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O Historiador

e a Sociedade1
Emília Viotti da Costa
Professora Emérita da Universidade de São Paulo

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As relações entre o historiador e a sociedade caminham numa via dupla. O
ARTIGOS

trabalho do historiador, queira ele ou não, é produto da sociedade e do tempo em


que vive. A vivência do presente afeta a construção do passado. Ao mesmo tempo, o
posicionamento do historiador na sociedade marca os limites de sua visão. Suas expe-
riências definem suas motivações e explicam porquê e para quê ele se debruça sobre a
história. Seu projeto inspira-se em problemas sugeridos pela posição que assume na
sociedade. Seus temas e seu método são função dos objetivos que pretende alcançar
e das razões que o levam a estudar a história. Sua própria definição do que é história
nasce a partir dessas coordenadas.
Por outro lado, a versão que o historiador apresenta do passado, contribui para
a preservação ou para a mudança da sociedade. Isso confere ao historiador enorme

1 Aula inaugural do Departamento de Historia da USP em 1998 proferida pela Professora Emília Viotti da
Costa
responsabilidade e requer de todo aquele social que hoje atinge não só as classes da década de 1980.
que se dedica a essa tarefa uma profunda subalternas, como também setores da Jacob Burkhardt, foi conhecido no
reflexão sobre a natureza dessas relações, classe média. Porém, tendo em vista que Brasil por sua obra sobre a cultura e a
a fim de evitar que venha a descobrir tar- hoje existe uma tendência conservadora Civilização da Renascença, não por aca-
de demais que tomou a via errada. bastante forte na historiografia, da qual so analisado na obra de Hayden White,
Quem ingressa no curso de Histó- os próprios historiadores que a praticam Meta História: Imaginação Histórica no
ria de uma Universidade estará iniciando nem sempre chegam a ter consciência, Século XIX, de onde extraí a maioria
uma longa conversa que encaminhará a achei conveniente examinar quais foram dos dados referentes a Burkhardt.
discussão desses problemas durante todo as origens e os pressupostos dessa histo- Vivendo na Europa durante o sé-
o curso. Justifica-se, assim, que, apesar riografia. Para isso, nada melhor do que culo XIX, Burkhardt, suíço de origem e
da impossibilidade de levantarmos, hoje, examinar momentos que no passado le- de formação calvinista, foi professor du-
todas as questões que o tema sugere, es- varam alguns historiadores brilhantes a rante boa parte de sua vida na Universi-
tejamos aqui reunidos para dar início a pôr em circulação uma visão conserva- dade da Basiléia, onde ensinou de 1843
esse debate. dora e elitista do mundo, num movimen- a 1852 e de 1858 a 1893. Durante sua 9
Quero apresentar dois exemplos to que hoje se repete, uma visão que, em- vida foi testemunha de numerosas re-
que elucidam algumas dessas questões. bora hoje se apresente como inovadora, voluções liberais e conflitos sociais que
Para isso, escolhi deliberadamente dois representa de fato uma volta ao passado. sucederam à Revolução Francesa e aba-
historiadores conservadores. Os que me Nesta conversa quero referir-me a laram a Europa até pelo menos o princí-
conhecem ou leram meus trabalhos, cer- dois famosos autores. O primeiro, Jacob pio do século XX, quando a Revolução
tamente, se espantarão diante dessa es- Burkhardt, viveu no século XIX (1818- Russa deu início a um novo ciclo revolu-
colha. Minha vida tem sido uma recusa 1893), mas até hoje é considerado um cionário. Politicamente, Burckhardt era
permanente da posição conservadora que historiador exemplar. O segundo, Philli- um liberal que, como muitos outros que
no Brasil significa a perpetuação de uma pe Ariès, (1914-1984), também muito viveram numa época de grandes trans-
sociedade imensamente desigual e injus- popular nos dias que correm, publicou formações sociais e políticas, reage ne-
ta, que é, ao mesmo tempo, a origem e seus primeiros trabalhos no fim da déca- gativamente às revoluções e aos proces-
o resultado do precário desenvolvimen- da de 1940 e teve uma de suas primeiras sos de democratização que lhe parecem
to econômico e do crescente mal-estar obras reeditadas em português nos fins avassaladores. Algo parecido sucedeu
ao nobre francês, Alexis de Toqueville Descrevendo a experiência de fé no liberalismo. Sua querida Basiléia,
(1805-1859), o qual, diante do inevitável Burkhardt, Hayden White, o autor de para onde fora com o fim de ensinar na
avanço revolucionário, lembrou às elites Meta História, comentou que Burkhar- Universidade, foi violentamente sacudi-
francesas que era melhor guiar o proces- dt observou um mundo em que a virtu- da pela guerra civil, e ele sentiu que tudo
so do que se opor a ele. Para isso, foi de fora habitualmente traída, o talento que valorizava na velha cultura européia
aos Estados Unidos conhecer a democra- pervertido e o poder posto a serviço de estava sendo ameaçado pelos radicais.
