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História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (11-17) - 11

História, atualização do passado e estilhaços


messiânicos de uma revolta popular no III Milênio a. C.
Fábio Frizzo*

A inda que não tivesse tido, em toda minha vida,


mais do que um único momento de esperança,
teria travado este combate. Inclusive, se hei de
ponto de partida da história. (...) Quanto mais
fundo voltamos na história, mais o indivíduo, e
por isso também o indivíduo que produz,
perdê-lo, outros o ganharão. Todos os outros. aparece como dependente, como membro de um
Paul Eluard todo maior.2
O mundo atual é justificado por uma linha de
Não deve ser novidade para nenhum dos leitores progresso criada pela burguesia durante o processo de
desta revista que o capitalismo não levou a humanidade a afirmação da sua ideologia como dominante,
um caminho diferente daquele dominado pela barbárie. naturalizando o capitalismo como apoteose humana. Até
Apesar de extremamente desvalorizados em meio à o século XVIII, a ideia de progresso mantinha um caráter
selvageria – talvez, justamente pelo perigo apresentado crítico em oposição à visão de mundo feudal. Entretanto,
por sua função – historiadores das mais diversas correntes como apontou Walter Benjamin, no decorrer do século
teóricas têm trabalhado, conscientemente ou não, para a XIX, com a consolidação da hegemonia burguesa, o
3
construção deste “admirável mundo novo”. O historiador progresso perdeu suas funções críticas .
catalão Josep Fontana afirma com razão a semelhança Partindo do pensamento de Benjamin, Fontana
funcional entre a história de um grupo e a memória de um afirma que há uma “discordância entre um projeto de
indivíduo, ambas dando aos seus donos um sentido de futuro socialista e sua fundamentação numa história – o
identidade e orientando suas ações. Como memória que equivale a uma concepção de progresso – que
coletiva, a história hegemonicamente legitima a ordem 4
corresponde em boa medida ao capitalismo” . Ou seja,
político-social vigente, agindo em conjunto com uma uma concepção de progresso, influenciada pela teoria
racionalização das desigualdades do mundo presente, que evolutiva da seleção natural, que a estendeu a todos os
aparece como uma sequência lógica da trajetória domínios da atividade humana na forma de um
decorrida, e cuja culminância se dá com um projeto desenvolvimento automático5. Soma-se a isto uma
político de futuro1. generalização das condições da revolução industrial, que
A racionalização é a atividade humana por identifica o progresso aos avanços técnicos e
natureza e ela age no pensamento histórico sempre a tecnológicos.
posteriori, dando a Clio o título de dama do retrospecto. A vontade burguesa iluminista de ver a história
Desta maneira, a história pode ser representada como como guiada por leis universais e imutáveis, que levaram
uma linha direta ligando todos os acontecimentos como inevitavelmente ao capitalismo moderno, fez com que
necessários, naturalmente desembocando no mundo todo o retrospecto civilizacional humano fosse marcado
atual. pela existência transistórica do mercado.
Clio, todavia, não é senhora de um homem só. A O conceito burguês de progresso foi
história se acosta com todos os que por ela nutrem algum interiorizado de tal forma que mesmo o marxismo a
tipo de interesse e aqueles que a manipulam não incorporou. Embora a obra de Marx seja marcada por
obedecem apenas a anseios individuais, já que: conceitos fluídos, há muito se sabe que inúmeras
... o ponto de partida é, naturalmente, a produção correntes do marxismo – algumas extremamente
dos indivíduos socialmente determinada. (...) poderosas – trataram de petrificar, entre outras, a
[Partir do indivíduo] trata-se (...) da antecipação concepção marxiana de história. Partindo do famoso
da “sociedade burguesa”, que se preparou desde
prefácio de 1859 em que Marx ofereceu “o resultado
o século XVI e que, no século XVIII, deu largos
passos para sua maturidade. Nessa sociedade da geral que se lhe apresentou como fio condutor de sua
livre concorrência, o indivíduo aparece
desprendido dos laços naturais etc. que, em 2
MARX, Karl. Grundrisse. Manuscritos Econômicos de 1857-1858.
épocas históricas anteriores, o faziam um
Esboços da Crítica da Economia Política. São Paulo: Boitempo, 2011.
acessório de um conglomerado humano p. 39-40.
determinado e limitado. [O indivíduo é visto] 3
BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: EDUFMG, 2007.
não como um resultado histórico, mas como p. 518-519.
4
FONTANA, op. cit., p. 251.
