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GÊNERO DISTÓPICO INTERNACIONAL

04 A Revolução dos Bichos, de George Orwell 52 A Metamorfose, de Franz Kafka


05 Fahrenheit 451, de Ray Bradbury 53 O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway
06 O Senhor das Moscas, de William Golding 54 O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Brontë
07 A Máquina do Tempo, de H. G. Wells 55 Primeiro Amor, de Ivan Turguêniev
08 A Estrada, de Cormac McCarthy 56 A morte de Ivan Ilitch, de Lev Tolstói
09 1984, de George Orwell 57 O Jogador, de Dostoiévski

RIO
10 Submissão, Michel Houellebecq 58 Cândido ou o Otimismo, de Voltaire
11 Admirável Mundo Novo, Aldous Huxley 59 Um conto de Natal, de Charles Dickens
60 Bartleby, o Escriturário, de Herman Melville
GÊNERO FANTASIA 62 Orgulho e Preconceito, de Jane Austen
64 O Estrangeiro, de Albert Camus
13 Deuses Americanos, de Neil Gaiman 65 Jane Eyre, de Charlotte Brontë
14 O Livro da Selva, de Rudyard Kypling 67 Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez
15 Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll 69 A Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera
16 O Hobbit, de J. R. R. Tolkien 71 Grandes Esperanças, de Charles Dickens
17 As Crônicas de Nárnia, de C. S. Lewis 72 O conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas
73 O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger
GÊNERO TEATRO 75 O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde
76 Lolita, de Vladimir Nabokov
19 O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna 77 O Processo, de Kafka
20 Lisbela e o Prisioneiro, de Osman Lins 78 Crime e Castigo, de Dostoiévski
21 Lisístrata: A Greve dos Sexos, de Aristófanes 80 O Vermelho e o Negro, de Stendhal
22 Beijo no Asfalto, de Nelson Rodrigues 81 A Letra Escarlate, de Nathaniel Hawthorne
23 Édipo Rei, de Sófocles 83 Madame Bovary, de Flaubert
24 À Espera de Godot, de Samuel Beckett 85 Anna Kariênina, de Tolstói
26 Hamlet, de William Shakespeare 86 Nosso Homem em Havana, de Graham Greene
28 A Megera Domada, de William Shakespeare 89 Persuasão, de Jane Austen

NACIONAIS GÊNERO AVENTURA

31 O Alienista, de Machado de Assis 92 As Minas do Rei Salomão, de Henry Rider Haggard


32 Vidas secas, de Graciliano Ramos 93 Robinson Crusoé, de Daniel Defoe
33 O Quinze, de Rachel de Queiroz 94 As Aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain
34 Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida 95 O Mundo Perdido, de Arthur Conan Doyle
35 A Estrela Sobe, de Marques Rebelo 96 Os Três Mosqueteiros, de Alexandre Dumas
36 A Morte e a morte de Quincas Berro d'água, de Jorge Amado 97 As Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift
37 O Cobrador, de Rubem Fonseca
38 A Alma da Festa, de Alexandre Soares Silva GÊNERO TERROR
39 A Casa dos Budas Ditosos, de João Ubaldo Ribeiro
40 Milagre em Paraisópolis, de Fábio Gonçalves 99 Frankenstein, de Mary Shelley
41 Dom Casmurro, de Machado de Assis 100 Assassinatos na Rua Morgue, de Edgar Allan Poe
43 Incidente em Antares, de Érico Veríssimo 101 Drácula, de Bram Stoker
44 Angústia, de Graciliano Ramos 102 O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson
45 O triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto 103 Carrie, a Estranha, de Stephen King
46 Menino de Engenho, de José Lins do Rego
47 A Relíquia, de Eça de Queiroz*
48 O Encontro Marcado, de Fernando Sabino
50 Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis
DIS-

PICO
Gênero
Distópico
Na distopia, o futuro (ou presente) deu MUITO errado por qualquer
razão que vá desde um governo totalitário, passando por revoluções
robóticas e chegando até cenários pós-apocalípticos. É tiro, porrada
e bomba. É perseguição, repressão, tristeza e só lamento.

O Exterminador do Futuro é uma distopia. Matrix é uma distopia.


Mad Max é uma distopia. O Trunks do futuro, no Dragon Ball Z,
vivia numa distopia. Até o Big Brother, na Globo, surgiu da mais
famosa distopia de todos os tempos: 1984.

Só que também temos as distopias literárias. Vamos a elas.

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01.A Fazenda dos Animais
(ou A Revolução dos
Bichos), de George Orwell
DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Um porco ancião, gordo e com os cabelos e barba


brancos, certo dia tem um sonho profético:
chegaria o dia em que os animais da fazenda do
sr. Jones deixariam de ser explorados pelo
fazendeiro e colheriam eles mesmos os frutos do
seu trabalho! O porco morre e outros dois porcos
resolvem transformar o sonho em realidade,
criando sete mandamentos que podem ser
resumidos num só: "duas pernas ruim, quatro
pernas bom!”. Viva la Revolución!

"A Fazenda dos Animais", ou "Revolução dos


Bichos", de George Orwell, é uma fábula sobre a
Revolução Russa. O escritor — um socialista —
ficou p*to de raiva porque todo mundo na
esquerda (e até na direita) estava passando pano
para Stalin. Resolveu botar a boca no trombone.
Pensou num livro com vocabulário
absolutamente simples e uma trama curtinha
para que o mundo inteiro pudesse traduzi-lo com
facilidade e qualquer pessoa conseguisse
entendê-lo.

Deu certo. Só que o livro, além de ser o resumão


de um dos piores regimes políticos da história
humana, também é charmoso, engraçado e
aterrorizante por si mesmo — ainda que você não
perceba, por exemplo, que o porco Napoleão é
Stalin ou o porco Bola de Neve, Trótski.

Vocabulário: linguagem simples, vocabulário


acessível e frases curtas. Qualquer leitor
consegue ler.

Trama: é facílimo entender a trama do livro em si. EDIÇÃO RECOMENDADA


Ou seja: a história de como os animais, inspirados
A Revolução dos Bichos - George Orwell.
por um porco profético e falecido, tomam a
Editora Sétimo Selo. Tradução de Pedro
fazenda para si e as coisas… bem, não saem lá
Mohallem. 2021
muito como esperado. Mas A Revolução dos
Bichos é uma alegoria. Orwell está contando a
A Fazenda dos Animais: um conto de fadas -
história da Revolução Russa usando bichos. Caso
George Orwell. Editora Penguin-Companhia.
você queira saber exatamente quem os bichos
Tradução de Paulo Henriques Britto. 2020.
estão satirizando na vida real, vai precisar estudar
um pouco quem foi quem na Revolução Russa.
Não vai fazer mal saber como a Europa andava nos COMPRE AQUI! COMPRE AQUI!
anos logo antes da Segunda Guerra mundial,
também. Assim, você vai conseguir ler o livro tanto
como uma história em si quanto como alegoria.

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02.Fahrenheit 451,
de Ray Bradbury

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Imagine o seguinte: os bombeiros não existem


para tirar gatinhos das árvores, posar quase
pelados para calendários sexy ou apagar
incêndios. Não, não. Os bombeiros existem para
queimar — livros. Exato. Tacar fogo em livros até
que as páginas e a capa e tudo o mais suma sob
a temperatura estratégica de… 451 fahrenheit.

Ler livros é proibido pelo Estado. Tê-los, um


crime. Eis o mundo criado por Ray Bradbury.

Até que Montag, um dos bombeiros destruidores


de livros, conhece uma garotinha que adora ler. E
a guria faz algo mais perigoso do que qualquer
lança-chamas: enfia uma pergunta na cabeça de
Montag. Por que ler é algo tão perigoso?

O perseguidor torna-se um perseguido ao


descobrir o mundo libertador e perigoso da
leitura. Talvez valha mais a pena viver livremente
sendo um homem-livro do que viver para
queimá-los.

Vocabulário: A linguagem é muito, muito


tranquila. O cenário é distópico, mas no livro não
há palavras desconhecidas nem frases EDIÇÃO RECOMENDADA
complexas. Todos os diálogos são fáceis e, alguns, Fahrenheit 451. Ray Bradbury. Tradução de
bem humorados. Cid Knipel. Editora Biblioteca Azul. 2012.

Trama: A trama é bastante linear. Ou seja: COMPRE AQUI!


começo, meio e fim perfeitamente bem definidos.
Talvez alguns nomes de escritores e pensadores
citados na obra possam ser desconhecidos e
deixar você um pouco perdido. A solução é
simples: dar uma pesquisadinha no Google sobre
eles. Exemplo é o teólogo, médico e musicista
Albert Schweitzer. Eu lhe garanto que se o autor
quis citá-los, é porque vale a pena conhecê-los.

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03.O Senhor das Moscas,
de William Golding

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

O homem é o lobo do homem". que havia na ilha alguma fera inominável,


horrenda, quase sobrenatural. Um capeta
Já ouviu essa frase? Foi o cientista político Thomas selvagem.
Hobbes quem a popularizou no seu livro
importantíssimo "Leviatã". A ideia é simples (e quase E aí todas as desgraças subsequentes estão
autoevidente): o homem é o seu próprio predador. armadas. Porque Ralph insiste que não existe
demônio sobrenatural nenhum e chama todo
Ou seja, o instinto humano não é algo saído dos mundo à razão e cooperação. Jack, por sua vez,
ursinhos carinhosos. Não é que alguns sejam lobos acredita com igual firmeza que o melhor caminho
se fingindo de ovelhas. É que, no fundo, todos nós é todo mundo abraçar a selvageria,
temos algo de lobo. Sem as leis e as INCONTÁVEIS transformarem-se numa tribo e agirem como
restrições e punições de uma sociedade civilizada, caçadores: juntos, conseguiriam acabar com a
ameaçados e acuados uns pelos outros… num piscar raça daquele demônio.
de olhos cairíamos no cada um por si e o resultado?
Meninos sumindo, confusões e burrices de toda
A selvageria.
espécie, traições, brigas, inveja – e a constante
frustração de ninguém saber, afinal de contas, o que é
Senhor das Moscas é um livro sobre selvageria. mais importante e o que deve ser feito ou não para que
todos sobrevivam.
Um grupo de moleques se descobrem sozinhos
numa ilha depois do avião em que estavam cair e Senhor das Moscas começa relativamente devagar e
matar todos os adultos. vai se complicando de forma selvagem, cruel,
sanguinária e absolutamente inesperada até um clímax
que vai revirar seu estômago e revelar que, no fundo,
No começo, a molecaiada acha a tragédia TOPZERA.
não estamos assim tão longe da barbárie.
Passar o dia inteiro sem um adulto para lhes encher
o saco e dizer o que poderiam ou não poderiam
fazer? Sem ter de ir para a desgraça da escola, sendo
obrigados a ouvir algum professor zumbi dar uma
aula broxante sobre qualquer coisa que não queriam
saber e nunca iriam usar na vida? 10/10.

Logo, porém, a chapa começa a esquentar. Há dois


rapazes mais velhos, que naturalmente poderiam
ser líderes: Ralph, carismático, afável e bonito; e Jack,
corajoso, porém radical e pavio-curto. Claro, todos
escolhem Ralph e já criam em Jack o bom, velho e
muito humano ressentimento.

Depois, alguns guris menores começam a insistir

Vocabulário: a linguagem do livro é realmente


muito tranquila e simples. Golding é um escritor que
consegue ser muito visual sem cair na prolixidade. Seu EDIÇÃO RECOMENDADA
estilo é direto, claro, sem frescuras ou exageros
sentimentalóides. Quase brutal. O Senhor das Moscas - William Golding.
Editora Alfaguara. Tradução de Sérgio
Flaksman. 2014.
Trama: zero dificuldades ou complicações com a COMPRE AQUI!
trama.

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04.A Máquina do Tempo,
de H. G. Wells

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Quem nunca viu uma história sobre viagem no


tempo? De Volta para o Futuro, O Exterminador do No – repito – absurdamente longínquo ano de
Futuro, o último filme dos Vingadores, Click, O Planeta 802701, o viajante descobriu que a evolução
dos Macacos, Harry Potter e o Prisioneiro de tivera tempo suficiente para mexer os
Azkaban… até o glorioso Austin Powers viajou no pauzinhos de uma forma grotesca e separar a
tempo, diacho! humanidade em duas raças: os ricos tinham
se transformado nos Éloi, umas criaturinhas
Pois bem: está na hora de você conhecer o livro que frívolas e infantis (mais ou menos como
INVENTOU essa pira de viagem no tempo. Sem ele, influencers); e os pobres, antigamente ou
sabe-se lá se teríamos joias como a trilogia de Marty presentemente trabalhadores, haviam se
McFly, o recente "A Chegada" ou aquele filme horrível transformado na temível raça dos Morlock:
em que o Martin Lawrence cai no tempo do Rei criaturas subterrâneas, parecidas com
Arthur (nem me pergunte o nome)! enormes macacos brancos, que antes tinham
sido subservientes ao Éloi, mas agora viviam
"A Máquina do Tempo" foi o livro de estreia (e que para atacá-los e tentar destruí-los quando a
estreia!) de Herbert George Wells, um dos pais da noite caía.
ficção científica.
"A Máquina do Tempo" é uma curiosa e
A história é simples: eis que num jantar corriqueiro, envolvente mistura de aventura, distopia,
respeitável, cheio de pessoas inglesas normais, ficção científica e quase terror. Um livro que
surge um cabra todo DESGRENHADO. Um fulano sobrevive até hoje não só porque foi
sujo, lascado, escangalhado e possivelmente fedido. importante – mas porque é, acima de tudo,
Pior: todo mundo conhecia o sujeito! uma baita história contada por um dos
mestres da arte de contar histórias.
Até aqui, claro, a história poderia ser apenas as
crônicas do tio Geraldo, o pé-de-cana que temos em
toda família.

Só que o sujeito escangalhado não era o tio Geraldo,


e nem estava bêbado. Na verdade, ele acabara de vir
duma viagem que fizera ao ano absurdamente
longínquo de 802701! E como ele tinha conseguido
viajar no tempo? Por meio de uma geringonça que
tinha criado séculos antes de o Doc Brown ter
enfiado um capacitor de fluxo num DeLorean.

Vocabulário: H. G. Wells não media palavras quando


o assunto era fundamentar cientificamente seus livros.
Então é possível que alguns leitores fiquem um pouco
perdidos com o primeiro capítulo, por exemplo, em que
o viajante do tempo descreve as quatro dimensões da
existência e dá uma explicação filosófica do tempo. Mas
não se preocupe: não é preciso entender todas as
explicações para entender e aproveitar a história do
livro. EDIÇÃO RECOMENDADA
Editora Zahar. Tradução de Adriano
Trama: nenhuma observação especial sobre a Scandolara. 2019.
estrutura do livro. O viajante conta a história da viagem
ao futuro que ele já fez.
COMPRE AQUI!

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05.A Estrada,
de Cormac McCarthy

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Alguns autores já nascem clássicos. Parece que já


bebezinhos, ainda cheios daquela gosma uterina e O livro é brutal. A atmosfera é REALMENTE
recém-saídos do tobogã vaginal, gritando até as horrível. Pesada. Claustrofóbica. Não é para
cordinhas vocais pedirem arrego, o médico lhes vira estômagos fracos. O pai é obrigado a dar um
o bumbunzinho e ali dá uma carimbada: CLÁSSICO. tiro na cara de um sujeito que tinha tentado
raptar o menino para estuprá-lo e depois
Cormac McCarthy é um deles. comê-lo. Uma fome desgraçada, de revirar as
tripas, é contínua. Não se pode confiar em
No fundo, "A Estrada" é um livro sobre a relação entre absolutamente ninguém, nunca. Não existe
um pai e seu filho. História sobre manter a esperança um mísero raio de sol. Tudo colapsou. O
diante de uma incalculável tragédia; história sobre o mundo ruiu. As pessoas se comem umas às
amadurecimento na marra, a selvageria da natureza outras, como ratos. Tudo é sujo, escuro,
humana e também sua insuspeita e inesperada seboso, sinistro, triste.
grandeza.
Mas se não existe luz de fora, talvez ainda
Só que o pai e o filho estão num futuro próximo – e as exista uma luz dentro… no espírito de um pai e
coisas não deram lá muito certo para a humanidade. filho que se recusam a virar bichos. Recusam-
Na verdade, a lei de Murphy pegou HARD. O mundo -se a perder a esperança e a humanidade.
está absolutamente devastado. As metrópoles estão Recusam-se a desistir.
em ruínas. A vegetação e as florestas transforma-
ram-se em cinzas. O céu foi coberto por fuligem e Recusam-se a largar, em busca de uma vida
agora só o que existe é uma quase noite perpétua. menos horrível, a estrada.
Não se pode ver direito à frente. As águas estão
envenenadas e estéreis.

O que sobrou da raça humana agora está espalhada


em bandos solitários, hostis uns aos outros e quase
sempre entre si mesmos. Todos vagueando à busca
especialmente de uma coisa: comida.

Inclusive humana.

Pai e filho estão na estrada em direção à costa. Têm


esperança de que a vida ali será menos pior. Antes,
estavam em três. Porém a mulher, incapaz de
aguentar aquele inferno na terra, se mata. Larga o
filho. O pai, então, torna-se também mãe, sacerdote e
guarda-costas do filho. Se a mãe fugira com a morte,
o pai estava disposto a fazer o maior sacrifício de
todos: viver.

Vocabulário: McCarthy não usa um vocabulário


difícil. De estilo moderno, o livro intercala umas poucas
frases mais longas e elaboradas com frases curtas,
secas. A leitura é muito visual e imersiva.
EDIÇÃO RECOMENDADA
Editora Zahar. Tradução de Adriano
Scandolara. 2019.
Trama: não há dificuldades com a trama. A narrativa
é linear.
COMPRE AQUI!

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06.1984,
de George Orwell

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

A mais famosa distopia de todos os tempos; o Big É uma sanha total, uma fome demoníaca de
Brother original. controle que nunca se farta e, na verdade,
como um círculo vicioso saído do inferno, fica
Winston Smith vive numa Londres… diferente. Pode com mais fome quanto mais come.
esquecer aquelas roupas vermelhas exuberantes e
aqueles chapéus iguaizinhos ao cabelo da Margie "1984" é o retrato sufocante e horrendo da
dos Simpsons. Pode esquecer as icônicas cabines de União Soviética. Não com descrições abstratas,
telefone ou aqueles táxis charmosos. genéricas, como alguém de fora fazendo uma
reportagem ou exposição científica. Mas como
A Londres de Winston Smith é caída, suja, cinzenta, alguém de dentro. Na pele de Winston Smith,
miserável. Falta comida. Faltam roupas. Falta tinta sentimos o gostinho do horror de uma vida
nas paredes carcomidas. Falta lógica, derrubada pela completamente sem liberdade. Uma vida sem
repetição infinita de slogans do duplipensar e da espaço para novas ideias, relacionamentos ou
novilíngua: qualquer confiança no próximo. Uma vida sob
o medo ininterrupto e onipresente.
"GUERRA É PAZ. LIBERDADE É ESCRAVIDÃO. IGNOR
NCIA É FORÇA." O inferno na terra.

Na verdade, faltam até palavras, abolidas pela polícia


*do bem* e proibidas pelo Estado.

Só não falta uma coisa: vigilância. Ah, meu filho, aí


temos de sobra. É vigilância para Facebook nenhum
botar defeito!

Em tudo quanto é lugar temos um pôster gigantesco


do Grande Irmão, no qual se lê "O GRANDE IRMÃO
ESTÁ VIGIANDO VOCÊ". O governo pode enxeretar
sua casa por meio de uma tevê gigantesca que você
nunca pode desligar. Se você disser uma palavra
errada e alguém ouvi-la, é cana e trabalho forçado.
Se namorar, é cana e trabalho forçado. Se tiver algum
amigo próximo demais, cana e trabalho forçado para
os dois – separados, claro.

Se você NÃO vir as propagandas e aspas, notícias do


Partidão, adivinha? Cana e trabalho forçado. O
governo também fizera o favor de queimar todos os
livros antigos e literalmente tinha reescrito a história.

Vocabulário: George Orwell é um escritor


muitíssimo visual. Você mergulha na história logo na EDIÇÃO RECOMENDADA
primeira página. Aquele mundo horrível ganha vida e
você quase se esquece de que está lendo. Editora Companhia das Letras. Tradução de
Heloisa Jahn. 2009

Trama: o livro pode ser lido sem que você saiba Editora Penguin. Tradução de Alexandre
exatamente quais instituições ou práticas do mundo Hubner. 2020
real Orwell está recriando na sua história.
COMPRE AQUI! COMPRE AQUI!

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07.Submissão,
de Michel Houellebecq

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Com certeza um dos maiores escritores vivos – se


não o maior escritor vivo –, Houellebecq é the real Um partido muçulmano, criado fazia pouco
deal. E Submissão é livro de uma coragem que, hoje tempo, alia-se com os socialistas contra o
em dia, seria muito fácil imaginarmos que não existe partido da direita e consegue ganhar as
mais. eleições.

O ano é… 2022. O lugar, a França. Da noite para o dia, o mundinho previsível e


esquadrinhado de François vira de cabeça para
François é um professor universitário e acadêmico baixo. A Irmandade Muçulmana, apoiada pelas
parisiense de respeito. Um medalhão. Professor na esquerdas e aproveitando pautas conservado-
Sorbonne, especialista no autor decadente Huys- ras, começa a espalhar uma influência islâmi-
mans, mal terminou de defender sua tese de douto- ca enorme e poderosa até que a faculdade em
rado (bêbado), François já percebe que talvez a que o sujeito trabalhava é comprada pelos
melhor parte de sua vida houvesse passado. sauditas e reinventada como a Universidade
Islâmica de Paris-Sorbonne.
No mais, o sujeito gasta os próximos dez anos sem
criar uma única produção intelectual que preste, François, se quiser manter sua carreira
fazendo o mínimo que lhe fosse exigido em relação à universitária e vidinha de antes, vai precisar se
vida intelectual e salvando algum esforço mínimo converter ao Islã e à nova ordem muçulmana.
para comer suas alunas – o que, confessa, ia ficando E agora, José? O que vai fazer François?
a um só tempo mais fácil e excitante à medida que o Submeter-se para manter sua vida vazia ou
sujeito crescia na hierarquia da faculdade. rebelar-se e encontrar, talvez, a liberdade de
espírito?
François, em suma, é um quarentão solteiro e cínico
que subsiste à base de miojos, trepadas casuais com
novinhas universitárias e fugas ocasionais de
ex-namoradas igualmente quarentonas, solteiras e
agora à beira dum colapso, que o fazem lembrar-se
de como sua vida é tão oca quanto a delas.

Por outro lado, não é que François fingisse que sua


vida era maravilhosa. Ele sabia que, naquela toada,
iria morrer rápido, infeliz e sozinho. E queria morrer
rápido, infeliz e sozinho? Só mais ou menos.

E a coisa fica nessa paralisia preguiçosa, nessa


languidez flácida, até surgir uma reviravolta que
tanto tem de absurda e irrealista quanto tem de…
provável.

Vocabulário: a linguagem é surpreendentemente


simples. Sério. O livro é quase translúcido. O estilo é
moderno, com frases curtas e um estilo seco, cortado, EDIÇÃO RECOMENDADA
fragmentário – como a psicologia do personagem
principal. Submissão. Michel Houellebecq. Tradução de
Rosa Freire D'aguiar. Editora Alfaguara. 2015.
Trama: A narrativa segue uma sequência lógica,
cronológica. Os capítulos são curtos e bem amarrados. COMPRE AQUI!
A única coisa que talvez possa causar alguma
confusão, caso você não esteja prestando atenção, são
as politicagens. Nada que não se resolva com um
pouquinho mais de foco.

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08 Admirável Mundo Novo,
de Aldous Huxley

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Imagine o nosso mundo, muitos séculos à frente, da pelo Estado perfeito e distribuída gostosa-
com paz e estabilidade perfeitas. Digo, REALMENTE mente à população para acalmar-lhe os
perfeitas. Um mundo em que não há inveja, mesqui- nervos e deixar todo mundo outra vez… feliz.
nharias, ciúmes, crimes, brigas, estranhamentos, Em paz. Com perfeita estabilidade.
ansiedade, abalos, revoluções, tédio, pavor, devoção,
êxtases, repulsa… imaginou? Porque, sim: os dois mundos são o mesmo.

Agora imagine um mundo no qual os bebês não têm E assim caminha o mundo, sob um controle
mais pais e mães. Que, na verdade, não nascem. São apavorante, até que dois sujeitos começam a
criados em laboratório, submetidos a mini-torturas e sentir um comichão de desajuste: Bernard
colocados para alimentar-se de pseudossangue. Um Marx e Helmholtz Watson, dois alphas que já
mundo em que crianças são eletrocutadas para que não se sentem assim tão perfeitamente
"aprendam" o que é *certo* e forçadas a brincadeiras estáveis e felizes…
sexuais entre si.
Se George Orwell acertou em cheio com seu
Crianças às quais dizem que tudo tem de ser satisfei- "1984" em relação ao regime soviético, Aldous
to porque qualquer repressão pode dar abertura às Huxley acertou ainda mais em cheio com seu
emoções. E as emoções são más porque podem "Admirável Mundo Novo" em relação ao regime
trazer instabilidade. Intimidade? Família? Religião? democrático ocidental. Ou seja: em relação ao
Monogamia? Esqueça. Tudo muito instável. nosso mundo.

Um mundo de intoxicação coletiva, de controle


genético, de selvagem adestramento comportamen-
tal. Mundo rigorosamente separado por castas, todas
igualmente condicionadas desde o nascimento,
hipnotizadas durante o sono com frases "cidadãs".
Um mundo em que não pode haver individualidade
ou liberdade. Em que todos são igualmente peças
padronizadas e irrefletidas de uma gigantesca
"máquina produtiva".

Acima de tudo, um mundo drogado. Em que, quando


nem mesmo o condicionamento e controle genético
dão conta de apagar as emoções "instáveis", a
gloriosa ciência traz o resultado: uma droga produzi-

Vocabulário: a linguagem, em si, não é complicada.


Huxley tem um estilo claro, direto, que chega quase à EDIÇÃO RECOMENDADA
beira do simplório. Porém, aqui e ali existem algumas
palavras técnicas para explicar tecnologias futuristas Admirável Mundo Novo. Aldous Huxley.
inventadas. Tradução de Vidal de Oliveira. Editora
Biblioteca Azul. 2014.
Trama: Não se assuste com o começo do livro: ali, o
estilo é especialmente descritivo e muito, muito seco. COMPRE AQUI!
Parece quase um manual de instruções, cheio de
informações bizonhas e vocabulário técnico. O resto
do livro não é assim. A ideia ali é que você, leitor, entre
no mundo técnico e científico da história.

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Gênero
Fantasia
Aqui não existe muito segredo: tem magia? Seres fantás-
ticos (unicórnio, centauro, fada, bruxa, duende, dragão,
etc.)? Um outro mundo dentro, embaixo ou para além
deste nosso? Então é fantasia.

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09.
Deuses Americanos,
de Neil Gaiman

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Shadow, um bandidinho de quinta categoria, logo Techboy, o deus da tecnologia. Media, a deusa
que sai da prisão é convocado por um certo Sr. da mídia. Mr. World, o deus da globalização. Os
Wednesday para levá-lo de carro por uma viagem Intangíveis, as divindades do livre mercado.
aos Estados Unidos. E até aí tudo estaria muito bem e
muito normal. Os novos deuses, modernosos, são arrogan-
tes. Folgados. Desprezam os deuses antigos e
Se o Sr. Wednesday não fosse Odin. querem exterminá-los. Só que os deuses
antigos não estão a fim de sumir do mapa. O
A ideia de "Deuses Americanos" é simples. Primeiro, único resultado possível?
deuses existem. Assim mesmo, no plural.
Guerra.
Sabe aquela deusaiada das antigas mitologias? Thor,
Odin e Loki, deuses nórdicos? Pois é. Existem. Mas Neil Gaiman mistura fantasia com mitologia
também existem leprechauns (duendes) dos celtas. com crítica social com uma história de viagem
Anubis e Toth, da mitologia egípcia? Vivinhos. O djin, com sei lá mais o quê e sai com, talvez, seu
espírito sutil da mitologia árabe? Ali continua sutil, livro mais aclamado. No mínimo, de tédio você
mas anda entre nós. Vulcano e Hefesto, da mitologia não vai dormir lendo isso aqui.
romana; a Rainha de Sabá; Anansi, um deus africa-
no… o rolê mitológico está completo.

Só que nem tanto. Porque os antigos deuses estão


enfraquecidos. Foram chutados para escanteio já
que o homem moderno, prafrentex, jura que já ficou
maduro e deixou essa conversa de deuses para lá. E
aí o que aconteceu?

Novos deuses surgiram. Não de forma direta, como


antes. Por meio de rituais, liturgias e sacrifícios
explícitos. Os novos deuses usam a tecnologia,
lendas urbanas, teorias da conspiração, hábitos
diários (que se tornam rituais) e até acidentes e
assassinatos – que surrupiam para si, como se
houvessem sido sacrifícios de sangue.

Vocabulário: A linguagem é simples. Neil Gaiman


escreve frases curtas e é bastante objetivo. A única
coisa que pode causar-lhe estranheza são as palavras
de outras mitologias. Mas nada que vá atrapalhar a
leitura.

Trama: O livro tem um tamanho considerável e EDIÇÃO RECOMENDADA


talvez alguns leitores julguem o passo meio arrastado. Deuses Americanos. Neil Gaiman. Tradução
Mas tudo foi pensado pelo autor para que, no final,
de Fernando Scheibe e Leonardo Alves.
surja um grande clímax.
Editora Intrínseca. 2016.

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10.O Livro da Selva,
de Rudyard Kypling

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Está na hora de você conhecer o Mogli original. Não, –, mas vou dizer só uma coisa: o que torna o
ele não foi criado pela Disney. protagonista

Rudyard Kipling, um dos mais populares escritores O livro, admito, aqui e ali exagera na história do
ingleses de todos os tempos, não era bem… inglês. "homem branco e civilizado é mau e a nature-
Na verdade, nasceu na Índia Britânica e ali morou até za é pura". Mas as partes boas superam, e
os seis anos de idade, aliás falando hindi. muito, os exageros moralistas clichês: Kipling
era um maravilhoso contador de histórias.
Mas o que isso tem a ver com o livro? Tudo. "O Livro
da Selva" é, na verdade, uma coletânea de contos Os contos têm aquele ar gostoso de "história
que Kipling foi escrevendo ao longo dos anos em contada ao redor da fogueira." A linguagem é
várias revistas diferentes, todos unidos em torno de fácil, fluida; os personagens são marcantes e o
uma ideia: histórias que acontecem longe da cidade. autor não perde tempo com digressões ou
Nos cantos e recantos inexplorados da terra. Ou, em blá-blá-blás. Um ponto forte são suas descri-
linguagem mais chucra e abrasileirada: "no ** do ções. Kipling é absurdamente VISUAL. Você lê
Judas." e enxerga tudo, como se estivesse ali. Por
outro lado, as histórias nada têm de simplórias.
A inspiração de boa parte das histórias Kipling foi Não são historiazinhas bobocas, clichês.
buscar nos mitos e folclore hindu, na filosofia oriental
e nas memórias dos anos que vivera na Índia. E foi a Bora descobrir a versão original da história que
combinação única de sua posição quase estrangeira, a Disney gravou no seu coração? Versão muito
uma criatividade exuberante e a educação de mais detalhada, complicada e rica?
gentleman inglês que nos deu a lenda do menino
encontrado pelo Pai Lobo e criado entre os bichos da
selva: Mowgli.

Mowgli, um guri perdido no meio das poderosas


criaturas da Natureza, vai crescendo em força e
malandragem selvática enquanto interage com
bichos tão variados e inesquecíveis como o urso
Baloo, a pantera Bagheera, o elefante Hathi, o tigre
manco (e traiçoeiro, e sanguinolento) Shere Kahn…
sem contar sua mãe loba Raksha – imagina ter uma
mãe que, em vez da proverbial Havaianas, tem na
boca uma aterrorizante e assassina fileira dentária?

Talvez seja uma burrice ingênua sair tentando


explicar por que Mogli é interessante – afinal de
contas, é um MOLEQUE CRIADO POR LOBOS, diacho!

EDIÇÃO RECOMENDADA
Vocabulário: muito, muito tranquilo. Kipling é mais
um dos autores que me parecem servir Editora Zahar. Versão de bolso de luxo.
maravilhosamente como transição de livros ruins, Tradução de Alexandre Barbosa de Souza.
pobres, mal escritos, para livros BONS e acessíveis. 2021

Editora Zahar, versão grande. Tradução de


Trama: talvez você precise prestar atenção a alguns Alexandre Barbosa de Souza. 2016
nomes e, se quiser enriquecer a leitura, ou comprar a
edição que sugiro aqui embaixo (com notas) e/ou fazer COMPRE AQUI! COMPRE AQUI!
pesquisas rápidas no Google sobre locais e datas
mencionados.

