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MANUEL DA COSTA ANDRADE

CONSENTIMENTO E ACORDO
EM
DIREITO PENAL
(CONTRIBUTO PARA A FUNDAMENTAÇÃO
DE UM PARADIGMA DUALISTA)

REIMPRESSÃO

Dissertação de doutoramento em ciências


jurídico-criminais pela Faculdade de Direito
da Universidade de Coimbra

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Coimbra Editora
Os infr.1ctorcs slo p:LSS!veis de procedimento judicial.
2004
\

e omposição e impressão
oimbra Editora, Limitada
-. -
ISBN 972-32-0438-X

Depósito Legal n.º 212 765/2004

Junho de 2004 . '


Á memória de minha mãe.
PARTE PRIMEIRA

A EXPERIÊNCIA HISTÓRICO-DOUTRINAL

J
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,1

\
CAPÍTULO I

CONTRIBUTO PARA UMA INTERPRETAÇÃO


TEÓRICO-SISTEMÁTICA

§ !. SENTIOO E ALCANCE DUMA PERSPECTIVA HISTÓRICA,

1. A reflexão sobre o estatuto dogmático do consentimento é feita mediante


apelo permanente e mais ou menos explícito a uma constelação de tópicos como:
função do direito penal, objecto do crime, significado do bem jurídico e da respectiva
lesão, sentido e conteúdo do ilícito material, bem como a relação entre a autonomia
pessoal e o Estado como portador do jus puniendi. Tudo problemas que foram ao
longo do século passado - cujo dealbar coincide precisamente com o apogeu da
doutrina jurídico-penal tributária do iluminismo e encabeçada por autores como
FEUERBACH -tema constante de discussão, suscitando as tomadas de posição mais
desencontradas.
1.1. Por um lado, não será arriscado acreditar que o problema (doutrinal)
penal no século XIX se polarizou grandemente em tomo da questão do objecto do
crime e temas conexos como: sentido da lesão, sujeito passivo, direito subjectivo,
interesse, estado objectivo, objecto da lesão. É, de resto, a esta questão e às
controvérsias que ela provocou que deve, em primeira linha, imputar-se a plétora de
construções doutrinais que o século passado viria a conhecer. E que permitiria a
MITTERMAIER arirmarem 1819 que em cada mês via a luz do dia um novo sislema
de direito penal. Uma ironia que tinhasobretudo por destinatários os últimos corifeus
do jusnaturalismo e do iluminismo, que acreditavam que «a razão pudesse, só por si,
oferecer todo um Código Penal, elaborado até aos mais subtis pormenores» (1). E
que não poderia deixar de entender-se como resposta às ambiciosas pretensões dos
representantes do iluminismo que, à semelhança KLEINSCHROD - no prefácio de
um livro publicado cm 1797, sob o título sugestivo Systematische Entwick/ung der
Grundbegriffe und Grundwahrheiren des peinl.Rec/zts nach der Natllrder Sache und
der positiven Gesetzgebung -se propunham como meta «colocar o direito positivo
de harmonia com as verdades filosóficas gerais» (").
De qualquer forma, as discussões suscitadas em tomo do objecto e da essência
do crime, desencadeadas a partir das representações jusracionalistas e iluministas,
acabaram por enriquecer o património doutrinal com um conjunto de tópicos ainda
hoje pontos obrigatórios duma reflexão centrada sobre o estatuto dogmático do
consentimento. De resto, - e como pensamos vir a tomar claro - vistas as coisas
à luz dos gmndes movimentos históricos, regista-se uma clara sintonia entre o ritmo
das concepções relativas ao objecto do crime, por um lado, e as relativas ao
consentimento, por outro. Tanto no que concerne ao âmbito da sua validade e

(1) MITrERMAIER, Über die Grundfehler, pág. 8.


( 1) Apud SrnA, Die Dogmcngeschichte, pág. 8;
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1
•,
A Experiência Histórico.Doutrinal 31

eficácia, como no que respeita à sua estrutura normativa e doutrinal. O pensamenLO A síntese histórica que aqui propomos orientar-se-á noutro sentido. Concretamente:
jusracionalista e iluminista, a escola histórica, o idealismo hegeliano, o positivismo a) Num primeiro momento, procurar-se-á fazer caminho tendo como limite a ideia
ou o neo-kantismo e, já nos nossos dias, as teorias sistémico-funcionalistas, LOdas de uma hipótese teórico-sistemática que permita o acesso à racionalidade histórica
mundivisões portadoras de representações próprias quanto à problemática do objec- da evolução da doutrina do consentimento no contexto do respectivo ambiente.
to do crime, foram-no igualmente de novas concepções sobre a estrutura doutrinal TanlO o ambiente mais próximo da doutrina penal geral - com a tónica em
do consentimento. conceitos como «essência» e «objccto» do crime, sentido da lesão, etc. - como o
1.2. Será, por seu turno, ocioso enfatizar o significado que terá tido nos ambiente último das mundi visões político-filosóficas, historicamente prevalecentes.
movimentos de ideias e nas transformações sociais e político-cultumis do século XIX b) Num segundo momento e complementarmente ensaiar-se-á a interpretação de
a consciência pcrman_entemente actuali7.ada da antinomia entre a autonomia pessoal alguns dados concretos da experiência histórica da doutrina do consentimento, à luz
e o Estado punitivo. E por demais conhecido o significado da tensão entre a «paixão do modelo teórico acima referenciado. Aqui, e assumindo o risco de uma margem
da liberdade» e a «paixão da ordem» que, na expressão de WIEACKER, constituíram irredutível de arbitrariedade, reportar-nos-emos preferencialmente à doutrina de
os «dois polos da moral .política e jurídica europeias»(-') a partir do fim do autores como FEUERBACH, BINDING, KESSLER, AMELUNG e JAKOBS. Autores cujo
século xvm. Que veio a saldar-se num avanço da civilização orientado, apesar de significado- tanto do ponto de vista da consistência doutrinal, como da expressi-
todas as hesitações e vicissitudes, no sentido da maximização e estabilização vidade simbólica cm relação às grandes correntes histórico-culturais dos dois
progressivas das margens da liberdade. E de que resultou a emergência e triunfo de últimos séculos -se nos afigura inquestionável. Isto vale sobremaneira para os três
uma ordem jurídica preordenada, na expressão de FINCKE, «a garantir a liberdade primeiros cujas obras se integram cm três dos períodos culturalmente mais densos do
individual e a circunscrever a actividadc do Estado de forma que o cidadão tenha século XIX, Mas vale também, a seu modo, paraAMELUNG eJAKOBS, a quem ficaram
apenas que suportar a coerção cswdual necessária e adequada à salvaguarda da a dever-se tentativas de pcrspectivação do direito penal e da correspondente
própria liberdade» (4). construção dogmática à luz das mais recentes teorias do funcionalismo sistémico-
Ora, e independentemente de razões que o curso da investigação procurará pôr -social (de PARSONS e LUIIMANN).
a descoberto, também não será difícil intuir que a problemática do consentimento se É desta síntese que se espera uma perspectiva para o esclarecimento das
venha a revelar particularmente sensível aos desenvolvimentos da dialéctica entre a relações entre: por um lado, o sentido e função do direito penal, o objecto do crime
autonomia e a heteronomia. Além do mais, estes desenvolvimentos são directamente e o significado da lesão; e, por ouJro lado, a doutrina do consentimento. E, por essa
responsáveis pelas transformações filosófico-culturais que contendem com a legiti- via, um contributo para a superaçao da controvérsia dogmática com que hoje nos
mação, os limites e o objecto do direito penal e, por essa via, pelas representações debatemos. Para a levar a cabo procuraremos reunir e interpretar alguns tópicos que
doutrinais que predeterminam o estatuto normativo e dogmático do consentimento. - ressalvada naturalmente a sua selecção, em função de um específico interesse
cognitivo -ficamos em boa medidaadeverdirectamente a algumas das numerosas
2. O que fica dito baliza já o interesse que hoje pode assumir uma conside- inv~stigações disponíveis que, com motivações próprias e por caminhos di vergcntes,
ração histórica. Assim, a presente investigação não se empenhará em qualquer se viram confronUldas com as respostas historicamente mais relevantes ao problema
tentativa de refazer, na continuidade da sua evolução, a experiência jurídica- nas do objccto do crime. Temos furidamentalmenteem vista o legado de uma plêiade de
suas vertentes legislativa, jurisprudcncial e doutrinária- do consentimento e dos estudiosos germânicos- em que avultam nomes como os de HONIG, SINA, JÃGER,
conceitos conexos, na sua interacção recíproca bem como ccim as transformações do SCl!AFFSIBIN, ÜEHLER, W0RmNBERGER, MARX, Moos, MATIES, A,\1ELUNG e
horizonte cultural, filosófico e ideológico no decurso dos dois últimos séculos, em HASSEMER (') - a que ficou a dever-se o aturado labor de levantamento histo-
que se deu a gestação do moderno direito penal. Um domínio, de resto onde riográfico com que hoje se pode contar.
dificilmente se poderiam esperar contributos significativamente novos face ao
estado actual dos conhecimentos legado pelas investigações entretanlO votadas ao (
111
) Homo, Die Einwilligung,· SINA, Die Dogmengeschite; JÃGER, Strafgesetzgebung;
tema. E entre as quais se poderá merecidamente destacar ajá clássica obra de HONIG, SCHAf'FSfEIN, DStR 1935 e 1937; ÜEIILER, Wurzel; Wt."RTENDERGER, Das System; do mesmo
Die Einwilligung des Verletzten (1919) ('). autor, Die geistige Situation,· MARX; Zur Definition; Moos, Der Verbrechensbegriff; MATTES,
.,' ~nt~rsuc~ungen, Erst. Halb.; AMELUNG, Rechtsgüterschutz; HASSEMER, Theorie. Igualmente
s1gmfical!vos os contributos anteriores, de 0PPE~1IEIM, Die Objekte, e HmscHBERG, Die
Schu~zobJ~kte, e, na década de trinta, de SCHWINGE, Teleologische Begriffsbildung ou
( 3 ) WIBACKER, Hist6ria, pág. 313. !rrati_onalismus, e de ~CHWINGEllIMMERL, Wesensschau. Os temas do objccto do crime e do bem
(') FJNKE, Liberalismus, pág. 14. Jurídico têm ocupado igualmente um espaço considerável na doutrina italiana mais recente.
( 5 ) Para uma mais desenvolvida referência histórica, KIENTZY, Der Mangel, pág. 1 e
Isto, de resto, na esteira das investigações clássicas de Roce o, L'oggetto, e de DELITALA, 1l fatto.
Dentre os numerosos títulos aparecidos nas duas últimas d6cadas, merecem referência:
scgs.; HARTMANN,Grilnhut 1900; e, entrcnós,E.CORREIA, Direito Criminal, JJ, pág, 18 cscgs.;
BARATI'A, Positivismo giuridico; BmcoLA, in: Nouissimo digesto ifoliano; STELLA, RitalDPP
MoNCADA, BFDC 1942.