cia. Dessa viagem resultou um livro: A causa torpe. Vira muito pouca virtude em Na ocasião observou:
Democracia na América, publicado em sua própria época e não encontrara nada (...) tenho demasiado conhecimento da
dois volumes. O primeiro em 1835 e o a que pudesse dar sua adesão irrestrita. história para saber que não devo esperar
segundo em 1840, que posteriormente ti- Sua devoção era à cultura da velha Eu- do despotismo das massas senão uma ti-
veram numerosas edições e são, até hoje, ropa, mas a considerava decadente, uma rania futura que significará o fim da his-
lidos com proveito por aqueles que se ruína impossível de restaurar. Apenas lhe tória. Quero livrar-me de todos eles, dos
encontram diante de dilemas semelhan- restava, portanto, relembrá-la com nos- radicais, dos comunistas, dos industriais,
tes e têm os mesmos receios a respeito da talgia. dos intelectuais, dos presunçosos, dos ar- 10
ascensão das massas e do pleno funcio- Burkhardt desprezava a política gumentadores e assim por diante, enfim
namento da democracia. As respostas de por julgá-la incompatível com os gos- dos “istas” e dos “ismos” de toda espé-
Burkhardt aos desafios de seu tempo são, tos de um cavalheiro, tão incompatível cie. Pretendo viver uma vida privada, ser
no entanto, diversas das de Tocqueville. quanto os negócios. Na sua opinião, a um amigo afetuoso, uma boa alma, não
Enquanto este parece encontrar uma so- política desviava o indivíduo daquele posso ter nada a ver com a sociedade em
lução na noção muito comum, desde en- assíduo culto da elegância que admira- geral.
tão: façamos reformas antes que o povo va nos antigos gregos e nos italianos do A partir de então, Burckhardt re-
as faça, Burckhardt se retrai diante do Renascimento. “Nunca pensaria em me fugiou-se numa torre de marfim. Final-
que pensa ser a massificação da socie- tornar um agitador e um revolucionário”, mente, a partir de 1860, embora tives-
dade, a decadência da cultura. Refugia- diria ele em 1843, quando por toda parte se atingido o pináculo de sua carreira e
se no esteticismo na histoire tableau, na na Europa preparavam-se revoluções. As fama, recusou-se a publicar. Assistia ao
contemplação de tempos, a seu ver, mais revoltas e insurreições que puseram um fracasso do liberalismo, previa como
“virtuosos”. fecho à década de 1840 abalaram-lhe a conseqüência o nihilismo e negava-se a
entrar na luta. Julgava que seu isolamen- segunda década do século XIX, a filoso- de convertê-los em uma imagem agradá-
to o eximia de qualquer responsabilidade fia de Schopenhauer só recebeu atenção vel de contemplar. O conhecimento his-
ulterior pelo caos vindouro. a partir de 1850. Todo seu sistema era tórico era pois uma forma de cognição
Criou uma teoria da sociedade e uma tentativa de desqualificar a história de segunda ordem. Algo muito parecido
da história a partir dessas experiências. e demonstrar porque as preocupações so- acontece hoje, quando se nega qualquer
Dedicou-se ao estudo da cultura da Re- ciais e os interesses históricos são irrele- objetividade ao conhecimento histórico e
nascença e da Grécia. Nos seus trabalhos vantes. Esta visão reacionária, egoísta e se fala no fim da história.
