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GEORGE ORWELL

PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEAS

ORGANIZAÇÃO DE

FÁTIMA VIEIRA
JORGE BASTOS DA SILVA
PORTO 2005
FICHA TÉCNICA
TÍTULO: GEORGE ORWELL - PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEAS

ORGANIZAÇÃO: FÁTIMA VIEIRA E JORGE BASTOS DA SILVA

EDIÇÃO: FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DO PORTO

ANO DE EDIÇÃO: 2005

COLECÇÃO: FLUPe-DITA
ISSN: 1646-1525

CONCEPÇÃO GRÁFICA: MARIA ADÃO E GRECA - ARTES GRÁFICAS

COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO: GRECA - ARTES GRÁFICAS

Nº DE EXEMPLARES: 300

DEPÓSITO LEGAL: 236131/05

ISBN: 972-9350-98-1

© FACULDADE DE LETRAS
Índice

INTRODUÇÃO: 100 ANOS DE GEORGE ORWELL


Fátima Vieira e Jorge Bastos da Silva 5

“THE ROAD FROM MANDALAY”: ORWELL E O IMPERIALISMO


Jacinta Maria Matos 13

O SOCIALISMO DE ORWELL: UMA NOVA PROPOSTA SOCIAL EM PLENA


SEGUNDA GUERRA MUNDIAL
Elisabete do Rosário Mendes Silva 33

RESISTÊNCIA À (DES)ORDEM DO MUNDO OU A DIMENSÃO ÉTICO-POLÍTICA DA


ESCRITA DE GEORGE ORWELL
Adriana Martins 51

RECORDANDO ANIMAL FARM E NINETEEN EIGHTY-FOUR:


NOTAS SOBRE O ANTI-UTOPISMO DE GEORGE ORWELL 61
Sofia Sampaio

NINETEEN EIGHTY-FOUR:
A HISTÓRIA COMO PALIMPSESTO OU A NEGAÇÃO DA MEMÓRIA COMO
LUGAR DO EU 77
Maria do Rosário Lupi Bello

NINETEEN EIGHTY-FOUR:
CONTRIBUTOS PARA UMA ABORDAGEM ESPACIAL DA DISTOPIA ORWELLIANA 87
Fátima Vieira

COMING UP FOR AIR E THE HISTORY OF MR. POLLY. DESEJOS DE UTOPIA:


TRIUNFOS E DERROTAS 103
José Manuel Mota
Introdução:
100 Anos de George Orwell
Os grandíssimos autores, mesmo desaparecidos
há séculos, são nossos contemporâneos. Só os
escritores medíocres pararam no tempo e no
espaço que ocuparam em vida.
J. V. Pina Martins, Utopia III

No sentido definido por Pina Martins no excerto em epígrafe,


George Orwell (nascido Eric Blair em 1903) é um autor bem nosso con-
temporâneo. Embora seja detectável na sua vastíssima obra a influência
de contextos históricos definidos e datáveis, permanece actual o seu
olhar crítico sobre o cinismo da cena política e a forma inteligente como
lidou com a questão da liberdade, expondo a estupidez de todo o tipo de
submissão. É esse olhar crítico e denunciador que informa a perspectiva
que hoje apelidamos de “orwelliana”. A influência do pensamento de
Orwell faz-se hoje sentir nos neologismos criados por analogia com o
Newspeak de Nineteen Eighty-Four (citem-se, a título de exemplo, algu-

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mas palavras que se tornaram mais ou menos correntes em inglês, sendo

INTRODUÇÃO: 100 ANOS DE GEORGE ORWELL Fátima Vieira e Jorge Bastos da Silva
muitas vezes empregues com intenção irónica ou depreciativa: “double-
speak”, “femspeak”, “computerspeak”, “bizspeak”, “womenslibspeak”,
“bureaucraspeak”); e faz-se também sentir no descrédito de verdades
aceites pelo senso comum – processo ilustrado de forma exemplar na
fábula política Animal Farm, onde se encontra a máxima com valor
satírico de que “Todos os animais são iguais mas há animais que são
mais iguais do que outros”.
Embora se tenha assumido como um escritor político apenas após a
sua participação na Guerra Civil Espanhola, a simpatia pela causa dos
oprimidos fez-se já sentir nos primeiros romances de Orwell, como
Burmese Days (1934) e The Road to Wigan Pier (1937). Os seus dois
romances mais conhecidos, Animal Farm (1945) e Nineteen Eighty-
Four (1949), consagraram-no como o autor que mais explicitamente
denunciou a opressão do regime comunista (e, por extensão, de todo o
tipo de opressão), em prol de um pensamento socialista peculiar, inex-
tricável da grande tradição ocidental de humanismo e de racionalismo
crítico, cujos fundamentos teóricos Orwell foi definindo, entre 1937 e
1950, numa vastíssima produção que cobre diferentes géneros:
romance, ensaio, reportagem jornalística e palestra radiofónica.
A crítica acutilante a uma sociedade oprimida e fortemente vigiada
pelo poder instituído como solução única para a implantação e a
manutenção da ordem social é pertinente para a reflexão pública sobre
a actualidade e a relevância do pensamento orwelliano no virar do
milénio. Vivemos hoje, com efeito, numa “sociedade do Big Brother” –
como lhe chamou José Pacheco Pereira na palestra que proferiu na
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, no âmbito do “Colóquio
George Orwell”, realizado em 12 de Dezembro de 2003 –, uma
sociedade em que o espaço privado se torna cada vez mais público e
onde, em nome do direito à informação e de uma “liberdade” colectiva
abusadora, a liberdade individual se tem visto diminuída, nomeada-
mente em consequência da “missão” vigilante que os média têm vindo
a assumir. Por Orwell passa, ou pode passar, um caminho de resistência.
Os textos reunidos no presente volume exploram, de perspectivas
diversas, a relevância da obra e do pensamento político de George
Orwell, intelectual multifacetado, alerta, crítico, que definitivamente
não parou no tempo e no espaço que ocupou em vida. São, nesse senti-
do, perspectivas contemporâneas do legado de um autor que é nosso
contemporâneo.
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* * *
INTRODUÇÃO: 100 ANOS DE GEORGE ORWELL Fátima Vieira e Jorge Bastos da Silva

O volume abre com o estudo “ ‘The Road from Mandalay’: Orwell


e o Imperialismo”, onde Jacinta Maria Matos examina a evolução da
atitude de Orwell para com o Império Britânico ao longo de perto de
duas décadas, considerando tomadas públicas de posição, o jornalismo,
o ensaísmo e a escrita de ficção, registos em que se encontrará reflectida
a experiência pessoal (e, porventura, familiar) de participação na admi-
nistração colonial. Munindo-se de instrumentos de análise actualizados
da área dos Estudos Pós-Coloniais, Jacinta Maria Matos problematiza
as categorias do Outro e do Eu – o colonizado e o colonizador – postas
em jogo na escrita de Orwell, apontando implicações que nem sempre
têm sido óbvias para críticos e para leitores comuns. É nomeadamente
assinalado o facto de Orwell, que fora peça da engrenagem colonial e
depois contestatário mais ou menos ingénuo do sistema, ter vindo a
tomar consciência das ambiguidades inerentes ao problema do Império,
quer na construção da identidade do sujeito dominante, quer na do
sujeito dominado. Esta evolução verifica-se entre textos como Burmese
Days e “A Hanging”, numa primeira fase, e textos como The Road to
Wigan Pier e “Shooting an Elephant”, numa fase posterior. O reconhe-
cimento dessa maior complexidade terá sido correlativo não só de uma
maturação pessoal e estética mas também, especificamente, da adopção
de uma ideologia de esquerda. O autor manifesta, assim, sentimentos de
culpa, mas também um renovado sentido de responsabilidade para com
o Outro civilizacional e político. No ensaio The Lion and the Unicorn,
escrito durante a Segunda Guerra Mundial, defende com veemência a
autonomização política imediata da Índia, a caminho de uma inde-
pendência a concretizar, desejavelmente, logo após o termo do conflito
– sem todavia deixar de considerar reciprocamente vital que a Índia
permaneça uma nação aliada do seu antigo colonizador. Orwell toma
esta posição num quadro definido pelo declínio do Reino Unido como
potência imperial e da sua conversão num estado socialista através de
um processo “revolucionário” nacional. Desta forma, a solução que
apresenta para a complexa problemática do Império, quer no plano
interno, quer no plano internacional, mostra-se convergente com as suas
preocupações políticas de fundo.
É também The Lion and the Unicorn que Elisabete do Rosário
Mendes Silva toma como texto central para uma análise do pensamen-
to político orwelliano, abarcando contudo na sua pesquisa uma série de
outros. No seu estudo “O Socialismo de Orwell: Uma Nova Proposta

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Social em Plena Segunda Guerra Mundial”, Elisabete Silva ocupa-se

INTRODUÇÃO: 100 ANOS DE GEORGE ORWELL Fátima Vieira e Jorge Bastos da Silva
sobretudo de situar as propostas políticas de Orwell no contexto forma-
do pela evolução do socialismo e de movimentos aparentados,
nomeadamente o cooperativismo e o sindicalismo, na Grã-Bretanha.
Deste modo, Orwell é inserido numa linha de pensamento e de inter-
venção onde se encontram vultos como Robert Owen, William Lovett e
William Morris, assim como o TUC, o Partido Trabalhista e outras
organizações. Nesta perspectiva, Orwell surge como um pensador
reformista, não radical, cuja intervenção combina um desejo de reno-
vação das estruturas sociais e económicas, no sentido de um socialismo
democrático e de um igualitarismo progressivo, com um apego à preser-
vação de certos traços característicos da vida britânica.
O estudo de Adriana Martins, “Resistência à (Des)ordem do Mundo
ou a Dimensão Ético-política da Escrita de George Orwell”, sublinha as
dimensões epistemológica e ideológica da obra do autor britânico e cen-
tra-se na exploração que ele faz da fábula, enquanto subgénero literário,
para discutir temas sociais e políticos polémicos. Denunciando a forma
precipitada como Animal Farm foi encarado pela crítica coeva como
um livro destinado ao público infanto-juvenil, Adriana Martins consi-
dera que esse texto de 1945 constitui um ponto de viragem na escrita
orwelliana, um momento “de encontro do escritor com a sua própria
voz”, realçando no texto o seu valor simultaneamente literário e pro-
gramático.
Estabelecendo um diálogo intertextual entre Animal Farm e alguns
dos ensaios mais representativos de Orwell (“The Prevention of
Literature”, “Politics vs Literature”, “Notes on Nationalism” e “Why I
Write”), Adriana Martins defende a tese de que, no enredo das ficções
orwellianas dos últimos dez anos de vida do autor, as convicções políti-
cas surgem mais nítidas, o que faz com que também na fábula ecoe o
Orwell ensaísta. Na leitura proposta por Adriana Martins, alegoria e
produção ensaística convergem pois na resistência orwelliana à desor-
dem do mundo, e é precisamente nessa convergência que se torna clara
a dimensão ético-política da obra do escritor britânico. É esta dimensão
que Adriana Martins reconhece como transtemporal, capaz de traduzir
as nossas perplexidades perante os paradoxos dos regimes totalitários
que ainda subsistem neste dealbar do terceiro milénio.
No estudo “Recordando Animal Farm e Nineteen Eighty-Four:
Notas sobre o Anti-utopismo de George Orwell”, Sofia Sampaio
começa por afirmar que os dois romances mais conhecidos do escritor
britânico só poderão ser compreendidos à luz das circunstâncias históri-
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cas em que foram redigidos, isto é, no limiar da Guerra Fria. Partindo


INTRODUÇÃO: 100 ANOS DE GEORGE ORWELL Fátima Vieira e Jorge Bastos da Silva

desta premissa, Sofia Sampaio formula como hipótese de trabalho a


ideia de que Nineteen Eighty-Four não deve ser lido como um romance
anti-utópico mas como uma distopia, emergindo do movimento positi-
vo que implica toda a crítica construtiva.
Para a discussão da hipótese de trabalho assim definida, Sofia
Sampaio passa em revista a fortuna crítica das duas obras de Orwell.
Em relação a Animal Farm, que tem por pano-de-fundo óbvio a
Revolução Russa, Sofia Sampaio tenta identificar a verdadeira intenção
da sátira: constituirá a obra uma reflexão irónica apenas sobre o caso
russo ou estender-se-á esse juízo crítico a toda e qualquer revolução? A
resposta à questão passará sempre, como a autora demonstra no seu
texto, pela consideração de uma questão correlata e igualmente com-
plexa: encontramos em Animal Farm uma crítica à utopia ou à forma
como as visões utópicas deixam de ser acarinhadas logo após os momen-
tos revolucionários?
Na perspectiva de Sofia Sampaio, Nineteen Eighty-Four coloca com
mais acuidade as questões que haviam sido levantadas por Animal
Farm. Alicerçando a sua argumentação na discussão informada dos
conceitos de “anti-utopia” e de “distopia”, bem como na consideração
de várias intervenções de Orwell sobre o próprio conceito de utopismo,
Sofia Sampaio acaba por reconhecer em Nineteen Eighty-Four uma
intenção distópica, recusando para o pensamento do escritor britânico o
rótulo de “anti-utópico”.
Os textos de Maria do Rosário Lupi Bello e de Fátima Vieira são
complementares, explorando dimensões diferentes da narrativa de
Nineteen Eighty-Four. Em “Nineteen Eighty-Four: A História como
Palimpsesto ou a Negação da Memória como Lugar do Eu”, Maria do
Rosário Lupi Bello explora a dimensão temporal do romance distópico
de Orwell, realçando a forma como nele os conceitos de tempo e de pas-
sado são formadores activos dos indivíduos e elementos determinantes
da dinâmica social, devendo por isso ser encarados como “matéria viva
do presente”. Examinando a lógica orwelliana de que quem controla o
passado domina o presente e, por inerência, o futuro, Maria do Rosário
Lupi Bello analisa o fenómeno da cristalização do passado nas
memórias das personagens, por um lado (aquilo a que chama
“memórias pessoais”), e na História constantemente reescrita pelo
Estado do Big Brother, por outro (nas “memórias colectivas ou sociais”).
Este tipo de aproximação à obra permite à autora evidenciar dois dos
traços mais característicos do pensamento de Orwell. Em primeiro

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lugar, permite-lhe sublinhar a ideia de que a memória humana consti-

INTRODUÇÃO: 100 ANOS DE GEORGE ORWELL Fátima Vieira e Jorge Bastos da Silva
tui o último reduto da consciência pessoal, dependendo da sua preser-
vação o conhecimento que os indivíduos possam vir a ter de si mesmos
e a sua capacidade para a autodeterminação. Em segundo lugar, possi-
bilita-lhe explorar o tema – recorrente em outros textos do autor – de
que, na vida política, todas as verdades estabelecidas carecem de cons-
tante verificação. Nesse sentido, a História só pode ser escrita sob o
signo da verdade e da objectividade, sob pena de a Humanidade imer-
gir num estado de amnésia facilmente controlável por todos quantos se
encontrem no poder.
No estudo “Nineteen Eighty-Four: Contributos para uma
Abordagem Espacial da Distopia Orwelliana”, Fátima Vieira começa
por salientar a forma como, ao longo da tradição de literatura utópica
inglesa, os conceitos de tempo e de espaço informaram diferentes pers-
pectivas e estratégias. Subscrevendo a ideia lançada por Michel
Foucault de que a modernidade é a era do espaço, devendo a tradicional
abordagem diacrónica ser completada por uma análise sincrónica dos
espaços de simultaneidade em que vivemos, Fátima Vieira examina, a
nível teórico, as consequências da recente intersecção dos Estudos sobre
o Espaço com os Estudos sobre a Utopia. Munida de ferramenta con-
ceptual definida na área da Geografia (nomeadamente no âmbito dos
“Spatiality Studies” que nos últimos anos conheceram franco desen-
volvimento, sobretudo nos E.U.A.), a autora desenvolve a hipótese de
trabalho de que o carácter distópico de Nineteen Eighty-Four se deve
primordialmente ao controlo, por parte do Estado do Big Brother, de
todos os espaços, desde os espaços físicos e sociais aos espaços mentais.
Fátima Vieira desenvolve o seu argumento recorrendo a passos de
Nineteen Eighty-Four, acompanhando todo o processo de invasão e
domínio, por parte do Big Brother, do espaço inicialmente ocupado pelo
protagonista do romance, Winston Smith. A autora sublinha por fim
que a importância na obra do conceito de espaço é tal que o próprio
conceito de tempo nele acaba por se diluir, já que a conquista do tempo,
por parte do Estado do Big Brother, acaba por tomar a forma de uma
conquista espacial: o tempo passado existe apenas na memória e esta
última deve ser entendida como um espaço que o Big Brother também
acaba por conquistar.
O apontar de nexos autobiográficos mais ou menos disfarçados ou
assimilados na escrita de ficção faz também parte do argumento desen-
volvido por José Manuel Mota em “Coming up for Air e The History of
Mr. Polly. Desejos de Utopia: Triunfos e Derrotas”, onde o autor efec-
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tua um confronto entre os textos de George Orwell e de H. G. Wells,


INTRODUÇÃO: 100 ANOS DE GEORGE ORWELL Fátima Vieira e Jorge Bastos da Silva

respectivamente. José Manuel Mota toma o conceito de utopia de modo


abrangente, abarcando os anseios de homens comuns, no seu viver quo-
tidiano, de um estado de consciência e de realização de sentidos plenos
para a sua existência. Esse percurso de realização pessoal passa, para os
protagonistas das duas narrativas, pela assunção de um lugar que é seu,
por encontrar um ponto de inserção feliz no todo de uma sociedade em
que ambos os autores detectam uma certa mesquinhez ou, talvez melhor
dito, uma certa tendência para amesquinhar o indivíduo numa vida
rotineira que o não satisfaz e o não completa. Tanto George Bowling
como Alfred Polly são homens de uma baixa classe média acossada por
dificuldades. São dominados por circunstâncias que não controlam,
desde logo de natureza económica, e encontram-se presos a relações
familiares das quais gostariam de poder libertar-se. Ambos adoptam
uma atitude de desprendimento em relação à vida que levam. Para
ambos apresentam os autores idílios com distintas ressonâncias literárias.
No caso da obra de Wells, após um conjunto de peripécias (e um
bizarro lance de sorte), o protagonista vem a encontrar coragem para
assumir uma posição firme perante a adversidade; a partir daí, parece
encontrar uma oportunidade de plenitude, instalando-se na vida singela
de uma estalagem. Nesta convicção de que se pode mudar o mundo, de
que se pode construir a utopia, pelo menos naquela dimensão da vivên-
cia pessoal, difere o romance de Wells do de Orwell. Também o prota-
gonista orwelliano vem a conceber uma hipótese de felicidade numa
espécie de País de Cocanha, oferecido pela sua memória da terra da
infância. Mas, quando ensaia o regresso, verifica que tudo mudou, que
o lugar está irreconhecível – ao que não será estranho o (pseudo)pro-
gresso impulsionado por aquela mesma sociedade capitalista de que
Bowling se procura evadir. A visita quase clandestina à terra-natal não
só não fornece uma oportunidade consistente de realização pessoal
como nem sequer constitui uma oportunidade de escapismo, tal é o de-
sencanto da experiência.
Esperança, luta, desilusão, é este o trinómio em que, ao longo dos
séculos, têm assentado os processos revolucionários que marcaram a
nossa História. George Orwell reflectiu e fez-nos reflectir sobre a vali-
dade desses processos e, mais importante ainda, chamou a atenção para
a indispensabilidade de, enquanto seres humanos, não nos alhearmos
das nossas responsabilidades éticas e políticas.

Fátima Vieira

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Jorge Bastos da Silva

INTRODUÇÃO: 100 ANOS DE GEORGE ORWELL Fátima Vieira e Jorge Bastos da Silva
JACINTA MARIA MATOS
UNIVERSIDADE DE COIMBRA

“The Road from Mandalay”:


Orwell e o Imperialismo

1. Introdução
É possível que a citação incluída no título deste artigo surja aos
leitores e leitoras como vagamente familiar e conhecida. Muitos certa-
mente a identificarão como sendo um verso do famoso poema de
Kipling “Mandalay” (ou a lembrarão na sua popular versão musical),
mas ao reconhecimento seguir-se-á rapidamente a constatação de que
algo não soa bem: o verso do poema é, com efeito, “the road to
Mandalay” e não “from Mandalay”. Contudo, os mais conhecedores da
obra de Orwell não terão dificuldade em reconhecer a citação como
provindo da frase inicial da Segunda Parte de The Road to Wigan Pier,

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que reza, na sua totalidade: “The road from Mandalay to Wigan is a
long one and the reasons for taking it are not immediately clear” (Orwell
“THE ROAD FROM MANDALAY”: ORWELL E O IMPERIALISMO Jacinta Maria Matos
1974: 106). Orwell está, portanto, a glosar Kipling, e a variação que
deliberadamente introduz no conhecido verso não pode deixar de ser
significativa. De facto, a frase consubstancia algumas das vertentes
essenciais da relação de Orwell com o Império, e como tal apresenta-se
como um ponto de partida privilegiado para uma análise do seu posi-
cionamento perante o sistema colonial.
Em primeiro lugar, a expressão recorda-nos que, para Orwell, o
Império não é meramente uma entidade abstracta que lhe levanta
objecções de ordem ideológica ou política, mas também parte integrante
da sua experiência de vida. Como é sabido, Orwell foi durante cinco
anos membro da Indian Imperial Police, imediatamente após ter termi-
nado os estudos em Eton, seguindo assim a tradição familiar de serviço
colonial. Essa sua primeira experiência profissional como oficial de polí-
cia na Birmânia marcou-o profundamente e a essa vivência atribuiu
Orwell persistentemente o seu “ódio” ao sistema: “In order to hate the
empire you have to be part of it” (ibidem: 127), afirma o autor mais adi-
ante na obra de onde foi extraída a citação. Sem levarmos à letra tão
categórica afirmação, que dá uma injustificada primazia ao empírico
sobre o ideológico, não é demais acentuar o quanto o seu conhecimen-
to “de dentro” de um governo colonial determinou a sua subsequente
posição enquanto opositor do Império. Mandalay, onde fez a recruta,
permaneceu para Orwell como símbolo do seu envolvimento – e sobre-
tudo da sua cumplicidade – com um sistema injusto e opressivo, uma
fase da sua vida que, num típico eufemismo, virá a descrever como “five
boring years within the sound of bugles” (Orwell 1998: XII, 272), e
sobre a qual afirmará, desta vez em tom mais confessional e bem mais
radical: “by the end of that time I hated the imperialism I was serving
with a bitterness which I probably cannot make clear” (Orwell 1974:
126).
A paráfrase do verso de Kipling, com a inversão do sentido do per-
curso que aí se institui (de Mandalay e não para Mandalay), denota,
assim, o afastamento de Orwell em relação ao mundo colonial em que
temporariamente participou, e que Kipling, enquanto poeta e contista
do Império, claramente simboliza. Tendo isto em conta, não será abu-
sivo lermos também a frase como uma rejeição, por parte de Orwell, da
retórica glorificadora do Império e de toda uma tradição literária que
enaltecia “the white man’s burden” e reforçava a auto-imagem de uma
Inglaterra sobranceiramente imperial. A escrita de Orwell sobre a colo-
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nização situa-se sempre deliberadamente longe da Mandalay que


Kipling romantizou e popularizou no seu poema, subvertendo, tanto em
“THE ROAD FROM MANDALAY”: ORWELL E O IMPERIALISMO Jacinta Maria Matos

Burmese Days como em “A Hanging” e “Shooting an Elephant”, a con-


venção do género das memórias coloniais que até aí era predominante,
e que tanto tinha contribuído para autorizar o domínio britânico sobre
outros povos e o legitimar perante a sociedade inglesa.
Finalmente, um último aspecto da citação é merecedor da nossa
atenção: Orwell inicia a Segunda Parte de The Road to Wigan Pier com
a menção de um percurso efectuado, de uma viagem que o levou da
Mandalay colonial à Wigan empobrecida onde a obra nos situa. Um
percurso que é, evidentemente, não só literal como sobretudo metafóri-
co, e que devemos entender não apenas na sua dimensão autobiográfi-
ca e empírica, mas também política, ideológica e literária. Entre ser
membro da Imperial Police na Birmânia e escritor de um documentário
sobre o Norte de Inglaterra durante a Grande Depressão e advogado do
socialismo democrático vai uma grande distância e interpõe-se um
longo e complexo caminho que Orwell percorreu e de que nos dará
conta nos capítulos seguintes da obra (a ela voltaremos mais adiante
neste artigo). De momento, retenhamos a ideia de que ele próprio, com
a lucidez e o espírito de auto-crítica que lhe são habituais, reconhece que
passou por um processo de amadurecimento e de evolução, que, na
questão do Império como em tantas outras, se orientou no sentido de
uma perspectiva mais complexa, mais ambivalente e mais abrangente
dos problemas. Muito medeia, com efeito, entre Burmese Days, o
primeiro romance que escreveu, e a discussão sobre a natureza e o
futuro do Império que encontramos na sua produção ensaística e jor-
nalística durante os anos de guerra, entre o ódio pessoal a um sistema
que o colocou na indesejada posição de opressor e a reflexão madura e
distanciada (mas nem por isso menos crítica) que progressivamente foi
adquirindo e que se revela nos textos posteriores.
Será objectivo deste estudo traçar precisamente as linhas de orien-
tação deste percurso, nos seus vários estádios e etapas, sem deixar de se
integrar o pensamento orwelliano sobre a matéria no contexto mais
alargado da sua evolução como escritor político e polémico – porque,
para Orwell, o anti-imperialismo é apenas uma das vertentes do projec-
to mais vasto em que se empenhou, e que ele explicitamente refere, em
“Why I Write”, do seguinte modo: “Every line of serious work that I
have written since 1936 has been written, directly or indirectly, against
totalitarianism and for democratic Socialism, as I understand it” (Orwell
1998: XVIII, 319).

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É uma dimensão da obra orwelliana que tem sido algo descurada
pela crítica. Ou melhor, a posição de Orwell como crítico do Império
tem sido tomada como tão óbvia que dispensa grandes comentários ou “THE ROAD FROM MANDALAY”: ORWELL E O IMPERIALISMO Jacinta Maria Matos
uma investigação aprofundada, resumindo-se por regra a discussão a
leituras simplisticamente biografistas de Burmese Days e de “A
Hanging” e “Shooting an Elephant” ou, quando muito, a comentários
dispersos e normalmente pouco fundamentados sobre o seu maior ou
menor radicalismo enquanto opositor do sistema colonial.
Uma das razões mais óbvias para tal descuro é, sem dúvida, a ênfase
da crítica na produção romanesca de Orwell em geral, e em particular
em Animal Farm e Nineteen Eighty-Four, não existindo até à data qual-
quer estudo que dedique uma atenção equivalente à sua obra não-fic-
cional, em particular aos ensaios e aos numerosos textos jornalísticos que
publicou. Ora limitar uma análise do pensamento orwelliano sobre o
imperialismo apenas ao romance (e quando muito a sucintas análises
dos dois ensaios) produzirá uma visão distorcida e truncada da posição
do autor sobre o problema. Só de uma perspectiva extremamente redu-
tora é possível afirmar que “the anti-imperialism of Burmese Days took
second place to Orwell’s other priorities” em anos mais tardios (Lucas
2003: 24), ou concluir uma análise do romance afirmando que “[t]he
theme of Burmese Days is not anti-colonialism but the failure of com-
munity” (Lee 1969: 19), ou ainda sugerir que “Orwell’s colonial Burma
is a less cosmopolitan version of Eliot’s bleak waste land of twentieth-
century Europe” (Smyer 1979: 36).
Evidente nas duas últimas afirmações, como na opinião de muitos
outros críticos, é a tentativa de despolitização de Orwell e a desvaloriza-
ção de um tema que, se bem que menos visível do que outros à superfí-
cie dos seus romances, continuou a ser parte estruturante da sua luta
contra o totalitarismo e trave-mestra da sua tentativa de reinvenção de
uma Inglaterra democrática e socialista.
Particularmente sentida é a falta de estudos sobre Orwell que o leiam
à luz dos recentes desenvolvimentos teóricos dos Estudos Pós-coloniais,
que tanto têm contribuído para uma desmontagem do discurso colonial
e dos mecanismos de construção identitária que o sistema exige tanto do
colonizador como do colonizado. A nossa compreensão da obra
orwelliana sobre o fenómeno da colonização só ganhará com a utiliza-
ção de instrumentos teóricos que nos ajudem a compreender o que, na
sua escrita, se afigura a muitos como falha, inconsistência, incoerência
ou mesmo branqueamento (mais ou menos consciente) de alguns dos
aspectos menos defensáveis do colonialismo.
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Não se argumentará aqui que Orwell é inatacável crítico do Império,


assim como não se proporá, anacronisticamente, que o autor possuía as
“THE ROAD FROM MANDALAY”: ORWELL E O IMPERIALISMO Jacinta Maria Matos

bases teórico-críticas necessárias que fundamentam a visão actual destas


questões. Orwell não é um ideólogo, filósofo ou sociólogo, nem sequer
alguém que tenha grande simpatia por modelos teóricos totalizantes
(sejam eles de esquerda ou de direita) de explicação do mundo.1 As suas
limitações (umas históricas, outras pessoais) são inegáveis, mas não nos
devem impedir de ajuizar da sua contribuição, enquanto escritor assu-
midamente político, para o nosso entendimento do modo de funciona-
mento de um sistema que Orwell conheceu por dentro e sobre o qual foi
fazendo uma reflexão aprofundada.
Acima de tudo, e independentemente das suas opiniões expressas
(directa ou indirectamente) sobre a natureza e a forma de actuação do
Império, valorizar-se-á sobretudo a atitude intelectual, crítica e literária
do autor perante o que lhe surgiu primeiro como experiência pessoal
(vivida íntima e portanto silenciosamente), mas a que conseguiu, gra-
dualmente, ao longo dessa “road from Mandalay”, conferir uma dimen-
são pública, colectiva, enfim, política, no sentido lato do termo.