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§ 2. O DIREITO PENAL ENTRE A CONTEMPLAÇÃO (E VERDADE) E A POIESE Para a sua caracterização sumária, dificilmente se encontraria formulação mais
(E AUTORIDADE). feliz do que a proclamação antecipada por HOBBES: Auctoritas, non veritas.facit
/egem ('). Para retratar a mesma realidade contrapõe HONIG a via dedutiva, seguida
1. Vistas as coisas per summa capita, cremos ser possível reconduzir as pelos movimentos jusnaturalistas e pelos penalistas de obediência hegeliana, à via
controvérsias fundamentais, recenseadas ao longo do século XIX a propósito do indutiva, orientação perfilhada pela escola histórica e pelo que o autor designa por
objecto do crime e com mais directo impacto na estrutura e limites do consentimento, «positivismo sociológico». Os primeiros -explicita- acreditam só ser possível
a um número contado de antinomias basilares. Cientes do risco da simplificação e do identificar a verdade e os valores juridicamente relevantes numa ideia de direito que
reducionismo - e sem curar por enquanto de explicitar com rigor o sentido se move num mundo situado além da experiência: se a doutrina jusnaturalista
prevalecente da evolução histórico-doutrinal -propomo-nos pôr a descoberto duas encontra esta ideia no princípio da razão humana individual, HEGEL e os seus
linhas de clivagem e afrontamento. Trata-se de antinomias que, para além de seguidores identificam-na com a própria razão universal. Já os «segundos apenas
intimamente imbricadas entre si, têm outrossim em comum a circunstância de afirmam o valor das instituições, sobre que repousa e em que se exprime a vida
continuarem a emprestar arrumação à experiência jurídica, muito para além do jurídica, pondo a tónica no processo histórico do seu aparecimento e afirmação ou
dobrar do século. na consideração das finalidades que lhes são imanentes» ('). Nos nossos dias,
A primeira tem a ver com a atitude fundamental face ao direito e, consequen- merecem referência os esforços de autores como LUHI)IANN em ordem à explicitação
temente, às vias de acesso ao mesmo direito. A este propósito foi nítido o confronto das difer.enças que separam - também no plano cognitivo- as representações
entre: uma postura predominantemente teorética e contemplativa, que privilegiava subjacentes ao direito positivo, próprio .das sociedades modernas, de crescente
a dimensão de verdade do direito; e uma postura voluntarista e poiética, convertendo diferenciação e complexidade.
o problema do direito numa questão de decisão e, por isso, de alternativa, heresia,
historicidade, contingência e relativismo. Presente já na raiz do processo histórico de 2- O que, na perspectiva que aqui nos ocupa, mais avulta na caracterização
gestação cultural europeia- com afloramentos particularmente expressivos como do direito natural é o facto de ele patentear os estigmas da contiguidade com a
os protagonizados na Grécia antiga com o advento da sofística e na Idade Média com vivência do direito própria das sociedades arcaicas. Isto é: a experiência de algo que
a controvérsia que opôs entre si dominicanos (S. TOMÁS) e franciscanos (Esco- tem de valer como reprodução ou cópia de um direito anterior e passado, portador
ro) (')- a antinomia viria a assumir, a partir do início do século XIX, a sua
manifestação mais intensa e consciente.
seu turno, o significado das controvérsias filosófico-teológicas que na Idade Média opuseram
ao pensamento tomista filósofos corno EscoT0 e OCCA.\l, Decisivo e directo foi, desde logo, o
impacto no processo de secularização: um processo que atravessou a Idade Média de forma
1973; Musco, Bene giuridico; GREGORI, Saggio; PULITANO, Questione 1981; FIA!\1>ACA, subterrânea e quase silenciada, mas nem por isso menos activo. Na impressiva síntese de B.
/litalDPP 1982; ANGJONI, Conlenuto; RAMPIONJ, Bene giuridico. PEREIRA, o sóculo XII ó «mais um sóculo de laicização do que o século das catedrais•. Cf. B.
( 1 ) É conhecida a importância dos sofistas na história da cultura coma protagonistas PEREIRA, «Iluminismo•, pág, 488. Em sentido convergente, BõcKENFÕRDE, Staat, pág. 42 e
duma viragem decisiva do reino da cosmologia para o da antropologia, do objcctivo para a segs. Por outro lado e reflexamente, aquelas amtrovórsias viriam a abalar drasticamente as
subjectiva, da espaça para o tempo, da comtemplaçãa para a acção. Dentre a extensa representações metafisicas e teológicas subjacentes à compreensão jusnaturalista- e domi-
bibliografia, fundamentais ainda os contributos deJÃGER,Paideia, pág. 311 segs., e GUTHRIE, nante do direito. E, por essa via e complementarmente, a induzir uma nova experiência do
The Sophists. No que concerne às implicações mais dircctas da sofistica para a pensamento direito, como realidade normativa criada pelo Homem, com o estigma da relatividade e da
jurídico, cf. ainda Jii.GER,Alabanza, pág, 53 e segs.; WELZEL, Introducción, pág. 13 e segs.; do contingência. Cf., por todos, WELZEL, Introducción, pág. 54 e segs., e Fest. Niedermeyer,
mesmo autor, Fest. Niedermeyer. Como, sintetizando o significado histórico-cultural da pág. 283 e segs, Na mesma linha, mas enfatizando, sobretudo, a mudança na sentido da
sofistica, refere JÃGER: f(É, assim, par caminhos diversos que o mundo da alma humana, que indisponibilidade para ·a disponibilidade, cf. HASSEMER, Fesl. Maihofer, pág. 185 e segs., e
reclama os seus direitos em face da donúnio das forças cósmicas, atinge a sua independência HABERMAS, KJ 1987, pág. 1 e segs.
em cada um destes pensadores», Paideia, pág, 320. Esta ruptura operada a nível filosófico- 1
(') No estádio actual das coi'sas pouco sentido teria proceder aqui a um ensaio sobre a
-cultural viria a assumir contornos nítidos no pensamento jurídico. O dogma da homem problemática direito natural versus direito positivo. Limitar-nos-emos a avivar os traços mais
medida de todas as coisas refiecte-se numa concepção da direito que põe a tónica na sua decisivos da contraposição entre os respectivos pressupostos ontológicos e as correspondentes
dimensão de convenção, Na expressão deHIPlAS, o direito não passa de um «contrato posto de posturas cpistemol6gico-gnoseol6gicas. Seguindo, para o efeito e no essencial, as conside-
pé pelos cidadãos». Aos sofistas ficou, com efeito, a dever-se a ruptura do <(nexo que une a rações de LUHMANN, que ao tema vem votando persistente e clarificadora reflexão. Cf. do autor,
justiça e o direito à natureza da realidade, essencial ao pensamcnlo~urídico grego cm ~das as entre outras, Legilimation, pág. 141 e scgs.; The Dif[erentiation, pág, 90 e segs.j «Positi-
suas fases».Jii.GER,Alabanza, pág. 21. «Para as sofistas- refere amda Jii.GER- a lei (como viUlt..j e ..Sclbstlegimation». Seguindo um paradigma teórico susbstancialmentc convergente,
a religião) era algo especificamente humano, Ao criar a lei e a Estado, o homem emancipa-se GIORGI, Wahrheit, pág, 16 e segs.
da natureza e triunfa sobre o império do caos•, ob. cil. pág. 44. Consensual parece ser hoje, por ( 9) HoNIG, Die Einwillingung, pág. 84.

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duma legitimação mais ou menos «cosmologizada» (1º). No direito natural é ainda de confiança» na efectivaecomplexa organização dos processos sociais e vale como
possível identificar o lastro das representações teistas do mundo. A ruptura com a a negação da capacidade do sistema social para criar e dotar-se de direito. Por outro
transcendência ôntica e teológica não significou, pura e simplesmente, a ruptura lado, o direito natural não conhece «uma separação nítida entre as expectativas
definitiva com a transcendência sem mais, nomeadamente com a transcendência congnitivas e normativas: ele perfila-se com uma pretensão de verdade, estando
metafísica (11). Noutros termos, e como WELZEL recorda, o si/ele theo/ogi in munere normativamente excluída a prova de um erro e, consequentemente, a possibilidade
alieno, desde 1621 proclamado por ALBER!CO GENTILE ( 12), valia mesmo só para a de aprender» (14). Isto vale mesmo, acentua o autor, para as concepções mais
elaboradas do jusracionalismo e do iluminismo. Também elas surgem marcadas por
teologia.
Como LUHMANN acentua, num dos numerosos textos que dedicou ao tema, nas uma insuperável assimetria. É certo que procuram insistentemente novas constru-
sociedades primitivas «o direito era visto como perene: fundado no passado e ções: só que o fazem de molde a «abrir a porta à autoreferência em nome do apelo
à razão, mas acabando por excluí-la ao mesmo tempo sob o título do apriori» (15).
vigorando desde sempre. O homem não poderia mudá-lo, pela mesma razão que não
pode mudar o passado. Já o pensamento jusnaturalista é, pelo contrário, portador de Nestes termos, o direito natural estará condenado a operar «aberto à autoreferência,
uma atitude crítica e decerto modo progressiva face ao direito recebido. O progresso por via do conceito de razão, mas dedutivamente e, por isso, assimetricamente, no
consiste fundamentalmente numa distinção: precisamente a de que nem todo o resto» (16).
É outro o quadro de representações a partir da positivação do direito. Uma
direito pode ser indiscriminadamente imputado ao passado e legitimado por via de
transmissão. Ao direito passa a ser reconhecida uma parcela de poder-ser-de-outro- sociedade que positiviza o direito «abandona a suposição duma complexidade
-modo (Andersseinkõnnen) - só pode fundamentar-se e consolidar-se apelando reduzida e assume, pelo contrário, a necessidade de redução da complexidade
para um novo princípio de invariabilidade e de indisponibilidade: o conceito de natu- através do sistema político» (17). Confrontada com a pluralidade de alternativas de
reza» (13). Ainda segundo LUHMANN, o direito natural revela um «sintoma de falta comportamento e chamada a decidira que deve valer, a sociedadel!1isume ela própria
a responsabilidade pelas suas estruturas. «As seguranças supostamente exteriores,
ancoradas no ambiente, têm de ser substituídas por seguranças interiores, imanentes
ao sistemà» (18). Decidida a correr os riscos da criação e organização das suas
estruturas, a sociedade tem de tolerar a insegurança e a dissidência, não podendo
( 1ª) Sobre a altcridadc radical da ordem rcccbida- le dehors com me source et l'immua-
igualmente ignorar nem esconjurar a conílitualidade, antes tendo de assumi-la e
ble com.me regle - no contexto da cultura, religião, moral e direito primitivas 1 desenvolvida- superá-la através de decisões. Em síntese: a sociedade tem de «emancipar a sua
mente, GAUCUET, Lc désenchantement, pág, 13 e scgs. Sobre a .. cosmologi:r.ação• como problemática do velho nomos do mundo e reformulá-la em termos de problemas
discursa de legitimação, cf. infra, § 28.2, e, cm particular, BEnGER, Zur Dialeklik, pág. 24 e
carecidos de decisão e dela susceptíveis» (19).
scgs.
( 11) A propósito da metafísica como «regresso ao passado paradigmático, concebido como
instalação perene da verdade com o consequente olvido da problemática viva e diferente do
presente», B. PEREIRA, «Filosofia», pág. õl e segs.
(12-) WELZEL, lntruducción, pág. 112.
( 11) LtJHMANN, .cPositiviUl.t., pág. 180/1. Como, ao procurar igualmente referenciar os
postulados ontológicos e epistemológicos do pensamento jusnaturalista, refere G10nm: é a norma que dimana de forma necessária de determinadas premissas, Estas premissas, as
«O dever-ser que se exprime nas normas e regras de conduta assenta em princípios que se premissas verdadeiras, não são susccptívcis d,c ser infirmadas. A norma não é, pois, uma
articulam com o ser, isto é, com uma ontologia racional». Cf. Wahrheit, pág. 16. Segundo o variávc.l. Não está ao alcance dos processos de decisão•. Ob. cit., pág. 18.
autor, é esta ontologia que garante a certeza para a acção e, ao mesmo tempo, oferece uma ( 14) LtnIMA~N, .cPositivitãt», pág, 180.

referência unificadora para os sistemas de normas e de sentidos. É ela que constitui o ( 15) Lum.lANN, «Selbstlegitimation•, pág. 67.

fundamento último de validade para estes sistemas. Nas representações jusnaturalistas, e (1 11) Ibidem. Nesta linha considera LUHMANN que o núcleo essencial do pensamento do
ainda segundo a interpretação de GIORGI, a epistemologia do direito natural não passa de .curo direito natural não reside tanto «na prevalência hierárquica do direito natural quanto. e
sub-sistema da filosofia prática que apresenta a seguinte particularidade: a estrutura norma• sobretudo, no facto de as causas do direito se projectarem numa esfera exterior à sociedade».
tiva a que se reportam as suas reflexões não é mutável. Não assentando sobre decisões, não E isto porquanto o que, acima de tudo, define a própria natureza é a sua radical imunidade à
pode ser modificada através de decisões ulteriores. Esta estrutura não é posta, mas antes o co-causalidade das acções emergentes do sistema social que com ela se confronta. «A natureza
resultado de um processo analítico de decisão em que se define e se revela a verdade normativa é a verdade nascida de si própria e a si própria imanente», Legitimation, pág. 147. Em sentido
dos princípios da ontologia racional que constituem as premissas do sistema. A epistemologia convergente, pondo a tónica na «nova antropologia» trazida pelo jusracionalismo, cf.
do direito é apenas a reflexão sobre os processos de dedução da normatividade coenvolvida nas WIEACKER, Hist6ria, pág, 288 e segs,
premissas descritivas do ser». !d., pág, 17. O específico princípio de validade da norma de ( 17) Lum,fANN,Legitimation, pág.147.

direito natural •subtrai a norma ao arbítrio, torna-a capaz de resistir ao tempo e imune contra ( 11) LL'UMANN, Ibidem. Em sentido convergente, GIORGI, Wahrheit, pág. 147.