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11.Alice no País das
Maravilhas,
de Lewis Carroll
DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

vestindo roupas absolutamente adoráveis e


Alice, uma guriazinha tão loira quanto esperta, e tão falando entre si com fleuma britânica e todo
esperta quanto enxerida, certo dia cai no sono no tipo de sem noção lógica e linguística que você
meio de um jardim e sonha fundamente. possa imaginar.

No sonho, vê um coelho branco que está fazendo A ideia é pegar a lógica com as calças curtas.
duas coisas especialmente humanas: 1) andando Dar um susto na razão. Chacoalhar o cérebro.
com duas patas; 2) xingando Deus e o mundo por Pegar a inteligência, essa coisa frígida, e
estar atrasado. A guria, curiosa, em vez de entrar em jogá-la numa rave do séc. XX.
pânico, segue o bicho à paisana e o vê entrar numa
toca (ainda xingando). É Lagarta fumando narguilé em cima de um
cogumelo; é Alice fazendo cosplay de Godzilla
E à menina, que talvez nunca houvesse levado um ficando gigantesca ou, inversamente, ficando
sermão dos pais sobre não falar com estranhos, minúscula tomando a pílula de nanicolina do
ocorre a bela ideia de seguir um coelho duplamente Chapolin; é um Gato voador com um sorriso
estranho (que ela não conhece e não age como macabro de Coringa; é um Chapeleiro biruta
outros coelhos) e PULAR DENTRO DE UM BURACO tirando uma com a cara da guria; é bebê que
atrás do bicho. espirra até virar um porquinho e uma Rainha
de Copas com a cabeça de pichorra.
A partir daí, meu povo, é o famoso "festa estranha
cheia de gente esquisita." Importante: não leia o livro tentando caçar
algum *simbolismo* ou mensagem
"Alice no País das Maravilhas" é tipo uma balinha criptografada ou sei lá o quê escondido nas
literária. É um trago livresco. LSD tipográfico. Drogas entrelinhas. Faça como Alice: zero perguntas e
– só que sem o inconveniente de deixar você viciado pura atitude. A toca de coelho está esperando
e transformá-lo num mendigo que vagueia pela vossa senhoria.
cracolândia como um zumbi.

O livro é um festival exuberante, divertido, engraçado


e interessante de trocadalhos do carilho, bichos

Vocabulário: como é um livro que foi escrito no final


do século XIX é comum encontrar – mesmo nas
traduções – algumas palavras que não são tão comuns
para o vocabulário de um leitor contemporâneo. Mas,
no geral, a linguagem é bastante simples!

Trama: Seguinte: existe um subgênero de livros,


poemas e até músicas chamado “nonsense". Em bom
português, diríamos coisa "sem pé nem cabeça". Algo
estapafúrdio, ilógico, absurdo, caótico. O objetivo do
nonsense é misturar lógica com ilógica para torcer a
linguagem e esticar a lógica até transformá-la num
pretzel (Lewis Carroll, é bom lembrar, era um professor
de lógica). Como bem disse alguém que eu não sei
quem foi: o nonsense é um susto na lógica. EDIÇÃO RECOMENDADA
Então, leitor, não fique se julgando um "analfabeto
funcional" ou sei lá o quê se não pegar o sentido do
Alice no País das Maravilhas e Através do
livro. O livro não é para ter um sentido, e o autor não Espelho. Lewis Carroll. Tradução de Martin
enfiou simbolismos intencionais ali. Lembre-se de que Gardner. Col. Clássicos Zahar. Ed. Zahar.
o nome do gênero é sem pé nem cabeça: por isso, aqui 2013.
e ali talvez você fique meio tonto com a maluquice e
tenha alguma dificuldade com ironias da época. COMPRE AQUI!
Tirando isso, o livro é fácil e gostosíssimo de ler.

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12.O Hobbit,
de J. R. R. Tolkien

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

"Numa toca no chão vivia um hobbit." Depois do


sucesso gigantesco (e gigantescamente merecido)
da trilogia O Senhor dos Anéis, acho difícil alguém
não reconhecer de cara pelo menos a palavrinha
"hobbit" na frase ali em cima.

O Hobbit foi escrito originalmente para os filhos


pequenos de Tolkien. É um livro infanto-juvenil.
Esqueça os três filmes. E não precisa ter medo de o
livro ser como O Senhor dos Anéis.

É a história despretensiosa, divertida, gostosa, às


vezes eletrizante e sempre feliz de como Bilbo
Bolseiro, um Hobbit, saiu de sua casinha confortável
para enfrentar os perigos do mundão junto com
Gandalf e uma penca de anões – a analogia perfeita
para a sua e a minha vida. Sabe o famoso "matar um
leão por dia"? Bilbo foi matar um dragão. A vida é
mágica, guarda surpresas infinitas e vale a pena
existir.

Também vale MUITO a pena ler o livro que serviu de


base para a maior obra de fantasia de todos os
tempos: O Senhor dos Anéis.

Vocabulário: A linguagem é muito tranquila. Tolkien


continua gostando de descrever o ambiente, mas aqui
seu tom parece ser o de uma conversa: é um grande
amigo contando-lhe uma daquelas boas histórias.
Então tudo flui muito bem. A única parte em que muita
gente empaca é a do Tom Bombadil (você vai saber
quando chegar lá).
O Hobbit foi um dos primeiros livros ficcionais que eu li
sem precisar me matar de esforço e do qual eu GOSTEI.

Trama: tranquilíssima. É a clássica jornada do herói.

EDIÇÃO RECOMENDADA
Editora Harper Collins. Tradução de Reinaldo
José Lopes. 2019.

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13.As Crônicas de
Nárnia,
de C. S. Lewis
DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Um guarda-roupa surrado, largado no quarto vazio e


empoeirado do casarão de um velho rabugento. E
dentro do guarda-roupa… algo mais do que suéteres
embolorados e aquele cheiro de naftalina da casa da
vó.

C. S. Lewis, amigo íntimo de J. R. R. Tolkien e um


gênio tão grande quanto o amigo, certo dia resolveu
escrever sua própria fantasia. O resultado? Sete
livros que instantaneamente se tornaram clássicos
da literatura infanto-juvenil.

As Crônicas de Nárnia são sete livros contando


aventuras, desventuras, desgraças, maquinações,
glórias e façanhas de algumas crianças no reino
mágico de Nárnia – o reino criado e governado pelo
poderoso leão Aslam.

Ali, o Papai-Noel se mistura com bruxas, faunos,


centauros, duendes, dragões e magias antigas e
inexplicáveis. Mas essa é a parte fácil. Talvez a
melhor parte do livro esteja na psicologia das
crianças: crianças podem identificar-se com elas na
hora e os adultos… bem, os adultos podem
lembrar-se de como era ser criança.

Muito embora haja sete livros, cada um pode ser lido


independentemente dos outros.

Vocabulário: também livros infanto-juvenis, As


Crônicas de Nárnia têm um vocabulário bem tranquilo e
a leitura quase sempre é gostosa e fluida. Lewis
consegue ser simples sem ser simplório, e íntimo sem
forçar a barra.

Trama: não há grandes dificuldades na maior parte


dos livros, muito embora uma atençãozinha a mais
venha a calhar com algumas das explicações sobre a
magia do mundo e questões políticas (política, digo,
em relação ao mundo do livro, e não a ideologias e etc.)

EDIÇÃO RECOMENDADA
Editora WMF. Tradução de Paulo Mendes
Campos. 2009.

Editora WFM. Tradução de Paulo Mendes


Campos. 2019

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TEA-
TRO
Gênero
Teatro
Poderia haver arte mais antiga, mais sólida, mais
entranhada no espírito humano do que a gloriosa arte de
fingir? Eis o teatro. Fingimento transformado em arte.
Claro: o ideal é você sentar o popô numa cadeira e ver
atores e atrizes dando vida às falas, aos trejeitos e
personalidades imaginados pelo dramaturgo. Com as
luzes, o cenário, o vestuário, a música.

Mas também rola pegar uma peça, seguir as deixas e


puxar à vida os personagens aí na sua casa. No busão.
Quem sabe até no trabalho…

Atenção: ler peças de teatro NÃO é como ler uma novela


ou um romance. Por um lado, é mais trabalhoso. Sua
imaginação precisa entrar mais em ação e você não
pode ler com pressa. Tente sentir o que os personagens
sentem. Teste o tom das falas. Se Shakespeare disser
que "entra um espectro" em cena, imagine o espectro,
como se fosse a cena de um filme. Sem pressa.

Sua imaginação, seu domínio da voz, sua empatia


(colocar-se no lugar do outro), agradecem. Dá um
trabalhinho, mas vale muitíssimo a pena.

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14.O Auto da
Compadecida,
de Ariano Suassuna
DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

"Não sei, só sei que foi assim." comovi com o final sendo um evangélico do
reteté.
Se, ao ler a frase aqui em cima, na sua boca não
surgiu um sorrisinho involuntário, faceiro, Qual não foi a surpresa quando o moleque
sambando-lhe no rosto como se convocado à boca ignorante descobriu, anos mais tarde, que o
pela memória de um amigo querido… você está filme viera da peça de um dos nossos maiores
vivendo errado. artistas de todos os tempos?
Ou nunca conheceu a história de Ariano Suassuna. Em "O Auto da Compadecida" Ariano Suassuna
pega três histórias já muito faladas no sertão
Eu nunca me esqueço da experiência absolutamente nordestino – um padre que enterrou uma
FANTÁSTICA que foi, num dia qualquer, sei lá por qual cachorra; um cavalo que descomia dinheiro e
razão, estar mudando os canais da tevê feito um um sujeito que ressuscitou – e as junta todas
zumbi e resolver dar uma chance a um filme na história mais viva e charmosa de toda
aleatório que estava passando na Globo. nossa literatura.
No meio de algum sertão, com uma porção de Histórica que mostra a raça, o fervor e a vida
casinhas miseráveis ao fundo, dois nordestinos exuberante da gente simples do sertão. Peça
batiam boca. E aí veio o impensável, o inesperado: eu de arrancar gargalhadas e lágrimas em igual e
gostei daquele diálogo! MUITO. sobeja medida.
Ri para um cacete. Chicó, um aloprado cuja rapidez
vertiginosa das frases rivalizava com Eminem no
auge cocainômano, defendia-se ressabiado da lábia
molenga e espantosamente sagaz de João Grilo.

Eu, na época um daqueles moleques de cidade


tipicamente jumentos, achava que "nada no Brasil
prestava". Filme bom mesmo era só estrangeiro. E
tudo aqui era só sertão e gente f*dida
choramingando. Eu já era um f*dido. E quem lá
queria saber de sertão quando eu poderia estar
vendo um filme, sei lá, sobre alguma terra longínqua
filmada na inalcançável (e incalculavelmente
superior) Europa?

Vi o filme até o final, gargalhei como poucas vezes


nesta minha porca vida e tive mais duas surpresas,
ainda mais loucamente inesperadas: 1) além de rir,
eu me comovi profundamente com o final; 2) eu me

Vocabulário: não precisa se preocupar com


regionalismos. A linguagem da peça é simples e EDIÇÃO RECOMENDADA
facilmente compreensível por leitores de qualquer nível.
O Auto da Compadecida. Ariano Suassuna.
Editora Nova Fronteira. 2018.
Trama: simples, leve e profunda. A bem dizer, a
história é narrada com tanta leveza que mal
percebemos quando acaba. COMPRE AQUI!

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15.Lisbela e o
Prisioneiro,
de Osman Lins
DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Depois do mestre Suassuna, nada como trazer ao


palco um dos seus ilustríssimos alunos, né não? Aí começam as peripécias da peça. Lisbela vai
Depois de ter feito um curso de teatro com Ariano, o se descobrindo ela mesma um poço de
já consagrado Osman Lins resolve escrever uma malemolência e faz de tudo para tirar Leléu do
peça em três atos, todinha acontecida dentro de uma xadrez. Leléu, por sua feita, tem de ajudá-la
cadeia. tanto a se livrar da cadeia quanto a se livrar de
uma certa jura de morte que lhe tinham feito
A trama é simples: Lisbela, filha do Tenente Guedes e antes de ele ser preso…
com a mão jurada a um certo dr. Noêmio, como lhe
convém, dá um pulinho na cadeia a fim de ter uma Lisbela e o Prisioneiro é uma peça engraçada e
prosa com o véio e o descobre palestrando a um pulsa, pula e dança com a vida exuberante dos
grupo de encarcerados, incluindo… um certo Leléu. personagens.
Leléu, por sua feita, é um aramista. Um funâmbulo!

E não imagine que estou xingando o coitado, viu?


"aramista" e "funâmbulo" querem dizer um ginasta
que trabalha equilibrando-se em cima de arames.
Uma espécie de acrobata. Um artista do corpo.

E da lábia. Porque Leléu tem o olhar mais matador do


nordeste. É um Don Juan do sertão, um macho
fatalle do agreste. É um malandro, um finório, o
lascado de fala mansa que usou contra uma vida
dura e injusta o molejo da esperteza. Sem dinheiro,
sem poder, sem força, o que restou a Leléu foi a
MALEMOLÊNCIA.

Até ele bater os olhos em Lisbela e Lisbela bater os


olhos nele.

Pronto. Amor à primeiríssima vista. E recíproco. Dois


coraçõezinhos se unem e juntam numa dança
enamorada ao som de batuques de querubins…

Mas a mulher é noiva e o homem está preso. Que


diabos fazer?

Vocabulário: Talvez você empaque um pouco com


algumas gírias e cacoetes específicos da região do
nordeste. Especialmente quando se trata do Leléu e seu
dialeto quase próprio.
EDIÇÃO RECOMENDADA
Trama: A história se desenrola quase nos
mesmíssimos lugares. Logo, não existe nenhuma Lisbela e o Prisioneiro. Osman Lins. Editora
dificuldade para acompanhar a ação e o Planeta. 2015.
desenvolvimento da trama. Osman Lins pega fórmulas
do teatro grego clássico – principalmente a tragédia –,
e lhes dá um plot twist à brasileira. COMPRE AQUI!

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16.Lisístrata: A Greve
dos Sexos,
de Aristófanes
DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Zero bimbada, necas de pitibiriba no que tange


ao coito suado. Acabou a farra. Ou enfia a
Lisístrata é uma mulher ateniense, já trintona ou espada de ferro no inimigo, ou enfia a espada
quarentona, madura e muito bem vivida. Sagaz, bela, de carne na esposa. As duas coisas não dá.
do lar e… prestes a ficar recatada. Total e
impenetravelmente recatada. E tem mais! Lisístrata pega as mulheres já
velhas, cujo mexilhão estava seco e não faria
Na época, Atenas vinha lutando uma guerra falta a ninguém, e as faz invadirem o lugar em
encarniçada já fazia mais de VINTE ANOS com que ficavam os tesouros da cidade. Duplo
Esparta (sim, a cidade dos 300 sixpacks). Imagine aí ataque às provisões de guerra: sexo e dinheiro.
duas longas décadas de guerra literal – com
matança, emboscadas, crocodilagem e irmãos, A partir daí, bicho, a zorra se instala. Um bando
filhos, esposos e pais morrendo a torto e a direito, de velhos pelancudos lança ataques às velhas;
feito moscas. Guerra. um magistrado bate boca com Lisístrata (e é
humilhado); todo mundo fica pelado sem
Não um meme que deu gatilho na fulaninha ou um transar; a mulher escreve um textão e finge
twit alguma-coisa-fóbico. Guerra. que viera dum oráculo; surge um marido
desolado à caça dum nheco-nheco; e até um
Lisístrata, então, já cansada daquela guerra imbecil e deus dá as caras a fim de puxar os líderes de
interminável, sem armas ou força para arrastar os um e outro lado por certo membro que não os
homens de volta pra casa pela barba, resolve usar a braços…
arma DEFINITIVA: o sexo. Ou a falta de sexo.
Lisístrata é uma peça hilária, LOTADA de piadas
A mulher convoca todo o bando de fêmeas e de duplo sentido e uma mensagem
senhoras e moçoilas e piriguetes e donas de casa e atualíssima tanto sobre a natureza verdadeira
matronas e as convence, com um inflamado e da guerra quanto sobre a natureza e papéis
eloquente discurso, ao fechamento definitivo de das mulheres. Sério: parece quase impossível
pernas. Ao escondimento das perseguidas. GREVE que esse negócio tenha sido escrito
GERAL E IRRESTRITA DE SEXO ATÉ AQUELA GUERRA literalmente milênios atrás.
ACABAR.

Vocabulário: varia muito, a depender da tradução. A


mais acessível, mais didática e imediatamente
compreensível a qualquer um encontrei na edição da
Zahar. O problema é que a tradução parece ter
simplificado DEMAIS o texto. A ponto de adulterá-lo. É a
tradução de Mário Gama Kury.
A melhor tradução, portanto, parece ser a do Millôr
Fernandes: é a tradução intermediária, muito bem
escrita, elegante e – o mais importante –
engraçadíssima. Mas é uma tradução que, aqui e ali,
pode não ser tão imediatamente óbvia. Nada que um
pouco a mais de atenção e poucas pesquisas no
dicionário não resolvam!
EDIÇÃO RECOMENDADA
Lisístrata: A greve do Sexo. Aristófanes.
Trama: A história da peça é muito simples e já Tradução de Millôr Fernandes. Editora LP&M.
aparece logo de cara. Todo o resto é apenas o resultado 2003
da greve inicial. Talvez você encontre alguma
dificuldade na citação de alguns personagens da A Greve do Sexo (Lisístrata). Tradução de
mitologia grega. Logo no começo, por exemplo, a Mário Da Gama Kury. Editora Zahar. 1996.
personagem cita o deus Baco – deus do vinho e das
safadezas. Uma rápida pesquisa na wikipedia já
resolve o problema imediato.
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17.Beijo no Asfalto,
de Nelson Rodrigues

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

numa complicação mexeriqueira sem


Buzina de carro esgoelando. Rumor de derrapagem
fronteiras ou limites, até que… PÁ!
violenta. Um som seco. Silêncio.
Surge uma das maiores reviravoltas de
Um corpo no chão.
qualquer peça ou livro que você já tenha lido.
Certeza absoluta. Só confia.
Arandir, o protagonista da peça, de repente se
ajoelha diante do sujeito que tinha sido atropelado na
"Beijo no Asfalto" é, como quase tudo já escrito
sua frente, pega-o nos braços como a Pietà de
ou imaginado por Nelson Rodrigues, algo em
Michelangelo e… lhe dá um beijo na boca.
que só Nelson Rodrigues conseguiria
imaginar. Especialmente, coisa que só ele
Pronto. Um jornalista vil, sacana, sensacionalista –
poderia escrever com aquela sua verve
diz Nelson que é um "cafajeste dionisíaco" –, mal vê
trágica, esculhambada, quase febril.
Arandir na delegacia dando um depoimento sobre o
caso e já confabula com o delegado Cunha um plano
Uma história que esfrega na cara de quem a lê
para inflar a história, aumentá-la, transformar o gesto
o que a mentira pode fazer com o caluniado?
de misericórdia num gesto sexual e romântico.
Sim. Uma tragédia. Só que, acima de tudo, é
uma história sobre o que a mentira pode fazer
Diante do delegado, Arandir nega que conhecia o
com os caluniadores. Com os mexeriqueiros.
morto. Não acreditam. O sogro Aprígio conta à sua
Com os hipócritas e violentos, os sacripantas e
esposa Selminha o que tinha acontecido e deixa no
homicidas. É perturbadora, desconfortável,
ar que, talvez, quem sabe… não era estranho o
não raro escrota. É Nelson Rodrigues.
marido dela beijar um desconhecido no meio da rua?
Na frente de todo mundo? Que era bom ela abrir o
olho…

No dia seguinte, sai na primeira capa do jornal:


Arandir tinha um caso com o atropelado e o jogara na
frente de um carro depois de uma briga. Quisera
matá-lo. Depois, arrependido, tinha se ajoelhado
diante do amante para beijar-lhe a boca com um
último e sôfrego gesto apaixonado.

A peça, então, vai se complicando e as mentiras


tornando-se cada vez mais deslavadas, mais
extravagantes, mais picantes, mais sensacionalistas,

Vocabulário: é a prosa inigualável de Nelson


Rodrigues. Mistura estranha, inimitável, de carioquês
dos anos sessenta com algo de erudito, de poderoso, de
EDIÇÃO RECOMENDADA
quase bíblico. E o mais impressionante de tudo: O Beijo no Asfalto. Editora Nova Fronteira.
acessível. 2009.
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Trama: diferentemente de outras peças, como


"Vestido de Noiva", "Beijo no Asfalto" tem uma estrutura
mais linear. Não há dificuldades aqui.

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18.Édipo Rei,
de Sófocles

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

que resolveram adotá-lo e criá-lo como se


ele fosse filho deles.
Admita: você já ouviu alguém soltar um "complexo
de Édipo" e achou a frase chiquérrrrrrima, não foi? Até aí, baita sorte! Cadê a tragédia?
Coisa de gente muito lida, muito culta. E aí surgiu na
sua cabeça alguma vaga ligação a Freud e você se Espera, diacho.
sentiu um ignorante.
Passaram-se os anos, o guri cresceu e num
Boiando na conversa inteligente. belo dia ouviu… mexericos. Um bêbado joga
na sua cara que ele era um bastardo.
Comigo também foi assim. Juro que foi. Até eu Obviamente, Édipo não gostou nadinha
descobrir, maravilhado, que o tal do Édipo era o daquela conversa. A fim de tirar tudo a limpo,
personagem principal de uma das peças mais resolveu consultar o equivalente de sua
importantes de todos os tempos, escrita por um dos época ao teste de DNA do Ratinho: um
três dramaturgos trágicos gregos mais pic4 da oráculo.
galáxia: Sófocles.
E o que o oráculo faz? Não responde sua
Seguinte: sabe aquelas reviravoltas sanguinárias de pergunta e ainda mete duas profecias não
Game of Thrones? Aquelas desgraças, aquelas solicitadas (e horríveis): Édipo estava
tragédias que parecem tão injustas quanto destinado a matar o próprio pai e se casar
inevitáveis? Sangue, desespero e ódio encarniçado? com a própria mãe. E não era que a coisa
O lugar onde o filho chora e a mãe não vê? A plot talvez fosse lhe acontecer. Estava escrito.
twist que revira o estômago? Personagem bonzinho Pré-determinado. Tipo um jogo do bicho
levando sarrafo? Um mundo horrível, de justiça cega cósmico marcado. Game over antes mesmo
e pegadinhas cósmicas quase demoníacas? de o game começar.
A partir daí, Édipo faz de tudo, tudo, tudo para
Pois oras: seja bem-vindo a Édipo Rei! fugir da profecia e driblar o Destino. Mas,
talvez, algumas forças não possam ser
A história é mais ou menos a seguinte: Édipo, ainda dribladas…
um pequerrucho cagando nas fraldas, sabe-se lá por
que acabou sendo largado pelos pais biológicos no
meio do nada. Só que alguém calhou de encontrar o
mini catarrento e o levou ao Rei e à Rainha de Tebas –

Vocabulário: com Édipo acontece o mesmo que


acontece com as demais peças gregas que pus na lista:
o texto varia muito com a tradução. Na edição de
vocabulário mais simples, traduzida por Paulo Neves, a
linguagem torna-se tranquila e acessível mesmo a
leitores muito iniciantes, desde que tenham só um
pouquinho de paciência.
A segunda opção é a edição da Zahar: com texto
versificado, a linguagem torna-se menos fácil, mas a
editora compensou tudo com muitas, muitas notas de
rodapé. A escolha fica por sua conta, então. EDIÇÃO RECOMENDADA
Trama: a peça não enrola para levar-nos à ação, Edição L&PM Pocket. Tradução de Paulo
mas sua estrutura não é linear. Começamos no Neves. 2008
presente e vamos entendendo o que aconteceu agora
à luz do passado, revelado aos poucos enquanto a
Edição Zahar. Tradução de Mário da Gama
trama se desenrola. Seja como for, não existe nada de
muito complicado além de nomes de deuses e outras Kury. 2018.
entidades mitológicas que você talvez não conheça.
Pesquisas rápidas no Google resolvem esses COMPRE AQUI! COMPRE AQUI!
problemas.

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19.À Espera de Godot,
de Samuel Beckett

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

profundamente sugestiva de exploração e


Dois sujeitos meio palermas, fanfarrões em toda a
dependência mútuas.
linha e estropiados da cabeça aos pés, topam-se à
beira de uma estrada. Não sabem por quê. À frente,
Famosamente, Beckett se recusou mais de
havia uma árvore seca, com galhos sem folhas.
uma vez a dar uma interpretação pronta e
Também não sabiam por quê.
definitiva à peça. O que não impediu a crítica, é
claro, de caçar símbolos e sugestões ocultas
Depois de uma conversa escandalosamente sem pé
em todas as pouquíssimas coisas que existem
nem cabeça, Vladimir e Estragon começam a ficar de
na peça além dos diálogos (aparentemente)
saco cheio por estarem ali sem fazer coisa nenhuma,
sem pé nem cabeça.
por motivo nenhum, e a Estragon enfim ocorre uma
ideia genial: eles poderiam ir… embora!
Estragon, por ser mais sentimental e até
chorão, representaria a metade intuitiva do ser
Estragon, porém, logo corta suas asinhas. Não, não,
humano. Vladimir, o lógico, mais frio e
não! Os dois não podiam ir embora, pô. Estavam ali
controlado, porém incapaz de ser tão profundo
para algo muito importante. Estavam… à espera de
quanto as intuições do amigo, seria o lado
Godot.
racional do ser humano.
"À Espera de Godot" (ou "Esperando Godot") é uma
A árvore sem folhas simbolizaria o mundo
peça absurda. Ou melhor dizendo: a peça ajudou a
seco, miserável e sem sentido envolvendo os
criar o Teatro do Absurdo.
personagens. As botas simbolizariam x; a
corda, y… e por aí vai.
O nome é autoexplicativo: nas peças absurdas não
existe a narrativa redondinha e estratégica das
Além de "À Espera de Godot" ter sido uma peça
histórias *convencionais*. Não existe um fio condutor
FUNDAMENTAL para o desenvolvimento do
claro. Esqueça as motivações racionais ou
teatro moderno, mais importante é que se
explicáveis por forças sobrenaturais. As relações de
trata de algo gostoso e interessante de ler até
causa e efeito são completamente bagunçadas. Os
hoje. A peça é engraçada, às vezes quase
personagens surgem de lugar nenhum e somem se
comovente e mais de uma vez relampeja uma
for preciso. Não existe um "mundo" específico em
profundidade, uma sabedoria, que você pega
que a história se passa. Mal se pode dizer dizer que
no ar mas não consegue fixar muito bem quer
exista uma história.
em palavras, quer em sentimentos. É uma
viagem. É arte.
Coisa nenhuma tem de acontecer; qualquer coisa
pode acontecer.
E aí fica a pergunta: será que Godot virá?
Samuel Beckett revolucionou o teatro com essa
peça. Foi ela que abriu alas a muitas, muitas
inovações e técnicas artísticas que hoje vemos não
só em peças, mas também em Hollywood e noutras
formas de mídia (desenhos, por exemplo).

A peça tem dois atos. Em rigor, a ferro e fogo, p****


nenhuma acontece. Esqueça a ideia de "arco
narrativo" ou personagens começando de certa
forma e acabando de outra forma. A peça é uma série
de interações entre Vladimir, Estragon – os dois
sujeitos principais –, Pozzo e Lucky: mais dois
indivíduos no mínimo curiosos, que mantêm entre si
uma relação meio doentia, meio cômica e meio

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19.À Espera de Godot,
de Samuel Beckett

Vocabulário: o vocabulário é muito, muito


tranquilo. O que NÃO quer dizer que você possa ler a
peça com pressa. Todo bom absurdo, por incrível
que pareça, exige atenção especial do leitor.

Trama: A trama gira em círculos o tempo inteiro.


Cada pequeno diálogo é uma história fechada em si
mesma. Leia aos poucos, sem aquela neura de
"chegar ao final". Se você correr, se ficar afobado(a)
para "descobrir o sentido" da peça, pode esquecer.
É importante entregar-se ao absurdo e curtir a
viagem – quase estudar a viagem.

EDIÇÃO RECOMENDADA
Esperando Godot. Samuel Beckett. Tradução
de Fábio de Souza Andrade. Editora
Companhia das Letras. 2017.

COMPRE AQUI!

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20.Hamlet,
de William
Shakespeare
DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

sangue da aparição; aplacar-lhe um pouco o


Ser ou não ser, eis a questão…
tormento no mundo do além. Mostrar de quem
era sua fidelidade e quem o Príncipe realmente
Talvez a peça de teatro mais famosa de todos os
amava.
tempos – e com justeza.
O pai, traído e morto pela ganância do próprio
Numa noite gélida e má, um espectro emerge da
irmão? Ou o tio, homicida, conspirador, traidor
escuridão. Os pobres dos vigias só faltam mijar nas
da Pátria e da família? Um demônio que tinha a
calças de tanto pavor. Coberta com pesada e
coragem de tratá-lo como um filho?
formidável armadura, a aparição apenas surge, nada
lhes diz e vai outra vez embora, sumindo nas trevas…
Assim começa a tragédia de Hamlet. Ser ou
não ser…
Mas os dois guardas juravam que tinham
reconhecido o fantasma. Só podia ser o Rei. O Rei da
Será que o fantasma era REALMENTE seu pai?
Dinamarca, cuspido e escarrado naquele
Será que tinha contado realmente a verdade?
fantasmagórico ectoplasma!
Será que sua mãe sabia de alguma coisa e era,
portanto, cúmplice? Será que o tio era um
Porque o Rei tinha morrido há poucos dias. Mal seu
assassino? Será que ele próprio deveria ser
cadáver esfriara, Cláudio, seu irmão, tanto pega-lhe o
um homicida? Será que o destino o obrigava
trono quanto se casa com sua esposa. Quase como
àquilo? Será que, sendo tudo verdade, ele
se não houvesse ficado surpreso e já esperasse algo
ainda poderia escolher alguma coisa?
como aquilo…
Hamlet, apesar de ser uma tragédia, é peça
No meio disso tudo, Hamlet. Príncipe da Dinamarca,
com vários momentos hilários. O Príncipe se
filho do Rei morto, sobrinho do Rei atual e filho de sua
faz de louco, paga de João-bobo e cria MIL E
mãe (infelizmente).
UM TROCADILHOS ou faz piadas sujas com o
pessoal da corte. Especialmente com Polônio,
Hamlet não está nada feliz com sua mãe ter pulado
o puxa-saco que jura ser inteligentíssimo e
com aquela leveza de cabrita, com aquele arzinho
nunca pega suas piadas.
serelepe e quase risonho, do cadáver insepulto do
marido para o colo do cunhado. Jeito curioso de viver
E isto porque nem falei de Ofélia, seu amor.
o luto. O Príncipe, portanto, sujeito excepcionalmente
Nem falei de Rosencrantz e Horácio, seus
inteligente e sagaz, está quase febril de tanto pensar,
amigos. Mal toquei no drama com a mãe. Nem
de tanto mastigar e ruminar aquela desgraça.
entrei nas questões filosóficas…
Até o fantasma surgir outra vez.
Não é à toa que Hamlet tornou-se tão
gigantescamente famosa. Ela tem algo de
Com voz eterna, profunda, que vai do trovão a um
atmosfera gótica. Tem um fantasma. Tem
lamento horrível, a aparição diz a Hamlet que era
sangue e tragédia. Traições e maquinações.
mesmo seu pai. Que viera do Purgatório, onde vinha
Ambições. Mesquinharias. Amores traídos e
sofrendo castigos inomináveis, para contar-lhe a
despedaçados. Ciúmes, loucura, inveja. Piadas
verdade e exigir sua vingança.
e tiração de sarro. Lida com a vida, a morte, as
certezas que nos mantêm sãos. As incertezas
Cláudio, o tio de Hamlet e seu próprio irmão, o tinha
que, às vezes, são as únicas coisas que nos
matado. De caso pensado, com um plano
podem salvar da loucura…
calmamente traçado, Cláudio jogara-lhe veneno no
ouvido enquanto ele dormia no jardim.
Hamlet é uma peça absolutamente
maravilhosa e deveria ser obrigatória para
E Hamlet, agora, estava obrigado a vingar sua morte.
todo ser humano na face da Terra.
Obrigado a matar o próprio tio e satisfazer a sede de

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20.Hamlet,
de William
Shakespeare

Vocabulário: as traduções de Shakespeare – e


do teatro em geral – podem variar MUITO, como
creio que já afirmei por aqui. A tradução do Millôr
Fernandes é, sob certos aspectos, mais fluida. E com
certeza é superior a todas as outras em relação às
piadas sujas e trocadilhos de Hamlet. Millôr era um
gênio da tiração de sarro e traduziu aquilo como
ninguém mais poderia. No geral, porém, Millôr não
consegue alcançar tanto as alturas da linguagem
trágica nas várias cenas MEMORÁVEIS da peça. Para
isso, recomendo a tradução de Lawrence Flores
Pereira.