2. Burmese Days e “A Hanging” – “I was young and ill educated”


Burmese Days foi o primeiro romance que Orwell escreveu, embora
tenha sido publicado já depois de Down and Out in Paris and London
ter saído à estampa. A razão de ser deste facto interessa-nos para a
questão em apreço: o manuscrito do romance foi inicialmente rejeitado
por Victor Gollancz, que receava que a obra provocasse escândalo na
comunidade britânica na Índia e na Birmânia, se não mesmo nalguns
meios mais conservadores da própria Inglaterra.2 Assim, a obra acabou
por ser publicada em primeiro lugar nos Estados Unidos, em Outubro
de 1934, tendo a edição inglesa surgido apenas em Abril de 1935, depois
de Gollancz ter exigido a Orwell a alteração dos nomes de algumas per-
sonagens e locais que poderiam dar lugar a processos de difamação por
parte dos que se poderiam sentir mal (ou demasiadamente bem?) repre-
sentados na obra.3 Que Burmese Days foi uma obra subversiva para a
época está, assim, fora de dúvida, como o prova também o facto de ter
sido impedida a publicação e a venda do romance na Índia até à data
da independência do país.
Como Peter Davison correctamente nos lembra (Davison 1996: 46),
o título da obra, que parece evocar os relatos nostálgicos de memórias
coloniais, é deliberadamente irónico. O leitor incauto que esperasse
encontrar, por parte de um ex-oficial colonial, a habitual idealização

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sobre a vida da comunidade britânica na Índia veria as suas expectati-
vas rapidamente defraudadas pela leitura da obra. Nela se traça, com
efeito, um retrato devastador da sociedade dos pukka sahibs, em que a “THE ROAD FROM MANDALAY”: ORWELL E O IMPERIALISMO Jacinta Maria Matos
mediocridade intelectual, a incompetência profissional e a falta de va-
lores éticos e morais rivalizam com o racismo, a indiferença, a rapaci-
dade e a violência exercida sobre o Outro colonial. E se quaisquer dúvi-
das restassem sobre a imagem que o romance nos dá da colonização,
passos como os seguintes, que nos transmitem a posição de Flory, a per-
sonagem central da obra, seriam esclarecedores da posição ideológica
do autor:
What was at the centre of all his thoughts now, and what poi-
soned everything, was the even bitterer hatred of the atmos-
phere of imperialism in which he lived. […] The Indian
Empire is a despotism – benevolent, no doubt, but still a des-
potism with theft at its final object. (Orwell 1975: 65)
Ou veja-se ainda como Flory avalia o ambiente intelectual e moral da
comunidade britânica:
Your whole life is a life of lies. Year after year you sit in
Kipling-haunted little clubs, whisky to the right of you,
Pink’un to the left of you, listening and eagerly agreeing
while Colonel Bodger develops his theory that these
bloody Nationalists should be boiled in oil. You hear your
Oriental friends called “greasy little babus”, and you
admit, dutifully, that they are greasy little babus. You see
louts fresh from school kicking grey-haired servants. The
time comes when you burn with hatred of your own coun-
trymen, when you long for a native rising to drown the
Empire in blood. (ibidem: 66)
A influência de Kipling, assumida na citação, está bem presente em
todo o romance, na descrição do quotidiano da comunidade anglo-indi-
ana a que Kipling, sobretudo no universo dos seus contos, e em geral o
género do relato colonial nos habituaram (e como escrever sobre a Índia
sem ter Kipling em conta?). Mas Burmese Days olha para estas figuras
sem a tolerância e a simpatia que Kipling claramente nutre por um
mundo que é em tudo o seu, e com o qual tem claras afinidades ideoló-
gicas.
Pelo contrário, o romance de Orwell insiste sobretudo, através da
figura do seu protagonista, na alienação e no afastamento de um inglês
18

em relação à comunidade dos colonizadores, que lhe inspira um ódio


visceral e que, como se lê no final do último passo citado, Flory imagina
“THE ROAD FROM MANDALAY”: ORWELL E O IMPERIALISMO Jacinta Maria Matos

até, com prazer perverso, ver justamente chacinada pelos oprimidos. A


violência (apenas verbal, deva-se esclarecer) da personagem contra os
seus conterrâneos – e não contra os birmaneses, com quem tem relações
em geral amistosas e por cuja cultura atipicamente se interessa – e a sua
rejeição de um sistema por eles construído e mantido é a questão central
de Burmese Days, à volta da qual gira toda a trama e na qual radica a
“mensagem” política do texto. Flory, diz-nos a obra, descobriu a ver-
dadeira natureza do Império, desmascarou a retórica da “missão civi-
lizadora”, expôs à luz a mentira da colonização, descobriu o “horror”
que existe no centro do projecto imperial.
Mas infelizmente Flory não é um Kurtz, nem Burmese Days é com-
parável a Heart of Darkness, obra que também de forma indirecta se
pode considerar como influência no romance orwelliano. Sem a estatu-
ra, a profundidade e a complexidade da personagem de Conrad, Flory
poderá inspirar alguma simpatia por parte dos leitores e leitoras, mas é
no fundo uma personagem insatisfatória, como insatisfatório é, em
geral, o romance, quer como obra literária, quer como denúncia do sis-
tema colonial.
Em grande parte, o romance falha a estes dois níveis – literário e
político – pela mesma ordem de razões: Flory, tal como o Orwell que
viveu a experiência colonial e agora escreve sobre ela, está demasiada-
mente próximo desse mundo, preso em contradições que não só não
sabe como resolver, como não consegue articular nem contextualizar
em toda a sua ambivalência e ambiguidade. Demasiado próximo está
também Orwell do seu protagonista, que indubitavelmente veicula uma
experiência autobiográfica intensa e desestabilizadora, e em relação ao
qual não se consegue criar a necessária distância crítica.
Burmese Days é, em última análise, um romance de tese, e tanto o
enredo como as personagens pecam por falta de densidade e de autono-
mia e por excesso de identificação com a mensagem que Orwell queria
fazer passar na obra. E falha também em parte a própria tese da obra –
a de que o colonialismo é imoral e injusto – uma vez que a revolta con-
tra o sistema é vista ainda como algo do foro pessoal e íntimo, vivido
subjectivamente por figuras isoladas, alienadas da comunidade a que
deviam pertencer, rebelando-se interiormente contra a colonização,
mas incapazes de a perspectivar em termos colectivos e públicos. E se o
silêncio de Flory, que – por cobardia e inércia – pactua com a “menti-
ra” do Império, não se pode atribuir ao autor (que, afinal, quebrou esse

19
silêncio, alguns anos depois, ao escrever a obra), a verdade é que em
Burmese Days Orwell ainda não tinha encontrado a voz e a persona que
lhe permitirão, mais tarde, transformar a experiência autobiográfica em “THE ROAD FROM MANDALAY”: ORWELL E O IMPERIALISMO Jacinta Maria Matos
algo com um significado mais vasto e politicamente mais interventivo.
Em grande parte, daqui resulta o pessimismo da obra que muitos
críticos detectam, essa imagem do Oriente como uma “bleak wasteland”
que Richard Myers refere, e que tem origem, não tanto na influência
modernista (que é indiscutível no autor em início de carreira), mas no
facto de Orwell não ter ainda descoberto o potencial da figura do “out-
sider”, quer em termos literários, quer políticos. Flory é, com efeito, um
“estranho” em relação à comunidade em que se insere, mas o seu afas-
tamento produz apenas a solidão, a sensação de claustrofobia e a
impotência. Isto é, Flory é um “outcast”, mas não um “outsider” no sen-
tido em que Raymond Williams define e valoriza o narrador orwelliano
dos ensaios e documentários: “Realising his experience – not only what
had happened to him and what he had observed, but what he felt about
it, the self-definition of ‘Orwell’, the man inside and outside the experi-
ence” (Williams 1971: 50). Essa figura, que se situa ao mesmo tempo
dentro e fora da experiência narrada, que consegue articular o empíri-
co e o teórico e potencializar tanto as vantagens do testemunho pessoal
como as da reflexão mais ampla e contextual sobre os problemas, só
mais tarde nos surgirá na escrita orwelliana.
Em Burmese Days encontramos ainda um protagonista que por um
lado se situa demasiadamente “dentro” da experiência (que por isso a
entende, acima de tudo, como conflito pessoal e moral), e por outro se
coloca “fora” da sociedade colonial apenas porque social – e mais uma
vez moralmente – não se integra no mundo da comunidade anglo-indi-
ana. Flory deixa-nos o seu grito de revolta contra o colonialismo, mas,
tal como o próprio Orwell, não consegue “sair” da experiência e ima-
ginar qualquer forma produtiva de resistência a um estado de coisas que
se lhe apresenta como errado e injusto.
De uma perspectiva contemporânea, muito há a objectar a Burmese
Days, que enferma ainda do tom paternalista, se não mesmo racista, do
discurso colonial típico. Os leitores e leitoras actuais poderão ficar
chocados, por exemplo, com o retrato de uma personagem como a do
vilão U Po Kyin, cujo retrato muito deve aos tropos recorrentes de re-
presentação do Outro que encontramos na retórica colonial;4 ou ainda
com a forma como as personagens femininas do romance são todas, de
um modo ou de outro, figuras de mulheres castradoras; ou finalmente
com a inépcia de um protagonista que clama em privado contra o sis-
tema, mas publicamente pactua com ele, e se suicida não se percebe
20

bem se como gesto de revolta contra o colonialismo, se por ter sido


“THE ROAD FROM MANDALAY”: ORWELL E O IMPERIALISMO Jacinta Maria Matos

frustrado na sua relação amorosa.


Enfim, Burmese Days é, passe o coloquialismo, uma confusão:
Orwell hesita entre a sobranceria de um Kipling, a seriedade de um
Conrad e o cinismo de um Somerset Maugham; entre a sátira e a tragé-
dia; entre o panfleto político e o romance sentimental sobre a solidão e
o amor não-correspondido com o exótico como pano-de-fundo. Mas
apesar da imaturidade, a muitos níveis, do texto, ele apresenta-se como
de interesse num determinado sentido: Burmese Days demonstra, se
bem que ainda embrionariamente, as preocupações de um Orwell pos-
terior, o escritor politicamente empenhado, que pega na caneta, como
ele diz, “because there is a lie I want to expose, some fact to which I
want to draw attention” (Orwell 1998: XVIII, 319). Esse Orwell faz aqui
a sua primeira intervenção, se bem que incipiente, demonstrando já a
sua capacidade de indignação perante o que considera errado, incor-
recto ou indefensável.
Curiosamente, no seu testamento literário Orwell procurou impedir
a reedição de alguns dos seus primeiros romances, mas Burmese Days
não consta da lista dos que o autor preferia ver esquecidos pela posteri-
dade. Tendo a noção do fraco mérito literário da obra, que, como ele
admite, está repleta das “purple passages” que mais tarde, e num esforço
consciente, tentou expurgar da sua prosa (ibidem: 317-318), Orwell evi-
dencia ainda assim uma clara parcialidade por esta sua primeira tenta-
tiva enquanto romancista. E a razão de ser deste facto só pode residir no
conteúdo anti-imperialista do texto, e na sua intenção, no final da vida,
de construir retrospectivamente a sua persona literária como crítico do
colonialismo e de como tal ser lembrado no futuro.
Não nos resta muito espaço, no final da análise desta primeira fase
da relação de Orwell com a questão imperial, para nos determos em “A
Hanging”, ensaio publicado, aliás, antes do romance, e a que do mesmo
modo se aplica a citação do autor presente no subtítulo desta secção. No
ensaio, encontramos ainda um Orwell “young and ill educated” políti-
ca e literariamente, se bem que os seus dotes como ensaísta se comecem
a revelar bem maiores do que a sua arte como romancista. Com efeito,
o texto tem uma unidade, uma coerência e um controle da técnica nar-
rativa que estão ausentes de Burmese Days, e que não decorrem exclu-
sivamente do formato mais curto e por necessidade mais coeso do
ensaio. “A Hanging” é, com toda a justiça, um dos mais conhecidos e
lidos ensaios de Orwell, a par de “Shooting an Elephant”, texto a que
normalmente vem associado em estudos sobre o autor. No entanto,

21
neste contexto particular “A Hanging” não merecerá uma análise
exaustiva, e a comparação com “Shooting an Elephant” deverá provar,
na secção seguinte e por contraste, a grande evolução que Orwell sofreu “THE ROAD FROM MANDALAY”: ORWELL E O IMPERIALISMO Jacinta Maria Matos
entre o início da década de 30 e os anos 40.
A razão de ser do apelo de “A Hanging” releva em grande parte da
oscilação já detectada em Burmese Days entre a condenação moral da
injustiça e a denúncia política do colonialismo. O ensaio permite as duas
leituras, e oferece por isso a variados/as leitores e leitoras aquilo que
cada um/a procura no texto. Não sendo isto, evidentemente, defeito
apontável a uma obra literária (que tanto mais valorizamos quanto mais
ela se abre a uma pluralidade de leituras), a verdade é que o ensaio con-
tinua a hesitar entre os dois pratos da balança, e em última análise dá
mais peso ao primeiro do que ao segundo.
Lembremos rapidamente alguns traços do texto que suportam esta
opinião: o “eu” narrativo é anónimo, pouco se sabendo da sua identi-
dade pública ou da razão de ser da sua participação no enforcamento;
as referências à localização da história são mínimas – a “Burma” do
texto funciona mais como um espaço paradigmático do que concreto e
histórico; nunca é referido o crime do prisioneiro, que determinou a sua
condenação à morte; enfim, existem no texto uma série de omissões
estratégicas, cujo efeito cumulativo é o desenraizamento do texto do
contexto colonial em que a acção decorre. Acrescem a isto alguns ou-
tros traços da narrativa que a orientam no mesmo sentido a-temporal e
a-histórico: um prisioneiro que é escoltado até ao lugar da execução por
guardas nativos, que executam ordens de um invasor; as interrupções e
as paragens no percurso; a passividade do prisioneiro, que resignada-
mente se deixa conduzir à morte; o seu grito, nos últimos momentos,
invocando Deus – tudo isto nos remete para a grande narrativa arquéti-
pa da paixão de Cristo, conferindo assim um significado universalizante
à experiência aí descrita.
Satisfatório como ensaio, enquanto condenação do colonialismo “A
Hanging”, tal como Burmese Days, deixa muito a desejar. Nele se
encontra ainda a mesma dificuldade em perspectivar a experiência pes-
soal do narrador em termos que ultrapassem os da epifania, transitoria-
mente vivida, sobre o carácter injusto de uma situação. Significativa-
mente, o narrador do texto é, em 90% do mesmo, um “we” que facil-
mente identificamos com a comunidade dos colonizadores, e da qual o
narrador se separa, assumindo uma perspectiva individual, apenas nesse
momento epifânico do texto, em que subitamente descobre “what it
means to destroy a healthy, conscious man” (Orwell 1998: X, 208). Mas
22

depois de terminada a execução (e que alívio para todos, incluindo os


leitores e leitoras), o narrador é mais uma vez subsumido pela comu-
“THE ROAD FROM MANDALAY”: ORWELL E O IMPERIALISMO Jacinta Maria Matos

nidade dos opressores, participando na culpa colectiva e reintegrando-


-se na sociedade a que pertence.
“A Hanging” é, ainda, um texto que demonstra uma visão simplista
e imatura das complicadas relações entre colonizador e colonizado. O
modelo arquétipo que subjaz ao texto assim o impõe, configurando uma
dicotomia estreita entre “bons” e “maus”, vítimas e opressores, a
impotência do povo subjugado e a autoridade absoluta do dominador
britânico. Uma questionação do colonialismo que, como a crítica hoje
reconhece, reproduz os binarismos e as dicotomias do pensamento
eurocêntrico, institui uma dialéctica rígida e redutora entre poder e víti-
ma, não deixando, portanto, margem de manobra para qualquer forma
de negociação ou resistência. Ao texto se poderia apontar a mesma falha
que alguns críticos detectam nos primeiros estudos críticos sobre o colo-
nialismo,5 que, tal como o ensaio em apreço, estão presos a dualismos
estáticos e monolíticos e não conseguem evitar o impasse criado por um
modelo em que o Ocidente hegemónico se confronta com um Outro
passivo e impotente, ignorando-se assim as contradições internas de
cada um dos termos e não se levando em conta as ambivalências, derra-
pagens e rupturas da construção identitária que sustenta o sistema.
No momento seguinte do seu percurso como escritor e como pen-
sador destas matérias, Orwell consegue ultrapassar algumas destas difi-
culdades, reposicionando os termos da questão e reposicionando-se a si
mesmo relativamente à sua experiência do mundo colonial.

3. “Shooting an Elephant” e The Road to Wigan Pier – “Facing


unpleasant facts”
Não é, mais uma vez, coincidência o facto de estes dois textos, tal
como Burmese Days e “A Hanging”, serem praticamente contemporâ-
neos. Ambos se integram numa fase determinante da escrita orwelliana,
um ponto de viragem que dará início à produção da sua maturidade.
Depois de ter tentado “lavar a alma” da culpa imperial partilhando a
vida de vagabundos e marginais6 (experiência que deu origem ao seu
primeiro documentário, Down and Out in Paris and London), Orwell
reconhece o carácter vão e infrutífero dessa forma de expiação e, muito
significativamente para os nossos propósitos, admite a imaturidade e o
simplismo com que olhara o fenómeno da colonização:
I was conscious of an immense weight of guilt that I had
got to expiate. I suppose that sounds exaggerated; but if

23
you do for five years a job you thoroughly disapprove of,

“THE ROAD FROM MANDALAY”: ORWELL E O IMPERIALISMO Jacinta Maria Matos


you will probably feel the same. I had reduced everything
to the simple theory that the oppressed are always right
and the oppressors are always wrong: a mistaken theory,
but the natural result of being one of the oppressors myself.
I felt I had got to escape not merely from imperialism but
from every form of man’s dominion over man. I wanted to
submerge myself, to get right down among the oppressed,
to be one of them and on their side against their tyrants.
(Orwell 1974: 29-30)
“But unfortunately you do not solve the class problem by making
friends with tramps” (ibidem: 135), acrescenta Orwell em jeito de con-
clusão ao relato deste processo por que passou enquanto jovem. “Nem
se resolve o problema do colonialismo”, poderíamos acrescentar, certa-
mente com a concordância do autor, cujas palavras se podem, e devem,
entender também como crítica à sua escrita anterior sobre o colonialis-
mo. A capacidade de perspectivação do passado biográfico e literário
dá-nos bem a medida da transformação de Orwell, de tal modo con-
segue reflectir criticamente sobre a sua imaturidade anterior e distan-
ciar-se da posição simplista e ingénua com que encarara a questão. Um
Orwell diferente, portanto, que em The Road to Wigan Pier reconhece
que a denúncia do Império passa, antes de mais, pela denúncia de parte
de si próprio – não só enquanto cúmplice do sistema, mas também
como figura (a um tempo individual e colectiva) que tipifica a ineficácia
de uma revolta meramente sentimental e moral contra o colonialismo.
O mesmo desdobramento do narrador, entre o “eu” que vive a
experiência e o “eu” que posteriormente escreve sobre ela (ou, se qui-
sermos utilizar a terminologia de Franz Stanzel, entre o “experiencing-
self” e o “narrating-self” [Stanzel 1971: 61]), acontece em “Shooting an
Elephant”, e aí radica em grande parte o sucesso deste texto onde “A
Hanging” falha: agora sim, há uma entidade que, assumindo não só a
sua colaboração na opressão do Outro, se posiciona também “de fora”
da situação, olhando criticamente para si própria e entendendo-se a si
mesma, entendendo esse Outro e as relações que entre ambos se esta-
belecem em toda a sua ambivalência e complexidade.
O narrador de “Shooting an Elephant” move-se, com efeito, num
mundo que já não é a preto-e-branco, maniqueisticamente composto
por “bons” e “maus”, colonizados e colonizadores. Ele próprio se
encontra interiormente dividido entre o sentimento privado de ódio
24

contra o Império e o seu papel público de “sub-divisional police officer


of the town”, entre a sua simpatia pela causa nacionalista birmanesa e a
“THE ROAD FROM MANDALAY”: ORWELL E O IMPERIALISMO Jacinta Maria Matos

raiva contra as “sneering yellow faces” que o insultam em cada esquina


e lhe passam rasteiras nos jogos de futebol (Orwell 1998: X, 501). A arti-
culação de opostos e a identificação e verbalização da esquizofrenia cri-
ada pelo sistema colonial, ausentes nas obras anteriores, são da respon-
sabilidade do “narrating-self”, já bem longe do “experiencing-self” que,
“young and ill-educated” (a expressão vem precisamente deste ensaio),
apenas entendia a experiência como “perplexing and upsetting” (ibi-
dem):
With one part of my mind I thought of the British Raj as an
unbreakable tyranny, as something clamped down, in saecu-
la seculorum, upon the will of prostrate peoples; with another
part I thought the greatest joy in the world would be to drive
a bayonet into a Buddhist priest’s guts. Feelings like these are
the normal by-products of imperialism; ask any Anglo-Indian
official, if you can catch him off duty. (ibidem: 502)
As tensões e discrepâncias entre o pessoal e o público, a teoria e a
prática, o empírico e o ideológico adquirem no ensaio uma dimensão
supra-individual e surgem como resultado de condicionantes mais vas-
tas em que o sujeito se insere. Um sujeito que assim nos surge radical-
mente dividido em si mesmo, duplamente inscrito perante uma situação
complexa e contraditória, cuja ambiguidade entende agora, com o dis-
tanciamento crítico entretanto adquirido, como estrutural e não mera-
mente como pessoal. Consciente está também o “narrating-self” da
construção identitária implícita nos papéis que o sistema lhe reserva a
ele, enquanto colonizador, e aos indianos, enquanto colonizados. No
momento climático do texto, em que o narrador se apercebe de que,
contra o seu desejo, é obrigado a matar o elefante, uma vez que é essa a
expectativa dos nativos sobre o que deve ser o comportamento decisivo
e determinado do colonizador inglês, a natureza do sistema colonial
apresenta-se-lhe em toda a sua ambivalência – e também em toda a sua
precariedade:
And it was at this moment, as I stood there with the rifle in
my hands, that I first grasped the futility of the white man’s
dominion in the East. Here I was, the white man with his
gun, standing in front of the unarmed native crowd –
seemingly the leading actor of the piece; but in reality I

25
was only an absurd puppet pushed to and fro by the will of
those yellow faces behind. I perceived in this moment that
“THE ROAD FROM MANDALAY”: ORWELL E O IMPERIALISMO Jacinta Maria Matos
when the white man turns tyrant, it is his own freedom that
he destroys. He becomes a sort of hollow, posing dummy,
the conventionalized figure of a sahib. For it is the condi-
tion of his rule that he shall spend his life in trying to
impress the “natives” and so in every crisis he has got to do
what the “natives” expect of him. He wears a mask, and
his face grows to fit it. (ibidem: 504)
Com grande clareza sobressai deste passo a interdependência das fi-
guras do colonizador e do colonizado, ou seja, o facto de, dentro do sis-
tema colonial, cada uma das identidades implicar necessariamente a
outra, num jogo/peça dramática em que cada um tem de assumir os
papéis que lhe são reservados. Mas não significa isto que estejamos a ler
a situação como exemplo da velha dicotomia entre “aparência” e “rea-
lidade”, numa visão essencialista em que tanto colonizador como colo-
nizado escondem a sua “verdadeira” identidade e assumem tempora-
riamente uma “máscara” que a substitui. O texto tem consciência de
que o processo vai mais fundo e mais longe: “his face grows to fit it”, diz-
se do colonizador, mostrando assim que a interiorização da sua identi-
dade como figura de autoridade é indispensável para a criação e
manutenção do sistema, e que o seu poder tem de ser constante e repeti-
damente exercido (lembrado) perante o colonizado.
Mas o exercício do poder colonial radica (como Homi Bhabha nos
lembra), numa ambivalência central na forma de representação do
Outro (e do Eu-colonizador, poderíamos acrescentar), em estereótipos
que são “a complex, ambivalent, contradictory mode of representation,
as anxious as [they are] assertive” (Bhabha 1994: 70), pressupondo, por-
tanto, a um tempo, a insistente exibição do poder e a ansiedade ou medo
da perda de autoridade sobre o Outro. Parece ser precisamente o que o
narrador de “Shooting an Elephant” descobre nesta curiosa situação,
em que é chamado a agir segundo o mito construído acerca da figura do
colonizador, ao mesmo tempo que descobre as frágeis bases em que
assenta o seu domínio sobre o colonizado. Estranhamente (ou talvez
não), a revelação ocorre no momento em que os papéis habituais pare-
cem inverter-se, e em que ele, símbolo do poder britânico, é manipula-
do pelo súbdito colonial, passando aparentemente de opressor a vítima.
É um momento problemático do texto, que poderíamos ler ingenu-
amente como forma de branqueamento do Império. Afinal, quem tem
aqui o poder? O inglês, que sensatamente não quer matar o elefante, ou
26

a multidão ululante, que quer gozar o espectáculo primitivo do sacrifí-


cio do animal e o obriga a atirar? Mas não é isso, de facto, que se passa;
“THE ROAD FROM MANDALAY”: ORWELL E O IMPERIALISMO Jacinta Maria Matos

antes o que aqui está em causa é o desmascarar de um poder tido como


hegemónico e monolítico, e o assumir das contradições internas do sis-
tema e das figuras por ele criadas. Nos interstícios dessas contradições se
abre o espaço de questionação do sistema, e através delas se revelam as
brechas e as rupturas no edifício supostamente sólido do poder colonial.
Mais do que a lição (já aprendida com Conrad) de que o colonialismo
destrói, em última análise, o colonizador, o que devemos extrair como
conclusão do passo acima citado (e do ensaio em geral) é que as bases de
sustentação do sistema colonial são de extrema complexidade e de pro-
funda ambivalência: ao mesmo tempo ilusórias – porque baseadas
numa estratégica construção identitária das duas entidades que o com-
põem, no mito do que é ser inglês e nos estereótipos derrogatórios cria-
dos sobre o Outro – e reais, porque determinam a acção concreta das
partes envolvidas e implicam comportamentos que muitas vezes se
traduzem numa questão de vida ou de morte – quanto mais não seja de
um elefante.
“Shooting an Elephant” é, assim, uma crítica ao colonialismo bem
mais desestabilizadora e inquietante do que a presente nas obras anteri-
ores, que ofereciam aos leitores e leitoras o conforto de uma perspectiva
maniqueísta da questão e a tranquilidade de uma leitura moral do pro-
blema da injustiça. Mas quer no ensaio quer nessa autobiográfica
Segunda Parte de The Road to Wigan Pier encontramos um narrador
que consegue encarar os “unpleasant facts” da sua cumplicidade com o
colonialismo com outra abrangência e que os integra agora na totali-
dade de uma visão política do mundo.

4. Os ensaios e o jornalismo dos anos de guerra – “The English


Revolution”
1936 foi um ano de viragem para Orwell. A sua viagem ao Norte de
Inglaterra, onde pôde avaliar os efeitos da Grande Depressão nas comu-
nidades mineiras, trouxe-lhe o conhecimento sobre a classe trabalhado-
ra de que necessitava para redireccionar a empatia emocional que sen-
tira para com os oprimidos depois da sua experiência como opressor e a
transformar num projecto político de defesa do socialismo democrático.
Este projecto começa a esboçar-se em The Road to Wigan Pier, nessa
polémica Segunda Parte, em que Orwell por um lado apresenta o socia-
lismo como único sistema político viável para fazer face à crise e por
outro ataca violentamente os socialistas, culpando-os de alienarem o

27
povo inglês e de o afastarem da causa socialista. Não será oportuno,
neste contexto, entrar em detalhes sobre essa controversa secção da
obra, a não ser relembrando que Orwell se apresenta perante os leitores “THE ROAD FROM MANDALAY”: ORWELL E O IMPERIALISMO Jacinta Maria Matos
e leitoras como o exemplo de alguém que percorreu esse caminho de
consciencialização política que medeia entre a sua participação no
Império e o seu abraçar de uma ideologia de esquerda, caminho esse
que o/a leitor/a da obra é vivamente encorajado a percorrer também.
A urgência do projecto é óbvia, neste momento histórico de expan-
são do fascismo na Europa e de ameaça de guerra mundial. E é esta a
razão pela qual Orwell começa por esta altura a desenhar o plano de
uma profunda transformação da sociedade inglesa, essa “English
Revolution” que proporá explicitamente mais tarde em “The English
People” e The Lion and the Unicorn, utopia rival da distopia que
encontramos em Nineteen Eighty-Four, e ideal que orientou a sua escri-
ta na última década de vida. Reimaginar a nação, mantendo o que de
melhor a tradição oferece, mas rejeitando tudo o que, vindo do passado,
é prejudicial e negativo, construir um alargado movimento socialista
com o “common man” no centro, resgatar o patriotismo do seu açam-
barcamento pela direita e transformá-lo numa força revolucionária;
enfim, reinventar essa entidade – a nação – a um tempo mítica e con-
creta, transformando-a radicalmente mas mantendo-a ainda familiar e
reconhecível pelo cidadão comum, é a linha-mestra do pensamento e da
intervenção de Orwell na década de 40.
O imperialismo britânico não pode ter – e não tem – lugar neste pro-
jecto. Já em The Road to Wigan Pier Orwell perguntava acusatoria-
mente à esquerda: “Do you want the British Empire to hold together or
do you want it to disintegrate?” (Orwell 1974: 139), e respondia, com
uma dessas generalizações (quiçá abusivas, mas justificáveis no discurso
polémico) de que a sua prosa está cheia, que infelizmente “at the bottom
of his heart no Englishman, least of all the kind of person who is witty
about Anglo-Indian colonels, does want it to disintegrate” (ibidem).
Segundo Orwell, a esquerda não queria enfrentar as inevitáveis conse-
quências da quebra do nível de vida que o final do Império implicaria,
nem ver reduzido o estatuto de Inglaterra a “a cold and unimportant lit-
tle island where we should all have to work very hard and live mainly on
herring and potatoes” (ibidem: 140). E no entanto, para o autor, o des-
mantelar do Império era vertente essencial da reconstrução do país, a
par da extinção das barreiras de classe, da democratização da educação,
do fim do mito do progresso tecnológico, do descrédito de teorias xenó-
fobas e da abolição dos privilégios económicos e sociais.
28

É o que defenderá em inúmeros ensaios que escreveu entre 1939 e


1945, nomeadamente em The Lion and the Unicorn, onde discute o
“THE ROAD FROM MANDALAY”: ORWELL E O IMPERIALISMO Jacinta Maria Matos

declínio do Império nas décadas anteriores e advoga, como parte do pro-


grama em seis pontos que consubstancia a sua ideia da Inglaterra renova-
da que, segundo ele, deveria emergir da Segunda Grande Guerra,
“[i]mmediate Dominion status for India, with power to secede when the
war is over” (Orwell 1998: XII, 422). Aí se sugere também que a relação
entre os dois países deverá ser a de uma “partnership on equal terms until
such time as the world has ceased to be ruled by bombing planes” (ibidem:
426), seguida pela independência da Índia logo que a guerra termine. A sua
utopia de reconstrução e recriação do país passa, portanto, incontornavel-
mente, pelo fim da era colonial e da exploração do subcontinente indiano,
e pelo estancar do “stream of dividends that flows from the bodies of Indian
coolies to the banking accounts of old ladies in Cheltenham” (ibidem: 425).
Mas, para Orwell, este desenvolvimento político só seria possível se
a Inglaterra se constituísse como país socialista, revolução tanto mais
urgente quanto dela dependeria não só a alteração interna do país, mas
a sua relação com as ex-colónias e a sua posição geo-estratégica no
mundo do após-guerra. O que advoga (ibidem: 427), numa visão não
muito distante da que presidiu mais tarde à criação da Commonwealth,
é que a Inglaterra e as antigas colónias se constituam numa federação de
estados socialistas independentes, mas mantendo ligações estreitas entre
si, sempre no espírito da “partnership on equal terms” que reputa como
essencial. Curiosamente, Orwell sugere que a língua inglesa deverá ser
um dos elos mais fortes de qualquer futura relação entre a Inglaterra e
a Índia, “the best bridge between Europe and Asia, better than trade or
battleships or aeroplanes” (Orwell 1998: XV, 34) e espera que os indi-
anos (neste caso o seu amigo e colega na BBC Mulk Raj Anand) “[w]ill
continue to write in it, even if it sometimes leads you to be called a
‘babu’ (as you were recently) at one end of the map and a renegade at
the other” (ibidem). Orwell entenderia, certamente, a posição de
escritores como Salman Rushdie, para quem o uso da língua inglesa,
num mundo já pós-colonial, continua a ser problemático e a enfermar
destas ambiguidades identitárias, mas cuja apropriação Rushdie consi-
dera determinante, em última análise, “to complete the process of mak-
ing ourselves free” (Rushdie 1992: 17).
E é sintomático que a sua preocupação com a linguagem (presente,
por exemplo, em “Politics and the English Language” e na criação do
Newspeak em Nineteen Eighty-Four) o leve até, aquando da reedição de
Burmese Days, a corrigir muito do vocabulário politicamente incor-

29
recto da obra, emendando “Chinaman” para “Chinese” e acrescentan-
do aspas a “native”. Como explica num dos seus artigos no Tribune
sobre o tratamento dos negros no Sul dos Estados Unidos, a intervenção “THE ROAD FROM MANDALAY”: ORWELL E O IMPERIALISMO Jacinta Maria Matos
individual contra o racismo pode e deve passar por “one small precau-
tion, which is not much trouble, and which can perhaps do a little to
mitigate the horrors of the colour war. That is to avoid insulting nick-
names” (Orwell 1998: XVI, 24).
O racismo e o imperialismo continuam a estar no centro das preocu-
pações de Orwell, que nunca perde a oportunidade de escrever recen-
sões críticas sobre obras que se refiram à Índia (só em 1943 foram qua-
tro as recensões que publicou sobre a matéria), nem de intervir pessoal
e/ou publicamente sobre a questão da descolonização. É bem conheci-
da a resposta que deu à Duquesa de Atholl, que o convidara a partici-
par num fórum da League of European Freedom, e a quem Orwell
escreveu, declinando o convite e explicando que “I cannot associate
myself with an essentially Conservative body which claims to defend
democracy in Europe but has nothing to say about British imperialism”
(Orwell 1998: XVII, 385). Por último não podemos deixar de lembrar o
seu trabalho na BBC, onde foi responsável pela Indian Section, que
durante a Guerra transmitia noticiários semanais sobre o desenvolvi-
mento do conflito e programas de índole cultural e literária para o públi-
co do subcontinente. Se Orwell, como na opinião de alguns críticos, se
demitiu da BBC porque se sentia restringido pela censura e impedido de
veicular as suas ideias sobre a futura independência das colónias é uma
questão problemática e ainda não totalmente esclarecida.7 O que é certo
é que Orwell aceitou a responsabilidade do cargo porque de algum
modo entendia ter ainda – agora já não prioritariamente através da
forma ficcional, mas do ensaio, da recensão e do programa radiofónico
(formas menos “literárias” mas mais directamente interventivas) – uma
palavra a dizer sobre uma matéria que tão de perto o tocara e sobre a
qual tinha vindo a fazer uma reflexão aprofundada.
O que se lhe apresentara anos antes como conflito interior e pessoal
passa depois a fazer parte da visão global que Orwell tem do mundo do
seu tempo e do futuro que se lhe seguirá. E se, por exemplo, o seu pro-
jecto de uma “English revolution” nos surge a nós, com o benefício da
visão restrospectiva, como ingénuo e/ou inviável, e se muitas das pro-
jecções orwellianas se nos afiguram como incorrectas ou demasiada-
mente pessimistas, o seu mérito reside, ainda, na capacidade que
demonstrou de transmutar o pessoal no público, o subjectivo no históri-
co, e na atitude que progressivamente foi construindo de um simultâneo
“insider” e “outsider” perante a experiência. Optimizando, a um tempo,
30

a autoridade de quem pessoalmente testemunhou as injustiças (e tam-


“THE ROAD FROM MANDALAY”: ORWELL E O IMPERIALISMO Jacinta Maria Matos

bém as benesses) da colonização e de quem deliberadamente se situou


criticamente fora de si mesmo e da realidade colonial, Orwell dramati-
za as nossas contradições enquanto ocidentais perante o que estrategica-
mente fomos criando como Outros, expondo-se como figura paradig-
mática de um processo de consciencialização política e de reflexão teóri-
ca que ele nos encoraja a duplicar. Esse processo implica sempre o des-
dobramento do Eu e a perspectivação das nossas práticas e discursos
como a um tempo actos de um sujeito historicamente responsável e
objectos de uma interrogação crítica sobre a forma como nos construí-
mos – e como construímos os nossos Outros.
E como não ler Nineteen Eighty-Four em termos da sua visão de um
mundo em que o domínio imperial das grandes potências sobre o resto
do globo é agora exacerbado pelo carácter totalitário de todas elas, e em
que os caminhos que levam de Mandalay a Wigan são progressivamente
mais difíceis – se não impossíveis – de percorrer?
1 Veja-se o tom disciplicente com que Orwell se refere ao modelo marxista, por exemplo, cari-
caturando a sua terminologia como “the sacred sisters, thesis, antithesis and synthesis” (Orwell 1974:
202).
2 Para uma história detalhada da publicação da obra, leia-se, por exemplo, Davison 1996: 47-51.
3 Deva-se dizer, em abono de Gollancz, que Orwell (na ingenuidade do escritor inexperiente,
ou com um sentido de humor perverso e provocatório? É impossível saber) afirmou a Gollancz que
o romance era baseado em factos verídicos, que as personagens tinham um correspondente exacto
na vida real e que os nomes tinham sido mantidos. Não será difícil de imaginar o pânico do editor...
4 A U Po Kyin e às personagens orientais da obra se poderia aplicar, em termos gerais, o que
Homi Bhabha refere como o estereótipo do Outro colonial: “The black is both savage (cannibal) and
yet the most obedient and dignified of servants (the bearer of food); (...) he is mystical, primitive, sim-
ple-minded and yet the most worldly and accomplished liar, and manipulator of social forces”
(Bhabha 1994: 82).
5 Veja-se, por exemplo, a crítica que Robert Young faz à obra de Said Orientalism, em White
Mythologies. Writing History and the West (Young 1990: 126-129, 141-145).
6 Leia-se a confissão de Orwell a este propósito em The Road to Wigan Pier, particularmente
no capítulo 9 da Segunda Parte da obra.
7 T. R. Fyvel, amigo pessoal de Orwell e que com ele privou nesta época, lembra-se de uma con-
versa em que Orwell lhe terá afirmado que “given what reputation he had in India as an anti-im-
perialist writer he was unhappy about lending his name to BBC broadcasts; to put out talks on British
literary values was irrelevant at a time when Nehru and other Indian Congress leaders were being
held in prison by the British Government (…). All he thought needed to be broadcast by the BBC
was straight news and a British declaration that after the defeat of Japan, India could have immedi-
ate self-government” (Fyvel 1982: 123-124). Na sua discussão da questão a págs. 121-126, Fyvel
atribui a este descontentamento a eventual demissão de Orwell da BBC. A este se juntaram certa-
mente outros factores que contribuíram para a decisão, sendo impossível saber qual o peso relativo
deste em particular.

