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Diálogos
ISSN 2177-2940
(Online)
ISSN 1415-9945
(Impresso)
http://dx.doi.org/10.4025/dialogos.v20i3
Abstract
Four decades of Medieval History in Brazil: contributions to its critique
The aim of this article is to provide a critical balance of the Brazilian medieval studies
in these four decades of its systematic development. Considered the first initiatives of
promotion of the period between us, we started the evaluation of the institutionalization
Keywords: of the research fields in Brazil, approaching the potential reasons for its rapid growth.
Medieval History; Medieval History Finally, we consider the ontological, epistemological and theoretical status of the study
in Brazil; theory of History; of the Middle Ages, centered on the critics of slopes, today hegemonic in the field in
research question, dominated by positions that constitute the historiography as a pseudoscientific
practice that reduces the function of medievalist to a tedious paraphrase of the formerly
sources.
Resumen
Cuatro décadas de Historia Medieval en Brasil: contribuciones y sus críticas
El propósito de este artículo es proporcionar una evaluación crítica de los estudios
medievales de Brasil en estas casi cuatro décadas de su sistemático desarrollo.
Palabras clave:
Consideradas las primeras iniciativas de promoción del período, pasamos a la evaluación
Historia Medieval; Historia
de la institucionalización de su ámbito de investigación en Brasil, atendiendo a las
Medieval en Brasil; Teoría de la
posibles razones de su rápido desarrollo. Por último, se considera las condiciones
Historia; Investigación.
ontológica, epistemológica y teórica del estudio de la Edad Media, centrándose en la
crítica de sus vías hoy hegemónicas, dominadas por posiciones que constituyen la
historiografía como una práctica pseudocientífica que reduce el oficio del medievalista
a una paráfrasis de los testigos del pasado.
Artigo recebido em 25/09/2016. Aprovado em 05/12/2016
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1 O autor, também membro do partido, negava, contudo, que o país apresentasse características feudais, ressaltando seu
caráter capitalista, manifesto desde as origens.
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consciência primordial necessária, mas não mais ou menos densas, mas essencialmente
suficiente, para o desenvolvimento, em sentido narrativas, que caracterizariam o discurso
pleno, de nosso ofício. Porque constatar que a historiográfico.
história medieval só nos é possível como Impõe-se, assim, no cerne do nosso
elaboração, construção, não determina, de ofício, um contato cerimonioso e respeitoso
imediato, qual é a via desse procedimento. Mas, com as fontes que o passado arbitrariamente nos
vejam: se é essa a condição possível da nossa legou, cuja autoridade cognitiva permitiria uma
atividade, é razoável considerar que ela venha abordagem daquele “tal como ele foi”. Ora,
sendo praticada, cotidianamente, pelos partindo de tal premissa ignoramos, penso eu, e
medievalistas. Seremos capazes de rastrear suas com uma frequência desconcertante, a
vias e perspectivas hoje hegemônicas? Creio que determinação mais fundamental de nosso ofício,
sim, e que suas principais tendências estejam isto é, o seu caráter forçosamente retrospectivo.
íntima e essencialmente articuladas, de forma A história é a disciplina do contexto e do
que se as isolo a seguir é apenas para viabilizar a contraste! Ela é não apenas o conhecimento
sua análise. sobre as sociedades do passado – sociedades que
O empirismo e o sacrossanto respeito às são um conjunto de relações e de determinações
fontes de época –, mas é, fundamentalmente, um conhecimento
que se elabora a partir de um presente
Já se passaram dezesseis anos desde que determinado. E esse presente, seja ele qual for,
o polêmico (e polemista) historiador francês também não é uma abstração livre promovida
Alain Guerreau promoveu uma pessimista pela mente do historiador, mas um conjunto de
avaliação da medievalística francesa que, em sua relações e de determinações que se impõe ao ele
opinião, atravessaria displicentemente a maior próprio. O medievalista não pode nunca se
das crises jamais insinuada ou vivenciada por tornar medieval, isto é, livrar-se de sua
este campo do conhecimento histórico que havia experiência e existência na nossa
sido o carro-chefe da Nova História. Em contemporaneidade para compreender o
L’Avenir d’Un Passé Incertain. Quelle histoire du passado tal como ele foi vivenciado por seus
Moyen Âge au XXIe siècle? (GUERREAU, 2002), agentes. Não é possível acessar a Idade Média (e
o autor, após promover um balanço daquelas nenhum outro passado) “tal como ela foi”.