5
*
No marxismo um dos mais importantes pensadores a trabalharem sob
Doutorando em História no PPGH-UFF e Professor de História Antiga e a influência da teoria da evolução no desenvolvimento social foi o
Medieval das Universidades Cândido Mendes e Estácio de Sá. arqueólogo australiano Vere Gordon Childe, imortalizado naquela que
1
FONTANA, Josep. História. Análise do Passado e Projeto Social. talvez tenha sido sua obra mais célebre A Evolução Cultural do
Bauru: EDUSC, 1998. p. 9-13. Homem. Rio de Janeiro: Zahar. 1986.
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obra”, entendeu-se que mais do que a luta de classes, o Apesar de formalmente correta, uma afirmação
motor da história era o desenvolvimento das forças como esta dá margem a um entendimento de que o
produtivas, que levaria a contradições com as relações de capitalismo surgiria em Roma assim que os entraves
produção, criando o cenário revolucionário para a políticos e culturais fossem removidos. Criticando esta
6
superação da estrutura econômica dada. posição no debate de transição do feudalismo para o
Não foram poucos os debates historiográficos capitalismo, Wood afirma que para os circulacionistas:
afetados por concepções mecanicistas como esta, “A mudança é mais no que acontece com as forças e
defendida pela ortodoxia da Segunda Internacional, que instituições – políticas, legais, culturais e ideológicas,
desembocou no stalinismo. Um dos casos mais prolíferos bem como tecnológicas – que impediam a evolução
9
é aquele da transição do feudalismo para o capitalismo. natural da troca e a maturidade dos mercados”.
Segundo Ellen Wood, quase todas as explicações Desta maneira, o capitalismo não é visto como o
para a origem do capitalismo têm sido fundamentalmente momento em que o mercado se tornou algo compulsório,
circulares, assumindo sua pré-existência para explicar seu através da instituição da lei do valor e da transformação
surgimento. Para elucidar a busca por lucro ligada à nas relações de trabalho, mas sim – conforme a ideologia
racionalidade capitalista, projeta-se ela no passado, como é burguesa – aquele em que se tornou livre. Logo, a
feito, outrossim, com o impulso ao desenvolvimento dos transição é vista como um processo quantitativo de
meios técnicos, transformado, como visto, em lei natural.7 acúmulo – ou desaparecimento – de condições e não
Com efeito, não são poucos os pesquisadores que como uma modificação qualitativa radical, que inaugura
assumem posições similares, caracterizando uma uma forma de dominação inédita na trajetória humana.
corrente conhecida como circulacionista, propondo que a A naturalização das estruturas capitalistas na
transição se deu por meio do incremento do comércio. Tal história gerou, desde o século XIX, um conhecido debate
concepção dá ao capitalismo o título de estágio mais entre antiquistas e antropólogos, conhecido como
complexo e maduro das formas de troca, agora livres dos contenda Bücher-Meyer. A primeira corrente, iniciada
entraves políticos e culturais que impediam seu com os trabalhos de Karl Bücher, foi nomeada como
desenvolvimento. Em outras palavras, o espírito primitivista por entender as estruturas econômicas da
capitalista da troca de mercadorias guiada pela Antiguidade – grega, no caso específico – como
racionalidade econômica da maximização de benefícios é diferentes das capitalistas e rudimentares em comparação
aistoricizado. a esta. Por outro lado, os modernistas creem, desde o
Além de implicar uma concepção burguesa de trabalho de Eduard Meyer, que guardadas as devidas
progresso, a corrente circulacionista de explicação da proporções quantitativas, a economia pré-capitalista
transição também contém um gérmen da visão obedece à mesma dinâmica de funcionamento daquela
tradicional – herdeira do Renascimento e reforçada com o que a sucedeu.
Iluminismo – e preconceituosa em relação à Idade Média, Durante o século XX, a discussão tomou novos
vista como um período de trevas, ou seja, uma contornos a partir da Antropologia Econômica e da crítica
interrupção na linha de desenvolvimento seja das trocas feita por Karl Polanyi, que acusava os “modernistas” de
ou do das forças produtivas que culmina no capitalismo. formalismo, ou seja, identificar a racionalidade de
Seguindo esta linha, a Roma Antiga e seu mercado maximização de benefícios como algo aistórico. Em
imperial que cruzava o Mare Nostrum tiveram sua oposição, Polanyi indicava o caminho do substantivismo,
transição para o capitalismo interrompida pela barbárie no qual as estruturas econômicas pré-capitalistas estavam
dos povos germânicos, incivilizados dentro da sua encrustadas (embedded) em outras esferas da vida social,
“economia natural”, levando o Ocidente a cerca de um como a política ou a religião, determinando outros tipos
milênio de atraso em sua evolução. de racionalidade. Desta maneira, os substantivistas só
Mesmo um brilhante historiador marxista da acreditam na centralidade da mercadoria e do lucro
economia romana, como Aldo Schiavone, acaba dentro da sociedade capitalista, legando às sociedades
resvalando em sua interpretação em pressupostos anteriores outras formas de circulação, como a
semelhantes aos dos circulacionistas, deixando abertura redistribuição e reciprocidade.
