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MJM Bastos. Diálogos, v.20, n.3, 2-15.

Diálogos
ISSN 2177-2940
(Online)

ISSN 1415-9945
(Impresso)
http://dx.doi.org/10.4025/dialogos.v20i3

Quatro décadas de História Medieval no Brasil: contribuições à


sua crítica
http://dx.doi.org/10.4025/dialogos.v20i3.33600

Mário Jorge da Motta Bastos


Professor do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense, onde atua na graduação e no Programa de Pós-
Graduação em História. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq, velhomario@gmail.com
__________________________________________________________________________________________
Resumo
O objetivo deste artigo é promover um balanço crítico da medievalística brasileira nestas
cerca de quatro décadas do seu sistemático desenvolvimento. Consideradas as primeiras
iniciativas de promoção do período entre nós, passamos à avaliação da
Palavras Chave: institucionalização do campo de pesquisas no Brasil, abordando as potenciais razões do
História Medieval; História seu vertiginoso crescimento. Por fim, consideramos o estatuto ontológico,
Medieval no Brasil; Teoria da epistemológico e teórico do estudo da Idade Média, centradas na crítica de vertentes
História; Pesquisa hoje hegemônicas no campo em questão, dominado por posições que constituem a
historiografia como uma prática pseudocientífica que reduz o ofício do medievalista a
uma enfadonha paráfrase das fontes de outrora.

Abstract
Four decades of Medieval History in Brazil: contributions to its critique
The aim of this article is to provide a critical balance of the Brazilian medieval studies
in these four decades of its systematic development. Considered the first initiatives of
promotion of the period between us, we started the evaluation of the institutionalization
Keywords: of the research fields in Brazil, approaching the potential reasons for its rapid growth.
Medieval History; Medieval History Finally, we consider the ontological, epistemological and theoretical status of the study
in Brazil; theory of History; of the Middle Ages, centered on the critics of slopes, today hegemonic in the field in
research question, dominated by positions that constitute the historiography as a pseudoscientific
practice that reduces the function of medievalist to a tedious paraphrase of the formerly
sources.

Resumen
Cuatro décadas de Historia Medieval en Brasil: contribuciones y sus críticas
El propósito de este artículo es proporcionar una evaluación crítica de los estudios
medievales de Brasil en estas casi cuatro décadas de su sistemático desarrollo.
Palabras clave:
Consideradas las primeras iniciativas de promoción del período, pasamos a la evaluación
Historia Medieval; Historia
de la institucionalización de su ámbito de investigación en Brasil, atendiendo a las
Medieval en Brasil; Teoría de la
posibles razones de su rápido desarrollo. Por último, se considera las condiciones
Historia; Investigación.
ontológica, epistemológica y teórica del estudio de la Edad Media, centrándose en la
crítica de sus vías hoy hegemónicas, dominadas por posiciones que constituyen la
historiografía como una práctica pseudocientífica que reduce el oficio del medievalista
a una paráfrasis de los testigos del pasado.
Artigo recebido em 25/09/2016. Aprovado em 05/12/2016
3 MJM Bastos. Diálogos, v.20, n.3, 2-15

“mapeamento do campo”, considerando, além


O presente (brasileiro) de um passado do curso do seu estabelecimento, suas principais
(que nos é estranho?) tendências, vertentes, avanços, dificuldades e
perspectivas de futuro da história de um passado
Para historiadores e historiadoras que, cujo vigor no país, atualmente, parecia
como eu, trabalhamos com um remotíssimo imprevisível mesmo para uma das maiores
passado – ao menos é isso que se costuma supor autoridades da historiografia nacional.
sempre que nos remetemos a fatias de duração
do tempo tão distantes da nossa e tão próximas A rigor, pode-se afirmar que os meados
da de Cristo! – é bem razoável considerar que da década de 1990 constituíram o contexto da
cerca de quatro décadas representam pouco, afirmação do direito de cidadania histórica dos
muito pouco. Pois foi praticamente ontem, estudos medievais no Brasil, configurando-se as
portanto, que na cidade de São Paulo veio à luz atas de fundação da Associação Brasileira de
a obra organizada pelo professor Jaime Pinsky Estudos Medievais (ABREM), datada de 1996,
(1982) e intitulada Modo de Produção Feudal. como uma espécie de atestado de
reconhecimento institucional. Mas, aplicando-se
Apesar do seu título aparentemente uma metáfora cara à civilização agrária que nós
específico, o compilador reúne textos clássicos e medievalistas estudamos, os frutos então
fragmentos de fontes primárias dedicados a colhidos resultaram de uma semeadura levada a
temas diversos relativos à civilização medieval, efeito em condições precárias, o que só faz
para uso universitário. Na apresentação da obra, realçar o esforço e a criatividade de seus
a renomada historiadora brasileira Maria Yeda promotores. Parece razoável vincular os
Leite Linhares proferiu uma espécie de vaticínio. primeiros passos dessa longa trajetória à própria
Segundo a decana de nossa historiografia, as constituição da estrutura universitária no Brasil,
universidades brasileiras jamais formariam um tendência de base que viria a constituir uma
especialista em História Medieval, por ser aquele característica perene da pesquisa científica em
um passado que não nos pertencia, não nos dizia nosso país: a universidade pública é o seu âmbito
respeito e nos era “alheio” por razões diversas. primordial, quase exclusivo, em que pesem os
Ainda assim, ressaltava a apresentadora, aos frequentes esforços do poder público visando o
docentes encarregados da disciplina – que, seu desmantelamento. Assim, em 1934 foi criada
àquela altura, raríssimas vezes eram especialistas, a primeira instituição que abrigaria a História
cabendo-a a professores recém-contratados Medieval em seus quadros, a Universidade de
(sanção que manifestava o poder dos mais São Paulo, favorecida por missões científicas
velhos) ou aos “menos ativos” – cabia o esforço originárias da Alemanha, da Itália e, em especial,
por ministrarem ao menos cursos “dignos e da França, integrada por futuros expoentes da
honestos”, paroxismo decorrente de uma academia como Fernand Braudel, Claude Lévi-
atividade docente que se produziria alheia à Strauss, Roger Bastide e Jean Gagé, entre outros.
pesquisa e à produção do conhecimento. Esse último, um especialista em História da
Relembro o episódio menos com a Antiguidade, tomou a seu encargo a orientação
intenção de alertar os (as) leitores (as) para as dos primeiros trabalhos dedicados à Idade Média
dificuldades enfrentadas por videntes e profetas, realizados no Brasil, dentre os quais a tese
do que para marcar para os colegas o quão pioneira de doutorado, defendida por Eurípides
recente, e de certa forma improvável, é o enorme Simões de Paula em 1942. Seguiram-lhe as teses
desenvolvimento do campo dos estudos de Eduardo d’Oliveira França e de Pedro
medievais no Brasil! O texto que o leitor tem em Moacyr Campos (ambas de 1945), tendo esse
mãos pretende promover uma espécie de último ocupado a primeira cátedra de História
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Medieval instituída no Brasil, na USP, em 1950 a prática política e os pressupostos teóricos