as decisões e pro~ge-a do possível e do diferente. A norma é não-contingente. Não-contigente ( 111) LtJHMANN, Legitimation, pág, 147.
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Como facilmente se apreenderá, um pequeno passo separa esta visão das coisas § 3. O OilJECTO DO CRIME ENTRE A REFERÍ!:NCIA PESSOAL E A REFERÍ!:NCIA
da tese segundo a qual «toda a legitimação é autolegitimação» que LUHMANN vem SIS'fÉMICO,SOCIAL.
posteriormente a s_ubscrever (2"). Um passo, de resto, mediatizado e facilitado pela 1. Nas últimas considerações fica já sugerido Q sentido da segunda antino-
mudança de paradigma entretanto operada no seio da teoria sistémica de LUHMANN mia que, a nosso ver, ajudará a compreender a controvérsia travada a partir do
e que o próprio autor define como viragem «duma teoria de sistemas-que-se-
século XIX em tomo do objecto da infracção criminal. Que pode reconduzir-se:
-adaptam para uma teoria de sistemas autorefcrentes» (21 ). Então, e numa lógica de
acentuação da subjectivização do sistema social, ou inversamente, a de qualquer
diferenciação, autonomia e interpenetração sistémicas, a legitimação do sistema
outro sistema ambiente, nomeadamente o sistema pessoal ou, numa visão mais
social, e principalmente do direito, releverá tanto da interiorização do ambiente recuada das coisas, o sistema cosmológico da natureza. Tudo está, noutros termos,
(lnternalisierung der Umwelt) como, e sobretudo, da exteriorização da autoreferên- em saber se é o sistema social que define o objecto do crime, nele «exteriorizando
cia (Externalisierung der Selbstreferenz), duas faces do mesmo processo (22). a sua autorefcrência» (LUHMANN) ou, pelo contrário, se tal definição terá antes de
Resumidamente, como nesta linha - numa consideração mais dirccta do obter-se apelando para o desempenho autoreferente da liberdade individual, inde-
direito penal, e concretizando historicamente as referências - sublinha AMELUNG:
pendentemente do seu conteúdo ou dos seus modelos de expressão.
«Para os iluministas tudo se reconduz a um problema de verdade e nunca de decisão
As coisas ganham contornos mais nítidos quando se estabelece o confronto
de valor. O significado da criação de BIRNBAUM (o conceito de bem jurídico) e a sua entre o conceito de bem jurídico (de BIRNBAUM) e os conceitos alternativos que
renúncia a ancorá-la numa construção teórica de maior alcance, reside no facto de
começaram igualmente a ter curso durante o século XIX, todos reivindicando a
ela ter contribuído para emancipar a doutrina penal, se não de toda a influência definição do objecto e da essência do crime. Estão entre os últimos, por exemplo,
transjurídica, pelos menos das verdades meta-jurídicas (...). A emancipação face à
tanto o anterior conceito de direito subjectivo {FEUERBACH) como o conceito de
teoria social do iluminismo representa um passo na direcção do mais puro positivis-
interesse (KEssLER), concebido como uma relação psicológica ·do sujeito (o in-
mo» (2'). divíduo, por via de regra) ao objecto do interesse (24). O aparecimento do conceito
de bemjurídico corresponde a uma viragem no sentido da positivação, normativiza-
ção e subjectivização sistémico-social do objecto da infracção. É o que procurare-
mos tomar mais explícito, atendo-nos, porrazões de economia, à contraposição bem
jurídico/direito subjectivo.
Como, a propósito, argumenta HoNIG ('-'), os objectos ou dados da vida ou do
( 20 ) LUHMANN, ..Sclbst~cgitimation•, pág, 65 e passim. Na expressão de GIORGI: ccfrag- mundo real só podem ser convertidos em bens por referência a uma consciência
mcntada a acção e 8;razão umvcrsalque lhe assegurava a unidade, cada sistema de acção passa valoradora ou a um sujeito que afirme a qualidade valiosa de tais realidades. E só a
a aprc~cntar-se ammado por aquela racionalidade interior própria que lhe cabe realizar. Ao
totalidade, isto é, a sociedade ,e nunca o indivíduo, poderá decidir «que objectos hão-
e~crgir~m vários sistemas de acção, indiferentes entre si, é tamb6m a própria razão que se
d1fcrcncia. Dá-se a fragmentação da unidade de sentida que se erigiu cm razão universal do -de ser abrangidos pela protccção das normas do direito, bem como que significado
iluminismo. A vida social desenvolve-se na base da pluralidade indiferente dos indivíduos ou valor lhes advém enquanto objecto duma regulamentação jurídica. É neste
singulares», Wahrheit, pág, 21. sentido, como valor social e não individual, que BIRNBAUM concebe o bem jurídico,
( 21 ) Cf. LtIHMANN, ..Selbstlegitimation», pág. 68 e segs. Foi cm Soziale Systeme (1984)
que LUHMANN procedeu à primeira codificação e generalização teórica e epistemológica do
susceptível de ser lesado (...) O que verdadeiramente decide da respectiva carga
novo paradigma (cf. pág, 1 e segs. e passim). Paradigma a que o autor não tem entretanto axiológica não são as suas qualificações originárias mas antes a instância que
deixado de votar a 1;1ais aturada reflexão: quer em ordem ao seu aprofundameni.o e estabili: r:co~hece e sanciona a sua carência de tutela» ("'). Hoje é pacífica a atribuição deste
z_ação, quer no sentido da C:Cploração da sua re~mdidade heurlstica e da expansão e genera- s1gmficado ao aparecimento do bem jurídico, isto é: a ideia de que ele operou a
lização do seu alcance tcónco. Da extensa b1bhografia que o autor tem vindo a subscrever
pod?m a título meramente exemplificativo, recordar-se: ..nie Autopoicsis des Bewusstsein•:
normativização e positivização do objecto do crime e, por outro lado, converteu o
Soziale Welt 1985, pág, 402 e segs., e Ôkologische Kommunikation, 1986. Para uma síntese sistema jurídico em instância que determina os objectos a tratar (e em que medida)
c_r. ainda Lum,IANN,Soziologische1ufklãrung, 4, pág. 33 e scgs. e 80 e segs. Dentre a extens~
literatura- de aplauso ou de crítica-que o novo paradigma de LUIIMANNtem suscitado, cf.
sobretudo HAFERKAMP/SCHMID (Hcrausg.), Sinn, Kommunikation. Sobre o paradigma em
exame, cf. infra, § 7, n. 206.
<22) Lum,IANN, ..Selbstlcgitimation», pág. 76 e segs. Para uma referência mais aturada (2') Sobre a importância do conceito de interesse na problemática geral do objccto do
ao significado da positivação do direita segundo LUIU,IANN, cf. ainda do autor: Grundrechte crime, cf. infra, pág. 84 e scgs.
pág. 8 e scgs.; The Di{ferentiation, pág, 94 e segs, ' ' ' 2
( ~) HONIO, Die EinwUligung, pág. 61.
( 23 ) AMELUNG, Rechtsgüterschutz, pág. 60. (21 ) Homo, Ibidem,
38 Consentimento e Acordo cm Direito Penal A Experiência Hist6rico-Doutrinal 39

como bens jurídicos. Fazendo-se eco desta interpretação, considera, por exemplo, uma consideração mais aturada do seu pensamento, recordaremos que, segundo
AMELUNG: «na medida em que a vontade popular é erigida cm fundamento da BINDING, pode converter-se em bem jurídico «tudo o que, aos olhos do legislador,
legitimação das leis, dá-se o declínio da ideia iluminista segundo a qual só são tem valor como condição para uma vida saudável dos cidadãos» ("). Por seu turno
legítimas as leis penais que visam assegurar as condições necessárias _à subsistência e complementarmente, «o bem jurídico é sempre bem jurídico da colectividade, por
de uma sociedade racionalmente construída» (2"). E, na mesma linha: «O iluminis- mais individual que ele possa parecer» (31), Mesmo quando intervêm juízos indivi-
mo acreditava poder determinar objectivamente as condições de uma convivência duais de valor que se sobrepõem aos da comunidade, são estes últimos e não aqueles
pacífica. O modelo do contrato social mais não representa do que o manifesto desta que valem como motivo e fundamento da lei. «Só como bens jurídicos sociais, e
crença. Pelo contrário, os bens são objectos acerca dos quais os sujeitos afirmam que nunca como bens meramente individuais, é que os objectos dos juízos individuais de
têm valor. A prevalecer o princípio geral de que é na sua lesão que verdadeiramente valor gozam de protccção jurídica» (32),
reside o dano, então está a construir-se um conceito subjectivado de bem jurídico:
tudo dependerá daquilo que o sujeito da valoração quer converter em objecto do 3. Mesmo depois de vencida a fase do mais acentuado positivismo legal, a
crime» (1'). O que, acrescenta o autor, acaba por ampliar o campo dos fins do Estado referência sistémico-social permaneceu como componente incindível da doutrina do
e, consequentemente, do criminalizável face ao que sucedia de acordo com as bem jurídico. Isto pesem embora as cambiantes na acentuação do seu peso relativo.
representações iluministas. É o que bem demonstra a doutrina do bem jurídico de LISZT, outro dos autores que
mais terá contribuído para o triunfo do conceito. Partindo de postulados meto-
2. A subjectivação sistémico-social provocada pelo aparecimento do con- dológicos e de pressupostos político-criminais divergentes dos que presidiram à
ceito de bem jurídico revelou-se igualmente significativa noutra vertente, porventu• construção de BINDING, LISZT adopta uma postura transjurídica a partir da-qual se
ra menos óbvia, mas nem por isso de menoralcance. Em causa está o que, ainda com abre a porta à problematização da legitimidade das normas penais. Uma legitimidade
LUHMANN, poderíamos designar como exteriorização da autoreferência. Na ver- que- com a consequente autoridade- tinha para BINDING a força inquestionável
dade, ao eleger bens jurídicos, o sistema social actua cm termos de desempenho de um dogma
autoreferente: instância de definição dos bens jurídicos, o sistema social constitui- LISZTé, assim, levado a definir o bem jurídico em termos prevalentemente pré-
-se também cm seu beneficiário ou, de qualquer forma, em entreposto de uma -jurídicos. Em vez de criações do direito, os bens jurídicos são criações da própria
dimensão essencial à respectiva significatividade. O que não só veda o caminho à vida, que o direito encontra e a que assegura protecção jurídica. Os bens jurídicos
consideração do bem jurídico à margem da sua valência sistémico-social, como são, noutros termos, realidades do mundo transjurídico, «interesses humanos»,
reclama uma deslocação do referente e do conteúdo da danosidade do crime. condições da convivência pacífica e ordenada da vida em sociedade. «Chamamos
Segundo as representações dominantes do iluminismo, a tarefa do direito penal era bens jurídicos - explicita LISZT- aos interesses protegidos pelo direito. Bem
assegurar a convivência humana na perspectiva de esferas de acção concebidas em jurídico é o interesse juridicamente protegido. Todos os bens jurídicos representam
termos de autarcia (2'). «As leis- proclamava BECCARIA -são condições sob as interesses vitais do indivíduo ou da comunidade. Éa vida e não a ordem jurídica que
quais homens independentes e isolados se reúnem em sociedade». Daí que, por cria o interesse: mas é a protecção dispensada pelo direito que eleva um interesse
princípio, só o indivíduo aparecesse como destinatário e beneficiário legítimo da vital a bem jurídico» ("). Em síntese, ao postulado da plena congruência entre o bem
tutela penal. Diferentemente, pela via do bem jurídico, é o sistema social que a si jurídico e a norma de BINDING, contrapõe LISZT a tese da possibilidade da incon-
mesmo se constitui em referência obrigatória daquela tutela. gruência e desfasamento (34).
Esta viria a revelar-se uma das notas mais persistentes do conceito de bem
jurídico, resistindo às vicissitudes da sua longa e densa trajcctória histórica, bem
como às permanentes e profundas metamorfoses da respectiva doutrina. Nem
(J 0) BINDIXG, Die Normen, I, pág. 351.
sempre terá conhecido a evidência que lhe emprestaria um autor como BINDING, que (
11
) BI.NDJNG, Ibidem.
levou ao limite as ideias de positivação esubjectivação sistémico-social. Antecipando e 2
Ibidem.
)
(JJ) LIZT, Tratado, II, pág. 6. Para uma referência mais desenvolvida, cf. ainda do autor,
ZSt\V 1886, pág, 67S e segs., e ZSt\V 1888, pág. 139 e segs.
(J 4) O que se relaciona estreitamente com a distinção, introduzida por LtSZT, entro
ilicitude material efonnal. Cf.AMELUNO,Rechtsgüterschutz, pág. 85, e SlNA,DieDogmenges•
( 21 ) AMELUNG,Rechtsgüterschutz, pág. 27. chichtc, pág. 51. Uma distinção que, como AMELUNOsublinha,não seria possívclparalHEIUNO.
E isto, apesar da proximidade entre o pensamento tclcol6gico de LJSZT e a doutrina dos
C") !d., pág. 48.
( 29 ) AMELUNO, ob. cit .• pág. 26 e segs. interesses de IHEIUNG, Também este último concebe o dircitocomoumordenamento ao serviço
r
40 Consentimento e Acordo em Direito Penal A Experiência Hist6ric.o.Doutrinal 41