Obras Citadas
Bhabha, Homi (1994), The Location of Culture, London, Routledge.
Davison, Peter (1996), George Orwell. A Literary Life, London, Macmillan.

31
Fyvel, T. R. (1982), George Orwell. A Personal Memoir, London, Hutchinson.
Lee, Robert A. (1969), Orwell’s Ficton, Notre Dame, University of Notre Dame “THE ROAD FROM MANDALAY”: ORWELL E O IMPERIALISMO Jacinta Maria Matos

Press.
Lucas, Scott (2003), Orwell, London, Haus Publishing.
Orwell, George, The Complete Works of George Orwell, ed. Peter Davison,
London, Secker & Warburg, 20 vols.
Rushdie, Salman (1992), Imaginary Homelands, London, Granta Books.
Smyer, Richard (1979), Primal Dream and Primal Crime. Orwell’s
Development as a Psychological Novelist, Columbia, University of Missouri
Press.
Stanzel, Franz (1971), Narrative Situations in the Novel. “Tom Jones”, “Moby
Dick”, “The Ambassadors”, “Ulysses”, Bloomington, University of Indiana
Press.
Williams, Raymond (1971), Orwell, London, Fontana/Collins.
Young, Robert (1990), White Mythologies. Writing History and the West,
London, Routledge.
32
“THE ROAD FROM MANDALAY”: ORWELL E O IMPERIALISMO Jacinta Maria Matos
ELISABETE DO ROSÁRIO MENDES SILVA
INSTITUTO POLITÉCNICO DE BRAGANÇA – ESCOLA SUPERIOR DE EDUCAÇÃO

O Socialismo de Orwell:
Uma Nova Proposta Social
em Plena Segunda Guerra Mundial

A proposta social delineada por Orwell em 1941 com os objectivos

33
de sarar muitas das feridas provocadas pela Segunda Guerra Mundial,

O SOCIALISMO DE ORWELL: UMA NOVA PROPOSTA SOCIAL EM PLENA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL Elisabete do Rosário Mendes Silva
eliminar os vícios que se arreigaram na sociedade e política britânicas
durante séculos e, principalmente, encontrar soluções para resolver a
situação problemática que a Grã-Bretanha vivia a todos os níveis, cons-
titui o principal conteúdo das partes II e III de The Lion and the
Unicorn. Orwell escreveu essas duas partes, “Shopkeepers at War” e
“The English Revolution”, num contexto bastante peculiar. Em plena
Segunda Guerra Mundial, o autor descreveu imagens de perigo imi-
nente:
(...) I begin this second chapter in the added racket of the
barrage. The yellow gun-flashes are lighting the sky, the
splinters are rattling on the house-tops, and London
Bridge is falling down, falling down, falling down (...) at the
moment we are in the soup – full fathom five (...).
(Orwell 1998: XII, 409)
Perante o cenário de guerra, Orwell manifestou-se consciente da
urgência em modificar o sistema sócio-económico e político da Grã-
-Bretanha. A crescente força dos regimes fascistas na Alemanha e na
Itália, o desemprego em massa sentido na Grã-Bretanha e no resto da
Europa e a crise industrial provocaram a necessidade de uma acção mais
radical por parte do governo britânico. Orwell apresentou a sua propos-
ta no sentido de libertar a Grã-Bretanha do capitalismo privado e do
poder coercivo dos regimes totalitários. A solução residia no socialismo.
Na verdade, o socialismo defendido por Orwell traduzia-se em ca-
racterísticas bastante particulares, ou seja, Orwell não alinhou pelo
socialismo que, entretanto, se tornara oficial, um socialismo ortodoxo de
raiz marxista. Orwell recusava-se a aceitar a obediência passiva às
regras marxistas. Como escreve em The Road to Wigan Pier:
(...) the real socialist is one who wishes (...) to see tyranny
overthrown. But I fancy that the majority of orthodox
Marxists would not accept that definition (...) to them, the
whole Socialist movement is no more than a kind of excit-
ing heresy-hunt (...) The Socialist movement has not time
to be a league of dialectical materialists; it has got to be a
league of the oppressed against the oppressors.
(Orwell 1998: V, 206)
Embora mantendo ideais de esquerda, Orwell não baseava os seus
34

ideais socialistas em princípios económicos e políticos mas nas crenças


O SOCIALISMO DE ORWELL: UMA NOVA PROPOSTA SOCIAL EM PLENA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL Elisabete do Rosário Mendes Silva

liberal e humana (Meyers 2000: 90). Segundo George Woodcock, o


socialismo de Orwell não se afigurava tão elaborado quanto o dos
escritores ortodoxos de esquerda. Orwell parecia ter uma concepção
pouco clara de uma sociedade socialista, além da vaga ideia de que o
humanismo constituía a base principal do seu socialismo. O pragma-
tismo, a honestidade, a defesa da liberdade de expressão representavam
marcas que o distinguiam de todos os outros socialistas (Woodcock
1946: 384-388).
Para perceber a peculiaridade do socialismo de Orwell torna-se
necessário recuar um pouco no tempo e atentar na história do socialis-
mo britânico, determinando os factores sócio-económicos e políticos que
delinearam o movimento na Grã-Bretanha. O percurso político do
socialismo foi, em definitivo, marcado pelas revoluções do século XVIII.
A Revolução Industrial, se, por um lado, pressupôs abundância e pro-
gresso, por outro, criou expectativas infundadas, causando inadaptações
e aumento do número de oprimidos, permitindo o alastramento de focos
de pobreza graves e falta de sanidade urbana. Enquanto as revoluções
Agrária e Industrial transformaram a vida da nação inglesa e trouxeram
uma combinação de prosperidade e miséria, as revoluções Americana e
Francesa puseram em marcha uma vaga de novas ideias políticas. Além
disso, os franceses jacobinos e as guerras napoleónicas aceleraram a
industrialização, mas retardaram as reformas políticas na Grã-Breta-
nha.
Não nos surpreende, então, que o início do século XIX estivesse
imbuído de uma mudança dinâmica em que novas ideias fermentavam
e polarizavam movimentos sociais reclamando melhores condições de
vida para as classes mais desfavorecidas. O século XIX representou,
para David Thomson, uma época em que se experimentou adaptar o
homem industrial a uma sociedade democrática (Thomson 1950: 32-
-34). Trata-se de um período que tentou evitar as revoluções enveredan-
do por uma linha reformista. Isso deveu-se, sobretudo, à aparente me-
lhoria significativa de vida provocada pela industrialização e por um sis-
tema capitalista que reduziu as probabilidades de revolução. Charles
Tilly apresentou algumas razões justificativas para esse evitar da re-
volução:
(...) a criação de poderosas máquinas militares e imperiais,
o sistema de governação indirecta recorrendo à alta bur-
guesia e ao clero que prevaleceu até ao século XIX, o

35
poder crescente de um parlamento baseado na fusão do
poder dos proprietários de terras e dos comerciantes e a

O SOCIALISMO DE ORWELL: UMA NOVA PROPOSTA SOCIAL EM PLENA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL Elisabete do Rosário Mendes Silva
cooptação de uma classe governante escocesa cada vez
mais arrastada para as mesmas redes capitalistas em que os
ingleses se encontravam, tudo isto se conjugou para
reduzir a probabilidade de aparecimento de uma alterna-
tiva viável ao governo existente. (Tilly 1996: 171-172)
Porém, o progresso proporcionado pela expansão de uma economia
industrial não se manteve uniforme, provocando sérias dificuldades soci-
ais. Esses problemas trouxeram uma agitação revolucionária sem para-
lelo. As consequências mais graves da crise capitalista foram de ordem
social. A transição para a nova economia criou miséria e descontenta-
mento, os ingredientes para uma revolução social. Esta, nas palavras de
Hobsbawm, eclodiu sob a forma de sublevações espontâneas dos explo-
rados urbanos e da indústria, e esteve na base das revoluções de 1848 no
Continente e do vasto movimento cartista na Grã-Bretanha (Hobsbawm
1982: 58).
Entre 1789 e 1848, o owenismo e o cartismo vieram propor novas
alterações ao panorama político e social, iniciando todo um processo de
luta em defesa das classes trabalhadoras. Robert Owen desempenhou,
sem dúvida, um papel influente na fundação das raízes do socialismo na
Grã-Bretanha:
(...) he stimulated the organisation of labour and planted
the tree of co-operation. The widest influence he exercised
had to do with social reform, not socialism, and took effect
in promoting factory legislation and popular education.
(Shadwell 1987: 28)
Conhecido como um dos fundadores do socialismo, juntamente com
Saint-Simon e Fourier, Owen lançou um projecto alternativo à situação
social da época, a primeira metade do século XIX. Seguindo as ideias
racionalistas e liberais dos finais do século XVIII, pretendia a criação de
um sistema competitivo de livre concorrência entre organizações coo-
perativas solidárias. No entanto, Owen distanciava-se de Saint-Simon e
de Fourier, na medida em que procurava um equilíbrio entre a indús-
tria e a agricultura, guiado por um ideal de harmonia de interesses tanto
na produção como na distribuição da riqueza (Faria 1976: 532-533,
551). O socialismo utópico de Owen pretendia assim instituir um sis-
tema social completamente renovado:
O socialismo de Robert Owen não assentava sobre a rea-
36

lidade da época: pretendia impor-se, de cima para baixo,


O SOCIALISMO DE ORWELL: UMA NOVA PROPOSTA SOCIAL EM PLENA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL Elisabete do Rosário Mendes Silva

retirando às classes trabalhadoras a iniciativa espontânea


de encontrar a sua identidade e vir a tomar as rédeas do
poder por um processo de luta contra as classes domi-
nantes; atribuía, por outro, às classes dominantes na gene-
ralidade, motivações e objectivos que esporadicamente se
verificavam. (Faria 1976: 535)
Convencido de que a base que sustentava o sistema social estava
errada, Owen introduziu o princípio do cooperativismo, acreditando
que se os homens em vez de competir cooperassem uns com os outros
alcançariam a tal harmonia de interesses e haveria riqueza para todos
(Cole & Postgate 1971: 216). O cooperativismo de Owen teve o apoio
de muitos trabalhadores e de muitos sindicalistas: “They, like Owen,
were in revolt against the evils of capitalist, competitive society; they, like
him, were in search of a new social order based on the idea of human
brotherhood” (Cole & Postgate 1971: 242).
O modelo owenista serviu de exemplo para a criação de sociedades
cooperativas. James Watson, um dos mais distintos líderes dos Radicais
da Classe Trabalhadora de Londres (London-Working-Class Radicals),
e William Lovett lideravam a Sociedade Cooperativa de Londres
(London Co-operative Society), fundada em 1824. Outras sociedades
owenistas foram então criadas (Cole & Postgate 1971: 242).
Apesar de não assentar numa ideia nova, o cooperativismo ganhou
destaque com Owen, que o difundiu como movimento social:
But none of the experiments in Co-operation before Owen
seems to have been more than an isolated venture, or to
have been animated by any conscious social philosophy.
To Owen belongs the credit for starting co-operation as a
social movement, with definite anti-capitalist aims and the
hope of instituting a new “social system”. (Cole & Postgate
1971: 242-243)
Relativamente ao outro movimento de defesa dos trabalhadores
atrás mencionado, o cartismo, embora não se orientasse por premissas
revolucionárias ou socialistas, o seu radicalismo impôs uma força distin-
ta delineada pelas circunstâncias históricas da Grã-Bretanha (Tholfsen
1979: 25). O cartismo começou, de facto, a ganhar forma num contex-
to de conflitos sociais e ideológicos agravados por uma crise económica.
Dorothy Thompson assinalou alguns acontecimentos que marcaram

37
decisivamente o início do movimento cartista:

O SOCIALISMO DE ORWELL: UMA NOVA PROPOSTA SOCIAL EM PLENA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL Elisabete do Rosário Mendes Silva
The Irish Coercion Act, the emasculation of the Factory
Act, the attacks on trade unions, all contributed to the dis-
illusion felt by working-class radicals with the Reform Act
and the administrations which followed it. (Thompson
1984: 24)
O protesto contra a nova lei dos pobres de 1834 (New Poor Law) repre-
sentou de igual modo um factor determinante para a formação do car-
tismo. A lei não era apenas uma ameaça para a classe trabalhadora,
constituía também um símbolo da ideologia da classe média (Cole &
Postgate 1971: 272-280).
Tendo como objectivo último a felicidade social, os cartistas, lidera-
dos por William Lovett e Francis Place, apresentaram uma carta (The
People’s Charter) de reivindicações políticas. Entre outras, nela recla-
mavam o sufrágio universal, atribuindo importância ao factor humano
e não à propriedade, reivindicavam o pagamento dos membros do
Parlamento e exigiam o voto secreto (Cole & Postgate 1971: 280).
Na procura do equilíbrio tentou-se a via do reformismo. A Lei da
Reforma (Reform Act) de 1832 amenizou os desassossegos políticos ao
satisfazer as exigências da classe média, prevendo inaugurar uma época
de estabilidade. Contudo, assistiu-se também ao radicalismo das classes
mais desfavorecidas e descontentes com a sua condição. Essa atitude
continha não só protestos contra a fome e a necessidade, mas também a
exigência de representação parlamentar.
Não obstante, os movimentos que reclamavam reformas parla-
mentares defendiam a propriedade (entenda-se propriedade como bens
físicos, visíveis: por exemplo, terras, casas) como chave do prestígio
social e político. Deste modo, o elemento propriedade adquiria repre-
sentação em detrimento das pessoas vulgares (Thomson 1950: 57). Os
radicais, herdeiros das ideias de Paine e da Revolução Francesa, recla-
mavam o sufrágio universal, facto que se concretizou apenas em 1928.
Todas essas reformas, aliadas às reformas sócio-económicas, adquiriram
alguma força na medida em que enfraqueceram o poder das classes pro-
prietárias que se destacaram no século XVIII, a aristocracia e a gentry.
Em 1836, William Lovett fundou a Associação dos Trabalhadores de
Londres (The London Working Men’s Association). O seu objectivo pas-
sava pela promoção da candidatura dos trabalhadores ao Parlamento
para defesa dos interesses dos sindicatos, que começavam a adquirir
alguma importância para os parlamentares. David Thomson caracteri-
38

zou-o como um movimento trabalhista e não revolucionário ou socia-


O SOCIALISMO DE ORWELL: UMA NOVA PROPOSTA SOCIAL EM PLENA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL Elisabete do Rosário Mendes Silva

lista, pretendendo implantar reformas sociais e políticas na sociedade


britânica (Thomson 1950: 146-147). Por volta de 1880 essa associação
perdeu fulgor, sendo substituída pela Liga de Representação Trabalhista
(Labour Representation League):
In 1869, a more extensive organisation, the Labour
Representation League, was set up with the object, among
other things, of promoting the registration of the working-
class vote “without reference to opinion or party bias”. But
the League’s task was a difficult one, for it had not the
finance to make its candidatures a success. (Pelling 1965: 2)
Segundo Arthur Shadwell, na segunda metade do século XIX, os
movimentos socialistas, ou que se delineavam como socialistas, assumi-
am mais pragmatismo e determinação no intuito de verem con-
cretizadas reivindicações já há muito reclamadas:
(...) the spirit was totally different; benevolence was super-
seded by bitterness, the motive of sympathy with the poor
was overshadowed by hatred of the rich, the idea of co-
operation was replaced by conflict, the voluntary principle
by the compulsory (...). Intellectually, free speculation gave
place to rigid dogma, religious or ethical influences to pure
materialism (...) in methods, the idea of force was intro-
duced, and for gradual and evolutionary change more or
less sudden and revolutionary action was substituted.
(Shadwell 1987: 50)
Na segunda metade do século XIX, o poder político efectivo dos
sindicatos aumentava. O crescimento da indústria, a melhoria das
condições de trabalho e a extensão da rede educativa mantiveram viva
essa força (Pelling 1965: 7). Contudo, em 1880, o socialismo na Grã-
-Bretanha constituía um movimento ainda pouco estruturado. A
Federação Social-Democrata (Social Democratic Federation), criada
em 1881 e fundada nos clubes radicais dos trabalhadores, mantinha
princípios puramente radicais, defendendo um único ponto socialista, a
nacionalização da terra (Cole & Postgate 1971: 415).
A Liga Socialista (The Socialist League) de William Morris surgiu
quatro anos mais tarde, em 1885. Morris acreditava que a principal
função do socialista consistia na educação das pessoas para a inevitável

39
mudança que traria uma nova sociedade onde não existiriam explo-
ração capitalista nem horrores industriais:

O SOCIALISMO DE ORWELL: UMA NOVA PROPOSTA SOCIAL EM PLENA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL Elisabete do Rosário Mendes Silva
Morris disagreed with those who favoured Parliamentary
action, that is to say, efforts to put socialists on public bo-
dies, because he thought that this would encourage the
self-seeker and threaten the purity of the socialist ideal with
the corruption on compromise inevitably involved in poli-
tics. (Pelling 1965: 31)
Outros grupos de socialistas, sem filiação na Federação Social-
-Democrata ou na Liga Socialista, surgiram no panorama político
britânico. A Sociedade Fabiana (The Fabian Society) fundada em 1884
era no essencial constituída por membros da classe média e intelectuais
burgueses londrinos (McBriar 1966: 6). Liderado por George Bernard
Shaw, Sidney e Beatrice Webb, o movimento relatava, para Henry
Pelling, a dimensão da pobreza mas não oferecia soluções (Pelling 1965:
36). Apresentou, no entanto, algumas propostas concretas que visavam
uma mudança gradual do estado de coisas. Destas destacavam-se a
extensão da democracia, a melhoria do governo democrático e uma
acção governamental positiva para promover a igualdade dos direitos
do homem e da mulher (McBriar 1966: 25-28).
O nascimento do Partido Trabalhista Independente parlamentar
(Independent Labour Party) representou um acontecimento de extrema
importância na história do socialismo. Na tentativa de unir as organiza-
ções trabalhistas num só partido nacional, seguindo o exemplo da
Federação Intersindical TUC (Trades Union Congress, 1868-70), mas
numa escala maior, surgiu o Partido Trabalhista Independente. Uma
reunião inaugural em 1893 definiu o carácter do partido:
The decision to leave the title as “Independent Labour
Party” reflected an awareness of the origins and roots of
the party in the local labour unions and parties, some of
which were not explicitly committed to socialism. The pri-
mary object of these bodies was to build a Parliamentary
Party on the basis of a programme of labour reform, and
the principal allies of this party were to be, not the existing
socialist societies, which were insignificant, but the trade
unions, whose leaders were in most cases still to be con-
verted to the independent policy. (Pelling 1965: 118)
Distanciando-se das sociedades socialistas mais antigas, o Partido
40

Trabalhista Independente considerava os meios de acção política de


O SOCIALISMO DE ORWELL: UMA NOVA PROPOSTA SOCIAL EM PLENA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL Elisabete do Rosário Mendes Silva

extrema importância e uma abordagem teórica deu lugar a uma mais


prática. O principal objectivo socialista do Partido Trabalhista
Independente, liderado por Keir Hardie, passava pela nacionalização
da terra e de todos os meios de produção, distribuição e troca. Defendia
ainda uma educação gratuita para todos, desde a primária até à univer-
sidade. Segundo Henry Pelling, as relações próximas entre os trabalhis-
tas e os movimentos sindicais e entre os movimentos radicais e liberais
fundaram as bases para o desenvolvimento do socialismo liberal (Pelling
1965: 119).
Em 1900, Ramsay MacDonald formou o Grupo de Representação
Trabalhista (Labour Representation Committee), que surgiu de discór-
dias existentes entre alguns grupos sindicais. Esta nova associação repre-
sentava uma aliança de forças na qual os socialistas constituíam uma
pequena fracção. Começava, assim, a delinear-se o que acabaria por
chamar-se Partido Trabalhista (Labour Party). Este só se estabeleceu no
Parlamento em 1906 com a eleição de trinta membros do partido. No
entanto, só em 1918 adoptou o socialismo como doutrina política. As
principais dificuldades iniciais do Partido Trabalhista resultaram do
apoio declarado do Partido Trabalhista Independente aos Liberais:
Ramsay MacDonald, whom Hardie described as the
Party’s great intellectual asset, sided with the Liberals
against the Fabian “old gang” on almost every immediate
issue of the time. (Pelling 1965: 226; cf. ainda 222)
As guerras da primeira metade do século XX impuseram mudanças
significativas quanto à posição do socialismo na Grã-Bretanha. O
Partido Trabalhista, assumindo a liderança na segunda metade da déca-
da de quarenta dentro das alternativas socialistas, adoptou a política
gradual de proceder a nacionalizações e delineou um sistema de segu-
rança social:
In the final analysis the Labour left was divided and posed
less of a threat to the policies of Attlee’s Labour govern-
ments than is often supposed. (...) The history of the
Labour Party from 1945 to 1951 was far from being “strife
free” as it continued to reform capitalism rather than bring
a socialist state into being. (Laybourn 1997: 160)

* * *

41
O SOCIALISMO DE ORWELL: UMA NOVA PROPOSTA SOCIAL EM PLENA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL Elisabete do Rosário Mendes Silva
Orwell criticou a dependência do Partido Trabalhista relativamente
ao capitalismo, uma vez que surgia como um movimento sindicalista.
Essa dependência conduzia o partido não a verdadeiras mudanças no
regime mas apenas a reformas. Porém, o Partido Trabalhista constituía
ainda o partido mais credível na disseminação dos valores socialistas: lê-
-se em The Lion and the Unicorn que “[i]n England there is only one
Socialist party that has ever seriously mattered, the Labour Party”
(Orwell 1998: XII, 418).
Para Orwell, o socialismo revelava-se a opção necessária para suprir
o comunismo, tal como o capitalismo substituiu o feudalismo (Orwell
1998: XII, 459). O autor considerava urgente que o verdadeiro socia-
lista reequacionasse a Inglaterra como uma sociedade unida, na qual as
diferenças de classe diminuíam de forma gradual. Essas predisposições
sociais, aliadas à própria guerra, tornariam possível a passagem da teo-
ria socialista para a prática. Orwell apresentou um plano de acção no
qual expôs os objectivos da sua doutrina política.
O primeiro ponto desse programa, exposto, nomeadamente, em The
Lion and the Unicorn (Orwell 1998: XII, 422-426), dizia respeito às
nacionalizações. Essas deveriam ser inicialmente parciais e só numa fase
posterior corresponderiam totalmente à ideologia por ele defendida. A
partir do momento em que todos os bens produtivos fossem declarados
propriedade estatal, o povo sentir-se-ia identificado com o Estado.
O segundo ponto relacionava-se com a atenuação da rígida estrutu-
ra social através de uma limitação na diferença de rendimentos. O autor
entendia que não seria possível (pelo menos nesse momento) que todos
auferissem ordenados iguais, admitindo a necessidade de se sentir uma
certa recompensa monetária por parte de alguns trabalhadores con-
soante o tipo de emprego. Não encontrava, porém, fundamento para a
disparidade salarial superior à de dez para um.
O terceiro ponto referia-se ao sistema educativo. Orwell frisava a
impossibilidade de pôr em prática, desde logo, o seu projecto devido à
guerra. No entanto, justificava-se introduzi-lo de imediato, abolindo a
autonomia das “public schools” e das universidades mais antigas, per-
mitindo, através de ajudas estatais, a frequência destas por alunos de
classes mais desfavorecidas. Este projecto pretendia nivelar o sistema
educativo, a cargo exclusivo do Estado. A maioria das escolas privadas
seriam abolidas, pois representavam o grande entrave ao direito a uma
educação justa e igualitária para todos os jovens.
O quarto ponto abordava uma questão de política externa. Orwell
42

advogava o estatuto de domínio para a Índia, com o direito de secessão


O SOCIALISMO DE ORWELL: UMA NOVA PROPOSTA SOCIAL EM PLENA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL Elisabete do Rosário Mendes Silva

quando a guerra acabasse. A Inglaterra deveria colocar a Índia a um


nível igual ao seu, não a subjugando mas mantendo com ela uma
relação de interdependência. A ruptura total significaria prejuízos
irremediáveis tanto para a Índia, devido às suas insuficiências técnicas e
militares, como para a Grã-Bretanha:
Britain cannot become a genuinely socialist country while
continuing to plunder Asia and Africa; while on the other
hand no amount of nationalisation, no cutting-out profits
and destruction of privilege, could keep up our standard of
living if we lost all our markets and our sources of raw
materials at one blow. (Orwell 1998: XVII, 342)
Relacionado com o quarto ponto surgiam o quinto e o sexto do pro-
grama, respectivamente a formação de um conselho imperial incluindo
as pessoas de cor e a declaração de uma aliança formal com a China, a
Abissínia e todas as outras vítimas dos poderes fascistas. Nestes dois pon-
tos, Orwell reforçava a ideia de democracia e de luta contra os totali-
tarismos.
A guerra resultaria, portanto, numa união das massas contra o fascis-
mo, causando, de uma forma inevitável, importantes mudanças sociais
e políticas. Essa passagem implicava destronar os pró-fascistas do poder
e acabar com as injustiças sociais, lutando com e pela classe trabalhado-
ra. Nos termos de The Lion and the Unicorn:
We cannot win the war without introducing socialism, nor
establish socialism without winning the war. (...) a socialist
movement which can swing the mass of people behind it,
(...) wipe out the grosser injustices, (...) win over the middle
classes instead of antagonizing them, produce a workable
imperial policy instead of a mixture of humbug and uto-
pianism, bring patriotism and intelligence into partnership
– for the first time, a movement of such kind becomes pos-
sible. (Orwell 1998: XII, 421)
A classe trabalhadora representava para o autor a verdadeira decên-
cia, cujo modo de vida tornara o socialismo possível. A experiência vivi-
da em Wigan despertou o autor para a compatibilidade entre o socialis-
mo e a decência comum. Testemunha de uma grande pobreza e de
condições de trabalho e de vida miseráveis, Orwell apercebeu-se das

43
diferenças sociais que continuavam a existir em Inglaterra. Todavia, na
sua proposta expressa em The Lion and the Unicorn, Orwell deposita-

O SOCIALISMO DE ORWELL: UMA NOVA PROPOSTA SOCIAL EM PLENA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL Elisabete do Rosário Mendes Silva
va a esperança numa nova classe média, consequência do capitalismo,
formada por técnicos, médicos e empregados do Estado, entre outras
profissões especializadas. A classe trabalhadora apenas surgiu como
exemplo concreto da melhoria de vida causada, afinal, pela industria-
lização que Orwell considerava incompatível com o socialismo. O
desenvolvimento da classe média correspondia ao progresso do país e à
consequente e inevitável igualdade de classes:
However unjustly society is organized, certain technical
advances are bound to benefit the whole community,
because certain kinds of goods are necessarily held in com-
mon. A millionaire cannot, for example, light the streets
for himself while darkening them for other people. (Orwell
1998: XII, 407)
Orwell não especificou, no entanto, como essa classe desempenharia o
papel de líder no processo revolucionário por si delineado.
O socialismo de Orwell equivalia a um mundo eficiente e ordenado,
a um mundo sem diferenças sociais, como demonstra The Road to
Wigan Pier (Orwell 1998: V, 176). O socialismo revelava-se a única
força capaz de desviar o fascismo da sua ascensão:
Socialism is the only real enemy that Fascism has to face.
The Capitalist-imperialist governments, even though they
themselves are about to be plundered will not fight with
any conviction against Fascism as such. (...) The only thing
for which we can combine is the underlying ideal of social-
ism: justice and liberty. (...) Socialism, at least in this island,
does not smell any longer of revolution and the overthrow
of tyrants; it smells of crankishness, machine-worship and
the stupid cult of Russia. Unless you can remove that
smell, and very rapidly, Fascism may win. (Orwell 1998:
V, 200-201)
A Segunda Guerra Mundial proporcionou, desde logo, as condições
favoráveis para a urgência de combater os regimes totalitários. A respos-
ta residia numa revolução socialista que, para Orwell, expressava clara-
mente, por um lado, a decência britânica e, por outro, um sistema políti-
co preocupado em optimizar o uso dos recursos através da centralização
de poderes. A revolução socialista não destruiria o conceito de família
44

mas substituiria os que controlavam as fortunas das famílias (Ingle 1993:


73). A guerra tornara a revolução numa possibilidade real. Para o autor,
O SOCIALISMO DE ORWELL: UMA NOVA PROPOSTA SOCIAL EM PLENA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL Elisabete do Rosário Mendes Silva

as desigualdades sociais só seriam corrigidas através de uma revolução


liderada pela classe trabalhadora, como diz em The Lion and the
Unicorn:
It is only by revolution that the native genius of the English
people can be set free. Revolution does not mean red flags
and street fighting, it means a fundamental shift of power.
(...) what is wanted is a conscious open revolt by ordinary
people against inefficiency, class privilege and the rule of
the old. (Orwell 1998: XII, 415)
A Guerra Civil de Espanha confirmou a crença de Orwell de que
somente a classe trabalhadora, e não os intelectuais, representava o ver-
dadeiro inimigo do fascismo. Também durante a Segunda Guerra
Mundial, Orwell transferiu para a classe trabalhadora britânica a espe-
rança de destruir a classe fascista governante e estabelecer uma
sociedade igualitária (Ingle 1993: 72).
A revolução proposta por Orwell, mais do que um choque social pro-
porcionado por um golpe de Estado, constituía um movimento de mas-
sas que implicava uma mudança social gradual. A revolução tornava-se
inevitável perante a conjuntura social e política do início da década de
quarenta. A guerra e a revolução surgiam assim intimamente ligadas.
Para vencer a guerra e, consequentemente, derrubar Hitler, dever-se-ia
consolidar a revolução (Orwell 1998: XII, 418 e 345). No ensaio “What
is Socialism?”, Orwell justificou-a como um meio de alcançar progresso
moral:
Revolutions have to happen, there can be no moral
progress without drastic changes, and yet the revolutionary
wastes his labour if he loses touch with ordinary human
decency. (...) we must be able to act, even to use violence,
and yet not be corrupted by action. In specific political
terms, this means rejection of Russian Communism on the
one hand and Fabian gradualism on the other. (Orwell
1998: XVIII, 60)
Consciente do tempo, do espaço e do cenário social em que vivia,
Orwell desenhou a possibilidade de uma revolução. Todavia, o que
Orwell propôs e o que a seguir apresentou divergiam no conteúdo, logo
contradizendo a ideia de revolução, que se baseia no corte brusco e per-