para uma interpretação criticável. Segundo Schiavone, as No caso que nos interessa em particular, o da
relações econômicas na antiguidade latina estavam egiptologia, as discussões seguem o mesmo caminho,
inseridas numa malha de fatos e relações de outros tipos, ainda que a economia faraônica, ao contrário da grega,
ou seja, não fosse monetarizada.
a economia romana em nenhum momento de sua Jogando pela equipe dos modernistas/
história conseguiu manter-se com seus próprios formalistas, entram em campo o Barry Kemp e
pés, desencadeando aquele processo de instável Christopher Eyre. O primeiro foi responsável por um
autossustentação financeira e tecnológica que, famoso capítulo, intitulado “O Nascimento do Homem
no mundo moderno, “liberou Prometeu” sob a Econômico”, no qual critica a economia redistributiva
forma da revolução industrial e do capitalismo.8
que Polanyi encontra no Egito Antigo, identificando-a
com a URSS e afirmando que estava influenciada pela
6
MARX, Karl. “Prefácio à 'Contribuição à Crítica da Economia
Política'”. In: MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Textos. Vol. III.
8
São Paulo: Edições Sociais, 1977. p. 300-303. SCHIAVONE, Aldo. Uma História Rompida. São Paulo: EDUSP,
7
WOOD, Ellen. The Origin of Capitalism. Londres: Monthly Review 2005. p. 70.
9
Press, 1999. p. 8 WOOD, op. cit., p. 15-18.
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visão de uma divisão igualitária da produção através da aqueles que acreditam que o debate entre formalistas e
imbricação das relações econômicas em uma ideologia substantivistas já foi superado a partir de visões que
política. Kemp, contudo, afirma que a impossibilidade do mostram que nenhum dos dois lados está completamente
Estado – moderno ou antigo – de atender todas as certo ou errado. Um desses nomes na egiptologia é o de
demandas individuais a contento geraria o mercado como Stuart Smith. Todavia, o que ele acaba fazendo – como
uma “reação natural”10. A palavra “natural” não é um outros deste grupo – é fingir imparcialidade deixando
simples descuido conceitual, ela representa mesmo uma transparecer, sem perceber, seu uniforme formalista,
ação inerente ao gênero humano, como se pode notar na como fica claro nesta citação de Smith:
seguinte citação: Já estes indivíduos [artesãos especializados]
O conceito abstrato de obter um benefício com estavam claramente usando seu treinamento
uma venda é uma racionalização do que se como especialistas funerários para maximizar
consegue ao fazer uma transação proveitosa, de suas rendas e acumular riqueza, tirando
conseguir um bom preço. O último pertence ao vantagem da demanda por bens de alta qualidade
reino das estratégias intuitivas de sobrevivência para tumbas estimulada por demonstrações mais
que formam parte do ser humano.11 ostentatórias ou modestas de riqueza nos
funerais.15
Eyre enverga o mesmo uniforme do time de
Kemp, partindo também da crítica político-ideológica ao Isto nada mais é do que a naturalização da busca
socialismo soviético. Em seu artigo sobre arrendamento marginal pela maximização de benefícios em um mundo
de terras no Egito Faraônico, o egiptólogo formalista de recursos escassos. O que parece mais incrível é que
associa, outrossim, o modelo redistributivo do mesmo extrapolando a realidade capitalista para todas as
substantivismo a uma nefasta influência da estrutura sociedades humanas e, desta maneira, projetando uma
econômica centralizada da URSS. Restaria, portanto, linha de progresso que desemboca no apogeu burguês do
utilizar o paradigma da ação empreendedora privada, presente, os formalistas – declarados ou não – ainda
como se pode notar: assim criticam a ideia de evolução que leva à sociedade a
... elas [as fontes documentais] falam pela qual defendem – consciente ou inconscientemente –
superioridade, também no período faraônico, de como culminância humana. Não satisfeitos, usam o
um modelo econômico dependente da empresa conceito de evolução e linearidade para criticar todos
quase-comercial de trabalhadores camponeses aqueles que pensam nas especificidades das relações pré-
individuais e intermediários rurais e não de uma capitalistas. Vejamos dois rápidos exemplos.