(FRANCO JUNIOR e BASTOS, 2002-2003, p. sustentados pelos intelectuais do Partido
125-131). Comunista (PRADO JUNIOR, 1972).1 Quanto
a esses, ainda que chamassem a atenção sobre
As pioneiras expressões do
aspectos importantes do nosso universo rural
“medievalismo” brasileiro permitem antever
(MOTTA, 1998, p. 79) – dentre eles, a
uma tendência fadada a largo futuro, isto é, a
importância dos conflitos agrários e das lutas
orientação marcadamente francesa que
pelo acesso à terra – os promotores da tese do
caracterizou a nossa historiografia desde os seus
“feudalismo brasileiro” tenderam a exagerar as
primórdios. Há, contudo, uma exceção que
semelhanças superficiais existentes entre a
precisa ser relembrada, ainda que de passagem,
grande propriedade colonial e o grande domínio
tendo em vista um vigoroso quadro de
fundiário medieval, em detrimento das
referências olvidado pela medievalística
diferenças enormes relativas a um elemento
nacional, que padece da estranha, terrível e
central como eram as relações de produção em
contraditória endemia que atinge a tribo dos
ambos os contextos históricos (CARDOSO,
historiadores, o mal do esquecimento de seus
1978, p. 71).
clássicos! Refiro-me aos pioneiros historiadores
ensaístas brasileiros que, voltados à conceituação De qualquer forma, um novo fôlego
e caracterização de nosso passado e herança seria insuflado no nosso incipiente
coloniais, não hesitaram em debruçar-se com medievalismo – agora mais efetivo, frutífero e
afinco no estudo da estruturação feudal das duradouro – a partir de meados dos anos 1980,
metrópoles europeias à época da conquista. marcados por uma verdadeira “procura da Idade
Média” decorrente de uma “nova missão
No alvorecer dos anos 1960, o Partido
intelectual francesa chegada ao Brasil”! Graças,
Comunista Brasileiro, apoiado na vertente
inicialmente, às traduções portuguesas, a Nova
leninista do marxismo e nas teses da III
História francesa invadiu, enfim, o meio
Internacional (MANTEGA, 1984), caracterizava
acadêmico brasileiro. Georges Duby, Jacques Le
a sociedade brasileira como semicolonial e
Goff, Emmanuel Le Roy Ladurie, entre outros,
semifeudal. Na perspectiva de seus principais
tornaram-se referências obrigatórias nas
teóricos, ao Brasil impunha-se uma revolução
democrático-burguesa que viesse a livrá-lo tanto bibliografias dos cursos universitários, em
especial das disciplinas relativas à História
dos representantes do Imperialismo, base de
Medieval, que passou a suscitar o interesse
apoio dos latifundiários nacionais, quanto dos
crescente dos estudantes. E foi essa demanda em
entraves decorrentes dos “restos feudais”
expansão que fez constituir-se, em fins da
herdados do período colonial. São famosas as
teses de Nelson Werneck Sodré e, em especial, mesma década (1988), o primeiro setor dedicado
à História Medieval no âmbito de um programa
as de Alberto Passos Guimarães, na medida em
que atribuíram ao sistema colonial um caráter de pós-graduação brasileiro (Setor de História
Antiga e Medieval do PPGH – UFF), seguido de
feudal, cujos resquícios, duradouros – mazelas
perto pelo da UFRJ. Assim, portanto, decorridos
de longa duração – seriam responsáveis pelo
até hoje menos de trinta anos, é espantoso
nosso atraso e subdesenvolvimento (MOTTA,
destacar que a quantidade de dissertações e teses
1998, p. 65-79).
dedicadas ao Medievo nos programas brasileiros
Como sabemos, o golpe empresarial- supera os números relativos a áreas de estudos
militar de 1964 fez soar o dobre de finados sobre muito mais tradicionais em nosso país, como as

1 O autor, também membro do partido, negava, contudo, que o país apresentasse características feudais, ressaltando seu
caráter capitalista, manifesto desde as origens.
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de História Antiga e, pasme o nosso leitor, de expandiram-se, diversificaram-se e se assumiram