45
manente com tradições sociais passadas. No que diz respeito à política,

O SOCIALISMO DE ORWELL: UMA NOVA PROPOSTA SOCIAL EM PLENA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL Elisabete do Rosário Mendes Silva
a ideia surge associada a uma alteração violenta (Ritter 1986: 388). A
revolução procura um novo começo, uma nova ordem na estrutura
social (Kramnick 1972: 31). Orwell deambulava porém entre um espíri-
to revolucionário e uma ansiedade reformista:
Yet at the same time Orwell shies away from revolution in
The Lion and the Unicorn. If in one passage he sounds like
a Trotsky demanding quick, violent action, in another he
is an early Shaw calling for peaceful reform. (...) A less fiery
Orwell claims that revolution does not mean crimson ban-
ners and shooting in the streets (...). (Smyer 1979: 102-103)
Em 1941, Orwell, envolvido no fervilhar dos acontecimentos, não
soube equacionar as duas componentes de uma revolução: a situação
revolucionária e o resultado revolucionário (Tilly 1996: 31-39). Existia,
de facto, um leque de causas propiciatórias que preparava o caminho
para a revolução. A guerra proporcionava e acelerava esse processo,
apesar de não ser condição exclusiva para a revolução. Contudo, Orwell
errou no resultado. Os britânicos venceram a guerra, mas o socialismo
tal qual ele o delineara não foi implementado. A transferência de poder
para o Partido Trabalhista em 1945 significava uma nova coligação go-
vernamental, mas os pressupostos políticos mantinham-se os mesmos.
Apenas se procederam a algumas alterações, tal como a nacionalização
de algumas indústrias, que constavam do programa de Orwell, mas que
outros já tinham defendido, nomeadamente Keynes e Beveridge.
Orwell tinha consciência de que o idealismo e a energia comunal da
revolução podem desvanecer-se, sobrepondo-se-lhes um egoísmo e uma
falta de escrúpulos capazes de recriar o mesmo tipo de sociedade e de
exploração que a revolução tentou combater. Ciente deste paradoxo,
Orwell escreveu em 1945 Animal Farm, demonstrando a enorme dis-
paridade entre os ideais da revolução e os resultados posteriores obtidos
na sociedade. Foi precisamente essa falta de consciência política por
parte das massas que impediu um resultado revolucionário desejado,
como aponta no texto “The British General Election”:
It would be absurd to imagine that Britain is on the verge
of violent revolution, or even that the masses have been
definitely converted to Socialism. Most of them don’t
know what socialism means, though public opinion is quite
ready for essentially socialistic measures such as national-
46

ization of mines, railways (...) it is doubtful whether there is


any widespread desire for complete social change. (Orwell
O SOCIALISMO DE ORWELL: UMA NOVA PROPOSTA SOCIAL EM PLENA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL Elisabete do Rosário Mendes Silva

1998: XVII, 339-340)


Devemos ainda acrescentar que as massas não representavam o
público leitor dos ensaios de Orwell. A grande maioria da classe traba-
lhadora não sabia ler nem escrever. Orwell escrevia para o sector mais
esclarecido da classe trabalhadora, a pequena burguesia, e para a classe
média, criticando a sua apatia e ignorância quanto ao que se passava na
realidade. Os ensaios políticos de Orwell eram animados pelo objectivo
de alertar essas classes para os perigos do regime fascista e de oferecer
soluções para o estado crítico em que a Inglaterra se encontrava.
A dúvida mais premente de Orwell em relação ao socialismo resul-
tou do seu pessimismo natural. Orwell duvidava de que alguma vez os
seres humanos pudessem viver num estado de igualdade. As distinções
de classe marcaram tanto as suas experiências de vida, na escola, na
Birmânia e no seu regresso a Inglaterra, que se tornava difícil acreditar
na possibilidade da sua extinção (Zwerdling 1974: 76). Além disso, no
seu programa, Orwell também demarcara essas mesmas diferenças, não
apresentando uma proposta alternativa que viabilizasse a igualdade
plena.
Stephen Ingle apresentou duas linhas de crítica que descreveram o
percurso e as mudanças de Orwell. A primeira defendia que Orwell não
foi mais do que um moralista tentando alcançar a igualdade social, mas
a quem faltava coerência intelectual e profundidade analítica. A segun-
da afirmava que Orwell abandonara o optimismo de The Road to
Wigan Pier e Homage to Catalonia para adoptar um individualismo
pessimista e anti-socialista em Animal Farm e em Nineteen Eighty-Four.
De acordo com estes argumentos, Orwell era superficial ou inconsis-
tente ou possivelmente ambas as coisas (Ingle 1993: 107).
No entanto, dúvidas permanecem quanto ao pessimismo de Orwell.
Se, por um lado, o autor reconheceu a dificuldade de implementar um
verdadeiro regime socialista, por outro, continuava a acreditar nos va-
lores da solidariedade, igualdade, decência e justiça social. Orwell
defendia os ideais de um socialismo democrático. O que mudou decisi-
vamente foi a crença de que tal se pudesse concretizar:
He was unlike other socialists in that he finally did not
believe his ideals would be, or could be, realized, and it is
this fact which makes his political ideas and attitudes
toward the end of his life so heterodox and accounts for

47
their odd tangle of conservative and radical strands.
(Zwerdling 1974: 112-113)

O SOCIALISMO DE ORWELL: UMA NOVA PROPOSTA SOCIAL EM PLENA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL Elisabete do Rosário Mendes Silva
Orwell acreditava ainda, apesar das críticas à classe governante, que
a Inglaterra constituía o único país europeu onde a política interna era
conduzida de uma forma humana e decente: como afirma em The
English People, “It is the only country where armed men do not prowl
the streets and no one is frightened of the secret police” (Orwell 1998:
XVI, 222).
Podemos então questionar a necessidade que Orwell apresentou de
transformar a nação “from top to bottom”, quando as coisas
aparentavam alguma tranquilidade e segurança, quando o sistema
político não parecia tão mau quanto isso, em comparação com outros
países europeus. O uso da palavra revolução é também questionável, se
tradições e anacronismos existentes na sociedade britânica continuavam
a subsistir. Orwell, a nosso ver, parecia pouco seguro no delinear do seu
programa, que, como se verifica em The Lion and the Unicorn, aposta-
va em mudanças graduais mas que pouco alteravam o estado de coisas:
It will leave anachronisms and loose ends everywhere, the
judge in his ridiculous horsehair wig and the lion and the
unicorn on the soldier’s cap-buttons. (...) It will group itself
round the old Labour Party and its mass following will be
in the Trade unions, but it will draw into it most of the
middle class and many of the younger sons of the bour-
geoisie. (...) It will disestablish the church, but will not per-
secute religion. (Orwell 1998: XII, 427)
Todavia, num texto como London Letter, Orwell demonstrou opti-
mismo e esperança numa Inglaterra que, mesmo sofrendo as conse-
quências da guerra, mantinha as marcas da cultura popular que a carac-
terizava como uma nação distinta:
We had hell’s own bombing last night, huge fire raging all
over the place and a racket of guns that kept one awake
half the night. But it doesn’t matter, the hits were chiefly
on theatres and fashionable shops, and this morning it is a
beautiful spring day, the almond trees are in blossom, post-
men and milkcarts wandering to and fro as usual, and
down at the corner the inevitable pair of fat women gossip-
ing beside the pillar-box. (Orwell 1998: XII, 478)
O programa político de Orwell apresentava-se consentâneo com a
situação de crise que a Grã-Bretanha enfrentava. Algumas das propostas
48

mostravam validade, sendo os objectivos últimos o progresso da nação e


O SOCIALISMO DE ORWELL: UMA NOVA PROPOSTA SOCIAL EM PLENA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL Elisabete do Rosário Mendes Silva

a igualdade entre classes. Contudo, ao contrário do que Orwell afir-


mara, a estrutura da sociedade continuava bem distinta. Poder-se-iam
apenas atenuar algumas diferenças sociais, mas revelava-se impossível
colmatar por completo o fosso existente entre ricos e pobres. A própria
visão orwelliana da sociedade inseria-se também numa perspectiva
organicista do todo social. A estrutura social implicava padrões norma-
tivos como a estrutura da família, a estrutura das instituições e a organi-
zação da produção. As características nacionais constituíam parte inte-
grante da orgânica da sociedade. As tradições manter-se-iam e a vida
seguiria o seu rumo normal sustentada em valores do passado. A reno-
vação proposta por Orwell parece assim um pouco inconsistente.
No seu programa político, Orwell aproveitou a força do patriotismo,
alegando que os socialistas deveriam usar esse elemento da mitologia
como uma forma de ganhar apoio. Como defensor de um programa
para alterar o estado de coisas numa Inglaterra em crise, Orwell foi con-
siderado o profeta secular do socialismo. O autor tentou comunicar com
os leitores através da sua escrita, instrumento adequado para um discur-
so profético.
Em suma, o socialismo de Orwell apresentou-se como um socialismo
liberal, mas ao mesmo tempo preservando marcas conservadoras, de
um lado Tory, presente na admiração pelo campo, no profundo patrio-
tismo que sempre deixou transparecer nos seus ensaios políticos e na
nostalgia pelo período eduardiano, época que tinha por gloriosa. Esta
oscilação entre a acomodação ao status quo e a intenção romântica de
mudar o mundo constituem, assim, reflexos da complexidade do pensa-
mento de Orwell. No entanto, podemos atribuir-lhe o mérito de ter
guiado sempre a sua vida pela defesa dos mais desfavorecidos, com uma
constante preocupação de tornar clara a sua posição relativamente a
conceitos como nacionalismo, patriotismo, socialismo e carácter
nacional, que constituíram grande parte do seu programa político.

Obras Citadas
Cole, G. D. H. & Postgate, Raymond (1971), The Common People. 1746-1946,
London, Methuen.
Faria, Luísa Leal de (1976), “Owen e o Socialismo Inglês”, Brotéria. Cultura e
Informação, vol. 102, n.º 5/6, Maio-Junho, pp. 532-551.
Hobsbawm, E. J. (1982), A Era das Revoluções 1789-1848, trad. António
Cartaxo, Lisboa, Editorial Presença.

49
Ingle, Stephen (1993), George Orwell. A Political Life, Manchester, Manchester

O SOCIALISMO DE ORWELL: UMA NOVA PROPOSTA SOCIAL EM PLENA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL Elisabete do Rosário Mendes Silva
University Press.
Kramnick, Isaac (1972), “Reflections on Revolution: Definition and
Explanation in Recent Scholarship” in History and Theory, II, pp. 26-63.
Laybourn, Keith (1997), The Rise of Socialism in Britain. 1881-1951,
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McBriar, A. M. (1966), Fabian Socialism & English Politics 1884-1918,
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Meyers, Jeffrey (2000), Orwell. Wintry Conscience of a Generation, New York,
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London, Secker & Warburg, 20 vols.
Pelling, Henry (1965), Origins of the Labour Party 1880-1900, Oxford,
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Shadwell, Arthur (1987), The Socialist Movement, 1824-1924, London, Philip
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Smyer, Richard I. (1979), Primal Dream and Primal Crime. Orwell’s
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Missouri Press.
Tholfsen, Trygve (1979), Working Class Radicalism in Mid-Victorian England,
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Thompson, David (1950), England in the Nineteenth Century,
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Thompson, Dorothy (1984), The Chartists. Popular Politics in the Industrial
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Tilly, Charles (1996), As Revoluções Europeias 1492-1992, trad. Eduardo
Nogueira, Lisboa, Editorial Presença.
Woodcock, George (1975), “George Orwell, 19th Century Liberal” in Jeffrey
Meyers (ed.), George Orwell. The Critical Heritage, London and Boston,
Routledge & Kegan Paul, pp. 384-388.
Zwerdling, Alex, Orwell and the Left, New Haven and London, Yale University
Press, 1974.
50
O SOCIALISMO DE ORWELL: UMA NOVA PROPOSTA SOCIAL EM PLENA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL Elisabete do Rosário Mendes Silva
ADRIANA ALVES DE PAULA MARTINS
UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA (VISEU)

A Resistência à (Des)ordem do
Mundo ou a Dimensão Ético-Política
da Escrita de George Orwell
What is done with the facts is what matters.
Gore Vidal, United States. Essays 1952-1992

51
1.

A RESISTÊNCIA À (DES)ORDEM DO MUNDO OU A DIMENSÃO ÉTICO-POLÍTICA DA ESCRITA DE GEORGE ORWELL Adriana Alves de Paula Martins
Dois anos após ter publicado Animal Farm (1945), George Orwell
publicou um ensaio sintomaticamente intitulado “Why I Write”. Neste
texto, Orwell indaga sobre a evolução do seu projecto literário em
função da reflexão sobre quatro grandes motivos que, segundo ele,
impulsionam um escritor a escrever prosa: simples egoísmo, entusiasmo
estético, impulso histórico e propósito político. Afirmando que estes
motivos variam consoante o autor e o momento da produção, Orwell
avalia a sua própria escrita, reconhecendo a influência decisiva do
impulso histórico e do propósito político na sua produção literária.
Interessante é observar, desde logo, que estes dois motivos sintetizam
duas dimensões fundamentais das políticas de representação
orwellianas, que não podem ser dissociadas uma da outra. Trata-se das
dimensões epistemológica e ideológica, correspondendo a primeira ao
desejo do escritor de registar e dar a conhecer os eventos como eles são
e a segunda à necessidade de o autor assumir uma determinada atitude
política que inevitavelmente implica um posicionamento ideológico pe-
rante o conteúdo do que escreve e a forma como escreve. Dimensão ideo-
lógica que revela o compromisso ético de Orwell, que, no mesmo ensaio
de pendor programático, afirma que “every line of serious work that I
have written since 1936 has been written, directly or indirectly, against
totalitarianism and for democratic socialism as I understand it” (Orwell
1975: 440).1
A análise das dimensões epistemológica e ideológica da escrita
orwelliana anteriormente enunciadas torna-se ainda mais significativa
quando Orwell as associa à componente de elaboração estética da escri-
ta, o que me leva a considerá-las como linhas directivas fundamentais
que informam a evolução das políticas de representação do escritor. Ao
afirmar que “what I have most wanted to do throughout the past ten
years is to make political writing into an art” (440) e, quase no fim do
ensaio, que “Animal Farm was the first book in which I tried, with full
consciousness of what I was doing, to fuse political purpose and artistic
purpose into one whole” (442), Orwell localiza em Animal Farm um
momento marcante de encontro do escritor com a sua própria voz,
abrindo a aparentemente inofensiva “fairy story”, que, para muitos, era
um livro destinado ao público infanto-juvenil, um novo ciclo no projec-
to ficcional orwelliano, que atingiu o seu ponto máximo com a elabo-
ração de Nineteen Eighty-Four (1949).2
É justamente em Animal Farm que concentro a minha atenção neste
trabalho, na medida em que considero que Orwell, numa era definitiva-
52

mente política,3 encontrou na fábula um subgénero literário ideal para


A RESISTÊNCIA À (DES)ORDEM DO MUNDO OU A DIMENSÃO ÉTICO-POLÍTICA DA ESCRITA DE GEORGE ORWELL Adriana Alves de Paula Martins

discutir temas polémicos e incómodos como a injustiça, a desigualdade


social e a perseguição política numa época de francos constrangimentos
ideológicos. Por outras palavras, numa era totalitária, em que os
escritores eram levados a assumir posições político-partidárias perante
um público leitor, muitas vezes, alienado e mesmo apolítico, Orwell
tirou partido do registo alegórico da fábula para conciliar o seu engaja-
mento político (enquanto cidadão preocupado com os destinos do bem-
-estar da humanidade) com a necessidade de desmascarar o totalitarismo
soviético, encarado por muitos intelectuais, de forma mítica e equivoca-
da, como a solução redentora da esquerda para o caos de um mundo em
ebulição. Nesse sentido, pretendo estabelecer um diálogo intertextual
entre Animal Farm e alguns dos ensaios de Orwell, que foram escritos
anterior ou posteriormente à publicação da fábula, para mostrar como
a voz crítica do Orwell ensaísta se projecta num enredo ficcional, cen-
trado na rebelião dos animais de uma fazenda contra a exploração dos
humanos. O meu objectivo é mostrar como Animal Farm, enquanto
obra ficcional, reflecte as preocupações do Orwell ensaísta, só que com
um grau mais apurado de eficácia pragmática (e aqui não me refiro ape-
nas ao público infanto-juvenil), tendo em conta o carácter didáctico e
transtemporal da fábula, de onde releva a dimensão ética da escrita de
Orwell.4

2.
Começo a minha reflexão sobre a importância de Animal Farm no
conjunto da obra de Orwell, tendo por base um ensaio intitulado “The
Prevention of Literature” que veio a lume após a publicação de Animal
Farm. Neste texto, Orwell discute a função da literatura numa era tota-
litária, indagando sobre o papel do artista, em geral, e do escritor, em
particular, na resistência à (des)ordem estabelecida pelos regimes tota-
litários. Para Orwell, o escritor deve lutar contra as manipulações das
máquinas de propaganda dos regimes de força, assumindo um papel re-
levante na história, a fim de evitar as mitificações, distorções e silêncios
da historiografia (Ricoeur 2000) que ocorrem consoante as necessidades
das classes dirigentes nas ditaduras. Orwell confere, dessa forma, ao
texto literário um potencial de resistência e de emancipação, que é infor-
mado pelos valores axiológicos do escritor, que são projectados nas
dimensões epistemológica e ideológica do texto literário.
Curiosamente, apesar de ter sido publicado posteriormente a Animal
Farm, o ensaio em causa poderia ser encarado como uma espécie de

53
plano a partir do qual a fábula teria sido construída, dada a coincidên-

A RESISTÊNCIA À (DES)ORDEM DO MUNDO OU A DIMENSÃO ÉTICO-POLÍTICA DA ESCRITA DE GEORGE ORWELL Adriana Alves de Paula Martins
cia de temas abordados. Se, por um lado, não importa, no âmbito deste
trabalho, comprovar a pré-existência de um texto em relação ao outro,
por outro lado, não deixa de ser interessante observar que o ensaio
surge, ainda que num outro registo, como a recriação da fábula, sobre-
tudo no que diz respeito à referência aos artifícios utilizados pelas clas-
ses dirigentes a fim de se manterem no poder, destacando-se, de entre
muitos, a empresa do que Orwell denomina “mentira organizada”,
responsável pelas distorções e silêncios da história. Neste contexto, é
oportuno recuperar a questão da eficácia pragmática do ensaio e da
fábula, tendo em mente tanto o papel do escritor quanto o do texto
literário na luta contra as ditaduras.
Importa aqui retornar aos ensinamentos de Alex Zwerdling (1974:
193), que justifica a opção de Orwell em abandonar tanto os romances
quanto os ensaios produzidos na década de 1930, enquanto textos de
cariz realista, frutos da observação directa e da experiência dos eventos,
pela necessidade do escritor de encontrar “a mode of expression that
acted on some deeper and more primitive level of consciousness than
realism or documentary had done”. Na sua análise de possíveis expli-
cações para a experimentação de Orwell de diferentes géneros na déca-
da de quarenta, Zwerdling contempla as emoções do potencial público
leitor, ao afirmar que “Orwell’s fables in Animal Farm and Nineteen
Eighty-Four exploit an equally powerful emotion: the fear that one’s
worst nightmares might come true” (Zwerdling 1974: 195). Emoção que
reforça o carácter didáctico, epistemológico e ideológico das fantasias
orwellianas ao transformá-las numa espécie de “cautionary tales (...) that
continue to exist in the back of the mind, ready to be revealed whene-
ver something in the actual world threatens to make them come true”
(ibidem: 195). A fábula de cariz fantástico surge, dessa forma, e ainda
segundo Zwerdling, como “the inevitable genre for someone drawn
both to the implicit method of fiction and the explicit statement of the
essay (…), a form controlled by thematic urgency yet expressing itself in
images, a form that directed the reader’s attention to meaning rather
than to plot” (ibidem: 196).
No excerto que acabo de citar, destaco a primazia que Zwerdling
concede, nos textos ficcionais da década de quarenta, ao sentido em
detrimento da trama. Ao contrário de Zwerdling, defendo que o enredo
das ficções orwellianas, elaboradas nos dez últimos anos de vida do
autor, ilumina, ou seja, põe em evidência o sentido das convicções políti-
cas do escritor, o que faz com que o tom do Orwell ensaísta ecoe na
54

fábula. Por outras palavras, o potencial leitor de Orwell até se pode


A RESISTÊNCIA À (DES)ORDEM DO MUNDO OU A DIMENSÃO ÉTICO-POLÍTICA DA ESCRITA DE GEORGE ORWELL Adriana Alves de Paula Martins

esquecer das opiniões do autor nos ensaios, mas não se esquece dos mes-
mos princípios discutidos em ficções como Animal Farm ou Nineteen
Eighty-Four. Prova disso é a diferença de grau na repercussão pragmáti-
ca dos tópicos coincidentes já referidos em Animal Farm e em “The
Prevention of Literature”.
As preocupações do Orwell ensaísta projectam-se igualmente em
Animal Farm quando se consideram dois outros ensaios. Começo por
“Politics vs. Literature”, texto que veio a lume em 1946, portanto, após
a publicação da fábula, mas que permite compreender a opção de
Orwell por aquele tipo de ficção de cunho alegórico em detrimento da
objectividade característica do ensaio. O que releva do texto é a admi-
ração de Orwell por Jonathan Swift e pela sua verve persuasiva, mordaz
e severa na denúncia à tirania no século XVIII e, de forma particular,
por Gulliver’s Travels. Se é verdade que Orwell critica, no referido
ensaio, Swift em muitos aspectos (é preciso não esquecer que, para
Orwell, Swift estava longe de ser um escritor liberal), por outro lado, a
elaboração de Animal Farm faz lembrar o carácter alegórico de
Gulliver’s Travels e de outros textos do grande prosador inglês do sécu-
lo XVIII. Não é exagerado reconhecer que Swift é uma das influências
marcantes na escrita de Orwell quer como ficcionista, quer como ensaís-
ta, aproximando Orwell, no fim do ensaio, o talento do escritor da sua
convicção, ou seja, para Orwell, o talento do escritor reside também na
sua convicção e, como tal, no seu sentido ético. Tal aproximação enfa-
tiza a importância da consciência histórica do escritor e do seu talento
em dar a conhecer ao potencial leitor de uma ficção alegórica e
aparentemente absurda uma verdade escondida, através da sua subver-
são, processo que informa claramente a elaboração de Animal Farm,
como será visto a seguir.5 Mais do que tudo, a supracitada aproximação
chama a atenção para o potencial transformador e interventor do texto
literário na história.
O segundo ensaio que permite compreender como a fábula repre-
senta a elaboração estética refinada das ideias do Orwell ensaísta é
“Notes on Nationalism”, texto publicado em 1945, portanto, no mesmo
ano em que a fábula foi do domínio público. Mesmo que o volume
Animal Farm tenha sido escrito entre 1943 e 1944, faz sentido encarar
“Notes on Nationalism” como uma espécie de caderno de notas, no qual
é possível identificar a estrutura do enredo de Animal Farm. Refiro-me,
mais especificamente, ao conceito de nacionalismo proposto por Orwell:

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By “nationalism” I mean first of all the habit of assuming

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that human beings can be classified like insects and that
whole blocks of millions or tens of millions of people can
be confidently labelled ‘good’ or ‘bad’. But secondly – and
this is much more important – I mean the habit of identi-
fying oneself with a single nation or a single unit, placing it
beyond good and evil and recognizing no other duty than
that of advancing its interests. (…) Nationalism (…) is
inseparable from the desire for power. Nationalism is
power-hunger tempered by self-deception. Every national-
ist is capable of the most flagrant dishonesty, but he is also
(…) unshakably certain of being in the right. (Orwell 1975:
281-283)
Segundo Orwell, as notas sobre o nacionalismo poderiam ser apli-
cadas a qualquer “-ismo” (comunismo, anti-semitismo, pacifismo, entre
outros), o que me permite aplicá-las ao “Animalismo” postulado pelos
animais revoltosos em Animal Farm. Mesmo não sendo o meu objecti-
vo analisar a fábula em detalhe, lanço mão do ensaio em questão para
demonstrar como Orwell soube tirar partido da ficção para criticar o
totalitarismo de forma transtemporal, o que potencia, ainda mais, o
alcance pragmático da fábula, sobretudo quando se considera que o
texto ficcional problematiza uma questão fundamental em qualquer
regime totalitário: a questão da manipulação da memória. Para exami-
nar como a memória é problematizada ideologicamente na fábula,
recorro às regras enunciadas por Orwell como sendo comuns a qualquer
nacionalismo: (i) a obsessão; (ii) a instabilidade; e (iii) a indiferença à rea-
lidade. É importante lembrar que o nacionalismo é apresentado, no
ensaio, como um sistema ideológico organizado, que encara a história
como uma sucessão de ciclos de poder em que os nacionalistas estão em
permanente tensão com todos os potenciais “rivais” que ameaçam ou
podem vir a ameaçar a sua permanência no poder, pelo que os últimos
devem, a todo o custo, ser neutralizados ou mesmo eliminados.
A obsessão informa, desde logo, os princípios do Animalismo, pois,
pouco antes de morrer, num discurso aos animais, Old Major sintetizou
as regras que deviam nortear o comportamento dos animais na sua luta
pelo fim da exploração perpetrada pelos humanos, transformando os
animais em seres iguais, pelo que tudo o que podia ser conotado com
uma característica humana devia ser banido. Tais regras visavam man-
ter a unidade, a todo o custo, dos animais em prol do bem comum,
sendo interessante observar como Orwell, ao longo da fábula, mostra
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como os princípios do Animalismo são progressivamente deturpados


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pelos porcos em função do seu desejo de controlo e manutenção do


poder, o que acaba por culminar na adopção e reprodução de compor-
tamentos tipicamente humanos inicialmente rejeitados. O que Orwell
pretende mostrar é que qualquer revolução pode ser desvirtuada nos
seus princípios básicos em função da sede de poder, sendo este, em
grande parte, alimentado pela ignorância em que são mantidos todos
aqueles que não pertencem à classe dirigente. Daí compreender-se que,
na fábula, apenas os porcos soubessem ler e escrever como os humanos,
reinando a iliteracia entre os demais animais, o que permitia que os por-
cos mudassem o código de regras do Animalismo à medida das suas
necessidades.
Segundo Orwell, a obsessão diz respeito à necessidade do naciona-
lista de afirmar a sua superioridade, o que fica patente, desde logo, na
subtileza da canção ensinada aos demais animais por Old Major (nunca
é demais recordar que foram os outros porcos que transformaram as
ideias de Old Major num sistema ideológico estruturado). Trata-se de
“Beasts of England”, cuja estrutura e conteúdo fazem lembrar, em
grande medida, o famoso poema de Percy Shelley intitulado “A Song:
Men of England”, no qual o poeta romântico convocava os homens e
mulheres trabalhadores de Inglaterra a lutarem contra a tirania e a
exploração da aristocracia. Importa salientar que o hino, bem como
outros símbolos, como a bandeira e a arma de Jones, entre outros, são
transformados em ícones míticos que são utilizados nas celebrações ofi-
ciais. Estas visavam, no início da narrativa, comemorar a superioridade
dos animais em relação aos homens, mantendo a coesão dos animais e
justificando a necessidade de qualquer esforço suplementar no trabalho
na fazenda. O valor ideológico das celebrações, no entanto, vai sendo
alterado ao longo da narrativa, sobretudo em função do poder crescente
dos porcos, que necessitavam de justificações para dominarem os
demais animais e para legitimarem as regalias de que dispunham,
regalias que progressivamente os aproximam do comportamento dos
humanos. As celebrações, a certo momento, chegam mesmo a ser uti-
lizadas para desviar a atenção das dificuldades do quotidiano na fazen-
da, iludindo os animais quanto ao seu estatuto de igualdade perante os
demais.
A obsessão pela superioridade (que atinge o seu expoente máximo
com os porcos) está intimamente relacionada com a segunda caracterís-
tica do pensamento nacionalista. A instabilidade diz respeito à transfe-
rência de lealdades nacionalistas, na medida em que tudo aquilo que foi

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valorizado pode, para os nacionalistas, passar a ser detestado. Na fábu-

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la, o exemplo mais flagrante da instabilidade nas lealdades nacionalistas
é a transformação de Snowball num bode expiatório.6 Por outras
palavras, ao fazer frente a Napoleon na luta pela liderança dos animais
e ao destacar-se pela sua heroicidade na “Battle of the Cowshed”,
Snowball precisava de ser destruído, pois, de outra forma, o valor e o
poder de Napoleon seriam ofuscados. Necessário é lembrar a importân-
cia da problematização do culto da personalidade na fábula, através da
modelização ficcional de Napoleon.
A obsessão e a instabilidade estão, por sua vez, na estreita dependên-
cia da indiferença em relação à realidade. A indiferença permite que as
maiores atrocidades sejam cometidas em nome da causa nacionalista,
radicando tal sentimento na crença dos nacionalistas de que o passado
pode e deve ser alterado quando necessário. A máquina de propaganda
nacionalista é suportada, dessa forma, pela empresa da mentira organi-
zada, referida por Orwell em vários ensaios e, de forma grandiloquente,
em Nineteen Eighty-Four. A indiferença dos nacionalistas em relação à
realidade denota a fragilidade da condição de artefacto do próprio real
e a sua manipulação em função da ignorância de muitos dos seus
seguidores. Exemplo emblemático é, já no final do livro, após o choque
dos animais ao verem os porcos andando nas suas patas traseiras e agin-
do como se fossem humanos, a leitura que Benjamin faz do que estava
escrito na parede onde ficavam os sete mandamentos do Animalismo:
All animals are equal
But some animals are more
Equal than others. (Orwell, 1983a: 63)
3.
Iniciei a minha reflexão sobre os ecos do Orwell ensaísta na fábula
Animal Farm através do ensaio intitulado “Why I Write” para abordar
as dimensões epistemológica e ideológica da escrita orwelliana. Na ver-
dade, tentei demonstrar que tais dimensões radicam, sobretudo, no sen-
tido ético de Orwell, o que, em parte, justifica o porquê de ele ter encon-
trado a sua voz nas ficções da década de 1940, em que abunda o tom
moral.
É justamente este tom moral (mas não moralista) que me leva a ter-
minar a minha reflexão, completando o que Orwell disse em “Why I
Write” com uma referência encontrada na parte final de “Notes on
Nationalism”. O escritor conclui o ensaio reconhecendo a necessidade
de um “esforço moral” (Orwell 1975: 302) para lidar com os amores e
ódios nacionalistas que habitam cada um de nós, embora, com alguma
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tristeza, constate que poucos são os escritores no seu tempo preparados


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para tal empreitada. Como leitora dos textos de Orwell no limiar de um


novo milénio, sei que é, sobretudo, o seu esforço moral que me faz não
só reflectir sobre os destinos da humanidade, como também encarar
com apreensão a actualidade dos temas discutidos em Animal Farm.
Com isto quero dizer que Orwell, ainda hoje, cerca de cinquenta anos
após a sua morte, resiste, com o seu apurado sentido ético-político, e
através dos seus textos, à desordem do mundo, o que me faz pensar que
talvez o título do meu ensaio poderia ser “Why I Read”.