burocracia quase socialista. (...) A empresa, uma O debate da economia antiga x economia
avaliação do equilíbrio entre vantagem ou moderna continua a valorizar a noção fora de
desvantagem, e a noção de lucro não eram moda de estágios históricos caracterizados por
desconhecidas no Egito Antigo, ainda que não tipos sócio/econômico/políticos que sucedem
fossem expressas em termos contábeis um ao outro de forma linear.16
modernos.12 A divisão tudo-ou-nada primitivista/modernista,
substantivista/formalista obscurece a real
Do outro lado da cancha no certame da economia complexidade das economias antigas forçando-
faraônica, há a equipe de substantivistas encabeçada por as em um quadro evolucionário artificial,
J.J. Janssen e sua defesa do modelo redistributivo para o privilegiando a emergência do capitalismo
13
Antigo Egito. Ao seu lado, encontra-se atualmente o ocidental e o moderno sistema mundial.17
estadunidense Edward Bleiberg, que defende que não
existia busca pelo lucro no escambo egípcio. Os bens O fundamental para uma crítica marxista da
eram adquiridos por seu valor de uso, não havendo, desta economia pré-capitalista é que ambos os lados do debate
maneira, formação de capital. Ao desnaturalizar o lucro criado no século XIX mantém-se discutindo apenas a
como motivador das trocas, Bleiberg pensa uma circulação, abandonando a esfera da produção e as
economia incrustada em outras estruturas, identificando relações conflituosas entre as classes nela envolvidas.
a busca de prestígio como a principal motivação para o Este é um erro similar àquele apontado em relação à
comércio, já que a vantagem pessoal passava por vertente circulacionista – marxista ou não – da transição
instituições reais e divinas.
14 para o capitalismo. O que aponta Ellen Wood para a
Por fim, fora das duas equipes, há aqueles que gênese do modo de produção capitalista e que pode ser
pretendem ostentar uma posição imparcial, ou seja, extrapolado como método para outros momentos
históricos é o enfoque nas formas históricas de
10
exploração e resistência entre elites e classes
KEMP, Barry. El Antiguo Egipto. Anatomía de una Civilización.
Barcelona: Crítica, 2003. p. 295 subalternas.18
11
Idem, p. 320.
12 15
EYRE, Christopher. “Peasants and “Modern” Leasing Strategies in SMITH, Stuart. Wretched Kush. Ethnic identities and boundaries in
Ancient Egypt.” Journal of the Economic and Social History of the egypt's nubian empire. London e New York: Routhledge, 2003. p. 68.
16
Orient. Vol. 40, No. 4. Leiden: BRILL, 1997 p. 386. Destaque meu. LAMBERG-KARLOVSKY, C. C. In: FRANK, André Gunder et
13
JANSSEN, J. J. “Prolegomena to the Study of Egypt's Economic alii. “Bronze Age World System Cycles [and Comments and Reply].
History During the New Kingdom.” Studien zur Altägyptischen In: Current Anthropology. Vol. 34. No. 4. Chicago: The University of
Kultur, Bd. 3. Helmut Buske Verlag GmbH, 1975. p. 127-185 Chicago Press, Ago-Out 1993. p. 383-429. A citação é da p. 416.
14 17
BLEIBERG, Edward. The Official Gift in Ancient Egypt. Oklahoma: SMITH, op. cit., p. 67.
18
The University of Oklahoma Press, 1996. p. 11-27. WOOD, op. cit.
14 - História, atualização do passado e estilhaços messiânicos de uma revolta popular no III° Milênio a.C.

Sem o foco na historicidade das lutas, resta oprimido. Ele aproveita a oportunidade para
apenas a visão de uma evolução automática de progresso, extrair uma época determinada do curso
seja aquela burguesa do desenvolvimento e liberalização homogêneo da história (...). O fruto nutritivo do
das leis universais do mercado, ou aquelas marxista que que é compreendido historicamente contém em
seu interior o tempo, como sementes preciosas,
escondem a ação humana sob as estruturas do
mas insípidas. (Tese 17).23
desenvolvimento das forças produtivas ou mesmo da
19
reprodução do capital. No que nos parece o ápice de sua percepção
Contra esta visão de progresso, que torna a temporal, Walter Benjamin produz um encontro histórico
história uma apologia do presente baseada na entre gerações e gerações de oprimidos que se unem na
continuidade, Walter Benjamin aprendeu a ver no tempo luta pela redenção:
algo diferente de uma linha reta a qual o historicista O passado traz consigo um índice misterioso,
preenche com uma massa de fatos. Para ele, o continuum que o impele à redenção. Pois não somos tocados
temporal era pulsante e estava disponível ao materialista por um sopro do ar que foi respirado antes? Não
histórico para ser utilizado como uma citation à l'ordre du existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes
jour, conforme fica claro em sua sexta tese sobre o que emudeceram? Não têm as mulheres que
conceito de História: cortejamos irmãs que elas não chegaram a
Articular historicamente o passado não significa conhecer? Se assim é, existe um encontro
conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa secreto, marcado entre as gerações precedentes e
apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela a nossa. Alguém na terra está à nossa espera.