Trama: a trama em si é, na verdade, bastante


simples. Já começamos no meio da ação – vendo o
fantasma. A partir daí, tudo se desenrola
rapidamente e Hamlet vai caindo, aos poucos, na
espiral da paranoia e obsessão homicida até
chegarmos ao clímax da peça

EDIÇÃO RECOMENDADA
Hamlet. William Shakespeare. Tradução de
Lawerence Flores Pereira. Editora
Penguin-Companhia. 2015.

Hamlet. William Shakespeare. Tradução de


Millôr Fernandes. Editora LP&M. 1997.

COMPRE AQUI! COMPRE AQUI!

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21.A Megera Domada,
de William
Shakespeare
DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Dois pretendentes tinham chegado nela antes


Ah, a boa e velha batalha dos sexos!
de Lucêncio.
Hoje em dia, mundo de Vitões, Luízas Sonzas, não
E segundo… Bianca tinha uma irmã. Catarina,
faria mal voltar ao Bardo e com ele aprendermos
sua irmã mais velha, é arisca. A famosa
algumas cositas sobre dois temas cujo nome eu já
"mulher de gênio difícil." A famigerada mulher
nem aguento falar ou ler: MASCULINIDADE e FEMI-
de "personalidade forte". Bravia, agreste,
NILIDADE (perdão, Shakes).
linguaruda. Porradeira. Um pavio-curto num
universo de faíscas. Um fio desemcapado.
Porém, "A Megera Domada" acaba sendo inescapa-
velmente sobre coisas como:
Uma megera.
O que as mulheres realmente querem? E os
E o que tem a ver com Catarina o amor entre
homens? O que a machaiada deseja? No que as
os dois pombinhos? Simples: Batista só vai
mulheres são melhores do que o sexo oposto? No
deixar a filha mais nova se casar depois que
que é preferível ter um fulano à mão em vez de uma
alguém conseguir domar Catarina.
sicrana? Homens e mulheres são diferentes, afinal
de contas? Psicológica e emocionalmente? Querem
E o coitado do Lucrécio está numa sinuca de
coisas diferentes?
bico até que chega à cidade um certo Petrú-
quio, jovem afoito e à caça de alguma ricaça.
Ou a única diferença é que uns têm duas bolinhas e
uma mangueirinha molenga e as outras têm uma
Pronto. Armou-se o circo. Petrúquio encontrou
rachadinha?
sua ricaça e não vai arredar o pé de Catarina
até que consiga DOMAR A MEGERA
Talvez você, leitor moderno, xófen, todo trabalhado
nas últimas teorias em relação às diferenças entre os
sexos, ache uma bela besteira aprender algo sobre o
mundo moderno com alguém tão antigo. Bicho, se a
galera com quarenta anos já não entende os adoles-
centes de hoje em dia, quem dirá UM TIOZÃO DE
QUASE QUINHENTOS ANOS DE IDADE.

Pois bem, você está errado. E aliás duplamente


errado. Porque Shakespeare vai lhe ensinar muita
coisa e fazer você SE MIJAR DE TANTO RIR.

Lucêncio, um rapazola endinheirado, chega na


cidade de Pádua para estudar. Tipo um playboy-her-
deiro-universitário-de-medicina hoje em dia, porém
com duas diferenças: 1) sabia se vestir; 2) queria
mesmo estudar.

Queria, isto é, até botar os olhos em Bianca – a filha


formosa, a filha meiga, a filha harmoniosa e instagra-
mável de tão linda do velho mercador Batista. É
paixão e amor à primeira vista. Danem-se os
estudos, diacho. OLHA AQUELE PITÉL.

Porém, na vida nem tudo são rosas e Biancas.


Bianca, primeiro, já tem dois sujeitos no seu rastro.

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21.A Megera Domada,
de William
Shakespeare

Vocabulário: especialmente a tradução de


MIllôr Fernandes tem um vocabulário muito
acessível, rico sem deixar de ser acessível. A leitura
é fluida, gostosa, e existem notas de rodapé que
elucidam piadas que exijam mais atenção ou saber.

Trama: zero dificuldades aqui.

EDIÇÃO RECOMENDADA
Editora L&PM Pocket, tradução de Millôr
Fernandes

Editora Martin Claret. Tradução de Gentil


Saraiva Jr. 2022.

COMPRE AQUI! COMPRE AQUI!

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NA
CIO-
NAIS
Nacionais
Já passou pela sua cabeça, pelo menos alguma vez, que
a literatura brasileira é um PORRE. Admita. E nem vou
dizer "olha, que pensamento ignorante, que síndrome de
vira-lata" e blá-blá. Tem muita coisa ruim mesmo por
aqui. Muito livro superestimado, muita lambição em
autores medíocres.

PORÉM, há coisa boa. E algumas coisas realmente MUITO


boas. Livros e contos que não passariam vergonha
diante de muito gringo. Ombreando ingleses, franceses,
russos e alemães.

Aqui pus alguns clássicos inquestionáveis, mais antigos,


alguns livros mais modernos e dois contemporâneos,
atuais, de autores vivos e respirando, para que ninguém
saia achando que só presta o que é velho e já passou.

Aqui tem louco, tem bêbado, tem tiro, tem assassinato,


tem morto boêmio, tem seca, tem miséria, tem briga,
tem piada, tem pastor pentecostal, tem… o Brasil.

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22.O Alienista,
de Machado de
Assis
DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Vocabulário: o vocabulário, aqui, é um pouco mais


O Dr. Simão Bacamarte é um figurão intelectual. O extenso. As ironias são mais refinadas. Se você for um
brabo da ciência. O rato de biblioteca. O comedor de leitor muito iniciante, recomendo-lhe uma edição que
livros. tenha notas para o vocabulário, por exemplo. Ou ler com
um dicionário à mão.
O puro sábio que, em vez de escolher a esposa como
Também algumas expressões antigas podem causar
os ignorantes, usou critérios estritamente científicos: estranhamento. "Ao cabo de", por exemplo, significa "ao
a mulher tinha boa digestão, dormia feito uma pedra fim de". "Alienista" é o especialista em doenças mentais,
e por isso lhe daria bons filhos. Além do mais, sendo naquela época chamadas de "alienismo". São pequenas
feia e desconjuntada não causaria conflito entre as soluções que desobstruem a leitura completamente.
duas cabeças do ilustre erudito: a pensante e a
perfurante.
Trama: uma vez que o vocabulário esteja mais ou
Se você ficou escandalizado com minha rápida menos dominado, a trama se desenrola com zero
descrição, nem leia o livro. Neste livreto, a ironia de dificuldade. E, no caso do Machado, a coisa torna-se
Machado não é sutil nem contida. ainda mais fácil porque os capítulos são todos muito
curtos.
Simão Bacamarte, repito, um ilustre erudito, resolve
estudar o que causava a loucura. Daí rapidamente
parte à ideia de construir um casarão no qual
pudesse enfiar todos os birutas, depois de
impressionar os políticos abobalhados com umas
poucas palavras difíceis.

Simão, porém, quanto mais estuda a natureza da


maluquice, mais começa a achar que todo mundo é…
louco. Tipo everybody.

O circo está montado. O caos, a zorra, o absurdo


completo (e hilário) vão aumentando de página em
página até alcançar um clímax no qual nem tudo era
o que parecia…

Mesquinharia brasileira? Temos. Política de


conchavos e chantagezinhas e conversa fiada?
Temos. O poder que sobe à cabeça dos cientistas? EDIÇÃO RECOMENDADA
Temos. O mais fino e culto deboche? Temos à
vontade. O Alienista. Machado de Assis.
Penguin-Companhia. 2014.
O livreto é uma joia de perspicácia, comicidade e
pura e simples beleza artística. Um dos melhores O Alienista, editora Antofágica. 2022.
textos em língua portuguesa de todos os tempos,
sem dúvida nenhuma.
COMPRE AQUI! COMPRE AQUI!

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23.Vidas Secas,
de Graciliano
Ramos
DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Vocabulário: No geral, a linguagem não é


“Vidas Secas” é um livro de cortar o coração. Um especialmente complicada. O que surge com alguma
daqueles livros que atingem o equilíbrio perfeito recorrência são palavras mais específicas do sertão:
entre o coração e a cabeça. Livro que fala sobre a Coisas como "aió", "pederneira", "escanchado" ou
tragédia sem explorar ou falsificar a tragédia. "cambaio". Vale a pena fazer algumas pesquisas de vez
em quando. Se você persistir um pouco, garanto-lhe
que vai chegar até o final do livro com uma história
A ideia é simples: em treze contos (que, aliás, em inesquecível no coração e um belo repertório de
teoria poderiam ser lidos até separadamente) vocabulário.
Graciliano Ramos retrata a existência quase
animalesca duma família de sertanejos miseráveis,
lutando para subsistir sob o clima cruel e
Trama: Inicialmente, o livro foi uma junção de
contos. Logo, a história é bastante simples e pode ser
imprevisível que faz pairar sobre suas cabeças a lida até fora de ordem. Cada capítulo originalmente fora
ameaça constante da seca – e, portanto, da fome. um conto.

Fabiano, sua esposa Sinhá Vitória, dois filhos e a


vira-lata Baleia.

Graciliano, com sua linguagem econômica, seca,


sem rodeios ou firulas retóricas, vai mostrando com
uma força de revirar o estômago a realidade da
miséria: mal conseguimos distinguir a família de
sertanejos dos bichos ao seu redor. No final das
contas, "Vidas Secas" é um retrato de como o
Homem pode ser desumanizado.
Os moleques, escangalhados pela fome e açoitados
pelo sol, rolam no chão imundo com a cachorra.

Aliás, Baleia ganha nome (coisa que os moleques


não ganham) e especial atenção do autor justamente
para que vejamos como é pequena a diferença entre
o bicho e os familiares. No fundo, são todos bichos.

Fabiano é o chefe da família. Sujeito trabalhador,


forte, porém quase irremediavelmente limitado.
Dolorosa, terrivelmente limitado, a ponto de mal
conseguir articular duas frases. Como não consegue
falar, menos ainda consegue pensar. É um
prisioneiro duas vezes. As circunstâncias de fora
prendem e maltratam seu corpo. A ignorância
prende e maltrata-lhe a alma.
"Vidas Secas", aliás, tem uma das cenas mais tristes
de toda nossa literatura. Fabiano, bêbado, é EDIÇÃO RECOMENDADA
injustamente jogado na prisão por um soldadinho
medíocre que fizera de tudo para injuriá-lo. Preso, Vidas Secas. Graciliano Ramos. Editora
acuado feito um bicho dentro duma jaula, Fabiano Record. 2019.
escuta outro bêbado urrando e balbuciando coisas
desconexas… e tenta organizar os pensamentos. COMPRE AQUI!
Tenta puxar, na memória, o fio de causa e efeito que o
trouxera até ali. O que tinha acontecido mesmo? De
quem era a culpa?

E o que acontece… você vai ter que descobrir no livro,


diacho. Um dos nossos maiores clássicos.

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24.O Quinze,
de Rachel de
Queiroz
DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Com dezenove anos, eu trabalhava como empacota-


dor num mercadinho perto de casa e tinha como
bagagem cultural livresca os sete livros do Harry
Potter.

Rachel de Queiroz, uma guria cearense, com os


mesmos dezenove anos de idade estava revolucio-
nando a literatura brasileira com seu "O Quinze" – a
maior estreia de um autor na literatura brasileira.
Com os dois pés na porta, a moça já chegou criando
assombro em gente como Graciliano Ramos,
Gilberto Freyre, José Lins do Rego, Mário de Andrade,
Jorge Amado…

Em 1915, uma seca horrenda castiga o nordeste do


Brasil. Rachel conta duas histórias entrelaçadas: a de
Chico Bento, um vaqueiro que faz tudo quanto pode
para fugir à seca com a família; e Conceição, uma
professora culta e estudada, que talvez viva um
romance com o chucro e bronco Vicente.

O livro foi um marco, este milagre de estreia, porque


ali Rachel atinge um equilíbrio artístico e humano
impressionante: a seca é seca. Os personagens são
sofridos, mas também vivos. Não existem estereóti-
pos fáceis ou panfletagem política. Não existe
melodrama sentimentalóide ou aquele blá-blá-blá de
quem acha que ser poético é ser prolixo.

Os personagens são vivos, memoráveis. As descri-


ções são poéticas e exatas. A linguagem é a do povo,
sem afetações. Sem manipulações.

Vocabulário: Rachel de Queiroz ajudou a


revolucionar especialmente os livros sobre a seca
justamente por ter uma linguagem muito mais simples
do que a de um Euclides da Cunha, por exemplo. As
frases são curtas, ágeis. Há algumas palavras típicas da
região – já que Rachel faz questão de representar
fielmente a fala real da gente sertaneja – mas nada que
EDIÇÃO RECOMENDADA
atrapalhe a compreensão. O Quinze. Rachel de Queiroz. Editora José
Olympio. 2016.

Trama: Aqui, porém, é preciso ler com atenção COMPRE AQUI!


desde o começo. Afinal de contas, são duas histórias
entrelaçadas. Se for o caso, você pode até anotar numa
folha os nomes dos personagens (são poucos) para
que fique mais fácil não se perder no meio da narrativa.

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25.Memórias de um
Sargento de
Milícias, de Manuel
Antônio de Almeida
DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Diga-se de uma vez: livro escrito por um sujeito cujo livro, tampouco aparece a Corte Real. Quem aparece,
apelido era MANECO não pode ser ruim. Simples- então?
mente não pode.
Soldados, barbeiros, ciganos, marujos, boticários,
Sabe aqueles livros que obrigaram você a ler na professores, agiotas, vadios, valentões, burocratas e
escola e eram um PORRE? Então: Manuel Antônio de toda a fina flor do povão: juntos, misturados e
Almeida escreveu o livro antiporre. possivelmente suados.

Maneco foi um carioca e cariocamente escreveu seu O herói do livro é um tal Leonardo, cujo nome só
livro: no meio de batucadas, churrascões (perdoe o vamos descobrir depois de sei lá quantas páginas.
anacronismo) e rodas de viola. Frequentemente no Entre o começo e o final do livro, acontece de tudo: o
trabalho e, às vezes, até mesmo em casa. O sujeito moleque já nasce com satanás no corpo, só faz
foi usando exemplos que surgiam a esmo na sua presepada enquanto cresce, é abandonado pela
cabeça meio distraída e mais de uma vez escreveu, mãe, acolhido por um barbeiro enquanto o pai
no trabalho, com PRESSA – vigiado por um funcioná- recorre à macumba para reaver o amor duma cigana
rio do jornal, que dali a poucos minutos precisaria pôr é roubada dos seus braços na crocodilagem – por
a desgraça do capítulo para rodar. um padre.

O resultado é um livro quase inclassificável. Que não Acha que acabou? Nada! No livro tem muito, muito
se leva muito a sério e nem gasta saliva (ou tinta) mais.
com grandiloquências *literárias*. Um livro que
milagrosamente não é amargo, não é ideológico, não
é panfletário. Que parece ter dado prazer a quem o
escreveu e até hoje dá prazer a quem o lê. Memórias
é o retrato vivo, engraçadíssimo, esculhambado,
colorido e dançante da fauna carioca novecentista
que, aparentemente, não era "digna" das melosas
viajadas na maionese dos românticos.

Esqueça os índios. Ninguém aqui é puro e angelical


ou fica chorando as pitangas fingindo-se muito
chique e lorde inglês. Se não aparecem escravos no

Vocabulário: não vou mentir, o Maneco gosta de


variar o vocabulário. Além do mais, o ritmo do livro é
muito ágil e algumas descrições são quase cartunescas
(tipo alguém sendo erguido pelas orelhas e levando um
chute no traseiro que o joga metros adiante). Passada,
porém, a estranheza inicial, o livro flui tranquilamente e
pode ser lido com muito gosto.

Trama: no geral, a trama é bastante linear, só que o


Maneco enfia aqui e ali histórias que não têm relação
direta com a linha principal ou entre as quais não se vê EDIÇÃO RECOMENDADA
um ponto de contato óbvio. Não se preocupe e só
Editora Panda Books. 2015.
continue lendo. Esse não é o tipo de livro para você
ficar quebrando a cabeça com a história. É deixar a
vida me levar, vida leva eeeeuuuuu.
COMPRE AQUI!

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26.A Estrela Sobe,
de Marques Rebelo

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Leniza, filha de Dona Manuela e Seu Martin, vai morar cujo olhar a gente vê uma mulher adulta antes de ela
com a mãe num cortiço depois que o pai morre e as própria se dar conta.
deixa no zero a zero, sem prumo na vida e a dois
passos da miséria. A Estrela Sobe é a história de uma onça. A história da
ambição e força de Leniza, uma bonita menina
Menina inteligente, sagaz e muito bonita. Saudável, carioca com sonhos de estrelato no rádio. Também
com as curvas irrompendo fartas e robustas com ela história de como sua ambição podia ser trauma e
já novinha. Desde novinha, Leniza apresentara um sua força era manipulação sexual. História sem preto
gênio esquisito. Segundo uma professora, até no branco. Sem vilões ou mocinhos cristalinos. Sem
inexplicável às vezes. moralismo catequizante ou amoralismo brega.

Talvez, claro, alguma ligação houvesse entre o tal É a vida real. A vida de uma Leniza pronta a tudo para
gênio estranho e inexplicável e o fato de Leniza realizar o sonho de fama. Mulher cruel e amorosa,
presenciar de forma desavergonhada, todo santo dia, interesseira e piedosa, tímida e maliciosa.
antes de chegar à primeira menstruação, todos os
segredos da vida que normalmente se vão nos Também, claro, um livro absurdamente atual.
apresentando aos poucos e de forma homeopática. Especialmente nesta era de influencers, de tiktokers
que num piscar de olhos abrem uma conta no
Leia-se: Leniza via homens pelados. De vez em Onlyfans e largam tudo com o mesmo olhar de onça
quando, às vezes sem querer. Mas era inevitável. da Leniza. A estrela sobe. Mas será que fica no topo?
Imagine o seguinte, leitor: um AirBnb em que
morassem uma mãe, sua filha de treze, catorze anos
de idade e mais dois ou três machos desconhecidos,
saídos da rua.

Leniza, nova e esperta, vira e mexe dava de cara com


um homem pelado, se trocando no quarto, ao abrir
de repente a porta do banheiro. Leniza ouvia conver-
sas pesadas, piadas sujas, histórias de putaria.

Só que a crueza não assustava Leniza. Pelo contrário.


Seu gênio era de onça. Uma daquelas meninas em

Vocabulário: a prosa de Marques Rebelo é um dos


ápices da elegância. É limpa, exata e soa natural sem
cair no banal. Tem valor literário porque é apurada,
bonita, perfeitamente calculada. Mas tem valor humano
porque é facilmente acessível e nos transmite o calor de
conversas reais num Rio de Janeiro real.

Trama: o livro é contado por meio de pequenos


parágrafos, quase sempre com três ou quatro linhas.
Marques Rebelo é econômico e às vezes pula anos EDIÇÃO RECOMENDADA
inteiros com poucas palavras. Eu diria que um leitor
Editora José Olympio. 2018.
intermediário tira o livro absolutamente de letra e um
leitor iniciante vai ter de prestar só um pouquinho de
atenção a mais.
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27.A Morte e a morte de
Quincas Berro
d'água,
de Jorge Amado
DIFICULTÔMETRO

DESCRIÇÃO
Vocabulário: o vocabulário e estilo de Memórias
Quando Vinícius de Moraes diz que um livro é Póstumas já são um pouco mais avançados e
"obra-prima", não é má ideia prestar-lhe uma <rebuscados> do que os de outros livros e autores que
atençãozinha. pus aqui na lista. Mas não digo "rebuscado" no mau
sentido. No sentido de coisa prolixa,
Aqui se conta a história de um funcionário público desnecessariamente complicada. O estilo de Machado é
que, já tiozão e cansado da vidinha burocrática e RICO. Aqui e ali, é verdade, de vez em quando Machado
pacata de sempre, resolve ligar o f*da-se: vida podia exagerar nas alusões ou esticar demais piadas ou
histórias paralelas. Mas ninguém tinha um estilo tão
boêmia, aí vai ele! Porres intermináveis,
engenhoso e memorável como o dele. Então, leitor, já
desavergonhações de toda espécie e um eterno saiba de uma coisa agora: se você "não gostar" do estilo
carnaval. O velho festeja tão hard que logo se de Machado, a culpa é sua. Leia de novo até entender e
transforma num ser lendário, folclórico: o mítico gostar.
Quincas Berro D'água.

O velho druida que vira um copo inteiro crendo ser Trama: os oito ou nove primeiros capítulos podem
pinga e, horrorizado, grita desesperadamente aos parecer, aos apressados, não ter nada a ver com a
quatro ventos quando percebe que era só água. história. Têm sim. Têm tudo a ver com a construção do
personagem principal. Especialmente o capítulo sete,
No começo do livro, Quincas é encontrado morto por do delírio. A chave de leitura aqui é: tente descobrir o
uma de suas amigas, jogado num quartinho imundo. que cada um daqueles capítulos sugerem sobre a
personalidade e o caráter de Brás Cubas.
Só que antes ele já tinha morrido para a família,
moralmente. Assim que se tornou o velho vadio, sua
família passou a fingir que ele não existia.

Agora, a família enlutada (e aliviada) podia trazer sua


memória de volta à vida enquanto enterra seu corpo.
Resolvem resgatar sua memória dos últimos anos
de vadiagem. Organizam um velório respeitável e
usam seu nome de batismo: Joaquim Soares da
Cunha.

Eis, porém, que brotam no velório os amigos


cachaceiros, vadios e foliões do velho morto. Assim
que veem o velho deitado, sorrindo, acreditam que o
sujeito está vivo e o levam para mais uma noite de
farra braba.

Ali, sob a luz mágica da noite estrelada e o influxo da


manguaça, Quincas Berro D'água haverá de sofrer
sua segunda morte.

EDIÇÃO RECOMENDADA
A Morte e a Morte de Quincas Berro D'água.
Jorge Amado. Companhia das Letras. 2008.

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28.O Cobrador,
de Rubem Fonseca

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

"O Cobrador" é um soco no estômago. Uma voadora


no peito. Um chute na nuca. Acho que eu nunca li na "O Cobrador" é um livreto revoltante. Sinceramente,
vida – e em qualquer língua – algo que tenha me de revirar o estômago. O episódio com o dentista é a
causado um impacto tão forte logo nas primeiras cobrança mais tranquila de todas. Porque o cobrador
linhas. realmente acredita que a "sociedade" – leia-se: eu,
você, todos nós – lhe devia tudo. Uma Mercedes,
Além de escritor, Rubem Fonseca foi delegado por uma casa de bacana, as gostosas da televisão. E ele
muitos anos. Ou seja: sobre a bandidagem não tinha iria cobrar a dívida com juros.
aquela visão romântica de muitos escritores e
intelectuais. Aquela visão rósea, cheia de firulas Você já foi assaltado? Com faca ou cano de arma
poéticas e com iguais medidas de ingenuidade, colado em você? Já viu, no Cidade Alerta ou qualquer
abobalhamento palerma e ideologia. jornal, um daqueles vídeos absurdos em que um
vagabundo resolve dar um tiro na cara de quem já
E O Cobrador é justamente sobre a bandidagem. lhe tinha entregado o carro ou o celular? Um ódio
O conto começa com um sujeito na cadeira do gratuito, quase inexplicável?
dentista. As frases são curtas, cortadas, violentas. O
dentista faz o que é preciso e lhe diz quanto tinha Pois bem. Toda aquela psicologia demoníaca, aquela
ficado o serviço: quatrocentos cruzeiros. raiva desgraçada, aquele ressentimento homicida –
O sujeito acha aquilo engraçado. Só ri, solta um "não está tudo n'O Cobrador. A leitura não será agradável.
tenho não, meu chapa" e levanta da cadeira. Ia Mas eu lhe garanto que será transformadora.
embora. O dentista fica em frente à porta e dá um
ultimato. O sujeito saca um 38. Do nada. Com ódio,
com selvageria, com uma raiva alucinada. Enfia-lhe a
ponta no peito e começa a aliviar o coração socando
e chutando tudo que havia na sala do dentista, quase
rezando para o outro dizer alguma coisa e ele dar um
tiro "naquela barriga grande cheia de merda."

É que ele odiava dentistas, comerciantes, advogados,


industriais, médicos, executivos. Eram todos cana-
lhas. Uns filhos da puta. Ele estava cansado de pagar.

Agora, só cobrava.

Vocabulário: absolutamente simples. Aliás, o conto


só consegue ser tão poderoso porque Rubem Fonseca
abandona as firulas de outros textos e aqui atinge uma
crueza de poucas palavras. O texto é perfeito e quase
nos esquecemos de que é algo escrito.

Trama: igualmente simples. O conto começa na


cadeira do dentista e as "cobranças" do protagonista
vão ficando cada vez mais selvagens, sádicas e
violentas.
EDIÇÃO RECOMENDADA
Editora Nova Fronteira. O livro tem outros
contos além de O Cobrador. 2011.

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29.A Alma da Festa,
de Alexandre Soares
Silva
DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

"A alma da festa" é um livro sui generis – e eu só usei origem inexplicada; que era amigo de literalmente
o latim de sacanagem. Por quê? Porque, sim: o livro é metade de todas as pessoas do mundo; e que era,
único. Singular. Diferente dos outros (mesmo). Mas enfim, a reencarnação de um antigo Deus Egípcio do
também é de uma leitura quase inacreditavelmente Charme.
fácil, gostosa, leve e engraçada.
O Barão apura que Orlando renasceu em São Paulo,
Alexandre Soares Silva é um roteirista, escritor, que agora se chama César, e que ele não tem
colunista e tradutor brasileiro. E ainda por cima vivo! memória nenhuma do Barão, nem de quem ele
E ainda por cima paulista (!!!). E ainda por cima do próprio foi ou do que fez. Pior que isso tudo, não tem
que já estava em cima, numa tripla camada de nada do charme de antes. É uma criatura triste,
absurdos: está vivo, é paulista e bom escritor (!!!!!!!!). tímida e desajeitada – como o próprio Barão. Saudo-
Alexandre é fã incondicional de P. G. Wodehouse, so do amigo, o Barão insiste em fazer com que César
segundo alguns sábios o escritor mais engraçado de recupere a memória do charme."
todos os tempos. Eu sou fã do Alexandre.
Sim. É isso mesmo que você leu. O Deus Egípcio do
O Alexandre é um dos poucos sujeitos, no mundo, Charme tinha reencarnado no Brasil, chamava-se
que conseguem fazer eu gargalhar lendo um livro. E Orlando e tinha cativado profundamente o Barão
não estou com hipérboles, tá? É gargalhar mesmo. Juquinha. Agora, renasceu em São Paulo e se chama
Rir alto. LOL, como diriam os americanos. "César".

A trama do livro quaaaase cai no nonsense (vide a O resto, como dizem, é história. Literalmente. Leia o
nota sobre Alice no País das Maravilhas), mas no livro. É hilário.
último segundo retoma o equilíbrio e o livro sai uma
espécie de… comédia afetiva. Eu sei, soa brocha. Mas
a culpa é minha, que já estou cansado e agora não
consigo classificar o inclassificável. Então vamos à
sinopse:

"João Maximiliano de Juquinha-Fortescue, oitavo


barão de Guisnay vel Quisney, último representante
dos Juquinha-Fortescue e, dizem, descendente
direto da Rainha Boadicéia, contrata um detetive para
encontrar um amigo desaparecido quarenta anos
atrás. Aos poucos, tanto o barão quanto o detetive
descobrem coisas espantosas sobre Orlando, esse
amigo desaparecido: que tinha uma fortuna de

Vocabulário: eu acho que não existe um único


escritor no Brasil que consiga escrever de forma tão
simples quanto o Alexandre. Mas não se engane: não
estou falando do simples-retardado, bobo-alegre, que
desprende aquele cheirinho de condescendência. E
também não estou falando do simples-analfabeto, que
acha que escrever é só colocar no papel tudo "que você
sente".
Estou falando do simples BOM. O simples artístico, que a
gente sabe ter sido criado depois de muitos anos e EDIÇÃO RECOMENDADA
muita técnica. O simples maximamente concentrado.
Enfim: leitura absolutamente fácil. Editora Realejo. 2013.

Trama: é aquela deliciosa maluquice que eu já


descrevi. Maluquice, sim, porém tão fácil de COMPRE AQUI!
acompanhar quanto o vocabulário.

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30.
DIFICULTÔMETRO
A Casa dos Budas
Ditosos,
de João Ubaldo
+18
ATENÇÃO: neste livro há
sacanagem explícita. Não o
Ribeiro recomendo para menores.

DESCRIÇÃO

Sumário relâmpago (e sem graça): uma velha dos, em mulher e padre e bicho – é cousa muito mais
sessentona, à beira da morte por um aneurisma saudável e digo mais: divina.
comendo-lhe o cérebro, resolve ligar o f*da-se e
contar o que resultou do inextinguível fogo na sua A Casa dos Budas Ditosos não é um soft-porn
xereca – toda sorte de putarias, bacanais, lambições comercial e domesticado.
e metelanças possíveis e imagináveis.
A sacanagem é consequência de uma personagem
Existem duas formas de ler o livro. Primeiro, existe a central. Ou seja: existe putaria porque existe alguma
leitura juvenil. personalidade. A mulher tem uma filosofia de vida e
uma voz para defendê-la com sinceridade.
A leitura deslumbrada de quem arreganha o c*
contra o capital. É quem lê o livro como um manifes- Aí podemos aprender alguma coisa.
to, jurando que sua cabeça oca penetrou a realidade
última das coisas com cada estocada, lambida, "Como seria a vida de uma mulher rica que só
cheirada e dedada da protagonista infinitamente vivesse para transar?"
rampeira. Como quem topasse com uma revelação
de última magnitude filosófica: o mundo só é triste Muito bem escrito, hilário, absurdo e realista em igual
porque as pessoas não enrabam a mãe na pia! medida. *EXPLÍCITO* e vazio.

A segunda forma é a de gente menos… atriz da Globo.

Consiste no seguinte: ler o livro como as memórias


de uma coroa rica, estéril e dona duma periquita
mais gulosa que o Jojo Toddynho depois de cair
numa piscina de Biotônico Fontoura. A mulher não
pode ver um jegue, um pepino, um cabo de guarda-
-chuva, que ali nas virilhas surge uma coceira, o
arrepio de Satanás com um frêmito anal percorre-
-lhe o corpitcho e a perseguida faz bico: ela quer dar.

Falei arrepio de Satanás? Errei. Segundo nossa


protagonista, a desenfreada vontade de sentar – em
pai, em irmão, em tio, em conhecidos e desconheci-

Vocabulário: Importante enfatizar que o livro é


REALMENTE explícito. Aqui não existem meias palavras.
Não existem alegorias ou metáforas ou alguma
sexualidade sugerida, atmosférica. O negócio é
arreganhado, às claras e direto.

Trama: A única coisa que vale a pena ser dita, creio, é


que se trata de um livro de memórias. Logo, a
narradora invade a história mais de uma vez para dar EDIÇÃO RECOMENDADA
suas filosofadas de boteco. De resto, o livro é A Casa dos Budas Ditosos. João Ubaldo
tranquilíssimo.
Ribeiro. Editora Alfaguara. 2019.

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31.Milagre em Paraisópolis,
de Fábio Gonçalves

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Josenildo é o pastor (ou, para ficar mais claro, paxtô) família o conforto que ele sempre sonhou. Silvana, a
duma igrejinha lá em Paraisópolis. Sujeito renhido, irmã sem graça que se apaga e quase some perante
cabra macho, com a testa curtida pelo sol nordestino a exuberância da irmã mais nova. Saulo, o menino
e o lombo adensado pelas chicotadas da vida. caçula, misterioso, orgulhoso, com aspirações
Josenildo viera do Nordeste, fazia vinte anos, em intelectuais que os outros não entendem e forçado à
busca de uma existência menos miserável em São vida de todos pelo pai.
Paulo.
Já abrimos o livro com um Josenildo trêmulo,
Trouxera consigo Lindalva, prenha, e desde aquela desesperado, que desmaia logo após uma pregação
época lhe fizera mais dois filhos. Trabalharam feito histérica no púlpito de sua igrejinha. Aos poucos,
duas mulas, deram aos filhos o que podiam e não tramoias cabeludas vão se desenrolando. Josenildo
podiam. Josenildo, coitado, criado na filosofia estóica tem segredos. Lindalva tem segredos. Glauber tem lá
da roça, sem reclamar ou afrouxar, obrigado a ser a suas esquisitices. Vídeos começam a circular.
firme coluna da família, foi procurar um terapeuta… Histórias bisonhas. Desconfianças absurdas. Corrup-
ção, mentiras, vingança.
A pinga.
A chapa começa a esquentar, as motivações come-
E tudo ia mal, desencaminhando-se, até que, labaxu- çam a se cruzar e enroscar e os personagens vão
rias! Josenildo converteu-se. Virou o famoso BÍBLIA. derrubando a máscara uns dos outros e deixando a
Sujeito que faria sapatinhos de reteté numa usina em própria cair e, quando você menos espera, o livro
Chernobyl usando terno e nunca, nunquinha, desar- estoura num clímax COMPLETAMENTE INESPERADO
vora a Bíblia do sovaco ensopado de suor. e tão absurdo quanto realista – porque o Brasil é um
absurdo inesperado que se repete todos os dias, com
Josenildo, antes já chucro e de espírito militar, obstinação sádica.
transforma o evangelho num porrete e sai vociferan-
do versículos de perdição a todos, com a fúria de O retrato complexo e fiel de um povo tão rico, forte,
Moisés do agreste. Homem bom, difícil, limitado, com frágil e incompreendido: os evangélicos pentecos-
uma fé torta, porém real. Com amor pela família tais. Livraço.
misturado a um orgulho de roça. Um antigo zé-nin-
guém transformado em líder espiritual de uns
irmãozinhos e irmãzinhas na favela.