1 Os itálicos são de Orwell. Todas as citações dos ensaios de Orwell são retiradas do volume inti-
tulado Collected Essays (1975), estando a página onde se encontra o excerto citado indicada no corpo
do texto. Sobre a transformação de Eric Blair em George Orwell e o seu compromisso ético e ideo-
lógico, ver Raymond Williams (1981).
2 Sobre a evolução da obra de Orwell como um todo e a sua clara opção pela fantasia na déca-
da de 1940, ver, entre outros, Raymond Williams (1981) e Alex Zwerdling (1974).
3 A este propósito, cf. o ensaio “Writers and Leviathan” (Orwell 1975: 443).
4 Sobre a recepção de Animal Farm, ver Raymond Williams (1981: 69).
5 A este propósito, cf. o seguinte excerto: “The views that a writer holds must be compatible with
sanity, in the medical sense, and with the power of continuous thought: beyond that what we ask of
him is talent, which is probably another name for conviction. Swift did not possess ordinary wisdom,
but he did possess a terrible intensity of vision, capable of picking out a single hidden truth and then
magnifying it and distorting it” (Orwell 1975: 414).
6 Em Animal Farm, para além de Snowball, há outros animais que foram tratados como bodes
expiatórios. Basta lembrar o episódio do julgamento em que muitos deles foram sacrificados. No
entanto, dada a representatividade do processo de destruição da reputação de Snowball, opto por
particularizar o seu caso.
Obras Citadas
Lee, Robert (1970), Orwell’s Fiction, Notre Dame, University of Notre Dame
Press [1969].
Orwell, George (1983a), Animal Farm, in Orwell, George. Collected Novels,
London, Penguin, pp. 11-66 [1945].
—————, (1983b), Nineteen Eighty-Four, in Orwell, George. Collected
Novels, London, Penguin, pp. 741-925 [1949].
—————, (1975), Collected Essays, London, Secker & Warburg [1961].
Pynchon, Thomas (2003), “The Road to 1984”, in The Guardian, May 3, pp.
13-14.
Ricoeur, Paul (2000), La mémoire, l’histoire, l’oubli, Paris, Seuil.
Sandison, Alan (1974), “Operating in History: Ethics and Aesthetics”, in The

59
Last Man in Europe. An Essay on George Orwell, London and Basingstoke,

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Macmillan, pp. 134-166.
Vidal, Gore (1993), United States. Essays 1952-1992, New York, Random
House.
Williams, Raymond (1981), George Orwell, New York, Columbia University
Press [1971].
Zwerdling, Alex (1974), Orwell and the Left, New Haven and London, Yale
University Press.
SOFIA SAMPAIO
DOUTORANDA DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
BOLSEIRA DA FUNDAÇÃO PARA A CIÊNCIA E A TECNOLOGIA

Recordando Animal Farm e


Nineteen Eighty-Four:
Notas sobre o Anti-utopismo
de George Orwell
Animal Farm e Nineteen Eighty-Four têm sido frequentemente
apontados como representativos da obra de George Orwell. Num estu-

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do crítico recente, Daniel Lea fez notar como os dois textos “comple-

RECORDANDO ANIMAL FARM E NINETEEN EIGHTY-FOUR: NOTAS SOBRE O ANTI-UTOPISMO DE GEORGE ORWELL Sofia Sampaio
ment each other extremely well” (Lea 2001: 11). Não é difícil perceber
porquê: apesar das diferenças formais óbvias (um é uma fábula, o outro,
um romance), Animal Farm e Nineteen Eighty-Four partilham grande
parte dos temas e motivos. Não obstante, em vez de reconhecer um
padrão comum que confirma a consolidação dos interesses sociais e
políticos deste autor, a tendência dominante da crítica tem sido consi-
derar as duas obras em sequência, não raras vezes com o fito de supor-
tar a tese de que, nos últimos anos de vida, Orwell mudara não apenas
de humor, mas de convicções políticas.1
É de notar que estas leituras estão associadas a dois importantes fac-
tores: por um lado, à morte prematura de Orwell no breve espaço de
cinco anos, e alguns meses, da publicação de Animal Farm e Nineteen
Eighty-Four, respectivamente; por outro, talvez de forma mais decisiva,
ao início da Guerra Fria, que trouxe uma radicalização e polarização de
posições, à custa daqueles que, como Orwell, estariam mais inclinados a
desempenhar o papel de “Socratic gad-flies”, nas palavras do biógrafo
Bernard Crick (Crick 1992: 444). Associado a estes dois, há um terceiro
factor: a recepção académica de Orwell que, como John Rodden
demonstrou, num extenso volume dedicado à análise da reputação do
autor, atingiu um ponto de cristalização precisamente na época da
Guerra Fria,2 foi permeável às tendências políticas dominantes (em par-
ticular nos Estados Unidos) e constitui ainda o principal meio de propa-
gação da imagem predominantemente conservadora que, desde então,
tem acompanhado Orwell, dentro e fora dos meios intelectuais e
académicos.
Ao propor reavaliar a atitude de Orwell em relação ao utopismo nas
suas duas obras mais conhecidas (nas quais, basicamente, a reputação
do autor tem estado assente), este artigo pretende trazer a lume o modo
silencioso, mas nem sempre subtil, através do qual as formações políti-
cas da Guerra Fria lograram insinuar-se na interpretação destes textos.
Daí que uma leitura de Animal Farm que tenha em linha de conta a
questão das intenções do autor e os problemas estruturais do texto
(sobretudo em redor da problemática do género literário) nos pareça
crucial para compreender os limites e o valor da ambiguidade em que a
obra tem sido tão completamente encerrada. Para além disso, face à
existência de comentários explícitos de Orwell sobre o assunto, em
grande parte negligenciados pela crítica, bem como aos recentes
esforços teóricos que têm procurado refinar e redefinir os conceitos de
distopia e anti-utopia, argumentaremos que Nineteen Eighty-Four é
62

mais aptamente descrito como uma distopia do que, como frequente-


RECORDANDO ANIMAL FARM E NINETEEN EIGHTY-FOUR: NOTAS SOBRE O ANTI-UTOPISMO DE GEORGE ORWELL Sofia Sampaio

mente tem sido o caso, uma anti-utopia. Assim sendo, em vez de uma
declaração de conformismo, talvez Nineteen Eighty-Four possa final-
mente ser lido como uma crítica construtiva da utopia e da revolução, e
não como expressão da rejeição pura e simples do utopismo (que o
termo “anti-utopia” parece, sem dúvida, mais susceptível de sugerir).

* * *

A crítica tem sido unânime em considerar Animal Farm e Nineteen


Eighty-Four expoentes máximos da obra de Orwell. A versão fabulada
da Revolução Russa, bem como a história do sofrimento atroz de
Winston Smith sob o braço de ferro do Big Brother, cedo ultrapassaram
o seu autor e adquiriram reconhecimento internacional. Na medida em
que retratam sociedades projectadas, ambas as obras são centrais para a
compreensão das ideias de Orwell sobre a utopia. A maior parte dos
estudos tem-se concentrado na análise das continuidades e rupturas das
duas obras, com o fim de avaliar o desenvolvimento do pensamento
político do autor (Lea 2001: 11). Daniel Lea entende-as também no con-
texto mais geral de uma viragem na tradição utópica “from idealised
and positive visions of the future to bleak and visceral projections” (Lea
2001: 43), fazendo eco de outros teóricos da utopia, como Krishan
Kumar e Tom Moylan (Kumar 1987; Moylan 2000). Todavia, um seg-
mento significativo da crítica orwelliana não hesita em apresentar a
sucessão cronológica das duas obras como evidência da queda gradual,
mas firme, de Orwell no pessimismo.3 Tal parece ser o caso de D. S.
Savage. Num ensaio intitulado “The Fatalism of George Orwell”, este
crítico começa por conceder que a mensagem central de Animal Farm
– “that revolution is futile and Utopia a pipedream” – é ambígua
(Savage 1990: 138). No entanto, essa concessão deixa de existir em
relação a Nineteen Eighty-Four, escrito numa altura em que Savage
acredita que o utopismo de Orwell havia cedido às pressões do pessimis-
mo próprias de um homem moribundo (Savage 1990: 138).4
O biógrafo e analista político Bernard Crick tem sido um acérrimo
opositor desta tese. No seu George Orwell: A Life, Crick rejeita a ideia
de que, nos últimos anos de vida, Orwell se terá rendido ao desencanto
político, e a leitura que faz de Animal Farm e Nineteen Eighty-Four
reflecte essa convicção. Na sua opinião, é possível identificar “an inte-
llectual continuity between the story of the revolution betrayed and the
story of the betrayers”, no sentido em que ambas são movidas e justi-

63
ficáveis à luz da “fome de poder” (“power hunger”, Crick 1992: 450). Os

RECORDANDO ANIMAL FARM E NINETEEN EIGHTY-FOUR: NOTAS SOBRE O ANTI-UTOPISMO DE GEORGE ORWELL Sofia Sampaio
dois livros, acrescenta Crick, podem ser igualmente vistos como repre-
sentando realidades independentes opostas e alternativas (ainda que cor-
relacionadas) – por um lado, uma utopia igualitária fracassada e, por
outro, um inferno criado pelos homens (Crick 1992: 568).
Sendo um trabalho profundamente marcado pela ambiguidade5 –
devido, em especial, ao uso sobreposto de diferentes géneros literários6 e
ao modo irónico prevalecente7 –, Animal Farm tem-se revelado o mais
difícil de classificar. Duas interpretações têm dominado: por um lado, há
os que vêem na obra uma denúncia a todas as revoluções, ao comunis-
mo em particular, tomando-a como expressão evidente de um ponto de
vista conservador. Desde Northrop Frye, que, numa recensão de 1946,
descreveu Animal Farm como “an account of the bogging down of
Utopian aspirations in the quicksand of human nature” (apud Lea 2001:
22), até Christopher Hollis, que o resumiu, dez anos mais tarde, como
“a lesson of despair” (apud Lea 2001: 49), esta perspectiva foi ganhando
popularidade, especialmente nos Estados Unidos. Foi adoptada por
Robert Welch nas York Notes on Animal Farm (publicadas pela
primeira vez em 1980), que permanece um dos exemplos menos subtis
desta visão conservadora. Welch attribui a Orwell, sem quaisquer reser-
vas, a ideia de que a organização hierárquica da sociedade está enraiza-
da na natureza humana, daí que considere a sua obra como inevitavel-
mente presa no anti-utopismo e crescente derrotismo (Welch 1980: 9-
11).
Outros críticos e leitores têm insistido na mensagem positiva da obra.
Raymond Williams detectou na cena final “a moment of gained cons-
ciousness, a potentially liberating discovery” (Williams 1971: 75).
Baseando-se em elementos textuais e em comentários do autor, em par-
ticular na correspondência trocada com o escritor americano Dwight
MacDonald, V. C. Letemendia não parece ter dúvidas de que Animal
Farm “ends on a note of hope” (Letemendia 1998: 21). De acordo com
este crítico, longe de pretender declarar que todas as revoluções são uma
fraude, o objectivo de Orwell ao expor a mentira soviética teria sido, em
última análise, o de revitalizar o movimento socialista (ibidem: 19). Para
Orwell, a Republica Soviética não definia o socialismo (ibidem: 23), mas
podia exercer uma influência positiva tanto na qualidade de advertência
contra abusos e excessos como na de fonte inspiradora de futuras revo-
luções democráticas.
Não há dúvidas de que, em Animal Farm, a revolução começa por
ser algo positivo. Propõe pôr um fim ao quotidiano de dor e miséria
64

objectivas que caracteriza a vida dos animais da exploração. Por outro


RECORDANDO ANIMAL FARM E NINETEEN EIGHTY-FOUR: NOTAS SOBRE O ANTI-UTOPISMO DE GEORGE ORWELL Sofia Sampaio

lado, o sonho de Old Major possui todos os elementos da utopia – desde


a abundância em comida e água fresca a uma vida livre de cuidados
(AF: 7-8)8 – a que foi acrescentada uma componente Marxista, que o
retira do plano transcendental, epitomado pelo país da “Sugarcandy
Mountain” (AF: 10-11), para o colocar no plano imanente, isto é, no
aqui-e-agora da breve vida dos animais. Quando a revolução é final-
mente posta em marcha, é acompanhada de grande entusiasmo em
relação às reformas sociais que se avizinham, e evidencia uma veia
claramente democrática (fazem-se, por exemplo, assembleias gerais, ou
“Meetings” – AF: 19-31). É importante notar que a revolução triunfa na
sua fase inicial. Ecoando a experiência de Orwell na Catalunha anar-
quista de Dezembro de 1936,9 é sem ironia que o narrador de Animal
Farm regista as melhorias que se fizeram sentir imediatamente após a
revolução: “the quarrelling and biting and jealousy which had been nor-
mal features of life in the old days had almost disappeared” (AF: 18). É
grande a motivação: à excepção da égua Mollie, todos participam nos
trabalhos com empenho, altruísmo e honestidade, respeitando os limites
e as capacidades de cada um (AF: 17-18).
Não é necessário determo-nos nos pormenores, sobejamente conhe-
cidos, da tomada de poder contra-revolucionária de Napoleon, pródiga
em exemplos de autocracia, brutalidade, intimidação e mentira.
Quando chegamos ao último capítulo, é-nos dito que, com o desapare-
cimento das gerações mais velhas (de entre os “lower animals”, apenas
Benjamin e Clover sobrevivem), a revolução não é mais do que “a dim
tradition” (AF: 85). Apesar da prosperidade material alcançada, ne-
nhum animal, à excepção dos porcos, obteve algum benefício.
Frugalidade e trabalho árduo são celebrados como o estilo de vida a
seguir pelos primeiros, enquanto luxo e lazer se tornam no apanágio
cada vez menos discreto dos últimos (AF: 86). Finalmente, os princípios
do Animalismo foram abandonados e substituídos por um pesado sis-
tema burocrático (AF: 86). No final, é um sentimento de orgulho
“nacional”, e não a vivência numa comunidade partilhada, que parece
exclusivamente unir os animais (AF: 87).
A grande questão que Animal Farm coloca é, sem dúvida, “por que
é que a revolução falhou?” Será que Animal Farm é uma reflexão sobre
a boa revolução traída, ou será antes uma denúncia irónica (alguns diri-
am, cínica – em qualquer dos casos, quietista) de todas as revoluções e,
por extensão, do próprio impulso revolucionário? O facto de a obra mis-
turar dois planos distintos – o plano da generalização moralista e o

65
plano dos acontecimentos reais, específicos e identificáveis – por outras

RECORDANDO ANIMAL FARM E NINETEEN EIGHTY-FOUR: NOTAS SOBRE O ANTI-UTOPISMO DE GEORGE ORWELL Sofia Sampaio
palavras, o facto de combinar alegoria e história, torna difícil e hesitante
qualquer resposta.10 Sabemos que Orwell era um crítico feroz da
Revolução Russa. Todavia, numa carta dirigida a Dwight MacDonald,
o autor também sublinha que o alvo da sua crítica haviam sido todas as
revoluções que fossem dirigidas por “unconsciously power-hungry peo-
ple”, que, inevitavelmente falhariam na implementação de mudanças
estruturais profundas. Este tipo de revolução estaria condenado a
enveredar no sentido de uma mudança de patrões, não da ordem social
(apud Letemendia 1998: 24).
Apesar de tudo, a crítica Lynette Hunter avançou uma resposta, que
atribui o fracasso da revolução, não apenas à forma acrítica como os
animais recebem a visão utópica de Major, mas a tendências originais,
inerentes a essa visão: “His insistence [de Major] on a unity achieved
through acceptance denied the possibility of the animals learning how to
reassess the situation. The promised utopia was another absolute that
cut out concepts of bettering their lives” (Hunter 1998: 44).
Por outras palavras, no momento em que a utopia entra no fluxo da
história, o seu carácter unitário e estático revela-a incapaz de responder
a novas situações. Para Hunter, isso está patente na forma como os ani-
mais se mantêm fiéis à visão que receberam, deixando, entretanto, de
compreender o que se está realmente a passar. A única coisa que lhes
resta são as frases propagandísticas, ou “stirring phrases”, às quais se
agarram nos momentos de crise e dúvida, e que, nas palavras de Hunter,
“can be repeated but which get them nowhere” (Hunter 1998: 44). A
fábula, conclui Hunter, serve desse modo para pôr a nu “what can go
wrong with utopian visions” (Hunter 1998: 44). Hunter tem razão em
salientar a passividade desconcertante dos animais (cujas dimensões
hiperbólicas alimentam a vertente satírica do livro). Porém, ao percep-
cionar a obra como “not utopian” (apud Lea 2001: 52), a autora deixa
de reconhecer aquele que é, afinal, o facto central da intriga: o comple-
to abandono da utopia por parte dos porcos. A alteração gradual das
“stirring phrases” (e não a sua preservação em estado imutável) vem
com regularidade lembrar-nos esse importante pormenor: um a um,
todos os mandamentos originais, incluindo a versão truncada e deturpa-
da do slogan das ovelhas, são modificados, a fim de acomodarem os
interesses pessoais da elite suína. Como Daniel Lea reflectiu, na medida
em que sugere a possibilidade de melhoramentos sociais através de “co-
llective responsibility and action”, Animal Farm é uma obra animada
por um sentimento utópico (Lea 2001: 47). Isto pode ser visto numa das
66

passagens mais importantes do livro: imediatamente após o terror cau-


RECORDANDO ANIMAL FARM E NINETEEN EIGHTY-FOUR: NOTAS SOBRE O ANTI-UTOPISMO DE GEORGE ORWELL Sofia Sampaio

sado pelas purgas, os animais dirigem-se, infelizes, à colina onde continu-


am as obras de construção do moinho. Depois de cantarem “Beasts of
England” três vezes, Squealer, o astuto propagandista do regime,
aparece para anunciar que o hino da revolução fora abolido. A utopia
deixara de ser necessária, acrescenta, pois a revolução estava concluída
(AF: 59). Este é o momento mais negro da obra, mas também aquele em
que os animais mais se aproximam de uma tomada de consciência da
sua situação. Daqui para a frente, tendo falhado essa consciência, bem
como os actos de resistência que lhe estariam associados, e tendo-lhes
sido formalmente negada a crença numa utopia terrena, os animais
pouco têm a esperar. A história foi cancelada, e a revolução sucumbe
perante uma versão oca e trocista de utopia.

* * *

A última obra de Orwell, Nineteen Eighty-Four, viria a intensificar a


controvérsia iniciada por Animal Farm. À excepção da história de amor,
os dois enredos ecoam-se mutuamente. Todavia, a transição de uma
fábula de animais, alegórica e impessoal, para a forma mais introspecti-
va e “séria” do romance só poderia resultar numa visão mais negra.
Nineteen Eighty-Four é a projecção que Orwell faz para um futuro
próximo (uns meros 35 anos em relação ao seu tempo)11 dos tumultuosos
acontecimentos que afectaram a primeira metade do século vinte – da
Revolução Russa ao fascismo, passando pelo nazismo e a Segunda
Guerra Mundial. O romance retrata uma sociedade completamente
dominada por um estado-polícia autocrático. O poder está concentrado
nas mãos de alguns burocratas e políticos (o “Inner Party”) que per-
fazem menos de dois por cento do total da população. Acima do partido
há apenas o Big Brother, o rosto sem corpo (“disembodied” – NEF:
216)12 do Partido. O regime, que o seu maior detractor, Emmanuel
Goldstein, apelidou de “oligarchical collectivism” (NEF: 191), combina
os avanços tecnológicos do mundo moderno (especialmente no campo
da comunicação e das tecnologias de informação) com repressão,
nacionalismo, militarismo e vigilância, com vista a viabilizar e perpetu-
ar o exercício de poder total sobre todos os cidadãos.
É neste cenário de extrema falta de esperança que encontramos o
protagonista de trinta e nove anos, Winston Smith, um membro
inteligente e trabalhador dos escalões inferiores do Partido, ou “Outer
Part”, que decide revoltar-se contra o sistema. O seu acto de rebelião

67
está, no entanto, condenado ao fracasso: a partir do momento em que

RECORDANDO ANIMAL FARM E NINETEEN EIGHTY-FOUR: NOTAS SOBRE O ANTI-UTOPISMO DE GEORGE ORWELL Sofia Sampaio
comete “thoughtcrime”, Winston está ciente do facto de que a
“Thought Police” virá no seu encalço (NEF: 21). Desde as primeiras
páginas, domina um sentimento de trágica inevitabilidade, que é em
parte responsável pela recepção anti-utópica que o romance mereceu.
Ao contrário de Animal Farm, Nineteen Eighty-Four foi maioritaria-
mente lido como um ataque ao estalinismo, comunismo, socialismo, e
até mesmo ao Partido Trabalhista (o partido do Big Brother recebe o
famigerado nome de “Ingsoc”, a forma corrompida em “Newspeak” de
“English Socialism”), a ponto de ser rejeitado (ou, dependendo da pers-
pectiva, aclamado) como uma apologia do capitalismo e do imperialis-
mo. Até mesmo Fred Warburg, o editor de Orwell, comentaria que o
livro representava “a cool million votes to the Conservative Party” e
podia muito bem acomodar um prefácio assinado por Winston
Churchill (apud Crick 1992: 567).
Não obstante, a pedido de Orwell, Warburg emitiu um comunicado
de imprensa refutando as alegações cada vez mais populares de que o
romance pretendia ser uma profecia anti-socialista. A declaração soa
como uma defesa das intenções do autor. Esclarece que Nineteen
Eighty-Four havia sido escrito para parodiar as tendências políticas,
sociais e económicas que se estavam a formar no Ocidente, e não ape-
nas noutras partes do mundo.13 De acordo com o mesmo documento, os
alvos de Orwell teriam sido dois: por um lado, a ameaça de guerra
nuclear total, mesmo se nenhuma das partes inimigas pretendesse con-
cretizá-la; por outro, a inquietante permeabilidade dos intelectuais a
ideias totalitárias (apud Crick 1992: 566). O livro é também descrito
como um alerta contra a emergência na cena geopolítica de “super-esta-
dos”. Aponta para a possibilidade de, na ânsia de se auto-definir como
anti-URSS, o “super-estado” anglo-americano (Oceania) poder vir a
enveredar por formas antidemocráticas cada vez mais nocivas – uma
possibilidade que Orwell acreditava tornar-se mais provável à medida
que as gerações mais novas, que iam deixando de ser “nutridas” numa
tradição liberal, fossem substituindo as mais velhas (Crick 1992: 566). O
mundo ocidental é, deste modo, em última análise, o grande destinatário
da “moral” do livro, que pode ser resumida nas seguintes palavras:
“Don’t let it happen. It depends on you” (apud Crick 1992: 565).
O facto de Nineteen Eighty-Four ser geralmente incluído na tradição
literária anti-utópica – entre autores como Zamyatin e Huxley – tem-
lhe frequentemente valido o epíteto de anti-utopia (Crick 1992: 448;
Hillegas, apud Russell, 2000: 12-13; Kumar 1987: 382). Orwell referiu-se
68

à obra de várias maneiras, nomeadamente, como “a Utopia in the form


RECORDANDO ANIMAL FARM E NINETEEN EIGHTY-FOUR: NOTAS SOBRE O ANTI-UTOPISMO DE GEORGE ORWELL Sofia Sampaio

of a novel” (apud Crick 1992: 551), “a novel about the future” e “a fan-
tasy” “in the form of a naturalistic novel” (apud Crick 1992: 525). É
importante notar que os dois termos, anti-utopia e distopia, são recor-
rentemente usados de forma permutável, significando simultaneamente
o oposto e a negação da utopia (Kumar 2003: 65). E, no entanto, a dis-
tinção entre anti-utopia e distopia é mais do que um preciosismo ou
capricho terminológico.14
Na esteira de críticos como Lyman Tower Sargent, grande impul-
sionador dos Estudos sobre a Utopia que emprestou novo fôlego às
questões teóricas e taxonómicas que se agregam em torno da utopia,
Tom Moylan revisitou estes termos recentemente, num estudo dedicado
à utopia, distopia e ficção científica. Adoptando a principal premissa de
Sargent, segundo a qual “utopian” (aplicado a um texto, comunidade ou
teoria) denota, por definição, uma “força social” que reúne imaginação
e intervenção social (Moylan 2000: 72), Moylan defende (com Sargent)
que “anti-utopian” diz, por conseguinte, respeito a um texto, comu-
nidade ou teoria que é crítico/a do utopismo ou, pelo menos, de uma
determinada utopia (Moylan 2000: 74). Daqui decorre que, como
Vincent Geoghegan lembrou, o verdadeiro oposto da utopia é a anti-
utopia, não a distopia (Geoghegan, 2003: 153).15
Por outro lado, distopia ou, na taxonomia de Sargent, “negative
utopia” (Moylan 2000: 74), deve ser entendida como um fenómeno
exclusivamente imaginário e textual (Moylan 2000: xi; 285, n. 1).
Distopias são narrativas e textos que, ao isolarem e exacerbarem pro-
blemas existentes e tendências negativas, criam mundos que são piores
do que aqueles que conhecemos, localizando-os algures no futuro ou
numa terra distante. Tal como a utopia, também a distopia privilegia
uma abordagem sistémica e totalizante; isto é, os mundos e as
sociedades inventados têm como alvo problemas estruturais e, segundo
Moylan, são por isso mesmo susceptíveis de convidar o leitor a procurar
soluções também elas estruturais (Moylan 2000: xii).
Não é, pois, de surpreender que Moylan reconheça na distopia um
grande potencial crítico. Este autor acredita que, ao ser uma “forma
aberta”, a distopia tem que negociar “the continuum between the Party
of Utopia and the Party of Anti-Utopia” (Moylan 2000: xiii). Se não se
converterem ao último campo (em cujo caso deixariam de ser distopias
para passar a ser anti-utopias), as distopias mover-se-ão entre os dois
pólos, resultando em “anti-utopian dystopias” ou “utopian dystopias”.
Os dois tipos caracterizam-se pela já referida abertura formal, bem

69
como por uma “qualidade utópica subjacente” (Moylan 2000: 133), que

RECORDANDO ANIMAL FARM E NINETEEN EIGHTY-FOUR: NOTAS SOBRE O ANTI-UTOPISMO DE GEORGE ORWELL Sofia Sampaio
é mais ou menos pronunciada dependendo da possibilidade de resistên-
cia e do nível de esperança admitidos no texto.
No entanto, apesar do aparato teórico disponível, Animal Farm e
Nineteen Eighty-Four continuam a resistir a classificações definitivas. As
referências que Moylan faz a Orwell são relativamente escassas.
Começa por referir-se a Nineteen Eighty-Four como uma “distopia clás-
sica” (Moylan 2000: xi). Numa breve discussão do romance, apresenta-
o então como um exemplo da “tendência textual do pessimismo anti-
utópico” (Moylan 2000: 161). Depois de apontar, com razão, para o
facto de o enredo não contemplar qualquer possibilidade de resistência,
Moylan acrescenta que as escolhas de Orwell devem ser, todavia, enten-
didas em relação ao “contexto muito específico” em que a obra foi escri-
ta:
Orwell’s dystopia is therefore an eloquent example of one
that leans toward an anti-utopian pessimism; however, it is
one that was created in a very specific context. Unlike the
conservative writers of overt anti-utopias (…), as several
critics have noted, Orwell sought to counter the utopia-
gone-wrong that embodied the central plan and the
authoritarian mind with what might be called a “critical
anti-utopia,” one that could possibly make people cons-
cious of what might happen and therefore work to avert it.
In other words, he regarded his work as a utopian attack
on what he saw as anti-utopian historical tendencies.
(Moylan 2000: 162, itálicos nossos)
Esta não é, porém, a última palavra do autor sobre o assunto. Se
escrever uma “critical anti-utopia” teria sido a intenção professa de
Orwell, Moylan não obstante conclui que a “virtuosidade pessimista” e
a narrativa obstinadamente anti-utópica do romance acabam por ter o
efeito de “squeez[ing] surplus utopian possibility out of its pages”
(Moylan 2000: 162). Num gesto já típico, também a apreciação deste
crítico acaba por se enredar nas malhas densas da interpretação do
romance (senão da crítica orwelliana). Moylan opta por fazer tábua rasa
das intenções do autor, que, curiosamente, haviam sido cruciais ao edifí-
cio conceptual de Sargent (Moylan 2000: 73-74), e pareciam ocupar um
lugar central no seu argumento.
70

* * *
RECORDANDO ANIMAL FARM E NINETEEN EIGHTY-FOUR: NOTAS SOBRE O ANTI-UTOPISMO DE GEORGE ORWELL Sofia Sampaio

Poderíamos concluir o nosso estudo com a ideia de que Nineteen


Eighty-Four é, de facto, uma “anti-utopia crítica”, como Moylan suge-
riu (o termo parece ter sido cunhado especificamente para este caso,
uma vez que não volta a aparecer no livro); ou, numa linha talvez menos
controversa, que representa um exemplo acabado da “distopia”, tal
como este crítico a definiu, uma vez que teima em permanecer entre as
zonas disputáveis do utopismo e do anti-utopismo sem tender com abso-
luta clareza para nenhuma.16 Ainda que possa contradizer a observação
mais empírica (suportada pelo texto) de “mythic closure” (Moylan 2000:
163), o último termo poderá, pelo menos, fazer justiça às tensões que
Nineteen Eighty-Four liberta quando as várias componentes da obra –
texto (forma e conteúdo), contexto de produção (intenções do autor) e
recepção (crítica orweliana) – são simultaneamente levadas em conta,
sem que se corra o risco de, num acto nominal apenas, remeter o autor
para o campo do anti-utopismo.
A maior parte destes problemas coloca-se também em relação a
Animal Farm, que tem dividido os críticos em moldes muito seme-
lhantes. Para além do conteúdo utópico que foi já discutido, e apesar de
não ser, estritamente falando, uma distopia, Animal Farm contém tam-
bém elementos distópicos. Como tem sido dito com frequência, a
sociedade construída pelos porcos é, de facto, muito próxima da que é
presidida pelo Big Brother. Todavia, porque não dedica a mesma
atenção ao regime anti-utópico dos porcos, não suscita o mesmo
envolvimento dramático, e é contada num tom mais leve (o tom que
muitos de nós conhecemos da infância, das fábulas de Esopo e La
Fontaine), a alegoria de Orwell tem sido menos difícil de definir, se não
como utópica de temperamento, pelo menos como inspirada por um
“sentimento” utópico.
Todas estas dificuldades taxonómicas e interpretativas servem,
acima de tudo, para nos lembrar quão complexas são as atitudes de
Orwell em relação à utopia e ao utopismo. Em The Road to Wigan Pier,
escrito alguns meses antes da Guerra Civil Espanhola, e a propósito de
considerações tecidas sobre o socialismo, Orwell dedicou algumas pági-
nas à questão. Na sua opinião, uma das razões por que as pessoas dese-
javam demarcar-se do socialismo tinha a ver com a associação deste
com a mecanização, o urbanismo e a eficiência. O futuro evocado pelo
socialismo assemelhar-se-ia a um “estado-colmeia” (“beehive state”,
Orwell 2001a: 194), isto é, a uma sociedade excessivamente organizada,

71
onde se verificaria “no disorder, no loose ends, no wildernesses, no wild

RECORDANDO ANIMAL FARM E NINETEEN EIGHTY-FOUR: NOTAS SOBRE O ANTI-UTOPISMO DE GEORGE ORWELL Sofia Sampaio
animals, no weeds, no disease, no poverty, no pain” (Orwell 2001a:
176). O mundo socialista era por isso susceptível de ser visto como exces-
sivamente ordenado e eficiente (Orwell 2001a: 176). Também compor-
tava associações com um outro fenómeno negativo: a mecanização,
receada por muitos como “an increase in human softness” (Orwell
2001a: 181), ou seja, um factor de desumanização. Para a maioria das
pessoas, acrescenta Orwell, a utopia de Wells representava apenas um
atalho para o “brave new world” de Huxley, e eventualmente con-
duziria àquilo que depreciativamente apelidou de “the padded Wells-
world and the brain in the bottle” (Orwell 2001a: 193). Por fim, por
detrás de muitos socialistas estaria “a hypertrophied sense of order”
(Orwell 2001a: 166). Assim, o socialismo estaria a ser rejeitado, não ape-
nas por idealizar “a materialistic Utopia” (Orwell 2001a: 199), mas tam-
bém por parecer impor uma visão ordenadora e única àqueles que pre-
tendia defender. Para muitos socialistas, escreve Orwell, “revolution
does not mean a movement of the masses with which they hope to asso-
ciate themselves; it means a set of reforms which ‘we’, the clever ones,
are going to impose upon ‘them’, the Lower Orders” (Orwell 2001a:
167). Não era, pois, de admirar que o projecto fosse frequentemente
entendido mais como uma ditadura dos “pedantes” (“dictatorship of the
prigs”) do que propriamente do proletariado (Orwell 2001a: 170).
Noutros escritos, Orwell revelar-se-ia mais benevolente com os dois
conceitos, a ponto de reconhecer a dívida do socialismo para com o
utopismo. Num artigo de 1946 para o vespertino The Manchester
Evening News, Orwell define socialista como “a person who believes the
‘earthly paradise’ to be possible” (Orwell 2001b: 422), concluindo,
depois de exprimir cepticismo sobre a viabilidade política do utopismo
no tempo presente (Orwell 2001b: 423), que os defensores da utopia
eram “the true upholders of Socialist tradition” (Orwell 2001b: 424).
E no entanto, entendida como um projecto específico imposto de
cima para baixo, e não como um impulso inspirador de transformação
social, a utopia não seduzia Orwell. Em 1943, escrevendo para o
Tribune sobre o que lhe parecia ser o ressurgimento do pessimismo na
cena política, Orwell defende a necessidade de o socialismo se dissociar
do utopismo. No centro da recomendação está o conceito de perfectibi-
lidade humana, que Orwell vê como o ponto fraco do utopismo e um
alvo fácil para os críticos do socialismo. Melhores resultados seriam con-
seguidos, argumenta, se pudesse ser tornado claro que “Socialism is not
Perfectionist, perhaps not even hedonistic”. Daí a sua conclusão:
72

“Socialists don’t claim to be able to make the world perfect: they claim
RECORDANDO ANIMAL FARM E NINETEEN EIGHTY-FOUR: NOTAS SOBRE O ANTI-UTOPISMO DE GEORGE ORWELL Sofia Sampaio

to be able to make it better” (Orwell 2001b: 217; cf. Orwell 2001b: 422).
A ideia de tornar o mundo melhor não é, decerto, menos discutível
do que a de tornar o mundo perfeito. Todavia, “melhor” permite uma
margem de negociação e ajustamento, e mesmo completa mudança de
direcção, que “perfeito” parece recusar. E é precisamente nesta margem
de negociação que Orwell faz radicar o conceito que dá forma ao seu
utopismo – o “socialismo democrático,” que concebe e abraça como
expressão máxima da união verdadeiramente radical entre igualdade,
liberdade, justiça e democracia.

