziu os sobrolhos e deixou cair as orelhas.
— Crimes estranhos. Matam mas não comem. Não se derrama
sangue, como se tivessem morrido naturalmente. Os nossos técnicos
médicos andam doidos com essas mortes. Nenhum sintoma, nenhuma
razão para terem morrido.
— Mas morreram — disse Ichabod.
Joshua aproximou-se e falou em voz baixa:
— Tenho medo, Jenkins. Tenho medo que...
— Não tens razão para ter medo.
— Mas tenho. Angus disse-me que receia que um dos penantes...
que um dos penantes tenha passado para o nosso mundo.
Uma rajada de vento penetrou pela chaminé e cabriolou sobre os
beirais. Outra rajada bramiu num canto escuro. O medo desceu e
caminhou pelo telhado com passadas sonoras e mortíferas. Para cima
e para baixo, sobre as telhas.
Jenkins estremeceu e ficou rígido, tentando evitar outro arrepio.
Quando falou, a voz era rouca.
— Ninguém viu o penante.
— Pode ser que seja impossível vê-los.
— Sim — concordou Jenkins. — Pode ser que seja impossível.
Fora o que o homem dissera. Era impossível ver um fantasma ou
uma alma do outro mundo — mas sentia-se a sua presença; a torneira
de água continuava a pingar depois de a termos fechado bem, havia
dedos a arranhar as vidraças, os cães uivavam para a noite e não havia
pegadas na neve.
Joshua pôs-se a pé e quedou-se rígido como a estátua de um cão,
com uma pata levantada, os lábios arreganhados como quem vai
rosnar. Ichabod encolheu-se com os dedos fincados no soalho —
escutando, esperando.
Ouviu-se de novo o arranhar.
Ichabod moveu-se no meio do silêncio que enchia toda a sala. A
porta rangeu ao abrir-se e um esquilo entrou de roldão, saltou na
direção de Jenkins e aterrou-lhe no colo.
— Oh, és tu, Fatso! — disse Jenkins.
Joshua voltou a sentar-se, desenrugou os lábios e escondeu os
caninos. Ichabod mostrou um estúpido sorriso metálico.
— Eu vi-o — gritou Fatso —, viu-o matar o pintarroxo. Fê-lo com
um pau de atirar. As penas voaram e o sangue caiu sobre uma folha.
— Calma — pediu Jenkins gentilmente. — Descansa e conta
depois. Estás muito excitado. Viste não sei quem matar o pintarroxo.
Fatso respirou fundo, batendo os dentes.
— Foi Peter — informou.
— Peter?
— Peter, o webster.
— Disseste que ele atirou um pau ?
— Atirou-o com outro pau. Amarrou duas pontas de um pau com
uma corda, puxou esta e o pau curvou-se...
— Bem sei — disse Jenkins —, bem sei.
— Sabes?! Sabes como foi?
— Sei — disse Jenkins. — Sei como foi. Com o arco e a flecha.
E havia qualquer coisa no tom da sua voz que manteve os outros
três em silêncio, tornou a sala enorme e vazia e o arranhar dos ramos
nas vidraças parecia um som distante, cavo, como uma voz que se
queixa sem esperança de auxílio.
— O arco e a flecha? — perguntou Joshua por fim.— O que é um
arco e uma flecha?
É isso, pensou Jenkins.
O que é um arco e uma flecha ?
É o princípio do fim. O caminho tortuoso que conduz a guerra.
É um brinquedo e uma arma, um triunfo do engenho humano.
É o primeiro estremecimento de uma bomba atômica.
É o símbolo de uma maneira de viver.
E é um verso de uma canção infantil:
Quem matou o pintarroxo ?
Eu — disse a andorinha.
— Com o meu arco e a minha flecha matei o pintarroxo.
Uma coisa esquecida e reaprendida.
Era isto o que eu temia.
Endireitou-se na cadeira e levantou-se vagarosamente.
— Ichabod — disse —, vou precisar da tua ajuda.
— Tudo o que quiseres — respondeu Ichabod.
— O corpo — disse Jenkins—, quero pôr o meu corpo novo. Tens
de tirar-me o cérebro.
Ichabod anuiu.
— Sei como é, Jenkins.
A voz de Jenkins soou amedrontada.
— O que é, Jenkins? Que vais fazer?
— Vou visitar os mutantes — disse Jenkins, vagarosamente. —
Depois de tantos anos, vou pedir-lhes ajuda.
***
A sombra deslizou pela colina, fugindo às manchas da Lua através
da folhagem. Brilhava sob a Lua — e não devia ser vista. Não podia
estragar a caçada das que viriam depois.
Haveria outras. Não numa avalancha, evidentemente, mas
cuidadosamente orientadas. Poucas de cada vez, bem distribuídas,
para que a vida deste mundo maravilhosos se não alarmasse.
Uma vez dado o alarme, seria o fim.
A sombra encolheu-se na escuridão, rente à terra, e pesquisou a
noite com os seus nervos tensos e trêmulos. Separou os impulsos que
conhecia e catalogou-os no seu cérebro aguçado, verificando o seu
conhecimento.
Conhecia alguns, outros eram mistérios, outros ainda conseguia
decifrar. Mas havia um que lhe dava horror.
Encostou-se mais à terra, ergueu bem a horrível cabeça, fechou as
suas sensações ao frémito da noite e concentrou-se naquilo que subia
a colina.
Eram dois, mas diferentes. Um rosnar nasceu-lhe no pensamento e
desceu-lhe à garganta; o corpo tênue ficou tenso entre a expectativa e
o terror sem limites.
Ergueu-se do chão, ainda encolhido, e continuou a descida,
fazendo um desvio para cortar o caminho aos dois que subiam.
***
Jenkins estava outra vez jovem — jovem, forte e ágil; ágil de corpo
e de espírito; ágil para atravessar as colinas varridas pelo vento e
banhadas pela Lua; ágil para escutar as conversas das folhas e o
cantar sonolento dos pássaros — e muito mais.
“Sim, muito mais”, disse a si próprio.
O corpo era um mimo. Não se amolgava, nem se enferrujava. E
não era tudo.
Nunca pensara que um corpo pudesse fazer tanta diferença. Não
sabia que o outro estava tão roto e tão gasto. Um bom trabalho, o
melhor que se podia fazer na altura. O mecanismo era uma maravilha:
as coisas que poderia fazer com ele...
Haviam sido os autômatos, certamente. Os autômatos selvagens.
Os cães tinham conseguido que eles fizessem aquele corpo. E não era
vulgar os cães tratarem com os autômatos. Davam-se bem e tudo o
mais, mas davam-se bem porque não se incomodavam uns aos outros,
porque não interferiam, por não serem, nem uns nem outros,
bisbilhoteiros.
Um coelho mexeu-se na toca e Jenkins sentiu-o. Um racoon saiu
para a sua ronda da meia-noite e Jenkins sentiu-o — como sentia a
necessidade engenhosa e branda que se tecia nos cérebros atrás dos
pequenos olhos que o espreitavam dos arbustos. E para a esquerda,
enroscado contra uma árvore, um urso dormia e sonhava — um sonho
de glutão com colmeias cheias de mel, com peixe apanhado na angra,
com formigas arrancadas debaixo das rochas para sobremesa.
Era chocante — mas natural. Tão natural como levantar os pés para
caminhar, tão natural como ouvir normalmente. Mas era diferente,
não era ouvir nem ver, nem sequer, imaginação, pois Jenkins sabia,
com muita certeza, que o coelho se mexera na toca, que o racoon
deambulava pela floresta e que o urso sonhava encostado à árvore.
“E estes — pensou — também são os corpos usados pelos
autômatos selvagens; porque, se construíram um para mim, também
os constroem para eles.
Percorreram um longo caminho em sete mil anos, como os cães o
percorreram depois do êxodo humano. Não lhes ligamos importância,
pois não valia a pena. Os autômatos seguiram um caminho, os cães
um outro e não discutiram nem tiveram curiosidade pelo que uns e
outros faziam. Ao passo que os autômatos construíam naves espaciais,
tentando alcançar as estrelas, construíam corpos e trabalhavam em
mecânica e matemática, os cães trabalhavam com os animais,
forjavam uma fraternidade entre todos os seres selvagens que sempre
amedrontaram o homem, escutavam os penantes e tentavam penetrar
nas profundezas do tempo, para descobrir que não havia tempo.
Se os cães e os autômatos chegaram até aqui, os mutantes
chegaram mais longe. — Ouvir-me-ão — disse Jenkins —, é preciso
que me ouçam, porque lhes trago um problema que lhes interessa.
Porque os mutantes são homens; apesar da sua maneira de ser, são
filhos do homem. Não possuem agora rancor, porque o nome do
homem é poeira soprada pelo vento, barulho de folhas num dia de
Verão — e nada mais.
Além disso, há sete mil anos que os não incomodo; de resto, nunca
os incomodei. Joe era meu amigo, tanto quanto pode sê-lo um
mutante. Falava comigo, embora não falasse aos homens. Escutar-me-
ão — e dir-me-ão o que devo fazer. E não farão troça de mim.
Porque não é caso para rir. Trata-se do arco e da flecha, e não é
caso para rir. Talvez o fosse muitos anos atrás, mas a História
encarrega-se de fazer parar o riso a muitas coisas. Se a flecha é uma
anedota, também o são a bomba atômica, as epidemias que varrem
cidades inteiras, e os foguetes, que descrevem um arco e caem a dez
mil quilômetros de distância, matando um milhão de pessoas.
Também é verdade que não há, agora, um milhão de pessoas.
Algumas centenas, quanto muito, que vivem nas casas que os cães
lhes construíram, porque nessa altura os cães ainda sabiam o que eram
seres humanos, as relações que existiam entre eles — e consideravam
os homens como deuses. Consideravam-nos como tal e contavam os
velhos contos à lareira, nas noites de Inverno; sonhavam com o dia do
regresso do homem, que lhes afagaria a cabeça e diria: — Bom
trabalho, meus bons e devotados servos.
E isso estava errado — pensou Jenkins, continuando a descer a
colina —, estava completamente errado. Os homens não mereciam
essa adoração, essa divinização. Só Deus sabe como eu próprio os
amei. Ainda os amo, apesar de tudo, não porque são homens, mas pela
recordação de alguns homens.
Não estava certo os cães trabalharem para o homem, porque os
cães estavam a fazer um trabalho melhor que o do homem. Por isso
fiz desaparecer a recordação dele — e foi um longo e penoso
trabalho. Durante muitos anos fiz desaparecer as lendas, confundi-
lhes a memória, e agora chamam aos homens websters.
Muitas vezes pensei se estaria a proceder bem. Senti-me traidor,
passei noites amarguradas. Quando tudo dormia, sentava-me na
cadeira de balouço e escutava o vento a desfazer-se nos beirais. Teria
eu o direito de proceder assim? Aprovariam os Websters esta decisão?