relampeja no momento de um perigo. Cabe ao Nesse caso, como a cada geração, foi-nos
materialismo histórico fixar uma imagem do concedida uma frágil força messiânica para qual
passado, como ela se apresenta no momento do o passado dirige um apelo. Esse apelo não pode
perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha ser rejeitado impunemente. O materialista
consciência disso. (...) Em cada época é preciso histórico sabe disso. (Teses 2)24
arrancar a tradição ao conformismo, que quer
apoderar-se dela. (...) O dom de despertar no Toda esta introdução acerca do caráter do
passado as centelhas da esperança é privilégio conhecimento histórico me foi imposta pela necessária
exclusivo do historiador convencido de que reflexão sobre os acontecimentos ocorridos durante o
também os mortos não estarão em segurança se o início do ano de 2011, no que se convencionou chamar de
inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado
“Primavera Árabe”, que teve o Egito como centro
de vencer. (Tese 6)20
gravitacional. Para as camadas populares egípcias, a
Praça Tahir se tornou local do “encontro secreto marcado
Benjamin não se iludia com a existência de uma
entre as gerações precedentes e a nossa”.
pretensa História atemporal, uma verdade estabelecida e
Como egiptólogo esforçado e pretenso
acessível, como as vozes ouvidas por Michelet nos
materialista histórico, foi impossível não buscar nos
arquivos, esperando pelo resgate do historiador. O crítico
“estilhaços messiânicos” a fixação da imagem de um
alemão sabia que a História é refeita a cada presente e que
“sopro de ar que foi respirado” há mais de 4000 anos, na
cada tempo apropria-se dela como bem entende. Desta
única revolta popular bem documentada do período
maneira, ele dizia que era preciso fazer “saltar pelos ares
faraônico.
o continuum da história” e construiu um conceito de
A principal fonte para o estudo dos movimentos
tempo no qual o passado não existiu, mas, sim, existe!
populares no Egito Antigo foi publicada, em 1909, por
Ou, em suas palavras, que “a verdadeira imagem do
Alan Gardiner, sob o título de As Admoestações de um
passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar,
Sábio Egípcio, proveniente do texto do recto do Papiro
como imagem que relampeja irreversivelmente, no
21 Leiden 344, encontrado na região de Mênfis e datado do
momento em que é conhecido” (Tese 5). Desta maneira,
final do primeiro milênio a.C. Logo de início, entendeu-
Benjamin “(...) funda um conceito de presente como um
se, a partir das suas características gramaticais, tratar-se
“agora” no qual se infiltraram estilhaços do
de uma cópia tardia de um texto anterior, que a maioria
messiânico” (Apêndice 1).22 O materialista histórico dos egiptólogos atualmente localiza no espaço de tempo
(...) reconhece o sinal de uma imobilização
messiânica dos acontecimentos, ou, dito de conhecido como Primeiro Período Intermediário, no final
outro modo, de uma oportunidade do III° Milênio a.C..
revolucionária de lutar por um passado O Primeiro Período Intermediário (2181-2055
a.C.) foi marcado pelo enfraquecimento da monarquia
19
Penso especialmente na teoria stalinista da evolução linear dos faraônica e a descentralização do governo egípcio como
modos de produção ou, por outro lado, no trabalho de autores como havia existido no Reino Antigo. Tais mudanças parecem
Moishe Postone que afirmam que o pensamento marxiano não
identificava o sujeito com o proletariado ou a humanidade, mas sim
ter sido causadas por uma revolta popular acompanhada
com o capital, esterilizando o poder revolucionário de um pensamento da invasão de asiáticos no Delta, conforme referência do
voltado para a ação. Ver POSTONE, Moishe. Rethinking Marx's próprio Papiro Leiden 344. Para o egiptólogo Moreno
Critical Theory In: ______ et Alii. History and Heteronomy. Critical Garcia: “O papel dos “períodos intermediários” para o
Essays. Tóquio:UTCP, 2009. p. 31-48. historiador é o de lentes que ampliam e põem em
20
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas. Magia e Técnica, Arte e
Política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. p. 224-225.