\
Seria, todavia, apressado encarar a doutrina de LISZT, como a neutralização, isto, atendo-nos por enquanto às concepções daqueles que, na esteira de IHERING,
sem mais, da referência sistémico-social que vimos pondo em evidência. Não pode, propendem para a hipostasiação do conceito de interesse, independentemente da sua
com efeito, desatender-se que todo o pensamento de LISZT releva da procura de um referência individual e/ou colcctiva. Quando se adapta esta postura, encurta-se a
equilíbrio na polaridade entre uma dimensão transjurídica e uma dimensão positiva, distância que separa o interesse do bemjurídico. Sempre, naturalmente, sobrará uma
que presta homenagem à tensão liberal, essencial à construção doutrinal do autor. qualquer margem de descontinuidade susceptível de legitimar a contraposição.
Que o leva a perspectivar o direito penal como a Magna Charta do delinquente e a E viabilizar uma distinção que, a não se confinar ao plano meramente terminológico
erigi-lo em baluarte «contra o Leviathan» (35) da política criminal. E, em conformi- (como pretende HONJG), dificilmente transcenderá, em qualquer caso, o nível
dade, a outorgar o primado, em caso de conílito, à ilicitude formal. Acresce, como meramente lógico-categorial (assim, v.g., LISZT) (-'7).
AMELUNG observa, que também a doutrina de LISZT enferma de uma certa assime- Para além disso, tratar:se-á sempre de uma distinção que em nada tolherá o
tria: entre, por um lado, o perfil genético e predominantemente meta-jurídico; e, por passo à afirmação da referência sistémico-social. Como, nesta linha e significativa-
outro lado, o plano juridicamente operativo, onde se acentua o peso dos coeficientes mente, acentua F!NGER: «Com vista a proteger os interesses vitais do homem, a lei
de positividade. Assim, Iam bém a doutrina de LISZT não se mantém imune ao perigo encurta a esfera de liberdade dos seus destinatários. Protegidos são aqueles interesses
«da especulação com aquele círculo vicioso que demonstra como socialmente que, segundo as representações da respectiva fonte de direito, assumem algum
danosa toda a violação de uma proibição estadual: socialmente danosa é a lesão de significado para a comunidade (...).Todo o crime é lesão de interesses» (-'8).
interesses do Estado, só que o facto de uma dada acção ser proibida pelo Estado passa Considerações análogas se poderiam fazer a propósito das tentativas mais
a valer como a melhor prova da existência de um interesse do Estado» (36). recentes de substituição do conceito de bem jurídico pelo de danosidade social nos
termos do funcionalismo sistémico-social. Uma substituição que valeria quer como
4. Dentre as categorias dogmáticas historicamente invocadas pela doutrina fundamento material (e limite) da criminalização, quer para efeitos de definição do
penal para identificar o objecto do crime, é o conceito de bemjurídico que sobressai objecto da infracção. Também elas acabam - à revelia dos pressupostos meto-
como o que assegura uma audiência mais expressiva à referência sistémico-social. dológicos e dos princípios doutrinais que começam por invocar-por apelar para a
Uma referência que - e esta é uma asserção que as considerações ulteriores referenciação sistémico-social do objecto da infracção, mediatizada pela subjectivi-
procurarão tomar mais óbvia- não tem entretanto deixado de ver progressiva- zação dos pertinentes juízos de valor pelo legislador. É o que permitirá ilustrar uma
mente acrescido o seu peso na doutrina que, de forma mais explícita, se tem ocupado referência mais demorada à doutrina da danosidade de AMELUNG e à concepção
da problemática do objecto do crime e do conteúdo material do ilícito. Apesar de normativista de JAKOBS.
todas as vicissitudes, dos avanços e recuos mais ou menos cíclicos, o sentido último
da evolução doutrinal é precisamente o da acentuação cada vez maior desta vertente.
A que não ficariam alheios os conceitos alternativos e concorrentes de que sectores
mais ou menos significativos da doutrina têm esperado a mesma valência conceituai
e dogmático-funcional.
É o que sucede com o conceito de interesse, descontadas as versões apegadas
ao mais puro individualismo psicologista (de KEsSLER ou HERTZ). De interesse,
como objecto de crime falam, entre outros, autores como MERKEL, H. v. FERNECK,
DOHNA - segundo estes: «o direito penal é tutela de interesses» - ou FINGER. E

de interesses ou fins, entre eles sobressaindo a garantia das condições de subsistência da


sociedade.Simplesmente, e de acordo com IHERING, o intérprete só pode chegar aos interesses
1
l
a servir através do direito, pela mediação das normas jurídicas. As normas valem como
testemunho autêntico da existência e do relevo das necessidades que se propõem satisfazer.
De acordo com IHERIN'G, não teria, por isso, sentido uma distinção (e desfasamento) entre um
ilícito formal (violação da norma) e um ilícito material (lesão de interesses). Cf. AMELUNO,
31
Rechtsgüterschutz, pág. 88. ( Cf. HONIO, Die Einwillingung, pág. 70 e segs.; LISZT, ZStW 1888, pág. 137;
)

(M) LISZT, Strafrechtliche Aufsiitze, II, pág. 60. Die Objekte, pág. 41 e scg. e 97,
ÜPPEh.'HEIM,
( 36) AMELUNO, Rechtsgüterschutz, pág. 88. (") Apud HoNIG, pág, 72.
r·,
A Experiência ~ist6rico-Doutrinal 43

\
CAPÍTULO II
veitado para pôr a descoberto as implicações mais salientes das construções
doutrinais recenseadas a nível do consentimento. Com o que se conta ganhar um
ELEMENTOS DA EXPERIÊNCIA DOUTRINAL
campo suficientemente amplo de observação que poderá oferecer ensinamentos e
apoios heurísticos não despiciendos pam afrontar o problema que hoje se nos depara.
§ 4. FEUERBACH EA DOUTRINA DO DIREITO SUBJECTIYO.
2. Çomeçaremos por nos deter sobre a doutrina deFEUERBACH, autor a quem
1. Na história dogmática do objecto do crime e do seu conteúdo material ficou a dever-se, logo no limiar do séc. XIX('), a primeira tentativa consequente de
parece ser, assim, possível referenciar uma linha de fundo susceptível de emprestar um conceito material de crime, transcendente e crítico face ao direito penal
sentido teórico-sistemático à evolução. Uma linha que se caracteriza quer pela vigente (4). Um objectivo que o autor julga ter logrado ao definir o crime como a
acentuação da dimensão positivista, quer pela emergência e afirmação da referência violação de um direito subjectivo do cidadão ou do próprio Estado.
sistémico-social. Pelo seu alcance simbólico do ponto de vista do pensamento do autor, bem
,. como pela sua clareza conceituai, relevo político-criminal e doutrinal, começaremos
Poucos se disporão hoje a seguir HONIG na defesa do conceito mctodológico- 1·
•tclcológico de bem jurídico, concebido como «o fim reconhecido pelo legislador em por recordar algumas das formulações básicas de FEUERBACH, relativas ao crime e
cada uma das normas penais, expresso na fórmula mais curta». Ou ainda: «a síntese ao direito criminal e retiradas dos parágrafos iniciais do Lehrbuch des peinlichen
categorial, através da qual o pensamento jurídico procura verter de forma concentra- Rechts. FEUERBACH começa por sublinhar o que define como «o princípio supremo
da o sentido co fim das singulares normas penais.» (1) Apesar disso, não cremos que do direito penal: toda a pena legalmente cominada e aplicada no Estado é a
possa recusar-se a pertinência da afirmação, pedida ao mesmo autor, segundo a qual consequência jurídica duma lei fundada na necessidade de preservação dos direitos
e em termos que prestam clara homenagem à referência sistémico-social: «Como alheios e que ameaça a violação de um direito com um mal sensível» (§ 19).
resulta da estrutura do actual direito penal material e formal, o Estado só eleva à E_xplicitando as coisas: «Quem ultrapassa as fronteiras da liberdade legal, comete a
categoria de objccto da respectiva tutela as condições indispensáveis à preservação v10lação de um direito, uma ofensa (lesão). Quem viola a liberdade garantida pelo
e funcionamento da vida comunitária. Ou, noutros termos, que contribuam para a contrato estadual e protegida pelas leis penais comete um crime. Em sentido amplo,
manu1enção e desenvolvimento da comunidade. Mesmo nas hipóteses em que a crime é, assim, a ofensa sancionada por uma lei penal, uma acção que contraria o
tutela jurídica aproveita, cm primeira linha, ao indivíduo, não é a sua vontade que é direito de outrem»(§ 21). E ainda: «Independentemente do exercício de um acto do
determinante para a afirmação da carência de tutelajurídica, mas tão só e fundamen- Governo ou da declaração do Estado, há direitos- dos cidadãos e do Estado. São
talmente a vontade da comunidade expressa na lei penal.» ('-) estes direitos, tutelados pelas leis penais, que servem de fundamento ao conceito de
Na concretização do propósito que deixámos enunciado caberá agora referen- crime em sentido estrito» (§ 22).
ciar e interp,etar, no contexto da pré-compreensão teórica desenhada, algumas das
etapas mais marcantes da experiência histórico-doutrinal. Optando deliberadamente
por um discurso descontínuo, procuraremos privilegiar os eventos que, por sobre
revelarem um mais inequívoco significado na história das instituições penais,
3
sobressaiam igualmente pela expressividade da sua relação - de proximidade ou ( ) Se é certo que a generalidade das obras de F'EUERBACH, de conteúdo doutrinário
afastamento - com o tópico da referência sistémico-social. Um exercício que fora:"- publicadas na década de noventa do século xvm, foi já em pleno século XIX, mai;
prcc1samcntc cm 1813, que foi publicado o Código Penal da Baviera a obra de FEUERBACH de
valerá, além do mais, como contraprova e, porisso, como confirmação ou infirmação mais dirccto alcance prático. Para além disso, foi ao longo do sécuio XIX que a influência do
da hipótese teórica subjacente àquela pré-compreensão. Como será outrossim apro- pensamento do «pai da moderna doutrina penal» (MEZGER) veio a ganhar peso, tanto no
panorama doutrinal como no universo das instituições penais da Europa. Como WÜRTENBER•
GER assinala, é a 1''EUERDACH que cabe o mérito de .. ter aberto no século XIX o caminho ao
p~ms~mc~to iluminista sobre o Estado e o Direito» (Wt.'RTP.NBEROER,Das System, pág. 215).
S1gmficatwo, de resto, que as duas mais importantes obras de FEUERBACU em matéria de
( 1) Ho:-.10,ob. cit., pág. 94. dou:r!na penal tenham aparecido sobre a viragem do século. Enquanto os dois volumes da
Id., pág. 74/õ, Em sentido convergente, sublinhando as ..considerações prevalecen-
( 2)
Reuision der Grundsêitze und Grundbegriffe dcs positiuen peinlichen Rechts foram publicados
tes de política criminal» inscritas no programa de tutela penal dos bens jurídicos, cf., v.g., cm 1799 e 1800, foi em 1801 que apareceu a primeira edição do Lehrbuch dcs gemeinen in
Deutschlandgültigen peinlichcn Rechts (a cuja 14.ª edição, publicada em Gicssen, 1847, se
Hn.LENKAMP, Vorsatztat, pág. 190 e scgs. Segundo o autor, é fundamcmtalmentc a fidelidade
a este programa que veda o recurso a figuras como a Verwirkung ou, cm geral, a denegação reportam as nossas citações). Para uma referência mais desenvolvida, cf., sobretudo,
CA'ITANEO,Anselm Feuerbach, passim
da tutela penal de bens jurídicos, cm nome de uma menor dignidade da vítima. .
("') Neste sentido, HASSEMER, Theorie, pág. 82.
Consentimento e Acordo cm Direito Penal
A Experiência Hist6rico-Doutrinal 45
44