Estou preso a eles, e, depois de tantos milhares de anos, ainda me
preocupo com a opinião que poderiam ter dos meus atos.
Mas agora sei que tenho razão. A prova está no arco e na flecha.
Antigamente pensava que o homem poderia ter tomado o caminho
errado, que a selvajaria longínqua e obscura que lhe serviu de berço
tivesse sido um mau passo. Mas vejo que não tinha razão. Há um
único caminho que o homem pode seguir — o caminho do arco e da
flecha.
Fiz tudo o que era possível. Deus bem o sabe.
Quando apanhamos os nômadas e os trouxemos para a Casa
Webster, tirei-lhes as armas — tirei-lhas não só das mãos, mas
também da memória. Reeditei os livros reeditáveis e queimei os
restantes. Ensinei-lhes de novo a ler, a cantar e a pensar. Os livros não
tinham indícios de guerras e armas, de ódios ou histórias, porque a
história é ódio — nem batalhas nem atos heróicos, nem trombetas.
Mas foi tempo perdido — disse Jenkins para si. — Sei agora que
foi tempo perdido. Porque o homem construirá sempre um arco e uma
flecha.”
Tinha descido a colina, atravessando a angra que conduzia ao rio, e
subia agora de novo para as montanhas coroadas de picos.
Ouviu-se um ligeiro ruído e o seu novo corpo disse-lhe tratar-se de
ratos correndo nos túneis que tinham construído sob a erva. E por um
momento percebeu a felicidade que possuíam os ratos brincalhões,
nos pensamentos informes, minúsculos, livres, dos ratos felizes.
Um mocho acocorou-se por um momento num tronco caído e teve
um pensamento mau ao recordar os ratos e os tempos em que eles
eram um bom petisco para os mochos. Fome e medo. Medo do que os
cães lhe fariam se matasse um rato, medo das centenas de olhos que
vigiavam para impedir os crimes que outrora devastavam o mundo.
Mas um homem tinha cometido um crime. Um mocho não ousava
matar, mas um homem matara. Talvez sem intenção, sem maldade,
mas matara. E os Cânones diziam que se não devia matar.
Outrora os que tinham morto tinham sido punidos. O homem devia
também ser punido. Mas o castigo não era suficiente. O castigo, em
si, não era solução. A solução não podia dizer respeito a um só
homem, mas a todos os homens, a toda a raça, porque, se um o fizera,
os outros podiam também fazê-lo. Não só uma possibilidade, mas
uma certeza — porque eram homens e os homens tinham já cometido
crimes e voltariam a cometê-los de novo.
O castelo dos mutantes recortava-se contra o céu, tão escuro que
brilhava sob o luar. Não se via nenhuma luz, o que não era de
estranhar, porque nunca houvera luzes no castelo. E nunca a porta se
abrira para o mundo exterior. Os mutantes tinham construído castelos
em todo o mundo, haviam-se fechado neles e fora o fim. Os mutantes
tinham-se imiscuído nos negócios dos homens, tinham-nos guerreado,
e, quando os homens desapareceram, tinham desaparecido também.
Jenkins chegou aos largos degraus de pedra que conduziam à porta
e parou. Levantando a cabeça, observou o prédio que se erguia na sua
frente.
“Suponho que Joe já morreu” — murmurou para si. — Joe viveu
muito, mas não era imortal. Não podia viver eternamente. E devia ser
estranho falar com um mutante que não fosse Joe.
Começou a subir, muito devagar, todos os nervos alertados,
esperando o primeiro sinal de irônico humor que cairia sobre ele.
Mas nada aconteceu.
Subiu os degraus e deteve-se em frente da porta. Procurou um
objeto que pudesse indicar a sua presença aos mutantes.
Não havia campainha nem aldrava. A porta era lisa, com um
simples trinco. E era tudo.
Ergueu o punho, hesitante, e bateu; bateu de novo e esperou.
Ninguém respondeu. A porta continuou muda e imóvel.
Bateu de novo, mais forte. E nada ainda, dessa vez.
Vagarosamente, cuidadosamente, levou a mão ao trinco e correu-o.
O trinco cedeu, a porta abriu-se e Jenkins entrou.
***
— Deves ter um parafuso a menos, com certeza — disse Lupus. —
Se fosse comigo, fazia com que eles me perseguissem, e garanto-te
que apanhavam uma boa estafa. Não a esqueciam tão cedo. Tornava-
lhes o caso difícil.
Peter abanou a cabeça.
— Talvez tu procedesses assim, Lupus, e talvez tivesses razão.
Mas eu não posso. Os websters nunca fogem.
— Como o sabes? — perguntou o lobo impiedosamente.— Estás a
falar de cor. Os websters nunca foram obrigados a fugir; e, se nunca
foram obrigados a fugir, como podes tu saber...
— Oh, cala a boca! — disse Peter.
Caminharam em silêncio pelo atalho rochoso que serpeava pela
colina.
— Perseguem-nos — disse Lupus.
— Estás a imaginar coisas — respondeu Peter. — Quem queres tu
que nos persiga?
— Não sei, mas...
— Farejaste alguma coisa?
— Não.
— Viste ou ouviste alguma coisa?
— Não, mas...
— Então ninguém nos persegue — declarou Peter, decisivo.— Já
ninguém faz perseguições.
O luar filtrava-se através dos topos das árvores, ponteando a
floresta de negro e prata. E o vale do rio chegou um som de patos
bravos numa discussão noturna. Uma brisa leve veio pela colina
acima, trazendo um pouco de nevoeiro do rio.
A corda do arco de Peter prendeu-se numa silva e ele parou para a
desenvencilhar. Deixou cair algumas das flechas que trazia e baixou-
se para as apanhar.
— Fazias melhor se arranjasses outra maneira de trazer isso às
costas — refilou Lupus. — Estás sempre a deixá-las cair e...
— Tenho estado a pensar nisso — replicou Peter calmamente. —
Talvez sirva um saco para pendurar às costas.
Continuaram a subir.
— Que vais fazer quando chegares à Casa Webster?
— Falar a Jenkins — disse Peter — e contar-lhe o que fiz.
— Fatso já lhe contou.
— Talvez não lhe tenha contado bem. Fatso estava muito excitado.
— Tem pouco miolo também — acrescentou Lupus.
Atravessaram uma mancha de luar e mergulharam na escuridão do
atalho.
— Estou a ficar nervoso — disse Lupus. — Vou voltar para trás. É
uma loucura o que estás a fazer. Vim contigo até aqui, mas...
— Volta para trás, então — disse Peter com amargura.— Não estou
nervoso. Estou...
Rodou sobre os calcanhares, com os cabelos eriçados.
Alguma coisa não corria bem — qualquer coisa no ar que
respirava, ou no seu pensamento —, uma estranha e perturbadora
sensação de perigo que lhe fustigava as espáduas e lhe descia pela
espinha com milhões de pés pontiagudos.
— Lupus! — gritou. — Lupus!
Uma moita estremeceu violentamente no atalho e Peter lançou-se
numa corrida louca por ele abaixo. Parou e escondeu-se noutra moita.
Levantou o arco e ajustou a flecha na corda.
Lupus estava estirado no chão, mergulhado em sombras e luar. Os
beiços arreganhados deixavam ver os caninos. Uma pata estrebuchava
ainda.
Sobre ele debruçava-se uma forma. Uma forma e nada mais. Uma
forma que cuspia e rosnava, uma torrente de som colérico que gritava
no cérebro de Peter. Um ramo deslocou-se com o vento e a Lua
apareceu. Peter pôde ver o contorno da cara — um contorno vago,
como giz meio apagado num quadro preto. Uma cara cadavérica com
a boca fechada, os olhos rasgados e as orelhas encimadas por
tentáculos.
A corda do arco zumbiu e a flecha bateu em cheio na cara — bateu
nela, atravessou-a e foi cair no chão. A cara continuou a rosnar.
Colocou outra flecha no arco e puxou-a bem para trás, até aos
limites de tensão da corda, com uma força de ódio e de medo e pelo
nojo que lhe inspirava aquela forma. A flecha bateu no contorno de
giz da cara, abrandou, oscilou e caiu.
Outra flecha na corda. Ainda mais retesada, desta vez. Mais
esticada para matar aquilo que não queria morrer quando atingido por
uma flecha. Aquilo que apenas a fazia abrandar e hesitar, para depois
a deixar passar.
Para trás, ainda para trás — sempre para trás. Então aconteceu.
A corda do arco partiu-se.
Por um instante Peter ficou parado, com a arma inútil a balouçar-
lhe numa mão e a flecha inútil na outra.
Ficou a medir a pequena distância que o separava da sombra
horrorosa inclinada sobre o corpo cinzento do lobo.
Não tinha medo. Não tinha medo, apesar de a arma se ter
quebrado. Sentia apenas uma cólera que o sacudia e uma voz que lhe
martelava o cérebro, ordenando-lhe:
— MATA! MATA! MATA!
Atirou fora o arco e deu um passo, as mãos curvadas como garras.
A sombra recuou — recuou num medo súbito que lhe saltou ao
cérebro, medo e horror do ódio flamejante que emanava daquilo que
avançava para ela.
Um ódio que a agarrava e a torcia. Já conhecia o medo e o horror
— o medo, o horror, a resignação —, mas agora era diferente. Era
uma chicotada de tortura que lhe vergastava os nervos, queimando-lhe
o cérebro.
Era ódio.
A sombra gemeu interiormente; gemeu e recuou, e procurou com
os dedos frenéticos de pensamento, no cérebro confuso, os símbolos
da fuga.
***
O quarto estava vazio — vazio, velho e oco. Um quarto que
agarrava no ranger da porta e o atirava a distâncias abafadas, para o
trazer de novo. Um quarto cheio da poeira do esquecimento e do
silêncio melancólico dos séculos sem finalidade.
Jenkins deixou a mão no puxador da porta e lançou de novo o
alerta no mecanismo do seu corpo para todos os cantos, para todas as
alcovas obscuras. Nada. Nada que não fosse o silêncio, a poeira e a
escuridão. Nada que indicasse a presença de qualquer coisa, a não ser
do silêncio, da poeira e da escuridão. Nem o mais leve rumor de um
pensamento residual, nem pegadas no soalho, nem impressões digitais
sobre a mesa.
Uma velha canção, uma canção incrivelmente velha — uma
canção em voga quando tinha sido forjado — surgiu de um canto
esquecido do seu cérebro. Surpreendeu-se por se lembrar ainda dela,
surpreendeu-se mesmo ao saber que a soubera de cor; e sabendo-o
ficou perturbado com o turbilhão de séculos que ela reunia,
recordando escassas brancas, muito limpas, no cimo das colinas,
pensando nos homens que tinham tido as suas terras e sobre elas
tinham caminhado com a calma segurança dos proprietários.