"Milagre em Paraisópolis" é a história de Josenildo e


sua família. Lindalva, sua esposa com espírito de rica.
Letícia, a filha beldade, de parar o trânsito, que acaba
oferecida a um certo pastor Glauber em troca de
Josenildo pegar uma congregação maior e dar à

Vocabulário: livro de estreia do Fábio Gonçalves


(autor vivo, aliás, e novo), é preciso dizer que de vez em
quando ele exagera um pouco com expressões
lusitanas. Mas é coisa pouca, facilmente relevável. No
mais, o livro é muito bem escrito, com frases ricas e
descrições muito, muito boas (o forte do Fábio). Fácil e
gostoso de ler.

Trama: é absolutamente fácil ver-se no livro do


EDIÇÃO RECOMENDADA
Fábio. Se você não é ou já foi um crente evangélico, Um milagre em Paraisópolis. Fábio
com certeza conhece alguém assim desde que tenha Gonçalves. Editora Danúbio. 2020.
contato com a gente mais simples da periferia. A trama
é simples: os personagens reagem a eventos que
ainda não conhecemos. No final, o mistério vai se COMPRE AQUI!
adensando e acumulando até um clímax que resolve
(e revela) tudo.

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32.Dom Casmurro,
de Machado de Assis

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Bento Santiago, filho único (e mimado) de uma mulher escolhe um moleque pobre qualquer e
endinheirada viúva, desde pivetinho brinca todo o manda para o seminário em lugar de
santo dia com a moçoila da casa vizinha: Capitu. Bentinho.

Certo dia, quando tem lá seus doze anos de idade, Livres, enfim, dali a alguns anos Bento
Bento se embioca atrás de uma porta quando escuta Santiago e Capitolina se casam. Escobar, por
seu nome e espia com as orelhas uma conversa sua vez, vira o feliz maridão de uma antiga
sobre ele e Capitu. José Dias, o agregado, estava colega de Capitu, Sancha. Os casais viram
dizendo a Dona Glória que já era tempo de enviar o unha e carne.
moleque para o seminário. Tinham de apressar a
batina. Escobar e Sancha têm uma menina e lhe dão
o nome de… Capitolina.
Por que batina? Porque Dona Glória, que, antes de
Bento, já tinha perdido um filho no ventre, resolvera Quando Bento e Capitu têm o seu moleque,
fazer uma promessa a Deus: se o próximo filho naturalmente retribuem a gentileza e o
viesse com um pacotinho entre as pernas, a mulher batizam… Ezequiel.
faria dele um padre.
Até que Bento começa a enxergar no guri a
E por que tinham de apressar a batina? cara todinha do Escobar. Olhar, jeitão de andar,
gestos… tudo, tudo no menino parecia
Ah, essa é outra história. Porque Bento vinha se desenhar um par de belos chifres atolados
engraçando com uma certa moçoila da casa fundamente no crânio de um certo Bento
vizinha… Santiago…

Bento, àquelas tantas um moleque desmiolado, fica E assim chegamos ao Hamlet à moda
brabinho com José Dias e vai contar tudo para Capitu brasileira: ser ou não ser chifrudo, eis a
— o famoso levar a farinha para quem já fez o bolo, questão…
comeu tudo e lavou a louça. No meio do caminho,
sua memória juvenil começa a evocar imagens de Dom Casmurro é, seguramente, o maior livro
Capitu e a inteligência, à luz da revelação de José que Machado de Assis já escreveu. Uma obra
Dias, liga os pontos: CACETADA, A MULHER GOSTA que não perde em NADA para os maiores
MESMO DE MIM. clássicos europeus, russos e americanos. Que
tantos e grandes brasileiros tenham querido
Assim pensou Bento, de si para si. Compenetrada, bater o martelo em favor de Capitu ou Bento,
com o olhar vivo, a menina sagaz escuta e pesa com só prova o quanto é perfeita a ambiguidade
cuidado cada palavra que lhe sai da boca. machadiana e como a sombra do seu sorriso
sarcástico nunca haverá de deixar o Brasil – e
A partir daí, bolam mil e um planos para ele escapar o mundo.
do seminário. Todos falham. Desolado e vencido pela
mãe, o rapazola vê-se obrigado a ir para o seminário
de qualquer jeito — mas não antes de tascar um beijo
em Capitu e prometer-lhe que se casaria com ela.

No seminário, Bentinho conhece Ezequiel de Souza


Escobar. Um outro seminarista que logo vira seu
melhor amigo.

Enquanto isso, Capitu vai se engraçando com Dona


Glória e ganha o coração da viúva; e tanto o ganha
que a mulher resolve abrir uma entrelinha na sua
promessa divina, com o famoso jeitinho brasileiro:
afinal de contas, ela tinha prometido um PADRE, não
é? Quem disse que precisava ser Bentinho? A

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32.Dom Casmurro,
de Machado de Assis

Vocabulário: por favor, não se esqueça de que


estamos falando de um livro escrito quase dois séculos
atrás. Porém, Machado de Assis NÃO é um autor
especialmente difícil. Na verdade, bem o contrário. Fiz
questão de colocar Dom Casmurro no nível
intermediário justamente porque sei qual é o nível real
do leitor médio brasileiro. O vocabulário de Machado
pode causar, sim, problemas de compreensão imediata.
Algumas ironias são muito eruditas ou sutis. Nada,
porém, que um leitor intermediário não consiga driblar
e vencer só com um pouco de esforço.

Trama: ah… o(s) pulo(s) do(s) gato(s) em Dom


Casmurro…
Seguinte: a história é contada pelo próprio Bentinho, já
velho, como expediente para ela espantar demônios
que lhe atormentavam a memória. A ambiguidade
crucial do livro já começa na primeira PÁGINA, porque
"casmurro" quer dizer tanto "recluso, soturno" (uma
vibe meio emo) quanto "obstinado, cabeça dura".
Então preste muita atenção, leitor: você NÃO tem uma
visão objetiva sobre os acontecimentos. Tudo ali é o
Bento que conta. Conta o que quer, como quer, quando
quer.

EDIÇÃO RECOMENDADA
Editora Panda Books. 2019.

Editora Penguin. 2016.

Editora Principis. 2019.

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33.Incidente em Antares,
de Érico Veríssimo

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Sejamos sinceros: a literatura brasileira às vezes soa Com o tanto de merda que encontram nas
amarga demais. Com o devido respeito aos mestres, distintas vidas privadas. Com as circunstâncias
e fazendo justiça às mil e uma amarguras que já duvidosas, esdrúxulas, sacanas, que cercavam
brotaram e continuam brotando neste solo, de vez suas mortes. E começa a subir um cheiro de
em quando não seria mal… rir um pouco. Ainda que carniça insuportável. Alguns dizem que veio de
seja rir das nossas desgraças. Ou, pelo menos, cadáveres apodrecidos sentados numa sala de
escolher alguma luzinha mais colorida para jogar- estar.
mos sobre as tais *mazelas da sociedade*.
Outros dizem que, talvez, tenha vindo da
Aqui faz falta um gótico, um fantástico, um sobrena- podridão moral dos vivos…
tural que seja levado a sério – literariamente falando.
Até porque, bicho, existe país mais absurdo que o
Brasil? Existe história mais fantástica, trajetória mais
esculhambada, fauna social mais unicórnica do que Vocabulário: Érico Veríssimo é um escritor muito
a tupiniquim? gostoso de ler. Não é prolixo, nem verborrágico. Não se
perde com retórica. Descreve tudo de forma econômica.
Pois muito bem. Érico Veríssimo pegou a mão da Mas, aqui e ali, usa alguns regionalismos que podem
sátira fantástica, juntou-a com uma das mãos dum causar um tropeçozinho mínimo. No mais, não creio
espírito meio gótico e pôs os dois para montar que o livro apresente dificuldade real a qualquer leitor
um pouquinho mais acostumado com a leitura.
coladinhos no alado pangaré do bom humor.

A história é mais ou menos a seguinte: Quitéria Trama: pode-se entender e acompanhar a história
sem que sejam necessárias fontes externas de estudo.
Campolargo, respeitável e falecida matrona, arregala
os olhos numa sexta-feira 13 do ano de 1963. Sim.
Falecida. Quitéria acorda na sua tumba, espavorida, e
logo descobre que lhe fizeram o desfavor de não
enterrá-la dentro do cemitério da cidade de Antares.
Ela e outros seis mortos-vivos jaziam ali, insepultos,
do lado de fora do cemitério.

É que até os coveiros tinham aderido a um rebuliço


generalizado na cidade, uma greve de cabo a rabo.

Ora, Quitéria não era mulher de engolir desaforo.


Muito menos já morta. A matrona, literalmente
caindo aos pedaços, toda trabalhada na putrefação,
junta ou demais zumbis e os sete se organizam
numa coalizão unificada de mortos-vivos pelos
direito a um enterro público e de qualidade – ou
alguma coisa por aí.

Ou aquela cidade sem-vergonha enterrava seus


mortos como devia, ou o bagulho ia ficar louco e os
zumbis começariam um terrorismo assombratício:
sustos, visões e aporrinhações do além pra tudo
quanto é lado.

E por mais que já estivessem mortos, não perdem


tempo: já começam a seguir gente pelas ruas, EDIÇÃO RECOMENDADA
colando nelas em vielas e invadindo-lhes até a casa. Editora Companhias das Letras. 2006.
E quanto mais os zumbis assombram, mais ficam
eles mesmos… assombrados. COMPRE AQUI!

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34.Angústia,
de Graciliano Ramos

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

homem sofrido, tomado pelo ódio, engolido


Nós também temos um Dostoiévski. pelo rancor e subjugado pela pobreza.
É angústia em estado puro. Quantos de nós já
Luís Silva é um funcionário público de dia e, à noite, não sentimos ódio ou rancor? Quantos já não
nas horas vagas, um jornalista e escritor. O sujeito, perdemos algo que jurávamos ser nosso para
instalado em Maceió, conduzia uma vidinha bem alguém mais endinheirado, mais bonito, mais
medíocre e livre de grandes sustos ou emoções, até inteligente? Ou pura e simplesmente mais
ele botar os olhos em Marina. sortudo? E os sofrimentos do passado, qual
peso têm ou devem ter no presente?
Foi amor e compulsão à primeira vista. Luís se
entregou à mulher e deixou sua existência ser
engolida pela imagem e pelo corpo e pela presença
da amada. E, por um tempo, a coisa até chegou a Vocabulário: Graciliano é um escritor que não é de
funcionar bem. Marina, que não era besta, logo fez o ficar com rodeios. Modernista (bom), suas frases são
cálculo de que teria algum conforto e segurança com curtas, secas, exatas. Não força a barra nos
um funcionário público e se deixou levar pelas regionalismos e o texto sai, portanto, limpo e forte.
investidas de Luís. Vocabulário rico na medida certa.

Só que Luís não contava com uma coisa. Ou melhor: Trama: a história não é contada linearmente. Além
não contava com alguém. de ter flashbacks, o livro é quase um looping. O final do
livro é o começo da história. É preciso ficar atento aos
pulos temporais e vaivéns da obra.
Surge em cena um certo Julião Tavares. Que não era
só um funcionário público. Era rico. Rico, poderoso e
petulante como convinha a alguém tão endinheirado.
Num piscar de olhos, Marina faz um recálculo, larga
Luís e se joga nos braços de Julião.

"Angústia" é a história de um Luís desvairado, roído


pelo rancor, torturado pelos ciúmes. O livro é narrado
de forma não linear, seguindo o febril e cortado fluxo
de consciência dum Luís que começa a perseguir
Marina e sonhar com a ideia de matar Julião. É um
livro pesado, que joga o leitor na espicaçada pele do
protagonista logo com as primeiras frases.

Luís vai enfiando, à medida que lhe surgem na


cabeça, memórias de sua vida anterior à Marina no
meio da história de sua perseguição à Marina.

E tudo num estilo que vai desde o confuso, atropela-


do – com monólogos nos quais seu ódio fá-lo xingar
meio mundo e despejar sobre todos a raiva que
fervilha na sua alma –, até o quase lírico quando EDIÇÃO RECOMENDADA
surge Marina e uma límpida crueza quando nos
Editora Record. 2019
conta sua infância e juventude: de menino criado
junto com os avós no sertão. De seu pai ensinando-
-lhe a nadar na marra, como um verdadeiro *cabra- COMPRE AQUI!
-macho*. De moleque passando fome e dormindo na
praça.

O livro é sufocante, angustiante como o título. E o é


justamente por ser realista. Por trazer à vida com
tanta força e detalhes a psicologia aberta de um

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35.O triste fim de Policarpo
Quaresma,
de Lima Barreto
DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

aos militares; ao utilitarismo; ao materialismo;


O major Policarpo Quaresma é um patriota. Naciona- ao egoísmo mesquinho do brasileiro; ao
lista da gema. Amador do Brasil e inimigo-mor de "progresso" que só quer marchar em frente e
quaisquer estrangeirices, miúdas ou gigantescas. não liga para quem fica para trás.

Porque o major Policarpo Quaresma é um tipo Quaresma é um Dom Quixote à brasileira:


caricato. Ingênuo, empolado, de um orgulho tão fulano em cuja alma não sabemos onde
genuíno quanto brega e deslocado. Sujeito tragicô- termina a grandeza e onde começa o ridículo. O
mico, dia e noite o militar sonha com planos sem pé idealista que às vezes parece ser zombado
nem cabeça para catapultar o País à grandeza – mas menos porque é ingênuo e mais porque ama
pelo menos sonha, e pelo menos quer a grandeza seu País – e tem a desfaçatez, quase a cara de
para o seu País. Já fez mais do que 99% dos brasilei- pau, de tentar melhorá-lo.
ros.
Mas o Brasil é um moinho. E suas incoerências,
Daí que o major seja, além de caricato, um persona- seu povo ingrato e chucro, sua eterna sacana-
gem trágico. gem política vão moendo o idealismo do major
até forçá-lo a um final trágico. "O triste fim de
"O triste fim de Policarpo Quaresma" é dividido em Policarpo Quaresma" é a alma do Brasil.
três partes. Cada parte conta a história de algum
fracasso espetacular do major. O livro começa Infelizmente.
engraçado, com ironias mais à Machado e cenas
absurdas, de um ridículo de fazer a gente passar
vergonha alheia e dar gargalhadas. Progressivamen-
te, porém, o absurdo vai se tornando menos objeto
de gargalhada e mais algo ácido, cortante, triste.

Da comédia se passa à tragédia – e que ninguém


venha encher meu saco por "spoilers", hein? O livro
já foi escrito faz mais de século e logo no título tem
um TRISTE FIM!

O livro é uma verdadeira metralhadora giratória de


críticas. Críticas ao idealismo bobalhão e ao cinismo;
ao desprezo do brasileiro pelo conhecimento e aos
brasileiros que desperdiçam o conhecimento; ao
governo de Floriano Peixoto e aos governos em geral;

Vocabulário: dificuldade mediana. Por exemplo:


Lima Barreto já solta, logo na primeira frase, um
"bongava". Não se esqueça de que o livro é antigo e a
ironia do autor é construída, às vezes, com frases e
vocabulário propositalmente rebuscados.
EDIÇÃO RECOMENDADA
Trama: o livro é dividido em três partes. Em cada Editora Autêntica. 2012
uma delas, o major fracassa em alguma empresa. A
história vai passando do abertamente cômico do início
a um tom mais triste e trágico no final.
COMPRE AQUI!

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36.Menino de Engenho,
de José Lins do Rego

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Mas o real valor do livro está no lirismo, na


O livro abre com um Carlinhos de míseros quatro poesia, no olhar sentimental e profundo que
anos de idade descobrindo sua mãe morta; o José instala no centro do coração simples do
cadáver ensanguentado sob a figura desvairada do menino Carlinhos. O livro é narrado em
pai, que se esgoelava e chacoalhava o corpo vazio. primeira pessoa. É o próprio Carlinhos nos
contando sua vida e evocando as memórias
O pai, sujeito instável e amargo, que por anos tinha daquele engenho perdido – o cheiro da fumaça,
oscilado entre explosões de raiva e arroubos de o barulho da moagem, o mugir preguiçoso do
paixão arrependida, finalmente tinha despirocado de gado…
vez e matara a própria mulher. Os policiais chegam à
cena e o levam preso diante dum Carlinhos Acima de tudo, é Carlinhos narrando sua
atordoado, em estado de choque. passagem da infância à adolescência num
lugar estranho, ao mesmo tempo ameaçado e
Numa só tacada, perdera mãe e pai. Órfão. seduzido por um futuro incerto, sofrendo para
descobrir seu lugar no mundo e por que diabos
A partir daí, Carlinhos vai morar com o avô materno tudo aquilo de mal lhe tinha acontecido.
nos arredores dum engenho de açúcar – mundo,
aliás, que nunca tinha conhecido porque seu pai Ou seja: a história de todos nós.
nunca se dera bem com o avô. É ali, numa realidade
nova e estranha, enfiado quase no meio da mata e
cercado de pessoas que lhe parecem exóticas, que
Carlinhos vai ser obrigado a continuar crescendo e
amadurecendo longe da mãe que tanto o tinha
amado.

"Menino de Engenho" foi o primeiro livro de José Lins


do Rego e também o primeiro livro do seu chamado
ciclo da cana do açúcar: livros que giravam em torno
da vida nos antigos engenhos de cana, no Brasil
pré-industrial do comecinho do século XX.

É interessante saber como era a vida naquela época?


Sim, claro. Na verdade, mais do que interessante: é
crucial e quase um dever de brasileiro.

Vocabulário: José Lins deve ser o único autor da


literatura brasileira que conseguiu escrever com uma
carga elevada de lirismo e ao mesmo tempo ser
extremamente simples. Sua obra é uma mistura de
conversas com memória. É tão simples que nem
parece que estamos lendo um romance.

EDIÇÃO RECOMENDADA
Trama: A história é cronológica e contada em 40 Menino de Engenho. José Lins do Rego.
capítulos curtinhos. Ou seja: nenhuma dificuldade. Editora Global. 2020.
Mesmo. A cada novo capítulo curtinho, a história
avança dois passos à frente.
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37.Relíquia,
de Eça de Queiroz

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Zero papas numa língua rebuscada, floreada,


Teodorico Raposo é um belo dum cafajeste. Já se tira profundamente rica. Um dos maiores estilistas
sua qualidade moral do apelido RAPOSÃO. Quem da língua portuguesa de todos os tempos.
pode ser gente boa, gente confiável, com uma
alcunha tão sugestiva de sacanagens e tramoias às O livro é hilário, às vezes escandaloso, cínico,
escuras? variado e colorido. É a fase mais cáustica e
revolts de um dos maiores escritores que
Raposão narra sua própria história e começa pelo Portugal já criou.
começo: sua infância. Órfão, o rapaz é criado pela tia
Maria do Patrocínio. Uma católica avarenta, horrível,
com as partes baixas mais secas que penico de cego Vocabulário: em primeiro lugar, não se esqueça de
e aquele jeitinho especialmente repulsivo de beata que Eça de Queiroz era português. Não estamos falando
de um autor brasileiro, com português daqui. Em
fanática. Uma velha frígida, duplamente enrugada:
segundo lugar, Eça é considerado como um dos
pela velhice e pela carolice. maiores estilistas da língua. Ou seja: o sujeito que
escrevia de forma mais bonita, marcante e engenhosa.
Só que a Titi tem algo a mais: uma fortuna. É PODRE Seu estilo não é simples. É um estilo rebuscado, com
DE RICA. frases longas e descrições ainda maiores. O vocabulário
é extenso. Resolvi colocar "A Relíquia" como o livro
E o Raposão, óbvio, esperava um dia herdar toda sugerido justamente porque é bem menor do que os
aquela bufunfa. Na verdade, fazia mais do que outros e existe uma edição com fartas notas de
vocabulário.
esperar. Raposão trabalhava! Ou seja: ludibriava a
velha. Fingia ser o beato mais carola, o coroinha mais
castiço e virginal de que já se tivera notícia em Trama: o estilo narrativo é bem tranquilo. São
memórias contadas por um narrador que se lembra do
Portugal e d'além mar – tudo enquanto, na verdade, o passado. A única parte em que podem surgir
moleque enche a cara, fuma o que lhe chega às problemas é quando ocorre uma viagem-sonho, na
mãos e só quer passar o rodo em geral. qual o Raposão assiste aos bastidores do martírio de
Cristo. Basta dizer o que eu já disse: é uma viagem que
Porém, Raposão finge tão bem que a tia, coitada, com tem algo de sonho, algo de alucinação, algo de
medo de que viesse a bater as botas num futuro revelação (Eça não deixa isso claro).
próximo, resolve usá-lo como seu representante
numa peregrinação à Terra Santa. Sua missão seria
trazer-lhe uma… relíquia. Marca e sinal da religião.

E lá se vai Teodorico numa viagem com tudo pago ao


Egito e à Palestina, onde conhece um certo
arqueólogo alemão Topsius e trava relações – if you
know what I mean – com uma certa Miss Mary. Uma
inglesa com um trabalho tão antigo quanto as terras
que ele estava visitando…

Será que, ali na Terra Santa, Raposão vai renunciar à


sacanagem e ao mundanismo para encontrar a
religião? Será que estar longe da Titi mudará seu
coração? Ou será que a longa viagem, o contato físico
e a presença do sagrado naquelas terras místicas e
exóticas servirão para exatamente NADA em relação
à sem vergonhice de Teodorico?

"A Relíquia" é um livro profundamente sarcástico. Eça EDIÇÃO RECOMENDADA


de Queirós tira sarro de tudo: da religião católica, da Editora Panda Books. 2019
vidinha burguesa, da monarquia. É aquele humor
para enfiar três dedos na ferida e fazê-la sangrar. COMPRE AQUI!

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38.O Encontro Marcado,
de Fernando Sabino

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

gráfico: o ciclo da infância, a escola, a iniciação


A história de Eduardo Marciano não é cheia de sexual, o primeiro namoro, a natação, o casa-
estripulias, viagens (reais ou alucinógenas), grandes mento, os amigos Mauro e Hugo (representati-
revelações ou reviravoltas rocambolescas. O sujeito vos de uma geração)... além de servir como
não conta sua vida do além, entrega sem querer à tia registro dos novos círculos de amizade e de
religiosa uma camisola de prostituta ou sai por aí intelectualidade, durante os anos 40 em Belo
pregando que a língua nacional seja o tupi-guarani. Horizonte e no Rio de Janeiro.

Eduardo Marciano em tudo é como nós: um sujeito Acima de tudo, porém, o livro é sobre o sentido
comum que só quer se encontrar. Talvez o que ele da existência. Porque é muito fácil a gente se
tenha e nos falte é querer de verdade. atolar de obrigações e fingir que está tudo bem.
Empurrar com a barriga o vazio, as perguntas
"O Encontro Marcado" é dividido em duas partes. "A incômodas. A história de Eduardo é a história
Procura" e "O Encontro". Nas duas, Fernando Sabino que pode ser a de todos nós – se, como ele,
conta justamente a história de Eduardo desde a também procurarmos a sério.
infância até a vida adulta. É um percurso pela vida do
protagonista. Uma excursão poética pela sua biogra-
fia. O resumo de uma existência.
Vocabulário: A linguagem do livro é leve e muito
Birrento, cabeça-dura e mimado, o guri nasceu e tranquila. Realmente não existem palavras difíceis ou
cresceu em Minas Gerais, fazendo dos pais gato e desconhecidas. Fernando Sabino é um escritor sóbrio,
sapato com suas manipulações de criança moderna. elegante e acessível.

O livro começa na casa de Eduardo. Numa espécie de Trama: o livro é estruturado em duas partes (“A
procura” e “O encontro”), divididas em três subpartes
lista afetiva das coisas que lhe tinham marcado a
(Em “A procura”: “O ponto de partida”, “A geração
consciência: um pé de manga, um barquinho de espontânea”, “O escolhido”; em “O encontro”:
papel na poça d'água barrenta no quintal. A trilha das “Movimentos simulados”, “O afogado”, “A viagem”). O
formigas. narrador oscila entre a terceira e a primeira pessoas.

Mais tarde, Eduardo descobre a literatura, com ela


descobre em si um talento para a escrita e até
prêmio ganha. Na adolescência, duas coisas
marcam-lhe o espírito para sempre: o suicídio de um
amigo e o romance proibido (pelo pai) com uma
guria.

E Eduardo, só no sapatinho, vai vivendo e se deixan-


do levar pela vida: cai numa vida boêmia, entra num
relacionamento sério com os barzinhos e, mais
tarde, fiel à birra de criança, casa-se com mulher que
não tinha aprovação dos pais.

Ocorre que o nosso herói, a certa altura do campeo-


nato da vida, começa a sentir que nada faz sentido.
Surgem uma ou duas tragédias. Com elas, o
arrependimento e o vazio no estômago. Com o vazio
no estômago, o vazio existencial. E Eduardo começa
a procurar onde pode haver um sentido para toda
sua vida. EDIÇÃO RECOMENDADA
Editora Record. 1995.
"O Encontro Marcado" é livro com temas muito bem
definidos, alguns característicos do gênero autobio- COMPRE AQUI!

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39.Memórias Póstumas de
Brás Cubas,
de Machado de Assis
DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

bem sinceros, não passou de uma longa e


Eu sei, eu sei. Machado de Assis foi o escritor enfadonha mimação cósmica. Sujeito
nacional com mais livros na lista. privilegiado, Brás se pode dar ao luxo de criar
uma filosofia cínica e nunca se comprometer
Só que o Machado… é o Machado. Pô. Nosso maior de verdade com nada. Sacrifício, abnegação,
escritor. E as "Memórias Póstumas" é o livro que dever… são palavras que nem lhe fazem
marca a virada de chave do seu gênio. sentido.

Machado de Assis nunca tivera uma saúde lá muito Na teoria, sinceridade brutal. Sem verniz ou
boa. Franzino, de constituição naturalmente frágil, meias palavras. Brás Cubas não precisa mentir
Machado de vez em quando sofria ataques para os outros, já que está morto. Porém, ainda
selvagens de epilepsia e por conta deles nunca existe uma pessoa a quem pode mentir. Ele
conseguia ter uma saúde robusta. Só que em 1897 mesmo.
algo pior aconteceu.
"Memórias Póstumas de Brás Cubas" é de um
Depois de uma crise nervosa especialmente aguda, estilo marcante, absolutamente genial. Aqui
Machado ficou cego. você vai encontrar, leitor, páginas que fariam
inveja aos maiores escritores de todos os
Não estou falando metaforicamente cego. Não estou tempos. Páginas que se elevam às alturas de
dizendo que "Machado perdeu o dom do olhar um Shakespeare, de um Cervantes.
poético" ou sei lá o quê. A coisa é literal: Machado de
Assis não conseguia ver porcaria nenhuma. E isto sem falar na crueza, no cinismo, no vazio
quase niilista que antecipa tanto do que viria na
A metáfora entra agora: sem conseguir enxergar o arte moderna. É um livro à frente do seu tempo,
mundo exterior, Machado se viu obrigado a olhar o uma joia de estilo e glória eterna das nossas
mundo interior. Arregalou os olhos da inteligência o letras.
quanto pôde e vasculhou com uma crueza, uma
clareza inéditas tanto sua alma quanto as almas
alheias.

Daí surgiu uma revelação e Machado de Assis


perdeu, definitivamente, "todas as ilusões entre os
homens". Foi da cegueira que emergiu com a força
plena aquele humor cáustico, o olhar
descaradamente realista, a inconfundível ironia. No
escuro, resplandeceu a luz do seu gênio e lhe surgiu
uma ideia tão inusitada quanto prodigiosa:

Um morto que, já no além, roído pelos vermes, de


alguma forma nos contasse sua história de vida. A
autobiografia escrita por um falecido.

A ideia do livro seria a de que, na morte, o narrador


Brás Cubas fosse completamente sincero e honesto.
Seria um ligar o f***-se literário. Um dizer tudo às
claras, sem a precisão de agradar fulano ou não
escandalizar sicrano ou causar treta com beltrano.
Um livro escrito com "o incomensurável desdém dos
finados".

Brás Cubas foi, em vida, um playboizinho culto,


perspicaz e mimado. Sua existência, para sermos

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39.Memórias Póstumas de
Brás Cubas,
de Machado de Assis

Vocabulário: o vocabulário e estilo de Memórias


Póstumas já são um pouco mais avançados e
<rebuscados> do que os de outros livros e autores que
pus aqui na lista. Mas não digo "rebuscado" no mau
sentido. No sentido de coisa prolixa,
desnecessariamente complicada. O estilo de Machado é
RICO. Aqui e ali, é verdade, de vez em quando Machado
podia exagerar nas alusões ou esticar demais piadas ou
histórias paralelas. Mas ninguém tinha um estilo tão
engenhoso e memorável como o dele. Então, leitor, já
saiba de uma coisa agora: se você "não gostar" do estilo
de Machado, a culpa é sua. Leia de novo até entender e
gostar.

Trama: os oito ou nove primeiros capítulos podem


parecer, aos apressados, não ter nada a ver com a
história. Têm sim. Têm tudo a ver com a construção do
personagem principal. Especialmente o capítulo sete,
do delírio. A chave de leitura aqui é: tente descobrir o
que cada um daqueles capítulos sugerem sobre a
personalidade e o caráter de Brás Cubas.

EDIÇÃO RECOMENDADA
Editora Panda Books. 2018

Outras edições não diferem muito entre si.

COMPRE AQUI!

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IN
TER
Inter-
nacionais

NA-
Isso aqui ixquéci, né? Tamo falando da elite. Da alta-roda.
Da nata.

CIO-
Você vai encontrar de tudo um pouco: loucura, chicota-
das no lombo e uivos selvagens? Temos. Histórias que se
arrastam como um pesadelo? Check. Russos com aque-
las análises psicológicas medonhas de tão exatas? Of
course. Histórias comoventes? Já prepare os lenços, faz
favor.

Vícios, tiração de sarro, romance, fantasmas, absurdos


sem pé nem cabeça, tretas de toda a sorte, chiliques,
estranhices, claustrofobia, redenção, sarcasmo, tapas na

NAIS
cara e beijos apaixonados?

Tudinho aqui. São alguns dos melhores livros que já


foram escritos pela humanidade. Os mais impactantes.
Mais inquietantes. Mais bonitos. Mais ricos. Mais simbóli-
cos.

E o melhor: livros que você, leitor iniciante, com certeza


conseguirá ler.

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40.A Metamorfose,
de Franz Kafka

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Gregor Samsa é um caixeiro viajante que, depois de Vocabulário: Kafka é um escritor


suar frio com sonhos estranhos, acorda pela manhã surpreendentemente simples. Sua linguagem é exata,
e descobre que virou um inseto gordo, nojento e sóbria. Ele nunca usa palavras que não sejam
gigantesco. absolutamente necessárias, nem força a barra com
descrições inúteis ou falta completa de descrições. É o
E não. Não é metáfora. Gregor não "acha" que virou equilíbrio perfeito. Facílimo de ler.
um inseto. A coisa não é ilusão. Não é sonho. Não é
alucinação. Gregor Samsa não é um trans-besouro,
nem a barriga côncava e mole da qual brotam Trama: não tem nenhum segredo. É a sequência
perninhas peludas é um "símbolo". linear de tudo o que acontece a partir da manhã
fatídica. Lê-se o livro em menos de duas horas, se você
Gregor Samsa literalmente virou um inseto. E pior: estiver no pique.
em vez de ficar absoluta e terrivelmente desespera-
do, dar um chilique apocalíptico e se esgoelar
gritando loucamente "QUE PORRA ACONTECEU?", o
sujeito olha para suas muitas perninhas finas,
debatendo-se impotentes no ar, e, com a expressão
de saco cheio, pensa consigo:

"Rapaz, mas que trabalhinho de merda esse que eu


tenho, viu…"

E duplamente pior: o livro não lhe explica NADA. Não


existe, como nos antigos contos de fadas, alguma
maligna bruxa do 71 que o transformou para lhe dar
uma lição. Não existe um feitiço que "só pode ser
quebrado pelo Amor." Gregor não foi abduzido por
alienígenas. Não sofreu algum acidente biológico ou
químico como, sei lá, o Hulk. Não recebeu sua forma
de besouro como um gift para se tornar o próximo
Black Kamen Rider.