que lhe pareciam ser as mazelas que afetavam a Nossas imagens do passado são, ademais,
disciplina, aponta as exigências e os caminhos da necessariamente determinadas pelo conjunto de
renovação que permitiram revigorar a história relações e estruturas sociais contemporâneas na
daquilo que se convencionou chamar Idade qual nos inserimos. E ignorar quais são essas
Média. Tão impressionante quanto o silêncio relações e estruturas do presente é, de forma
absoluto em relação à obra no Brasil é a sua imediata, empobrecer, impossibilitar ou tornar
crítica primeira e fundamental a uma irrelevante o nosso conhecimento sobre o
medievalística que se mantinha ainda dominada, passado.
segundo o autor, por uma orientação de base É possível que a tendência em questão se
empirista que preservava as velhas premissas da reforce, entre nós, em função do vigor de um
escola metódica do século XIX (e considerem silogismo enganoso que informou a geração de
que Guerreau é um chartiste!). Os medievalistas medievalistas brasileiros que viveu o boom da
seriam ainda tributários da primazia atribuída às História Medieval no Brasil ocorrido, como
fontes primárias, repositórios intocáveis do vimos, na segunda metade da década de 1980,
passado medieval que alimentariam, com um geração da qual eu mesmo faço parte. Naquela
mínimo de “intervenção externa”, as narrativas altura, a tantos estudantes de graduação
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maravilhados com a Idade Média que nos era submetida à pressão de uma torquês que lhe
descortinada pelos franceses, parecia que o esgarce, que lhe force os limites para que ela
maior dos empecilhos que dificultava a nossa revele, para além da sua “estrutura discursiva”,
atuação no campo era a raridade e a escassez das os níveis da realidade a que mesma fonte se
fontes primárias disponíveis aqui. Terá sido essa refere, o conjunto de relações que lhe dão
a origem do silogismo a que me referi, duvidoso sentido, a essência última dos fenômenos cuja
porque mecânico demais? Vamos a ele: “1, o aparência, revelada nos seus mais explícitos
grande problema para se realizar pesquisas em pronunciamentos, a fonte acaba por tergiversar.
História Medieval no Brasil é a exiguidade das Não é incomum, contudo, em face de tamanhas
fontes; 2, eu disponho de uma fonte; 3, logo, eu exigências, que a prática historiográfica acabe
‘tenho’ uma pesquisa!” por assumir, nesse caso, perspectivas bem mais
tímidas, tomando a fonte em questão como um
Deixem-me aclarar esse tópico. Penso
universo fechado, autorreferenciado,
que sejam duas, fundamentalmente, as vias pelas
autossuficiente, o objeto em si mesmo de todo o
quais se estruturam as pesquisas em História.
“esforço” da pesquisa em questão. A fonte chega
Uma delas toma, por eixo primário de
mesmo a parecer “transparente”, sua estrutura
articulação, um tema, uma questão mais ou
(discursiva) imediatamente revelada por aquilo
menos abrangente relativa à estruturação da
que seu autor, elevado à posição de autoridade,
sociedade que se pretende estudar e a pesquisa,
afirma explicitamente, e nos seus próprios
então, para ser desenvolvida, depende do
termos. O resultado mais comum? Trabalhos
estabelecimento de um corpus documental que a
viabilize. O tema suscita as fontes, e a pesquisa que se se limitam a “divulgar” as suas fontes e os
discursos de outrora, com a História reduzida à
se articula pela intenção fundamental de
tarefa de fazer ecoar no presente, em língua
“apreender” a sociedade em questão por
compreensível e em ortografia e sintaxe
algum(ns) de seu ângulo(s) ou campo(s)
atualizadas, as visões de mundo de elites
constitutivo(s). A outra via configura o que
dominantes em fatias pregressas de duração do
costumo designar por “recorte na fonte”,
tempo. Por essa via, frequentemente, o
alternativa pela qual a pesquisa tem por eixo
historiador se faz intérprete de “textos”, não de
essencial de articulação um corpus muitas vezes
sociedades.