Annie já não mora aqui.
Estúpido — chamou Jenkins a si mesmo. — É estúpido que o
absurdo de uma raça desaparecida me persiga ainda, É estúpido.
Annie já não mora aqui.
Quem matou o pintarroxo? Eu — disse a andorinha. Fechou a
porta e atravessou o quarto.
O mobiliário, coberto de poeira, aguardava o homem que não tinha
regressado. Ferramentas e mecanismos cobertos de poeira jaziam
sobre as mesas. Os títulos das filas de livros, cobertos de poeira,
luziam na estante.
“Foram-se embora — disse Jenkins falando consigo.— E ninguém
sabe nem a hora, nem a razão dessa partida. Nem mesmo o local para
onde foram. Saíram à noite, sem dizerem que partiam. E, com certeza,
recordavam-se e riam; riem-se quando pensam que nós pensamos que
eles ainda aqui estão; riem-se das sentinelas que lhes pusemos.”
Havia outras portas e Jenkins dirigiu-se para uma. Com a mão no
trinco recordou a futilidade de a abrir, a futilidade de procurar ainda.
Se este quarto estava velho e vazio, também o estariam os outros.
Premiu o trinco e a porta abriu-se. Sentiu uma lufada de calor, mas
não havia quarto. Havia um deserto — um deserto dourado que se
estendia até um horizonte esbatido e queimado por um enorme sol
azul.
Uma coisa verde e púrpura, que podia ser um lagarto, mas não o
era, estendia-se na areia, com os pequeninos pés a emitirem um débil
assobio. Jenkins fechou a porta e sentiu-se confuso — confuso de
corpo e de espírito.
Um deserto. Um deserto e uma coisa na areia. Não um quarto, não
um vestíbulo, nem um terraço — um deserto.
E o Sol era azul — azul e candente. Vagarosamente, com um
cuidado infinito, abriu de novo a porta, primeiro uma nesga, depois
um bocadinho mais.
O deserto ainda lá estava.
Jenkins fechou a porta e encostou a ela as costas, como se
necessitasse da força do seu corpo metálico para segurar o deserto,
para segurar o significado da porta e do deserto. Eram espertos —
murmurou de si para si. — Espertos e ágeis, sobre os seus pés
mentais. Demasiado ágeis e demasiado espertos para homens comuns.
Nunca tinham tido ideia da sua esperteza. Mas agora sabia que eram
mais espertos do que se pensara.
Aquele quarto não passava de uma antecâmara para os outros
mundos, uma chave que atravessava o espaço impensado, para os
outros planetas que giravam em torno de sóis desconhecidos. Uma
maneira de abandonar a Terra sem nunca a deixar — uma maneira de
caminhar no vácuo através de uma porta.
Havia outras portas e Jenkins, olhando para elas, abanou a cabeça.
Atravessou o quarto devagar, dirigindo-se à porta da entrada.
Calmamente, sem o desejo de quebrar a quietude do quarto cheio de
poeira, ergueu o trinco e encontrou o mundo familiar. O mundo da
Lua e das estrelas, do nevoeiro do rio sobre as montanhas, das copas
das árvores falando umas com as outras nos cumes das colinas.
Os ratos ainda corriam nos túneis, sob a erva, com felizes
pensamentos de ratos, que quase não eram pensamentos. Um mocho
dormitava numa árvore, com pensamentos assassinos.
“Tão próxima — pensou Jenkins—, tão próxima ainda da
superfície, esta velha fome de sangue, este velho ódio. Mas vamos
dar-lhes um ponto de partida melhor do que o que teve o homem —
embora talvez tivesse feito pouca diferença o ponto de partida da
humanidade.
Ali estava a velha ânsia de sangue do homem, o desejo de ser
diferente e mais forte para poder impor a sua vontade, de acordo com
os seus planos — planos que tornavam o seu braço mais forte do que
qualquer braço ou pata, para mergulhar os seus dentes mais fundo do
que qualquer carnívoro vulgar, para alcançar ou ferir a uma distância
que o seu braço não alcançava.
Julguei conseguir auxílio. Por isso vim. E não há auxílio.
Nenhuma ajuda. Os mutantes eram os únicos que podiam ajudar-
nos e partiram.
Estás nas tuas mãos — disse Jenkins para si, descendo as escadas.
— A humanidade está nas tuas mãos. Tens de fazê-la parar. E preciso
modificá-la. Não podes deixar estragar a obra dos cães. Não podes
deixar transformá-la num mundo de arcos e flechas. Atravessou a
escuridão e sentiu o odor das folhas da colheita do Outono sob o
verde novo das coisas nascentes, e isso nunca lhe tinha acontecido,
murmurou consigo.
O seu velho corpo não tinha ao sentido do olfato — o olfato, uma
vista melhor e uma capacidade de conhecer, de conhecer os
pensamentos, de ler os pensamentos dos racoons, de adivinhar os
pensamentos dos ratos, de entender o crime no cérebro dos mochos.
Atravessou-lhe o cérebro e fê-lo parar para o lançar numa corrida
pela colina acima, não como poderia correr um homem na escuridão,
mas como corre um autômato, vendo na escuridão e com a força
mental que não conhece o cansaço e a falta de ar.
Odio — e só podia haver um ódio como aquele.
A sensação tornou-se mais profunda e mais nítida à medida que
seguia o atalho aos saltos, e o seu cérebro gemia com o medo que o
invadia — o medo do que poderia encontrar.
Atirou-se para uma moita e escorregou até parar.
Um homem avançava com os punhos cerrados; na erva jazia um
arco quebrado. O corpo cinzento do lobo estava estendido sob o luar,
roído de sombras, e fugindo dele havia uma coisa sombria, que não
era luz nem escuridão, um tudo nada perceptível, mas nunca
totalmente, como um ser fantasmagórico, movendo-se num sonho.
— Peter!— gritou Jenkins. Mas fê-lo em pensamento, sem soltar
qualquer som, porque sentiu o medo no cérebro do ser semi-
perceptível, um medo onde havia o terror pelo homem que avançava
em direção à forma trêmula babada. Terror e uma necessidade
frenética — uma necessidade de encontrar, de recordar.
O homem estava quase sobre ela, caminhando muito direito; um
homem com um corpo miúdo e uns punhos ridículos — e coragem.
Coragem — pensou Jenkins — coragem para enfrentar o próprio
Inferno. Coragem para chegar ao poço, arrancar a tampa e gritar uma
obscenidade ao guardião dos malditos.
Então o ser encontrou o que procurava. Sabia como proceder.
Jenkins captou a sensação de alívio que atravessava aquele ser e
ouviu a coisa, parte palavra, parte símbolo, parte pensamento, que ele
recordava. Como magia, como uma palavra encantada, como uma
feitiçaria, mas um pouco diferente. Um puro exercício mental, um
pensamento que comandava o corpo — devia ser isso. Porque deu
resultado.
O ser desapareceu. Desapareceu e partiu — saiu do mundo.
Nem um sinal, nem uma simples vibração. Como se nunca tivesse
existido.
E o que dissera, o que pensara? Era assim. Assim...
Jenkins pôs-se de pé, de um salto. Estava-lhe gravada no cérebro e
sabia-a, sabia a palavra, o pensamento e inflexão correta, mas não
queria usá-la. Precisava esquecê-la, conservá-la escondida. Tinha
dado resultado com o penante, dá-lo-ia também com ele. Sabia que
daria resultado.
O homem voltou-se e amoleceu as mãos, pendendo-as ao lado do
corpo, olhando para Jenkins.
Os lábios moveram-se no borrão branco da cara.
— Tu... tu...
— Sou Jenkins — disse-lhe Jenkins. — Trago o meu corpo novo.
— Havia aqui uma coisa — disse Peter.
— Era um penante — retrucou Jenkins. — Joshua disse-me que
um tinha passado para este mundo.
— Matou Lupus — disse Peter.
Jenkins anuiu.
— Sim, matou Lupus e muitos outros. Era ele que matava.
— E eu matei-o — disse Peter. — Matei-o... ou fi-lo fugir... ou
coisa parecida...
— Fizeste-o fugir deste mundo — disse Jenkins. — Eras mais forte
do que ele e teve medo de ti. Afugentaste-o para o mundo donde veio.
— Podia tê-lo morto — gabou-se Peter. — Mas a Corda partiu-se...
— Para a próxima vez — disse Jenkins calmamente — precisas
fazer cordas mais fortes. Ensinar-te-ei como é. E precisas de uma
ponta de aço para a tua flecha...
— A minha quê?
— A tua flecha. O pau de atirar é uma flecha. O pau e a corda com
que atiras são o arco. Juntos chamam-se o arco e a flecha.
Peter encolheu os ombros.
— Então já tinha sido feito? Não fui o primeiro?
Jenkins abanou a cabeça.
— Não. Não foste o primeiro.
Jenkins deu uns passos sobre a erva e pousou a mão no ombro de
Peter.
— Vem para casa comigo, Peter.
Peter abanou a cabeça.
— Não, ficarei ao pé de Lupus até romper a manhã. Chamarei os
seus amigos para me ajudarem a enterrá-lo.
Ergueu a cabeça e olhou para Jenkins.
— Lupus era meu amigo. Um grande amigo, Jenkins.
— Certamente — disse Jenkins. — Quando voltarei a ver-te?
— Oh, sim — disse Peter. — Vou ao piquenique Webster. E daqui
a uma semana, pouco mais ou menos.
— Pois é — confirmou Jenkins, falando vagarosamente. — Pois é;
ver-te-ei então.
Voltou-se e começou a subir vagarosamente a colina.
Peter sentou-se ao lado do lobo morto, aguardando a madrugada.
Por uma ou duas vezes ergueu a mão, que roçou pela face.
***
Sentaram-se em semicírculo, rodeando Jenkins, e escutaram-no
atentamente.
— Agora prestem atenção — disse Jenkins. — Isto é muito
importante. Prestem atenção, esforcem-se por pensar e agarrem-se ao
que têm na mão — cestos, arcos, flechas e outros instrumentos.
Uma das raparigas gargalhou.
— E um novo jogo, Jenkins?
— Uma espécie — disse Jenkins —É isso mesmo, um novo jogo.
E excitante, muito excitante.
Alguém disse:
— Jenkins descobre sempre um jogo novo para o piquenique
Webster.
— E agora — acrescentou Jenkins — prestem atenção. Olhem para
mim e tentem adivinhar o que estou a pensar...
— E um jogo de adivinha — gritou a rapariga risonha.— Adoro
esses jogos.
Jenkins abriu a boca num sorriso.
— Tens razão — disse. — É isso, precisamente, um jogo de
adivinha. E se agora olharem para mim e prestarem atenção...
— Quero experimentar o arco e a flecha — disse um dos homens.
— Quando acabar o jogo podemos experimentá-los, não podemos,
Jenkins?