História da América! como um território plural e polissêmico.
Entretanto, à altura da promessa de crescimento
Costumo dizer a meus alunos que,
criada por esse campo seguem atuantes inúmeras
fossem os maiores expoentes da Nova História
dificuldades, igualmente múltiplas e expressivas:
francesa assiriólogos e não medievalistas,
bibliotecas limitadas, políticas de aquisição
estaríamos abordando neste texto o enorme
equivocadas, distância dos principais acervos
desenvolvimento dos estudos da Mesopotâmia
documentais, dos centros de pesquisa e dos
entre nós! É um fato que a História Medieval nos
especialistas europeus constituem os principais
seduziu na sua condição de mais uma “grande
obstáculos que limitam o pleno
novidade proveniente de Paris”, e foi ainda mais
desenvolvimento da pesquisa em História
celebrada em meio a uma estrutura universitária
Medieval no Brasil (e na América Latina em
brasileira indelevelmente marcada pelos então
geral).
recentes “anos de chumbo”, fatores que ajudam
a explicar certas tendências desde então Assim, na sequência deste artigo
predominantes no campo. Sob o propósito de pretendo me concentrar na promoção de um
promover uma despolitização do ensino de balanço crítico não dos problemas institucionais
História, de levar a cabo uma espécie de ou formais que enfrenta a pesquisa em História
“saneamento curricular” de um saber Medieval no Brasil, mas daquelas que me
considerado, então, como combustível de parecem constituir as principais orientações –
mobilização coletiva, investiu-se num ontológicas, epistemológicas e teóricas – de uma
esvaziamento do estudo da História forma hegemônica do “fazer” historiográfico
Contemporânea em favor do cultivo de passados atual da medievalística nacional. Afirmo-lhes,
tidos como mais distantes, remotos e, desde já e de antemão que, a meu juízo, tais
consequentemente, destituídos de uma tendências constituem limites enormes ao
comunicação direta com o mundo hodierno, conhecimento efetivo das sociedades que são
menos pedagógicos à ação humana (RUST e reunidas sob aquela rubrica, o que, na extensão,
BASTOS, 2008, p. 163-188). restringe exponencialmente o valor e a
importância dos resultados obtidos a partir de
Além de tirar proveito do êxito
alcançado pela divulgação de obras como O esforços que consomem boa parte de nossa vida
útil e das verbas destinadas à pesquisa histórica
Homem Diante da Morte e Montaillou, celebradas
em nosso meio.
por muitos como expressões de um potencial
ainda por explorar de renovação da operação Tendências hegemônicas na recente
historiográfica em sua totalidade, as pesquisas medievalística
dedicadas à História Medieval encontrariam,
junto aos aportes teóricos encampados pela As fatias outras de duração do tempo, as
História das Mentalidades, uma generosa matriz temporalidades pretéritas em relação à nossa,
de recursos para suas estratégias de legitimação aquilo, enfim, que chamamos de passado, seja ele
científica. Contudo, para além dessa marca mais ou menos remoto, só nos permite,
original indelével, a medievalística brasileira atual definitivamente, ressignificações. O que
atingiu um grau considerável de diversidade de designamos, portanto, por Idade Média está
perspectivas. Após abocanhar uma fatia sujeita a este mandamento primário da História
substancial – mesmo que insaciavelmente e nunca haverá um físico que possa nos redimir
modesta – do amparo institucional destinado à com a invenção de uma máquina do tempo que
pesquisa científica no país, os estudos permita superar este limite. Creio que, ao atingir
especializados em História Medieval tal percepção, promovemos uma tomada de
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consciência primordial necessária, mas não mais ou menos densas, mas essencialmente
suficiente, para o desenvolvimento, em sentido narrativas, que caracterizariam o discurso
pleno, de nosso ofício. Porque constatar que a historiográfico.
história medieval só nos é possível como Impõe-se, assim, no cerne do nosso
elaboração, construção, não determina, de ofício, um contato cerimonioso e respeitoso
imediato, qual é a via desse procedimento. Mas, com as fontes que o passado arbitrariamente nos
vejam: se é essa a condição possível da nossa legou, cuja autoridade cognitiva permitiria uma
atividade, é razoável considerar que ela venha abordagem daquele “tal como ele foi”. Ora,
sendo praticada, cotidianamente, pelos partindo de tal premissa ignoramos, penso eu, e
medievalistas. Seremos capazes de rastrear suas com uma frequência desconcertante, a
vias e perspectivas hoje hegemônicas? Creio que determinação mais fundamental de nosso ofício,
sim, e que suas principais tendências estejam isto é, o seu caráter forçosamente retrospectivo.
íntima e essencialmente articuladas, de forma A história é a disciplina do contexto e do
que se as isolo a seguir é apenas para viabilizar a contraste! Ela é não apenas o conhecimento
sua análise. sobre as sociedades do passado – sociedades que
O empirismo e o sacrossanto respeito às são um conjunto de relações e de determinações
fontes de época –, mas é, fundamentalmente, um conhecimento
que se elabora a partir de um presente
Já se passaram dezesseis anos desde que determinado. E esse presente, seja ele qual for,
o polêmico (e polemista) historiador francês também não é uma abstração livre promovida
Alain Guerreau promoveu uma pessimista pela mente do historiador, mas um conjunto de
avaliação da medievalística francesa que, em sua relações e de determinações que se impõe ao ele
opinião, atravessaria displicentemente a maior próprio. O medievalista não pode nunca se
das crises jamais insinuada ou vivenciada por tornar medieval, isto é, livrar-se de sua
este campo do conhecimento histórico que havia experiência e existência na nossa
sido o carro-chefe da Nova História. Em contemporaneidade para compreender o
L’Avenir d’Un Passé Incertain. Quelle histoire du passado tal como ele foi vivenciado por seus
Moyen Âge au XXIe siècle? (GUERREAU, 2002), agentes. Não é possível acessar a Idade Média (e
o autor, após promover um balanço daquelas nenhum outro passado) “tal como ela foi”.
que lhe pareciam ser as mazelas que afetavam a Nossas imagens do passado são, ademais,
disciplina, aponta as exigências e os caminhos da necessariamente determinadas pelo conjunto de
renovação que permitiram revigorar a história relações e estruturas sociais contemporâneas na
daquilo que se convencionou chamar Idade qual nos inserimos. E ignorar quais são essas
Média. Tão impressionante quanto o silêncio relações e estruturas do presente é, de forma
absoluto em relação à obra no Brasil é a sua imediata, empobrecer, impossibilitar ou tornar
crítica primeira e fundamental a uma irrelevante o nosso conhecimento sobre o
medievalística que se mantinha ainda dominada, passado.
segundo o autor, por uma orientação de base É possível que a tendência em questão se
empirista que preservava as velhas premissas da reforce, entre nós, em função do vigor de um
escola metódica do século XIX (e considerem silogismo enganoso que informou a geração de
que Guerreau é um chartiste!). Os medievalistas medievalistas brasileiros que viveu o boom da
seriam ainda tributários da primazia atribuída às História Medieval no Brasil ocorrido, como
fontes primárias, repositórios intocáveis do vimos, na segunda metade da década de 1980,
passado medieval que alimentariam, com um geração da qual eu mesmo faço parte. Naquela
mínimo de “intervenção externa”, as narrativas altura, a tantos estudantes de graduação
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maravilhados com a Idade Média que nos era submetida à pressão de uma torquês que lhe
descortinada pelos franceses, parecia que o esgarce, que lhe force os limites para que ela
maior dos empecilhos que dificultava a nossa revele, para além da sua “estrutura discursiva”,
atuação no campo era a raridade e a escassez das os níveis da realidade a que mesma fonte se
fontes primárias disponíveis aqui. Terá sido essa refere, o conjunto de relações que lhe dão
a origem do silogismo a que me referi, duvidoso sentido, a essência última dos fenômenos cuja
porque mecânico demais? Vamos a ele: “1, o aparência, revelada nos seus mais explícitos
grande problema para se realizar pesquisas em pronunciamentos, a fonte acaba por tergiversar.
História Medieval no Brasil é a exiguidade das Não é incomum, contudo, em face de tamanhas
fontes; 2, eu disponho de uma fonte; 3, logo, eu exigências, que a prática historiográfica acabe
‘tenho’ uma pesquisa!” por assumir, nesse caso, perspectivas bem mais
tímidas, tomando a fonte em questão como um
Deixem-me aclarar esse tópico. Penso
universo fechado, autorreferenciado,
que sejam duas, fundamentalmente, as vias pelas
autossuficiente, o objeto em si mesmo de todo o
quais se estruturam as pesquisas em História.
“esforço” da pesquisa em questão. A fonte chega
Uma delas toma, por eixo primário de
mesmo a parecer “transparente”, sua estrutura
articulação, um tema, uma questão mais ou
(discursiva) imediatamente revelada por aquilo
menos abrangente relativa à estruturação da
que seu autor, elevado à posição de autoridade,
sociedade que se pretende estudar e a pesquisa,
afirma explicitamente, e nos seus próprios
então, para ser desenvolvida, depende do
termos. O resultado mais comum? Trabalhos
estabelecimento de um corpus documental que a
viabilize. O tema suscita as fontes, e a pesquisa que se se limitam a “divulgar” as suas fontes e os
discursos de outrora, com a História reduzida à
se articula pela intenção fundamental de
tarefa de fazer ecoar no presente, em língua
“apreender” a sociedade em questão por
compreensível e em ortografia e sintaxe
algum(ns) de seu ângulo(s) ou campo(s)
atualizadas, as visões de mundo de elites
constitutivo(s). A outra via configura o que
dominantes em fatias pregressas de duração do
costumo designar por “recorte na fonte”,
tempo. Por essa via, frequentemente, o
alternativa pela qual a pesquisa tem por eixo
historiador se faz intérprete de “textos”, não de
essencial de articulação um corpus muitas vezes
sociedades.
limitado a uma única fonte primária de partida,
da qual devem ser estabelecidos um tema, seus O medievalista e os textos
balizamentos e as questões que o
problematizam, ou ao menos é isso que se Será a tendência a que acabo de me
espera. Pelo que venho observando em referir um produto da influente, famosa e
oportunidades e situações diversas, arrisco-me a recente “virada linguística”, que reduz o real a
afirmar que é essa segunda vertente que uma “textualidade”? Se o for, em grande parte
predomina entre nós no nosso campo, e que a dos casos ele parece inconsciente, porque
mesma está associada a limites e dificuldades raríssimas vezes é requisitado ou mesmo
específicas. admitido. Esperemos, ao menos, que o façam os
Ela costuma constituir, em primeiro seus promotores. De minha parte, com relação
lugar, um inebriante convite ao empirismo. Se a aos textos que constituem nossa matéria-prima –
pesquisa em História, como estabelecido desde a mas apenas matéria-prima –considero que os
fundação dos Annales, deve estar pautada pela pós-modernos têm razão ao nos alertar para o
decifração de um problema, o caminho que fato de que suas formas limitam os seus
antecipa a fonte ao próprio tema depende de que conteúdos, mas não creio que isso implique, de
a mesma seja “problematizada”, isto é, modo algum, que se deva reduzir a história ao
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texto. Trata-se, antes, de relacionar texto e Extravasando o quadro ibérico, ressalta-