1 Patrick Reilly é um dos críticos que melhor exploraram os paralelos entre as duas obras. Reilly
vê retrospectivamente o totalitarismo de Nineteen Eighty-Four em Animal Farm, nomeadamente
quando faz convergir a figura de Big Brother com a de Napoleon / Stalin (Reilly 1999: 88). Como
seria de esperar, a análise deste crítico vem reforçar uma leitura anti-utópica de Animal Farm e, por
extensão, de Orwell.
2 Veja-se, por exemplo, Rodden 2000: 9, 28, 29, 50, 404.
3 Como vários críticos fizeram notar (Rodden 2002: 394; Davison em Orwell 2001b: 435, n. 5
e 6), o ensaio de Savage é particularmente hostil a Orwell. Talvez reflicta ainda os sentimentos pes-
soais do autor, que durante a Segunda Grande Guerra esteve envolvido no episódio que opôs paci-
fistas a Orwell. O facto de ser esta a peça que integra o Pelican Guide to English Literature, uma
importante obra de referência, sugere não somente o pobre estatuto que, nos anos oitenta, Orwell
possuiria no meio académico britânico (sobretudo na área da literatura), mas também a popularidade
que as posições de Savage terão adquirido, sobretudo entre as faixas etárias mais jovens (Animal
Farm foi durante muito tempo, e continua a ser, um livro de leitura recomendada no ensino pré-uni-
versitário; chegou por várias vezes a ser adoptado nos exames de A-levels). Veja-se Rodden 2002,
especialmente pp. 382-398.
4 John West (1958, mencionado por Crick 1992: 649, n. 1), Robert Welch (1980) e outros par-
tilham desta posição. De forma mais equilibrada, Daniel Lea também contrasta “[Orwell’s] cynicism
in the final years of his life” com “the optimism he still retained during the writing of Animal Farm”
(Lea 2001: 46).
5 William Empson foi dos primeiros a reconhecer esta dificuldade. Numa carta datada de
Agosto de 1945, avisou Orwell de que o livro, por ser uma alegoria, “means very different things to
different readers” (apud Crick 1992: 491), acrescentando à laia de conclusão: “you must expect to be
‘misunderstood’ on a large scale about [it]” (apud Crick, 1992: 492).
6 O trabalho de Lynette Hunter merece particular atenção a este respeito. Partindo da distinção
entre sátira e alegoria, esta autora defende que a combinação entre os dois géneros em Animal Farm
pode explicar a “doubleness of reading” (apud Lea 2001: 52) que caracteriza a obra, na qual assen-
tará a sua conturbada recepção. Veja-se a conclusão de Hunter: “To read the work as a complex
satire is rewarding. It provides a sound education in the rhetoric of politics, but its conclusion appears
cynical and negative. Only if read simultaneously as allegory does it proffer a positive conclusion”
(apud Lea 2001: 55).
7 Roger Fowler refere-se à “gentle irony” do narrador (Fowler 1995: 178), enquanto Raymond
Williams preferiu falar de “laughing intelligence” e “liberating intelligence” (Williams 1971: 74).
8 Doravante, Animal Farm será referido pela sigla AF. A edição consultada é Orwell 1987.
9 No capítulo inicial de Homage to Catalonia, Orwell escreveu: “(…) so far as one could judge
the people were contented and helpful. There was no unemployment, and the price of living was still
extremely low; you saw very few conspicuously destitute people, and no beggars except the gypsies.
Above all, there was a belief in the revolution and the future, a feeling of having suddenly emerged
into an era of equality and freedom. Human beings were trying to behave as human beings and not
as cogs in the capitalist machine” (Orwell 2001c: 33).

73
10 Williams atribuiu os problemas da obra precisamente à forma de “general fable”, que procu-
ra capturar um acontecimento histórico complexo através de uma fórmula que combina “simplicity

RECORDANDO ANIMAL FARM E NINETEEN EIGHTY-FOUR: NOTAS SOBRE O ANTI-UTOPISMO DE GEORGE ORWELL Sofia Sampaio
and generality” (Williams 1971: 71). Se, por um lado, é incorrecto reduzir Animal Farm à história da
Revolução Russa, é, por outro, verdade que o livro constitui uma poderosa evocação deste aconte-
cimento.
11 A data em que Orwell localizou a acção da obra (que acabou por fornecer o seu título) deve
ser tomada como relativa, ou não tivesse o próprio protagonista, Winston Smith, comentado: “even
the date of the year had become uncertain” (NEF: 44). Uma das principais críticas de Orwell ao uso
manipulador e abusivo que o regime faz do tempo e da história (a ponto de estes perderem todo e
qualquer carácter objectivo) perdeu-se, assim, na divulgação mediática da obra como uma profecia,
em grande parte responsável pela onda de quase histeria que se abateu sobre Nineteen Eighty-Four,
em 1984.
12 Doravante, o romance Nineteen Eighty-Four sera referido pela sigla NEF. A edição consul-
tada é Orwell 2000.
13 Mesmo finda a Guerra Fria, a parcialidade com que Orwell é lido continua a ser surpreen-
dentemente evidente. Escrevendo sobre Orwell no centenário do seu nascimento, a canadiana
Margaret Atwood insiste em chamar a Nineteen Eighty-Four “a satire about Stalin’s Soviet Union”
(Atwood 2003).
14 Trata-se de uma questão de fundo. Como Moylan sugeriu, os autores que continuam a resis-
tir a esta distinção terminológica são provavelmente os que continuam a mover-se “within the
parameters of anti-utopian thought and practice” (Moylan 2000: 74-75).
15 Nas palavras de Geoghegan, a anti-utopia parte do princípio de que o utopismo é “an inher-
ently dangerous activity which will inevitably lead to despotism and human degradation”
(Geoghegan 2003: 152). A anti-utopia (enquanto narrativa ou texto) encontra-se, pois, firmemente
enraizada no anti-utopismo.
16 Em 1994, Lyman Tower Sargent sugeriu o termo “critical dystopia” para nomear textos que
interrogam a sociedade, ao mesmo tempo que evidenciam um conhecimento crítico de outras
distopias. Moylan, porém, reserva o termo para as obras que surgiram somente a partir de finais dos
anos oitenta, que, segundo o autor, apresentam tendências críticas mais evidentes e auto-reflexivas
(Moylan 2000: 187-188).
Obras Citadas
Atwood, Margaret (2003), “Orwell and Me”, The Guardian, June 16
http://books.guardian.co.uk/print/0,3858,4691839-99930,00.html (acedido
em 29/10/2004).
Crick, Bernard (1992), George Orwell: A Life, Harmondsworth, Penguin
[1980].
Davison, Peter (1996), George Orwell: A Literary Life, Houndmills, Macmillan.
Fowler, Roger (1995), The Language of George Orwell, Houndmills,
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Geoghegan, Vincent (2003), “Hope Lost, Hope Regained” [review of Tom
Moylan’s Scraps of the Untainted Sky: Science Fiction, Utopia, Dystopia],
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Hunter, Lynette (1998), “Animal Farm: Satire into Allegory”, in George
Orwell, ed. Graham Holderness, Brian Loughrey and Nahem Yousaf,
Houndmills, Macmillan, pp. 31-46.
74

Kumar, Krishan (1987), Utopia and Anti-Utopia in Modern Times, Oxford,


RECORDANDO ANIMAL FARM E NINETEEN EIGHTY-FOUR: NOTAS SOBRE O ANTI-UTOPISMO DE GEORGE ORWELL Sofia Sampaio

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————— (2003), “Aspects of the Western Utopian Tradition”, History of the
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Lea, Daniel, ed. (2001), Animal Farm. Nineteen Eighty-Four: A Reader’s Guide
to Essential Criticism, Cambridge, Icon Books.
Letemendia, V. C. (1998) “Revolution on Animal Farm: Orwell’s Neglected
Commentary”, George Orwell, ed. Graham Holderness, Brian Loughrey and
Nahem Yousaf, Houndmills, Macmillan, pp. 15-30.
Moylan, Tom (2000), Scraps of the Untainted Sky: Science Fiction, Utopia,
Dystopia, Boulder, Colorado and Oxford, Westview Press.
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————— (2000), Nineteen Eighty-Four, Harmondsworth, Penguin [1949].
————— (2001a), The Road to Wigan Pier, Harmondsworth, Penguin [1937].
—————(2001b), Orwell and Politics, ed. Peter Davison, Harmondsworth,
Penguin.
—————, (2001c), Orwell in Spain, ed. Peter Davison, Harmondsworth,
Penguin.
Reilly, Patrick (1999), “The Utopian Shipwreck”, George Orwell’s Animal
Farm, ed. (with introd.) Harold Bloom, Philadelphia, Chelsea House
Publishers, pp. 61-89.
Rodden, John (2002), George Orwell: The Politics of Literary Reputation, New
Brunswick and London, Transaction Publishers.
Russell, Robert (2000), Zamiatin’s We, London, Bristol Classical Press.
Savage, D. S. (1990), “The Fatalism of George Orwell”, The New Pelican
Guide to English Literature: 8. The Present, ed. Boris Ford, Harmondsworth,
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Welch, Robert (1980), York Notes on Animal Farm, Harlow, Longman.
Williams, Raymond (1971), George Orwell, New York, Columbia University
Press.

75
RECORDANDO ANIMAL FARM E NINETEEN EIGHTY-FOUR: NOTAS SOBRE O ANTI-UTOPISMO DE GEORGE ORWELL Sofia Sampaio
MARIA DO ROSÁRIO LUPI BELLO
UNIVERSIDADE ABERTA

Nineteen Eighty-Four: A História


como Palimpsesto ou a Negação
da Memória como Lugar do Eu

77
1.
Na introdução ao último capítulo do seu livro intitulado Why Orwell

NINETEEN EIGHTY-FOUR: A HISTÓRIA COMO PALIMPSESTO OU A NEGAÇÃO DA MEMÓRIA COMO LUGAR DO EU Maria do Rosário Lupi Bello
Matters, Christopher Hitchens afirma: “Even more than the deceptive
simple question of his ‘Englishness’, Orwell’s posthumous standing as a
representative of truth-telling, objectivity and verification continues to
keep his ideas in play” (Hitchens 2002: 193). Não é certamente por
acaso que são estes três aspectos (dizer a verdade, objectividade e verifi-
cação) que constituem as linhas de força da perpetuação do valor
literário, ideológico e moral da produção criativa (não apenas ficcional,
mas também ensaística e jornalística) de George Orwell. No terrível uni-
verso a que dá corpo a sua obra-prima, Nineteen Eighty-Four, elas
encontram-se claramente expressas, pela negativa, na trilogia dos
“princípios sagrados” impostos pelo Partido: newspeak (ou a impossibi-
lidade de dizer a verdade), doublethink (ou a redução do pensamento a
pura e aleatória subjectividade), the mutability of the past (ou o apaga-
mento da referência, o cancelamento da verificação enquanto verdade
confirmada, prova).
Como todos os seus biógrafos reconhecem, George Orwell era um
homem de palavra e de palavras. Gostava de frisar que sentia, desde
muito novo, a necessidade de registar os pensamentos e emoções através
da escrita, na qual via como fundamental tarefa “dizer a verdade”
(Small 1975:18),1 tendo desenvolvido e “treinado” desde cedo a sua
vocação de escritor, tal como dá a conhecer em “Why I Write”. De
facto, desde o tempo da escola que o pequeno Eric Blair se ocupava com
the making up of a continuous “story” about myself, a sort
of diary existing only in the mind. As a very small child I
used to imagine that I was, say, Robin Hood and picture
myself as the hero of thrilling adventures, but quite soon
my “story” ceased to be narcissistic in a crude way and
became more and more a mere description of what I was
doing and the things I saw. (apud Small 1975: 67-68)
Nesta consciência narrativa da própria vida – que se centra no desejo de
contar uma “história’ contínua”, a qual se torna, cada vez mais, na
descrição daquilo que faz e vê, ou seja, na sucessão de acontecimentos
narráveis, descritíveis – radica em boa parte o fundamento da sua
posição perante a escrita e a própria vida. Se tomarmos aqui o conceito
de narrativa na sua acepção mais lata, mas também mais abrangente e
profunda, ou seja, enquanto lugar por excelência da manifestação da
experiência humana do tempo, ou, para dizer de outro modo, enquan-
78

to estrutura que organiza e torna visível o fenómeno da transformação


NINETEEN EIGHTY-FOUR: A HISTÓRIA COMO PALIMPSESTO OU A NEGAÇÃO DA MEMÓRIA COMO LUGAR DO EU Maria do Rosário Lupi Bello

inevitável,2 então poderemos deduzir, com razoável confiança, acerca


do valor dado por Orwell às coordenadas nas quais o acontecimento se
efectiva: tempo e espaço, cruzados e interligados numa sequência
“crono-lógica” e causal de eventos que revelam um determinado tipo de
ordem e uma necessária finalidade (no sentido de uma direcção em
relação a um fim específico).3
Sem uma clareza sobre esta concepção de “história” (“story”), conti-
da nas palavras de Orwell – uma concepção que assume a narratividade
como manifestação consciente e textual de uma determinada apreensão
da realidade, portanto forma de conhecimento4 – não é possível enten-
der a produção literária deste escritor, a qual alia sempre um propósito
explícita ou implicitamente político (no amplo sentido do bem comum)
a uma aposta na descrição do acontecimento como facto visível e con-
creto (é aquilo que “faz” e “vê”), e portanto portador de um significado
identificável por quem deseje, como ele, olhar. A sua prosa literária,
ainda que reflexiva, não se constitui como discurso especulativo ou teóri-
co, que remeta para a construção de sistemas conceptuais ou abstractos,
pois tal processo escaparia à natureza “concreta”, corpórea, da narrati-
va, que é aquilo que Orwell, antes de mais, persegue.5

2.
Servem estas considerações iniciais para sublinhar o peso que a tem-
poralidade, enquanto experiência da contingência humana, tem na obra
de Orwell, em geral, e na distopia ideológica e anti-totalitária em que
consiste Nineteen Eighty-Four, de modo muito particular. Com o pre-
sente estudo pretendo, precisamente, focar o valor que nessa narrativa é
atribuído ao tempo e ao passado – e ao tempo do passado –, não
enquanto meros repositórios de factos mortos só nostalgicamente relem-
brados – ou deliberadamente “esquecidos” –, mas enquanto matéria
viva do presente, num sentido que muito se aproxima do conceito que
Eliot (autor apreciado e valorizado por Orwell) propõe de tradição: "It
involves (…) the historical sense (…) and the historical sense involves a
perception, not only of the pastness of the past, but of its presence” (Eliot
1975: 37).6
Sobre a importância decisiva desse passado, o Partido totalitário,
omnipresente e omnipotente de Nineteen Eighty-Four não tem dúvidas,
como comprova o seu slogan, repetido até à exaustão: “Who controls
the past controls the future: who controls the present controls the past”

79
(Orwell 1978: 31). A questão não está, portanto, numa desvalorização

NINETEEN EIGHTY-FOUR: A HISTÓRIA COMO PALIMPSESTO OU A NEGAÇÃO DA MEMÓRIA COMO LUGAR DO EU Maria do Rosário Lupi Bello
pura do passado, mas antes num desejo de controlo absoluto sobre ele.
Importa, pois, perceber se e como tal controlo é possível e porque é que
ele se revela tão determinante. O modo é fornecido, quase desde o iní-
cio, pelo protagonista, Winston Smith: “It was quite simple. All that was
needed was an unending series of victories over your own memory”
(Orwell 1978: 31).
Duas expressões desta frase-chave são de importância vital: a série
sem fim de vitórias pessoais, por um lado, e o facto de elas se exercerem
sobre a memória. Comecemos pela segunda noção.
A memória é, de facto, o processo pelo qual o passado é constante-
mente recuperado na narrativa orwelliana de que aqui me ocupo,
através da constante irrupção, no curso normal dos acontecimentos, de
momentos aparentemente oníricos e inócuos, constituídos pelos sonhos,
memórias e “visões” ou antecipações vividos por Winston. É curioso
observar, do ponto de vista narratológico, que se está perante uma nar-
rativa essencialmente singulativa e cronológica, onde constituem
excepção a essa regra geral os referidos sonhos, esses sim, repetitivos e
recorrentes ao longo de toda a história, embora não se possam definir,
em rigor, como verdadeiras analepses, uma vez que não alteram subs-
tancialmente a ordem natural dos eventos. É, além disso, de notar que
eles não se podem descrever – embora incluam também essa signifi-
cação – como meras “lembranças” (no sentido do facto específico que a
memória guardou – remembrance), nem sequer como acto que recolhe
tal informação (como o termo recollection bem exemplifica), mas cons-
tituem, antes, de um modo mais abrangente, verdadeira memoria (no
sentido latino, etimológico da palavra), ou seja, “preservação de expe-
riência passada”, “poder de guardar factos numa mente consciente” e,
simultaneamente, “faculdade” individual de convocar deliberadamente
esses factos.7 São, pois, antes de mais, sinais de uma “capacidade”
especificamente humana e, portanto, consciente e livre. Adiante vere-
mos exactamente quais os principais exemplos dessa operação decisiva
na distopia de Orwell.
Antes, porém, retomemos a expressão acima citada – uma série sem
fim de vitórias sobre essa memória. A expressão parece contraditória
com a definição de memória que acabámos de ver, e não é por acaso.
De facto, por natureza, nada do que é humano é “sem fim”; a narrati-
va, que, como dissemos no início, organiza a experiência humana da
temporalidade, e, portanto, da própria memorização, caracteriza-se,
por isso mesmo, por uma necessária contingência, por um fim (que con-
80

tém, simultaneamente, a sua finalidade). Ora, o propósito de tornar


NINETEEN EIGHTY-FOUR: A HISTÓRIA COMO PALIMPSESTO OU A NEGAÇÃO DA MEMÓRIA COMO LUGAR DO EU Maria do Rosário Lupi Bello

infindável o processo de sistemático cancelamento do registo factual que


a memória, por natureza, elabora – e que a narrativa exprime de modo
organizado e sequencial – surge como uma aparente utopia, uma
impossibilidade humana, que parece remeter para uma dimensão ilimi-
tada, inacessível e superior ao homem. Mas aquilo que a terrível reali-
dade deste universo totalitário vem a demonstrar é que tal atitude coin-
cide, paradoxalmente, com a negação da possibilidade do eterno, não
porque este transcende o humano, mas porque vencer constantemente
a própria memória significa desvalorizar o tempo contingente enquanto
lugar do acontecimento concreto, visível, o qual é, na experiência terre-
na, o húmus em que o infinito se pode revelar (quanto mais não seja,
como o famoso conceito de Gilbert Durand épifanie de l’angoisse tão
bem sintetiza, pelo desejo que o próprio acto narrativo exprime de per-
manência no tempo – o “duro desejo de durar”). Anular permanente-
mente a memória é tornar abstracta a experiência, retirá-la do seu
necessário enquadramento espácio-temporal e, portanto, esvaziar a cons-
ciência pessoal dos dados que permitem julgar a realidade, aprisionan-
do-a numa dimensão atemporal, etérea, vácua, como um corpo lança-
do para sempre no espaço sideral. “He is trapped in timelessness”, afir-
ma Christopher Small (Small 1975: 147), relembrando a terrível cons-
tatação de Winston Smith, cidadão da Oceânia: “History has stopped
(…). Nothing exists except an endless present in which the Party is
always right” (Orwell 1978: 127). Escusado será relembrar que a infini-
tude do presente coincide com a tragédia, na medida em que o aconte-
cimento enquanto factor de transformação e, portanto, de mudança,
desaparece, restando apenas a negação da positividade do tempo, numa
palavra: o Mal, enquanto ausência desse Bem que é a possibilidade de
realização pessoal e colectiva. E, simultaneamente, tal ausência é a
condição para que o Poder possa penetrar sem limitações: “ ‘Reality
control’, they called it: in Newspeak, ‘doublethink’” (Orwell 1978: 31).

3.
Ora, vejamos agora em que consistem essas memórias que Orwell
“espalha” deliberada e repetidamente ao longo da sua extraordinária e
acutilante narrativa. Considero, com este termo, como já referi, aquilo
que a sua memória preserva, o que pode incluir também pensamentos
individualizados e “sonhos”, e divido-as, precisamente, em pessoais, por
um lado, e colectivas ou sociais, por outro.
Nas de âmbito pessoal gostava de destacar as que me parecem mais

81
importantes e recorrentes: a imagem da mãe (e também da irmã, acer-

NINETEEN EIGHTY-FOUR: A HISTÓRIA COMO PALIMPSESTO OU A NEGAÇÃO DA MEMÓRIA COMO LUGAR DO EU Maria do Rosário Lupi Bello
ca da qual Winston sempre associa um sentimento de culpa; do pai só
pontual e vagamente se recorda); o sonho do “Golden Country” (no
qual virá incluída uma antecipação de Julia, bem como uma significati-
va associação a Shakespeare, enquanto tradição literária e profunda-
mente humana); a ideia fixa sobre os “proles”: “if there is hope, it lies in
the proles” (Orwell 1978: 59, 69, 72, 73, 113, 135, 175), e a rima infan-
til a propósito das igrejas de Londres: “Oranges and lemons, say the
bells of St. Clement’s,/ You owe me three farthings, say the bells of St.
Martin’s” (Orwell 1978: 82, 84, 94, 145). Todas elas são de grande
importância na economia significativa da obra, remetendo para um pas-
sado cujo valor é decisivo para a auto-consciência e para a definição da
identidade pessoal de Winston.
Mas existe uma outra cena que sintetiza, de modo emblemático, o
valor mais profundo deste tipo de “memória”. Refiro-me à dramática e
belíssima cena passada na engordurada cantina onde Winston diaria-
mente engole, juntamente com os colegas de trabalho, rações de comi-
da artificial:
He meditated resentfully on the physical texture of life.
Had it always been like this? Had food always tasted like
this? (…) Always in your stomach and in your skin there
was a sort of protest, a feeling that you had been cheated
of something that you had a right to. It was true that he
had no memories of anything greatly different. In any time
that he could accurately remember, there had never been
quite enough to eat, one had never had socks or under-
clothes that were not full of holes (…). And though, of
course, it grew worse as one’s body aged, was it not a sign
that this was not the natural order of things, if one’s heart
sickened at the discomfort and dirt and scarcity (…). Why
should one feel it to be intolerable unless one had some
kind of ancestral memory that things had once been differ-
ent? (Orwell 1978: 51)
É esta “memória ancestral” que Winston não quer apagar de si mesmo.
É verdade que ele não se lembrava de as coisas terem sido dife-rentes,
mas não podia negar a si próprio a consciência de uma profunda inade-
quação do seu ser às circunstâncias em que vivia. Mais do que uma
capacidade de se lembrar ou de recordar aspectos específicos da sua vida
anterior, dava-se conta de uma reminiscência em si mesmo, que era a
82

base de sustento da sua consciência pessoal, a âncora que o prendia ao


NINETEEN EIGHTY-FOUR: A HISTÓRIA COMO PALIMPSESTO OU A NEGAÇÃO DA MEMÓRIA COMO LUGAR DO EU Maria do Rosário Lupi Bello

território firme de uma identidade própria, individual, com aquele valor


único que lhe vinha da certeza de que não fora feito para viver assim e
de que manter essa consciência coincidia com a possibilidade de ser
livre.
Por isso, Winston apercebia-se de que não bastava disfarçar reacções
perante o écran gigante nem sequer mostrar uma diligência e uma con-
tínua disponibilidade para a vida do Partido. A grande questão era inte-
rior, pessoal, privada. Passava pela consciência e por esta memória de si,
por esta coragem de não largar as exigências mais fundas do seu ser, de
não se distrair delas e do seu dramático grito de esperança, de não cair
na terrível e constante tentação do “esquecimento”, nessa muito menos
dolorosa e profundamente alienante “inconsciência”. Como pensava
Winston a propósito de Syme, o filólogo inteligente, esmerado e labo-
rioso que trabalhava arduamente no novo dicionário de Newspeak,
“Zeal was not enough. Orthodoxy was unconsciousness” (Orwell 1978:
48). E adiante: “Syme, too – in some more complex way, involving dou-
blethink, Syme swallowed it. Was he, then, alone in the possession of a
memory?” (Orwell 1978: 50).
Nesta solidão existencial profunda, Winston virá a sucumbir. Não
porque não “saiba” a verdade, mas porque ela não se pode realizar em
total solidão. Julia, que é desprovida da consciência clara da sua própria
memória (por isso adormece quando Winston discorre sobre essas
questões), vive, pelo menos, determinada por aquele nível mais natural
da “memória ancestral” que Winston também reconhece nos “proles”:
a obediência à lei da própria natureza, ao conforto físico, ao impulso
sexual, ao prazer como energia activa, ao gosto da comida e da bebida
verdadeiros – “real coffee”, “real tea”, “real sugar”. E isso, ao contrário
do que o Partido afirmava, não são “mere impulses, mere feelings, of no
account” (Orwell 1978: 134). São registos interiores de uma finalidade a
ser cumprida.
Ora, a nível exterior, social, tais registos coincidem com a objectivi-
dade do facto histórico. É, pois, aqui que o Partido intervém, não para
negar a importância da História, mas para a afirmar pela negativa, apa-
gando diligentemente todas as marcas do passado e substituindo-as por
outras, fabricadas por ele, re-escrevendo um passado à sua medida. O
totalitarismo sabe que só o passado pode legitimar o presente, e que um
presente que se queira impor prepotentemente é “forçado” a cancelar
aquilo que, do passado, ponha em risco a sua auto-afirmação todo-

83
poderosa. Orwell estava bem consciente de que a negação radical da

NINETEEN EIGHTY-FOUR: A HISTÓRIA COMO PALIMPSESTO OU A NEGAÇÃO DA MEMÓRIA COMO LUGAR DO EU Maria do Rosário Lupi Bello
visão positivista da História levaria ao extremo oposto, ao do relativismo
absoluto, em nome de uma incidência excessiva na narrativização
histórica como escolha aleatória, resultante da convicção da impossibi-
lidade de atingir o conhecimento perfeito. Contar é sempre, como ficou
dito atrás, revelar um sentido. A opção está entre a tensão permanente
de uma busca humilde desse sentido na lógica causal de uma série con-
tínua de factos ou, pelo contrário, na deliberada construção de discursos
sucessivos que se auto-anulam porque não decorrem uns dos outros.
Na Oceânia, “all history was a palimpsest, scraped clean and rein-
scribed exactly as often as was necessary” (Orwell 1978: 35). Em vez de
fluxo contínuo, cuja ordem fala por si própria, através desse registo vivo
e dinâmico que é a tradição, a História passa a ser encarada como
sucessão de camadas que se impõem umas às outras, apagando as ante-
riores. Mais uma vez, o drama clarividente de Orwell é o de constatar a
anulação do valor do que é concreto, objectivo, verdadeiro, “real evi-
dence”: “when once the act of forgery was forgotten, he would exist just
as authentically, and upon the same evidence, as Charlemagne or Julius
Caesar” (Orwell 1978: 42).

4.
Verdade, objectividade, verificação: estes três pilares guiaram a vida
e a obra de George Orwell, segundo Christopher Hitchens. Para C.
Small, a vida e a escrita de Orwell permitem deduzir que “he was both
unbeliever and religious man. (…) he represents the sceptic-religious
man who, with ‘all the important questions unsettled’, is trapped into
thinking exclusively in political terms” (Small 1975: 20). É importante
perceber esta noção de política, que Orwell dizia ser o propósito de toda
a ficção, mesmo a mais imaginosa ou fantástica, porque para o escritor
o bem social deveria coincidir com o bem pessoal, e vice-versa. “Good
prose is like a window pane” (apud Small 1975: 105), isto é: aberta,
escancarada à realidade, desejosa de ver e de dar a ver, transparente-
mente.
Neste sentido, Nineteen Eighty-Four é uma narrativa política: dá a
ver o mundo com uma nitidez violenta, como quem recebe um jacto de
luz reflectido num vidro bem lavado. É preciso esfregar os olhos e voltar
a olhar, com a palma da mão por cima. Mais do que uma negra profe-
cia, é um alerta lúcido e generoso, na sua crueza perturbadora: porque
aquilo de que Orwell fala é de um totalitarismo mais profundo do que o
que qualquer sistema ideológico tenha conseguido implementar – em-
84

bora alguns, por certo, como o escritor bem sabia, bastante se tenham
NINETEEN EIGHTY-FOUR: A HISTÓRIA COMO PALIMPSESTO OU A NEGAÇÃO DA MEMÓRIA COMO LUGAR DO EU Maria do Rosário Lupi Bello

aproximado de uma tentativa de concretização social desse Poder


enquanto tal… Mas o Poder que invade todos os cantos do terrível uni-
verso orwelliano não é estranho a nenhum de nós. É um poder mais
insinuante e destruidor do que o de qualquer utopia política. É o poder
de uma “mundaneidade” implícita e “escondida”, que toma conta de
tudo, tornando a humanidade amnésica das suas exigências mais pro-
fundas, fazendo-a concordar com o subjectivismo em nome da liberdade
e com o relativismo absoluto em nome da tolerância, homologando-a
sem dó nem piedade, até ao ponto de a fazer perder esse último reduto
de consciência que só se pode manter no confronto da pessoa consigo
mesma. É num mundo assim, que todos bem conhecemos, que o Big
Brother se torna o verdadeiro ícone de uma civilização massificada, cujo
sintoma começa por ser uma desvalorização insidiosa do privado (esse
privado pelo qual Winston tanto ansiava) e que termina na total subver-
são do que é íntimo, tornado objecto de fruição pública, como se o valor
pessoal só pudesse ser garantido por esse acto de violenta e ruidosa
exposição de si próprio. Este é um mundo onde o silêncio, como diz
George Steiner, se tornou o inimigo a combater, porque ele é a condição
para que a pessoa se veja a si mesma e ao mistério que a constitui, e a
nossa época tem medo de um tal mistério (Jahanbegloo 2000: XVIII). O
sinal mais alarmante de um mundo assim é a cedência à maior tentação
de todas: a de entregar voluntariamente nas mãos de outro, um
“Grande Irmão” paternalista e “protector”, o maior tesouro de cada
um: a própria liberdade, em nome da facilidade que traz a aceitação das
suas regras contingentes e mundanas.8 Como Winston bem se aperce-
beu, não basta aceitar o Big Brother, é preciso amá-lo, subtraindo-se
totalmente à luta que a consciência de si mesmo implica.
Mas, neste universo de trevas, não podemos não reconhecer as bre-
chas de luz que Orwell discretamente deixa disseminadas ao longo da
narrativa, e que coincidem precisamente com esses momentos de
“memória” que lhe relembram quem ele é – essa Terra Dourada já
vista, o amor incondicional da mãe, os resquícios de registos de um pas-
sado que de facto existiu (e não apenas na sua cabeça), a força vital do
humano em todas as suas expressões de desejo de felicidade, a esperança
na réstia de humanidade visível nos “proles”. Se é verdade que Orwell
não simplificou nem resolveu este dilema, fechando a história no seu
ponto mais trágico, não é menos verdade que a responsabilidade a que
o leitor literário não se pode subtrair é a de um confronto pessoal com a
totalidade da obra, e aí é a sua própria liberdade que está em jogo,

85
podendo aceitar o desafio de explorar essas discretas insinuações de uma

NINETEEN EIGHTY-FOUR: A HISTÓRIA COMO PALIMPSESTO OU A NEGAÇÃO DA MEMÓRIA COMO LUGAR DO EU Maria do Rosário Lupi Bello
outra possibilidade positiva para a vida. Também aqui Orwell foi ver-
dadeiro e magnânime, oferecendo ao mundo uma narrativa mais
abrangente e profunda, mais verdadeiramente humana, do que qual-
quer esquema ideológico – de sinal positivo ou negativo – possa conce-
ber.