— Claro — disse Jenkins com muita paciência. — Quando o jogo
acabar podem experimentá-los.
Fechou os olhos e orientou o cérebro para cada um deles,
catalogando-os um a um, sentindo a expectativa ansiosa dos
pensamentos que se dirigiam ao seu, remexendo-lhe o cérebro como
se fossem dedos.
Tentem mais — pensou Jenkins. — Mais! Mais!
Uma hesitação atravessou-lhe o pensamento, mas afastou-a. Não
era hipnotismo, mas era o melhor que podia fazer. Uma reunião, um
montão de pensamentos — e não passava de um jogo.
Vagarosamente, com cuidado, revelou o símbolo escondido — as
palavras, o pensamento e a inflexão. Arrumou-as no cérebro, como
quem fala a uma criança, tentando ensinar o tom correto, o
movimento dos lábios e da língua.
E nada aconteceu. Absolutamente nada. Nenhuma pressão no
cérebro. Nenhuma sensação de queda. Nenhuma vertigem. Nenhuma
sensação, fosse de que espécie fosse.
Abriu os olhos e viu a encosta da colina. O Sol brilhava ainda e o
céu tinha a cor de um ovo de pintarroxo.
Ficou rígido, silencioso, e sentiu todos os olhos presos nele.
Tudo estava na mesma.
Exceto...
Havia uma margarida onde antes florescera uma planta de chá. A
seu lado havia um canteiro de rosas que não existia quando fechara os
olhos.
— Já acabou? — perguntou, desapontada, a rapariga risonha.
— Já — disse Jenkins.
— Podemos experimentar os arcos e as flechas? — perguntou um
dos jovens.
— Sim — respondeu Jenkins—, mas tenham cuidado. Não
apontem uns aos outros. É perigoso. Peter vai mostrar-vos como é.
— Vamos desembrulhar o almoço — disse uma das mulheres. —
Trouxeste um cesto, Jenkins?
— Trouxe — respondeu ele. — Está com a Ester. Tinha-o ela
quando começamos o jogo.
— Que bom!— comentou a mulher. — Surpreendes-nos todos os
anos com as coisas que trazes.
“E surpreender-te-ás este ano — pensou Jenkins. — Ficarás com
os embrulhos de sementes, todos catalogados.
Porque vamos precisar de sementes — pensou para consigo. —
Sementes para plantar novos jardins, criar novos campos — para
conseguir alimentação. E arpões e anzóis para pescar.”
Outras pequenas diferenças tornaram-se notadas. A maneira como
as árvores se inclinavam sobre o prado. E uma nova curva no rio, lá
em baixo.
Jenkins continuou calmamente sentado ao sol, ouvindo os gritos
dos homens e dos rapazes que experimentavam os arcos e as flechas,
escutando o tagarelar das mulheres, enquanto estendiam as toalhas e
desembrulhavam os almoços.
“Terei de lhes dizer — pensou. — Tenho de avisá-los para não
comerem muito — para não engolirem tudo de uma vez, porque
precisamos desta comida para nos aguentar durante os primeiros dias,
até descobrirmos raízes, peixes e fruta.
Sim, dentro em breve terei de chamá-los para lhes dar a notícia.
Dizendo-lhes que só dependem deles e porquê. Dizer-lhes que façam
o que lhes apetecer, porque este é um mundo novinho em folha.
Tenho de os avisar contra os penantes.
Embora isso tenha menos importância. O homem sabe lidar com
eles de uma maneira má. A maneira de lidar com tudo o que se lhe
atravessa no caminho.”
Jenkins suspirou.
— Deus tenha piedade dos penantes — disse ele.
NOTAS SOBRE O OITAVO
CONTO

Suspeita-se que o oitavo e último conto foi inventado, e por isso


não tem lugar na antiga lenda, que é uma história mais recente
imaginada por algum narrador ambicioso da aclamação pública.
Estruturalmente a história aceita-se, mas a fraseologia é bastante
inferior à dos outros contos. Outra das características é a sua evidente
invenção. A reunião do material é demasiado inteligente, dá-nos uma
unidade demasiado evidente, em relação aos outros contos.
E, contudo, ao passo que nos outros contos não se encontra o
mínimo vestígio da base histórica, porque são indubitavelmente
lendários, essa base existe neste conto.
É sabido que um dos outros mundos está fechado, porque é o
mundo das formigas. É um mundo de formigas. Há anos e anos que o
é.
Não há provas de que o mundo das formigas e o mundo original
donde surgiram os cães sejam comuns, mas também não há provas de
que o não sejam.
As pesquisas mais aturadas não revelaram nenhum mundo que
pudesse considerar-se o original, e este fato poderá indicar que o
mundo das formigas é de facto o mundo que se chamou Terra.
Se assim é, toda a esperança de encontrar provas da origem da
lenda está totalmente perdida, porque só no primeiro mundo poderiam
encontrar-se factos que provassem, sem possibilidades de dúvida, a
origem da lenda. Só nesse mundo haveria esperança de responder à
pergunta básica acerca da existência ou não existência do homem. Se
o mundo das formigas é a Terra, perdemos para sempre a cidade de
Genebra e a Casa Webster.
VIII - A MANEIRA MAIS
SIMPLES

A rchie, o pequeno racoon renegado, encolhido na encosta da


colina, tentava apanhar um dos pequeninos animais que corriam
pela relva. Rufus, o seu autômato, tentava falar-lhe, mas o racoon
estava demasiado ocupado e não lhe dava resposta.
Homer fez uma coisa que nenhum cão jamais fizera. Atravessou o
rio e penetrou no acampamento dos autômatos selvagens. Estava
cheio de medo, pensando no que poderiam fazer-lhe os autômatos
quando o descobrissem, mas estava mais preocupado do que
amedrontado, e continuou a avançar.
Nas profundezas de um ninho secreto, as formigas sonhavam e
faziam planos sobre um mundo que não conheciam. E, empurradas
para esse mundo, cheias de esperança, tentavam realizar qualquer
coisa que nenhum cão, nenhum autômato, nenhum homem, pudessem
compreender.
Em Genebra, Jon Webster passava o décimo milésimo aniversário
de vida suspensa e continuava a dormir, sem um único movimento. Lá
fora, na rua, o vento varria as folhas pelas avenidas, mas ninguém via
ou ouvia.
Jenkins atravessou a colina sem olhar para o lado, porque havia
coisas que não queria ver. Lá estava uma arvore no sítio onde estivera
outra árvore no outro mundo. Lá estava o pedaço de terra gravado no
seu cérebro com um bilhão de pegadas através de dez séculos.
E, se escutasse com atenção, poderia ouvir-se uma gargalhada
atravessar o tempo... a gargalhada sardônica de um homem chamado
Joe.
Archie apanhou um dos pequeninos animais que corriam pela erva
e segurou-o bem, na pata fechada. Ergueu cuidadosamente a pata,
abriu-a e viu o animalzinho correndo doidamente, tentando escapar-
se.
— Archie — insistia Rufus —, não estás a ouvir-me?
O animalzinho mergulhou no pelo de Archie e amarinhou
rapidamente pelo antebraço dele.
— Talvez fosse uma pulga — disse Archie. sentou-se e coçou a
barriga. — Uma nova espécie de pulga. Espero que não seja. As
pulgas normais já são bastante más.
— Não estás a ouvir-me — disse Rufus.
— Tenho que fazer — disse Archie. — A erva está cheia destes
bichos. Tenho de descobrir o que são.
— Vou deixar-te, Archie.
— Vais quê?!
— Deixar-te — disse Rufus. — Vou para o Edifício.
— Estás doido — esbravejou Archie. — Não podes fazer-me uma
coisa dessas. Ficaste meio zuca desde que caíste naquele
formigueiro...
— Chamaram-me — disse Rufus. — Tenho de Ir.
— Sempre fui bom para ti — replicou o racoon. — Nunca te dei
muito trabalho. Sempre foste mais do que um autômato para mim,
foste um amigo. Sempre te tratei como se fosses um animal.
Rufus abanou a cabeça teimosamente.
— Não podes obrigar-me a ficar — disse ele. — Não podia ficar,
fizesses o que fizesses. Recebi a chamada e tenho de ir.
— Não posso ter outro autômato — refilou Archie.— Tiraram o
meu número e eu fugi. Sabes que sou um desertor. Sabes que não
posso arranjar outro autômato, com os guardas à minha procura.
Rufus permaneceu imóvel e silencioso.
— Necessito de ti — disse Archie. — É preciso que fiques para me
ajudares a arranjar comida. Não posso aproximar-me das estações de
alimentação. Os guardas deitavam-me a luva e levavam-me outra vez
para a colina Webster. Ajuda-me a construir uma toca. Vem aí o
Inverno e precisarei de uma toca. Não preciso nem de calor, nem de
luz, mas preciso de uma toca. E tens de...
Rufus voltara-se e descia a colina em direção ao rio. Pelo rio
abaixo... em direção da coluna de fumo que subia no horizonte.
Archie ficou encolhido contra o vento que lhe penetrava nos pelos,
o rabo entre as pernas. O vento trazia um arrepio, um arrepio que
ainda há uma hora não existia. E não era um arrepio de frio, mas de
muitas outras coisas.
Os seus olhos pequeninos e brilhantes percorreram a colina e não
encontraram o mais leve sinal de Rufus.
Sem comida, nem caverna, nem autômato. Perseguido pelos
guardas. Roído de pulgas.
E o Edifício, uma mancha contra as colinas distantes, do outro lado
do rio.
Há cem anos, diziam os documentos, o Edifício era do tamanho da
Casa Webster.
Mas tinha crescido de então para cá... um edifício que nunca se
acabava. Primeiro ocupara um hectare. Depois, quase dois
quilômetros quadrados. E, finalmente, estava do tamanho de uma
cidade. Crescia ainda, em tamanho e altura.
Uma mancha sobre as colinas, um terror confuso para os pequenos
e supersticiosos habitantes da floresta que a observavam. Uma palavra
que amedrontava gatos, cachorros e crias de raposa.
Porque parecia maldade... a maldade do desconhecido, uma
maldade mais percebida do que vista, ouvida ou cheirada. Uma
maldade perceptível, principalmente na escuridão da noite, quando as
luzes se apagavam e o vento assobiava na boca das cavernas e os
outros animais dormiam, enquanto cada um, acordado, podia ouvir o
pulsar da estranheza que cantava entre os mundos.
Archie piscou os olhos, sob o sol de Outono, e coçou
disfarçadamente o flanco.
“Talvez um dia alguém descubra um processo de afastar as pulgas
— disse para si. — Um objeto qualquer para esfregar os pelos de
modo a conservá-los a distância. Ou um processo para argumentar
com elas, chegar ao pé delas e discutir com elas. Ou arranjar-lhes um
local donde não pudessem sair, um local onde fossem alimentadas e
não pudessem incomodar os outros animais. Ou coisa parecida.