voltou-se para a arte e a arquitetura. A pessimista expressava, segundo Hayden A visão da história de Schope-
história da cultura o atraía, focalizou a White, o ponto de vista da classe média nhauer aproxima-o mais de um Tucíde-
vida social das elites. Recusou-se a acei- alemã da época. O mundo social de Scho- des, que inventava discursos para seus
tar a existência real dos acontecimentos penhauer era um agregado de indivíduos personagens, do que de seu contempo-
e encontrou justificativa na filosofia de atomizados, cada qual aprisionado den- râneo, o historiador Leopold Ranke, o
Schopenhauer, (1788-1860), autor de O tro dos próprios desejos, indivíduos coli- qual vivia obcecado em descobrir o que
Mundo como Vontade e Representação, dindo uns com os outros em movimentos realmente acontecera no passado e como 11
com quem ele convivera na Universidade aleatórios, cada um parecendo simples- recuperá-lo. Para Schopenhauer a ficção
da Basiléia, filósofo que serviu no passa- mente um possível meio de satisfação era superior ao fato. Todas as instituições
do e continuaria a servir no presente de egoísta para todos os demais. sociais eram despojadas de qualquer va-
inspiração para a direita política. No sistema de Schopenhauer, a lor e todos impulsos sociais eram vis-
A concepção de mundo de Scho- história ocupava uma posição secun- tos como erros ou falhas. Sua filosofia
penhauer satisfaria as necessidades de dária, pois ele se fundava na convicção era profundamente narcisista. Sua visão
muitos intelectuais do terceiro quartel do que não existia uma realidade objetiva ajustava-se perfeitamente às necessida-
século. Sua filosofia refletia o clima que independentemente da consciência que des daqueles segmentos da sociedade
se instaurou na Europa depois da Restau- a percebe. Para ele, que não acreditava que, como Burkhardt, queriam ignorar
ração monárquica na França, quando o na objetividade do processo histórico, o por completo as questões sociais. Era
os Bourbons foram chamados a assumir trabalho do historiador limitava-se a se- visível a repugnância de Schopenhauer
de novo o trono da França. lecionar os materiais históricos, aceitan- pela sociedade em que vivia e sua recu-
Embora tivesse sido concebida na do-os ou rejeitando-os à vontade, a fim sa de qualquer ação pública ou privada,
visando mudar a sociedade para melhor. no entanto, para Burkardt, nada havia a em 1871, mas durante as quais setores
Para ele, a história aparecia como refú- fazer senão deixar a cidade pelo campo e populares ganharam uma presença mar-
gio da realidade presente, permitindo aguardar; cultivar a conversa com alguns cante na sociedade e passaram a ser vis-
ao historiador, isolar-se da sociedade seletos espíritos afins, exibindo um con- tos como ameaça por setores das classes
em que vive - filosofia escapista, de que sistente desdém pelas atividades dos ho- dominantes. Há inegavelmente um vín-
Burkhardt partilhou.2 mens práticos ou engajados. Finalmente, culo entre historiadores como Burkhar-
Ao estudar a Revolução France- Bukhardt coloca-se entre os historiado- dt e filósofos como Schopenhauer. Pro-
sa, ao contrário de Tocqueville que pro- res que cultivam a história monumental duziram uma história e uma filosofia
curou ver o que com ela se ganhou e se e os que praticam a história antiquária ou conservadoras, numa época em que o
perdeu, Burkhardt só viu perdas. Não é revelam uma religiosa reverência pelo movimento operário abria novas possibi-
de espantar que sua visão de futuro te- passado e vêem a história como contem- lidades para a reflexão sobre a história, e
nha sido tão negativa quanto a de Johan plação do passado e fuga do presente. em que Karl Marx, confrontando-se com
Huizinga (1862-1945), autor do Ocaso Dessa breve análise, pode-se con- os mesmos eventos, procurava criar uma
da Idade Média, e de Oswald Spengler cluir que existe uma íntima relação entre ciência da história que permitisse aos ho- 12
(1880-1936), autor da A Decadência do a obra histórica de Burkhardt, seu pen- mens transformar a sociedade, a fim de
Ocidente (1919), bem como outros inte- samento sobre a história, seu posiciona- torná-la mais democrática.
lectuais preocupados com a decadência mento dentro da sociedade de seu tempo Quase um século mais tarde, de-
do Ocidente. Dentro desse quadro, e ten- e as teorias filosóficas que reduzem a his- pois que o mundo assistira à Primeira
do em vista sua filosofia de vida, a única tória a um conhecimento de segunda or- Grande Guerra (1914-1918); à Revo-
decisão que Burkardt poderia tomar era dem: filosofia e histórias eminentemen- lução Bolchevique na Rússia (1917); à
recolher-se, cultivar seu jardim, partir em te conservadoras, brotadas num período Grande Depressão econômica dos anos
busca do tempo perdido e esperar que a histórico entre a Revolução Francesa e a trinta; e ao início de uma nova guerra
loucura presente se dissipasse. Talvez de- Revolução Soviética, período paradoxal, (1939-1945), um outro historiador, Phili-
pois, passado o caos, a cultura mais uma agitado por muitas revoluções frustradas, pe Ariès (1914-1984), definia sua posição
vez pudesse ser revigorada. No presente, como as de 1848 ou a Comuna de Paris em relação à história e à sociedade num
2 Hayden White observa que o filósofo Nietzsche e o escritor Thomas Mann, também, foram inicialmente influenciados por Schopenhauer, mas logo o abandona-
ram, enquanto o compositor Wagner continuaria por toda vida seu fiel seguidor.