21 23
Idem, p. 224. Idem, p. 231.
22 24
Idem, p. 232. Idem, p. 223.
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evidência os elementos subjacentes de fratura, de crise, elaborado por Marx e Engels.30 A atividade estatal
de transformação, presentes na sociedade, mas que concentrava-se nos censos de terras e trabalhadores, bem
aparecem citados raramente nas fontes oficiais”.25 como na tributação tanto do excedente de produção
Dez anos após sua primeira publicação, as quanto de trabalho, que era feita de forma extremamente
“Admoestações...” já começaram a passar por um violenta e penosa para os camponeses. São comuns nas
processo de revisionismo que afirmava o caráter não- cenas de tumbas imagens de lavradores diante de escribas
histórico do texto. Até o final do século passado, alguns recebendo castigos físicos em caso de insuficiência no
egiptólogos, como Miriam Lichtheim, sustentavam que a pagamento de cereais. Geralmente, as agressões
obra era apenas um exercício puramente literário que consistiam em espancamento com bastões de madeira nas
refletia o par ordem/caos, central na concepção de mundo plantas dos pés ou nas costas.
26
egípcia. Tudo isto por tratar-se de um discurso de Toda essa repressão terminou em rebelião
inversão social, incomum em uma sociedade em que uma popular no final do Reino Antigo. O texto das
classe dominante constituída por no máximo 1% da “Admoestações...” foi atribuído a um sábio egípcio
população produzia fontes escritas. conhecido como Ipu-Ur, que detinha o cargo de “chefe
É importante fazer esta discussão, porque a dos cantores”, a julgar por outro documento da mesma
gigantesca maioria dos documentos egípcios retrata um época, conhecido como “fragmento Daressy”.
estado de ordem social a partir de uma perspectiva As circunstâncias iniciais da revolta popular
idealizada de continuidade ordeira, o que é explicado não descrita no Papiro Leiden 344 não são relatadas. O
somente por uma visão ideológica de classe, mas também egiptólogo José Carlos Reyes afirma que a perda de força
por um fator conjunto: o fato de que as escrituras tinham do Estado perante os nobres locais, que abusavam dos
caráter mágico. Para os egípcios escrever sobre a ordem privilégios sobre a população, teria levado, em conjunto
era, também, uma forma de manter Maat, a deusa-conceito com a crise econômica conjuntural, à rebelião.31
de ordem, justiça, verdade e medida, responsável pela O texto das “Admoestações...” é composto por
continuidade do universo tal como existia. trechos em prosa e outros em verso e se concentra em
O supramencionado processo de revisionismo alguns eixos temáticos como, por exemplo: a oposição
historiográfico pelo qual passaram “As Admoestações...” entre um passado glorioso e um presente em desordem; a
nada mais é, portanto, do que algo corriqueiro no campo questão da traição das forças mercenárias estrangeiras e a
de História Antiga e Medieval, a saber, a confusão entre a invasão da região do Delta; a inversão social entre ricos e
escassez de fontes provenientes das camadas populares e pobres; o ataque às instituições; o vandalismo e a
32
a inexistência de qualquer manifestação destas. Nas pilhagem.
palavras de Walter Benjamin, este tipo de pensamento O estado de violência e desordem fica bem
cria uma imagem de passado apropriada pelo expresso no trecho seguinte:
27
conformismo, vazia e homogênea (Tese 14). (...) o país está cheio de bandos (revoltosos),
Um materialista histórico interessado em e para lavrar um homem leva o seu escudo.
“escovar a história a contrapelo” (Tese 7)28 não pode (...) Em verdade (...)
aceitar a inexistência de conflitos sociais em uma o crime alastrou-se e não há homens como
antigamente.
civilização que durou cerca de 3000 anos, por mais forte Em verdade os ladrões [estão] por toda parte,
que seja o poder do consenso criado pela ideologia os criados levam o que encontram.
religiosa. Tampouco é aceitável responsabilizar apenas Em verdade o Nilo inunda (mas) ninguém lavra
agentes exógenos, como invasões estrangeiras, pelos para si
períodos de intensa modificação social. Ademais, há (pois) todos dizem “Não sabemos o que sucederá
argumentos suficientes para crer na veracidade dos ao país”.33
eventos descritos no texto do Papiro Leiden 344,
conforme foi demonstrado por Ciro Cardoso.29 No caso do eixo de inversão social, que é mais
Não é novidade que, a exemplo de qualquer outra importante para o propósito desta comunicação, há uma
sociedade pré-capitalista, o Antigo Egito era exaltação dos pobres em contraposição à humilhação dos
eminentemente agrário. Com um meio ambiente ricos e à tomada de bens dos segundos pelos primeiros.
altamente propício para o cultivo, a produção egípcia era Em verdade os pobres passaram a exibir luxo, e o
marcada por um baixo nível de desenvolvimento técnico que não podia ter sandálias possui riqueza.
e tecnológico das forças produtivas, compensado pela Em verdade os criados estão vorazes
abundância e intenso controle da força de trabalho.