Assim, pouco podemos fazer. Coçamo-nos. Ordenamos aos
autômatos que as catem, embora o autômato apanhe mais pelos do
que pulgas. Rebolamo-nos no mato e nada. Tomamos banho e
afogamos algumas... Bem, afogar não se afogam, lavamo-nos e
algumas afogam-se, por acaso.
Ordenamos aos autômatos que as catem...
Mas agora não havia autômato. Não havia autômato para catar as
pulgas. Não havia autômato para o ajudar a arranjar comida.
Mas — lembrou-se Archie — existia um pinheiro manso junto do
rio e a geada anterior devia ter aberto alguns frutos. Estalou os beiços,
pensando nos pinheiros. E havia um campo de trigo, do outro lado das
montanhas. Se fosse ágil, medisse o tempo e tivesse cuidado,
facilmente arranjaria uma mão-cheia de trigo. E se as coisas se
tornassem piores, havia sempre raízes, trigo bravo e uvas também
bravas.”
Rufus que se vá — disse Archie, resmungando consigo. — Que os
cães continuem com as suas estações de alimentação. Que os guardas
continuem vigilantes.
Viveria a sua vida. Comeria frutas, procuraria raízes, assaltaria os
campos de trigo, como os seus remotos antepassados tinham comido
fruta, procurado raízes e assaltado campos de trigo.
Viveria como tinham vivido outros racoons antes de aparecerem os
cães com as suas ideias de fraternidade entre os animais. Os animais
tinham vivido antes de aprenderem a usar as palavras, antes de
saberem ler nos livros impressos que os cães forneciam, antes de os
autômatos servirem de mãos, antes de haver calor e luz nas cavernas.
Sim, antes de haver uma lotaria na Terra que determinava quem
ficava e quem partia para o outro mundo.
Os cães — recordou Archie — tinham utilizado um grande poder
de persuasão, tinham sido suaves e razoáveis nesse aspeto. Alguns
animais, diziam eles, tinham de partir para o outro mundo, ou passaria
a haver demasiados animais na Terra. A Terra não era suficientemente
grande, diziam eles, para poder conter toda a gente. E uma lotaria,
frisavam eles ainda, era a maneira mais honesta de decidir quem devia
partir para os outros mundos.
E, no fim de contas, diziam, os outros mundos eram quase como a
Terra, porque não passavam de extensões da Terra, outros mundos
seguindo as pisadas da Terra. Não seriam bem iguais, talvez, mas
semelhantes. Uma pequena diferença aqui e ali. Talvez não existisse
uma arvore ali onde na Terra a havia, um castanheiro onde na Terra
existia uma nogueira, uma nascente de água fria onde na Terra não
existia corrente alguma.
Talvez, dissera-lhe Homer, entusiasmando-se... talvez o mundo que
lhe seria destinado fosse melhor do que a Terra.
Archie estirou-se no chão, sentiu o calor do Sol de Outono
atravessar o frio vento de Outono. Pensou nos pinheiros mansos. Os
frutos estariam moles e haveria alguns caídos no chão. Comeria os
que estivessem no chão, depois subiria à árvore para apanhar mais
alguns e acabaria com os que tivessem caído com o abanar dos ramos,
durante a subida.
Comê-los-ia e untaria o focinho com eles. Talvez se rebolasse
mesmo sobre eles.
Pelo canto dos olhos viu os animais correrem pela relva. Como
formigas — pensou —, mas não são formigas, pelo menos não são
como as formigas vulgares.
Pulgas, talvez. Uma nova qualidade de pulgas.
Estendeu a pata e apanhou uma. Sentiu-a correr-lhe na palma.
Abriu a pata. viu-a correr e voltou a fechá-la.
Levou a pata ao ouvido e escutou.
Do pequeno animal que apanhara saía um som semelhante ao de
uma máquina.
***
O acampamento dos autômatos selvagens era completamente
diferente do que Homer imaginara. Não havia edifícios. Apenas
pistas, três naves espaciais e meia dúzia de autômatos trabalhando
numa delas.
“Embora fosse de prever a não existência de edifícios num
acampamento de autômatos — disse Homer para si —, pois os
autômatos não precisam de abrigo como nós. E os edifícios não
servem para outra coisa.”
Homer tinha sede, mas esforçava-se por não o mostrar. Levantou a
cauda, ergueu a cabeça, endireitou o rabo e dirigiu-se ao pequeno
grupo de autômatos sem uma hesitação. Quando chegou ao pé deles,
sentou-se, pôs a língua de fora e esperou que eles lhe falassem.
Mas, vendo que nenhum deles o fazia, reuniu coragem e falou-lhes.
— Chamo-me Homer — disse ele — e represento os cães. Gostaria
de falar com o vosso chefe, se é que o têm.
Os autômatos continuaram a trabalhar durante um minuto, mas
finalmente um deles voltou-se, aproximou-se sentou-se ao lado de
Homer, de modo que as duas cabeças ficaram ao mesmo nível. Todos
os outros autômatos continuaram a trabalhar, como se nada tivesse
acontecido.
— Sou o autômato de nome Andrews — disse o que estava sentado
junto de Homer. — Não sou chefe, porque tal coisa não existe entre
nós, mas posso falar contigo.
— Vim por causa do Edifício — disse-lhe Homer.
— Penso — replicou o autômato de nome Andrews — que falas da
construção que fica a nordeste e podes ver se te voltares.
— Isso mesmo — confirmou Homer. — Vim perguntar-te a razão
por que estão a construí-la.
— Mas nós não estamos a construí-la — disse Andrews.
— Vimos autômatos a trabalhar nele.
— Sim, trabalham lá autômatos, mas não o estamos a construir.
— Estão a ajudar alguém ?
Andrews abanou a cabeça.
— Alguns de nós recebem uma chamada... uma chamada para
trabalharem lá. Os outros não tentam impedir os que vão, pois somos
livres.
— Mas quem o está a construir? — perguntou Homer.
— As formigas — disse Andrews.
Homer deixou cair o queixo.
— As formigas? Insetos, querem dizer. Aqueles bichinhos que
vivem nos formigueiros?
— Precisamente — respondeu Andrews. Com os dedos imitou uma
formiga a caminhar na areia.
— Mas elas não eram capazes de construir uma coisa daquelas —
protestou Homer. — São estúpidas.
— Já não o são — disse Andrews.
Homer ficou petrificado, colado à areia; sentiu uns pés
aterrorizados calcarem-lhe os nervos.
— Já não o são — disse Andrews falando consigo.— Já não são
estúpidas. Sabes, era uma vez um homem chamado Joe...
— Um homem? O que é isso? — perguntou Homer.
O autômato galhofou, como se repreendesse Homer com um ar
brincalhão.
— Os homens eram animais — disse. — Animais que caminhavam
sobre duas pernas. Eram muito parecidos connosco, com a diferença
de que eram de carne e nós somos de metal.
— Referes-te aos websters — disse Homer. — Já os conhecíamos,
mas com o nome de websters.
O autômato anuiu, vagarosamente.
— Sim, os websters podiam ser homens. Havia uma família com
esse nome. Vivia do outro lado do rio.
— Há um lugar chamado Casa Webster — disse Homer.— Fica na
colina Webster.
— É isso — confirmou Andrews.
— Vivemos lá — disse Homer.— É uma espécie de santuário para
nós, embora não saibamos bem porquê. Assim nos foi ensinado...
Devemos continuar na Casa Webster.
— Foram os websters — disse Andrews — que ensinaram os cães
a falar.
Homer ficou rígido.
— Ninguém nos ensinou a falar. Aprendemos por nós, ao fim de
muitos anos. E ensinamos os outros animais.
Andrews, o autômato, permaneceu estendido ao sol, abanando a
cabeça como se falasse consigo.
— Dez mil anos — disse ele. — Não, quase doze mil. Há roda de
onze mil anos.
Homer esperou e enquanto esperava sentiu o peso dos anos contra
as montanhas... os anos de rio e sol, de areia, vento e céu.
E os anos de Andrews.
— És velho — disse ele. — Consegues recordar esse tempo todo?
— Consigo — respondeu Andrews —, embora seja um dos últimos
autômatos feitos pelo homem. Fui construído poucos anos antes de
partirem para Júpiter.
Homer ficou calado, sentindo o cérebro em tumulto.
Homem... uma palavra nova.
Um animal que caminhava sobre duas pernas.
Um animal que construía autômatos, que ensinava os cães a falar.
E, como se lhe lesse no pensamento, Andrews falou:
— Não deviam ter-se afastado de nós — disse. — Teríamos
trabalhado em conjunto. Já uma vez trabalhamos em conjunto.
Teríamos ambos ganho se tivéssemos trabalhado sempre assim.
— Tínhamos medo dos autômatos — disse Homer. — Ainda
temos.
— Sim — disse Andrews. — Era natural. Jenkins deve ter-vos
ensinado a ter medo de nós. Jenkins era esperto. Sabia que vocês
precisavam começar pelo princípio. Sabia que não deviam carregar a
recordação do homem como um peso morto.
Homer ficou calado.
— E nós — continuou o autômato — não somos mais do que a
recordação do homem. Fazemos o que ele fazia, embora com uma
ciência maior, pois, sendo máquinas, somos científicos. Somos mais
pacientes do que o homem, porque temos a eternidade e eles tinham
apenas alguns anos.
Andrews desenhou dois riscos na areia, cortou-os com outros dois.
Fez um X no quadrado aberto no canto superior esquerdo.
— Julgas que sou doido — disse ele. — Julgas que estou a dizer
uma série de asneiras.
Homer enterrou os quadris ainda mais na areia.
— Não sei que pensar — respondeu. — Durante tantos anos...
Andrews desenhou um O com o dedo no quadrado do centro do
desenho.
— Bem sei — disse ele. — Durante tantos anos viveram num
sonho, na ideia de que os cães eram e tinham sido a força primeira. E
agora é difícil compreender, conciliar os factos. Talvez seja melhor
esquecer o que eu disse. Por vezes os factos são dolorosos. O
autômato trabalha com eles porque são a única coisa com que pode
trabalhar. Não podemos sonhar, sabes, só possuímos factos.
— Há muito que ultrapassamos os factos — replicou Homer. —
Não é por não precisarmos deles, pois por vezes precisamos. Mas
trabalhamos de outra maneira. Utilizamos a intuição, o ouvido e os
penantes.
— Vocês não são mecânicos — replicou Andrews. — Para vocês,
dois e dois nem sempre foram quatro, mas para nós fazem sempre
quatro. As vezes duvido se a tradição não nos cega, se dois e dois não
podem ser mais ou menos do que quatro.
Permaneceram em silêncio, olhando para o rio, uma corrente de
prata fundida através da terra colorida.