contexto, buscando os nexos entre as ideias se o vigor desse discurso “anti-pagão”
contidas nos discursos, as formas pelas quais elas reproduzido na literatura cristã da Gália
se exprimem e o conjunto de determinações merovíngia, da Itália ostrogoda e da Inglaterra
extratextuais que presidem a produção, a anglo-saxônica. Ademais, é extrema a identidade
circulação e o consumo dos mesmos. Em uma de referências encontradas nas obras de Cesário
palavra, o historiador deve sempre, sem de Arles, Martinho de Braga, Pirmino, Rabanus
negligenciar a forma do discurso, relacioná-la ao Maurus, Regino de Prüm e Burcardo de Worms
social (CARDOSO e VAINFAS, 1997, p. 378). a crenças e práticas alheias ao referencial cristão
(HEN, 1995, p. 168). Ou seja, são efetivas as
Por outro lado, negar a redutibilidade da
repetições das mesmas condenações numa
história ao texto não significa admitir que exista
ampla variedade de fontes datadas do século VI
uma história independente do texto. A história é
ao século XI.
sempre texto, ou mais amplamente, discurso,
seja ele escrito, iconográfico, gestual etc., de Ora, para um número crescente de
forma que apenas a partir da decifração dos medievalistas, o vigor e a renitente reincidência
discursos que exprimem ou contêm a história de manifestações textuais como essas
poderá o historiador realizar seu ofício. Como configuram apenas um topus literário alheio a
destaca Eliseo Verón (1981, p. 192), no qualquer materialidade. Assim, para Harmening
funcionamento de uma sociedade (1979, p. 49-73), as repetições e cópias que
historicamente dada, o sentido não se encerra aparecem nas fontes coetâneas seriam um sinal
em uma instância particular, mas se encontra por inequívoco de submissão à convenção literária,
toda parte, assim como a ideologia e o poder, de de forma que o paganismo de época constituía-
forma que o sentido de um texto sempre o se apenas como uma vigorosa manifestação
ultrapassa. discursiva reproduzida por copistas que
miravam apenas os livros e não que os
Tomemos um exemplo da radicalização
circundava. Yitzhak Hen, por seu turno,
da perspectiva e do perigo da “hipercrítica” (ou
reconhece, além do efeito de literariedade das
do ceticismo?) associada à “virada linguística”.
manifestações, a expressão em tais fontes de
Se nos situamos no contexto da transição da
Antiguidade à Alta Idade Média Ocidental, e em uma certa realidade existente no período de sua
composição, mas que estaria restrita, contudo,
meio ao fluxo de um processo histórico marcado
ao campo da subjetividade. “Esta realidade era
pelo fenômeno da implantação e disseminação
mais mental do que prática refletindo,
do cristianismo, identificamos a existência de
essencialmente, os temores e receios que
uma farta e diversa literatura dedicada ao tema
das “sobrevivências pagãs”. Atas conciliares, preocupavam a mente dos autores” (HEN,
1995, p. 171).
hagiografias, sermões, legislação constituem
apenas alguns exemplos de gêneros discursivos Estamos, assim, às voltas com um
amplamente devotados à caracterização de fenômeno que é tomado e tratado como uma
crenças incompatíveis com o sistema cristão em episteme à moda foucaultiana, considerados os seus
processo de afirmação no Ocidente. No que se enunciados como o efeito de um modo de
refere à Península Ibérica do século IV d.C. ao apresentação discursiva que regula a sua
VIII d.C., encontramos um rico conjunto de sistematicidade, revelando o que há de comum
referências a um simbolismo pagão relacionado em diferentes tipos de discurso num
à fertilidade e à produção agrícola (VIVES, determinado período de tempo. Este modus
1963). operandi apresenta, porém, graves distorções.
9 MJM Bastos. Diálogos, v.20, n.3, 2-15