Gregor é um sujeito banal, preso num trabalho que


odeia a fim de que possa sustentar uma família que,
no máximo, tolera sua presença. Até, claro, ele não
conseguir mais trabalhar. Porque, repito, certo dia
acordou de manhã e VIROU A DESGRAÇA DE UM
INSETO GIGANTE.

O livro é curto, enervante, melancólico e… engraçado.


O famoso não sei se rio ou se choro. O engraçado se
mistura com uma tristeza às vezes comovente e cria
EDIÇÃO RECOMENDADA
o desconforto pelo banal. O banal que persiste como A Metamorfose. Franz Kafka. Tradução de
aquela coceira que você não consegue alcançar no Modesto Carone. Editora Companhia das
meio das costas. Como a sensação, terrível, de que… Letras. 1997.
você se identifica com um sujeito que literalmente
virou um inseto. COMPRE AQUI!

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41.O Velho e o Mar,
de Ernest Hemingway

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Um dos livros mais comoventes de Ernest


Hemingway (sério, é de fazer chorar), "O Velho e o Santiago, certo dia, em vez de se curvar ao que
Mar" também foi o livreto que lhe rendeu o prêmio parecia ser inevitável, resolve jogar-se em alto mar
Nobel de literatura depois de Hemingway, putaço uma última vez. Completamente sozinho.
com a crítica que andava dizendo que ele não
conseguiria escrever mais nada que prestasse, Contra o sol abrasador, a noite glacial e o mar
resolveu mostrar quem é que mandava naquela traiçoeiro e violento lança o velho um último desafio.
p**** – quem ganhou fomos nós. De um lado, a inesgotável natureza. Do outro, a
impavidez de um pescador sem nada a perder.
Santiago é um pescador cubano já velho, arqueado
sob as décadas de vida e quase vencido pelas rugas Até que Santiago sente uma puxada selvagem no
que lhe cortam o rosto duro, queimado pelo sol e anzol – tinha fisgado o maior peixe da sua vida. Um
salpicado pelo sal do mar. Sem esposa ou filhos. Com marlim do tamanho de seu barco.
a visão falhando. O corpo esgotado. Quase passando Agora, só lhe resta não soltar a linha e invocar das
fome. Já pobre no normal, agora estava à beira da ruínas do corpo a força para vencer o duelo da sua
miséria completa. vida.

É que fazia oitenta e quatro dias que o velho não Será que o velho conseguirá vencer o espadarte
conseguia pegar um mísero peixe. gigante? "O velho e o mar" é uma história de
coragem, resiliência, amor entre amigos muito
A sorte, os anos, o corpo e até os outros pescadores diferentes e a complicada – e violenta, e linda, e
da vila pareciam acumular-se, juntar-se numa poética – relação entre o homem e a natureza.
conspiração para destruí-lo. Sua carcaça era quase
um talismã de azar. O sujeito já não sabia pescar. Seu
corpo arruinado não lhe servia de mais nada. O velho,
experiente, fora reduzido a um mendigo inútil; um
saco inútil de carnes frágeis e pele solta que só
atrapalhava os mais novos e fortes. Talvez o melhor
fosse morrer de uma vez. Afinal de contas, ninguém
sentiria sua falta.

Ninguém, a não ser uma pessoa.

Seu amigo, um menino da vila. Um guri, também


pescador, que insiste em não arredar pé do velho.
Que conversa com o velho sobre beisebol. Que
acompanha o velho até sua casa. Que, na surdina,
ludibriando o velho que tentava esconder sua fome,
compartilhava com ele sua pouca comida.

Vocabulário: Se Hemingway, no geral, é já


conhecido pela sua linguagem simples e frases curtas,
em "O Velho e o Mar" a coisa torna-se ainda mais EDIÇÃO RECOMENDADA
simples. Ainda mais clara. No máximo, uma ou outra
palavrinha técnica de pescador pode causar algum O Velho e o Mar. Ernest Hemingway.
problema, mas o próprio Hemingway trata de Tradução de Fernando de Castro. Editora
explicá-las. O livro é absolutamente fácil e pode ser lido Bertrand Brasil. 2013.
por qualquer um.
COMPRE AQUI!

Trama: A arquitetura da história é igualmente


simples. Uma linha do tempo que caminha em linha
reta: começo, meio e fim.

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42.O Morro dos Ventos
Uivantes,
de Emily Brontë
DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Carniçais, vampiros, lobisomens, vira-latas raivosos, mentirosos, manipuladores, sádicos, escrotos,


lamentos e gritos do além, espectros horripilantes sacanas, cafajestes, neurastênicos, truculentos,
roçando a janela em casarões abandonados ao viperinos, iracundos, volúveis, desonestos, sacripan-
deus-dará, criaturas vagando o selvagem descam- tas, hipócritas…
pado no limiar entre nosso mundo e o inferno? Sim.
Loucos dando cabeçadas em árvores? Temos. Um clássico gótico, às vezes surpreendentemente
divertido e sempre muito bem escrito.
Violência, sangue, abuso, incesto, chicotes, pauladas,
tapões na cara, xingaria, humilhação, aviltamento e
baixaria que até membros de A Fazenda não conse-
guiriam imaginar? Certeza. Vocabulário: considero "O Morro" um ótimo livro de
transição. Ele já apresenta uma escrita mais sofisticada,
E amor? muito mais rica do que a de best-sellers fáceis, mas
nada que seja pesado ou arrastado ou prolixo. Fora que
a história tem tanta loucura, tanta reviravolta e tanta
Pior que sim… também. De certa forma. Tão doentia
baixaria que fica difícil não prestar atenção.
quanto apaixonada.

"O Morro dos Ventos Uivantes" não é uma historinha Trama: um detalhe merece atenção especial. Emily
de amor convencional. Esqueça os filmes de Brontë usa, aqui, aliás de forma pioneira, a mesma
Hollywood. Aqui o bagulho é mais embaixo. técnica que George Martin usa em Guerra dos Tronos:
múltiplos narradores. Ou seja, são várias pessoas
Por cima, a trama é a seguinte: certo dia, o pai de diferentes contando a história, todas em tempos
diferentes. Então é bom você ficar esperto e manter
Catherine chega de uma viagem com um moleque.
sempre uma saudável pulga atrás da orelha. Não dá
Do nada. Sem explicações ou justificativas. Um para confiar completamente em tudo o que lhe dizem.
moleque que parece ser cigano, com o cabelo
esgrouviado e as roupas esfarrapadas. Mórbido e
violento, parecia um bicho. Seu nome: Heathcliff.

Catherine, naquela época uma guriazinha nova, não


tem NADA a ver com as mocinhas de contos de
fadas. Era uma pequerrucha orgulhosa, explosiva,
invejosa e uma matraca insuportável. Logo se
afeiçoa a Heathcliff e os dois ficam inseparáveis,
quase virando uma só coisa de tão unidos, até que
ela resolve dar um pé na bunda do Heathcliff. Casa-
-se com o vizinho engomadinho da única casa
próxima: Edgar Linton.

Heathcliff fica louco de ódio e some por vários anos.


Depois, volta com uma misteriosa fortuna e com a
firme intenção de LASCAR COMPLETAMENTE com a
vida de todo mundo – embora ame Cathy. Ou não. Ou
sim.

É o seguinte, leitor: Heathcliff e Catherine não são


apenas um "casal tóxico". O que existe entre os dois
não é um simples morde e assopra entre dois EDIÇÃO RECOMENDADA
desequilibrados. Eles são quase uma coisa só; um
monstrengo de quatro pernas. Editora Penguin. Tradução de Julia Romeu.
2021.
O mundo d'O Morro não é bem o nosso mundo. O
livro não quer ser "realista". Paira ali uma atmosfera COMPRE AQUI!
demoníaca, opressiva. Todos são tristes, neuróticos,

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43.Primeiro Amor,
de Ivan Turguêniev

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Numa after party de algum aristocrático casarão da


Rússia, um grupo de homens de meia-idade, já um Vocabulário: obra com linguagem fácil, clara,
maravilhosamente limpa de entulhos. As frases são
pouco entediados e naquele clima meio lânguido, cristalinas. O vocabulário, mesmo quando o autor usa
meio morto, de quem encheu o bucho e está com alguma palavra menos comum, permanece acessível. O
preguiça de viver, resolvem inventar algum único inconveniente é, de novo: Russos têm nomes
entretenimento: todos teriam de contar a história do MUITO DIFÍCEIS e leva algum tempo para você ligar
seu primeiro amor. aquele amontoado de letras aos personagens.

Ah, um tinha se casado com seu primeiro crush. O


Trama: absolutamente tranquila.
outro nem se lembrava direito, porque se apaixonara
pela babá com seis anos… nada demais. Até chegar a
vez de Vladímir Petróvitch, que primeiro se recusa a
contar sua própria história e depois cede, porém com
uma condição: ele teria de escrever a coisa à mão e
levar o relato no dia seguinte.

Ou seja: O NEGÓCIO ERA BOMBA.

E assim começa o livro. Com Vladímir Petróvitch


evocando sua adolescência e contando a história de
como só faltou ficar de quatro e abanar as orelhinhas
para a filha de uma vizinha nova, Zinaida.

Loura, mais velha, do riso fácil e um olhar


efervescente, Vladímir a vê pela primeira vez
embaixo de uma árvore e seu russo coraçãozinho já
tropeça NA HORA, fica em stand-by por alguns
segundos e depois começa a esmurrar-lhe o peito
com a selvageria de um Mike Tyson em pleno auge
carnífice. O guri não sabe se ri ou se chora, o intestino
vira um pretzel e as pernas tornam-se invertebradas:
eis a paixão.

Do auge de seus 16 anos de idade, Vladímir vai se


tornar cada vez mais obcecado pela louraça um
tiquinho desequilibrada da vizinhança. Zinaida é
caprichosa, volátil, sarcástica e nunca se resolve a
mostrar pelo rapazola qualquer afeição que seja
CLARAMENTE de namorados, e não de amigos ou
irmãos.

Vladímir, porém, como qualquer adolescente


apaixonado e enfeitiçado por alguma ninfa dourada
de vinte e um anos de idade, não desiste. Não desiste
e começa a notar algumas coisas estranhas,
suspeitas, escrotas…
EDIÇÃO RECOMENDADA
"Primeiro Amor" é uma pequena obra-prima. Uma
joiazinha escrita a partir do ponto de vista de um Editora Penguin. Tradução de Rubens
adolescente na flor da paixão – e como a paixão, às Figueiredo. 2015.
vezes, pode revelar algumas verdades que
morreríamos para deixar escondidas. COMPRE AQUI!

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44.A morte de Ivan Ilitch,
de Lev Tolstói

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Ivan Ilitch é um alto oficial da Corte de Justiça da Vocabulário: a linguagem é muitíssimo simples.
Tolstói talvez seja o autor mais capaz de combinar
Rússia – um figurão. O funcionário público que deu
simplicidade com profundidade. Um mestre. O mestre.
(muito) certo na vida. Agradável, inteligente, O único porém que pode atrapalhar um pouco sua
profundamente responsável e eficiente, Ivan não é o leitura são alguns nomes e apelidos russos (sempre é
estereótipo do "pai de família que esconde um meio bagunçado ler os russos).
segredo terrível" ou tem fetiches sexuais bizarros por
trás de sua máscara de respeitabilidade.
Trama: a história já começa com o enterro de Ivan
(sim, ele morre). Sua vida, portanto, é contada como se
Não. Tolstói não cai nessas críticas hollywoodianas fosse num flashback. Zero dificuldades em relação à
trama.
bobas, simplistas.

Ivan é casado e tem dois filhos: um adolescente e


uma filha mais velha, com dezessete anos de idade.
Podia-se dizer que Ivan era… feliz. Universalmente
respeitado e amado.

Mas… será mesmo?

Até que certo dia o figurão Ivan, dono da vida


perfeita, escorrega na própria casa e com um tombo
imbecil, banal, absolutamente estabanado, soca a
lateral do corpo na quina de um móvel. No começo,
faz pouco caso da queda. Depois, porém, à medida
que a dor piora, Ivan vai até um médico e recebe o
diagnóstico: dali a pouco tempo, ele iria morrer.

O resto do livro gira em torno de um Ivan que,


inutilizado pela ferida mortal, começa a enxergar a
vida à luz da morte. Sua família não lhe dá a mínima.
Nunca deu. Assim como ele nunca dera a mínima
para eles. Seus amigos são todos interesseiros,
assim como ele. Sua alegria com o trabalho não
vinha de uma "disposição ao serviço" – vinha da
vaidade.

A realidade imperiosa da Morte vai forçando Ivan a


largar as mentiras com as quais tinha dourado sua
vida e encarar a pergunta última: "o que é realmente
uma vida que vale a pena ser vivida?"

"A Morte de Ivan Ilitch" é um dos livros mais


poderosos que eu já li em toda a minha vida. Com
EDIÇÃO RECOMENDADA
certeza está entre os melhores livros de todos os A morte de Ivan Ilitch. Liev Tolstói. Tradução
tempos. de Boris Schnaiderman. Editora 34. 2009.

E o melhor: curto e absolutamente fácil de ler.


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45.O Jogador,
de Dostoiévski

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Ironia das ironias: Dostoiévski andava (para não Até descobrirmos o seguinte: Alexei estava
variar) sem dinheiro. Mais liso que bagre ensaboado. loucamente apaixonado pela enteada general. A
O motivo? Jogo. O velho russo tinha alma de bicheiro mulher, porém, gosta de brincar com os corações
e amaaaava uma jogatina. Na real, era um viciado. alheios, fazendo um eterno e infernal joguinho de
vaivém: ora despreza Alexei, fria como gelo; ora se
Que faz, então, o gênio Dostoiévski? Desce o derrete todinha e soa meiga, melíflua, quase
machado no meio do crânio de uma velha usurária e apaixonada.
lhe rouba o dinheiro? Comete 171 na vendinha da
esquina? Escreve uma fanfic hot de alguma história Um dia, a mulher se achega de Alexei e lhe conta um
do Gógol? Ou desce ao fundo do poço e vira um segredo, no pezinho do ouvido: ela estava
influenciador de Instagram, como este que vos endividada. Agora cabia a Alexei, claro, arranjar-lhe o
escreve? máximo de dinheiro possível. Ele que se virasse nos
trinta.
Nada disso.
Eis, então, o príncipe enfiado numa sinuca de bico: o
Dostoiévski, sem dinheiro porque era um viciado em amor pela mulher queria jogá-lo de volta no amor
jogo, resolve escrever às pressas um livro sobre… pelo jogo – e ambos pareciam querer desgraçá-lo de
um sujeito viciado em jogo. vez.

O Jogador é um livro sobre vícios. Dependência, Dostoiévski foi, talvez, o mais agudo e
adição, compulsão… you name it. O que o vício pode impressionante conhecedor da alma humana a
fazer ao ser humano? Mesmo aos melhores, mais escrever literatura. E "O Jogador" não fica atrás de
inteligentes e generosos entre nós? Quais são as suas obras-primas.
justificativas, as meias-verdades e as mentiras que o
viciado conta para si e alardeia aos outros? Como
funciona a longa espiral de desgraças em que se
afunda um viciado em jogo, sim. Mas também um
alcoólatra, um cocainômano, um viciado em putaria
hardcore?

Só que o livreto não para por aí. Alexei Ivânovitch é


um fidalgo de vinte e cinco anos. Inteligente, culto e
nobre, falador de três línguas, Alexei começa o livro
na posição estranha de preceptor dum certo general.
Ou seja: dava aulas aos filhos do sujeito. Posição
estranha, baixa, para alguém tão gabaritado.

Vocabulário: A linguagem é simples e sem palavras


difíceis. Como sempre, a parte difícil são aqueles mil
nomes diferentes, cada um mais esdrúxulo do que o EDIÇÃO RECOMENDADA
outro, sem contar os apelidos.
Editora Penguin. Tradução de Rubens
Figueiredo. 2017.
Trama: A história segue uma narrativa cronológica.
Com início, meio – um clímax – e fim. Não é preciso Editora 34. Tradução de Bóris Schnaiderman.
saber a história da Rússia ou qual era o contexto social
2011.
da época.

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46.Cândido ou o Otimismo,
de Voltaire

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Voltaire era um belo dum sacana. Escritor e jornalis- jardim), SÓ SE LASCA. Sofre um naufrágio, escapa do
ta, na época da escola Voltaire devia ter sido um naufrágio para cair no meio de um terremoto, foge do
daqueles moleques populares, ovacionados pela terremoto e cai no colo da Inquisição, levando
geral. Porque fosse bombadão, com os bíceps gostosas chibatadas no lombo. Depois, parte rumo a
rasgando-lhe a camisola afrescalhada? Porque fosse Buenos Aires logo depois de esfaquear um judeu e
um baita centroavante (perdoe o anacronismo)? um inquisidor, escapole de Buenos Aires para o
Talvez um galã – precoce ou tardio? Paraguai e dali precisa fugir outra vez…

Não. "Cândido" é uma das sátiras mais famosas de toda a


história. Voltaire, claro, quer principalmente tirar uma
Porque sabia tirar sarro. com a cara do otimismo. Este mundão é uma zorra,
uma desgraça e a merda continua merda se você
Na época de Voltaire havia um certo filósofo. Sujeito jogar purpurina nela.
fraquinho, coisa pouca. Seu nome era Leibniz e ele foi
um dos maiores filósofos de todos os tempos. Dez Pelo menos, da merda podemos rir.
mil vezes mais inteligente do que Voltaire. Um
daqueles gênios que a gente mal pode acreditar que
existam. Um QI cuja sombra engolia a Europa. Um
monstro. Brabo demais. Vocabulário: O vocabulário é bastante simples.
Voltaire atinge o cômico pelo contraste: quanto mais
Só que Voltaire sabia tirar sarro. E Leibniz, para todos simples o estilo, mais claro e sem rodeios, mais
os efeitos, era um nerdola. As coisas sobre as quais engraçada e absurda se torna a sátira.
falava eram tão avançadas, tão elevadas, tão esdru-
xulamente inteligentes que ninguém as entendia Trama: A história é aventuresca e cronológica. Ou
direito. Nem Voltaire. Mas Voltaire entendia sobre o seja: pula de episódio bombástico em episódio
que mesmo? bombástico, sem reviravoltas temporais ou
dispositivos mais sofisticados de narrativa. Talvez, o
Acertô, miserávi. Tirar sarro. leitor que não tenha muita familiaridade com o
contexto do século XVIII fique um pouco perdido com
"Cândido, ou o Otimismo", é a sátira que o lendário certas ironias. Nada, porém, que prejudique o
entendimento da história.
tirador de sarro resolveu escrever sobre a doutrina
por meio da qual o grande sábio pregava estarmos
vivendo no melhor dos mundos possíveis. Eu sei,
parece absurdo. Voltaire também achou.

Cândido, um rapazola crédulo e francamente paler-


ma, jurava que seu preceptor Pangloss era o homem
mais inteligente do mundo. Isto porque Pangloss
tinha uma certa doutrina… que vivemos no melhor
dos mundos possíveis. E que o castelo do barão no
qual Cândido vivia era o melhor castelo do mundo. E
a obesa baronesa, com seus quase 180 quilos, a
melhor das baronesas possíveis.

Cândido, coitado, logo é pego dando uns inocentes


amassos com a prima atrás de um biombo e lhe dão
um belo chute no rabo. Expulso do castelo, começa EDIÇÃO RECOMENDADA
sua desgraçada andança pelo mundão. Editora Penguin. Tradução de Mário
Laranjeira. 2012.
Porque a ideia do livro é a seguinte: Cândido, o
otimista pupilo do filósofo Pangloss (que, vale
lembrar, encaçapava uma das empregadas no COMPRE AQUI!

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47.Um conto de Natal,
de Charles Dickens

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Pense em todos os velhos rabugentos que você já vez, a atmosfera gótica do terror (algumas
conheceu na sua vida. De ambos os sexos e descrições de fantasmas botam muito mais medo
quaisquer orientações políticas ou ideológicas do que senti em livros como "Drácula" ou
imagináveis. De (quase) todas as idades. "Frankenstein"), o humor escrachado com o
azedume do velho e o quentinho no coração com a
Mas pense com cuidado, pô. Invoque os resmungos, família e destino do pequeno Tim.
grunhidos com azedume entre dentes amarelados.
Lembre-se dos olhares, os olhares! Ora arregalados, Noutras palavras, é livreto para dar medo, causar
injetados, saltando de um lado da órbita ao outro gargalhadas e fazer chorar. Um dos maiores
com uma raiva explosiva; ora semicerrados com o clássicos de todos os tempos, escritos pelo sujeito
cálculo malicioso de uma víbora acuada. que foi talvez o maior contador de causos de todos
os tempos.
E o cheiro? Todo velho ranzinza, rabugento, tem o
mesmo cheiro azedo. Aquele cheiro acre que entra Preciso dizer mais?
picante pelas narinas; que faz até os pelinhos d'alma
ficarem ouriçados.

Scrooge, eu vinha dizendo, é um velho chucro. Mas o


problema real não estava aí. O azedume do velho era Vocabulário: a linguagem é simples, ainda que
consequência de outra coisa, esta sim a desgraça Dickens seja um escritor riquíssimo. Ou seja: o livro é
central. Scrooge era um MÃO DE VACA. uma oportunidade maravilhosa de você saber o que é
uma escrita REALMENTE boa e conseguir lê-la com
Um muquirana. Um belo dum avarento. Um
miserável, um olho-grande. Um belo unha de fome. Trama: tranquilíssima. Zero dificuldades.
Explorador. Sem coração.

Scrooge não quer participar de ceias de Natal, obriga


seu funcionário a trabalhar no dia de Natal e
escorraça, com louca selvageria, um bando de
voluntários que tinham vindo pedir-lhe dinheiro para
a caridade.

Até que, na véspera de Natal, Scrooge recebe quatro


visitas inesperadas. Digo: REALMENTE inesperadas.
Quatro fantasmas. Literalmente. Primeiro, o fantasma
dum sócio, igualmente mão de vaca e morto fazia
sete anos, vem avisá-lo de que três outras criaturas
do além viriam lhe dar uma chance de não acabar
como ele próprio – uma chance de largar a avareza e
livrar-se do castigo após a morte.

Os fantasmas do Natal passado, presente e futuro


levam Scrooge para um tour duma ponta à outra da EDIÇÃO RECOMENDADA
linha do tempo. Primeiro, sua infância e juventude.
Depois, no presente, como outras famílias gozavam Editora Penguin. Tradução de Rodrigo
de uma alegria e caridade genuínas enquanto ele se Lacerda. 2019.
enfiava naquela casa, sozinho. Por fim, o que o futuro
haveria de reservar àquele velho ressequido se ele Editora Martin Claret. Tradução de Roberto
continuasse a ser tão egoísta e ranzinza. Leal. 2019.

"Um Conto de Natal" é um livreto absolutamente COMPRE AQUI! COMPRE AQUI!


maravilhoso. Dickens consegue juntar, de uma só

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48.Bartleby, o Escriturário,
de Herman Melville

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Pode existir lugar mais enfadonho, mecânico e


diabolicamente repetitivo do que um escritório? Só que a coisa não para por aí. Bartleby, ao longo da
Lugarzinho do capeta, com milhões de regrinhas e história, vai alargando sua filosofia do "prefiro não
burocracias sádicas, que se multiplicam e incham fazer" ao resto da vida. Com a calma de um fantasma,
como uma suruba de gremlins debaixo d'água? o sujeito bizarramente vai se recusando a comer, a
encontrar um lugar para morar, a fazer o resto do
E eu já fui office-boy de um escritoriozinho de quinta trabalho e até a falar. É como assistir à lenta
categoria, então tenho lugar de fala. involução de um homem para um pepino. Por outro
lado, naquela alienação parece haver talvez alguma…
Pois bem. A verdade é que todos nós já sentimos, sabedoria? Alguma rebeldia deliberada contra a
algum dia, que existe algo de desumano naqueles opressão do dinheiro no mundo moderno? Ou pura e
trabalhos de escritório. Naquela repetição morta, que simplesmente a covardia de um preguiçoso?
nunca parece dar em nada porque nunca param de
surgir novas repetições que você precisa fazer para Quem diabos é Bartleby e de onde surgiu esse
que as empresas continuem girando e os governos sujeito? Mais importante: onde esse sujeito vai
continuem recebendo seu dinheiro e, assim, parar?
continue a existir uma sociedade em que empresas
podem girar para que o governo receba seu dinheiro "Bartleby, o Escriturário" é curtinho, com pouco mais
e novas repetições surjam... A cobra eternamente de cinquenta páginas. Mas não se engane: o que o
comendo o próprio rabo. livro tem de curto tem de simbólico e de elegante.
Afinal de contas, o que menos poderíamos esperar
Mas a coisa não se reduz só a trabalhos de escritório. do autor de Moby Dick?
Parece haver algo de horrível e sufocante na própria
vida moderna. Especialmente, como sempre, para
quem está na base da pirâmide social. Àqueles que
ficam com os trabalhos mais repetitivos e tediosos,
com zero espaço para criatividade ou liberdade
pessoal.

Bartleby é o nome de um funcionário de escritório…


diferente. Num belo dia, sem fazer carão ou dar
chilique ou soltar algum sorrisinho sarcástico,
desafiador, Bartleby simplesmente se recusa a fazer
algo que seu patrão lhe pede – e continua
trabalhando normalmente. Bartleby só diz um
"prefiro não fazer" e continua a trabalhar como se
nada houvesse acontecido.

O patrão, um sujeito com olhar atento e até carinhoso


para os seus funcionários, fica absolutamente sem
jeito. Que diabos era aquilo? O coitado nem tinha
algum conceito ou antecedente para lidar com a
situação. Bartleby estava calmo, no mais até ali
trabalhara feito um jumento e não estava fazendo
aquilo de pirraça.

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48.Bartleby, o Escriturário,
de Herman Melville

Vocabulário: um dos estilos mais refinados (e


poderia dizer "complicados") entre os vários livros que
coloquei na lista de iniciantes. Se você for um leitor que
entrou AGORA no mundo da leitura, talvez vá sofrer um
pouquinho para acompanhar a escrita porque as frases
são mais longas, o vocabulário mais extenso. Mas é
plenamente possível acompanhar tudo com um pouco
de paciência e, talvez, a ajuda de um dicionário.
facilidade e fluidez.

Trama: esse é um daqueles livros que abrem espaço


para interpretações meio abertas. O que eu lhe dou de
conselho é este: não tente EXPLICAR o livro. Apenas
entre na história e se deixe levar. Algumas histórias
nos dizem algo mesmo que não saibamos explicá-lo
ou colocá-lo em palavras.

EDIÇÃO RECOMENDADA
Editora José Olympio. Tradução de A. B.
Pinheiro de Lemos. 2017

Edição L&PM Pocket. Tradução de Cássia


Zanon. 2008

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49.Orgulho e Preconceito,
de Jane Austen

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Com certeza absoluta, um dos livros mais amados verbais. Até aqui, Lizzie se parece com as insuportá-
de todos os tempos. Fácil, fácil, chega ao top 10 de veis protagonistas de filmes e séries modernos.
livros mais relidos, treslidos e guardados a sete Errou.
chaves dentro do mais íntimo coração pulsante de
leitores jovens e velhos ao redor do mundão inteiro – Porque Lizzie não é amarga. Sua inteligência e
e, talvez, até noutros planetas. sarcasmo eram usados para duas coisas: 1) defender
o que era bom e 2) afastar homens que não fossem
Talvez, também, o livro mais copiado de todos os dignos dela.
tempos. O livro que deu origem a todas as comédias
românticas de Hollywood e até hoje é (porcamente) É aí que entra o Sr. Darcy: um aristocrata podre de
imitado por fenômenos de venda como a Julia Quinn rico que tem de dinheiro o mesmo que tem de
e sua série (horrivelmente horrível) "Bridgerton". O orgulhoso, acanhado, arrogante, nobre e virjão. Tudo
livro atualizado para o século XXI por "Bridget Jones". ao mesmo tempo e misturado. Exteriormente, só um
babacão que não gosta de pobres. Interiormente,
O livro no qual estão dois dos personagens mais ainda um babacão que não gosta de pobres – e
adoráveis e marcantes de todos os tempos, dos muito, muito mais.
quais nos despedimos no final da obra como se
estivéssemos abraçando algum amigo de infância: Por ser inteligente, Lizzie tem lá seus preconceitos
Elizabeth Bennett e sr. Darcy. com a gentalha da aristocracia e jura que já entendeu
Darcy todinho. Darcy, por sua vez, um legítimo
A sinopse de gente burra é esta: "um monte de gente sangue-azul, tem lá seu orgulho de classe e jura que
rica visitando a casa uns dos outros". Lizzie nunca poderia causar nada ao seu frio coração.

De fato: em Orgulho e Preconceito você não vai O orgulho de um vai se chocar com o preconceito da
encontrar aqueles barracos de comédias românti- outra e, entre as MELHORES TIRADAS ROMÂNTICAS
cas. Não vai ter mulher de vestido levando voadora DE TODOS OS TEMPOS, você vai se afeiçoar terrivel-
de um cachorro e caindo num lago. A Lizzie não vai mente aos personagens e torcer pelos dois como se
ficar com diarréia no meio de um jantar. O sr. Darcy estivesse shipando como casal os dois melhores
não vai sair no soco com algum desafeto e levar um amigos de toda sua vida – tudo enquanto aprende,
chute no saco da cunhada. num curso intensivo de psicologia, como ser alguém
menos sem-vergonha e os milagres que um pouco
Orgulho e Preconceito é sobre… orgulho. E preconcei- de humildade são capazes de realizar.
to. Duas pessoas diferentes que aprendem a se amar
APESAR das diferenças, e POR MEIO das diferenças
aprendem a enxergar seus próprios erros, com
humildade e vontade de fazer aquilo dar certo.

Ou seja: a história de absolutamente todo mundo que


já amou alguém um dia na vida.

Lizzie Bennet é uma mulher sagaz, leal e divertida


que já tem seus vinte e poucos anos e ainda está
solteira porque se recusa a casar SÓ para garantir-se
financeiramente. Acima de tudo, Lizzie é sarcástica.
Tem a língua afiada. É um mestre em contra-ataques

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49.Orgulho e Preconceito,
de Jane Austen

Vocabulário: o vocabulário é simples. Não quero


dizer que seja uma escrita água com açúcar, rasa. Pelo
contrário. Jane Austen é um dos escritores mais
PRECISOS de todos os tempos. Cada palavra conta e foi
cuidadosa, quase obsessivamente selecionada. Daí que
o livro seja tão profundo e, ao mesmo tempo, tão
acessível. É zero prolixidade.

Trama: o ideal MESMO para você entender tudo o


que está em jogo no livro é conhecer como funcionava
a sociedade da época (leis, por exemplo) e as regras de
etiqueta. Mas não conheço nenhum material em
português que faça isso de forma simples e acessível.
Talvez eu mesmo escreva algo. Por enquanto, porém: o
livro continua sendo compreensível numa leitura mais
rápida, sem contexto histórico. Mas fica dez vezes
melhor quando você entende todas as sutilezas.

EDIÇÃO RECOMENDADA
Editora José Olympio. Tradução de Lúcio
Cardoso. 2019

Editora Martin Claret. Tradução de Roberto


Leal Ferreira. 2018.

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50.O Estrangeiro,
de Albert Camus

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Meursault é um sujeito para o qual a vida não faz tentação moderna. É a confusão, a letargia moder-
sentido. Tanto não lhe faz sentido que Meursault nas. Mas também é o que pode ser a sinceridade
parece descolado de si mesmo. Alheio, com supre- moderna.
ma indiferença a tudo, o anti-herói começa o livro
narrando com ar de quem caga e anda a morte da Afinal de contas: será que a vida faz sentido?
própria mãe.

"Hoje, mamãe morreu. Ou foi ontem, não sei bem."

Ou seja: f*da-se. Vocabulário: a leitura, em relação ao vocabulário e


estilo, é bastante simples. Até porque o livro é narrado
Meursault nao é um "egoísta." Não fala com indife- em primeira pessoa e Meursault é sujeito de poucas
rença sonâmbula sobre a morte da mãe porque tinha palavras. De frases curtas, secas.
alguma mágoa antiga com a véia. Não a tinha
renegado por alguma ideologia ou crença política. Trama: aqui, porém, você precisa ficar alerta. "O
Também não reage com raiva ou alguma eferves- Estrangeiro" não é um livro em que "aconteça" muita
cência violenta no espírito. Não chora ou sufoca coisa. A ideia não é que seja um livro cheio de
nada. aventuras ou reviravoltas frenéticas. A ideia é enfatizar
a REAÇÃO de Meursault às coisas que lhe ocorrem.
Como tudo ele recebe com ar de enfado, sem nada
Ele simplesmente não liga. sentir. Então preste atenção à psicologia e às reações
do protagonista. Às coisas que ele diz e como ele as
Meursault, por exemplo, toma um cafezinho e fuma diz.
seus cigarros diante do caixão da própria mãe,
suspirando de preguiça porque só queria voltar para
casa. A pedido de um cafetão, Meursault escreve
uma carta que vai ferrar com a vida de uma mulher.
Depois, Meursault aceita mentir sobre o caso diante
dum juiz. Meursault é promovido e… faz uma supre-
ma poker-face.