Andrews desenhou um X no canto superior direito, um O no
espaço central, em cima, e um X no espaço central, em baixo. Com a
palma da mão alisou a areia.
— Nunca ganho — disse ele. — Sou excessivamente esperto para
poder competir comigo.
— Estavas a falar-me das formigas — disse Homer. — Que já não
eram estúpidas.
— Ah, sim — respondeu Andrews. — Ia falar-te de um homem
chamado Joe...
***
Jenkins atravessou a colina sem olhar para os lados, porque havia
coisas que não queria ver, coisas que lhe falavam profundamente na
memória. Lá estava uma árvore no sítio onde estivera outra árvore no
outro mundo. Lá estava o pedaço de terra gravado no seu cérebro,
como um bilhão de pegadas através de dez mil anos.
O fraco Sol vespertino de Inverno brilhava no céu, como uma vela
tremendo no vento, e quando deixou de tremer já não era Sol, mas
Lua.
Jenkins parou, voltou-se e viu a casa... agachada contra o solo,
estendida pela colina, como uma cria adormecida agarrada à mãe-
terra.
Jenkins deu um passo hesitante e, com o movimento, o seu corpo
metálico luziu e resplandeceu ao luar, que ainda há pouco era luz do
Sol.
Do rio veio o eco do grito de uma ave e um racoon lastimou-se
num campo de trigo do outro lado das montanhas.
Jenkins deu outro passo e rezou para que a casa continuasse... o
que era impossível, porque não estava lá. A colina estava nua, e nunca
vira uma casa. Era outro mundo em que não existiam casas.
A casa permaneceu escura e silenciosa, sem fumo na chaminé, sem
luz nas janelas, mas reconheceu-lhe as linhas, difíceis de confundir.
Jenkins moveu-se vagarosamente, com cuidado, receando que a
casa desaparecesse, receando assustá-la e fazê-la desaparecer.
Mas a casa permaneceu. E havia outras coisas. A árvore ao canto,
um salgueiro, era agora um castanheiro, como antigamente. A brisa
soprava de oeste e não do norte.
“Aconteceu qualquer coisa — pensou Jenkins. — O que tem
crescido em mim. O que eu sentia e não compreendia. Uma aptidão?
Ou um novo sentido que despertava? Ou uma força que nunca sonhei
ter?
Força para atravessar os mundos à vontade. Força para ir onde me
apetece, pelo caminho mais curto que as linhas curvas da força e do
acaso conjuram para mim.”
Caminhou mais à vontade e a casa continuou calma, sólida,
material.
Atravessou o pátio coberto de erva e parou à porta.
Hesitante, levantou a mão para o trinco. Encontrou-o. Não era uma
alucinação, mas um sólido metal.
Levantou-o e, abrindo a porta, atravessou o limiar.
Depois de cinco mil anos, Jenkins regressara... regressara à Casa
Webster.
***
Então havia um homem chamado Joe. Não era um webster, mas
um homem. E os cães não tinham sido os primeiros.
Homer estava estirado junto do fogo, como um monte inerte de
pelos, ossos e músculos, as patas estendidas para a frente, a cabeça
apoiada nelas. Através dos olhos semicerrados via fogo e sombras,
sentia o calor da lenha aquecer-lhe os pelos.
Mas no cérebro via a areia, o autômato acocorado e as montanhas
com o peso dos anos em cima.
Andrews acocorara-se na areia e falara, com o Sol do Outono
brilhando-lhe nos ombros... falara de homens, cães e formigas. Do
que acontecera quando Nathaniel ainda vivia, e isso fora há muito
tempo, porque Nathaniel fora o primeiro cão.
Era uma vez um homem chamado Joe... um mutante, um “mais do
que homem”... que pensara nas formigas, há dez mil anos. Pensara a
razão por que tinham progredido só até ali, por que teriam chegado a
um beco sem saída do destino.
A fome, talvez, raciocinara Joe... a necessidade sempre presente de
juntar comida para poderem viver a hibernação, talvez, o período de
sono no Inverno, a cadeia da memória quebrada, o recomeçar de novo
— cada ano, um novo nascimento para as formigas.
Então — dissera Andrews, com o crânio liso brilhando sob o sol —
Joe escolhera um formigueiro e elegera-se o deus que ia modificar o
destino das formigas. Alimentara-as, para que não morressem de
fome. Cobrira o formigueiro com uma campânula de vidro e
aquecera-a para que as formigas não fossem obrigadas a hibernar.
E dera resultado. As formigas tinham progredido. Tinham
construído carroças e fundido minérios. Isto era o que se sabia,
porque as carroças andavam à superfície e o fumo saía das chaminés
que espreitavam dos formigueiros. Que outras coisas teriam elas feito,
que outras coisas teriam aprendido no fundo dos seus subterrâneos,
era impossível sabê-lo.
Joe era doido — dissera Andrews. — Doido... e, no entanto, não
era um doido.
Porque um dia quebrara a campânula, destruíra o formigueiro, com
um pontapé e afastara-se sem mais se importar com o que poderia
acontecer às formigas.
Mas as formigas tinham-se importado.
A mão que quebrara a campânula, o pé que rasgara o formigueiro,
tinham lançado as formigas no caminho da grandeza. Fizera-as lutar...
lutar para conservar o que tinham, lutar para evitar que o destino se
fechasse de novo.
Como um pontapé no traseiro — dissera Andrews. — Um pontapé
no traseiro das formigas, impelindo-as na boa direção.
Há doze mil anos um formigueiro destruído, rasgado. Hoje, um
poderoso edifício que crescia todos os anos. Um edifício que ocupara
a área de uma cidade no curto espaço de um século, que ocuparia a
área de uma centena de cidades dentro de dez mil anos. Um edifício
que crescia e invadia o terreno que pertencia, não às formigas, mas
aos animais...
Um edifício... A expressão não era correta, embora se lhe tivesse
chamado o Edifício, desde o início. Porque um edifício era um abrigo
contra o frio e a tempestade. As formigas não precisariam disso
porque tinham os seus túneis e os seus formigueiros.
Por que razão construiriam as formigas um edifício que ocupara a
área de uma cidade em cem anos, e continuava a crescer? Que
possível uso dariam as formigas ao edifício?
Homer mergulhou o nariz nas patas e emitiu um som rouco.
Era impossível sabê-lo. Porque primeiro era preciso saber como
pensa uma formiga, conhecer as suas ambições e os seus objetivos.
Era preciso investigar o seu conhecimento.
Doze mil anos de conhecimento. Doze mil anos a partir de um
ponto desconhecido.
Porque, ano após ano, o Edifício cresceria. Um quilômetro, depois
dez e depois cem. Cem quilômetros, depois outros cem e depois o
mundo.
“Recuar — pensou Homer. — Sim, podemos recuar, emigrar para
outros mundos, os mundos que nos seguem na corrente do tempo, os
mundos que seguem nos calcanhares uns dos outros. Podemos dar a
Terra às formigas e continuará a haver espaço para nós.
Mas o nosso lar é aqui. Aqui surgiram os cães; aqui ensinamos os
animais a falar, a pensar e agir em conjunto; aqui criamos a
fraternidade entre os animais.
Porque pouco importa o que veio primeiro... os websters ou os
cães. Aqui é o nosso lar. O nosso lar e o dos websters.
Precisamos fazer parar as formigas.
Tem de haver um processo de as fazer parar, uma maneira de lhes
falar para sabermos o que querem, uma maneira de as conduzir à
razão. Um plano de negociações, um acordo a alcançar.”
Homer continuou imóvel, à lareira, e escutou os murmúrios que
percorriam a casa, o passo leve e distante dos autômatos nas suas
tarefas, a conversa abafada dos cães no primeiro andar e o crepitar das
chamas devorando as achas.
“Uma vida boa — disse Homer consigo. — Uma vida boa que
pensávamos ter construído. E Andrews disse que não fomos nós.
Andrews disse que não acrescentamos uma linha à aptidão e lógica
mecânica que herdamos... e que perdemos muitas coisas. Falou em
química e tentou explicar o que era, mas não consegui compreender.
O estudo dos elementos, disse ele, e coisas como moléculas e átomos.
E eletrônica... embora acrescentasse que fazíamos, sem recorrer à
eletrônica, coisas mais maravilhosas do que o homem com toda a sua
sabedoria. Podia-se estudar eletrônica durante mais de mil anos, disse
ele, e não se ser capaz de alcançar os outros mundos, nem sequer
saber que existiam... e nós fizemo-lo, fizemos uma coisa impossível a
um webster.
Porque pensamos de maneira diferente dos websters. Não,
websters não, homens.
E os nossos autômatos. Os nossos autômatos não são melhores do
que os deixados pelo homem. Uma pequena modificação aqui e ali...
modificações óbvias, mas de pouca importância.
Quem sonharia alguma vez que poderia haver autômatos mais
perfeitos?
Trigo melhor, ainda vá lá. Ou nogueiras melhores. Ou arroz com
grão maior. Um processo melhor de fabricar o fermento com que
substituímos a carne.
Mas autômatos melhores... porquê, se os autómatos fazem tudo o
que queremos? Porque haviam de ser melhores ?
E contudo... os autômatos recebem uma chamada e vão trabalhar
no Edifício, construir uma coisa que nos expulsará da Terra.
Não compreendemos. Claro que não compreendemos. Se
conhecêssemos melhor os nossos autômatos, poderíamos
compreender, e compreendendo poderíamos descobrir o processo de
tornar os autômatos insensíveis à chamada.
Esta seria a solução, evidentemente. Se os autômatos não
trabalharem, não haverá Edifício, porque as formigas, sem a ajuda dos
autômatos, não poderão continuá-lo.”
Uma pulga correu-lhe pela nuca e Homer torceu uma orelha.
Ainda que Andrews possa estar enganado — disse para si. —
Temos a nossa lenda do aparecimento da fraternidade entre os
animais, e os autômatos têm a sua lenda da queda do homem. E hoje
quem existe para dizer qual delas é a verdadeira?
Mas a história de Andrews é coerente. Havia cães e autômatos e,
quando o homem caiu, foram por caminhos diferentes... embora
ficássemos com alguns autômatos, embora tivéssemos ficado com
alguns para nos servirem de braços. Alguns autômatos ficaram
connosco, mas nenhum cão ficou com os autômatos.
Uma mosca zumbiu a um canto, torceu-se dentro da luz do fogo.
Zumbiu em volta da cabeça de Homer e pousou-lhe no nariz. Homer
olhou para ela, viu-a erguer as patas e esfregar insolentemente as asas.
Então atirou-lhe uma patada e ela fugiu.
Ouviu-se uma pancada na porta.
Homer ergueu a cabeça, piscando os olhos.
— Entre — disse por fim.
Era um autômato, Hezekiah.
— Apanharam Archie — informou Hezekiah.