1 Afirma Small (1975: 18): “(…) with the implication that the public world is one of objective
fact concerning the writer’s most important task, just because he is involved in politics, is to tell the
truth”.
2 Diversos autores têm procurado, sobretudo desde a segunda metade do século XX – com a
emergência dos estudos narratológicos –, definir o conceito de “narrativa”. Metz, Genette, Scholes e
Kellogg, Ricoeur, Bordwell, Branigan, Chatman, M. Bal, G. Prince, Mitchell, Fludernik são alguns
dos nomes que contribuíram significativamente para o avanço desta área de estudos. Enquanto que
alguns, como Branigan (1992), consideram que a narrativa é essencialmente uma “estratégia” para
organizar o caos da existência, outros, na linha de Paul Ricoeur (1983), vêem-na como forma que evi-
dencia a ordem implícita na realidade. Mas quer num, quer noutro caso, a narratividade é assumida
como lugar (epistemológico) da emergência de sentidos, portanto como forma particular de conheci-
mento (tal como a etimologia da sua raiz sânscrita gnâ testemunha).
3 Paul Ricoeur (1983) sublinha o carácter narrativo (ou pré-narrativo) da experiência temporal
enquanto dimensão da acção humana, afirmando ser este o factor que assegura a compreensibilidade
do fenómeno literário. O filósofo francês afirma, portanto, o aspecto da narratividade no modo como
as acções humanas se configuram, sublinhando a relação intrínseca que a narratividade e a tempo-
ralidade manifestam, nos seus diversos elementos constituintes, como sejam: ordem, sequência, trans-
formação, duração.
4 Monika Fludernik (1996: 26) desenvolveu esta noção, defendendo um conceito cognitivo de
narratividade e afirmando que esta se “centra na experiência [experientiality] de natureza
antropomórfica”.
5 Flannery O’Connor (1997: 67-68) traduz muito bem esta consciência corpórea da narrativa
ficcional, bem como a tentação do escritor inexperiente ou medíocre em escapar dela (ao contrário
do que faz Orwell): “I want to talk about one quality of fiction which I think is its least common
denominator – the fact that it is concrete (…). The world of the fiction writer is full of matter, and
this is what the beginning fiction writers are loath to create. They are concerned primarily with
unfleshed ideas and emotions. (…) They are conscious of problems, not of people, of questions and
issues, not of the texture of existence (…). This is also pretty much the modern spirit, and for the sen-
sibility infected with it, fiction is hard if not impossible to write because fiction is so very much an
incarnational art”.
6 Irena Slawinska analisa o modo como o século XX tratou as coordenadas espácio-temporais
na arte e no pensamento, referindo a crise quanto ao valor da temporalidade, que se fez sentir sobre-
tudo a partir de meados do século. Tal crise foi identificada por diversos pensadores, como por exem-
plo Eliade, o qual, abordando o “mito do eterno retorno”, apontou como indício claro dessa desva-
lorização a revolta contra o tempo na sua dimensão histórica, nomeadamente através da primazia
explícita ou implicitamente dada à sincronia e à simultaneidade (verificadas na hegemonia da cultura
visual e táctil) sobre a diacronia e a sequencialidade (Slawinska 1985: 178-219).
7 Vejam-se as entradas relativas aos termos referidos (remembrance, recollection e memory), e
que aqui se apresentam traduzidas, nos dicionários de língua inglesa: Oxford Advanced Learner’s
Dictionary of Current English, Oxford, Oxford University Press, 1977, e The Shorter Oxford English
Dictionary on Historical Principles, vol. II, Oxford, Clarendon Press, 1973.
8 Pelo contrário, Meyers (2000) sublinha o facto de Orwell dizer e demonstrar constantemente,
na sua vida, que a coisa que mais desejava, acima de tudo, era a liberdade.
86

Obras Citadas
NINETEEN EIGHTY-FOUR: A HISTÓRIA COMO PALIMPSESTO OU A NEGAÇÃO DA MEMÓRIA COMO LUGAR DO EU Maria do Rosário Lupi Bello

Branigan, Edward (1992), Narrative Comprehension and Film, London,


Routledge.
Crick, Bernard (1992), George Orwell – a Life, London, Penguin Books.
Eliot, T.S. (1975), Selected Prose of T. S. Eliot, New York, Harcourt Brace.
Fludernik, Monika (1996), Towards a “Natural” Narratology, London,
Routledge.
Hitchens, Christopher (2002), Why Orwell Matters, New York, Basic Books.
Jahanbegloo, Ramin (2000), Quatro Entrevistas com George Steiner, Lisboa,
Fenda.
Meyers, Jeffrey (2000), Orwell – Wintry Conscience of a Generation, New
York, Norton.
O’Connor, Flannery (1997), Mystery and Manners. Occasional Prose, New
York, Noonday Press.
Orwell, George (1978), Nineteen Eighty-Four, London, Penguin Books [1949].
Ricoeur, Paul (1983), Temps et Récit. Tome I – L’intrigue et le récit historique,
Paris, Éditions du Seuil.
Slawinska, Irena (1985), Le Théâtre dans la Pensée Contemporaine:
Anthropologie et Théâtre, Louvain, Cahiers Théâtre Louvain.
Small, Christopher (1975), The Road to Miniluv. George Orwell, the State and
God, London, Victor Gollanz.
FÁTIMA VIEIRA
UNIVERSIDADE DO PORTO

Nineteen Eighty-Four: Contributos


para uma Abordagem Espacial
da Distopia Orwelliana

1. Introdução
A premência de uma abordagem espacial do romance orwelliano foi-
se-me tornando clara à medida em que, nos últimos anos, me fui inte-
ressando pela área dos chamados “Spatiality Studies”. Os Estudos sobre

87
o Espaço partem da constatação, enunciada por Michel Foucault na
década de 70, de que a compreensão do mundo actual não pode ser feita

NINETEEN EIGHTY-FOUR: CONTRIBUTOS PARA UMA ABORDAGEM ESPACIAL DA DISTOPIA ORWELLIANA Fátima Vieira
de um ponto de vista exclusivamente historicista. Definindo a nossa
época essencialmente como a era do espaço, da simultaneidade, da
justaposição e da dispersão, Foucault lançou as bases para uma análise
cultural (desenvolvida, à época, também por Henri Lefebvre e, mais
recentemente, Edward Soja, Kathleen Kirby e Doreen Massey, entre
outros) que se propõe complementar o olhar diacrónico do historiador
com uma visão sincrónica, munida das ferramentas conceptuais
definidas na área dos Estudos de Geografia.
A hipótese de trabalho que me proponho aqui examinar decorre pois
da ideia de que uma análise que se pretenda completa e abrangente de
Nineteen Eighty-Four deverá ter em conta não apenas o seu significado
temporal, isto é, a ideia de um futuro de infelicidade e a consequente
valorização do momento presente, mas também a sua dimensão espa-
cial. Tendo a dimensão temporal da obra sido exaustivamente explora-
da pela crítica que tem visto Nineteen Eighty-Four como a expressão
cabal do cepticismo orwelliano e, por conseguinte, como um comentário
sarcástico, de feição swiftiana, à ideia de progresso humanitário, pro-
movida no âmbito das teorias de materialismo histórico, proponho-me
evidenciar, nas páginas que se seguem, ainda que de forma necessaria-
mente breve e incompleta, a riqueza de significação que nos poderá pro-
porcionar uma abordagem espacial da obra. Para que a minha
exposição seja metodologicamente útil não apenas em função do pre-
sente corpus – a distopia orwelliana – mas também, de uma forma geral,
relativamente à literatura utópica e distópica produzida no contexto do
pós-guerras mundiais, dividirei este trabalho em três pontos, consideran-
do nos dois primeiros questões de ordem teórica e entregando-me, no
último, ao estudo do caso orwelliano.

2. O espaço e o tempo, de More a Orwell


Quando cria o género literário utópico, em 1516, Thomas More faz
associar à imaginação de uma ordem alternativa à vigente na Inglaterra
coeva a ideia de um topos. Trata-se de um topos que não existe, como
sublinha aliás o prefixo grego de negação ou, encurtado para u (u +
topos), mas que, todavia, é retratado como real. De facto, o que encon-
tramos no Livro II de Utopia é uma descrição essencialmente espacial
da sociedade utopiana, semelhante àquela que seria feita por um cartó-
grafo contemporâneo de More, numa época em que traçar mapas impli-
ca também a explicação das formas de distribuição e de ocupação dos
88

espaços. No artigo “Imaginary Journeys”, Bernhard Klein explica-nos a


NINETEEN EIGHTY-FOUR: CONTRIBUTOS PARA UMA ABORDAGEM ESPACIAL DA DISTOPIA ORWELLIANA Fátima Vieira

forma como os cartógrafos da época de Spencer e de Drayton entendem


a função dos mapas:
What, from a contemporary perspective, was the use value
of a map? One of the most extensive answers to this ques-
tion was offered by Cyprian Lucas whose manual on sur-
veying, published in 1590, is ample evidence that the
analysis of maps should not be restricted to a discussion of
their topographical data. For Lucas a map needed first to
inform about the local practice of agriculture, the situation
of the ground, vegetation, forests, and parks; then about
harbours, ports and other landing-places, the size of the
king’s navy kept there, the tidal rhythm, ‘and whatsoever
else that said described land hath strange, new, notable,
and commodious.’ Maps should also include information
about houses and buildings, settlements and fortifications,
climatic conditions, rivers, bridges and roads, the legal sta-
tus of towns, ‘whether the people there are wittie and of
quick conceite’, their moral virtues, the number of inhabi-
tants and soldiers, the extent and storage of their weapon-
ry. (Klein 2001: 205)
Embora Klein não se refira concretamente, neste seu texto, à literatura
utópica, creio que a descrição a que procede da perspectiva dos cartó-
grafos quinhentistas poderá conduzir-nos a uma melhor compreensão
da descrição dos espaços na utopia moriana. Na verdade, ao descrever-
nos, no Livro II, a cidade de Amaurota (apresentada como medida de
todas as cidades utopianas), a sua estrutura e distribuição espacial (os
espaços proibidos, os espaços permitidos e os espaços públicos que os
indivíduos são obrigados a ocupar), Thomas More expõe de forma clara
a relação de interdependência entre a ordem dos espaços e a ordem da
sociedade. De facto, a manutenção da ordem social na utopia moriana
só é possível pela vigilância constante dos indivíduos, de forma a impedir
eventuais transgressões das regras de ordenamento dos espaços.
No século XVIII, as teorias optimistas de progresso humano levam
a um quase abandono da consideração da dimensão espacial da utopia.
Acreditando que o processo de perfectibilidade humana depende essen-
cialmente da passagem do tempo (embora este processo possa ser acele-
rado pela intervenção da ciência, como defende Condorcet), a imagi-
nação utópica desliza no eixo temporal, dando origem às eucronias (que

89
introduzem a noção de tempo de felicidade), também perfilhadas no

NINETEEN EIGHTY-FOUR: CONTRIBUTOS PARA UMA ABORDAGEM ESPACIAL DA DISTOPIA ORWELLIANA Fátima Vieira
século XIX, embora em termos necessariamente diferentes, pelos defen-
sores das teorias do materialismo histórico marxista.
Contudo, na viragem do século XIX para o século XX, a confiança
quer na possibilidade de aperfeiçoamento humano quer na eficácia das
teorias marxistas esmorece, sendo agravada, no decorrer das duas
Grandes Guerras, pela mais cabal exibição da crueldade e maldade
humanas. Neste contexto, embora não abandonando o eixo temporal, a
literatura utópica do pós-guerras passa a encará-lo numa perspectiva
pessimista: ao futuro de felicidade das eucronias iluministas e marxistas
contrapõe-se agora a ideia de um futuro do mais profundo infortúnio.
Perante esta descrição do entendimento do tempo futuro como um
momento progressivamente mais negativo (isto é, informado pela ideia
de que o estado da sociedade piorará com o tempo), poderíamos ser con-
duzidos à interpretação de que, na literatura distópica novecentista de
que Nineteen Eighty-Four e Brave New World são os exemplos mais
notórios, a passagem do tempo é o elemento causador da infelicidade
humana. Contudo, na minha perspectiva, embora a literatura distópica
do século XX projecte num futuro não muito longínquo a descrição de
uma sociedade que, no seu todo, é pior do que a real, o elemento que
causa infelicidade nos homens não é de ordem temporal mas essencial-
mente de ordem espacial. Por outras palavras, aquilo que é criticado
nessas distopias é a forma como se tenta controlar o homem através das
duas receitas básicas avançadas por Thomas More e por Francis Bacon
nos primórdios da história da literatura utópica inglesa: a imposição,
respectivamente, de uma ordem política e de uma ordem científica.
Assim, se ao lermos as distopias de Orwell e de Huxley o factor tempo
se afigura como um elemento de opressão, ele apenas o é na medida em
que proporciona o agravamento, o exagero da imposição dessas receitas
de ordem social. Para a compreensão da dimensão distópica do
romance de Orwell o factor a ter em conta é, pois, prioritariamente, de
ordem espacial.

3. Os Estudos sobre o Espaço e os Estudos sobre a Utopia


Mas até que ponto é inovadora esta aplicação das teorias do espaço
à literatura utópica? E que valor acrescentado nos proporciona ela, que
novos significados faz emergir?
A constatação de uma mudança – e conseguinte necessidade de
teorização – de uma perspectiva temporal para uma perspectiva espa-
cial da utopia foi enunciada pela primeira vez, de uma forma sistemáti-
90

ca, no âmbito da teoria crítica anglo-americana, por Fredric Jameson,


NINETEEN EIGHTY-FOUR: CONTRIBUTOS PARA UMA ABORDAGEM ESPACIAL DA DISTOPIA ORWELLIANA Fátima Vieira

no artigo que este fez publicar em 1984 na New Left Review, intitulado
“Postmodernism, or the Cultural Logic of Late Capitalism”. Jameson
utilizaria o mesmo título para o conjunto de ensaios que faria publicar,
em 1991, pela editora Verso, e que se viria a tornar uma referência para
a área dos estudos sobre a utopia. Nesse seu volume, Jameson avança a
ideia de que o processo de substituição da dimensão temporal pela
dimensão espacial deve ser entendido como sintoma da dificuldade
experimentada pelo homem pós-moderno na imaginação de um futuro
melhor.1 A nova atenção dada por Jameson ao espaço inspiraria David
Harvey a publicar, em 1989, The Condition of Postmodernity. Neste
seu livro, Harvey avança a ideia, reiterada em tantos outros textos seus,
de que “os lugares, como o espaço e o tempo, são constructos sociais,
devendo como tal ser lidos e entendidos” (Harvey 1995: 25 – tradução
minha), e sublinha a necessidade de uma abordagem espacial da liter-
atura utópica e distópica, com base no argumento de que as obras de
Thomas More e de Francis Bacon devem ser essencialmente encaradas
como uma tentativa de materialização das ideias através da construção
de lugares (idem 171).
No âmbito da teorização crítica francesa a voz de Louis Marin foi a
que mais precocemente se manifestou sobre a necessidade de se conce-
der uma atenção particular à dimensão espacial da utopia. Como expli-
ca Kevin Hetherington, nos estudos que Marin faz publicar em 1984
(Utopics: Spatial Play) e em 1992 (“Frontiers of Utopia: Past and
Present”) são já estabelecidas as premissas da abordagem espacial da lite-
ratura utópica. É na verdade fundamental para este tipo de abordagem
a ideia avançada por Marin de que os ideais utópicos, animados pela
convicção de que os conceitos positivos de liberdade e de ordem são
sinónimos, ajudaram a moldar a sociedade moderna através do ordena-
mento dos seus espaços (Hetherington 1997: 13).
O que me parece relevante salientar, no contexto destas conside-
rações sobre a crescente importância reconhecida à dimensão espacial
da literatura utópica, é que, estranhamente, ela não tem saído da redo-
ma do discurso teórico. A única excepção digna de nota é a da francesa
Helène Greven-Borde que, em Formes du Roman Utopique en Grande-
Bretagne (1984), define o espaço utópico como um “projet d’aménage-
ment du territoire” e estabelece uma ligação entre o espaço e o indiví-
duo ao afirmar que “l’espace existe aussi en tant que miroir d’une cons-
cience individuelle” (Greven-Borde 1984: 224-226). Falta sem dúvida a
Greven-Borde a terminologia que, nas décadas subsequentes à publi-

91
cação do seu texto, viria a ser definida no âmbito dos Estudos sobre o

NINETEEN EIGHTY-FOUR: CONTRIBUTOS PARA UMA ABORDAGEM ESPACIAL DA DISTOPIA ORWELLIANA Fátima Vieira
Espaço. Contudo, a valorização da dimensão espacial da utopia está já
bem presente no seu texto, e extrapola a mera especulação teórica,
traduzindo-se na análise de um extenso corpus de textos utópicos ingle-
ses (publicados entre 1918 e 1970), de que a distopia orwelliana faz
parte.
O que poderemos nós, duas décadas volvidas sobre a publicação do
livro de Greven-Borde e munidos de uma ferramenta conceptual que os
Estudos sobre o Espaço tomaram emprestada aos Estudos de Geografia,
acrescentar em relação à distopia orwelliana? Na minha opinião, aqui-
lo que podemos oferecer hoje é uma abordagem espacial mais sistemáti-
ca, mais informada pelas teorias recentes que nos propõem uma con-
cepção dinâmica dos indivíduos e dos espaços com que, constante-
mente, interagem.

4. Estudo de caso: uma abordagem espacial da distopia orwelliana2


Ao longo das duas últimas décadas, os Estudos sobre o Espaço desen-
volveram-se consideravelmente, sobretudo no âmbito da teorização
anglo-americana. Não cabe contudo, num texto desta natureza, fazer a
história desse processo. Partirei pois, para o estudo do caso orwelliano,
da enunciação de pressupostos de ordem geral sobre os quais, assumin-
do embora feições diversas, se têm construído as teorias que constituem
esta área de estudo.
Os Estudos sobre o Espaço partem da distinção fundamental dos
conceitos de “lugar” e de “espaço”. Os lugares são físicos, orgânicos e
estáveis, enquanto que os espaços são maleáveis, com fronteiras em con-
tínua mutação. São estes últimos que servem de referente ao homem
enquanto sujeito e é em relação a estes que ele define a sua subjectivi-
dade. As teorias que se têm definido no âmbito desta área de estudo
definem o homem como uma entidade dinâmica, também ele um
espaço que tem uma existência a um duplo nível: um espaço físico, cons-
tituído pelo seu corpo, um espaço que tem pois uma existência concre-
ta, real, passível de ser descrita (o olhar experimentado de um cartógrafo
reconhecer-lhe-ia certamente as fronteiras que devem ser assinaladas
em todos os mapas); e um espaço de subjectividade, que se desenvolve
em planos de simultaneidade, definido a partir do relacionamento do
sujeito com os outros espaços. Uma descrição “geográfica” dos espaços
implica pois a adopção de um ponto de vista sincrónico, pois só ele
poderá dar conta dos significados que se vão desenvolvendo em vários
planos de simultaneidade. De uma forma necessariamente sucinta e,
92

nessa medida, incorrendo no risco de uma excessiva simplificação da


NINETEEN EIGHTY-FOUR: CONTRIBUTOS PARA UMA ABORDAGEM ESPACIAL DA DISTOPIA ORWELLIANA Fátima Vieira

questão, podemos afirmar que um estudo sincrónico do indivíduo impli-


ca a consideração da forma como ele se define em três planos diferentes
de simultaneidade: enquanto espaço físico (implicando pois a descrição
do espaço do corpo), enquanto espaço geográfico e social (obrigando à
consideração do espaço ocupado pelo corpo do indivíduo e da forma
como ele se relaciona, socialmente, com os outros corpos, isto é, com os
outros espaços), e enquanto espaço psíquico (o espaço mental do sujeito,
que se define na sua relação dinâmica com os lugares e com os outros
indivíduos). A abordagem a que me proponho entregar da distopia
orwelliana contemplará esses três planos de simultaneidade e, a partir
deles, tentará dar conta das relações de poder (para utilizar a terminolo-
gia foucaultiana) que se estabelecem na dinâmica da distópica sociedade
em que vive Winston Smith, o protagonista de Nineteen Eighty-Four.
Recuperando a ideia da relação entre as noções de “ordem social” e
“ordenamento dos espaços” que descrevi no primeiro ponto deste texto,
procurarei evidenciar que é no plano do espaço que o texto orwelliano
melhor define a sua feição negativa e pessimista.
Na distopia orwelliana, o conceito de tempo, tal como o concebe-
mos, não existe. O tempo não é já definido em função da História – que
pressupõe a noção de um passado, de um presente e de um futuro3 - mas
em função da figura omnipotente do Big Brother. Este, como o próprio
Winston acaba por concluir, é mais um conceito figurativo do autêntico
Estado-leviatã instalado na opressiva sociedade do futuro do que um
indivíduo com uma existência física e real. Apesar da sua (mais do que
provável) inexistência física, o Big Brother atravessa toda a dimensão
temporal, afirmando-se no eixo da eternidade.4 Mas o que é verdadeira-
mente paradoxal é a forma como o conceito de Big Brother ocupa os
espaços (os lugares físicos, os espaços sociais e os espaços do sujeito),
assumindo-se como o espaço político a partir do qual é feito o ordena-
mento dos outros espaços, isto é, se estabelecem as relações de poder
entre os indivíduos. Esta centralidade da figura do Big Brother é deixa-
da clara logo na abertura do romance, na descrição do prédio em que
vive Winston e onde, em cada patamar, foi pregado um cartaz de mais
de um metro de largura com o rosto dominador do Big Brother. Mas
este rosto invade também o espaço exterior: através da vidraça fechada
do seu apartamento, Winston tem a percepção da ocupação espacial
excessiva dos cartazes do Big Brother. Tal como o preenchimento dos
cartazes, no prédio de Winston, não é proporcional ao espaço disponí-
vel em cada patamar (e o narrador dá-nos conta dessa desproporcionali-

93
dade quando descreve os cartazes como “too big for indoor” – NEF: 3),

NINETEEN EIGHTY-FOUR: CONTRIBUTOS PARA UMA ABORDAGEM ESPACIAL DA DISTOPIA ORWELLIANA Fátima Vieira
a figura do Big Brother é igualmente invasiva dos espaços públicos,
sendo óbvia a sua superioridade e autoridade (“The black-moustachio’d
face gazed down from every commanding corner” – NEF: 2 – itálico
meu). Parece-me importante fazer notar que esta figura dominante em
relação à qual toda a sociedade se define é representada apenas parcial-
mente. Na verdade, é sempre apenas o rosto do Big Brother que é
retratado, remetendo para a ideia de domínio cerebral e estabelecendo
com os indivíduos que constituem a sociedade uma relação de desigual-
dade, já que eles são constituídos por um corpo passível de sofrer as
agressões que, para impor a sua ordem, o Estado do Big Brother neles
perpetra. Neste sentido, a consideração do espaço do corpo – o primeiro
dos espaços de simultaneidade que atrás mencionei – é vital para a com-
preensão do romance. A variz ulcerada, por cima do tornozelo direito
de Winston Smith, é logo mencionada no segundo parágrafo do
romance para justificar a forma vagarosa como sobe as escadas do seu
prédio e, mais adiante, a dificuldade que sente em cumprir o programa
de ginástica que lhe é imposto pelo telescreen. O corpo de Winston
Smith apresenta as marcas de um Estado opressivo, que não está inte-
ressado em curar os indivíduos mas em aproveitar-se das suas debili-
dades, quaisquer que elas sejam, e em acentuá-las quando necessário,
como sucede no final do romance, quando Winston é submetido às mais
desumanas agressões físicas. As teias de significação que vão sendo teci-
das em torno dessa ideia de espaço físico debilitado são inúmeras e tor-
nadas evidentes quando, após o tratamento a que é submetido na Sala
101, Winston se vê ao espelho e se apercebe de que se transformou
numa coisa esquelética, curvada e cinzenta. Torna-se, nesse momento,
no símbolo de um colectivo, da humanidade ferida na sua dignidade
pelo Estado do Big Brother, uma humanidade a apodrecer, a cair aos
bocados, em vias de extinção (cf. NEF: 285). Mas o espaço do corpo de
Winston, para além de acusar a debilidade causada pela doença, deno-
ta também a ausência de contacto com outros espaços físicos, outros
corpos. Na verdade, o programa de quase abstinência sexual a que a
mulher de Winston se votara havia também sido obra do Partido. A li-
bertação física que Winston experimentará através do relacionamento
sexual com Julia decorrerá, em grande parte, da recuperação do seu
corpo através da plena realização dos seus instintos e sentidos.
Os outros corpos físicos com que Winston se relaciona são também
importantes. O corpo de Julia, sempre ornamentado nas suas aparições
em espaços públicos com a faixa vermelha da Liga Juvenil Anti-Sexo, é
94

transformado, nos seus encontros amorosos com Winston, pela acção da


NINETEEN EIGHTY-FOUR: CONTRIBUTOS PARA UMA ABORDAGEM ESPACIAL DA DISTOPIA ORWELLIANA Fátima Vieira

maquillage não muito perfeita (bâton forte nos lábios, rouge nas faces,
pó-de-arroz no nariz, um toque de tinta a realçar os olhos), o que nos
conduz à consideração da sua revolta contra o Partido, por um lado,
mas também da afirmação do espaço do seu corpo, da sua feminilidade.
O outro espaço físico – isto é, o outro corpo – que é descrito no romance
com mais pormenor é o da mulher gorda que, no pátio para onde dá o
quarto alugado por Winston, constantemente lava e estende roupa. É
sem dúvida significativo o facto de Winston ter a certeza de que a espe-
rança está nos proles (“If there was hope, it lay in the proles! […] The
future belonged to the proles” – NEF: 229) quando contempla o corpo
da mulher, que ele considera bonito, apesar de as suas ancas terem mais
de um metro de diâmetro. Trata-se de um corpo que fascina Winston
porque não respeita as regras da beleza convencional e que, nessa medi-
da, é interpretado como o símbolo de uma classe – a dos proles – que
conhece o sentido da liberdade através da prática contínua da trans-
gressão.
O segundo espaço de simultaneidade que atrás enunciei – o espaço
geográfico e social ocupado pelos corpos dos indivíduos – é também
importante para a compreensão do romance. De facto, a ordem social
imposta em Oceania depende de um conjunto de espaços a que só
alguns indivíduos têm acesso. A hierarquia social – membros do Partido
Interno, do Partido Externo e proles – é determinada em função desses
espaços. Os indivíduos definem-se pois, enquanto seres sociais, pelos
“vistos” que ostentam os seus passaportes. O caos gerado pelos cons-
tantes bombardeamentos, bem como o estado degradado das edifi-
cações fazem, paradoxalmente, parte da ordem imposta pelo Estado do
Big Brother. De facto, como o próprio Winston acaba por descobrir, a
imposição de uma ordem totalitária em Oceania é legitimada pela gera-
ção da sensação de instabilidade, do caos iminente. Por outro lado, o
processo de vigilância pública passa pela promoção de actividades
comunitárias, como aquelas em que Winston e Julia se vêem obrigados
a participar na tentativa vã de ilusão do olhar perscrutador da Polícia do
Pensamento.
No início do romance, a vida pública de Winston, isto é, a sua ocu-
pação dos espaços sociais, pauta-se pelo respeito pelas barreiras que
delimitam os espaços que lhe estão vedados. A sua rebeldia levá-lo-á,
contudo, à contestação dessas fronteiras. De facto, a insurreição de
Winston traduz-se essencialmente numa “conquista espacial”, pela
invasão e ocupação de espaços físicos reais. É o caso do espaço reserva-

95
do aos proles, uma espécie de coutada onde vive, em condições de mar-

NINETEEN EIGHTY-FOUR: CONTRIBUTOS PARA UMA ABORDAGEM ESPACIAL DA DISTOPIA ORWELLIANA Fátima Vieira
ginalidade, uma camada da população descrita pelo Partido como
promíscua, criminosa e ignorante, livre apenas na mesma medida em
que é permitida aos animais a liberdade (“Proles and animals are free”
– NEF: 75). É nesse espaço onde aparentemente a vigilância tentacular
do Partido não chega que Winston aluga um quarto, um quarto só seu,
num acto de celebração triunfal que tem fortes ressonâncias do tom vito-
rioso com que, anos antes, Virginia Woolf assinalara a conquista de um
novo espaço para as mulheres em A Room of One’s Own. O quarto
surge na sequência – e nessa medida assume a feição de momento
climático – de outros espaços de liberdade onde Winston se encontra
com Julia: primeiro no bosque, sendo o encontro dos amantes presidido
por uma natureza descrita de forma intencionalmente idílica, à boa
maneira romântica; depois no campanário da igreja em ruínas, num
cenário mais desagradável, no compartimento por cima dos sinos,
coberto de detritos e com um cheiro horrível a excrementos de pombo.5
Mas o aluguer do quarto e a sua ocupação durante alguns meses são a
verdadeira conquista de Winston, deixando entrever a possibilidade de
criação de espaços de utopia na sociedade distópica do Big Brother.
Trata-se de uma utopia vivida fragmentariamente, entre o trabalho de
Winston e a sua vida pública, momentos de epifania ou heterotopia,
como lhes chama Foucault.
A consideração dos passos heterotópicos de Nineteen Eighty-Four é,
na minha perspectiva, crucial para uma abordagem espacial da obra.
Como explica Gonçalo Vilas-Boas, o conceito foucaultiano de hetero-
topia remete para lugares reais, inscritos na organização social, onde a
utopia se realiza verdadeiramente; são contudo espaços de utopia
momentâneos, cuja realização é possível apenas num período de tempo
limitado em que o tempo histórico é suspenso. As heterotopias, apesar
de se assumirem como anti-espaços da sociedade real, não se apresen-
tam como um espaço alternativo positivo, embora, pela sua presença,
questionem o presente e aspirem a transgredir os seus limites (Vilas-Boas
2002: 103-4).
Da análise que Vilas-Boas nos oferece do conceito foucaultiano de
heterotopia parece-me importante reter a noção de anti-espaço. Na ver-
dade, o quarto alugado por Winston não se inscreve no espaço social
público nem no eixo temporal dominado pelo Partido do Big Brother.
Esta ideia é reiteradamente sublinhada pelas descrições do quarto como
um pequeno paraíso (“Dirty or clean, the room was paradise” – NEF:
157), um mundo à parte, onde o passado se cristalizara (“The room was
96

a world, a pocket of the past where extinct animals could walk” – NEF:
NINETEEN EIGHTY-FOUR: CONTRIBUTOS PARA UMA ABORDAGEM ESPACIAL DA DISTOPIA ORWELLIANA Fátima Vieira

157), um santuário (“[...] the room itself was sanctuary. It was as when
Winston had gazed into the heart of the paperweight, with the feeling
that it would be possible to get inside that glassy world, and that once
inside it time could be arrested” – NEF: 158). Note-se a forma como
para a definição deste anti-espaço contribui, de forma sistemática, a
noção de um conceito de história que contraria a doutrina do Partido.
É de facto recorrente a ideia de passado como utopia de libertação do
homem, tanto a nível espiritual como a nível físico,6 tornando-se por isso
os objectos do passado, que Winston clandestinamente adquiriu, símbo-
los dessa mesma utopia; é o caso do pisa-papéis contendo o coral, sím-
bolo do mundo heterotópico de Winston, do seu anti-espaço:
He turned over towards the light and lay gazing into the
glass paperweight. The inexhaustibly interesting thing was
not the fragment of coral but the interior of the glass itself.
There was such a depth of it, and yet it was almost as trans-
parent as air. It was as though the surface of the glass had
been the arch of the sky, enclosing a tiny world with its
atmosphere complete. He had the feeling that he could get
inside it, and that in fact he was inside it, along with the
mahogany bed and the gate-leg table, and the clock and
the steel engraving and the paperweight itself. The paper-
weight was the room he was in, and the coral was Julia’s
life and his own, fixed in a sort of eternity at the heart of
the crystal. (NEF: 154)
Contudo, como Winston virá a descobrir, o seu pequeno paraíso não
é impenetrável. O rato que lhe invade o quarto, mostrando o focinho
através do buraco do rodapé, causando verdadeiro terror no protago-
nista do romance – “Of all the horrors in the world – a rat!” (NEF: 151)
– anuncia já o final do livro, quando o Partido, através da tortura infligi-
da a Winston por O’Brien, afirma a sua autoridade a todos os níveis,
mesmo a nível do espaço mental.
O espaço mental de Winston – o terceiro dos planos de simultanei-
dade que me propus tratar neste estudo sincrónico da distopia
orwelliana – assume uma feição dupla. Enquanto espaço de memória,
de recordação do passado, a sua função é claramente compensatória.
Assim é quando Winston sonha com a Terra Dourada, construída a par-
tir de imagens idílicas do passado. Parece-me de facto importante assi-
nalar esta passagem do eixo temporal que implica a convencional noção

97
de “Golden Age” para o nível espacial consubstanciado na noção de um

NINETEEN EIGHTY-FOUR: CONTRIBUTOS PARA UMA ABORDAGEM ESPACIAL DA DISTOPIA ORWELLIANA Fátima Vieira
“Golden Country”, tal como Winston o descreve:
Suddenly he was standing on short springy turf, on a sum-
mer evening when the slanting rays of the sun gilded the
ground. The landscape that he was looking at recurred so
often in his dreams that he was never fully certain whether
or not he had seen it in the real world. In his walking
thoughts he called it the Golden Country. (NEF: 32-33)
E aquando do seu primeiro encontro com Julia no bosque, a primeira
reacção de Winston é no sentido da identificação da natureza idílica que
aí encontra com a sua Terra Dourada:
‘Isn’t there a stream somewhere near here?’ he whispered.
‘That’s right, there is a stream. It’s at the edge of the next
field, actually. There are fish in it, great big ones. You can
watch them lying in the pools under the willow trees, wav-
ing their tails.’
‘It’s the Golden Country – almost,’ he murmured.
‘The Golden Country?’
‘It’s nothing, really. A landscape I’ve seen sometimes in a
dream.’ (NEF: 129-130)
Mas se o sonho de Winston com a Terra Dourada assume apenas,
no romance, uma feição saudosista e compensatória, encontramos
simultaneamente, no protagonista de Nineteen Eighty-Four, uma ati-
tude mais interventiva. É, na verdade, no espaço mental de Winston que
se desenham as principais ideias de revolta e toma forma a conspiração
contra o Estado do Big Brother. Parece-me importante fazer notar a
forma como, logo no início do romance, a mente humana é descrita em
termos espaciais: “Nothing was your own except the few cubic centime-
tres inside your skull” (NEF: 29). A resistência ao Estado do Big Brother
faz-se essencialmente em termos da persistência de Winston no sentido
de recordar aquilo que o Estado, que continuamente reescrevia a
história, pretendia ter apagado. Essa é para Winston a prova de que a
resistência e a revolta são possíveis:
Actually, as Winston well knew, it was only four years since
Oceania had been at war with Eastasia and in alliance
with Eurasia. But that was merely a piece of furtive knowl-
edge which he happened to possess because his memory
was not satisfactorily under control. (NEF: 36)
98

Este espaço de memória é, em diferentes passos do romance, descrito


NINETEEN EIGHTY-FOUR: CONTRIBUTOS PARA UMA ABORDAGEM ESPACIAL DA DISTOPIA ORWELLIANA Fátima Vieira

como um verdadeiro espaço de resistência. “Was he, then, alone in the


possession of a memory?” (NEF: 62), a questão que Winston se coloca
depois de ouvir o anúncio de que o Big Brother havia aumentado para
vinte gramas a ração semanal de chocolate quando, na véspera, fora
anunciada uma redução, equivale sem dúvida à equação da possibili-
dade de Winston ser o único a resistir à constante reescrita da história,
instrumento fundamental para a imposição do totalitarismo do Big
Brother.
A resistência de Winston traduz-se assim, num primeiro momento,
na exploração da sua memória, mas também da memória dos outros. É
nesse sentido que ele invade o espaço social dos proles e, num bar, inter-
roga um velho sobre os tempos anteriores à Revolução. Esta ideia da
mente como espaço de resistência e de revolta é explorada ao longo do
romance, levando Winston a concluir que será capaz de vencer o
Partido porque nunca lhe permitirá a invasão do seu espaço mental:
They can’t get inside you. If you can feel that staying
human is worth while, even when it can’t have any result
whatever, you’ve beaten them. (…) They could not alter
your feelings: for that matter you could not alter them
yourself, even if you wanted to. (…) the inner heart, whose
workings were mysterious even to yourself, remained
impregnable. (NEF: 174)
O desfecho do romance provará, contudo, que Winston está errado.
Como O’Brien tratará de lhe explicar, o poder do Estado do Big Brother
é invasivo de todos os níveis do espaço: espaço físico, espaço social e
espaço mental: “(…) power is power over human beings. Over the body
– but, above all, over the mind” (NEF: 277).
Depois do encontro com O’Brien “no lugar onde não há trevas”,7 a
grande vitória do Partido será apresentada como uma vitória de
Winston sobre si mesmo: é que, ao contrário do que ele acreditara, os
homens são mesmo capazes de modificar os seus sentimentos (“He had
won the victory over himself. He loved Big Brother” – NEF: 311).