30
Já há muito tempo, criticou-se devidamente o Um dos exemplos publicados em português é CARDOSO, Ciro,
conceito de Modo de Produção Asiático conforme BOUZON, Emanuel & TUNES, Cássio. Modo de Produção Asiático.
Nova Visita a um Velho Conceito. Rio de Janeiro: Campus, 1990.
25 31
MORENO GARCIA, Juan Carlos. El Egipto en el Imperio Antiguo. REYES, José Carlos Castañeda. Sociedad Antigua y Respuesta
Barcelona: Edicions Bellaterra, 2004. p. 12. Popular. Movimentos Sociales en Egipto Antiguo. Cidade do México:
26
LICHTHEIM, Miriam. Ancient Egyptian Literature. Vol. 1. Berkley: Universidad Autónoma Metropolitana, 2003. p. 128-129.
32
University of California Press, 1975. p. 149-150. Alguns destes eixos temáticos foram estudados, em seus aspectos
27
BENJAMIN, op. cit., p. 14. literários, em JOÃO, Maria Thereza. “As Admoestações de Ipu-Ur:
28
Idem, p. 225. Reflexões sobre a Sociedade Egípcia do Primeiro Período
29
CARDOSO, Ciro. Violência e Política no Antigo Egito. Conferência Intermediário.”. NEARCO. N. 1. Ano II. Rio de Janeiro, 2009.
33
apresentada no Ciclo de Debates do Laboratório de História Antiga da ARAÚJO, Emanuel (Org. e Trad). Escritos para a Eternidade.
UFRJ. Rio de Janeiro: 2010. Brasília: Editora da UNB, 2000. p. 178-179.
16 - História, atualização do passado e estilhaços messiânicos de uma revolta popular no III° Milênio a.C.

e o poderoso não compartilha [de alegria] com Em verdade as leis do Grande Baluarte são
sua gente. (…) jogadas fora,
Em verdade os ricos deploram e os pobres As pessoas pisam-nas pelos lugares públicos
exultam; e os mendigos rasgam-nas nas ruas. (...)
Cada cidade diz: “Expulsemos os poderosos!” Em verdade invade-se o Grande Baluarte,
(…) os mendigos entram e saem [à vontade] nas
Não há remédio para isso, grandes casas [de Justiça]. (...)
As senhoras sofrem como criadas, (…) Eis agora que aconteceu algo jamais ocorrido:
Eis que as senhoras dormem em tábuas O rei foi pilhado por mendigos. (...)
E os notáveis no celeiro, Eis que se chegou a privar o país da realeza
[mas] o homem que nem dormia em cubículo por alguns aventureiros desvairados (...)
possui uma cama. Eis que o segredo do país38, cujos limites eram
Eis que o rico se deita com sede, desconhecidos,
e o que esmolava sobras tem bilhas que se tornou público e a Residência [pode] ser
transbordam de cerveja.34 arrasada num instante. (...)
Eis que a Residência tem medo da penúria,
Ainda que o texto se refira em alguns momentos Os homens levantam-se em agitações e não há
aos artesãos, aparentemente, os protagonistas do resistência.39
movimento popular foram os camponeses. Há menções à
conquista de terras, à tomada de grãos e ao não A partir de alguns fragmentos supracitados, José
pagamento de tributos. Carlos Reyes vê como indubitável a existência de uma
Em verdade [desde] Elefantina [até] Tis [ ] não tomada popular do governo. Tal grupo popular parece ter
se paga imposto por causa do tumulto. Há falta se tornado dirigente de pelo menos uma parte do Egito,
de grãos, carvão e madeiras (...). ainda que tenha entrado em crise logo em seguida, em
Em verdade acabou o grão em toda parte, (...) decorrência da impossibilidade de resistir aos ataques dos
Em verdade os escribas de esteira35 nobres e funcionários provinciais do restante do país.