— Archie?
— Archie, o racoon.
— Ah, sim — disse Homer—, o que fugiu.
— Está ali fora — disse Hezekiah. — Queres vê-lo?
— Manda-o entrar — disse Homer.
Hezekiah chamou com o dedo e Archie avançou pela porta. Tinha
o pelo todo sujo e a cauda caída. Atrás dele entraram dois guardas
autômatos.
— Tentou roubar trigo — disse um dos guardas. — Vimo-lo, mas
fez-nos suar para o apanharmos.
Homer endireitou-se com nobreza e fixou Archie, que
correspondeu ao seu olhar.
— Nunca me apanhariam — disse Archie — se Rufus estivesse
comigo. Rufus era o meu autômato e ter-me-ia avisado.
— E onde está Rufus?
— Recebeu hoje a chamada — disse Archie — e partiu para o
Edifício, abandonando-me.
— Diz-me — pediu Homer: — aconteceu alguma coisa a Rufus
antes de partir? Alguma coisa de anormal? De extraordinário ?
— Não — respondeu Archie — a não ser ter caído num
formigueiro. Era um autômato desajeitado, andava sempre aos
trambolhões, tropeçava nos próprios pés, desequilibrava-se. Não
coordenava bem os movimentos. Devia ter algum parafuso
desatarraxado.
Uma coisa preta e pequenina saltou do nariz de Archie e correu
pelo soalho. A pata de Archie, num relâmpago, apanhou-a.
— É melhor afastares-te um pouco — avisou Hezekiah a Homer.
— Está literalmente cheio de pulgas.
— Não é uma pulga — disse Archie espumando de raiva. — É
outra coisa qualquer. Apanhei-a esta tarde. Faz ruídos como uma
máquina e parece uma formiga, mas não é.
O bicho que fazia ruídos como uma máquina esgueirou-se da pata
de Archie e tombou no chão. Caiu de pé e partiu como uma flecha.
Archie atirou-lhe uma patada, mas o bicho esquivou-se. Num instante
alcançou Hezekiah e começou a trepar-lhe pela perna.
Homer pôs-se a pé, com uma ideia.
— Depressa! — gritou. — Apanhem-no! Agarrem-no! Não o
deixem...
Mas o bicho tinha desaparecido.
Homer voltou a sentar-se. Vagarosamente. A sua voz era agora
calma — calma e quase mortífera.
— Guardas — disse ele —, prendam Hezekiah. Não o deixem só
um segundo, não o deixem fugir. Comuniquem-me tudo o que ele
fizer.
Hezekiah recuou.
— Mas eu não fiz nada.
— Pois não — disse Homer com suavidade. — Não, não fizeste,
mas vais fazer. Vais receber a chamada e tentar desertar para o
Edifício. Mas antes de te deixarmos partir descobriremos o que te
obriga a tal. O que é e como funciona.
Voltou-se, tendo na cara um sorriso canino.
— E agora, Archie...
Mas Archie desaparecera.
Uma janela estava aberta. E Archie desaparecera.
***
Homer mexeu-se no leito de feno, sem querer acordar, a garganta
rouca.
“Estou a ficar velho — pensou. — Tenho muitos anos em cima de
mim, como os anos sobre as montanhas. Já lá vai o tempo em que, ao
primeiro som da porta, saltava da cama, com o feno ainda agarrado
aos pelos, ladrando que nem um danado para avisar os autômatos.”
Ouviu-se de novo a pancada e Homer pôs-se a pé.
— Entra — gritou. — Acaba com isso e entra.
A porta abriu-se e apareceu um autômato, maior do que quaisquer
dos que Homer conhecia. Um autômato brilhante, enorme e maciço,
com um corpo polido que mesmo na escuridão brilhava. E a cavalo no
ombro do autômato estava Archie, o racoon.
— Sou Jenkins — disse o autômato. — Regressei esta noite.
Homer engoliu em seco e sentou-se vagarosamente.
— Jenkins — disse ele. — Correm histórias... lendas...de há muito
tempo.
— Não passa de uma lenda? — perguntou Jenkins.
— Não — disse Homer. — A lenda de um autômato que velava por
nós. Embora Andrews me falasse esta tarde de Jenkins como se o
tivesse conhecido. Há a história de um corpo que os cães te
ofereceram no dia do teu sétimo milésimo aniversário, um corpo
maravilhoso que...
A voz morreu-lhe... porque o corpo do autômato que estava na sua
frente, com o racoon pendurado no ombro... aquele corpo não podia
ser outro senão o da prenda de anos.
— E a Casa Webster? — perguntou Jenkins. — Ainda conservam a
Casa Webster?
— Ainda — respondeu Homer —, tal como era. É obrigatório para
nós.
— Os websters?
— Não há websters.
Jenkins acenou com a cabeça. A sua aguda capacidade de sentir
percebera já que não havia websters. Não havia vibrações de
websters. Não havia pensamentos de websters nos cérebros que
tocara.
E assim é que deveria ser.
Atravessou vagarosamente o quarto, com passos suaves, como um
gato, apesar do seu enorme peso, e Homer sentiu a amizade e a
amabilidade que havia na criatura de metal, a proteção daquela
poderosa força.
Jenkins sentou-se a seu lado.
— Tens um problema grave — disse Jenkins.
Homer ficou a olhar para ele.
— As formigas — prosseguiu Jenkins. — Archie contou-me.
Disse-me que as formigas vos incomodavam.
— Fui refugiar-me na Casa Webster — disse Archie.— Estava com
medo que voltasses a perseguir-me e pensei que a Casa Webster...
— Calma, Archie — admoestou Jenkins. — Não sabendo que se
trata, disseste-me que não sabias. Só disseste que os cães andavam
preocupados com as formigas.
Olhou para Homer.
— Julgo que são as formigas de Joe — disse ele.
— Então conheceste Joe — disse Homer. — Sempre houve um
homem chamado Joe.
Jenkins riu-se.
— Sim. era um elemento de perturbação. Mas às vezes era
simpático. Tinha o Diabo no corpo.
Homer disse:
— Estão a construir um edifício. Apanham os autômatos e levam-
nos para lá, para trabalharem.
— Mas as formigas têm o direito de construir — observou Jenkins.
— Mas estão a construir demasiado depressa. Vão expulsar-nos da
Terra. Dentro de mil anos, pouco mais ou menos, terão coberto toda a
Terra, se continuarem a construir naquele ritmo.
— E não tens para onde ir? É o que te preocupa?
— Sim, temos para onde ir. Muitos lugares, todos os outros
mundos, os mundos dos penantes.
Jenkins anuiu gravemente.
— Estive num desses mundos. O primeiro mundo a seguir a este.
Levei para lá alguns websters há cinco mil anos e só regressei esta
noite. Compreendo o que sentes. Nenhum dos outros mundos poderá
ser o nosso lar. Ansiei pela Terra durante cada um daqueles cinco mil
anos. Regressei à Casa Webster e encontrei lá Archie. Falou-me nas
formigas e eu vim ter contigo. Espero que não te importes.
— Estou satisfeito por teres vindo — disse Homer suavemente.
— Suponho que queres fazer parar as formigas — disse Jenkins.
Homer anuiu, com a cabeça.
— Há uma maneira — disse Jenkins—, sei que há. Os websters
tinham uma maneira; se conseguisse lembrar-me dela... Mas foi há
tanto tempo! E é uma maneira simples. Isso sei eu. Era uma maneira
muito simples.
Ergueu a mão e esfregou o queixo.
— Porque fazes isso? — perguntou Archie.
— Hem?
— Porque esfregas assim o queixo?
Jenkins deixou cair a mão.
— É um hábito, Archie, um gesto dos websters. Fiquei com ele.
Faziam-no quando estavam pensativos.
— Ajuda a pensar?
— Talvez sim e talvez não. Parece que ajudava os websters. O que
faria um webster numa destas situações? Os websters podiam ajudar-
nos. Sei que podiam...
— Os websters estão no mundo dos penantes — disse Homer.
Jenkins abanou a cabeça.
— Já lá não há websters.
— Mas tu disseste que os levaste para lá.
— Bem sei, mas já lá não estão. Estive sozinho no mundo dos
penantes durante cerca de quatro mil anos.
— Não há websters em nenhum lado. Foram para Júpiter, disse-me
Andrews. Onde é Júpiter, Jenkins?
— Há, sim — disse Jenkins. — Quero dizer, ainda há alguns
websters. Ou havia, em Genebra.
— Não será fácil, mesmo para um webster — disse Homer. — As
formigas são espertas. Archie falou-te da pulga que encontrou?
— Sim, falou. Disse-me que entrou em Hezekiah.
— Isso mesmo. Entrou é o termo exato — concordou Homer. —
Não era uma pulga. Era um autômato, um autômato minúsculo. Fez
um buraco no crânio de Hezekiah e penetrou-lhe no cérebro. E fechou
o buraco depois de entrar.
— E o que faz agora Hezekiah ?
— Nada — disse Homer —, mas tenho a certeza de que fará dentro
em breve, logo que o autômato das formigas tenha tudo preparado.
Receberá a chamada. Receberá a chamada para ir trabalhar no
Edifício.
Jenkins anuiu.
— Uma substituição — disse Jenkins.— Elas não podem fazer
uma obra dessas e então dominam quem a pode fazer.
Levantou de novo a mão e esfregou o queixo.
— Gostaria de saber se Joe o sabia — murmurou. — Gostaria de
saber se ele o sabia quando se arvorou em deus das formigas.
Mas era ridículo. Era impossível que Joe o soubesse. Mesmo um
mutante como Joe não podia prever doze mil anos no futuro.
“Há tanto tempo — pensou Jenkins. — Tantas coisas aconteceram.
Bruce Webster estava no início das suas experiências com os cães,
sonhava ainda com o sonho dos cães que falassem e pensassem, que
fossem pelo caminho do destino de mãos dadas com o homem... sem
saber que, em poucos séculos, o homem se dispersaria aos quatro
ventos e abandonaria a Terra aos autômatos e aos cães. Não sabia
então que até o nome do homem seria esquecido na poeira dos anos e
que a raça seria conhecida pelo nome da sua família.
E, no entanto, se tivesse que haver alguma família, os Websters
eram os indicados. Lembro-me deles como se fosse ontem. Nesse
tempo também me considerava um Webster.
Deus sabe como tentei sê-lo — pensou Jenkins. — Fiz o melhor
que podia. Fiquei com os cães dos Webster quando a raça humana
desapareceu e finalmente levei os sobreviventes dessa raça de loucos,
a fim de deixar o caminho livre aos cães... para que os cães
moldassem a Terra como tinham planeado.
E agora até esses sobreviventes desapareceram... para qualquer
parte... gostaria de saber onde. Escaparam por qualquer fantasia do
pensamento humano. Os homens que estão em Júpiter nem sequer são
homens, mas uma outra coisa. E Genebra está fechada... bloqueada do
mundo.