5. Conclusão
No prefácio que assinou para a edição de Mil Novecentos e Oitenta
e Quatro da Moraes Editora (Lisboa, 1984), José Pacheco Pereira afir-
ma:

99
Quando Orwell (…) publicou [Mil Novecentos e Oitenta e

NINETEEN EIGHTY-FOUR: CONTRIBUTOS PARA UMA ABORDAGEM ESPACIAL DA DISTOPIA ORWELLIANA Fátima Vieira
Quatro], entrava-se na guerra fria e, junto com a obra de
Koestler O Zero e o Infinito, tornou-se um símbolo da pos-
sibilidade de uma cultura contra o comunismo, numa
época em que o anticomunismo assentava em teorias cons-
piratórias e iria revelar a sua esterilidade no macarthysmo.
Mais do que antecipações, o livro (como muita da obra de
Orwell), revelava percepções. (Pereira 1984: 7 – itálico
meu)
Sublinho, neste comentário de Pacheco Pereira, a palavra “percepções”
porque creio que ela se adequa à ideia que tentei expor neste texto. Na ver-
dade, mais importante do que a noção de que o pesadelo orwelliano se
poderá inscrever num futuro mais ou menos próximo, parece-me ser a
percepção de Orwell da forma como esse pesadelo se poderá impor, a
nível espacial, pela invasão do espaço dos indivíduos, por um lado, mas
também, por outro lado, por um ordenamento dos espaços sociais, assente
na definição de fronteiras rígidas e intransponíveis. O totalitarismo do
Estado do Big Brother depende, como espero ter demonstrado, da
manutenção dessas fronteiras, tal como o espírito de resistência dos indiví-
duos à lei leviatânica se pauta pela tentativa de superação dessas barreiras.
O desfecho do romance, com a invasão por parte do Partido do últi-
mo reduto espacial – a mente de Winston Smith –, comporta sem dúvi-
da uma nota pessimista. Será que, com este desfecho, George Orwell
pretendia transmitir a mensagem de que não vale a pena resistir? Helène
Greven-Borde defende a ideia de que o tom com que Orwell fecha o
romance não é totalmente derrotista, pois outro fim não seria aliás pos-
sível: “(…) l’individu qui se dresse seul contre un Etat puissant ne peut
espérer un autre rôle que celui du martyr” (Greven-Borde 1984: 376).
Contudo, na sua opinião, não devemos menosprezar o facto de, no seio
da sociedade distópica, a acção de rebeldes, mesmo que gorada nos seus
propósitos, causar um desequilíbrio. Um desequilíbrio importante –
acrescentaria eu –, porque de qualificação espacial, pela transgressão do
ordenamento dos espaços e pela criação de espaços mentais que se
assumem como espaços de resistência à ordem espacial imposta pelo Big
Brother.

1 Em “The Future of Thinking about the Future” (1995) Ruth Levitas acrescenta à interpre-
tação de Jameson da nova dimensão espacial a ideia de que ela se traduziu essencialmente numa
100

perda da capacidade catalisadora que determinara a pujança da utopia nos séculos XVIII e XIX
(Levitas 1995: 262).
NINETEEN EIGHTY-FOUR: CONTRIBUTOS PARA UMA ABORDAGEM ESPACIAL DA DISTOPIA ORWELLIANA Fátima Vieira

2 Todas as citações de Nineteen Eighty-Four foram retiradas de Orwell 1989, que doravante
será referido pela sigla NEF.
3 Curiosamente, embora o conceito convencional de passado tenha sido abolido, o de futuro
mantém-se, mas num duplo nível de significação: por um lado, prevalece a noção de que o futuro
será sempre igual ao presente (sendo assim introduzida a ideia de “presente eterno”), na medida em
que os proles nunca se revoltarão (“nem em mil anos” – NEF: 253), o Big Brother continuará a fazer
prevalecer a sua lei absolutista e a Oceania continuará em guerra com a Eurasia e a Lestasia; por
outro lado, o apêndice ao livro, sobre os fundamentos do Newspeak, introduz a noção de tempo
como processo de agravamento da ordem existente: “(…) the final adoption of Newspeak had been
fixed for so late a date as 2050” (NEF: 326).
4 Cf. “for ever” (NEF: 253).
5 Ainda assim, o momento é apreendido pelos dois amantes de forma positiva, pois é nessa tarde
sufocante que ficam verdadeiramente a conhecer-se.
6 “He wondered vaguely whether in the abolished past it had been a normal experience to lie
in bed like this, in the cool of a Summer evening, a man and a woman with no clothes on, making
love when they chose, talking of what they chose, not feeling any compulsion to get up, simply lying
there and listening to peaceful sounds outside. Surely there could never have been a time when that
seemed ordinary?” (NEF: 150).
7 A alusão ao “lugar onde não há trevas” é feita, de forma significativa, no início e no final do
romance: “out of the dark” (NEF: 27); “in the place where there is no darkness” (NEF: 185).
Obras Citadas
Greven-Borde, H. 1984. Formes du roman utopique en Grande-Bretagne
(1918-1970) – Dialogue du rationnel et de l’irrationnel. Paris: Presses
Universitaires de France.
Harvey, D. (1989), The Condition of Postmodernity, Oxford, Blackwell.
Hetherington, K. (1997), The Badlands of Modernity, London, Routledge.
Jameson, F. (1984), “Postmodernism, or, the Cultural Logic of Late
Capitalism”, New Left Review, 146, pp. 53-92.
Klein, B. (2001), “Imaginary Journeys: Spenser, Drayton, and the Poetics of
National Space”, in Gordon & Klein (eds.), Literature, Mapping and the
Politics of Space in Early Modern Britain, Cambridge, Cambridge University
Press.
Levitas, R. (1995), “The Future of Thinking about the Future”, Mapping the
Futures – Local Cultures, Global Change, London, Routledge.
Marin, L. (1984), Utopics: Spatial Play, London, Macmillan.
—————, “Frontiers of Utopia: Past and Present”. Critical Inquiry, vol. 19 (3),

101
pp. 397-420.

NINETEEN EIGHTY-FOUR: CONTRIBUTOS PARA UMA ABORDAGEM ESPACIAL DA DISTOPIA ORWELLIANA Fátima Vieira
Orwell, G. (1989), Nineteen Eighty-Four, Harmondsworth, Penguin.
Pereira, J. Pacheco (1984), “Prefácio” in George Orwell, Mil Novecentos e
Oitenta e Quatro, trad. L. Morais, Lisboa, Moraes Editores.
Vilas-Boas, G. (2002), “Utopias, Distopias e Heterotopias na Literatura de
os
Expressão Alemã”, Cadernos de Literatura Comparada. N. 6/7. Org.
Fátima Vieira e Jorge M. Bastos da Silva. Porto, Granito, pp. 95-119.
JOSÉ MANUEL MOTA
UNIVERSIDADE DE COIMBRA

Coming up for Air


e The History of Mr Polly.
Desejos de Utopia:
Triunfos e Derrotas
Se quiséssemos discutir a utopia em obras de H. G. Wells e George
Orwell teríamos provavelmente de começar com When the Sleeper
Wakes (1899) do autor mais antigo e Nineteen Eighty-Four (1949) do
mais novo. Mas neste meu estudo o uso de “utopia” é apenas um pre-

103
texto: é imagem dum desejo, dum anseio por qualquer coisa que não há

COMING UP FOR AIR E THE HISTORY OF MR POLLY. DESEJOS DE UTOPIA: TRIUNFOS E DERROTAS José Manuel Mota
no real quotidiano, esse mundo que enferma dos defeitos que lhe co-
nhecemos (e que incluem os próprios defeitos dos heróis dos livros onde
eles aparecem). Os “heróis” (os protagonistas) de que irei falar são, como
se vê pelo meu título, Alfred Polly em The History of Mr Polly (1910) de
Wells e George Bowling em Coming up for Air (1939) de Orwell.
À primeira vista pouco ou nada terão a ver com utopia. Sobre Polly,
e o seu criador Wells, deixou Orwell escrito:
The ultimate subject-matter of H. G. Wells’s stories is, first
of all, scientific discovery, and beyond that the petty snob-
beries and tragicomedies of English life, especially lower-
middle-class life. His basic “message” (…) is that Science
can solve all ills (…) but that man is at present too blind to
see the possibility of his own powers. The alternation
between ambitious Utopian themes and light comedy (…)
is very marked in Wells’s work. He writes about journeys
to the moon (…) and also he writes about small shopkeep-
ers dodging bankruptcy and fighting to keep their end up
in the frightful snobbery of provincial towns. (Orwell 1970,
234)
A parte final da citação assenta como uma luva n’A História do Senhor
Polly: Polly é evidentemente o pequeno lojista à beira da bancarrota
porque a sua educação foi inadequada (ele é mau em matemática, defi-
ciente em língua materna). Wells, cujo primeiro trabalho a seu gosto foi
como professor, e em 1910 era um romancista de relevo, não deixou
nunca de se empenhar no que chamamos “a batalha da educação”. Em
Mr Polly mostra-nos (como o fizera em Kipps, de 1905) todas as defi-
ciências do sistema de ensino, da falta de preparação dos professores à
desadaptação e lacunas dos curricula.
O facto de ambas as narrativas terem uma única personagem prin-
cipal apresenta problemas estruturais específicos. Comecemos por
reconhecer a superioridade estética de The History of Mr Polly. É um
texto muito feliz, extremamente conseguido: “Wells the artist was
untroubled by Wells the scientist” (Brome 1952: 110) e, enquanto narra
a história do seu pequeno herói, vai incluindo (como noutras ficções suas
da época) elementos autobiográficos sempre que convém, mas sempre a
partir de fora, como um narrador “honesto”. Já Orwell reconhece a sua
dificuldade em separar claramente o autor da sua personagem. Escrevia
a Julian Symons: “you are perfectly right about my own character cons-
104

tantly intruding on that of the narrator” (Orwell 1970: 478). A questão,


COMING UP FOR AIR E THE HISTORY OF MR POLLY. DESEJOS DE UTOPIA: TRIUNFOS E DERROTAS José Manuel Mota

ou o problema, pode ter a ver com o facto de se tratar duma narrativa


na primeira pessoa;1 D. S. Savage acusa-o de “empathiz[e] with naïve
directness with his heroes” (Savage 1983: 131). Embora Bowling não
seja tão ignorante quanto Polly, não podemos deixar de notar que pensa
por assim dizer acima das suas capacidades, que os seus pensamentos
são os de Orwell (muitas reflexões a propósito da guerra iminente, ideias
e tópicos depois assumidos e explorados em Nineteen Eighty-Four,2
além duma maneira aziumada de ver o mundo à sua volta).
Há elementos reconhecidamente autobiográficos em The History of
Mr Polly (começando nas cenas do Purdock Bazaar; Polly é uma “won-
derful incarnation of what might have happened to Wells without edu-
cation” [MacKenzie 1993a: 187]). Sobre Coming up for Air escreveu
Alex Zwerdling que “Orwell tried to invent a character very different
from himself”, e que só aí “we feel we can trust the observations of the
hero” (Zwerdling 1974:157); mas o mesmo Zwerdling tinha reconheci-
do algumas páginas antes “Orwell’s frequent confusion between himself
and his major characters. In his early novels (…) the hero often acts as a
spokesman of the author himself” (ibidem, 146), ao passo que John
Rodden vai ao ponto de chamar ao protagonista “the most autobio-
graphical of Orwell’s heroes and a thinly disguised mouthpiece of the
author’s own views” (Rodden 1998: 164).
* * *

Alfred Polly, e tal como ele George Bowling, herói e narrador na


primeira pessoa de Coming up for Air, são ambos, de certo modo,
pobres diabos: gente da baixa classe média, que levam vidas monótonas,
ou simplesmente duras, e que gostariam de largar. De trocar por outras.
Na sua juventude Bowling calculava vir a ser dono duma loja, como
o pai; Polly, que começara por trabalhar numa loja de fazendas, acabou,
graças à apólice herdada por morte do pai, dono duma loja.3 A questão
de arranjar modo de vida, tal como a de arranjar mulher, é para ambos
um acaso que lhes acontece: e vêem-se a braços com profissões sem pers-
pectivas de futuro (no caso de Poly, conduzindo à falência) e com mu-
lheres que não amam e de quem bem gostariam de desfazer-se.
Polly e Bowling estão sujeitos ao “Destino”: e o Destino é para eles
antes de mais as leis económicas e sociais, que eles não compreendem
com clareza. “For most of his life, Polly is the victim of a deterministic
world” (Parrinder 1970: 81); tudo e todos o massacram: são os conse-
lhos do primo, os comentários e apartes dos parentes, e as leis do mer-

105
cado que ditarão a falência, além da própria dispepsia (Parrinder insiste

COMING UP FOR AIR E THE HISTORY OF MR POLLY. DESEJOS DE UTOPIA: TRIUNFOS E DERROTAS José Manuel Mota
na dispepsia como metáfora, ibidem, 79). E D. S. Savage condensa deste
modo o romance típico de Orwell: “the story of a single individual’s di-
saffection from his society, his partially successful retreat or escape from
it, and his final return (…) leading (…) to resigned conformity. (…) The
philosophy is fatalistic” (Savage 1983: 130).
Bowling é algo mais perspicaz que Polly: compreende em certa
medida as razões que levaram o pai a ser derrotado no seu honrado
negócio por um concorrente mais dinâmico e mais moderno, a casa
Sarazins que, desde 1909, “would systematically under-sell him, ruin
him, and eat him up” (Orwell 1983: 485). Está do mesmo modo per-
feitamente consciente da sua dependência de circunstâncias que o trans-
cendem; vive amarrado à hipoteca da casa, e sem ilusões quanto a pro-
gressão na carreira tampouco:
I’d got a job and the job had got me. I was a promising
young fellow in an insurance office – one of those keen
young businessmen with firm jaws and good prospects that
you used to read about in the Clark’s College adverts – and
then I was the usual down-trodden five-to-ten-pounds-a-
weeker in a semidetached villa in the inner-outer suburbs.
(ibidem, 480)
Nem um nem outro dos nossos pequenos heróis parece compreender
(ou esforçar-se por compreender) as leis do “Destino” — as leis que
regem o mundo em que vivem. Tanto Wells como Orwell eram socia-
listas, por muito divergentes que fossem as suas concepções, mas “socia-
lism and the rights of man [were] things that had no appeal for Mr
Polly” (Wells 1993: 27); quanto a Bowling, revela-se não só extrema-
mente crítico do activismo político (quando assiste à conferência sobre
“A Ameaça do Fascismo” na secção local do Left Book Club, por sinal
narrada do ponto de vista do próprio Orwell), como também o seu
medo da guerra, ou melhor, do futuro pós-guerra, se manifesta sobretu-
do como uma jeremiada, lamentando o que irremediavelmente se
perdeu. O segundo pós-guerra em si mesmo “isn’t likely to affect me per-
sonally. Because who’d bother about a chap like me? I’m too fat to be a
political suspect. (…) As for Hilda and the kids, they’d probably never
notice the difference” (Orwell 1983: 528). Entre a propaganda anti-
fascista, de esquerda ou tão-só liberal, e o seu amigo o velho reitor que
parece viver fora deste mundo, entre a ameaça de guerra e as suas roti-
nas diárias, Bowling refugia-se nas memórias do passado. Até as parang-
106

onas do jornal — o casamento do rei da Albânia – o fazem evocar a


COMING UP FOR AIR E THE HISTORY OF MR POLLY. DESEJOS DE UTOPIA: TRIUNFOS E DERROTAS José Manuel Mota

infância. Ai, aquilo é que eram tempos! Ou, glosando o Orwell ensaísta,
such, such were the joys…
Possibilidades de escapar a este tristonho ramerrão não há. Bowling
chegou a pensar em matar a mulher nos primeiros anos do casamento,
mas lá se resolveu a desistir: é que “chaps who murder their wives always
get copped (…). When a woman's bumped off, her husband is always the
first suspect” (ibidem, 510). Quanto a abandonar o lar (mulher e filhos)
“and start a life under a different name […, t]hat kind of thing only hap-
pens in books” (ibidem, 529). E é bem verdade: é o que acontece em The
History of Mr Polly, um livro que Bowling lera na juventude e lhe tinha
causado uma enorme impressão.
Sim, a sorte de escapar àquilo tudo que o aflige acontece de facto no
romance de H. G. Wells. O episódio em que isso se narra tem algo de
farsa. A única maneira que Polly descobre de sair de cena é suicidar-se:
mas, como quer deitar fogo à casa ao mesmo tempo que corta as goelas,
acontece que o fogo se espalha antes de ele consumar o suicídio, e vê-se
obrigado a chamar por auxílio. No fim da aventura, vivo e sem casa,
tem felizmente o dinheiro do seguro a receber: mas não cairá agora na
asneira de usá-lo e tornar-se mais uma vez um dos “small shopkeepers
who have (…) been thrown out of employment (...) and who set up in
needless shops as a method of eking out the savings upon which they
count” (Wells 1993: 105).4 Decide simplesmente desaparecer: “clear
out” (ibidem, 137). Descobre subitamente que “Fishbourne, as he had
known it and hated it, so that he wanted to kill himself to get out of it,
wasn’t the world” (ibidem). E depois seguem-se as aventuras deste feliz
e prestável vagabundo que, no final da história, tendo de confrontar-se
fisicamente com um malandrim de maus fígados, em vez de fugir, “turns
back to confront his destiny, and is saved, and enters into his personal
utopia” (MacKenzie 1993b: xxxvi, itálico meu).

* * *

Apesar das peculiaridades que os diferenciam, Polly e Bowling são


ambos pessoas simples; se desejam fugir à vida que levam é porque
gostariam de inverter “the image of the hunger, toil, and violence in the
authors’ everyday lives” (Suvin 1979: 56) – no quotidiano dos seus
autores e/ou deles próprios (enquanto personagens numa ficção). Esta
imagem invertida da fome, labuta e violência é o que, nas palavras de
Darko Suvin, caracteriza precisamente um género aparentado com a

107
utopia: o País de Cocanha.

COMING UP FOR AIR E THE HISTORY OF MR POLLY. DESEJOS DE UTOPIA: TRIUNFOS E DERROTAS José Manuel Mota
É também com um capítulo sobre a Cocanha que A. L. Morton
começa o seu The English Utopia. Na Idade Média, o País de Cocanha
existia na mente dos servos, isto é, de povo vivendo numa economia pré-
capitalista e, como tal, ignorando essa forma ulterior de exploração.
Polly parece igualmente ignorar as misteriosas leis que regem o fun-
cionamento do capitalismo; é um fracasso a administrar o seu próprio
capital; e quando a sua regeneração – se assim lhe podemos chamar –
chega, é sob a forma dum nível económico mais primitivo, um modo de
vida mais pachorrento, sem sobressaltos nem brusquidões, um modo de
vida que é, nas palavras de Patrick Parrinder, “a consummation of his
romantic medievalism in knight-errantry, in defence of a riverside inn
which itself has a strong literary and pastoral flavour. Mr Polly ends, in
fact, as a Thames valley romance” (Parrinder 1970: 83). O que nos
remete (como remete o crítico) para o William Morris de News from
Nowhere.
Bowling, que não sofre de dispepsia nem está tão desesperado como
Polly, mas tão-só deprimido, tem a possibilidade de voltar ao mundo
perdido da sua juventude; e esse seu mundo, tal como o descreve, evoca
realmente uma terra de Cocanha, com as referências a comida, doces (e
que baratos que eram, comparados com os de hoje!) e, central metáfora
utópica do mundo da infância e juventude, a referência à pescaria. No
País de Cocanha, gansos assados voam para as bocas dos habitantes gri-
tando “Comam-me!”; em Lower Binfield, a terra natal de Bowling,
havia a lagoinha secreta com as carpas “enormes”, à espera que George
as fosse pescar. Nesta utopia de criança, “it was summer all the year
round” (Orwell 1983: 450); e, ainda que contradizendo-se, Bowling diz
primeiro que “I don’t idealize my childhood, and unlike many people
I’ve no wish to be young again” embora “in a manner of speaking I am
sentimental about my childhood – not my own particular childhood,
but the civilization which I grew up in” (ibidem, 473). E noutro lugar
mais adiante: “Christ! What’s the use of saying that one is not sentimen-
tal about ‘before the war’? I am sentimental about it. (…) people then
had something that we haven’t got now” (ibidem, 492).
Lower Binfield de antes da guerra é a utopia pessoal de Bowling; as
enormes carpas atrás referidas, “the carp stored away in my mind (…)
[p]ractically they were my carp” (ibidem, 491-2). Ou seja: um lugar
alternativo – não West Bletchley, onde agora vive com a família, mas
Lower Binfield; e, no caso de Polly, não Fishbourne, mas a estalagem de
Potwell Inn, onde se fixa no final da história – são os “lugares outros”
108

por que os nossos heróis anseiam. Relembro a primeira frase do livro de


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A. L. Morton: “In the beginning utopia is an image of desire” (Morton


1978: 15). E interrogo-me se não serão afinal todas as utopias “utopias
pessoais”: não no sentido de que são os livros escritos pelos seus autores,
que exercem a sua autor-idade e o seu controlo, mas porque são imagem
do desejo dos heróis destas ficções, sejam ou não utopias no sentido estri-
to da técnica literária.
Coitado do gorducho George Bowling! A visita ao torrão natal sal-
dou-se numa longa série de desilusões. Tem-se uma sensação parecida
com a de certos episódios da Twilight Zone, em que a personagem viaja
a um lugar que lhe era familiar e experimenta uma sensação de estra-
nheza assustadora, porque tudo está mudado e irreconhecível. O que
Wells teria talvez chamado “progresso” fez da modesta e semi-rural
Lower Binfield uma vila incaracterística – afinal, uma vila com as ca-
racterísticas do primeiro pós-guerra. Se Potwell Inn e arredores foram
um idílio no vale do Tamisa para Alfred Polly, Lower Binfield é para
George precisamente o contrário, uma visão dum vale do Tamisa infer-
nal. A terra cresceu imenso; as pessoas já não se conhecem – nem se
reconhecem. Elsie, a antiga amante de George, não o reconhece; tam-
pouco o velho pároco. Além destes dois, George não encontra mais
ninguém do seu tempo. Os velhos lugares mudaram de dono, de nome,
de negócio: a casa onde habitou é agora uma casa de chá; Binfield
House, a imponente mansão da vila, é agora um manicómio (“a loony-
bin”, Orwell, 1983: 547); o lago das carpas foi drenado e transformado
“into a rubbish-dump” (ibidem, 559). O visitante esperava alguma con-
solação da sua visita; não obteve nenhuma.

* * *

A ideia da escapadela até Lower Binfield tinha surgido a George


Bowling quando parou o carro na berma da estrada para ir apanhar um
ramo de flores: “I picked up my bunch of primroses and had a smell at
them. I was thinking of Lower Binfield”. Daí veio a nascer a lembrança
de “slipping down to Lower Binfield and having a week there all by
[him]self, on the Q.T.” (ibidem, 529). Pela calada (“on the Q.T.”) que-
ria dizer: arranjar uma história crível para que a mulher não viesse a
saber de nada.
O modo como Bowling prepara pela calada a sua semana em Lower
Binfield até nos fará lembrar a aventura de Mr Barnstaple, o pequeno
herói de Men Like Gods (1923). Este texto wellsiano já é efectivamente

109
uma utopia, um romance utópico, não uma história passada inteira-

COMING UP FOR AIR E THE HISTORY OF MR POLLY. DESEJOS DE UTOPIA: TRIUNFOS E DERROTAS José Manuel Mota
mente no mundo real como as outras duas que nos ocupam aqui. Alfred
Barnstaple é redactor dum jornal liberal; tem uma vida familiar sofrí-
vel, com os problemas de toda a gente, não tem pela sua cara-metade o
ódio que Polly e Bowling votam às suas. Tal como Bowling, gostaria de
se livrar dos afazeres quotidianos por algum tempo; anda neurasténico,
o médico aconselha-o a tirar umas férias. Só que umas férias a sério teri-
am de ser sem levar a família atrás, a mulher e os miúdos já crescidotes;
portanto terá de ir sozinho. Terá de fazer as coisas pela calada, arranjar
“um esquema”, tal como George; só que não precisa de inventar uma
patranha completa, basta levar discretamente uma mala de roupa para
a garagem, e dar à mulher uma resposta vaga ou evasiva quanto ao des-
tino que leva.
Por um passe de mágica retórica, Wells leva o senhor Barnstaple, ao
volante do seu automóvel, para um mundo paralelo utópico. No fim das
suas aventuras por lá, é devolvido são e salvo ao seu mundo; de modo a
confirmar o êxito da transferência de matéria-energia entre os dois uni-
versos, Barnstaple deverá depositar à chegada uma flor que os seus ami-
gos utopianos lhe deram no lugar da intersecção onde ele reapareceu,
nas imediações de Maidenhead. Assim faz; mas, com a flor da utopia
nas mãos, resolve guardar uma pétala como recordação – para afinal
vê-la rapidamente apodrecer no ar deletério do nosso mundo poluído.
É este o sentido final de todas as utopias. Enquanto narrativa a
utopia é sempre uma viagem a outro lugar (um não-lugar, o que quer
que seja) – e o regresso. Pede-o a lógica narrativa, pede-o a retórica;
recordemos as palavras de Rafael Hitlodeu: “I lived there more than five
years and would never have wished to leave except to make known that
new world” (More 1964: 55; itálico meu). Num outro sentido, o viajante
aprende com a viagem, e numa viagem à Utopia aprende-se mesmo
muito. “True voyage is return”, diz Ursula Le Guin num contexto não
de todo diverso (Le Guin 1975: 76).
Mr Barnstaple regressa com a sua pétala murcha como prova de que
a estadia na Utopia não fora um sonho – tal como o Viajante do Tempo
trouxera de um dos seus futuros “two strange white flowers” (Wells
1995: 83); Borges, em “La Flor de Coleridge”, comentou o tópico.
Barnstaple regressa edificado, revigorado, decidido a colaborar no
grande esforço a que Wells chamara “the open conspiracy”.
Se Mr Polly encontrou a sua “utopia pessoal”, e por lá ficou, não
precisaremos de nos preocupar muito mais com ele. É George Bowling,
a quem deixámos há pouco a apanhar um braçado de prímulas, que
110

merece a nossa atenção enquanto visitante da sua distópica Lower


COMING UP FOR AIR E THE HISTORY OF MR POLLY. DESEJOS DE UTOPIA: TRIUNFOS E DERROTAS José Manuel Mota

Binfield. Fora ela a utopia ansiada, bem poderia George ter trazido de
lá a carpa como prova da realidade da visita; até talvez conseguisse con-
vencer a ciumenta Hilda de que não andara com outra. A única coisa
com fartura neste País de Cocanha foi copos. Bebeu muito, demais – e
pagou tudo o que bebeu. Também pagou o material de pesca, afinal
para descobrir que não tinha que fazer com ele: já não se pesca em
Lower Binfield. Assim, acaba por deixá-lo na pensão: “I left my new rod
and the rest of the fishing tackle in my bedroom. Let’em keep it. No use
to me. It was merely a quid that I’d chucked down the drain to teach
myself a lesson. And I’d learnt the lesson all right” (ibidem, 564). Deixar
ali cana, anzóis e isco é triste e amargo: é bem o contrário de trazer uma
flor da utopia. Será que ao menos aprendeu a lição?
A propósito de Alfred Polly diz o narrador: “when a man has once
broken through the paper walls of everyday circumstance, those un-
substantial walls that hold so many of us securely prisoned from the cra-
dle to the grave, he has made a discovery. If the world does not please
you you can change it” (Wells 1993: 137). O sentimento de que se pode
afinal mudar o mundo por nossa iniciativa é o que transparece no final
de Men Like Gods: “I don’t want a safe job now. I can do better. There’s
other work before me” (Wells 1923: 325).
E afinal o que ganhou Bowling? A mulher nunca acreditará na ver-
dade, e se acreditasse descobria que ele tinha malbaratado dezassete
libras. É melhor deixá-la julgar que andou com outra e aturar-lhe o ser-
mão, “take [the] medicine” (Orwell 1983: 571), as queixas e recrimi-
nações todas. Como deixou escrito D. S. Savage, para o citarmos uma
última vez, “the Orwellian man (…) sees no option but to submit queru-
lously to the mechanical course of events” (Savage 1983: 130).
A lição aprendida por Bowling é a lição da distopia: não há saída(s).
Esta personagem de quem o autor fez uma espécie de Polly dos anos 30
“return[s] to his everyday’s tasks at Flying Salamander Insurance. (Mr
Polly’s neighbour little Clamp of the toy shop was insured with Royal
Salamander)”, como nota Christie Davies; que continua, “the Royal
Salamander has flown, and so has Wellsian joy and optimism of Mr
Polly’s escape – George Bowling will become Winston Smith” (Davies
1990: 94).

* * *

Um último ponto, uma última observação a propósito da lição

111
aprendida por Bowling e da libertação concedida a Polly. Recordemos

COMING UP FOR AIR E THE HISTORY OF MR POLLY. DESEJOS DE UTOPIA: TRIUNFOS E DERROTAS José Manuel Mota
que Bowling tinha reconhecido que a verdadeira liberdade só se encon-
trava em livros. Assim, o livro dentro do livro em Coming up for Air
sendo obviamente The History of Mr Polly, o romance de Orwell
assume como que um nível de veracidade acima de Mr Polly. Só em
livros assim é que pode haver finais felizes; Bowling sabia que fugir de
casa e começar uma vida nova só acontece em livros assim. E não
obstante, quando lera o romance de Wells, pelos seus vinte anos, tinha
sido um livro
exactly at the mental level you’ve reached at the moment,
so much that it seems to have been written especially for
you. (…) I wonder if you can imagine the effect it had upon
me, to be brought up as I’d been brought up, the son of a
shopkeeper in a country town, and then to come across a
book like that? (Orwell 1983: 501)
Lera-o como uma história possível da sua própria vida; mas pelo rumo
que as coisas levaram, uns quinze anos mais tarde, a sorte de Polly em
“clearing out” era, claro, uma coisa de sonho, uma fantasia.
Isto é também um aspecto da complexa relação de amor-ódio que
unia Orwell a H. G. Wells. Orwell valorizava em Wells os romances
“pós-dickensianos” que retratavam a baixa classe média (Kipps, Mr
Polly, Love and Mr Lewisham) e desprezava a produção posterior (mas
já sobre The New Machiavelli, ainda de 1910, achava que “[it] must be
written down as failure”, Orwell 2001: 4).
No ensaio introdutório a H. G. Wells under Revision, Patrick
Parrinder sublinha o papel de Orwell no estabelecimento duma apreci-
ação unilateral de Wells que sobrevaloriza a ficção científica da juven-
tude e os romances escritos até à Primeira Guerra Mundial, minimizan-
do os seus trabalhos ulteriores em vários campos, nomeadamente
enquanto utopista. E aqui encontramos uma via fascinante para uma
leitura metaliterária de Coming up for Air. “The History of Mr
Bowling”, enquanto re-escrita entre as duas guerras do romance
wellsiano, é não só distópico, mas traduz as reflexões do autor sobre o
que para ele era o melhor Wells, o qual faz parte duma utopia pessoal
orwelliana, também ela irremediavelmente perdida. A recusa do final de
Mr Polly como irrealizável no mundo real por parte de Bowling é a
recusa da utopia — mesmo desta utopia travestida de novela fantasiosa
— pelo anti-utopiano Orwell. As condições mudaram, passou o tempo
da velha fantasia wellsiana. E novela fantástica — uma tradução que às
112

vezes proponho para o intraduzível inglês “romance” — que é fantasia,


COMING UP FOR AIR E THE HISTORY OF MR POLLY. DESEJOS DE UTOPIA: TRIUNFOS E DERROTAS José Manuel Mota

literatura de evasão, implica a compreensão do que A. L. Morton


chamava “image of desire”.

1 Com uma reserva: “There is no truth in Orwell’s statement that the ‘vice’ of confusing the nar-
rator with the author is inherent in the form of the first-person narrative” (Zwerdling 1974: 148).
2 “I can see the war that’s coming and I can see the after-war, the food-queues and the secret
police and the loudspeakers telling you what to think” (Orwell 1983: 524).
3 “I came out of the army with no less than three hundred and fifty quid… Here I was, with
quite enough money to do the thing I’d dreamed of for years —that is, start a shop” (Orwell 1983:
504). Quanto a Polly, quando o pai morreu, “[he] found himself heir to (…) an insurance policy of
three hundred and fifty five pounds” (Wells 1993: 37).
4 Na mesma página o texto continua: “Essentially their lives are failures… a slow, chronic
process of consecutive small losses which may end, if the individual is exceptionally fortunate, in an
impoverished death-bed before actual bankruptcy or destitution supervenes”. Não é cópia ipsis ver-
bis, mas está muito próximo da história do pai de George Bowling: “A small shopkeeper going down
the hill is a dreadful thing to watch (...) It was a race between death and bankruptcy, and, thank God,
death got Father first” (Orwell 1983: 489-490).

Obras Citadas
Borges, Jorge Luis (1985), “La Flor de Coleridge”, Otras Inquisiciones, Madrid,
Alianza Editorial [1960].
Brome, Vincent (1952), H. G. Wells, A Biography, London, The Non-Fiction
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