Tudo o que lhe acontece não causa nada.

Tudo Meursault recebe e sofre com a mesma


letargia, a mesma insensibilidade, a mesma distân-
cia.

No fundo, o sujeito é um estranho à própria existên-


cia. Como se fosse o espectador semiacordado da
própria vida. Estrangeiro às coisas. Estrangeiro em
relação aos outros. Um estrangeiro… a si mesmo.

Até que lhe acontece uma coisa que, finalmente, pelo


menos faz com que ele pare e dê uma boa olhada ao
seu redor. Será que Meursault finalmente vai sentir
algo? Admitir que existe na vida algum sentido,
algum objetivo? Ou vai continuar sendo um estran-
geiro até o final?
EDIÇÃO RECOMENDADA
"O Estrangeiro" é uma daquelas obras que captam o Editora Record. Tradução de Valerie
espírito de uma época. Que pegam um sentimento Rumjanek. 1979
no ar, vago e muitas vezes quase imperceptível, e o
põe encarnado num personagem. Meursault é a COMPRE AQUI!

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51.Jane Eyre,
de Charlotte Brontë

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Charlotte Brontë foi a irmã mais velha de Emily que, aliás, só para avisar, Jane tinha um tio que a
Brontë – a escritora que também está nesta lista vinha procurando fazia anos para deixar-lhe sua
com seu "O Morro dos Ventos Uivantes". fortuna – e só não o tinha feito porque Reed, a
tia-capeta, tinha lhe contado uma mentirinha de
E vou lhe dizer, viu: Jane Eyre não perde em nada nada sobre Jane estar morta.
para o livro da irmã. O mesmo redemoinho, a mesma
intensidade desvairada, a mesma paixão consumi- Só que a maluquice ainda nem começou. Porque
dora, a mesma atmosfera gótica e trevosa, a mesma Jane, volto a dizer, apaixona-se. Por um certo sr.
PROTAGONISTA PORRADEIRA… está tudo aqui Rochester. E, depois de alguns vaivéns, consegue
também. Só que, talvez, ainda melhor. levá-lo para o altar e os dois são felizes para todo o
sempr… epa, espera. Alguém se levanta no meio da
Jane Eyre começa com uma Jane pequerrucha, igreja e grita ROCHESTER JÁ É CASADO!
ainda com dez anos de idade. Órfã, a menina mora
com uma tia que a inferniza e primos que haviam E pior que era mesmo. Com uma louca. Que ele
puxado a mãe – if you know what I mean. A tia lhe dá mantinha presa no sótão de casa. O resto, você que
o tratamento que daria a um cachorro com lepra descubra (vale a pena).
enquanto exige que a menina seja doce, alegre e –
acima de tudo – respeitadora dos mais velhos. "Jane Eyre" caiu feito uma BOMBA na época. Àquela
altura, quase todos os livros escritos por mulheres
Seu primo mais velho, na época contando quatorze eram umas coisas abestalhadas, sentimentalóides,
anos, logo na segunda página lhe dá um tapão e com exageros românticos bregas e ilusórios. Água
depois joga um pesado livro na cara da menina, que com açúcar. Acima de tudo: domesticados. Seguros.
rasga a cabeça numa batida contra a quina da porta. Nicholas Sparks antes de haver Nicholas Sparks.

SÓ. COISA. BOA. E aí me surge Charlotte com seu furacão de protago-


nista, suas paixões desabridas, seus tapas na cara e
Mas Jane não é uma guriazinha covarde. Alguma cabeças sangrando, sua louca presa num sótão, seus
doce menininha que só fica se lamuriando pelos incêndios, mentiras, intrigas e violência sanguino-
cantos, derrubando lágrimas tristonhas à espera de lenta. Suas tempestades, seus diabos. Seu clássico
uma fada madrinha que a libertasse da injustiça. instantâneo.
Jane carrega um vulcão no peito. A menina é genio-
sa, arretada. Linguaruda com quem gostaria de calar Sua Jane Eyre.
sua boca; violenta e arisca se pisassem no seu calo.
Acima de tudo, Jane é inteligente. Que comia livros
com farinha e perspicácia.

Agora faça o seguinte: pegue essa mesma Jane,


acrescente-lhe alguns bons anos, dê espaço para
aquela inteligência desenvolver-se ainda mais e a
boca do vulcão alargar-se formidavelmente… até ela
se apaixonar. Por um certo sr. Rochester. E num belo
dia salvar-lhe a vida de um incêndio que alguém
tinha criado na sua casa. E ser chamada de volta à tia,
ouvir da diaba no leito de morte que ela não se
arrependia de como a tinha tratado a vida inteira e

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51.Jane Eyre,
de Charlotte Brontë

Vocabulário: nada de muito difícil. Na verdade, eu


poderia ter colocado o livro também na categoria
anterior. Só não o fiz pelo seu tamanho. O estilo é
vigoroso, forte, elegante – mas simples e fluido. Uma
delícia de ler.

Trama: narrativa em primeira pessoa, sequência


cronológica. Tudo muito tranquilo.

EDIÇÃO RECOMENDADA
Editora Zahar. Tradução de Adriana Lisboa.
2018

Editora Penguin. Tradução de Fernanda


Abreu. 2021

COMPRE AQUI! COMPRE AQUI!

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52.Cem Anos de Solidão,
de Gabriel García Márquez

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Prepare-se para uma das histórias mais psicodéli- Ao ver o gelo, o patriarca Buendía fica maravilhado e
cas, doidas, mágicas, sem noção, poéticas e encan- se lembra de um sonho que tivera sobre Macondo:
tadoras de sua vida. era uma cidade de espelhos. Depois, uma mulher
local fica apaixonada pelo seu filho ao ver o tamanho
Cem Anos de Solidão é uma viagem. Não no sentido mastodôntico que ele tinha entre as pernas, seduz o
dicionarizado, de "vou viajar para a Praia Grande no guri e fica prenha. O guri jirombudo, por sua vez,
fds". Mais no sentido dos xófens: "bicho, que viagem." apaixona-se por uma cigana e foge com ela. A mãe
fica doida de tristeza pelo filho e foge junto, largado
Resumão resumidíssimo, absolutamente incomple- uma outra filha para trás, Amaranta.
to e francamente broxante: Cem Anos de Solidão é a
história da cidade ficcional de Macondo e das sete E… pronto. Eu resumi os dois primeiros capítulos.
gerações da família que a construiu, os Buendía.
Cem Anos de Solidão é o exemplo máximo do
Bléh. Deu sono só de escrever isso. Vamos tentar de "realismo mágico": um subgênero de literatura em
novo. que coisas fantásticas acontecem no meio da vida
ordinária como se fossem coisas perfeitamente
Cem Anos de Solidão é uma espécie de alegoria ou comuns. E é com esse tom normal, nada espantado,
símbolo de toda a história da humanidade. Macondo, que o narrador do livro conta as tragédias, os
uma cidade ficcional enfiada no meio da selva e amores, as obsessões e valentias e fraquezas e
isolada do resto do mundo. Seu fundador, José safadezas e genialidades das sete gerações míticas
Arcadio Buendía, resolvera fundá-la após ter fugido de Macondo – e como, cada um à sua maneira, todos
de casa com a mulher grávida. Por quê? acabam na solidão.

Porque sua mulher calhava de ser… sua prima. E A brevidade da vida, a inevitabilidade do destino, a
durante muito tempo Úrsula Iguarán tinha negado repetição macabra dos erros ancestrais, os pecados
fogo ao maridão patriarcal. Tanto tempo, a bem dizer, da civilização, as fraquezas da carne frágil, as conse-
que um dia alguém resolve tirar sarro de José numa quências da violência… está tudo ali. Cem anos nos
rinha de galos. Era um meia-bomba. Um frouxo. A quais o autor enfiou milênios, milhões de anos. Sete
barraca não subia. gerações que simbolizam as infinitas gerações que
já existiram ou vão existir. Uma obra única.
Ah, meu filho, José Arcadio Buendía lá era homem de
levar desaforo pra casa? Passa o facão no sujeito, Como o mundo é único.
volta pro lar e passa na esposa… uma outra coisa.

Problema resolvido. Incesto desbloqueado com


sucesso. Único inconveniente: o fantasma do morto
passa a assombrá-lo. Eis que José Arcadio Buendía
resolve fugir de casa.

Macondo – criada por conta de um incesto e homicí-


dio – anos depois é visitada por um cigano com
mãos de pardal (sim, pardal) que apresenta ao
patriarca tudo quanto é mágica: imãs, tapetes
voadores, telescópios e… gelo.

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52.Cem Anos de Solidão,
de Gabriel García Márquez

Vocabulário: o livro não tem um vocabulário


especialmente difícil ou extenso. Mas existem, sim,
algumas dificuldades. Por exemplo: Macondo não é uma
cidade que está muito claramente em algum lugar do
tempo ou espaço. Existe uma confusão constante de
tempos verbais, para que a cidade e os personagens
pareçam estar fora do tempo e ganhem contornos de
entidades míticas, arquetípicas. Também existe o
problema dos nomes que se repetem. Ao longo das sete
gerações de familiares, muitos nomes são parcialmente
ou completamente iguais. Uma boa ideia é você
procurar alguma árvore genealógica na internet ou
escrever a sua própria, à medida que os personagens
forem aparecendo. Também é CRUCIAL você entender
que os fenômenos mágicos, ali, acontecem
*naturalmente* e nunca são "explicados". O mundo é
uma mistura de realismo cotidiano com mágica poética.

Trama: é uma salada. A narrativa pula feito uma


cabrita no tempo, para lá e para cá e de volta e além.
Repito: é crucial você ter os vários nomes repetidos
anotados em algum lugar, para que consiga
localizar-se no livro e acompanhar o vaivém temporal
do autor.

EDIÇÃO RECOMENDADA
Só temos uma tradução. Editora Record..

COMPRE AQUI!

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53.A Insustentável Leveza
do Ser,
de Milan Kundera
DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Filosofia e altas p*tarias! Ou seria p*taria e altas


Kundera, então, pega os quatro personagens e os
filosofias?
mistura. Fazendo uma pergunta fundamental: será
que é melhor viver uma vida de peso ou de leveza?
Não importa. O que importa é que A Insustentável
Porque A Insustentável Leveza do Ser é um romance
Leveza do Ser é um baita, BAITA livro.
filosófico. Kundera usa os personagens para que
com suas vidas, mazelas e complicações consiga
Sumário relâmpago: Tomas, Tereza, Sabina e Franz
explorar com maestria questões como: será que
são os quatro personagens principais, todos
existe destino? O universo ou Deus dá sinais ou nós é
interligados por uma fileira interminável e curiosa
que queremos ver sinais e juramos que os vimos? O
tanto de escolhas quanto de puro e simples acaso…
que significa ser leve? A liberdade traz felicidade?
ou seria destino?
Todo dever é um peso? Quem ama trai?
Tomas, o principal do livro, é um cirurgião brilhante e
No final, Milan Kundera quer menos dar respostas e
bom marido que só quer a leveza de pegar geral –
mais criar perguntas. Quer chacoalhar algumas
casado. Aliás, tanto quer a leveza que elabora toda
ideias fáceis e enfraquecer preconceitos bobos. Quer
uma filosofia da livre pegação, com regras e
fazer você sentir porque PENSOU. E pensar porque se
diretrizes, e a transmite com fleuma britânica para
importou.
sua esposa. Porque, sim: apesar de tudo, Tomas é
meio que um *bom marido* e, sim, Tereza sabe de
tudo.

A moça, doce e profundamente traumatizada,


sente-se ora apática, ora desesperada pela
interminável fileira de lambisgoias às quais o marido
aplica mais do que um simples diagnóstico. Traições
cujo peso, no caso de Tereza, moça doce e
profundamente traumatizada com a mãe, é triplicado
e elevado à enésima potência.

Sabina, por sua vez, é uma artista e um espírito livre.


Oscilando entre o niilismo e o idealismo, ela é a única
amante mais fixa do – adivinha? – Tomas. Sabina fora
traumatizada, primeiro, pela ordem repressiva do pai
religioso, e, depois, pela ordem mil vezes pior do
comunismo. Daí que Sabina fuja de relacionamentos
estáveis ou família ou qualquer estabilidade.

Só que havia alguém querendo puxá-la para algo


estável. E não, não era Tomas. Aí entra o quarto
elemento da história: Franz. Um professor
universitário, nobre e gentil, mas que também sofre
de uma breguice fundamental e especialmente
repelente a Sabina: ele acredita piamente na política.
É um ingênuo, um idealista que precisa atribuir peso
e solenidade à política para que seu próprio trabalho
intelectual tenha algum valor e ele sinta que a vida
faz sentido.

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53.A Insustentável Leveza
do Ser,
de Milan Kundera

Vocabulário: por incrível que pareça, é muito


simples. Kundera não é, nem de longe, um autor prolixo
ou cheio de palavras e fraseado rebuscados. É um autor
sóbrio, contido, que mal descreve alguém no livro
inteiro a não ser quando a descrição tem diretamente a
ver com a psicologia dos personagens. Porque é isso
que interessa a Kundera: a vida interna dos
personagens.
uma mistura de realismo cotidiano com mágica poética.

Trama: à parte algumas digressões (logo no


primeiro capítulo, por exemplo) e uns poucos
flashbacks, a história se move de forma mais ou
menos linear e não apresenta grandes dificuldades.

EDIÇÃO RECOMENDADA
Editora Companhia das Letras. Tradução de
Tereza Bulhões. 2008
COMPRE AQUI!

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54.Grandes Esperanças,
de Charles Dickens

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Pip, um órfãozinho que vive com o tio Joe e sua irmã imaginar: drama, suspense, cenas góticas,
megera, certa noite está sentado diante do túmulo personagens exuberantes e inesquecíveis;
dos pais, sozinho, quando emerge das trevas um descrições absolutamente maravilhosas; diálogos de
condenado fugido da prisão, agarra-lhe o pescocinho fazer gargalhar ou revirar o estômago ou fechar a
frágil e ameaça esganá-lo se o guri não lhe trouxer garganta com choro; crime e redenção; malignidade,
uma lima e algum punhado de comida. mesquinharias, amizade e sacrifício.

Pip, coitado, entre um cagaço horrível de ser morto e Acima de tudo, tem Pip. Um protagonista tão
alguma misericórdia empática pelo condenado – os humano, tão gente como a gente, tão cheio de
párias, afinal, se reconhecem –, volta correndo até virtudes e mesquinharias misturadas numa salada
sua casa e rouba comida das panelas da tia. Volta ao psicológica, que será quase inevitável você não
condenado e lhe entrega a comida e a lima, só que a transformá-lo logo num amigo.
polícia surge e consegue prendê-lo outra vez.

Diante dum Pip absolutamente aterrorizado, o


condenado não abre o bico para dedurá-lo e mente
aos policiais: diz que ele mesmo tinha surrupiado o
rango e a lima. Pip estava salvo e o condenado, preso
outra vez.

Tempos depois, Pumblechook, um tio bem de vida e


absolutamente insuportável, que trata Pip feito um
lixo e adora insultar o moleque, arranja um esquema
para o guri fazer companhia à filha adotiva de uma
velha podre de rica.

É ali que Pip conhece Estella, a deslumbrante e seca


filha adotiva, e a senhora Havisham, a velha macabra
que se enfia num quarto escuro e nunca tira um
vestido de noiva todo escangalhado, amarelado e
quase tão encardido quanto sua cara macilenta de
cadáver.
Vocabulário: no original, Dickens não é o autor mais
Pip, coitado… apaixona-se por Estella. Assim que põe fácil do mundo. Seu vocabulário é quase inesgotável.
os olhos nela. O problema é que a moçoila é cruel, Em português, porém, com a tradução que eu
bicho. Estella trata Pip feito um cachorro, humilha e recomendo cá embaixo, o livro ficou muito gostoso de
alopra o guri até fazê-lo chorar amargamente, com o ler. A tradução, claro, tem seus problemas e não chega
rostinho virado contra o muro, quando pela primeira nem perto da qualidade estética do original. Mas é boa,
vez na vida se dá conta de uma coisa: ele era pobre. competente, e não tem erros de sentido.
Estava desesperadamente abaixo da moça e nunca
poderia tê-la. Era um órfão, um rejeitado que morava Trama: O próprio Pip é o narrador da história, e a
com um ferreiro. E nunca poderia tê-la. conta em ordem cronológica. Sem grandes
dificuldades aqui.
Só que, vejam só: a vida reservava algumas
surpresinhas para Pip. Algum benfeitor anônimo
resolve dar uma fortuna ao guri e transformá-lo num
cavalheiro. Sua identidade só lhe seria revelada
quando ele chegasse aos 21 anos de idade. EDIÇÃO RECOMENDADA
Editora Penguin. Tradução de Paulo
E é aí que começam as Grandes Esperanças de Pip.
Henriques Brito. 2012
"Grandes Esperanças" tem tudo que você pode COMPRE AQUI!

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55.O conde de Monte Cristo,
de Alexandre Dumas

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Edmond Dantès é um marujo que parece ter a vida cultíssimo, poliglota e dono de uma resiliência
perfeita, bicho. Sujeito humilde, perfeitamente estóica. Ambos ficam amigos, o padre toma Edmond
satisfeito com a existência à beira-mar que estava como afilhado e lhe ensina tudo o que sabe –
prestes a receber um upgrade: Edmond iria virar o inclusive a localização de um tesouro escondido, que
capitão de um navio! ambos iriam resgatar assim que escapassem juntos
da prisão.
E tudo ao lado dum verdadeiro avião: Mercédès
Herrera. O dócil mulherão local e sua noiva. Edmond Porque eles têm um plano… e Edmond quer
é trabalhador, querido por todos. vingança.

Ou quase todos. O sucesso deixa rastros – mas "O Conde de Monte Cristo" é um épico aventuroso de
também ressentimentos. quase mil e quinhentas páginas que você consegue
ler inteirinho como se fossem duzentas. É uma
Danglars, um dos tripulantes do navio, inveja-lhe o narrativa cheia de traições, fugas cinematográficas,
sucesso profissional. Fernand Mondego está perigos de gelar a espinha, tesouros
apaixonado por Mercédès e inveja-lhe a noiva. Seu resplandecentes, complôs de tudo quanto é lado,
vizinho Caderousse inveja-lhe a vida inteira de uma duelos até a morte, reviravoltas sensacionais e um
vez: por que Edmond era tão sortudo e ele tão dos mais elaborados planos de vingança de todos os
azarado? tempos.

Alguém, portanto, às escondidas, na crocodilagem Um clássico marcante, adorado por gerações de


pura e simples, arma contra o Edmond uma tramoia leitores e profundamente acessível a qualquer leitor
maligna. Com meias-verdades, Edmond é acusado com um pouquinho mais de tempo e a disposição
de ser espião de Napoleão Bonaparte e no dia do seu para se deixar levar por uma das histórias mais
casamento acaba sendo preso, DO NADA, sem que famosas e comoventes de todos os tempos.
sua noiva sequer saiba. Simplesmente some,
enfiado num camburão na calada da noite.

Edmond é levado para uma prisão horrível,


erguendo-se contra o horizonte desolado sobre uma
ilha enfiada no meio do mar: o Castelo de If. Na
cadeia, o inocente – e antes ingênuo – marujo vai
sendo corroído pelo ódio, quase perdendo a lucidez
com o louco desejo de vingança e as humilhações e
espancamentos. No inferno, Edmond vai se
entregando à perdição, e o ódio vai dando lugar à
apatia suicida…

Até que surge o Abade Faria. Um padre italiano,

Vocabulário: no geral, é bastante acessível. O leitor


só precisa ficar um pouco atento aos nomes de locais
em francês e ao vocabulário marítimo mais técnico que EDIÇÃO RECOMENDADA
surge no começo. Nada que nem de perto possa Editora Zahar. Edição de luxo. Tradução
impedir-lhe a leitura, porém. premiada de André Telles e Rodrigo Lacerda.
2020
Editora Zahar. Edição de bolso. Tradução
Trama: a história é longa, porém contada de forma premiada de André Telles e Rodrigo Lacerda.
linear. Aliás, em cada capítulo o autor deixa algo em 2012
aberto para o leitor ficar com curiosidade de saber o
que virá a seguir. Exatamente como as séries da Netflix COMPRE AQUI! COMPRE AQUI!
hoje em dia. Leitura, portanto, muitíssimo fluida.

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56.O Apanhador no Campo
de Centeio,
de J. D. Salinger
DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Vou ser sincero com você. Eu MORRIA DE MEDO de adiando o fatídico encontro parental até que outra
"O Apanhador no Campo de Centeio". pessoa lhes contasse sobre a expulsão.

Tá, exagerei um pouco. "Morrer de medo" foi um O livro – ou melhor, Holden – conta a história de suas
exagero retórico. Voltemos atrás: eu tinha lá um pé andanças novaiorquinhas. Raivoso, cheio das gírias e
atrás com esse livro. Jurava que nele havia algum idealista, o adolescente vai topando com gente
segredo esotérico da mística de Belzebu. Alguma esquisita, fazendo a irmã de terapeuta, encontrando
chave cabalística; alguma mensagem subliminar ex-namoradas, aqui e ali criando alguma relação
escrita nas entrelinhas pelo dedo longo e enrugado comovente e de vez em quando, já que ninguém é de
de um demônio. Alguma força. Uma presença. Uma ferro, saindo na mão com alguém. Holden, enfim,
intenção maligna. transforma três dias de vadiagem numa jornada de
autodescoberta lotada de raivinha juvenil, filosofadas
É que eu tinha ficado sabendo, quando mais novo, vertidas em gíria, insegurança, bravatas e humor –
que o matador de John Lennon – o sujeito que surgiu se voluntário ou involuntário, QUEM LIGA, HEIN?
absolutamente do nada e meteu bala no astro – (liguei o modo Holden)
carregava consigo esse livro. Minha imaginação
juvenil, tanto fértil quanto covarde, logo imaginou "O Apanhador no Campo de Centeio" é um clássico
que o livro contava alguma história sinistra de um por capturar o arisco, contraditório e idealista (para
espírito trevoso ceifando centeio com aqueles facões não dizer idiota) espírito dos xófens. Impossível não
da Morte. sentir pelo menos uma pontinha de simpatia pelo
nosso Holden e nos perguntarmos, como ele: "pra
E eu… estava hilariamente errado. que car4lh* serve a vida?"

"O Apanhador no Campo de Centeio" é parte da


história de um certo Holden Caulfield. Um moleque
meio preguiçoso, meio indiferente, numa vibe relax
de quem não sabe para que c4ra*** serve a vida. Em
homenagem à sua prestimosa e incansável vadia-
gem, Holden consegue a proeza de ser expulso de
mais uma escola prestigiosa. Sim. Mais uma. Já tinha
vários no currículo.

E aí, bicho, é claro que Holden não quer encarar os


pais. Então lhe ocorre uma ideia que à sua cabeça
juvenil soa maravilhosa: pegar um trem para Nova-
-York e vagar sem rumo por três dias na cidade,

Vocabulário: Salinger escreve o livro em primeira


pessoa. Ou seja: a voz do narrador é de Holden. Um
adolescente americano e péssimo aluno. O vocabulário
não é extenso, nem existem palavras difíceis ou aquelas
frases longas e intrincadas. O que existe são muitas,
muitas gírias. Mas ficam mais para "fofas" do que para
"insuportavelmente irritantes que negócio horrível do
EDIÇÃO RECOMENDADA
caramba vou queimar esse livro". Editora Todavia. Tradução consagrada de
Caetano W. Galindo. 2019.
Trama: a dificuldade deste livro, para alguns, talvez
seja a falta de uma "trama" no sentido mais comum do COMPRE AQUI!
termo. Não existe exatamente uma jornada. O livro vai
apresentando várias situações e nem lhe explica o que
elas significam, nem encaminha a história para uma
espécie de clímax. Tudo fica meio "solto" – porque
aberto a uma interpretação mais atenta do leitor.

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57.O Retrato de Dorian Gray,
de Oscar Wilde

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

E se você pudesse jogar num quadro todas as tirem o cavalinho da chuva. O que Dorian faz nunca é
merdas que fizer na vida? dito às claras. Drogas? Sacanagens sexuais de toda
sorte? Vilanias? Terrores ocultos? Candidatar-se a
Dorian Gray é um rapazola rico, ingênuo e virjão da um cargo político? Não sabemos.
alta sociedade inglesa. Belo, recatado e do lar. Um
cordeirinho vitoriano; de inexperiência bucólica e O que acompanhamos é sua progressiva degrada-
quase angelical. Uma alma pura. Com o rostinho livre ção e como a vida desenfreada do hedonista que só
das rugas e marcas da preocupação ou safadeza. pensa em prazer só pode levar a um fim que… bem,
aí você vai ter de ler o livro.
Até encontrar Lorde Henry Wotton. O mais perfeito e Um comentário: existem duas versões de O Retrato
eloquente cínico de sua época. de Dorian Gray. A primeira, original. E a segunda,
censurada. Na primeira versão, havia uma sugestão
Henry fica embasbacado com aquele espécime de homossexual óbvia demais entre Dorian, Basil e
macho, enfia várias e sofisticadas abobrinhas na Henry. Nada de explícito, sim? Só que naquela época
cabeça do coitado e logo faz o jovem ficar depressivo. ser gay era, literalmente, um crime.
Dorian era um pitel? Sim. Era um Adônis, um magní-
fico Apolo? Certeza. Era uma mistura de Henry Cavill Os editores disseram a Wilde que não daria para
com Brad Pitt? Era! lançar aquilo. O autor pegou o livro de volta, suavizou
as partes mais abertamente gays (Basil, por exem-
Mas um dia aquela beleza toda iria pro saco. E na plo, transforma sua adoração por Dorian em algo
época nem botox havia, bicho. mais "platônico") e acrescentou vários capítulos a
mais. A versão que 99,9% das pessoas conhecem é
Ora, aconteceu que havia mais um sujeito naquela a censurada.
história: Basil, o pintor que tinha apresentado Dorian
ao Lorde e tinha acabado de finalizar seu mais Aqui no Brasil, só a Biblioteca Azul lançou a versão
perfeito retrato. Uma pintura que havia capturado a original.
beleza estonteante do rapaz.

Dorian, com a ladainha de Henry Wotton ainda fresca


nos ouvidos, olha o quadro e como Narciso se
apaixona pela própria imagem. Desesperado, faz um
pedido – ou um pacto. Que ele pudesse conservar
para sempre sua juventude e toda a feiúra, toda a
desgraça, toda a velhice fossem transferidas para o
quadro.

Dá certo.

O Retrato de Dorian Gray tem algo do pacto de Fausto


com o capeta – Dorian Gray vende sua alma em troca
da juventude e beleza eternas. O imã tesudo quintes-
sencial, Dorian sai vida afora passando o rodo em
tudo quanto é gente, democraticamente, aliás sem
distinção de genitália (supostamente).

Porque o livro não é nada explícito. Danadjenhos,

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57.O Retrato de Dorian Gray,
de Oscar Wilde

Vocabulário: Oscar Wilde não era o mais simples


dos escritores. Era um sujeito cultíssimo, dono de um
ouvido e olhos absurdamente refinados para a arte. Sua
escrita, portanto, é ornada, floreada, rica em vocabulário
e descrições detalhadas. Mas um leitor intermediário
tira o livro de letra.

Trama: alguns capítulos são especialmente


rebuscados, com longas (longuíssimas) e detalhadas
descrições de itens luxuosos, de extravagâncias, de
exuberâncias de Dorian. Daí que algumas partes do
livro possam tornar-se um pouco arrastadas para o
leitor mais iniciante.

Fun Fact: Dorian Gray é um dos personagens do


filme "A Liga Extraordinária", ele próprio baseado numa
graphic novel do mesmo nome.

EDIÇÃO RECOMENDADA
Editora Penguin. Tradução de Paulo Schiller.
2012
COMPRE AQUI!

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58.Lolita,
de Vladimir Nabokov

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Sabe aquelas conversas desconfortáveis? Uns comprar remédios para fazer mãe e filha dormirem e
papos estranhos, que deixam todo mundo na conseguir molestar a menina.
rodinha sem jeito e jogam no ar um incômodo, um
negócio desagradável que beira o insultuoso? E o auge da desgraça é que Lolita gosta do sujeito. E
Humbert, de forma profundamente doentia, também
Pois bem. Seja bem-vindo a Lolita. O livro que *gosta* dela.
Vladimir Nabokov chegou a jogar numa fogueira (e
só não queimou de uma vez porque foi salvo pela O livro é um relato honesto, cru, desagradável,
sua esposa). escroto, eloquente sempre e às vezes até lírico de
um tarado altamente inteligente, poderosamente
Humbert Humbert é um professor universitário de argumentativo e seu <<<caso de amor>>> com uma
literatura. Trintão, culto e eloquente que só o diabo, criança.
Humbert fica absolutamente apaixonado por… uma
menina de doze anos de idade. Por que ler o livro? Porque ele vai mexer com você.
Pura e simplesmente.
Sim. Doze anos. Apaixonado. Mais de trinta anos. É
isso aí mesmo que você leu, e ainda vai ler muito
mais. Vocabulário: o narrador é um sujeito
excepcionalmente inteligente e talentoso.
O objeto impúbere de sua devoção escrota se Literariamente talentoso. Daí que o livro tenha um estilo
forte, poético, com vocabulário que fica ali no nível
chama Dolores Haze. Ou, como Humbert Humbert
mediano.
gosta de chamá-la: Lolita.

Sua história – o livro – é contada por um editor Trama: o livro se passa nos Estados Unidos
relativamente modernos. A sequência é cronológica e
fictício, que nos diz ter recebido o manuscrito do
não é preciso ter nenhum conhecimento especial para
advogado de Humbert e conta que o sujeito tinha acompanhar a história.
morrido na prisão, antes de seu julgamento sair.
Lolita, por sua vez, também estava morta. Tinha
perdido a vida ao dar à luz.

(Muitíssimo) resumidamente, a história é a


seguinte: quando era criança, Humbert tinha se
apaixonado por uma certa Annabelle, guria da sua
idade. A paixão era recíproca e os dois – repito,
crianças – fazem de tudo para transar. E quase
conseguem.

Pouco tempo depois, Annabelle morre duma febre


e a imagem dela fica na cabeça de Humbert pelo
resto da sua vida… até ele encontrar Dolores. Quase
a reencarnação da sua Annabelle. A chance de
finalmente consegui-la.

Mal vê Dolores, Humbert resolve dar trela à mãe da


menina (que o estava xavecando) e vai… morar.
Com as duas. E aqui começa o realmente escroto, o
desconfortável, o revoltante. Humbert é um
molestador sutil, um sujeito paciente e charmoso, EDIÇÃO RECOMENDADA
com uma voz tão eloquente que às vezes o próprio
leitor se esquece de como ele é um completo Editora Alfaguara. Tradução de Sergio
DIABO. Humbert toca na menina, faz mil e um Flaksman. 2011.
planos para ficar sozinho com ela e chega até a COMPRE AQUI!