limitado a uma única fonte primária de partida,
da qual devem ser estabelecidos um tema, seus O medievalista e os textos
balizamentos e as questões que o
problematizam, ou ao menos é isso que se Será a tendência a que acabo de me
espera. Pelo que venho observando em referir um produto da influente, famosa e
oportunidades e situações diversas, arrisco-me a recente “virada linguística”, que reduz o real a
afirmar que é essa segunda vertente que uma “textualidade”? Se o for, em grande parte
predomina entre nós no nosso campo, e que a dos casos ele parece inconsciente, porque
mesma está associada a limites e dificuldades raríssimas vezes é requisitado ou mesmo
específicas. admitido. Esperemos, ao menos, que o façam os
Ela costuma constituir, em primeiro seus promotores. De minha parte, com relação
lugar, um inebriante convite ao empirismo. Se a aos textos que constituem nossa matéria-prima –
pesquisa em História, como estabelecido desde a mas apenas matéria-prima –considero que os
fundação dos Annales, deve estar pautada pela pós-modernos têm razão ao nos alertar para o
decifração de um problema, o caminho que fato de que suas formas limitam os seus
antecipa a fonte ao próprio tema depende de que conteúdos, mas não creio que isso implique, de
a mesma seja “problematizada”, isto é, modo algum, que se deva reduzir a história ao
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2 “Uma explicação do sistema de relações que existem entre os homens, que serve para justificá-las e racionalizá-las – e, com
elas, os elementos de desigualdade e exploração que incluem –, apresentando-as como uma forma de divisão social de
trabalhos e funções, que não só aparece agora como resultado do progresso histórico, senão como a forma de organização
que maximiza o bem comum”.
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histórico consiste no desvelamento das lógicas espaço (ou talvez esses, em especial) é,
internas de seus objetos de estudo (as sociedades fundamentalmente, um “dimensionador” do
do passado), reconhecendo e englobando a sua presente, dialeticamente negado e afirmado pela
inscrição no presente (condição da sua sua retroprojeção temporal. O mundo em que
possibilidade) e analisando o passado como uma nos encontramos é o resultado da destruição
totalidade cuja forma de apreensão deve estar criativa dos passados vários que o presente
calcada na dialética da essência e da aparência. deglutiu e regurgitou!
Ou seja, trata-se de demonstrar como os E é imperioso destacar que o presente
vestígios do passado aos quais temos acessos são que o historiador “dimensiona” na longa
recortes de experiências individuais, mas que, em duração é constituído, ele próprio, por um
sua conjugação, servem como instrumento para conjunto de relações sociais conflituosas e
desvelar lógicas e dinâmicas estruturais, contraditórias, sobre as quais não pode pairar o
essências, as quais, por sua vez, nos permitem historiador para produzir uma história integral e
enquadrar esses mesmo vestígios em uma neutra que se eleve acima dos conflitos. Se,
imagem do passado mais efetiva, menos como querem alguns, a história depende da
parcializada.