Considerando-se os campos de políticas e ideológicas diversas. Depende,


manifestação dos vários cultos condenados, essencialmente, do estado deste conjunto de
destaca-se a sua incidência no âmbito de fatores num dado contexto específico. As
atividades e necessidades várias, fundamentais e tensões manifestas nas fontes cristãs
correntes na vida quotidiana e de trabalho das altomedievais revelam, ainda, que os textos, os
comunidades camponesas. Dentre elas a discursos, são uma arena importante das lutas de
preocupação com a produção e a fertilidade dos classes, que também se manifestam, portanto, na
campos, a garantia e preservação das colheitas, a linguagem e na literatura. E é esse, sempre, o
proteção da casa, do trabalho doméstico, dos preço a pagar por todo discurso que pretende
rebanhos etc., além daquelas atividades afirmar a univocidade de sua ascendência de
diretamente associadas à exploração das áreas classe e de sua posição de poder: o de revelar, em
incultas (bosques, florestas etc.) e manifesta nos seu anseio de absolutização, as experiências e
cultos às árvores, rios, mar, fontes. Referem-se, práticas rivais que pretende sufocar e calar.
pois, a um âmbito essencial da estruturação das Portanto, todo historiador que assume –
sociedades humanas, aquele das relações intencional ou desavisadamente – como sua
estabelecidas pelos homens estre si com a profissão de fé a reprodução acrítica dos
natureza, que mobiliza intervenções materiais e discursos de outrora submete o passado à
também simbólicas, aí incluídas os próprios naturalização de suas formas diversas de
discursos que as expressam. desigualdades, dominação e exploração, o que
constitui, mais do que um flagrante desrespeito
As reiteradas condenações às crenças
visavam práticas contraditórias com a ortodoxia às lutas do passado, uma total falta de
compromisso, no presente, com o desejo de
cristã, revelando, ademais, que a relativa
futuro.
autonomia preservada pelas comunidades
camponesas sustentou uma base de contínua O individualismo metodológico
elaboração e reelaboração de uma cosmovisão
irredutível, plenamente, aos preceitos ditados Outra expressão corrente do
pelas elites eclesiásticas do período. Assim, as medievalismo constitui o individualismo
práticas veiculadas pelos discursos não são, em metodológico imperante, e que vejo manifesto,
si, predominantemente discursivas, não se por exemplo, nas perspectivas de que as
limitam ou reduzem-se ao plano da sociedades se organizam como coleções de
“discursividade”. Não se trata, inclusive, apenas indivíduos ou, nos melhores casos, como
de aludir ao aspecto prático dos discursos. É coleção de “áreas” constitutivas do real. Não há
fundamental à sua plena compreensão a dúvida de que o nosso acesso mediado às
consideração da diversidade das práticas sociais, sociedades do passado depende das descrições
inclusive a discursiva, inserindo-as no campo de empreendidas por indivíduos que as
estudos a partir de alguma teoria relativa ao vivenciaram. Mas, tal premissa não deveria
funcionamento e à estruturação das sociedades implicar na perspectiva de que nossas figurações
humanas (McNALLY, 1999, p. 33-49). do passado estejam limitadas às figurações
A emergência, numa sociedade, de um elaboradas por estes tais indivíduos, equívoco
enunciado, de um costume, de uma experiência, evidente que impõe, ao nosso conhecimento, ao
num contexto dado – o fato de que isto ocorra – menos duas limitações extremas. Em primeiro
não depende apenas (nem principalmente) das lugar, cada vez mais pesquisamos temas que se
“regras que controlam, no caso em questão, a restringem à experiência de determinados
produção dos discursos”, e sim do jogo indivíduos, pesquisas nas quais a sociedade (se
complexo das condições econômico-sociais, tem existência reconhecida) é apenas
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coadjuvante. Assim, é explícita a multiplicação consiste em atribuir o que chamo de