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59.O Processo,
de Kafka

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Antes de tudo, saiba: ler Kafka é como entrar num absurda quanto a burocracia que julgou K. E quanto
pesadelo. Se você quiser explicações, relações de aos julgamentos comunistas? Aquelas farsas
causa e efeito perfeitamente razoáveis e grotescas da justiça? E quanto às desgraças da
mastigadinhas, bom senso e lógica, porquês política de hoje? Será que os escândalos, a putaria e
cristalinos… não leia Kafka. sem vergonhice, a inacreditável cara de pau e a
quase onipotência do Estado são assim tão
Só que não ler Kafka é uma burrice. Então aquiete o diferentes do pesadelo de Kafka? Será que nós
facho, abra sua cabeça e leia a sinopse – depois, estamos mais seguros do que K.?
leia "O Processo".
Ou será que algum ministro, algum presidente,
Joseph K. acorda, num dia como qualquer outro, e algum político não pode fazer o que lhe der na telha e
topa com um sujeito que nunca tinha visto na vida. com alguma firula jurídica um belo dia enviar dois
Um fulano esguio, forte, todo vestido de preto e oficiais anônimos à sua casa, dizendo-lhe, sem
exalando um ar oficial, que imediatamente começa qualquer explicação, "você está preso"?
a lhe dar ordens e o leva a um segundo sujeito,
com pinta igualmente burocrática, que num tom de Vocabulário: é maravilhoso ler Kafka. Sério. Repito e
aviso simplesmente lhe diz, sem explicação reforço o que disse em relação à Metamorfose: a
nenhuma e DO NADA: "você está preso". linguagem é simples e absolutamente precisa. Kafka é
econômico, imersivo e exato. Zero rebarbas ou
Joseph K., coitado, obviamente começa a lhes fazer prolixidade. Frases curtas.
perguntas. Preso por quê? Do que o estavam
acusando? O que ele tinha feito? Trama: aqui, Kafka escreve de uma forma mais seca,
"sem graça". Sua ideia é espelhar o mundo sufocante e
Cada pergunta (justíssima, digassi di passagi) é ou burocrático do livro. Como diria o Chapolin: seus
ignorada, ou respondida com um "não sei" ou movimentos são friamente calculados. Daí que eu
ensaboada e invertida, e K. vai sendo empurrado a tenha colocado esse nível de dificuldade. Leitores
menos acostumados com histórias mais "soltas", mais
situações cada vez piores e mais violentas por uma
abertas à interpretação individual e mais exigentes
força burocrática tão onipotente quanto fria e quanto à concentração, talvez sintam um pouquinho
anônima. É o mundo fechado e claustrofóbico de de dificuldade. Mas é coisa pouca, facilmente
um pesadelo. Aquela estranha mistura de reversível.
verossimilhança com absurdo; de detalhes reais
com um todo irreal – mas que sugere algo a partes
profundas e (quase sempre) inatingíveis da alma.

A história já começa no absurdo, coisa nenhuma é


explicada e nem o personagem principal reage
como gostaríamos que ele reagisse. A saber:
DANDO UM CHILIQUE HISTÉRICO E GRITANDO
FEITO UM MALUCO QUE DIABOS ESTAVA
ACONTECENDO.

Joseph K. meio que vai aceitando o descalabro,


fazendo perguntas sem lá muito vigor ou gana de
saber o que raios estavam fazendo com ele. Daí
resulta a mistura tão kafkiana: o sufocamento de
um pesadelo com certo ar… engraçado. Com Kafka,
é literalmente não saber se ri ou chora. EDIÇÃO RECOMENDADA
"O Processo" acabou se tornando um símbolo, Editora Companhia de Bolso. Tradução
quase uma distopia. Poucos anos após a morte de consagrada de Modesto Carone, especialista
Kafka, os nazistas subiram ao poder e lançaram em Kafka. 2005:
sobre o mundo uma sombra tão demoníaca e COMPRE AQUI!

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60.Crime e Castigo,
de Dostoiévski

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Raskolnikóv é um estudante lascado, absolutamente bem na testa da velha e rouba seu dinheiro. Não sem
liso e já devendo até as cuecas quando se trata do antes, de forma imprevisível e quase no susto, ver-se
seu aluguel na pensão caindo aos pedaços de uma obrigado a matar também… a meia-irmã dela.
velha agiota. Oscilando febrilmente entre o mais
abjeto autodesprezo e a mais megalômana Que não era uma agiota, nem tinha entrado nos seus
autoexaltação, Raskonikóv começa a pensar num… cálculos racionais.
projetinho.
"Crime e Castigo" vai se desenrolando, então, como a
Uma ideia brota-lhe no espírito confuso, sufocado história mórbida de um Raskolnikóv que tanto quer
pelos intermináveis diálogos internos daquela ser pego como não quer confessar o que fez. É um
cabeça perturbada. livro cheio de cortes e frases entrecortadas, de
bate-bocas intelectuais, mergulhado numa
E se ele matasse aquela velha? atmosfera neurastênica, que atiça os nervos do leitor
e de alguma forma parece entrar-lhe por debaixo da
Afinal de contas, o que ela fazia era errado. Ganhar pele. Revirar-lhe o estômago. É um desconforto que
dinheiro à custa da miséria alheia, enfiando juros em surge no centro do seu ser. Como se Dostoiévski
quem já não podia pagar o valor original… aquilo não chacoalhasse algo que você nem sabia que estava aí
era uma imoralidade, uma safadeza? Pior que era. A dentro.
velha realmente ferrava os outros.
É um livro sobre orgulho. Sobre culpa. Sobre o
E ele, Raskolnikóv, com tão brilhante intelecto ímpeto revolucionário aplicado à vida cotidiana.
(dizia-se), deveria estar sendo sujeito àquele Sobre as últimas consequências de ideias com as
papelão? Aquilo fazia sentido? Era justo? Com medo quais brincamos ou até repetimos. Sobre perdão e
de uma velha? Humilhando-se diante de uma imoral, baixeza moral. Sobre as consequências da pobreza.
uma usurária? Mais: sua querida irmã e sua mãe O alcoolismo. O efeito sufocante das condições
estavam quase passando fome, e tinham depositado miseráveis.
sobre os ombros dele toda a esperança. Sua irmã,
que o amava terrivelmente, estava prestes a se casar É análise psicológica e romance policial. É filosofia
obrigada só para não mendigar ou se prostituir. encarnada. Teologia aplicada. É castigo que pode
levar à luz. Perder a vida para encontrá-la. É febril,
E o nosso garotão? Não poderia fazer nada. Era certo poderoso, inesquecível.
que não pudesse fazer nada? Seria tão errado assim
matar uma velha, que daqui a pouco já iria morrer e É Dostoiévski. Preciso dizer mais alguma coisa?
explorava os outros, para garantir a vida de pessoas
muito melhores do que ela?

Essa é a primeira grande questão de Crime e Castigo.


Onde começa a moralidade? O que é certo e o que é
errado?

Depois de um vaivém interminável na sua


consciência febril, em que argumentos à primeira
vista perfeitamente racionais vão se misturando com
orgulho ferido, aspirações à megalomania e um
desejo de ser o herói da família até daí resultar um
torvelinho do capeta, Raskolnikóv desce o machado

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60.Crime e Castigo,
de Dostoiévski

Vocabulário: não vou mentir: o livro pode se tornar


meio complicado a depender da tradução que você
escolher. Na verdade, o que torna o livro às vezes difícil
são os cortes, as interrupções e saltos da consciência
do narrador, que toda hora volta atrás, interrompe a si
mesmo ou simplesmente muda de assunto sem mais
avisos. O vocabulário, em si, pode variar bastante em
relação às traduções.

Trama: a trama, em si, é mais ou menos linear. Aqui


e ali, o máximo a fugir disso é que surgem flashbacks
do passado.

EDIÇÃO RECOMENDADA
Editora Todavia. Tradução de Rubens
Figueiredo. 2019

Edição Clube de Literatura Clássica. É uma


tradução portuguesa premiada, considerada
uma das mais fiéis. Porém, o vocabulário é
mais difícil e a leitura, bem menos fluida.

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61.O Vermelho e o Negro,
de Stendhal

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Julien Sorél é um sujeito bonito, inteligente,


perspicaz e ambicioso. Só que calhou de nascer… "O Vermelho e o Negro" é uma obra-prima em
filho de um carpinteiro. Na França de 1800 e relação à psicologia dos personagens. Stendhal foi
bolinhas. Ou seja: a aristocracia ainda estava firme um dos primeiros a usar e abusar do narrador
e forte, e um sujeito sair do nada para virar um MC onisciente para nos mostrar TUDO que se passa
ou ser um analfabeto e virar político era coisa dentro das almas dos personagens.
raríssima. Afinal de contas, ainda não havia
Instagram para alguém botar uma luva de É uma verdadeira masterclass (o termo anda em
pedreiro, gravar uns vídeos chutando uma bola no voga) sobre a psicologia do homem moderno. Um
gol e ficar mundialmente famoso. livro em que vemos o surgimento de inclinações que
até hoje nos parecem naturais. Um livro que, no final
Não havia Instagram, mas já havia Napoleão. das contas, é tanto sobre Julien Sorel quanto sobre
eu e você.
O símbolo máximo e fulgurante de alguém que
tinha saído do absoluto nada e, sozinho, na raça,
subira de um soldadozinho anônimo até f*cking
imperador da França e conquistador da Europa. O
primeiro self-made man da história.

E herói de Julien.

Porque Julien não está nada, nadinha satisfeito


com sua posição. Em vez de ajudar o pai e os
irmãos na carpintaria, prefere ficar lendo e
sonhando com a glória napoleônica (o que causa
inveja, raiva e desprezo nos irmãos chucros e
caipiras).

Julien tanto admira quanto despreza a alta


sociedade à qual tão obsessivamente quer subir. E
não lhe faltam recursos. Porque o sujeito é finório.
Liso que nem quiabo. Malandro de marca maior.

Quando percebe que a única forma de subir na vida


seria entrar na vida eclesiástica, Julien começa a Vocabulário: ainda que Stendhal se preocupe,
acima de tudo, com a psicologia e motivações internas
memorizar versículos em latim para impressionar
dos personagens, nele existe uma veia romântica que
os outros e pagar de religioso austero e piedoso. se vê nas belas e poderosas descrições de paisagens,
construções e personalidades. É um livro eloquente
Assim que consegue um cargo como preceptor sem que seja prolixo. Vocabulário mediano para fácil.
dos filhos do prefeito, primeiro se apaixona pela
mulher do sujeito e logo depois começa a usá-la, Trama: a narrativa é linear. Aliás, a leitura é
manipulando a coitada (que era infeliz) para especialmente fluida. Alguns personagens são
conseguir o que queria. engraçados e a trama se vai desenrolando quase
como uma série.
E os dois ficam nessa sarração às escondidas, com
partes iguais de afeição, tesão e manipulação, até
uma camareira botar a boca no trombone e
precipitar uma série gigantesca de intrigas, EDIÇÃO RECOMENDADA
conveniências políticas e desgraças pessoais que
Julien hábil e inescrupulosamente vai Editora Penguin. Tradução de Raquel de
transformando em degraus para subir na vida e Almeida Prado. 2018
fugir da existência humilde que tanto lhe causa COMPRE AQUI!
repulsa.

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62.A Letra Escarlate,
de Nathaniel Hawthorne

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Nathaniel Hawthorne foi um escritor americano ameaça de alguma força demoníaca. O que havia de
AMBICIOSO, bicho. Nascido em Salém e pior nos puritanos é trazido à tona com tintas negras:
descendente direto dos juízes das bruxas de Salém, sua rigidez inflexível e cruel, um certo sadismo mal
Nathaniel herdou uma raiva anti-puritana que escondido nas chicotadas e humilhações públicas. A
carregou vida afora e despejou, de mãos abertas e completa falta de compaixão. A solenidade
sem dó, na sua ficção. carrancuda e sinistra…

O ano é algum do século XVII. Estamos em Boston, Mas Hawthorne é mais do que um escritor de terror,
nos Estados Unidos. Hester Prynne é uma mulher… e o livro não é uma novela mexicana. Por baixo da
lascada. É que, vivendo numa comunidade puritana, situação complicada, do emaranhado de motivações
ela acabou de ser condenada por adultério. E o pior é contrárias e mentiras, Hawthorne faz com que nos
que não tinha sido injustamente. Digo: ela realmente perguntemos qual é a relação entre a justiça e o
tinha pulado a cerca. pecado. Que nos perguntemos o que é o pecado,
afinal de contas. Que raios é a misericórdia. Como se
A injustiça vinha depois, no duplamente pior: Hester, apresenta o perdão. Se existe redenção. Se somos
descoberta e julgada pela comunidade, é forçada a livres ou pré-determinados. "Um conto de fraqueza e
usar a "letra escarlate" do título – um "A" enorme dor humanas", segundo o autor.
costurado-lhe nas roupas, para que seu pecado a
seguisse por onde ela fosse e ninguém deixasse de Um gótico psicológico de alto nível e, talvez, o
saber a quem poderiam apontar os dedos e chamar primeiro grande romance da literatura americana, "A
de PECADORA. Algo bem no espírito cristão, mesmo, Letra Escarlate" é um clássico indispensável.
de humildade e perdão. Só que não.

Hester tinha cometido adultério porque, muito tempo


antes, viera à Nova Inglaterra antes do marido. Dias,
semanas, meses se passaram e o marido não dava
sinais de vida. Sozinha, isolada numa comunidade
que mal conhecia, Hester acaba se apaixonando por
um sujeito e fica grávida.

Só que a coisa ainda piora. Muito, muito mais. Como


Hester se recusa a dedurar o amante e pai de seu
filho, torna-se um pária à vista de todos. Inclusive do
seu marido.

Porque Roger Chillingworth, seu marido, enfim tinha


chegado. Justo a tempo de ver a esposa julgada,
humilhada, rebaixada e condenada diante de todos.
Jura, então, com ódio roendo-lhe a carne, descobrir
ele próprio quem tinha sido o amante e vingar-se,
caindo numa espiral de rancor, suspeita neurótica e
violência que vai colar a bunda do leitor na cadeira
assim que engrenar.

A Letra Escarlate" é um livro pesado, sufocante. Sua


atmosfera é quase gótica; sobre ele paira a constante

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62.A Letra Escarlate,
de Nathaniel Hawthorne

Vocabulário: Hawthorne é detalhista, tanto em


relação aos personagens quanto aos ambientes em que
se desenrola a ação. Porque ele quer (e consegue) criar
uma atmosfera. Temos de sentir aquele mundo como
se estivesse ao nosso redor. Vê-lo. Ouvi-lo. Quase
cheirá-lo. Daí que o livro tenha muitas descrições. Mas
são descrições claras, que não se esticam muito nem
passam do ponto.

Trama: em relação à narrativa, seria


interessantíssimo você fazer alguma pesquisa sobre
os puritanos, o calvinismo e a colonização do Novo
Mundo.

EDIÇÃO RECOMENDADA
Editora Penguin. Tradução de Christian
Schwartz. 2011

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63.Madame Bovary,
de Flaubert

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Um clássico entre os clássicos. Cornice à francesa. consequências dos seus atos pelo outro. O marido,
Croissant de safadeza. A versão gaulesa de Anna um banana, não percebe o que toda a vizinhança já
Kariênina – ou seria Anna Kariênina a versão gaulesa tinha percebido. Emma é enganada pelo seu amante
de Madame Bovary? Fica aí a cuestão. e cai em dívidas. Quanto mais ela se chacoalha e
debate para fugir do que fez, mais o círculo se fecha e
A única cuestão absolutamente certa é esta: as desgraças vão se amontoando, inevitáveis.
Flaubert, com seu livro sobre a esposa frustrada e Terríveis.
entediada dum médico, fincou seu guarda-sol com
firmeza inabalável ao lado dos maiores gênios da Todas causadas por ela mesma.
literatura of all times. Encontrou seu lugarzinho ao
sol ali no panteão onde estão Tolstói, Shakespeare, "Madame Bovary" é um clássico incontornável pela
Dostoiésvki, Proust… força do estilo de Flaubert. Pela sua agudeza
psicológica. Pela crua clareza com que mostra as
"Madame Bovary" conta a história de Emma Bovary. motivações imbecis de Emma – e nos lembra, por
Educada num convento e criada no interior, a moça tabela, de que nós temos motivações igualmente
passava o dia inteiro lendo bestsellers românticos e imbecis. Pela presença quase real dos personagens.
viajando na maionese sobre o tal do AMOR. Achava Pelo seu tema, cada dia mais válido. Afinal de contas,
que amor eram palpitações febris, ataques epiléticos se Emma foi influenciada por livros exagerados, o
no meio da rua, calcinhas úmidas e peitos piscando à que dizer de nossa época?
simples lembrança do contorno da nuca peluda do
amado. Resumindo: era uma caipirona ingênua. Da Netflix? Das vidas falsificadas e empacotadas de
influenciadores? Dos bestsellers? De 50 Tons de
Simplória, imaginativa, até danadjenha, Emma acaba Cinza e Bridgerton? Emma somos nós. Emma sou
se casando com seu médico. Charles. Um homem… eu. Emma é você.
bom. Só que medíocre e francamente sem graça. Aí
já viu. Rapidinho, a mulher percebe que a vida real
não era como os livros. E tudo ainda piora depois de
nascer sua primeira filha. Cai num tédio mortal. A
rotina, a segurança, a estabilidade duma vida
*comum* começam a envenená-la e sua
imaginação fértil começa a rodar alguns filminhos
naquela cabeça…

Emma começa a brincar com a ideia de ter um caso.


Pega a ideia com cuidado e a joga na imaginação.
Vive a excitação na cabeça. Fantasia encontros às
escondidas, cheios do frêmito de "se formos
descobertos, lascou". O que estava nos livros passa à
sua cabeça, espalha-se pelo seu corpo e a deixa
prontinha para o abate – prontinha a ser seduzida por
um mulherengo e trazer a desgraça a todos.

Flaubert, com estilo inigualável e uma finura


psicológica fora de série, de forma sarcástica e
impiedosa vai dissecando a psicologia da pobre da
Emma, por um lado, e nos mostrando as

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63.Madame Bovary,
de Flaubert

Vocabulário: O vocabulário do livro não é nenhuma


coisa de outro mundo. Na verdade, é mais simples do
que muitos imaginam. Flaubert, porém, era minucioso.
Não tinha pressa. Gosta de pintar as situações, os
personagens, os ambientes, com máxima calma e
exatidão de palavras. Daí resulta um estilo de escrita
que poderíamos chamar de "rebuscado." Então é uma
boa ideia você prestar bastante atenção. Flaubert não é
qualquer escritor.

Trama: A narrativa, em si, não apresenta nenhuma


invencionice técnica. Segue uma sequência
cronológica. Porém, aqui e ali o autor intercala a
infância de alguns personagens com o presente. Como
em flashbacks. De resto, tudo tranquilo.

EDIÇÃO RECOMENDADA
Editora Penguin. Ótima tradução de Mário
Laranjeira. 2011

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64.Anna Kariênina,
de Tolstói

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

"Todas as famílias felizes se parecem, toda família libertinagens suadas sob uma orquestra de
infeliz é infeliz à sua maneira." gemidões do zap…

É ASSIM que se começa um livro, diacho! O que torna E olha que só falamos da Ana!
Tolstói tão inacreditável, tão inigualável, é que o resto
do livro faça justiça à sua primeira frase – e se torne Porque, leitor, o título é um pouco enganoso. O
um dos maiores romances já escritos pela calhamaço de mais de 800 páginas originalmente
humanidade. teria sido chamado de "duas famílias" ou algo assim.
Tolstói só resolveu trocá-lo (especula-se) por
Ana é uma mulher deslumbrante. Linda, exuberante, sugestão do editor. Seria mais fashion. Jogada de
um pitél. Mistura de Gisele Bündchen com Grazi marqueteiro. Funcionou.
Massafera. De parar o trânsito. Só que Ana, como se
não bastasse, é também charmosa. E tem um quê de Mas o que nos interessa é que o livro fala, na
misteriosa. Ou seja: de uma só vez apela ao tesão, verdade, sobre DOIS relacionamentos. O de Ana com
aos sentimentos e à curiosidade dos homens. Quase o esposo banana e o amante tesudo e o de Kitty
uma deusa da sedução. Scherbatsky com o intelectualizado e espiritualizado
Levin.
Só que Ana não é feliz. A mulher com aquele vigor,
aquele corpaço violinil, aquele rostinho de anjo… Tolstói cutuca o vespeiro da religião, gira a faca na
tinha se casado com um nerdola mais velho. Um ferida da família e dá uns pescotapas selvagens nas
sujeito meio palermão, absolutamente sem graça, classes sociais para nos contar a história trágica
com o corpo de tiozão amoldado às poltronas de (mas com várias partes engraçadas) de uma
couro e uma cara de bolacha. Caminhãozinho aristocrata que, ao resolver pular a cerca,
pequeno demais pra toda aquela areia da Ana. experimenta o agridoce de um amor tão apaixonado
quanto sofrido. Nas palavras de Tolstói: "feito de
A mulher não o ama. Tudo lhe parece enfadonho, sombra e de luz".
sem brilho. A vida é monótona. Uma onça algemada
a um jabuti. Um avião sem poder voar.

Ana, então, louca para fugir àquele vazio e encontrar


alguma alegria, resolve chifrar o marido com o Conde
Vronsky, um impetuoso e tesudo oficial do exército. E
aí, meu filho, daqui para a frente é só para trás.

Seu marido, o grão-mestre da cornice mansa,


descobre tudo! E… só consegue pensar no que os
outros diriam. Finge que não vê e Ana finge que não
dá – até o quiabo escorregar na hora errada e ela ficar
grávida. E aí é um vaivém, um toma lá da cá, uma
conversa AWKWARD com esposo e amante no
mesmo quarto, uma escapada para a Itália, um
quadro que alguém pinta com seu rosto
deslumbrante, um filho gestado e parido, todo
mundo falando mal dela, punições do marido
banana, bem-me-quer-mal-me-quer com o amante
e caçadas, litrões de vodka, mexericagem, intrigas e

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64.Anna Kariênina,
de Tolstói

Vocabulário: Tolstói é um dos escritores mais


claros que eu já li na minha vida. Especialmente se você
o ler com a tradução de Rubens Figueiredo. Só pus Anna
Kariênina na categoria dos "intermediários" por conta do
seu tamanho. No mais, o livro é profundamente simples.

Trama: Tolstói, não vou mentir, às vezes gasta


muitas páginas com eventos e situações que à
primeira vista (e, talvez, também à segunda e terceira
e décima) não parecem ter muito a ver com as duas
tramas principais ou pouco lhes acrescentam. Seja
como for, as duas histórias em si são fáceis de
entender, e a edição que eu recomendo fornece
algumas valiosas notas de rodapé a fim de que você
possa se inteirar do contexto.

EDIÇÃO RECOMENDADA
Editora Companhia das Letras. Tradução de
Rubens Figueiredo. 2017

COMPRE AQUI!

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65.Nosso Homem em
Havana,
de Graham Greene
DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Eu li esse livro quase sem querer, por acaso, depois serviço para complementar a renda. Mais ou menos
de encontrá-lo perdido numa pilha de livros que uma como algumas mães começam a vender Avon.
tia dera à minha mãe quando eu era mais novo (e os
quais ela própria nunca tinha lido). Só tinha um pequeno problema: Jim não tinha nada
a reportar. Não sabia de informação secreta
Numa daquelas edições antigas da editora Abril, com nenhuma. Desesperado, louco para não perder o
a capa vinho, o livro não tinha absolutamente nada bico de James Bond, nosso herói faz algo
sobre a história. Sem sinopse. Sem introdução. Sem absolutamente maravilhoso: começa a… inventar.
orelhas que falassem qualquer coisa quer sobre o
autor, quer sobre a trama. Fui às cegas, coisas que Lê os jornais, inspira-se nas notícias e começa a tirar
nunca fazia. E pior: fui às cegas e não larguei o livro, o da cabeça toda uma intrincada rede de agentes.
que era ainda mais raro. Quanto mais ele mente, mais o governo lhe manda
dinheiro para suas *operações* e mais informações
E não me arrependi. exigem, e mais ele as inventa. Jim vai engambelando
o serviço de inteligência britânica e chega, inclusive,
"Nosso Homem em Havana" é um livro realmente a copiar a planta dum manual de aspirador de pó em
delicioso. É engraçado, solar. Tudo nele exala escala gigantesca para vender-lhes a ideia de que os
bom-humor e esperança. Acima de tudo: leveza. cubanos estavam construindo uma arma secreta.
Coisa infelizmente difícil de encontrar entre livros
bons. Só que aí, meu filho, algo duplamente bizarro
começa a acontecer: os relatórios falsos começam a
A história é a seguinte: Jim Wormold é um inglês que resultar em pistas verdadeiras. Parece que, às cegas,
vive em Cuba. Um sujeito inconspícuo, normalzão, numa brincadeira sem noção, Jim tinha acertado
até medíocre, que virou pai solteiro depois de a bem na veia de uma intriga de espionagem real…
mulher dar um pé na sua bunda e fugir com outro
para Miami. Jim trabalha vendendo aspiradores de
pó e mal anda conseguindo pagar as contas para
sustentar a filha Milly – que acabou de fazer
dezessete anos e virou um mulherão de parar o
trânsito.

A moça, aliás, é tão católica quanto é dinheirista e


manipuladora. Para o pai, uma PÉSSIMA
combinação. Ainda mais péssimo é ver o capitão de
polícia local, famoso torturador, todo santo dia
assediá-la com mais cara de pau e assanhamento
salivoso.

Ou seja: está tudo uma merda. Até que num belo dia
surge à porta de Jim um tal de Hawthorne. Um
agente secreto do MI6. Tinha um servicinho para
nosso herói. Ser um espião da coroa inglesa em
terras cubanas.

E Jim – o pobretão, o corno manso, o pai solteiro que


vende aspirador de pó para sobreviver – aceita o

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65.Nosso Homem em
Havana,
de Graham Greene

Vocabulário: tranquilíssimo. Aliás, o tom inteiro do


livro é muito leve, e os diálogos são fáceis de
acompanhar.

Trama: sem grandes sustos por aqui, também. Só


no começo talvez você fique um pouquinho perdido
com os nomes, mas é algo que em poucos minutos
acaba e a leitura flui sem obstáculos.

EDIÇÃO RECOMENDADA
Editora Biblioteca Azul. Tradução de Fábio
Bonillo. 2017

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66.Persuasão,
de Jane Austen

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Persuasão é, talvez, o livro mais maduro de Jane que largado a vida de mão. Dali para frente, era só
Austen. No mínimo, com certeza foi um livro escrito para trás.
por uma Jane Austen madura. É o último livro que
recebemos completo antes de sua doença "Persuasão" é um livro absolutamente sutil. Quase
arrancá-la de nós ainda desgraçadamente nova, com não temos aqueles maravilhosos diálogos de Jane
míseros 41 anos de idade. Austen. A ênfase recai inteira sobre o MUNDO
INTERIOR de Anne. Jane pega o seu microscópio e
Se, porém, alguns leitores mais hardocore podem dá um zoom máximo na psicologia da personagem
bater o pé (com justiça) contra o adjetivo "maduro", o principal.
que nenhum leitor de Jane Austen pode negar é que Porque o livro é, no final das contas, a história de
Persuasão é um livro… diferente. como Anne Elliott vai progressivamente tornando-se
a protagonista do seu próprio livro. No começo, ela
Aqui não existe aquela exuberante alegria de Orgulho não move a trama. É carregada por histórias alheias,
e Preconceito, e nem a protagonista expansiva de como uma figurante.
Emma. Faltam-lhe aquele sarcasmo, aquela ironia
quase impossivelmente sutil e risonha de outros "Persuasão" é diferente porque Jane Austen quis
livros. espelhar, com a forma de contar a história, o lento
desabrochar da protagonista desde um inverno frio
"Persuasão" é um livro melancólico. Sobre ele paira para uma primavera cheia de esperança.
uma atmosfera recolhida, taciturna. O livro às vezes
parece sufocar o leitor – porque sua protagonista É a história quase imperceptível, microscópica, dos
também está sufocada. movimentos de uma alma doce e reclusa. O mundo
interior de uma daquelas pessoas tão meigas, tão
Anne Elliott é uma mulher inteligentíssima e doce. passivas, tão apagadas, que a gente se esquece de
Todos confiam nela porque Anne mais de uma vez já que são pessoas e têm sentimentos.
se mostrou capaz de entendê-las melhor do que elas
próprias. A história dos tímidos. Daqueles que ficam nos
cantos. Qual será o destino da voz frágil e meiga de
Só que Anne é uma lascada. Já tinha vinte e sete Anne? Será que Wentworth ainda tem alguma
anos e ainda continuava solteira numa época em que afeição por ela debaixo da raiva que se vê na
isso quase equivalia à morte em vida. Por quê? superfície? Será que ela tem a força suficiente para
Porque, mais nova, *persuadida* pela sua única não ceder? Para deixar de ser passiva e enfrentar os
amiga no mundo e amiga da falecida mãe, Anne outros?
tinha recusado a proposta de casamento de um
certo Wentworth. Na época, Wentworth era um
marujo afoito e não tinha coisa nenhuma. Agora,
porém, oito anos depois… Wentworth tinha virado
capitão e estava podre de rico. E continuava solteiro.
E iria voltar à terrinha em busca de uma esposa. E
odiava Anne.

E Anne, por sua vez, ainda o amava profundamente.


E sua natureza meiga, compassiva, juntara-se à
tristeza do arrependimento e tinha resultado numa
Anne passiva. Apática. Que não se importava com os
outros aproveitando-se dela porque já tinha meio

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66.Persuasão,
de Jane Austen

Vocabulário: o vocabulário e o estilo são bem


diferentes de um Orgulho e Preconceito, por exemplo.
As frases são mais elaboradas. O vocabulário, mais
extenso. "Persuasão" é um livro com a dificuldade
mediana para cima.

Trama: a leitura, não vou mentir, pode ser arrastada.


Não acontece absolutamente NADA de imediatamente
chamativo. As mudanças de Anne são muito, muito
sutis, e você precisa ler tudo com máxima atenção. Se,
porém, você chegar ao final, valerá muito a pena. É um
livro que exige algo a mais de você, leitor(a).

EDIÇÃO RECOMENDADA
Editora José Olympio. Tradução de Mariana
Menezes Neumann. 2021

Editora L&PM Pocket. Edição de bolso.


Tradução de Celina Portocarrero. 2011

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A-
VEN
TURA
Aventura
Antes de haver Indiana Jones ou Lara Croft, havia "As
Minas do Rei Salomão". Antes de haver Lost e O Náufrago,
havia "Robinson Crusoé." Antes de haver Os Goonies e
Stranger Things, havia "As Aventuras de Tom Sawyer".
Antes de haver Jurassic Park, havia "O Mundo Perdido".

Aventura é o quê? Gente estranha numa festa esquisita


lá no ** do Judas. É suspense que age sobre as nádegas
do leitor como Super Bonder. É ação, perigo e tentativas
de homicídio doloso partindo de: dinossauros,
alienígenas, aborígenes, bêbados, colonizadores, piratas,
soldados, mosqueteiros, criaturas sobrenaturais,
preternaturais e qualquer outra coisa que esteja entre
estas e aquelas.

É tiro, porrada e bomba. É mar bravio, é gente


esgrimando, é tiro esfuziante e selvas fechadas. São
cavernas sufocantes e heroísmos inesperados. São
fugas apertadas, escapadelas por um triz.

É o puro suco do frenesi. A agitação empolgante que nos


tira um pouco do cotidiano e nos mostra, em vislumbres
memoráveis: a vida tem algo de grandioso.

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67.As Minas do Rei Salomão,
Henry Rider Haggard

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Seria imprudente, imbecil e sobretudo injusto não Vocabulário: tranquilíssimo. Não vejo nenhuma
começar as indicações de aventura com o CRIADOR dificuldade que possa surgir quer com o vocabulário,
daquele gênero de histórias que todo mundo ama: quer com o estilo do autor. Um dos melhores livros
possíveis quando o assunto é ser BOM e SIMPLES.
histórias de façanhas e jornadas extravagantes à
caça de artefatos de macumba ou tecnologia
alienígena enfiados em civilizações perdidas nalgum
longínquo deserto, selva amazônica ou fundo do Trama: tão fácil quanto o vocabulário e estilo.
mar…

Basta dizer que sem Henry Haggard não teríamos


Indiana Jones, Lara Croft, Uncharted, Tintim.

Haggard influenciou diretamente J. R. R. Tolkien, C. S.


Lewis, Robert Howard (o criador de Conan), Arthur
Conan Doyle, H. P. Lovecraft e era lido
compulsivamente até por Freud! Allan Quatermain,
seu herói, é o Sean Connery daquele filme "A Liga
Extraordinária" (que eu amava).

"As Minas do Rei Salomão" foi escrito num jato, como


se o coitado estivesse possuído, depois de seu irmão
ter apostado com ele que Henry nunca conseguiria
escrever algo melhor que "A Ilha do Tesouro", de
Robert Louis Stevenson.

Em vez de dar uma risada de deboche, catar o


dinheiro à força e viver sua vida, Haggard… levou a
sério a aposta.

Allan Quatermain, um caçador de elefantes e


explorador, acaba contratado por um certo Sir Henry
Curtis para que ambos fossem até a África descobrir
onde diabos poderia estar o irmão perdido de Sir
Henry, sumido tempos antes escarafunchando a
África para encontrar a antiga mina de diamantes do
Rei Salomão.

Aborígenes, secas horrendas no deserto, cavernas


claustrofóbicas, eclipses mágicos, bruxas,
assassinatos, rituais sangrentos e cidades perdidas
no meio do nada – o puro suco da aventura, bicho!