Têm seus escritos destruídos A primeira medida dos dirigentes do governo
O grão do Egito é [agora] de quem diz: “Chego e popular teria sido a divulgação dos “segredos do país”, ou
pego”. (...)
seja, os mecanismos de administração pública e seus
Eis que o pobre em terra ficou rico
e o que tinha propriedades nada tem (...) registros oficiais. Para isto, é possível que se tenha
Eis que aquele que não tinha pão possui celeiro contado com a ajuda de funcionários menores,
e sua despensa está cheia de coisas dos outros. incorporados ao movimento.
(...) A crise, todavia, não foi contida pelo governo
Eis que aquele que não tinha grãos possui popular, incapaz de resolver o problema da fome e da
celeiros insegurança derivada dos conflitos internos e ataques
e o que pedia grão emprestado [agora empresta] estrangeiros. Estima-se, pelo contrário, que tenha
(...) produzido, aos poucos, a deserção de alguns grupos que
[Eis que aquele que computava] a colheita nada apoiavam a insurreição, como artesãos, que viram piorar
sabe sobre ela, (...).36 a sua situação com a escassez de matérias-primas e sem
um governo investindo em grandes obras.
Como último eixo abordado neste artigo, cabem
Ainda que seja muito difícil precisar o intervalo
as menções aos ataques a instituições estatais, expressos
temporal ocupado por este governo popular, é provável que
no trecho abaixo:
Falta ouro, esgotaram-se as matérias-primas de
tenha durado entre 70 e 75 dias. Em seguida, sofreu com a
40
todos os ofícios. O que pertencia ao Palácio foi repressão coordenada pelos normarcas e grandes nobres.
saqueado. (...) Como tentei demonstrar, a concepção de
Diz-se: “Maldito o Lugar dos Segredos!” progresso tem levado os historiadores a uma defesa –
[pois agora] pertence [tanto] aos que não o consciente ou não – de uma ideologia burguesa. Atuando
conheciam [quanto] aos que o conhecem (...) em conjunto, história, racionalização e justificativa do
Em verdade os documentos do Grande presente e projeto de futuro criam o mundo atual como
Baluarte37 foram roubados, apoteose do “fim da história”, naturalizando uma
seus segredos revelados. continuidade artificial que mostra todos os momentos de
Em verdade as fórmulas mágicas foram ruptura como barreiras superadas.
divulgadas,
tornaram-se ineficazes porque são repetidas por
Como bem apontou Benjamin, o materialismo
todo mundo. histórico deve demonstrar que não escolhe
Em verdade as repartições [públicas] foram aleatoriamente seus objetos e abandonar o conceito de
abertas progresso em troca da idéia de uma “atualização”,
e levados seus arquivos (...) explodindo a continuidade histórica reificada
41
impregnando-a com o presente.
34 38
Idem, p. 177-191. Os mistérios da realeza, só conhecidos pelo faraó.
35 39
Funcionários responsáveis pelo cadastro das colheitas. ARAÚJO, Emanuel. Op. Cit.
36 40
ARAÚJO, op. cit, Sobre a teoria de um governo popular, ver REYES, op. cit., p. 139-145.
37 41
Ao que tudo indica tratava-se de um tribunal (talvez uma prisão BENJAMIN, Passagens, op. cit. Ver especialmente as passagens
também) destinado a casos ligados aos camponeses e escravos. N2,2; N9a,5; N9a, 6; N10a,1; N11a,1. p. 436-519.
História & Luta de Classes, Nº 14 - Setembro de 2012 (11-17) - 17

Durante as mobilizações populares na Praça


Tahir e por todo o Egito, egiptólogos do mundo, cobertos
pela mídia internacional, demonstraram acima de tudo
suas preocupações com as “relíquias sagradas” do país,
ou seja, os documentos arqueológicos da vasta cultura
material faraônica. Condenou-se a invasão de museus e
templos por desordeiros interessados em saquear o
patrimônio histórico da humanidade. Foi com isso que os
historicistas se preocuparam!
Enquanto isto, os materialistas históricos
observavam com admiração o levantar de um povo
oprimido. Não é uma questão de desprezo pelo
patrimônio material, mas, sim, de uma valorização do
patrimônio imaterial do qual aquela população se
apoderava, sua verdadeira “relíquia sagrada”. Mais do
que cacos de cerâmica milenares, tão valorizados pelos
arqueólogos, as camadas populares demonstravam
interesse nos “estilhaços messiânicos” descritos por
Benjamin. Estes estão ao alcance de qualquer um, cabe a
nós o trabalho cuidadoso de reuni-los na luta pela
redenção daqueles homens e mulheres que derramaram
sangue na mesma areia egípcia há mais de 4000 anos
atrás.

Artigo recebido em 17.2.2012


Aprovado em 30.5.2012

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