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Jorge Luis Borges

(1899-1986)

 Sobre os Clássicos
 
Poucas disciplinas haverá de maior interesse que a etimologia: isso se deve às
imprevisíveis transformações do sentido primitivo das palavras, ao longo do tempo.
Uma vez dadas tais transformações, que podem beirar o paradoxo, de nada ou quase
nada nos servirá para o esclarecimento de um conceito a origem de uma palavra.
Saber que cálculo, em latim, quer dizer pedrinha e que os pitagóricos usaram essas
pedrinhas antes da invenção dos números, não nos permite dominar os arcanos da
álgebra; saber que hipócrita era ator e ‘persona’, máscara, não é um instrumento
valioso para o estudo da ética. Da mesma forma, para fixar o que hoje entendemos
por clássico, é inútil saber que esse adjetivo provém do latim ‘classis’, frota, que
mais tarde adquiriria o sentido de ordem. (Lembremos, de passagem, a formação
análoga de ‘ship-shape’).
 
O que é, agora, um livro clássico? Tenho ao alcance da mão as definições de Eliot,
Arnold e Sainte-Beuve, sem dúvida razoáveis e luminosas, e gostaria de estar de
acordo com esses ilustres autores, mas não vou consultá-los. Completei sessenta e
tantos anos; na minha idade, coincidências ou novidades importam menos que o que
consideramos verdadeiro. Vou me limitar, portanto, a declarar o que pensei sobre
esse ponto.
 
Meu primeiro estímulo foi uma “História da Literatura Chinesa” (1901) de Herbert
Allen Giles. No seu segundo capítulo, li que um dos cinco textos canônicos que
Confúcio editou é o “Livro das Mutações” ou “I Ching”, formado por 64
hexagramas, que esgotam as combinações possíveis de seis linhas partidas ou
inteiras. Um dos esquemas, por exemplo, consta de duas linhas inteiras, uma partida,
e três inteiras, dispostas verticalmente. Um imperador pré-histórico teria descoberto
essas linhas na carapaça de uma das tartarugas sagradas. Leibniz imaginou ver nos
hexagramas um sistema binário de numeração; outros, uma filosofia enigmática;
outros, como Wilhelm, um instrumento para a adivinhação do futuro, já que às 64
figuras correspondem as 64 fases de qualquer empreendimento ou processo; outros,
um vocabulário de certa tribo; outros, um calendário. Lembro que Xul Solar
costumava reconstruir esse texto com palitos ou fósforos. Para os estrangeiros, o
“Livro das Mutações” corre o risco de parecer uma mera ‘chinoiserie’; mas milênios
de gerações de homens muito cultos o leram e releram com devoção e continuarão
lendo. Confúcio declarou a seus discípulos que se o destino lhe outorgasse mais cem
anos, dedicaria a metade deles a seu estudo e ao dos comentários, ou asas.
 
Escolhi, deliberadamente, um exemplo extremo, uma leitura que exige um ato de fé.
Chego, agora, à minha tese. Clássico é aquele livro que uma nação ou um grupo de
nações ou o longo tempo decidiram ler como se em suas páginas tudo fosse
deliberado, fatal, profundo como o cosmos e capaz de interpretações sem fim.
Previsivelmente, essas decisões variam. Para os alemães e austríacos, “Fausto” é uma
obra genial; para outros, uma das mais famosas formas do tédio, como o segundo
“Paraíso” de Milton ou a obra de Rabelais. Livros como o de Jó, a “Divina
Comédia”, “Macbeth” (e, para mim, algumas das sagas do Norte) prometem uma
longa imortalidade, mas nada sabemos do futuro, exceto que diferirá do presente.
 
Uma preferência pode muito bem ser uma superstição. Não tenho vocação para
iconoclasta. Por volta de 1950, acreditava, sob a influência de Macedónio
Fernández, que a beleza é privilégio de uns poucos autores; agora sei que é
comum e que está à nossa espreita nas páginas casuais do medíocre ou numa
conversa de rua. Assim, meu desconhecimento das letras malaias ou húngaras é
total, mas estou seguro de que, se o tempo me oferecesse a ocasião de estudá-las,
nelas encontraria todos os alimentos que o espírito requer. Além das barreiras
linguísticas intervêm as barreiras políticas ou geográficas. Burns é um clássico na
Escócia; ao sul do Tweed, tem menos interesse que Dunbar ou Stevenson. A glória
de um poeta depende, em suma, da excitação ou da apatia das gerações de homens
anônimos que a põem à prova, na solidão das bibliotecas.
 
As emoções que a literatura suscita talvez sejam eternas, mas os meios devem
variar constantemente, pelo menos de um modo levíssimo, para não perderem
sua virtude. Vão se desgastando à medida que o leitor os reconhece. Daí o perigo
de afirmar que existem obras clássicas e que elas continuarão como tais para
sempre.
 
Cada um pode descrer de sua arte e seus artifícios. Eu, que me resignei a pôr em
dúvida a perduração indefinida de Voltaire ou Shakespeare, creio (nesta tarde,
num dos últimos dias de 1965) na de Schopenhauer e na de Berkeley.
 
Clássico não é um livro (repito) que necessariamente possui estes ou aqueles méritos;
é um livro que as gerações humanas, premidas por razões diversas, leem com prévio
fervor e misteriosa lealdade.
 
Referências:
 
BORGES, Jorge Luis. Sobre os clássicos. In: __________. Nova antologia pessoal.
Tradução de Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 272-275.

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