EDIÇÃO RECOMENDADA
Editora Via Leitura. Tradução de Luciana
Pudenzi. 2017.
Editora Todavia. Tradução de Samir Machado
de Machado. 2021

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68.Robinson Crusoé,
de Daniel Defoe

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Se Swift é o godfather da sátira, Daniel Defoe carrega de pensar em transformá-lo num fricassê
um título ainda mais façanhudo. O bichão é ninguém humano, o bichão precisa ligar o modo Macgy-
mais, ninguém menos que o pai do romance inglês – ver e usar as coisas que lhe tinham sobrado –
o pai da literatura mais rica de todos os tempos um canivete, um cachimbo e otras cositas más,
(desculpa aí, França e Rússia). pero no mucho – para sobreviver. E sem perder
a dignidade ou compostura de englishman,
Na televisão e cinema, Lost e O Náufrago foram diacho!
obviamente inspirados por Robinson Crusoé.
Brabo demais, incansável, eficiente, industrioso
O livro, aliás, foi inspirado em fatos reais. Os fatos da e bom cristão, Robinson é o original faz-tudo
vida real do marujo escocês Alexander Selkirk, um daqueles vídeos do YouTube em que um sujeito
sujeito tão rebelde e do contra que resolveu naufra- constrói no meio da selva uma casa com vinte e
gar-se de livre e espontânea vontade, SOZINHO, nove quartos: vira padeiro, soldado, marujo,
numa ilhota ali pelos arredores do Chile no século fazendeiro, you name it.
XVIII.
Até, claro, chegar o fim quase inevitável de sua
Não é tão difícil explicar por que Robinson Crusoé aventura… ou será?
virou um hit tão estrondoso e longevo. A prosa é fácil,
mas não simplória. É uma escrita sóbria, prática.
Quase rústica (para os padrões ingleses, veja lá).
Defoe não era um diferentão que só queria ser lido
pela elite. Queria todo mundo lendo o que escrevia. E Vocabulário: reforçando o que já disse na sinopse,
a linguagem era só metade dos artifícios que usava Daniel Defoe escrevia com linguagem simples e
para capturar os leitores. acessível de caso pensado. No fundo, era menos um
escritor artístico e mais um homem prático, inteligente
e muitíssimo bem vivido. A fórmula de alguém
A história era a outra.
INTERESSANTE.

Robinson Crusoé, um marujo que ainda jovem fugira


de casa porque sentia um chamado à vida aventuro- Trama: mais simples, impossível.
sa nos mares… e se lasca. Piratas marroquinos
transformam o sujeito num escravo, mas ele conse-
gue fugir e direciona um barquinho para onde?
Onde?

O Brasil! Mas aí se lasca de novo (ou é salvo, depende


do ponto de vista) e sofre um naufrágio catastrófico
que o cospe numa ilha remota, perdida nas pregas
do Judas, perto da atual Venezuela. E que ainda fazia
fronteira com o território de canibais.

Sozinho, sem as bugigangas e o conforto da civiliza-


ção, pertinho de gente com os beiços molhados só

EDIÇÃO RECOMENDADA
Editora Zahar. Tradução de José Roberto
O’Shea. 2021
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69.As Aventuras de Tom
Sawyer,
de Mark Twain
DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

objetivo? Encontrar uma cura para verrugas. Ali,


os dois moleques acabam caindo no que
Mark Twain já exigiria respeito e um eterno lugar no haveria de se tornar uma aventura de verdade.
hall da fama universal só por ter o segundo bigodão
mais memorável da história (o primeiro, claro, tem Testemunham um assassinato.
de ficar com Nietzsche). O sujeito, porém, não parou
aí. Ao bigodão acrescentou a escrita de um dos livros Daí já viu: fugas para cavernas abandonadas, a
mais charmosos de todos os tempos: As Aventuras busca frenética por uma pilha de ouro escondi-
de Tom Sawyer. da, engabelamentos de toda espécie, guris
Tom Sawyer é um moleque endiabrado, finório e todo aspirando à pirataria, casas mal assombradas,
serelepe que mora com sua velha tia Polly, um irmão amores juvenis, espionagens…
e uma prima às margens do rio Mississipi, lá nos
Estados Unidos, na época da escravidão. As Aventuras de Tom Sawyer é um livro que
captura o espírito e a mágica juvenis e serve
Órfão de pai e mãe, nem por isso Tom se faz de tanto para jovens quanto para nós adultos que,
rogado ou coitadinho. Na-na-ni-na-não. O guri cabula convenhamos, sentimos falta daquela maravi-
aulas, sai na porrada com outros moleques e lhosa sensação de mundo aberto e inumeráveis
demonstra desde jovem, em atos e palavras, uma possibilidades de uma infância há muito passa-
inclinação notável ao estadismo: ou seja, é um da, mas não perdida.
mentiroso salafrário. Leva todo mundo na lábia.
Porque nos trouxe até aqui.
O livro começa com a tia Polly, a velha em cuja
personalidade se misturam doses iguais de rabugice,
alegria, raiva e carinho – mais ou menos como toda Vocabulário: no original, Mark Twain fez muito
boa mãe –, caçando Tom pela milésima vez. esforço para reproduzir as gírias e o modo de falar da
gente meio caipira real, que na época realmente viveu
Esgoelando o nome do moleque, dando estocadas às margens do Mississipi. Nas traduções, pelo pouco
que eu pude ver, as falas ficaram mais "neutras". Por um
com a vassoura embaixo do sofá caçando o mole-
lado, perde-se boa parte do charme do original. Pelo
que, ralhando com o moleque quando o pega pelo outro, ganha-se mais facilidade. O livro torna-se mais
colarinho e sendo ludibriada pela milésima vez pelo acessível.
moleque – mais ou menos como toda boa mãe.
Trama: tranquilíssima. A estrutura do livro é uma
Afinal de contas, no que tange à sutil arte do engabe- sequência de aventuras episódicas.
lamento, Tom não tem nada de juvenil. Na lábia,
passa a perna noutros moleques e os põe para pintar
a cerca branca que fora seu castigo. Logo depois, cai Atenção! Muitas edições no mercado são adaptações.
Ou seja: não é o livro completo, original, como foi escrito
de amores pela vizinha que chega tinindo às redon- pelo autor. E sim uma versão simplificada, menor,
dezas, com um punhado de flores e umas frases de criada e escrita por outra pessoa. Não indico
amor fica noivo dela e tudo fica quase perfeito até adaptações.
Becky descobrir que Tom já estava noivo de uma tal
Amy Lawrence.

Tom leva um fora de Becky e resolve acompanhar


seu amigo Huckleberry Finn, o rebento largado de
um bêbado e órfão de mãe, até o cemitério. O

EDIÇÃO RECOMENDADA
Editora Autêntica: texto integral. Tradução de
Márcia Soares. 2017.
Editora Via Leitura: texto integral. Tradução de
Paulo Camacho. 2016

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70.O Mundo Perdido,
de Arthur Conan Doyle

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Edward Malone é um repórter xófen e afoito que, Vocabulário: muito bem escrito, o livro tem um
louquinho para impressionar Gladys, a mulher pela estilo claro e elegante. O vocabulário é variado na
qual é apaixonado e que gosta de homens façanhu- medida certa. Acessível a leitores iniciantes,
dos, implora ao seu editor que lhe dê alguma tarefa tranquilamente.
PERIGOSA. Alguma coisa que lhe dê cicatrizes e seja
uma daquelas histórias para as quais todo mundo
paga pau numa rodinha. Trama: simples e tranquila. Desenrola-se como
vários curtos episódios em ordem cronológica.
A tarefa: conseguir uma entrevista com o famoso
Professor Challenger, que faz jus ao nome sugestivo
e odeia a mídia com todas as suas (enormes) forças
e mais de uma vez foi às vias de fato com jornalistas
(espancou os coitados). Malone solta um CHALLEN-
GE ACEPTED e, depois de algumas peripécias e
vaivéns, ambos viram amiguinhos e o professor lhe
conta um segredo.

Os dinossauros ainda existiam! Na América do Sul.


Mais especificamente, na Selva Amazônica.

E agora cabia a Malone, o próprio Challenger um


certo professor Summerlee e Lorde John Roxton – o
macho do grupo, com um rifle matador de escravo-
cratas – viajar até onde Judas tinha perdido as botas
e verificar se o professor Malone, que vinha sendo
universalmente ridicularizado por dizer que por aí
ainda existiam tiranossauros e otras cositas más,
estava certo ou errado.

E lá se vão os quatro na aventura mais perigosa e


esdrúxula que alguém poderia imaginar: vasculhar o
Brasil. E talvez até encontrar uns dinossauros!

Aqui, os quatro ingleses topam com índios, encon-


tram novas espécies de plantas, embrenham-se na
selva mística e gigantesca, escalam montanhas,
avistam um pterodáctilo e enfrentam traições e
inimigos à espreita na mata fechada.

"O mundo perdido" é uma mistura de ficção científica


à la H. G. Wells, viagem no tempo e crônicas de
aventuras cheias de façanhas e pancadaria e perse-
guição e bichos fantásticos e gente exótica e terras
longínquas. Os personagens são carismáticos, vivos EDIÇÃO RECOMENDADA
e marcantes.
Editora Todavia. Tradução de Samir Machado.
2018.
Impossível não gostar. Especialmente quando você
percebe que Arthur Conan Doyle também calha de COMPRE AQUI!
ser o criador de… Sherlock Holmes.

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71.Os Três Mosqueteiros,
de Alexandre Dumas

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

D'Artagnan, um rapazola afoito e incrivelmente deixar de ser um mosqueteiro e entrar para a


fanfarrão, deixa sua casa em direção a Paris. Seu Igreja.
plano? Tornar-se um dos guardas de elite do Rei; um
esgrimador inigualável e façanhudo herói de armas – No mais, Os Três Mosqueteiros envolve lutas de
um MOSQUETEIRO. espada, romances secretos, perseguições,
castelos, intriga política, MUITA comédia e o
No meio da viagem, o pimpão topa com três mais importante de tudo: amizade e honra.
mosqueteiros diferentes, um de cada vez, e
consegue a proeza invejável de caçar briga (de forma
hilariante) com TODOS, o que resulta em três duelos
até a morte marcados com os lendários Athos, Vocabulário: o vocabulário é relativamente
tranquilo. O livro inteiro é escrito num tom irônico, às
Portos e Aramis.
vezes pomposo, que não se leva a sério e justamente
por isso às vezes usa um rebuscamento exagerado nas
Os três mosqueteiros. frases.

Antes, porém, de os quatro sujeitos resolverem


como poderiam todos duelar até a morte com um Trama: aqui, a treta é política. Fique esperto à edição
único jovenzinho insolente, eis que a guarda do que eu recomendar, porque nela há notas de rodapé
Cardeal Richelieu – que vinha juntando para si quase que tornam a compreensão de tudo muito mais fácil.
um exército privado, com o qual poderia fazer frente Por outro lado, o livro foi originalmente escrito em
ao Rei – vem soltar ordens, cheios de marra e folhetins: ou seja, toda semana ou quinzena saía um
capítulo novo, como numa série da Netflix. Daí que a
pompa, mandando todo mundo dispersar.
leitura seja fluida, rápida, e cada capítulo deixe um
gancho aberto para o seguinte. Não faltam peripécias,
D'Artagnan, ali, faz uma escolha. E se junta aos brigas, lutas de espada, perseguições, bebedeiras e
mosqueteiros a fim de descer o cacete na guarda do casos de amor para você ficar com a cara GRUDADA
Cardeal. nas páginas.

Pronto. No calor da esgrimagem frenética e


camaradagem viril, forjou-se uma sólida amizade
masculina. Porque todo homem sabe que não existe
comunhão mais imediata e profunda do que a criada
no meio da porradagem.

O trio virou quarteto. Um por todos e todos por um.

"Os Três Mosqueteiros" é o puro suco da aventura. Só


que Alexandre Dumas, além de criar mil e uma
situações de pancadaria, perseguições e tensões
cinematográficas, resultando num livro de
seiscentas páginas que a gente lê como se tivesse
cem, consegue fazer o mais difícil: criar personagens
cativantes. Personalidades memoráveis, pelas quais
você cria afeto e das quais ainda vai se lembrar por
muitos anos depois de ter fechado o livro. EDIÇÃO RECOMENDADA
Editora Zahar. Versão Comentada. Tradução
Athos é um mosqueteiro mais velho e sábio. Nobre, de André Telles. 2010
confiável, mas também algo depressivo e dado a
Editora Zahar. Versão de bolso de luxo.
afogar mágoas misteriosas na bebida. Portos é o Tradução de André Telles. 2010.
beberrão e expansivo e honesto e gozador e
mulherengo e levemente ingênuo – para não dizer
burro. Um trator, forte como um boi. Aramis é quase COMPRE AQUI! COMPRE AQUI!
um metrossexual avant-garde; um sujeito
absurdamente boa-pinta, que toda hora diz que vai

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72.As Viagens de Gulliver,
de Jonathan Swift

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Eis que vos apresento o Rei do Deboche! O sarro sem apontar o dedinho com aquele tom
undisputed campeão da galhofa literária. O sujeito de adultinho superior. Um clássico da sátira.
que transformou o que seria um textão irônico em
alguma rede social num dos maiores clássicos da Melhor.
literatura – e não menos em tamanho.
O clássico da sátira.
Porque você pode se preparar para mais de 600
páginas do mais fino e puro deboche britânico.

Britânico? Não. Mais exatamente, irlandês.


Vocabulário: a leitura é surpreendentemente
tranquila. O livro não é prolixo, nem de longe. O autor
Porque "As Viagens de Gulliver" é, antes de qualquer não se perde com descrições intermináveis ou tentando
coisa, uma sátira. Uma tiração de sarro com a ser *poético* ou exibir seu estilo ou sei lá o quê. Eu diria
pompa, os costumes e a política britânica. Não se que o livro, na verdade, aproxima-se mais de um estilo
trata de um livro que o autor tenha escrito porque jornalístico. O cômico, o ridículo tem de vir das
"só" queria criar uma baita história de aventura SITUAÇÕES e ser aumentado pelo tom perfeitamente
marítima e façanhas em terras longínquas – muito natural com que elas são contadas.
embora seja possível lê-lo assim, se você quiser.
Trama: claro, a trama do livro é uma zorra no sentido
Lemuel Gulliver é um médico, casado, que resolve de haver coisas absurdas e esdrúxulas em cada uma
fazer umas viagens marítimas quando seu negócio das terras visitadas por Gulliver. Mas a estrutura é
começa a ir mal das pernas. Quatro vezes, alguma muito, muito simples: Gulliver viaja, por algum motivo
cai numa terra desconhecida, vive ali por algum tempo
desgraça acontece com sua viagem – é tempestade, e volta à Inglaterra. Depois, tudo se repete para ele cair
é pirata, é motim – e o coitado acaba um náufrago noutra terra desconhecida, e assim por diante.
nalguma terra esdrúxula, povoada ora por gente
minúscula, ora por gente gigantesca, ora por gente
imortal ou um bando de malucos que precisam se
estapear a cada poucos segundos para que não se
distraiam e possa haver alguma conversa (tipo nóis,
do século XXI!).

O livro vai desde Gulliver libertando sua jiromba de


Godzilla (proporcionalmente) para mijar num palácio
minúsculo e apagar um incêndio, passando pelo
sujeito saindo na faca com dois ratos do tamanho de
ursos, sendo jogado num vale epidérmico entre dois
peitos megascópicos de uma giganta e encontrando
cientistas tentando extrair a luz do Sol a partir de um
pepino até um governador que traz de volta à vida
Alexandre o Grande, Homero e Aristóteles.

A cada nova viagem, Gulliver vai se tornando capaz


de analisar tanto a si mesmo quanto a vida na
Inglaterra a partir de MUITAS novas perspectivas – a
mesquinhez diminuta do imperialismo; a sanha
interminável e besta dos cientistas; o louvor
idolátrico aos grandes do passado; o grotesco de um
ego agigantado; as incontáveis, infinitas, EDIÇÃO RECOMENDADA
intermináveis perversõezinhas do espírito humano…
Editora Penguin. Tradução de Paulo
Henriques Brito. 2010.
Está tudo ali. Um livro engraçado, cativante, que tira
COMPRE AQUI!

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TER-
ROR
Terror
Calafrios na espinha. Uma gotinha de suor sambando
acima do rego. O estômago embrulhado pelo máximo
cagaço. O coração palpitando. Monstros à espreita, cape-
tas à solta, diabos num bundalelê com sua pobre almi-
nha… MUAAAAAA-RÁ-RÁ-RÁ

Por sua própria natureza, o (bom) terror fica bem ali no


meio entre a literatura popular e a alta literatura. É popu-
lar porque, convenhamos, monstros e forças sobrenatu-
rais cheirando a enxofre são naturalmente interessantes.
Tem sangue? Tem morte? Tem bichos disformes? Tem
estacas sendo marretadas no coração de um morto-vi-
vo? Tem o mistério do inexplicável segundo leis natu-
rais? Então é interessante e ponto final.

Mas por que é interessante? Porque ou molha o dedinho


ou se joga de uma vez no mar profundo, estranho e
instável das perguntas últimas: o que significa ser
humano? E ser diferente? O que acontece depois da
morte? Temos alma? Capetas existem ou estamos redu-
zidos à matéria pura e simples?

E pensar em tudo isso, sentir tudo isso enquanto lê Van


Helsing caçando o Drácula, ou a Criatura perseguindo
Frankenstein ou o Sr. Hyde apavorando as ruas de Lon-
dres… é simplesmente bom demais.

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73.Frankenstein,
de Mary Shelley

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Spoiler 1: Frankenstein não é o nome da Criatura. em si: tinha criado um monstro, uma abomina-
Spoiler 2: a Criatura não tem dois pregos no pescoço ção, e precisaria destruí-lo. A Criatura, por sua
e nem marcas de pontos na testa. vez, é rejeitada desde o instante em que abre
Spoiler 3: (quase) tudo que você sabe sobre o os olhos, e ao longo do livro só vai encontrar
Frankenstein não tem nada a ver com o livro. medo e violência. Até que decide…

Zero castelos góticos. Nenhum capanga corcunda Naaaa-na-ni-na-não. Vai ter que ler o livro.
para ajudar o cientista maluco, que gargalha histeri-
camente enquanto a luz dum trovão revela mil e uma
geringonças cercando um cadáver que mexe o dedo
mindinho. Vocabulário: não vou mentir: Mary Shelley
adoooooora umas descrições de paisagens. A-D-O-R-A.
E, às vezes, passa cinco páginas descrevendo um
"Frankenstein" talvez seja a obra de terror mais penhasco e depois gasta uma linha e meia para
influente de todos os tempos. descrever a Criatura. Não é a leitura mais fluida do
mundo. Alguns, porém, amam!
Antes de haver Stephen King e H. P. Lovecraft e
Edgard Allan Poe, havia Frankenstein. Antes dum
Trama: não se assuste com o começo, que parece
conde emergir da Transilvânia (com bigode!) emer- não ter coisa nenhuma a ver com o livro. Leia-o. No
giu a Criatura primeira da literatura gótica de terror; o final, tudo se encaixa. No mais: o livro pula de narrador
monstro arrastado de volta a uma vida antinatural, em narrador. Primeiro, um viajante aleatório que
sacrílega e horrenda. Um monstro sem alma – e encontra a Criatura no começo do livro. Depois, Victor.
talvez eu não esteja falando da criatura. Depois, a própria Criatura. A trama, por sua vez, é
simples e objetiva.
Victor Frankenstein, dizia eu, não é a Criatura. É o
homem que a cria. Quem é ele? Para facilitar as
coisas, poderíamos dizer que é um "cientista". Na
real, era um macumbeiro chique (quase sempre, as
duas coisas são a mesma). Victor era um sujeito
inteligentíssimo que, depois de perder sua mãe, fica
obcecado com o mistério da vida e morte. Estuda
tudo o que lhe cai à mão: desde as ciências naturais
até… otras cositas. Cabala, hermetismo, neoplatonis-
mo, alquimia e tudo quanto é esoterismo e ocultismo
brabo.

Obcecado, absolutamente vidrado, Victor Frankens-


tein estuda loucamente até julgar que topou no
princípio da vida. À noite, vagueia por ossários e
túmulos para roubar partes de corpos, junta um
corpo inteiro e resolve testar sua teoria.

Que dá certo.

A Criatura, animada por alguma força incompreensí-


vel, arreganha os olhos amarelados, sente um
choque animar-lhe as carnes mortas e solta um grito
pavoroso: o nascimento sacrílego da ciência. O parto
EDIÇÃO RECOMENDADA
inumano de um monstro com quase três metros de Frankenstein ou o prometeu moderno. Mary
altura. O homem tentando ser deus! Shelley. Tradução de Christian Schwartz.
Editora Penguin-companhia. 2015.
Victor, porém, assim que vê a Criatura tomar vida cai
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74.Assassinatos na Rua
Morgue,
de Edgar Allan Poe
DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

"Você me lembra o Dupin de Edgar Allan Poe. Não É o que você vai descobrir, junto com o detetive
imaginava que indivíduos assim pudessem existir original de toda nossa cultura: Dupin.
fora da ficção."

A frase aqui de cima foi dita por um certo doutor


Watson a um certo sujeito chamado Sherlock
Holmes. Mas quem diabos era Dupin? Vocabulário: o livro começa com uma pequena
"digressão", em que o autor explica como funciona uma
Antes de haver o lendário, o mítico, o arquetípico mente analítica e quais são suas características. A curta
detetive literário com seu "elementar, caro Watson" e explicação é útil e tem tudo a ver com Dupin, não se
as bizarrices de um gênio incompreendido e intragá- preocupe. De resto, Edgar Allan Poe é um escritor
vel, houve o Inspetor Dupin – personagem de Edgar detalhista, muito visual, mas não é prolixo ou cheio de
Allan Poe e molde tanto para Sherlock quanto para retórica vazia. Fluido e impactante.
todos os incalculáveis detetives excêntricos e
imprevisíveis que até hoje infestam os livros, filmes e Trama: a (hoje clássica) estrutura das histórias de
televisão. detetive. Um crime inexplicável, pistas esdrúxulas e
conversas sem fim entre o detetive e seu sidekick até
Está tudo ali: o protagonista estranhão, cheio de que as peças do quebra-cabeça começam a fazer
hábitos estrambólicos e dono de uma insuspeita algum sentido e, do nada, EUREKA! A explicação estava
debaixo do seu nariz o tempo inteiro – e você nunca
capacidade dedutiva; seu companheiro fiel, meio
teria pensado nela.
lerdo, sempre olhando o gênio com um misto de
espanto e desaprovação; o policial gente-fina; o
lusco-fusco, a fumaça de cachimbos, as pistas
esdrúxulas, a lista de suspeitos; os crimes, o clima, o
tom, a atmosfera.

Não é que sem Dupin *só* não haveria Sherlock


Holmes ou Hercule Poirot ou o Padre Brown, de
Chesterton. Não haveria a série "Monk". Não existiria
o Mentalist ou o Ace Ventura, diacho! Até o Scooby-
-Doo, de alguma forma, deve algo ao Dupin.

Em "Os Assassinatos da Rua Morgue", Eugene Dupin


lê no jornal que um crime grotesco e inexplicável
tinha acontecido num apartamento tal da rua…
Morgue (dur). Às três da manhã, hora em que todo
mundo sabe que os capetas ficam ouriçados e livres
no mundo, a vizinhança acordou com o ** na mão
depois de ouvir gritos horrendos saídos do quarto
andar – o apartamento da Madame L'Espanaye e sua EDIÇÃO RECOMENDADA
filha, Mademoiselle Camille. Editora Antofágica, edição de luxo. Tradução
de Isadora Prospero. 2022.
Pouco tempo depois, a polícia consegue arrombar a
porta e ali encontram a zorra do inferno: sangue Editora Darkside, edição de luxo. Tradução de
numa lâmina e pra tudo quanto é lado, tufos de Marcia Heloisa. 2017
cabelo jogados a esmo, sacos de dinheiro e um cofre
aberto. Dentro da chaminé, um corpo retorcido e COMPRE AQUI! COMPRE AQUI!
esmagado até caber ali. A velha desaparecida. O
dinheiro intacto. No quarto andar. De um apartamen-
to do qual seria impossível escapar por dentro.

O que diabos aconteceu?

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75.Drácula,
de Bram Stoker

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Jonathan Harker, um advogado inglês engomadinho em assombrações, tiros em morcegos,


(a tríade satânica), é enviado pelo chefe à estranha e sonambulismo, vampiro virando neblina,
supersticiosa Transilvânia para fechar um negócio demônios em alto mar, propinas, furos no
imobiliário com um certo Conde… Drácula. pescoço, cabeças decepadas e litros, baldes e
galões de SANGUE. Em suma: livro pra
Antes mesmo de pôr os olhos no Castelo do Conde, ninguém botar defeito.
já começam as estranhices: sonhos ruins, campone-
ses cochichando palavras bacaninhas, amigáveis,
reconfortantes. Substantivos róseos como ordog
(satanás), pokol (inferno), stregoica (bruxa), vrolok e
vlkoslak (lobisomem).
Vocabulário: Linguagem completamente simples e
Um cocheiro mudo, com olhos vermelhos e ar acessível. O único inconveniente é que o livro é grande.
espectral, que não aquieta o facho demoníaco e toda Bem grande. Quase seiscentas páginas.
hora desce do coche para se embrenhar na floresta
absolutamente escura e caçar umas chamas azuis
(?); lobos seguindo loucamente o coche, até todo Trama: os capítulos são relativamente curtos e, às
mundo chegar num castelo de cujas janelas góticas vezes, dentro de um capítulo trocam os narradores. A
não sai um mísero raiozinho de luz. única coisa que pode causar estranheza a alguns
leitores é o formato epistolar. O livro é escrito como se
Tudo normal. Tudo safe. fossem cartas ou entradas em diário dos personagens
principais. No mais, trama fácil e sem dificuldades.
E, claro, depois vem o Conde: um velho com duas
crias de Claudia Ohana acima dos olhos; uns dedos
longos de Zé do Caixão; pelos grossos e nojentos
saindo-lhe aos montes da palma e das costas das
mãos; um nariz arqueado de bruxa e narinas enor-
mes; um olhar escroto, hipnótico feito o de uma
serpente…

TUDO. SAFE.

"Drácula" é a mais famosa história vampiresca de


todos os tempos. Famosa e… quase desconhecida.

Porque o Drácula que todos conhecem não é o


Drácula original, do livro. São os Dráculas de
Hollywood; os Dráculas de séries, HQs e paródias da
Turma da Mônica.

Eu mesmo fiquei chocado com o livro. Não era nada


do que eu esperava. Já tinha começado a lê-lo com
certo receio, já me preparando para uma leitura EDIÇÃO RECOMENDADA
arrastada, enfadonha… CHATA. Editora Darkside. Tradução de Marcia Heloisa.
2018
O que eu recebi foi uma leitura fluida, fácil, cheia de
altos e baixos, quase num vaivém de thriller. É uma
Drácula, editora Penguin. Considero a melhor
mistura de terror, suspense, investigação detetives- tradução - José Francisco Botelho. 2014.
ca, folclore, ciência, perseguições aventurosas e até
humor – consciente ou inconsciente.
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Van Helsing, um trio de vampiras taradas, facadas

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76.O Médico e o Monstro,
de Robert Louis
Stevenson
DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Definitivamente, um dos meus livros favoritos e forte pensamento sacana brilhou no seu olhar
eleito a posto de MELHOR livro para quem deseja plácido.
fazer a transição de livros mais água com açúcar,
miojinhos, para obras mais substanciosas e Do outro, o Sr. Hyde. Um sujeitinho escroto,
profundas. atarracado, com o corpo desconjuntado de um
chimpanzé. Vagueia pelas ruas sempre
Por que eu digo isso? Porque O Médico e o Monstro molambento, vestindo roupas enormes e se
de forma magistral e quase inigualável junta num só misturando com a pior ralé das ruas. No seu
livro dois aspectos que, no geral, ficam muito rosto, existe algo de… incômodo. É um sorriso
separados. sem alegria, com pura malícia. Todo gesto
parece contar uma ameaça de morte. O olhar é
Por um lado, é uma leitura fácil, envolvente, vazio, oco. A postura é de bicho acuado. Uma
interessante. Fluida. Lê-se o livreto rapidamente, raiva, uma agitação ruim ferve sob aquela
numa única sentada, sem sofrimentos com carcaça repulsiva.
vocabulário ou uma lentidão nos acontecimentos
que poderia desanimar leitores iniciantes. De alguma forma, Jekyll e Hyde estão ligados
um ao outro. Profundamente ligados. O que
Maravilhosamente bem escrito, o livro é visual. Você antes parecia ser uma simples chantagem vai
imerge no mundo sinistro e gótico das noites evoluindo para extorsão, tentativa de
londrinas. A atmosfera pesa sobre nós tanto quanto assassinato e tudo quanto é desgraça até que,
sobre os personagens. enfim, com uma poção a verdade
extraordinária se revela.
É também cheio de suspense. De perguntas sem
resposta que vão se acumulando, acotovelando, até
o que no começo parecia uma simples pulga atrás da
orelha vai tomando a forma de um esdrúxulo
demoníaco – alguma coisa grotesca e maligna está
acontecendo.

De um lado, o doutor Jekyll. Sujeito já cinquentão,


conhecido e admirado por seus esforços incansáveis
nos campos da ciência e medicina. Jekyll é um
cidadão irrepreensível e vive cercado de amigos que
lhe devotam o mais sincero carinho. Nunca fizera
mal a uma mosca ou saíra de seus lábios uma
mísera frase torta. Nunca um sorrisinho de desprezo
rasgou-lhe o rosto imaculado. Jamais algum

Vocabulário: o vocabulário e o estilo são mais


elaborados que os de um Drácula, por exemplo.
Stevenson é um escritor de maior calibre e tem mais EDIÇÃO RECOMENDADA
cuidado com o que escreve. Mas é uma escrita tão rica
quanto acessível: nenhuma dificuldade
Editora Darkside. Tradução de Paulo Raviere.
2019

Trama: sequência linear, personagens e motivações Editora Penguin. Tradução de Jorio Dauster.
bastante claros. No começo, talvez uma coisinha ou 2015
outra em relação ao testamento e às questiúnculas
legais pode ser um pouco confusa. Só.
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77.Carrie, a Estranha,
de Stephen King

DESCRIÇÃO
DIFICULTÔMETRO

Vamos ser sinceros: que diabos de lista sobre livros grossas, mais ela fica atordoada e mais as
de terror poderia estar completa sem o rei do colegas tiram sarro da sua "burrice". Começam
gênero? Stephen King já se tornou um clássico do a jogar absorventes na menina, a xingá-la de
terror. Ponto final. Quando o assunto é meter cagaço tudo quanto é nome, a gargalhar como hienas
nos outros, King é um nome absolutamente incon- no cio.
tornável. Até que, de repente e sem explicação, uma
lâmpada estoura sozinha.
E absolutamente incontornável na carreira do
próprio King é Carrie, a Estranha. Seu primeiro O que as meninas não sabiam, claro, é que a
estouro verdadeiro. O hit que o transformou num estranha da Carrie era telecinética.
escritor "de verdade".

E não é muito difícil imaginar por que o livro foi um hit


Vocabulário: Stephen King é um escritor moderno
tão gigantesco. King junta algumas ideias que e escreve para ser lido. Digo: sua ideia é escrever para
dificilmente seriam juntadas por qualquer outra que o máximo número de pessoas consigam lê-lo e
pessoa: o bullying cruel, encarniçado, em cima de gostem de lê-lo. O vocabulário e o estilo, portanto, são
uma guria (real) que todo santo dia usava as absolutamente fáceis e fluidos.
mesmas roupas; o mesmo bullying cruel em cima de
outra colega (igualmente real) que manifestava um
fervor religioso e um certo cheiro estranhos, além de Trama: zero dificuldades.
ter ataques epiléticos; a ideia (supostamente real) de
que o começo da menstruação trazia certa hipersen-
sibilidade espiritual às moças; um poltergeist e
poderes telecinéticos (reais?)

O resultado é um livro que explora o terror em dois


planos simultâneos: o sobrenatural e o psicológico.
Ou seja, não é um daqueles livros de terror que se
esquecem completamente de que existem persona-
gens e só querem saber do vilão/capeta/força
maligna. Mas também não é um daqueles livros de
terror com a síndrome do Scooby-Doo: no final das
contas, o que parecia ser sobrenatural é na verdade
"a maldade no coração do homem" e blá-blá-blá.

Carrie é uma menina gordinha, cheia de espinhas no


rosto, nas costas e na bunda, com um cabelo sem
graça e o olhar bovino de quem já se anestesiou com
anos de humilhação. Uma daquelas desengonçadas
com as quais todos topamos uma vez na vida – e das
quais, como eu mesmo, talvez tenhamos tirado
sarro.
EDIÇÃO RECOMENDADA
O livro começa com Carrie, no meio de um vestiário Editora Suma. Tradução de Regiane Winarski.
cheio de meninas que tinham acabado de jogar vôlei, 2022
menstruando pela primeira vez. Carrie não entende
merda nenhuma do que está acontecendo. Sua mãe,
Editora Objetiva. Tradução de Adalgisa
uma fanática, não lhe ensinara porcaria nenhuma Campos da Silva. 2013
sobre o conceito de menstruação.

Quanto mais o sangue escuro suja-lhe as pernas COMPRE AQUI! COMPRE AQUI!

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