No seu conjunto, e como CATIANE0 acentua, a obra de FEUERBACH representa Estado cabe exclusivamente a tarefa de assegurar o livre exercício da liberdade de
i cada um, no respeito pela liberdade dos outros. É na liberdade - e só na liber-
o ponto terminal da elaboração jusracionalista, aparecendo ao mesmo tempo como
uma expressão paradigmática do individualismo liberal ('). Uma melhor compreen-
são da sua obra- nos fundamentos filosóficos e político-criminais e no espectro de
í dade-que o direito encontra a raiz material e a matriz da legitimidade. «O Estado
- refere o autor de Anlihobes- não é tutor, mas protector; não educador, mas
1: defensor. A sua final\dadeé a protccção da liberdade e não a promoção da cultura ou
respostas doutrinais e soluções pragmáticas -reclamaria, porisso, um mais aturado
exame do horizonte histórico-cultural. Resumidamente, FEURBACH situa-se na I',, da moralidade» ('). E à influência de KANT que devem imputar-se dois importantes
i desenvolvimentos do pensamento de FEUERBACH: a separação entre direito e moral,
confluência das grandes correntes de pensamento - de direcção e sentido não por u~ lado; e a d~negação da legitimidade de prossecução, através do direito penal,
ncccssariamcntesobrcponívcis - que agitaram a Europa e, cm especial, a Alemanha ;: de quaisquer finalidades transcendentes, de étimo religioso ou mesmo relevando do
dos fins do século XVIII e início do século XIX. Influenciado pelo jusracionalismo, horizonte do Woh/fahrt.
iluminismo e idealismo kantcano, FEUERBACH singulariza-se, apesar de tudo, pela Às tentativas de fundamentação ou dedução do direito a partir da moral,
originalidade da sua síntese, podendo ser apressada a conotação exclusiva da sua contrapõe FEUERBACH «uma razão jurídica, que é a afirmação máxima do princípio
obra com qualquer destas matrizes. liberal e jusnaturalista da autonomia do direito face à moral» ('°}. Contrapõe,
noutros termos, e na sua expressiva formulação, a «Ableitung des Rechts aus einer
3. Numa maior aproximação, três aspectos merecem ser nesta sede postos eigenen, von der gesetzgebenden Funktion verc/ziedenen juristichen Funklion des
cm evidência. Vernunftvermõgens» (11 ). Nesta linha e acentuando o vínculo entre o direito e a
3.1. Em primeiro lugar, e como deixámos assinalado, FEUERBACH adapta liberdade: «A razão jurídica sanciona, para efeitos de lei, uma esfera de acções, isto
uma postura transcendente e crítica, procurando contribuir para a instauração de um é, declara-as invioláveis por serem condição para a realização do fim supremo e
novo direito penal, assente na representação precisa da danos idade social a reprimir permite ao respectivo sujeito afirmá-las -se necessário recorrendo à força-
e prevenir (6). O que equivale a assumir aquela postura de ruptura e de alternativi- contra tudo, mesmo contra um ser racional que se lhe oponha» (12). Como, pondo
dade- face à construção da rc:tlidadc herdada do Estado teocrático do velho regime jusiamente cm destaque o significado histórico desta concepção e reportando-se
e às pretensões dcmiúrgicas do despotismo mais ou menos esclarecido- carac- dircctamente à Kritikdes natürlichenRechts (1796), refereBL0CH: « Numa demons-
terística do jusracionalismo e do iluminismo. Também em FEUERBACH encontrou tração de ousadia ainda hoje inaudita e invulgar, a Kritik des natür/ichen Rechts foi
eco expresso a proclamação de VOLTAIRE: «Voulez-vous avoir des bonnes /ois? mesmo ao ponto de definir o direito como soma de direitos e não de proibições.
Brulez /es vôtres etfaites-en des nouve/les» ('). Não se estranhará, pois, que também O direito à vida, à segurança, à liberdade, não é definido na forma de uma permissão
FEt.:RBACII se tenha sentido estimulado à procura de novos princípios de compreen- negativa, como isenção da esfera de dominação, mas sim em termos de faculdade
são do homem, da sociedade, do estado e do direito, em especial do direito penal. E jur(dica, como capacidade jur(dica positivamente sancionada. O burguês opõe-s~
que apele, por isso, para as mundivisõcs do jusracionalismo, nomeadamente para a ainda ao cidadão. Ao fazê-lo, FEUERBACH separa o direito da moral. Na medida em
que o direito surge como força coercitiva (ao serviço da segurança pública),
ideia de contrato social. FEUERBACH expurga-o de todo o farisaísmo; e na medida em que o direito aparece
3.2. Em segundo lugar, é manifesta a dívida de FEUERilACH em relação ao
como capacidade jurídicasubjcctiva, dispensa-o de ter de fazer a provada dignidade
criticismo kanteano. Como WCR1E,BERGER acentua, pode mesmo afirmar-se que moral da pessoa juridicamente capaz. Ao Estado não cabe formular juízos sobre a
foi FEUERBACH que «introduziu o pensamento kantcano do estado de direito puro no moral, nem erigir-se em protector da religião. A moral e a religião convertem-se em
direito penal do seu tempo» ('). Também FEUERBACH parte do dogma de que ao assuntos privados(•..). Daí, precisamente, a frase notável, grandiosa 'a moral é a
ciência dos deveres, o direito natural a ciência dos direitos'. FEUERBACH distinguiu
de forma significativa a capacidade jurídica positiva, enquanto esfera do indivíduo,
e não a fez desaparecer sob a universalidade da proibição moral kanteana» (13).
( 11) CATTANEO, /Iluminismo, pág. 82.
(ª) Desenvolvidamente, AMELUNG, Rechtsgüterschutz, pág. 19 e scgs.
( 7) Apud CATI'Al'\'EO, llluminismo, pág. 36. Compreende-se que BLOCH tenha apodado
FEUERBACH de 1<antfpoda de Savigny». SAVIGNY a quem BLOCII censura «uma tão profunda
abdicação da razão, a ponto de confiar exclusivamente a criação do direito à noite dos tempos, (') Apud WORTENBERGER, ob. cit,, pág. 216.
( 1º) BARATI'A, Antinomie, pág, 160.
denegando àsuallpoca acapacidndc de legifera}',), BLOCH,Naturrecht, pág. 104 e segs. BLOCH
( 11) Apud BARATIA, ob, loc, cit,
cita, a propósito, SAVJGt-.-Y, para quem o direito s6 poderia ser .. obra da acção silenciosa das
(") Ibidem.
forças interiores e não o produto do arbítrio de um legislador» Ibidem.
( 13) BLOCH,Naturrecht, pág, 107/8.
( 8) \VORTE!\'DERGER, Das System, pág, 215,
46 Consentimento e Acordo em Direito Penal A Experiência Hist6rico-Doutrinnl 47

\
Por seu turno, a recusa de quaisquer finalidades transcendentes ou eudemonis-
tas levaFEUERBACH a projectar-pelo menos no plano arquelípico dos princípios (1') -
relativo ao bem estar d~ cidadão e, cm geral, à melhoria da saúde física e moral.. (apud MATIES,
tanto o ilícito criminal como o próprio ilícito penal de polícia a partir da referência Problemas, pág. 151). E para o direito penal de polícia que remetem práticas como o incesto,
exclusiva aos direitos originários dos cidadãos ou do Estado. Em assumido afronta- relações sexuais extra-matrimoniais, sodomia e ..outras infracções contra os bons costumes»,
mento tanto das concepcões teocráticas do direito penal (CARPZOV) como das categoria em qu~ i~tegram a desobediência ~os pais, a automutileção, a usura, a elevação dos
impostações sucedâneas do despotismo esclarecido (v.g., de GLOBIG/HUSTER) (15). preços, etc. Ao direito penal de polícia devem, para além disso, pertencer as condutas perigosas
e perturbadoras da paz pdblica e os crimes contra a religião. O que se passa com estes últimos
é significativo da Wcltanschaung do despotismo esclarecido, contrapondo-o quer ao anterior
estado teocrático, quer ao estado liberal subsequente. É aqui que se revela o compromisso
ensaiado pelo Estado.de-polícia entre as exigências do iluminismo e do absolutismo com a
( 14)Ver, contudo, nota seguinte, in fine. lógica da raison d'État. O soberano poderia abrir mão das representações que adscreviam o
(1 4)Tanto CARPZOV como GLOma!HusrER sustentam a legitimidade da criminalização e primado aos crimina laesae majestatis diuinae, mas já não poderia dispensar o potencial de
punição das infracçõcs contra a religião. Fazem-no, porilm, em contextos históricos e cm conformidade que o religioso comporta, como .. meio para a manutenção do pr6rprio Estado»
horizontes culturais e idcológioo-filosóficos distintos. (GLOBIGIHUSTER,apud ÜEHLER, Wurzel, pág. 104). Como sustentavaS0NNENFELDS te6rico do
a) Autor de Practica nova imperalis sa:ranica rerum criminalium (1635), CARP'lOV absolutismo esclarecido austríaco: ..o governante não pode nunca desprezar cst~ poderosa
representa o exemplo mais acabado de uma concepção teocrática do direito penal. A sua trela, devendo ser sempre sua preocupação que todos os cidadãos tenham uma religião,. (apud
doutrina aparece como cristalização dojusnaturalismojudaico-cristão, recebido da teorização WúRTENBERGER,Das System, pág. 187).Convertidaemassunto do foro íntimo, a religião deixa
medieval e retemperado pelas controvérsias provocadas pela Reforma (com destaque para a de valer como fundamento autónomo de censura criminal; enquanto isto, a sua funcionalidade
vertente luterana) e Contra-reforma.Segundo o autor, tanto o Estado como o direito têm uma social, como i~dutore de conformida?e,. vale apenas como um «mero bem da administração»,
origem divina dirccta, não passando o detentor do poder de um mero dei minis ter, sendo Deus o q~~ detenmna a_s~a exclusão do d1re1to penal. Como sublinha WORTENBERGER ..o princípio
considerado o legislator summus. Daí a aspiração por uma justiça inteiramente plasmada religia turbata_p?l,t,am turbat converte-se cm pedra de toque da atitude do Estado-de-polícia
sobre ajustiça divina e o dogma da equiparação entre crime e pecado:pecatum autem siue nihil para com a rehgião» (cf., Das ~y~tem, pág. 186). A subversão do horizonte teocrático é, pois,
aliud est, quam actus humanus malus, Também o crime releva da luta perene entre o mal (o completa: são os valores da rchgião que passam a estar ao serviço do pol(tico e das exigências
diabo) e o bem, devendo a sua punição ser encarada como parte do plano salvífico. Daí, por de conformismo. Exemplar, e este propósito, o contraste entre a Canstitutio criminalis
outro lado, um direito penal votado à conformação da conduta e da vida segundo as exigências lhcresiana (1768) e a Josefina (1787) pese embora o curto hiato temporal que separa as duas
da moral e da· teologia cristãs. Um direito que não pode conhecer limites impostos, u.g., pela codificações. Se a lei de Marie Teresa continua a tratar a divindade e o sagrado como os bens
consideração da vida privada ou respeito da legalidade. Qualquer texto da Bíblia (nomeada- jurídicos de maior dignidade,jáJosé II apenas reconhece a tais va]ores um re]evo instrumental
mente do Velho Testamento), da prática ou da tradição teológica, combinado com os preceitos ao serviço da manutenção da ordem e dos programas salutistas, (Desenvolvidamente:
daConstitutio criminalis carolina constituiria base bastante de fundamentação e legitimação WtmTE~11ERGER, Das System, pág. 138 e segs). E os resultados não seriam sensivelmente
da punição. Daí, por último, uma escala de gravidade dos crimes encimada pelos crimina divergentes em caso de confronto entre Frederico o Grande e o seu progenitor.
laesae majestatis divinae, cm que, a par do homicídio, se intregram ..crimes» como: adulte- e) Já FEUERBACH se distancia abertamente do direito penal teocrático e do absolutismo·
rium, blasphemia, sortilegium, sodomia, haeresia, periurium e sacrilegium, Para uma mais esclarecido, ambos legitimando a seu modo o recurso a meios sancionatórios para a realização
desenvolvida referência, SCHMIDT, Ein{ührung, pág. 153 e segs.; SCHAFFSTElN, GS 1932, de_met~ transcendentes, através, nomeadamente, dos crimes contra a religião. No plano dos
pág. 50 e segs.; WORTE~'DER0ER, JuS 1966, pág. 345 e segs.; AMELUNG, Rechtsgüterschutz, pnncípms, 1'""EUERDACH nega ao Estado a legitimidade pera recorrer a sanções - mesmo às
pág. 17 e segs.; CA'ITANED,Delitto e pena, pág 10 e segs.; MocclA, Carpzau e Grozio, e GA 1983, sanções do direito penal de polícia- para a promoção de fins de índole eudemonista
pág. 533 e segs. moreli~t.a ou_ religiosa. ~.gun~o FE1;JERDACII, o direito penal de polícia sanciona acções cm si
b) São diferentes os postulados e os princípios de que partemoLomoe HUSTER, também não onginanamente aut1Juríd1cns 1 1sto é: acções que, mscrevendo-sc no espaço de liberdade
eles autores de marcantes trabalhos de teorização do direito penal, na perspectiva do cm geral adscrito ao cidadão, ultrapassam, todavia, os limites dcfinidbs pelo Estado. Rclcvan4
absolutismo esclarecido alemão e austríaco. Com destaque para: Abhandlungen von der do de utilidade e não da justiça, a infracçlio de polícia caracteriza-se aJém disso e ao contrário
Criminal-Gesetzgebung (1783) e Vier Zugaben zu der im Jahre 1782 von der éikanomischen do crim~ tendencialmente universal e intemporal, pela sua rclatiVÍdadc cspácio - temporal.
Gesellschaft zu Bern gekrõnte Schrift (1785). Fiéis ao ideário e às pretensões salutistas e ..Na medida em que o Estado está legitimado e realizar mediatamente os seus fins recorrendo
eudemonistas do Estado4de-pol!cia, GLOmG/.HUSTERmostram-scjá abertos à lição dojusracio- a leis de polícia que proíbem acções cm si não antijurídicas assistem ao Est~do direitos
nalismo e do iluminismo. É o que revela a tentativa de definir uma fronteira entre o ilícito especiais à omissão de tais acções especialmente proibidas m~ originariamente pcnnitidas
criminal e o ilfcito penal de polícia. Uma distinção que, como ÜEHLER acentua, começava a abrir
caminho apesar de, cm princípio, contrária às representações fundamentais do despotismo
esclarecido, que propcndia para a homogeneização material das infrac~'Ões, todas igualmente
! aos cidadãos, O conceito de infracções de polícia emerge do direito reconhecido ao Estado à
obediência a uma determinada lei de polícia, sancionada com' uma pena» (FEUERBA~H,
Lehrbuch, § 22, pág. 46). Em conformidade, o Código Penal da Baviera (1813) define as
comprometendo as metas conformadoras do soberano. Só que não deixava de se reconhecer infracções de polícia como: «acções ou omissões que em si ê por si não lesam direitos do Estado
que a ideia de Wohfahrt se projectava de forma diferenciada sobre as infracções criminais ou ~o cidadão, mas que são proibidas ou impostas sob a cominação de uma pena por causa do
(..que lesem cm primeira linha ajustiça e, só por isso, tambóm o Wohfahrt ») e sobre os delitos pengo para a segurança e a ordem jurídica»(§ 2, n.• 4). No plano dos princípios é ainda na
de polícia (..que apenas lesam bens administrativos,.) (OEHLER, Wurzel, pág. 103). Neste pc~pectiva dos direitos subjectiuas- e só deles - do Estado ou do cidadão que ~e decide da
contexto, e cm homenagem ao iluminismo, GLOBIG!HUSTER circunscrevem o crime às ..Jesõcs util,~de su~ce~tível d~ lcg_itimar a punição a título de ilícito penal de polícia. O que equivale
do contrato social... A par disso, encaram o direito penal de polícia como preordenado a a cngir os d1re1tos subJect1vos cm referentes mal.criais exclusivos de todo o direito sancio-
«promover a moralidade, a boa alimentação, o aumento da riqueza nacional e tudo o mais natório. Na medida cm que teve de se empenhar na prática, F'EUERBACH acabou, porém, por
48 Consentimento e Acordo em Direito Penal A Experiência Hist6rico-Doutrinal 49