livro publicado na França, com o título vivia num oásis, eu vivia fora da História século antes. Na juventude dedicou-se à
Le temps et L’histoire (posteriormente (...)”. A história que chegava a ele, através genealogia dos reis de França, os Cape-
traduzido para o português). O livro re- da memória familiar, era subjetiva e sele- tos. Em 1946, já homem feito, ainda se
úne ensaios escritos por ele, na maioria tiva: falava das glórias passadas, não do apegava à história poética e repudiava a
entre o fim da Segunda Grande Guerra sofrimento do povo. Diz Ariès: “Não era história que almejava a foros de ciência e
e o início da Guerra Fria (1947), isto é, a história nua e hostil que invade e arras- a busca de objetividade.
aproximadamente entre 1946 e 1949. ta, a história onde estamos e somos, fora Confrontando-se com os desafios
Para entender Ariès é preciso lo- do frágil recinto vedado das tradições fa- que a presença do marxismo representa-
calizá-lo no seu tempo e examinar a po- miliares”. Era uma transposição poética va para os homens de sua geração, Ariès
sição que ocupava na sociedade, os pro- da História, um Mito da História. Absor- refugiava-se na história das pequenas
blemas que se colocavam no período de via a lenda, não a história. Seus contem- comunidades familiares da burguesia
após guerra, as opções que se abriam e porâneos eram São Luiz, Luiz XVI e os provinciana e do campesinato. Dedicou-
as escolhas que fez Só assim poderemos mártires da Revolução. Aos seus ouvidos se a elaborar questionários que visavam
começar a compreender sua posição em atentos de criança chegavam histórias recapturar a memória de pessoas que vi- 13
relação à história. sobre os felizes tempos dos reis de Fran- viam nessas comunidades, procurando
Ariès, como ele mesmo nos infor- ça, Quando jovem devorava os livros de estabelecer uma mediação entre memó-
ma, nasceu de uma família abastada, mo- memórias do século XVIII, da Revolu- ria e história. Seu interesse correspondia
narquista e religiosa, leitora assídua do ção Francesa e da Restauração. aos dos setores da burguesia francesa que
jornal conservador Action Française. A Não é, pois, de estranhar que ele cultivavam, cada vez mais, uma nostalgia
família vivera parte de sua vida nas An- nos diga que, assim que foi capaz de pela “antiga França”, apegando-se a uma
tilhas e outra parte na França, numa ci- conceber a idéia de um tempo histórico, imagem idealizada, quase mítica que
dade provinciana. Ariès pertencia a uma ela se fez acompanhar de “uma nostalgia construíam a respeito do passado. Pouco
comunidade onde os laços de família lhe pelo passado (...)”. Ariès olhava para o a pouco, a interpretação desfavorável à
pareciam sólidos. Vivia num verdadeiro passado, não para o futuro. O passado, França pré-revolucionária, que fora he-
oásis, segundo sua própria caracteriza- idealizado e poetizado, servia-lhe para gemônica desde a Revolução, cedia lu-
ção, onde a preocupação com a vida pú- avaliar o presente que lhe parecia ame- gar a uma favorável que desembocaria
blica não existia, Ariès confessa: “Porque açador, como parecera a Burkhardt um nos nossos dias em uma total inversão
das teorias que avaliavam a Revolução reita, escolhera esta. Outros tentaram dar clara na obra do filósofo Jean Paul Sartre
Francesa como uma grande conquista. vida nova ao liberalismo, ou a promover (1905-1980), que tenta resgatar o indiví-
Ela passou a ser vista por alguns como o socialismo. duo dentro do Marxismo e faz a apologia
um grande desastre, numa reversão total Analisando o que se passava em do intelectual engajado. Veja-se sobre
da historiografia tradicional. seu tempo, Ariès contrastava um tempo isso: Question de Methode, em Critique
Diante da historiografia do seu passado em que as pessoas podiam vi- de la Raison Dialetique.
tempo, Ariès fazia opção pela versão con- ver isoladas da política, e um tempo que Os que como Ariès se apegaram
servadora. Preocupava-se, no entanto, ele datava de 1940, quando todos foram ao passado e recusaram os envolvimen-
em dar-lhe a vida que lhe faltava. Que- chamados a se definir a favor ou contra tos políticos, ao invés de historizarem a
ria escrever uma história em que os ele- a colaboração com os alemães ou a re- experiência dos indivíduos, como faziam
mentos humanos não perdessem nem sua sistência, momento em que o privado foi os autores de testemunhos do período de
individualidade, nem sua singularidade. invadido pelo público, o que ele carac- pós-guerra, particularizaram a história,
Em lugar das crônicas políticas abstra- teriza como uma monstruosa invasão do reduzindo-a à experiência do indivíduo.