de trabalhos com títulos no formato “Uma “superioridade ontológica” aos medievais na
abordagem dos temas ‘A’, ‘B’ e ‘C’ na fonte ‘X’”, compreensão daquela sociedade, de supor que
ainda que de fato o mais comum já seja “Uma estavam mais habilitados do que nós
abordagem do tema ‘A’ na fonte ‘X’”. Para esse historiadores a “decifrá-la” em sua essência. Essa
modo de fazer história, não se trata mais de tendência talvez derive do intuito de corrigir um
desvelar as relações, dinâmicas e estruturas que terrível equívoco. Costumo dizer aos meus
constituem uma globalidade social, e talvez nem alunos de história medieval que esse é o único
mesmo de abordar uma dada sociedade por um período histórico que suscita, de seus
ângulo seu específico, mas de empreender a promotores, uma retratação inicial. A história
exegese de uma fonte ou personagem qualquer medieval, antes de estabelecer-se como conceito,
(BASTOS e PACHÁ, 2011, p. 506-515). precisa denunciar um pré-conceito. Não há um
bom manual dedicado ao período que não
Essa via implica numa análise parcial não
denuncie e não chame a atenção dos leitores para
apenas por ignorar os elementos e estruturas da
o fato de que a Idade Média é uma invenção
sociedade, mas também porque mesmo a análise
maldosa de renascentistas e de iluministas,
desses ilustres indivíduos é incompleta sem o
detratores que, interessados em realçar as suas
desvelamento de sua inserção em uma totalidade
próprias épocas, criaram uma lenda fadada a
social que determina, limita e possibilita sua
largo futuro, a da Idade Média das sombras e das
existência e ações. De forma semelhante, cada
trevas, a longa “noite de mil anos em que a
vez investimos mais na perspectiva de fazer
história política, história cultural, história das Europa não tomou banho”.
instituições, como se qualquer sociedade Tal imagem negativa viria a ser
pudesse existir fragmentariamente, parcializada contraposta, como sabem, por uma outra de
em campos constitutivos mais ou menos signo contrário, mas bem menos difundida, a de
autônomos entre si, ou como se fosse uma uma Idade Média cândida, um passado a ser
coleção de indivíduos e de “áreas” do real, acarinhado, uma longa noite de mil anos talvez,
unitários em seu isolamento Ora, qualquer mas que resplandecera sob um céu carregado de
pesquisador do medievo já viveu a sensação de estrelas. Refiro-me aqui à famosa perspectiva
ver as fronteiras de seus supostos campos romântica que, ainda que tenha reabilitado a
constitutivos, uma vez fixadas, insistirem em Idade Média, teria cometido o mesmo pecado de
escapar dos limites impostos! Talvez fosse o caso base da vertente anterior, ou seja, deturpou-a
de nos perguntarmos por que seguimos igualmente, projetando-lhe um presente, o dos
insistindo, no entanto, em chamar de sociedades nacionalismos do século XIX, também
estes conjuntos – ou somatórios? – de carregado de preconceitos, mesmo que para criar
fragmentos dispersos, suposta e aparentemente a lenda do “medievo dourado” (FRANCO
desconexos nas suas estruturas constitutivas? Ou JUNIOR, 2001, p. 9-20).
já não acreditamos mais que as sociedades sejam Ora, como não aprender a partir de
totalidades orgânicas articuladas, ou duvidamos lições tão evidentes? Toda aquela deturpação e
da nossa capacidade de apreendê-las como tal. falseamento resultaram da orgulhosa sensação
Superioridade ontológica dos de superioridade dos diversos presentes em
“medievais” relação ao passado medieval! Portanto, o
medievalista, historiador arguto e profissional,
Talvez seja essa uma das mais vigorosas devia adotar uma medida que lhe permitisse
e complexas orientações dominantes no quadro superar tão evidente limitação em prol de um
do medievalismo. Trata-se da perspectiva que conhecimento mais objetivo, livre de
11 MJM Bastos. Diálogos, v.20, n.3, 2-15

preconceitos e relativista. A proposição efetivos de um passado pleno em relação ao qual


inovadora, ou mesmo revolucionária, consistiria devemos nos vergar maravilhados, boquiabertos
então em guindar a “percepção que a Idade e emudecidos. São enunciações parciais, tanto
Média tinha dela própria” à condição de superior reveladoras quanto sublimadoras das porções do
base ontológica para a prática de nosso ofício. real a que se referem, tanto promotoras quanto
Trata-se, então, de restabelecer a visão dos limitadoras do conhecimento da sociedade de
medievais, de conceder-lhes a voz e a autoridade que emanam. Ao fazer-se antropólogo o
última da sua revelação, tornando-se o medievalista deve considerar que não tratamos
medievalista uma espécie de antropólogo que se de uma sociedade estruturada nas mesmas bases
concentra nos cadernos de declarações emitidas de tantas sociedades a que se dedicam aqueles
pelos seus primitivos, entendendo aquela nossos confrades, isto é, sociedades igualitárias
sociedade “por dentro”. muitas delas, ou caracterizadas por níveis
bastante limitados de fratura, diferenciação,
Parece-me que um eminente historiador
desigualdades e exploração internas. Tratamos
francês, discípulo de Le Goff, captou,
de uma sociedade profundamente cindida, com
fundamentou e fortaleceu a perspectiva em
abismos sociais extremos e níveis de
questão. Refiro-me a Alain Gerreau (1982 e
desigualdade internos radicais, uma sociedade
2002) e à sua tese, apresentada em obras
cuja superação histórica deu ensejo a nada mais,
diversas, da “dupla fratura conceitual” que, ao
nada menos, do que à sociedade burguesa
operar-se no século XVIII, pois em xeque a
capitalista na qual vivemos.
nossa capacidade de percepção do passado
medieval. O advento da sociedade burguesa, Os registros medievais, seus discursos
com as transformações que tiveram lugar, teria diversos, textuais, imagéticos, da cultura
rompido os nexos com aquele passado, material, estão eivados da condição primária de
privando-nos das suas categorias de todo e qualquer discurso: eles visam, e de fato
compreensão e da capacidade de dialogar com conseguem, ao mesmo tempo, esclarecer e
ele: as realidades foram cindidas, suas confundir! Eles evidenciam interpretações de
instituições desfiguradas, promovendo-se mundo marcadas por perspectivas de classe, por
ruptura tão brutal e extrema que a interlocução exemplo, mas confundem tais visões parcelares,
teria passado a promover, no máximo, diálogos socialmente determinadas, com a concepção
de surdos. Nós e os medievais não partilhamos geral de mundo no período, com a suposta visão
sistemas de pensamento e nem sequer falamos que a sociedade possuía de si mesma, como se
línguas mutuamente compreensíveis! sociedades fossem entes que se olhassem no
espelho e analisassem a imagem projetada. Eles,
Lamento ter que ser breve e esquemático
nas críticas a uma perspectiva primordial do os discursos, divulgam a aparência superficial das
relações sociais em que os indivíduos estão
nosso fazer historiográfico hegemônico, mas já
estou abusando da paciência do(a) leitor(a). De inseridos em uma dada sociedade, e confundem
tal aparência com a essência que estruturava
essencial eu afirmo que ela constitui, a meu juízo,
aquela mesma sociedade em suas relações.
um equívoco enorme, promotor de vários
contrassensos e limitações. A essa altura eu não resisto a uma citação
que deveria ser uma máxima famosa: “(...) toda a
Antes de mais, deriva dela, em grande
ciência seria supérflua se a forma de
parte, uma mística ou fetiche da documentação
manifestação e a essência das coisas
manifesto em muitas das proposições correntes
coincidissem imediatamente.” Mesmo que não
de um retorno às fontes, à sua exegese
precise nomear seu autor, devo contextualizar a
hermenêutica que reina entre nós. Ora, as fontes
afirmação, que aparece no capítulo quarenta e
não são fragmentos de verdade, registros fiéis e
MJM Bastos. Diálogos, v.20, n.3, 2-1512 12

oito do tomo 2 do volume III de O Capital, no ar”, viram-se os humanos constrangidos a