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3.3. De sublinhar, em terceiro lugar, o entono subjectivista e individualista direitos subjectivos, pode justificar a existência e o funcionamento do Estado. A
queFEUERBACH imprime ao seu pensamento jusracionalista, um tópico que fica, por competência do legislador está circunscrita às lesões de direitos e às ,acções
sua vez, a assinalar o afastamento em relação a KANT. Enquanto este último exteriormente reconhecíveis {19). Quanto à pena, FEUERBACH encara-a como ex-
propendia para uma hipostasição tendencialmente objectivista do direito, para pressão de um direito de coacção (Zwangsrecht) do Estado, que apenas existe na
FEUERBACH o Naturrecht é a ciência dos direitos, não dos deveres (16). Na interpre- medida necessária para assegurar o exercício dos direitos. Isto com expressa
tação de CATIANE0, FEUERBACH «opõe-se à dedução do conceito de direito natural exclusão de toda a pretensão de realização da ordem moral. Na sugestiva formulação
(concebido sempre em sentido subjectivo ) a partir da lei moral, o que o faria do próprio autor: «Em vez de ser o direito à coacção (Recht zum Zwang) a derivar
coincidir com a esfera do moralmente admissível e lhe emprestaria uma conotação do dever de coacção (Zwangspflicht) conexionado com o dever da justiça, é, pelo
exclusivamente negativa: os direitos naturais corresponderiam à esfera de compor- contrário, este último que tem de ser deduzido daquele. Não é a natureza formal do
tamentos em que a moral não impõe obrigações. Mas a lei moral só pode decidir o deverdajustiça para com os outros, não é a diferença formal que separa aquele dever
que é justo (Was recht ist), não o que é o direito (das Recht). Ora, importa não do dever de justiça para comigo mesmo que pode determinar a existência do dever
confundir os dois conceitos. O direito é algo mais que a mera não afronta à lei moral, de coacção quanto ao primeiro, e a sua inexistência face ao segundo. A razão da
deve ser uma liberdade atribuída pela razão» (1) . existência do d_ever de coacção no primeiro caso e da sua inexistência no segundo,
só pode determmar-se a partir da sua natureza material, isto é: a partir da sua relação
4. Éa concepção da liberdade como fundamento material dos direitos e, por como objecto do dever. E isto só épossível a partir de um direito radicado no próprio
isso, do Direito, que permite compreender as posições de FEUERBACH em temas sujeito que o reivindica. Só há um deverdecoacção ligado ao deverdajustiçaporque
centrais como: tarefas legítimas do Estado, sentido e limites da criminalização e da e na medida em queeleserelacionacom o direito do outro à acção- um direito cuja
punição, objecto do crime e estrutura da infracção, questão com reflexos directos efectivação, à margem de qualquer impedimento, é dever dajus.tiça assegurar- e
sobre a compreensão e a doutrina do consentimento. com um direito de coacção emergente deste direito. A razão só concede um dever
4.1. Resumidamente, segundo a formulação de Antihobes, a tarefa nuclear de coacção nos casos de violação dos deveres de justiça porque o outro tem um
do Estado é assegurar «die wechselseitige Freiheit a/ler Bürgen> {18). Só a adopção direito à acção e, por isso, a legitimidade para impor o seu direito mediante recurso
de medidas tendentes a prevenir os atentados à liberdade, isto é, a violação dos à força» <2°).
É neste contexto que deve compreender-se a definição de crime - como
violação de um direito subjectivo do Estado ou do cidadão - que começámos por
referir. Uma definição que, imprimindo sentido ao «objecto de tutela» e da infracção,
aceitar soluções de compromisso com a realidade e as representações colcctivas dominantes. predetermina outrossim o problema do consentimento e da sua estrutura dogmática.
Significativamente, a primeira tentativa histórica de pôr em pé uma ordenação penal Como SINA sublinha: «Para além do seu decisivo conteúdosistemático-fancional de
coerentemente definida a partir de uma definição material, arquctípica, trens-sistemática e sentido liberal (...), a elevação do direito subjectivo à categoria de objecto do crime
crítica de crime, situada num momento notoriamente vocacionado para a ruptura e a
alternativa, acaba por ceder ao peso das condicionantes histórico-sociológicas da criminaliza- (em nome da teoria do contrato social, orientada contra a filosofia do estado
ção. O que apenas confirma a regra da impossibilidade de projectar um sistema penal totalitário) não era, de forma alguma, privada de significado. Nos direitos subjecti-
exclusivamente orientado por um oonceito material de crime e asséptico à influência das vos eram protegidas esferas concretizadas de liberdade pessoal. Definir o direito
representações colectivas. (Cf. HASSEMER, Theorie, pág. 35 e segs). Sobre as incongruências s_ubjectivo como objecto essencial do crime era já uma expressão do pensamento
de FEUERBACH , cf., entre outros, AMELUNG, Rechtsgüterschutz, pág. 33 e scgs.; SINA, Di"e
Dogmengeschichte, pág. 10 e segs.; HASSEMER, ob. loc. cit. Sintomátioo o tratamento reser- hberal. O conceito de direito subjectivo tinha também, de forma imanente-objectiva,
vado pelo Código de 1813 ao crimes sexuais e aos crimes contra a religião. No Código, que
apenes prevê e sanciona crimes, não há lugar para a incriminação de práticas como a heresia,
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um conteúdo liberal» (21 ).
4.2. Numa aproximação mais directa do consentimento e da problemática
a blasfémia, a incredulidade, a sodomia, ou a prostituição. Mas continua a incriminar-se o
incesto, o adultério ou a bigamia, estroturedos, de forma mais ou menos artificiosa, como
' com ele conexionada, o privilégio concedido ao direito subjectivo, expressão
violações dos direitos de terceiros e reconduzidos à categoria dos crimes privados. A par disso, cunhada da liberdade individual, na definição do conteúdo material da ilicitude, tem,
o Código remetia para o direito penal de polícia infrecções como: heresia, prostituição,
concubinato, formação de seitas, etc. Resumidamente, FEUERDACH acaba por inverter o
caminho cm relação à convicção originária, segundo a qual, em matéria sexual, o Estado
deveria limitar-se a proteger a liberdade dos cidadãos.
19
(1') CATI'ANEO,Anselm Feuerbach, pág. 554 e segs. ( ) FEUERBACH,Reuision, 11,pág. 12.
11
( } CATI'ANEO,Jlluminismo, pág. 81. (") Apud HASSEMER, Theorie, pág. 35/6.
( 18) Apud CATI'ANEO,Anselm Feuerbach, pág. 303. 1
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1
(2 } SINA, Die Dogmengeschichte, pág. 12.

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Consentimento e Acordo em Direito Penal A Experiência Hist6rico•Doutrinal 51
50