tas, tradicionais, propunha uma história homem pela história, um momento em O testemunho, dirá Ariès, não é 14
dos costumes. Tentando sintetizar o dile- que o pacato meio familiar parece destru- a narrativa desprendida de um obser-
ma da história naquele momento (1947) ído pela política. Nazismo e comunismo vador que enumera ou de um sábio que
dizia: “Confrontados com a história [e forçam a definição política; a politização demonstra, mas uma confissão. É para o
aqui ele se referia à história que vivia no da vida privada parece-lhe total. testemunho, para a memória, para a his-
presente e não à historiografia] criamos Nessas condições proliferaram os tória dos costumes que Ariès se inclina.
a direita e a esquerda uma máquina abs- testemunhos, os relatos pessoais e sub- Critica a historiografia acadêmica de seu
trata, cujas leis pretendemos no mesmo jetivos. Os dramas pessoais tornaram-se tempo, por não arrebatar o público; põe
instante conhecer (...).” Era contra essa história. Ao mesmo tempo que os indiví- em questão suas pretensões científicas;
história que lhe parecia desumanizada e duos pareciam perder a individualidade duvida da objetividade do fato histórico;
abstrata, que negligenciava a experiência nos movimentos coletivos, afirmava-se e compara a história com a obra de arte,
individual, que Ariès, como muitos ou- com maior intensidade a sua consciência argumentando que o desconhecimento
tros de sua geração, se insurgira. Entre as de indivíduo. Essa contradição aparece da natureza estética da história provocou
opções de seu tempo, à esquerda ou à di- em toda a literatura da época e é bem uma descoloração completa dos tempos
que os historiadores se propuseram a es- Marx, e às Revoluções Russas, Chinesa tos como este podem ser profundamente
tudar. Essa crítica dificilmente se aplica- e Cubana, que na época de Ariès produ- fecundos, pois permitem a experimenta-
ria a Lucien Febvre, para quem a história ziriam as reflexões filosóficas de Sartre, ção, a inovação e a síntese entre o pas-
era a ciência do homem, ou para seu ami- estão em refluxo diante da crise do so- sado e o presente, assim como a busca
go, o historiador Marc Bloch. cialismo na União Soviética e da pene- de soluções novas, mas também podem
Os dois exemplos, o de Ariès e o tração capitalista na China comunista, levar a um beco sem saída, se fizermos
de Burkhardt, revelam algo em comum. enquanto políticas liberais e fascistas se da história um exercício meramente esté-
Para ambos, o presente representa uma generalizam no mundo. O aparente de- tico e contemplativo que visa, sobretudo,
ameaça, e o passado um refúgio. Ambos clínio dos projetos socialistas e dos mo- satisfazer as exigências do mercado (ou
valorizam o aspecto subjetivo e estético vimentos populares organizados, que no da Universidade) e os ditames dos que
da história e duvidam da possibilidade de passado serviram de ponto de referência detêm o poder.
um conhecimento mais objetivo. Ambos para as visões radicais da história, gera
vêem na história um meio de evitar os dúvidas sobre a possibilidade do conhe-
problemas do presente, ambos cresceram cimento histórico. Nega-se a existência 15
em um meio social protegido e ambos se do processo histórico. Fala-se até no fim
defrontaram com um desafio das classes da história. A memória toma o lugar da
subalternas. Ambos assumiram uma po- história, os testemunhos substituem as
sição conservadora, quando havia outras interpretações históricas mais amplas. A
opções e outros caminhos. história dos costumes vira moda. As ex-
Para a nova geração de historia- plicações culturalistas, que tinham sido
dores, o desafio ainda é o mesmo, em- abandonadas, voltam a circular. A histó-
bora os tempos sejam outros. Vivemos ria parece ter perdido o rumo e volta para
um momento conservador, e as opções trás. Esse é um fenômeno que não atinge
radicais, que pareciam tão claras na épo- apenas a história e os historiadores, mas
ca de Burckhardt, que assistiu às Re- que se observa nas demais ciências hu-
voluções de 1848 e à Comuna de Paris manas. Nas filosofias e nas artes há tam-
em 1872, que inspiraram as reflexões de bém uma grande perplexidade. Momen-

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