quando Marx (1983, p. 271) critica os enfrentar as suas duras e cruas condições de vida,
economistas clássicos por não fazerem nada e os historiadores – humanos que somos! –
mais do que traduzir, sistematizar e louvar, com inscritos, enfim, em um quadro de referências
sua doutrina, as concepções dos agentes sociais que nos capacitou a desvelar os determinantes
inseridos (presos) nas relações burguesas de profundos e mundanos da produção e
produção. reprodução das nossas sociedades.
Outra expressão desta prioridade Declaro a minha frontal oposição à
ontológica atribuída aos medievais manifesta-se perspectiva de Alain Guerreau (1982 e 2002),
na defesa intransigente da perspectiva de que, ao relativa ao suposto “prejuízo epistemológico”
analisar a sociedade medieval, o historiador deve derivado da dupla fratura conceitual do século
fazer uso exclusivo das categorias de apreensão XVIII, que teria deprimido a nossa capacidade
do mundo forjadas no contexto daquela de apreensão da sociedade medieval. Admito a
sociedade. A infração dessa regra produziria, fratura, mas não o resultado que lhe atribui, pois
inevitavelmente, abordagens abusivas, penso que a possibilidade da História
ideologicamente comprometidas e profissional decorre justamente dela! Ora, foi ela
necessariamente anacrônicas, que imporiam ao que nos inscreveu numa “economia política”
medievo expressões que lhe eram estranhas. estranha às mistificações da ordem feudal e nos
Ora, o que tais paladinos da neutralidade possibilitou abordá-la com condições de
parecem desconsiderar é que as categorias de percepção e instrumentais verdadeiramente
então constituem uma verdadeira “economia críticos. Nossa função não é experimentar o
política” (FONTANA, 1998, p. 9-10)2 de época, passado, mas de dialogar com ele em prol do
legitimadora de um status quo imperante que os presente, possibilidade efetivada graças ao nosso
historiadores acabam por reproduzir, ainda que “ponto de disposição e de observação
muito orgulhosos de sua erudição. temporal”. A nossa função é traduzir o passado
em bases compreensíveis para o presente, o que
A historiografia, assim como a matéria-
decorre dos contrastes e das assimilações entre
bruta que processa e sobre a qual opera, parece,
ambos, assim como a tarefa da antropologia
de fato, movida por contradições primordiais.
Vivemos, ao longo do século passado e nesse clássica não é explicar as sociedades primitivas
para os primitivos, mas para as sociedades nas
que se inicia, um vigoroso processo de
quais atuam os antropólogos. Trata-se sempre de
autorreconhecimento e especialização em meio
um conhecimento produzido em prol do outro
ao qual a História precisou-se em sua
que somos nós, e do presente.
epistemologia, ampliou o seu campo de atuação,
diversificou os seus referenciais teóricos e O objetivo da história não pode ser
aprimorou os seus instrumentos de análise, tudo jamais a apreensão imediata do passado, o
isso a par da – se não motivada pela – percepção contato direto com as realidades pretéritas
da irredutível complexidade de seu objeto de baseada em qualquer concepção empirista. Da
estudos. Insertos numa contemporaneidade em mesma forma, creio, não se trata da apreensão
que a aceleração do curso da História pela de seus “pedaços”, de esferas da vida social que
demanda ampliada da reprodução do capital fez não podem existir em isolamento recíproco. Ao
com que “tudo que fora sólido se desmanchasse contrário, o sentido maior do conhecimento

2 “Uma explicação do sistema de relações que existem entre os homens, que serve para justificá-las e racionalizá-las – e, com
elas, os elementos de desigualdade e exploração que incluem –, apresentando-as como uma forma de divisão social de
trabalhos e funções, que não só aparece agora como resultado do progresso histórico, senão como a forma de organização
que maximiza o bem comum”.
13 MJM Bastos. Diálogos, v.20, n.3, 2-15

histórico consiste no desvelamento das lógicas espaço (ou talvez esses, em especial) é,
internas de seus objetos de estudo (as sociedades fundamentalmente, um “dimensionador” do
do passado), reconhecendo e englobando a sua presente, dialeticamente negado e afirmado pela
inscrição no presente (condição da sua sua retroprojeção temporal. O mundo em que
possibilidade) e analisando o passado como uma nos encontramos é o resultado da destruição
totalidade cuja forma de apreensão deve estar criativa dos passados vários que o presente
calcada na dialética da essência e da aparência. deglutiu e regurgitou!
Ou seja, trata-se de demonstrar como os E é imperioso destacar que o presente
vestígios do passado aos quais temos acessos são que o historiador “dimensiona” na longa
recortes de experiências individuais, mas que, em duração é constituído, ele próprio, por um
sua conjugação, servem como instrumento para conjunto de relações sociais conflituosas e
desvelar lógicas e dinâmicas estruturais, contraditórias, sobre as quais não pode pairar o
essências, as quais, por sua vez, nos permitem historiador para produzir uma história integral e
enquadrar esses mesmo vestígios em uma neutra que se eleve acima dos conflitos. Se,
imagem do passado mais efetiva, menos como querem alguns, a história depende da
parcializada.
“empatia em relação ao humano em
Ademais, a radicalização da perspectiva temporalidades e latitudes as mais diversas”,
da fratura conceitual e ontológica pode nos levar toda empatia arrasta posições contraditórias que
a um prejuízo maior, o de suprimir o sentido da se projetam até os “contextos” – fatias de
articulação temporal na longa duração histórica. duração, sociedades – sobre os quais se
O que de pior podemos promover a partir dela debruçam os historiadores. É assim que, apoiado
não é a deformação do passado, mas a na leitura, desenvolvida por Gramsci (1978, p.
impossibilidade de compreensão da constituição 75), da concepção dialética marxiana da História,
do presente como resultado do processo concebo a nossa disciplina – e parte considerável
histórico, transformando-o em mera da diversidade de perspectiva que caracteriza
contingência! Assim, acabamos por sacralizar o hoje a sua prática – como campo de um conflito
passado, rompemos os fluxos históricos de sempre aberto entre projetos opostos de síntese
negação e de afirmação que o constituem como de passado e presente, portanto, entre
manifestação pulsante da nossa própria “universalidades” diferentes.
existência e duração, isto é, da nossa Mas, para finalizar, e quanto ao futuro
contemporaneidade. Mesmo os historiadores imediato, o que nos reserva a Roda da Fortuna?
reacionários mais empedernidos, pré e pós- Ou, dito de outra forma: já será possível, de fato,
modernos, que se vangloriam de negar qualquer
falar de consolidação do campo no Brasil? Ora,
utilidade à História deveriam reconhecer, ainda se todos os obstáculos acima mencionados se
que a contragosto, que a função social primeira encontram na raiz desse questionamento,
de nossa disciplina é insofismável e certamente não é menor o peso do preconceito
incontornável. Aos historiadores, homens e e da estigmatização de que são, ainda hoje, alvo
mulheres do seu tempo, compete dimensionar os pesquisadores que, no âmbito de nossas
historicamente os fenômenos, as demandas e os universidades dedicam-se à História Medieval.
anseios que mobilizam a atenção e instigam o
desejo de conhecimento das suas sociedades Subsiste, como perspectiva talvez hoje
contemporâneas, nas quais vivem e a partir das mais difusa e menos explícita, em nosso meio
quais são mobilizados para a produção do acadêmico, a percepção de que o longo período
conhecimento histórico. O historiador, mesmo identificado por Idade Média não nos diz
o das sociedades mais remotas no tempo e no respeito (aos latino-americanos, em geral, e aos
brasileiros, em particular!), envolta por um véu
MJM Bastos. Diálogos, v.20, n.3, 2-1514 14