desde logo, como reverso a recusa de relevância penal autónoma tanto à autolesão consentimento resultava necessariamente da natureza jurídica do crime» (2"). Pcrs-
como à referência sistémico-social. Também para FEUERBACH vale o dogma de pcctivado o crime como atentado a uma expressão da liberdade, o consenzimenzo só
S.MILL: «ln zhe pari which merely concerns himself, his independence is, ofrig/11, poderia relevar da dimensão positiva da mesma liberdade. O que, combinado com
absoluze. Over llimself, over his own body and mind, lhe individual is sove- a ausência de qualquer referência sistémico-social penalmente relevante, implicaria
reign» f'). Por outro lado, e levando ao extremo o ideário do individualismo liberal, quc·a ocorrência do consentimento teria de neutralizar a ideia de lesão susccptível
FEUERBACH afasta-se de outros individualistas que, à semelhança de HoMMEL ou de assumir a função sistemática de fundamentação da tipicidade. «Na medida em que
BECCARIA, sublinhando igualmente a vertente objectiva, reconheciam um signi!i- o direito subjectivo - isto é, uma criação do pensamento jurídico - era erigida
cado autónomo à danosidade social, qua zale (2'). Este é, de resto, um aspecto do simultaneamente cm objccto da agressão da acção punível e da disposição expressa
pensamento e do legado de FEUERBACH que não tem deixado de atrair os reparos dos no consentimento, então, cm caso de consentimento, o cometimento de uma acção
autores que se colocam numa perspectiva mais abertamente crítica: «A punível tinha de se considerar, pura e simplesmente inconcebível. Daí que, entre os
Rec1h1sverle1zungs1heorie - escreve nesta linha SGUBBI - garante a concretiza- adeptos da tese de que todo o crime é, por natureza, lesão ou perigo de lesão de um
ção de um princípio muito caro à burguesia: o princípio da não ingerência do Estado direi 10 subjcctivo, encontremos invariavclmcntea afirmação de que o consentimento
na esfera privada. Concebendo o crime como violação do direito subjeczivo de exclui, cm absoluto, o conceito de crime» ('-').
ouzrem, tal doutrina assegura a dependência da anzijuridicidade penal da antijurídi-
cidade extra-penal. O que corresponde a admitir a intervenção punitiva do Estado
§ 5. llINDING E OTRIUNFO DO BEM JURfDICO.
apenas quando se verifique uma violação das regras do jogo de que os cidadãos
privados se dotam» ("'). 1. A publicação cm 1834 do artigo de BIRNBAUM, Über das Erfordernis
O que fica dilo explica a amplitude com que FEUERBACII e, de um modo geral, einer Rec/usverlezzung.zumBegriffdes Verbrechens (30), assinala oinício da hisiória
os penalistas de influência iluminista (2'), propcndiam para reconhecer a eficácia do doutrinal e político-criminal do conceito de bem jurídico. E abre a porta a um novo
consenzimenzo bem como o recorte normativo e doutrinal que, de forma mais ou paradigma geral de compreensão do crimc-.do objccto e da respectiva lesão, bem
menos explícita, lhe adscreviam. Segundo o próprio FEUERBACH, «na media cm que como do conteúdo material da ilicitude- e, consequcntcmcnlc, do consenlimenlo.
uma pessoa pode, através da declaração de um acto de vontade renunciar aos direitos, Tanto no que respeita ao seu âmbito e eficácia como no que concerne à sua estrutura
o consentimento elimina, pelo lado do ofendido, o conceito de crime» (26). Por seu normativa e dogmática.
turno, e na medida cm que admitia a eficácia do consentimento ('"), o autor 1.1. Já pusémos cm evidência o relevo que este paradigma dispensa à
inclinava-se para uma solução doutrinal monista e rccondutívcl ao que hoje se referência Si$témico-social. Que se caracteriza, além disso, por fazer emergir novos
designaria por exclusão da tipicidade. Como HONIG obsci:va, «a natureza jurídica do referentes ontológicos da ilicitude penal e por imprimir um novo sentido à ideia de
danosidade social. Em vez de apelar para a disfuncionalidade das perturbações ou
frustrações a nível da intcrsubjcctividade, privilegiada pela compreensão do crime
como lesão de um direito subjcclivo, a lesão do bem jurídico aponta antes para o
( 22 ) Citação de On Liberty, apud CATTANED, Anselm Feuerbach, pág. 437. mundo exterior e objcctivo de que prcfcrcn1cmcntc relevam as «coisas» valoradas
(U) Desenvolvidamente, CATI'A:-i'EO, ob. cit., pág. 472 e scgs.
( 2') Saunm, Responsabilità, pág, 17. Mais vincada ainda a crítica de um pcnalista
como bens jurídicos. A introdução do «conceito do bem jurídico ...,. sublinha
assumidamente marxista como R. HARTMANN (RDA). Que acentua, criticando o que considera SINA -significa uma viragem ou, talvez melhor, uma deslocação de tónica. Até ali
ser o egoísmo burguês de F'EUEIUJACH: .. com a sua representação idealista do direito subjectivo eram os direitos que estavam no centro da discussão suscitada pelo crime. Noutros
dissolveu no meramente abstracto e no formal a concepção dos penalistas do iluminismo sobre termos: eram principalmente os homens e as suas relações, reconhecidas pelo direito,
a índole material do crime como expressão de danosidade social».Apud CATIA.,"EO,Anselm
Feuerbach, pág. 472.
( 25 ) Significativa a posição de HOM.\IEL em relação ao marido que consente ou facilita a
prostituição da mulher. A partir do princípio de que o direito penal só deve proteger interesses
socialmente relevantes e não a moral, e prestando homenagem à ideia de direito subjectivo,
HoMMEL pronuncia,se pela impunidade. A conduta «deveria deixar de constituir um delito
porque não lesa ninguém e é apenas um pecado, atendendo à velhas teorias que consideram ( 28 ) HoNm,Die Einwilligung, pág. 22.

o casamento como um sacramento-,.Apud RtmOLPlII, Fest. Honig, pág. lõ5. (") Ho,10, ld., pág. 21.
(") Lehrbuch, § 85, pág. 61. (3°) O título completo do artigo, aparecido em ·l'\rchiu des Criminalrechtes 1834,
( 27 ) Um problema que o autor soluciona recorrendo à distinção entre direitos alienáveis pág, 149 e scgs.: Über das Erfordernis einer Rechtsverletzung zum Begriff der Verbrechens
e inalienáveis. mit besonder Rücksicht auf den Begriff der Ehrenhrãnkung.
,
52 Consentimento e Acordo em Direito Penal A Experiência Hist6rico-Doutrinal 53

que, como direitos, pertenciam à esfera do espírito. A partir de então são os bens que ligava-se, assim, ao conceito subjectivo de direito que continuava, enquanto tal,
passam a constituira essencial. Bens que seguramente nos pertencem: o que implica presente nos hegelianos, em MERKEL e IHERING e ainda hoje contribui para
a persistência da relação com o homem, mas não prejudica a acentuação do carácter determinar o conceito de bem jurídico. O conteúdo liberal da teoria da lesão do
concreto, objectivo e positivo» (31). A invocação do bem jurídico, prossegue SINA, direito, que durante o iluminismo se alimentava do idealismo, tinha agora que
correspondeu à «intervenção de um momento empírico-naturalístico», contraposto suportar a hipoteca social que ao longo do progressivo século XIX veio a integrar o
ao «momento espiritual», até então predominante (32). Significou, noutros termos, próprio conceito de direito» (34).
uma abertura da compreensão do crime ao Aussenweltsgeschehen. Que constitui, É esta aquivocidade do pensamento de BIRNBAUM que explica o compromisso
como WORTENBERGER assinala, o referente próprio de uma ilicitude penal perspec- entre a atitude jusnaturalista e o historicismo. Do mesmo passo que sublinha o
tivada a partir do bem jurídico e, simultaneamente, a matriz legitimadora do direito carácter historicamente construído e mutável dos bens protegidos pelo direito, o
penal (33). autor não deixa de considerar como «inquestionável» serem «os bens (...) em pane
1.2. Não deveria naturalmente esperar encontrar-se em BIRNBAUM uma dados já ao homem pela natureza e, noutra parte, o resultado do seu desenvolvimento
formulação acabada e claramente recortada do paradigama que deixamos sumariamente social» ("). Noutro plano, é notória a transacção entre uma postura trans-sistemática
referenciado. Tal só viria a ser possível já na segunda metade do século, depois e crítica, cara aos penalistas iluministas, e a atitude metodológica inversa, própria do
sobretudo dos constributos decisivos de IHERING, BINDING e LISZT. Pelo contrário, positivismo legal. Apesar de representar a sua doutrina como «mais virada para a
a obra de BIRNBAUM revela aquela equivocidade que constitui a marca de todo o aplicação da lei do que para a respectiva produção legiferante» ("), BIRNBAUM não
pensamento situado em períodos de viragem: do mesmo passo que antecipam e deixa de ensaiar uma perspectiva do direito a partir do «fundamento jurídico e do fim
anunciam o advento das realidades novas, apresentam ainda os estigmas do ambiente do próprio Estado». Parte para o efeito da crença- cuja pertinência de princípio
em que vêm à luz do dia. hoje dificilmente se poderia pôr em causa- de que «pertence à.essência do poder
Significativo, desde logo, que BIRNBAUM não tenha chegado a utilizar a do Estado garantir, por igual, a fruição de certos bens a todos os homens que nele
expressão bem jurídico (Rechtsgut) cuja paternidade lhe é consensualmente atri- vivem» (37).
buída pela historiografia. Isto apesar de ter utilizado um conjunto diversificado de BIRNBAUM procura igualmente responder, em termos de equilíbrio compro-
expressões- v.g., Gut, welches uns rechtlich zusteht ou «cbnceito de um bem a ser missório, à tensão entre a referência sistémico-social e individual-pessoal. Apesar da
definido pela lei» - de conteúdo mais ou menos descritivo e cuja compreensão se tónica atribuída à subjectivação sistémico-social, não deixa de acautelar: «A consi-
identifica substancialmente com a de bem jurídico. Para além disso, na obra de deração do elemento de perigosidade comum, como dimensão essencial de todo o
BIRNBAUM entrecruzam-se e combinam-se, claramente referenciáveis, as influên- crime, poderia levar facilmente a acreditar que o dever de punição do homicídio que
cias das principais correntes de pensamento jurídico que agitaram a primeira metade impendesobre o poder estadual, radicaria menos no dever de protegera vida de cada
do século XIX. A par dos últimos ecos do jusracionalismo e do iluminismo, as homem individual do que no dever de preservar o Estado como um todo. Por esta via,
influências do hegelianismo e da escola histórica ou do positivismo moderado de poderia ser-se levado a crer que os homens apenas existem para assegurar a
MITTERMAIER. Na caracterização de Moos: «BIRNBAUM pôde figurar ainda como subsistência do Estado, em vez de se considerar o Estado necessário por causa dos
jusnaturalista, mas ao mesmo tempo orientar-se já para as novas tendências. interesses do Homem» (''). O relevo autónomo reconhecido simultaneamente ao
Segundo estas, a lei penal já não deveria possibilitar apenas a livre coexistência dos sistema social e ao indivíduo - numa posição entre FEUERBACH e BINDING -
indivíduos, mas servir também, de forma imediata, fins sociais. Na medida em que, espelha-se, por seu turno, na distinção entre bens individuais e bens colectivos. Entre
seguindo este novo caminho, procurou formular o conceito de bem jurídico induti- estes últimos avultam, v.g., os valores relacionados com a religião ou a moral, cuja
vamente a partir da lei - como produto de um processo de desenvolvimento elevação à categoria de bens jurídicos permite a BIRNBAUM, além do mais, aferecer
social - BIRNBAUM deu já expressão ao pensamento teleológico-social (...) BIRN- uma base de legitimação à incriminação das condutas pertinentes. Com o que
BAUM aparece, deste modo, já como precursor do utilitarismo social de que a seu
tempo IHERING viria a ser o principal representante. O ponto de vista dos interesses

(l') Moos,Der Verbrechensbegriff, pág. 214/5.


( 35 ) Bmt..13AUM, ob, cit., pág. 177. Na base desta distinção, estabelece o autor uma

classificação bipartida dos crimes: naturais e sociais. Cf. ibidem.


( 31 ) SINA, Die Dogmengeschichte, pág. 23. eia) Ob. cil., pág. 157.
(") Id., pág. 25. (") [d., pág. 177.
(H) WORTE~"DERGER,Diegeistige Situation, pág. 59 e segs. (") Id., pág. 180
54 Consentimento e Acordo cm Direito Penal A Experiência Hist6rico-Doutrinal 55