Embora não possa estar mais distante ou mais fechada do que o
mundo donde vim. Se ao menos soubesse como passei do exílio do
mundo dos penantes para a Casa Webster... então talvez pudesse
chegar a Genebra.”
“Uma nova força — disse consigo. — Uma nova aptidão que se
desenvolveu em mim sem saber e que todos os homens e todos os
autômatos... e talvez todos os cães... poderiam ter, se a conhecessem.
Talvez fosse o meu corpo que tornou possível essa viagem... este
corpo que os cães me deram no dia do meu sétimo milésimo
aniversário. Um corpo que consegue mais coisas do que qualquer
corpo de sangue e carne. Um corpo que sabe o que pensa um urso e o
que sonha uma raposa e que sente os pensamentos felizes dos ratos
correndo sob a erva.
O desejo de satisfação total — talvez fosse isso. A resposta aos
desejos estranhos e ilógicos por coisas raras e impossíveis, que se
tornam possíveis se soubermos a chave, se conseguirmos fazer nascer,
ou desenvolver, ou captar, a nova capacidade de dirigir o corpo e o
pensamento para a satisfação do desejo.”
“Eu atravessava as colinas todos os dias — recordou ele. —
Atravessava-as porque me não podia afastar, porque a saudade era tão
forte que me impedia de olhar com atenção, porque havia diferenças
que não queria ver.
Caminhei por ali mil milhões de vezes e foi necessário todo esse
tempo para que a força existente em mim me fizesse regressar.
Porque eu estava perdido. As palavras, os pensamentos, os
conceitos que me levaram para o mundo dos penantes, eram um
bilhete de ida: levaram-me mas não me fariam regressar. Havia outra
maneira que eu não conhecia, que ainda não conheço.”
— Disseste que havia uma maneira — Insistiu Homer.
— Uma maneira?
— Sim, uma maneira de fazer parar as formigas.
Jenkins anuiu.
— Vou ver se há ou não há. Vou a Genebra.
***
Jon Webster acordou.
É estranho — pensou — porque eu pedi a eternidade.
Devia dormir sempre, e o sempre não tem fim.
Tudo o resto era nevoento e esquecimento de sonho, mas isto
mantinha-se nítido e preciso. A eternidade, e aquilo não era a
eternidade.
Uma palavra chegou-lhe ao cérebro, como o leve bater de uma
porta distante.
Ficou deitado, escutando as pancadas, e a palavra transformou-se
em duas palavras... palavras que eram o seu nome:
— Jon Webster! Jon Webster! — ininterruptamente.
Duas palavras a martelarem-lhe o cérebro.
— Jon Webster! Jon Webster!
— Sim — respondeu o cérebro de Webster, e as palavras pararam e
não voltaram.
O silêncio e o erguer do nevoeiro do esquecimento.
E o regresso da memória. Uma coisa de cada vez.
Havia uma cidade, e o nome da cidade era Genebra.
Na cidade viviam homens, homens sem objetivo.
Os cães viviam fora da cidade... em todo o mundo, exceto na
cidade. Os cães tinham um sonho e um objetivo.
Sara subiu a colina para receber um século de sonhos.
E eu... eu — pensou Jon Webster — subi a colina e pedi a
eternidade. Isto não é a eternidade.
— Sou Jenkins, Jon Webster.
— Sim, Jenkins — disse Jon Webster, sem o dizer com os lábios, a
língua e a garganta, pois sentia o fluido comprimi-lo dentro do
cilindro, o fluido que o alimentava e impedia que se desidratasse. Um
fluido que lhe selava os lábios, os olhos e os ouvidos.
— Sim, Jenkins — disse Webster falando com o pensamento.—
Lembro-me de ti agora. Estiveste com a família desde o início.
Ajudaste a ensinar os cães. Ficaste com eles quando a família deixou
de existir.
— Ainda estou com eles — disse Jenkins.
— Pedi a eternidade — disse Webster. — Fechei a cidade e pedi a
eternidade.
— Sempre nos intrigou isso — disse Jenkins. — Porque fechaste a
cidade ?
— Os cães — disse o cérebro de Webster. — Os cães precisavam
de uma oportunidade. O homem teria estragado essa oportunidade.
— Os cães vão bem — disse Jenkins.
— Mas a cidade está agora aberta?
— Não, a cidade ainda está fechada.
— Mas tu entraste.
— Sim, mas sou o único que sabe a maneira de entrar. Ninguém
mais saberá, pelo menos durante muito tempo.
— Tempo — disse Webster. — Esqueci o tempo. Há quanto tempo,
Jenkins?
— Desde que fechaste a cidade. Dez mil anos, ano mais, ano
menos.
— E há aqui outros?
— Sim, mas estão a dormir.
— E os autômatos? Os autômatos ainda estão de guarda ?
— Os autômatos ainda estão de guarda.
Webster permaneceu imóvel e a calma desceu-lhe sobre o
pensamento. A cidade ainda estava fechada e os últimos homens
dormiam. Os cães iam bem e os autômatos ainda permaneciam de
guarda.
— Não me devias ter acordado — disse ele. — Devias ter-me
deixado dormir.
— Há uma coisa que preciso saber. Já a soube, mas esquecia-a, e é,
todavia, muito simples. Simples e terrivelmente importante.
Webster riu-se em pensamento.
— O que é, Jenkins?
— É por causa das formigas — disse Jenkins. — As formigas
incomodavam os homens. Que faziam contra elas?
— Oh, envenenávamo-las!
Jenkins ficou sem ar.
— Envenenavam-nas!
— Sim — disse Webster.— É muito simples. Usávamos um pouco
de xarope para as atrair e púnhamos veneno no açúcar, um veneno
mortal para as formigas. Mas não lhe púnhamos a quantidade exata
para as matar instantaneamente. Era um veneno lento, compreendes,
para que o levassem para o ninho. Assim matavam-se muitas, em vez
de uma ou duas.
Webster sentiu o silêncio zumbir-lhe no cérebro.
— Jenkins — disse ele —, Jenkins, estás...
— Sim, Jon Webster, estou aqui.
— É tudo o que desejas?
— É tudo o que desejo.
— Posso voltar a adormecer?
— Sim, Jon Webster, podes voltar a adormecer.
Jenkins parou no cimo da colina e sentiu o primeiro vento invernal
percorrer a terra. Lá em baixo a encosta que descia até ao rio vestia-se
com o negro e o cinzento das árvores despidas de folhas.
A nordeste erguia-se a forma sombria, o mau presságio a que
chamavam Edifício. Uma construção que crescia sem parar, tecida no
cérebro das formigas, construída com um objetivo, uma finalidade
que só as formigas podiam revelar.
Mas havia uma maneira de lidar com as formigas.
A maneira humana.
A maneira que Jon Webster lhe ensinara depois de dez mil anos de
sono. Uma maneira simples e radical, uma maneira brutal mas eficaz
Pegava-lhe numa porção de xarope muito doce, para atrair as
formigas, e juntava-se-lhe uma boa dose de veneno — um veneno
lento, para não atuar com muita rapidez.
“Uma maneira simples... com veneno — disse Jenkins.— Uma
maneira realmente simples.
Com a diferença de que era preciso saber química, e os cães não
sabiam química.
Com a diferença de que era preciso matar, e já se não matava
ninguém.
Nem as pulgas, e os cães estavam empestados de pulgas. Nem as
formigas... e as formigas ameaçam expulsar os animais do mundo a
que eles chamavam terra natal.
Há pouco mais ou menos cinco mil anos que não havia mortes
provocadas. A ideia de matar tinha desaparecido do pensamento de
todos os seres.
E é melhor assim — murmurou Jenkins. — É melhor perder-se um
mundo a ter de voltar a matar.”
Voltou-se vagarosamente e desceu a colina.
“Homer ficaria desapontado — disse de si para si.—Terrivelmente
desapontado, quando soubesse que os websters não conheciam
nenhum meio para fazer parar as formigas...”
CLIFFORD D. SIMAK

O escritor Clifford Donald Simak (1904 - 1988) foi um dos


grandes nomes da ficção científica em seu auge, na chamada
“Era de Ouro”, onde figuram também Isaac Asimov, Arthur C. Clarke,
Philip K. Dick e Ray Bradbury. Sua obra foi reconhecida por todo o
mundo e Simak ganhou três Hugo Awards e um Nebula Award, tendo
sido ainda nomeado Grande Mestre pela SFWA em 1977.
O autor figurou inúmeras vezes na Coleção Argonauta com os
livros As Flores que Pensam, Guerra no Tempo, Mundos Simultâneos,
Caminhavam como Homens e Engenheiros Cósmicos.
O livro “As cidades mortas” é uma das suas obras mais
importantes, que lhe valeu grande reconhecimento da crítica
especializada de Ficção-Científica. Trata-se de uma obra de
excepcional valia, entretecida com uma imaginação invulgar, ela dá
toda a medida do valor de Simak, do seu talento extraordinário. As
Cidades Mortas, sendo embora um produto da mais liberta fantasia,
nem por isso descreve menos um pesadelo plausível e possível.
Publicado em 1952, é surpreendente perceber como esse brilhante
autor conseguiu misturar ficção, filosofia, espiritualidade, sentimentos
humanos, robôs e animais em uma peça singular que continua
intrigante em seus questionamentos atemporais.
Leia nas páginas seguintes a súmula do próximo volume da
COLEÇÃO ARGONAUTA
MURRAY LEINSTER

TRADUÇÃO DE EURICO DA FONSECA


EDIÇÃO “LIVROS DO BRASIL” LISBOA

Murray Leinster, um dos autores mais apreciados do público ledor


da Coleção “Argonauta”, regressa a esta coleção com uma das suas
obras mais emocionantes: O Planeta Esquecido.
Uma civilização desconhecida, perdida num canto da Galáxia, é
teatro de uma aventura empolgante, uma aventura em que não faltam
lances teatrais, organizados comum sentido poderoso de suspense.
Um romance inesquecível de um autor inesquecível: Murray Leinster.
O PLANETA ESQUECIDO
118.° VOLUME DA COLEÇÃO ARGONAUTA
A SAIR NO PRÓXIMO MÊS
O PLANETA ESQUECIDO
Para lá das densas nuvens cinzentas, através das quais o sol nunca
brilha, encontra-se um planeta esquecido. É um mundo grotesco e
aterrorizante, onde a vida de plantas-animais criou uma civilização
de monstros. Havia homens no meio deste universo de horror. Burl
era um deles. Ate que um dia, Burl é invadido por uma súbita
inspiração, começando aí a sua luta pela liberdade.
Murray Leinster
15$
uma obra selecionada para a ARGONAUTA
EDIÇÃO “LIVROS DO BRASIL” LISBOA

Você também pode gostar