“empatia em relação ao humano em
Ademais, a radicalização da perspectiva temporalidades e latitudes as mais diversas”,
da fratura conceitual e ontológica pode nos levar toda empatia arrasta posições contraditórias que
a um prejuízo maior, o de suprimir o sentido da se projetam até os “contextos” – fatias de
articulação temporal na longa duração histórica. duração, sociedades – sobre os quais se
O que de pior podemos promover a partir dela debruçam os historiadores. É assim que, apoiado
não é a deformação do passado, mas a na leitura, desenvolvida por Gramsci (1978, p.
impossibilidade de compreensão da constituição 75), da concepção dialética marxiana da História,
do presente como resultado do processo concebo a nossa disciplina – e parte considerável
histórico, transformando-o em mera da diversidade de perspectiva que caracteriza
contingência! Assim, acabamos por sacralizar o hoje a sua prática – como campo de um conflito
passado, rompemos os fluxos históricos de sempre aberto entre projetos opostos de síntese
negação e de afirmação que o constituem como de passado e presente, portanto, entre
manifestação pulsante da nossa própria “universalidades” diferentes.
existência e duração, isto é, da nossa Mas, para finalizar, e quanto ao futuro
contemporaneidade. Mesmo os historiadores imediato, o que nos reserva a Roda da Fortuna?
reacionários mais empedernidos, pré e pós- Ou, dito de outra forma: já será possível, de fato,
modernos, que se vangloriam de negar qualquer
falar de consolidação do campo no Brasil? Ora,
utilidade à História deveriam reconhecer, ainda se todos os obstáculos acima mencionados se
que a contragosto, que a função social primeira encontram na raiz desse questionamento,
de nossa disciplina é insofismável e certamente não é menor o peso do preconceito
incontornável. Aos historiadores, homens e e da estigmatização de que são, ainda hoje, alvo
mulheres do seu tempo, compete dimensionar os pesquisadores que, no âmbito de nossas
historicamente os fenômenos, as demandas e os universidades dedicam-se à História Medieval.
anseios que mobilizam a atenção e instigam o
desejo de conhecimento das suas sociedades Subsiste, como perspectiva talvez hoje
contemporâneas, nas quais vivem e a partir das mais difusa e menos explícita, em nosso meio
quais são mobilizados para a produção do acadêmico, a percepção de que o longo período
conhecimento histórico. O historiador, mesmo identificado por Idade Média não nos diz
o das sociedades mais remotas no tempo e no respeito (aos latino-americanos, em geral, e aos
brasileiros, em particular!), envolta por um véu
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Por fim, uma declaração que, tornada GRAMSCI, A. Concepção Dialética da História. Rio de
possível configura um débito não menor dos Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
historiadores, da Idade Média inclusive, em GUERREAU, A. El futuro de um pasado. La Edad
relação aos Annales, o direito pleno e Media em el Siglo XXI. Barcelona: Crítica, 2002.
desavergonhado, que nos foi reconhecido, à
GUERREAU, A. El Futuro de um Pasado. La Edad
expressão de emoções. De minha parte, declaro Media em El Siglo XXI. Barcelona; Crítica, 2002.
que a História é paixão pela espécie, paixão pelo
humano, e se realiza em toda e qualquer GUERREAU, A. O Feudalismo. Um horizonte teórico.
Lisboa: Edições 70, 1982.
manifestação sua, alheia a limitações, sobretudo
temporais. Talvez seja esse o sentido maior a HARMENING, D. Superstitio. Überlieferungs- und
atribuir-se à célebre máxima proferida um dia, theoriegeschictliche Untersuchungen zur kirchlich-
theologischen Aberglaubensliteratur des Mittelalters.
em terríveis condições – “O historiador deve ser Berlin: Erich Schmidt Verlag, 1979.
como o ogro da lenda. Lá onde farejar a carne
humana ele sabe que encontrará a sua caça” –, HEN, Y. Culture & Religion in Merovingian Gaul, AD
481-751. Leiden-Nova York-Köln: E. J. Brill, 1995.
por um grande medievalista cuja nota permita-
me, paciente leitor(a), humildemente dispensar. MANTEGA, G. A Economia Política Brasileira. São Paulo:
Polia, 1984.