de exotismo diletante ao qual se dedicam, Referências


consumindo verbas públicas e postos
BASTOS, M. J. da M. Assim na terra como no céu:
universitários (mesmo que em ínfima escala), um Paganismo, Cristianismo, Senhores e Camponeses na
número ainda relativamente restrito de Alta Idade Média Ibérica (séculos IV-VIII). São Paulo:
profissionais alienados e alienantes, um incrível EDUSP, 2013.
exército de “Brancaleones” estrangeiros em seu BASTOS, M. J. da M.; PACHÁ, P. H. de C. Por uma
próprio domicílio. Negação Afirmativa do Ofício do Medievalista! In: IX
ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOS
Parece-nos claro que a “Idade Média” MEDIEVAIS DA ABREM, 2011, Cuiabá. Anais..., vol.
constituiu um importante “laboratório humano” 1, Cuiabá: ABREM. p. 506-515.
cujo sentido e importância superam, inclusive,
CARDOSO, C. F. S. Observações sobre o “Dossier”
qualquer limitada perspectiva acerca de heranças preparatório da Discussão sobre o Modo de Produção
diretas suas que possamos reconhecer ainda Feudal. In: PARAIN, C. (Org.). Sobre o Feudalismo. Centre
“(sobre)vivas” em nosso meio. Cadinho de uma d’Études et Recherches Marxistes. Lisboa: Editorial
vigorosa e múltipla vivência humana, essa “fatia Estampa, 1978. p. 70-74.
de duração” nos transcende e interessa, não por CARDOSO, C. F.; VAINFAS, R. História e Análise de
aquilo que romanticamente teria a nos ensinar, Textos. In: _____. Domínios da História. Ensaios de Teoria
mas pelo que ali configurou a luta humana pela e Metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 359-
382.
subsistência, pela sobrevivência, pela
reprodução, pela eternização, de que somos, em FONTANA, J. História: Análise do Passado e Projeto
grande parte, manifestação. Muito menos do que Social. Bauru: EDUSC, 1998.
um passado perdido no tempo, era remota, FRANCO JUNIOR, H. A Idade Média: nascimento do
objeto de curiosidade de “antiquários”, o que a ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2001.
Idade Média nos ajuda a desvelar é o que temos
FRANCO JÚNIOR, H.; BASTOS, M. J. da M. L’histoire
de mais específico, distintivo e marcante em du Moyen Âge au Brésil. Bulletin du Centre d’études
nossa contemporaneidade, a sua historicidade. médiévales, Auxerre, n. 7, p. 125-131, 2002-2003.

Por fim, uma declaração que, tornada GRAMSCI, A. Concepção Dialética da História. Rio de
possível configura um débito não menor dos Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
historiadores, da Idade Média inclusive, em GUERREAU, A. El futuro de um pasado. La Edad
relação aos Annales, o direito pleno e Media em el Siglo XXI. Barcelona: Crítica, 2002.
desavergonhado, que nos foi reconhecido, à
GUERREAU, A. El Futuro de um Pasado. La Edad
expressão de emoções. De minha parte, declaro Media em El Siglo XXI. Barcelona; Crítica, 2002.
que a História é paixão pela espécie, paixão pelo
humano, e se realiza em toda e qualquer GUERREAU, A. O Feudalismo. Um horizonte teórico.
Lisboa: Edições 70, 1982.
manifestação sua, alheia a limitações, sobretudo
temporais. Talvez seja esse o sentido maior a HARMENING, D. Superstitio. Überlieferungs- und
atribuir-se à célebre máxima proferida um dia, theoriegeschictliche Untersuchungen zur kirchlich-
theologischen Aberglaubensliteratur des Mittelalters.
em terríveis condições – “O historiador deve ser Berlin: Erich Schmidt Verlag, 1979.
como o ogro da lenda. Lá onde farejar a carne
humana ele sabe que encontrará a sua caça” –, HEN, Y. Culture & Religion in Merovingian Gaul, AD
481-751. Leiden-Nova York-Köln: E. J. Brill, 1995.
por um grande medievalista cuja nota permita-
me, paciente leitor(a), humildemente dispensar. MANTEGA, G. A Economia Política Brasileira. São Paulo:
Polia, 1984.

MARX, K. O Capital. Crítica da Economia Política, vol. III,


t. 2. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
15 MJM Bastos. Diálogos, v.20, n.3, 2-15

McNALLY, D. Língua, história e luta de classe. In:


WOOD, E. M.; FOSTER, J. B. (Org.). Em defesa da
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Zahar Editor, 1999. p. 33-49.

MOTTA, M. M. M. Caindo por terra (historiografia e


questão agrária no Brasil). In: GIRBAL-BLACHA, N. y
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1982.

PRADO JÚNIOR, C. Formação do Brasil Contemporâneo.


São Paulo: Brasiliense, 1972.

RUST, L. D.; BASTOS, M. J. da M. Translatio Studii. A


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VIVES, J. (Org). Concilios Visigóticos e Hispano-Romanos.


Barcelona-Madri: Consejo Superior de Investigaciones
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