procurava obviar às reacções que o movimento de descriminalização sugerido pelo ' realidade plurifacetada que, em aspectos mais ou menos significativos, escapará
iluminismo vinha desencadeando ("). E, poroutro lado, superar a aporia doutrinária sempre a estas grelhas conceituais. O que aqui fundamentalmente importa reter são
cm que FEUERBACH e seus seguidores se vinham comprometendo com a mera os aspectos mais salientes do pensamento de BIRNBAUM e que antecipam outras
conversão ex machina destas infracções em delitos de polícia. tantas vertentes do novo paradigma de compreensão do crime: um novo conceito de
Resumidamente: situada em período de crise e de revisão de um sistema objecto e, por isso, um novo conceito de lesão. Ambos concebidos como «realida-
herdado de ideias, que entrara já na curva descendente da sua trajectória, mas cm que des» do mundo exterior e definidos, por princípio, à margem da intcrsubjectividade.
não era ainda clara a sane dos novos sinais que emergiam, dificilmente a obra de Pois, porum lado, é possível referenciar o bem (jurídico) e propô-lo à tutela jurídico-
BIRNBAUM poderia furtar-se ao destino de Jano. Só da acção conformadora do tempo, -penal sem consideração expressa da relação com o respectivo titular ou portador.
com a respectiva densidade histórico-cultural, seria legítimo esperar a actualização Por outro lado e complcme_ntarmente, é possível identificar a sua lesão independen-
definitiva do projecto que nela se anunciava. temente da atitude ou postura do mesmo titular. Oque, por seu turno, não pode deixar
É a esta equivocidade congénita que deve em boa medida imputar-se o de sugerir uma concepção do consentimento (dos seus limites e da sua estrutura
desencontro dos juízos que esta doutrina veio a suscitar na literatura historiográfica. normativa e doutrinal) em termos consideravelmente divergentes dos propostos,
Não faltam autores- v.g., FRANK, SCHAFFSTEIN ou SINA {40) - segundo os quais v.g., por FEUERBACH.
as correcções formais introduzidas por BIRNBAUM não chegam para pôr em causa a 1.3. Seria, já o deixámos assinalado, necessário esperar pela década de
continuidade doutrinal e político-criminal (maxime no ethos liberal) entre a sua setenta para que o paradigma anunciado em 1834 por BIRNBAUM viesse a conhecer
concepção e a tese iluminista da lesão do direito subjectivo. Enquanto isto, sustentam uma conformação estabilizada e sobretudo a sua consagração doutrinal. Vários
outros, com destaque para AMELUNG (41 ), que, com a doutrina do bem jurídico, factorcs se conjugamm para retardar ou, de algum modo, condicionar este evento.
BIRNBAUM antecipa e consuma já a ruptura com as representações jµsracionalistas A começar pelas resistências oferecidas pelo modelo anteri(lr, construído sobre
e iluministas e, sobretudo, com as concepções filosóficas e sociológicas subjacentes a ideia de lesão do direito subjectivo. Resistências.compreensíveis tendo em conta
e relativas à polaridade entre o indivíduo e o sistema social. Segundo esta interpre- quer o horizonte filosófico-cultural, quer a harmonia lógico-conceituai dos seus
tação histórico-doutrinal, em BIRNBAUM estaria já claramente assumido. o novo princípios e soluções, quer ainda o seu ethospolítico-criminal, inteiramente sintoni-
paradigma; caracterizado pelo positivismo e pela prevalência, se não mesmo a zado com os ventos dominantes, que continuavam a soprar a favor do ideário da
exclusividade, da referência sistémico-social que com BINDING viria a conhecer a liberdade e scgumnça dos cidadãos. Ainda cm 1827 - em artigo publicado sob o
sua mais acabada expressão. título sugestivo: Abhand/ung über die Frage: ob nur Rechtsverletzungen vom Staat
Não cabe aqui sindicar a pertinência teórica e histórica destas interpretações ais Verbrechen besttraft werden dürfen? - exaltava DR0STE-H0LSH0FF os méritos
contraditórias. Igualmente justificadas pela adequação com a~pcctos parcelares da i1 da doutrina legada por FEUERBACH. Tanto do ponto de vista da dimensão de garantia,
doutrina em exame, ambas se revelam inquinadas pelo mesmo e comprometedor como da clareza e rigor conceituai. Este último um plano em que o confronto com
vício: pretendem captar cm categorizações necessariamente reducionistas uma
l o indefinido e polissémico conceito alternativo de bem jurídico não poderia deixar
de ser, pelo menos numa primeira aproximação, claramente favorável ao princípió
' da lesão do direito subjectivo. Importa, de resto, sublinhar que as controvérsias em
t que a doutrina do direito subjectivo se viu- praticamente desde o início: a começar
pela crítica de THIBAUT, um dos primeiros autores a abrir as hostilidades com
( 39 ) Reacções que atingiram um tom particularmente vivo - mesmo aia·rmista- FEUERBACH (42) - envolvida não tiveram invariavelmente como consequência a
sobrcLudo da parte dos autores mais influenciados pela escola histórica. MITIERMAYER, por r, sua erosão. Não raro, a discussão veio a saldar-se em estímulo à superação das
exemplo, denuncia ser "'ª própria lei e desmoralizar a nação». Apud SINA, Die aporias e limitações e, por via disso, em reforço dos seus fundamentos doutrinais.
Dogmengeschic:hte, pág. 18. Compreende-se, assim, que a doutrina da lesão do direito subjectivo tenha
(") S!~A. ob. cit., pág. 2õ; FRANK. VDA, õ (1908), pág, 170 e scg.; SCl!A>"PSfEIN, •Das ;
continuado a suscitar adesões mesmo depois de BIRNBAUM. E que, praticamente até
Vcrbrcchcn .. , pág. 112c scgs.;do mesmo autor, DStR 1935, pág. 98 e scgs.,c 1937, pág. 338,
No sentido da continuidade cf. ainda,JÃGEU,Strafgesetzgebung, pág. 6; O'IT0,Grundkurs,AT,
1
pág. 7; HASSEMJm, Theorie, pág. 41 e seg. e 51; do mesmo autor,ZStW 1975, pág. 154 cscg.; !
Musco, Berre giuriclico, pág. 59 e scgs.; GnEGORI, Saggio, pág. 23: STELLA, IUtalDPP 1973,
pág. 4; ANGIONI, Conlenulo, 1, pág. 19.
t
( 41 ) Cf. A:\fEl,UXG, Rcchtsgillerschutz, passim, sobretudo, pág. 1 e scgs. e 43 e i;cgs. Em
2
sentido tcndencionalmentc convergente, HONIG,Die Einwilligung, pág. 32 e ~(T . ~.1 -,, ,:-:. f),•r
Vcrbrechcnsbegri[f, pág. 212 e segs. t
1
(• )Sobre A?\'TONTHIHAUT e a sua obra, Beytriige zur Critik der Feuerbachischen Theorie
übcr Grundbegri[fe des peinlichcn Rechts (1802), cf. Hm•UG, Die Einwilligung, pág. 6 e scg.

1'
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1
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56 Consentimento e Acordo em Direito Penal A Experiência Hist6rico.Doutrinal 57

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ao fim da década de cinquenta, seja ainda possível encontrar defensores da concep- Vistas, porém, as coisas numa perspectiva compreensiva, não será arriscado
ção do consentimento própria do modelo doutrinal da lesão do direito subjectivo {43): acreditar que também o parênteses hegeliano terá resultado em contributo não
exclusão da ilicitude por força da insubsistência do objecto da lesão. Isto sendo certo despiciendo para a conformação do paradigma polarizado no conceito de bem
que os desenvolvimentos entretanto registados - nomeadamente a progressiva jurídico. Porventura à margem - ou mesmo contra- dos seus propósitos mais
subjectivação do programa político-criminal por parte do Estado qua legislador e directos, a verdade é que também os penalistas hegelianos contribuíram para
consequente reforço dos coeficientes sistémico-sociais - tomavam cada vez mais enfatizar e esclarecer a tensão entre as referências sistémico-social e individual,
difícil sustentar a tese da validade e eficácia irrestritas do consentimento. O que própria de um direito penal do bem jurídico e da concepção do consentimento por ele
obrigava a pôr o problema da definição de vias de protecção dos valores ou interesses sugerida. Desde logo, não pode esquecer-se que um dos tópicos centrais da escola
supra-individuais cujo sacrifício era deixado a descoberto pela não punibilidade da hegeliana é precisamente o. da tensão dialéctica entre as duas dimensões ou
«lesão» consentida. referentes conaturais do crime: por um lado, a vontade geral e, por outro lado, os
Esta era, aliás, uma questão que não encontrava os adeptos da concepção de concretos meios de lesão ou, na formulação do próprio HEGEL, «o especial, a
FEUERBACH inteiramente desprevenidos. Eles tinham à mão o recurso óbvio à figura subsunção de uma coisa sob a minha vontade» ("). Se é certo que é a violação da
dos delitos de poUcia. Com ela poderiam fazer face às manifestações de antis- primeira que define a essência do crime, é nos segundos, isto é, nas especificações
socialidade ou imoralidade, apesar de tudo sobrantes em caso de consentimento.
Como forma normal de exercício do direito legalmente protegido, o consentimento qualitativas e quantitativas daquela vontade que a lesão é possível, se exprime e se
teria, por definição, de excluir o crime. Mas ele poderia igualmente deixar subsistir revela. É, aliás, a divergência de perspectivas quanto às relações que se entende
perturbações mais ou menos expressivas da ordem pública ou da moralidade, isto é, mediarem entre os dois momentos- se., a acentuação maiorou menor do seu peso
manifestações de danosidade social recondutíveis ao ilícito próprio dos delitos de relativo - que explica em grande medida os desencontros que acabam por dividir
polícia. Uma via trilhada, entre outros, por autores como TITIMANN (1806), entre si os autores de obediência hegeliana.
HENKE (1823), WÃCHTER (1825) eSTOBEL (1795). Segundo este último, por exem- Numa maior aproximação, mas sem ultrapassar o limiar de uma caracterização
plo, não deverá atribuir-se outro alcance prático à existência de direitos subjectivos global e genérica, a doutrina hegeliana do crime reconduz-se ao dogma monista da
considerados porlei como inalienáveis ou irrenunciáveis. Pois, porum lado, também integração dialéctica do real e do racional, do ser e do dever-ser. Obedece, noutros
aqui o consentimento não poderá deixar de ser eficaz e excluir, eo ipso, o crime; por termos, ao axioma segundo o qual, na conhecida formulação de HEGEL, «o que é
outro lado, porém, a afronta à lei que prescreve a irrenunciabilidade há-de implicar racional é real, o que é real é racional» (47). Se a realidade não passa de exteriorização
a «imoralidade» da conduta consentida e convertê-la, nessa medida, em delito de objectivada do espírito absoluto, também a história não passa de revelação do
polícia (44). processo de desenvolvimento e auto-afirmação da Ideia. Como BERNER sintetiza, em
1.4. Na interpretação historiográfica de SINA (45), também o aparecimento termos em que é notório o eco da própria verbalização de HEGEL: «A história não
da escola hegeliana nos anos quarenta e cinquenta terá contribuído para retardar a representa qualquer descoordenado e prosaico progressus in infinitum, mas antes o
afirmação do paradigma em tomo do conceito de bem jurídico. Foi, com efeito, processo de conformação da ideia eterna, avançando com toda a segurança e que
naquele período que um número significativo de penalistas - com destaque para apenas se reílecte em termos diferenciados em cada tempo e lugar» {48).
ABBEG, KôslLIN e HÃLSCHNER- procuraram desenvolver uma compreensão do É na linha deste monismo dialéctico que devem conceber-se quer a ideia de
crime assente nos Fundamentos da Filosofia do Direito de HEGEL (1821). Direito em si - como expressão da natureza ética do Homem em comunidade-
Tratava-se de pôr de pé uma construção do crime a partir dos princípios do quer as suas relações com o direito positivado. Queencon traa sua expressão suprema
idealismo hegeliano, desenvolvida sobretudo sob aquela tensão filosófico-especula- na hipostasiação da vontade geral objectivada na lei emanada do Estado. De
tiva que HEGEL imprimira à sua reflexão e, em geral, induzira no pensamento sublinhar que a vontade geral não se identifica nem confunde com a vontade
germânico. E que, por isso mesmo- é aqui que, no essencial, radica o argumento colectiva, com a vontade «de todos». Ela emerge como uma vontade autonoma-
de SINA- não poderia deixar de divertir a teorização jurídico-penal do plano mente substancializada. Corresponde, assim, ao espírito objectivo, à «razão prática
positivista, que viria a oferecer o ambiente à consagração doutrinal do conceito de 1
bem jurídico. i
(

("} S!NA,ld., pág. 30.


cn) Um postulado que não pode deixar de se projcctar sobre o direito penal como um
(' 3 )Para maior desenvolvimento, HONJG, /d,, pág. 9 e segs., que seguimos de perto. programa de positivismo, neutralizando o potencial de crítica e o alcance trans.sistcmático
( 44 )cr. Homo, Ibidem, relacionados com a problemática do objecto do crime. Neste sentido, SmA, pág. 37 e scg.
(':I) Die Dogmengeschichte, pág. 28 e sega. (º) Apud HDNIG, Die Einwilligung, pág. 52/3,
f
58 Consentimento e Acordo em Direito Penal A Experiência Uist6rico-Doutrinal 59

do género humano», à ordenação ética «que envolve o Eu como uma segunda ' termos que explicitam o seu entendimento das coisas e o aproximam da construção
natureza» (Kos·n.1N) (49). assente no conceito de bem jurídico, acentua ainda HÃLSCHNER: «se o Direito só
Segundo HEGEL, é precisamente a violação desta vontade geral, a lesão do «ser atinge aquela expressão definitiva que o toma acessível à acção criminosa, na forma
da liberdade no seu sentido concreto, do direito como direito» (Das Dasein der de direitos e de bens jurídicos (rechtlichen Gütern), então o crime pressupõe em
Freiheit in seinem konkreten Sinne, das Recht ais Recht)('°) que constitui a essência todas as suas manifestações a danificação (Beschadigung) de um desses bens
do crime. Uma definição que viria a ser glosada de perto pela generalidade dos jurídicos» (").
penalistas hegelianos. Segundo KOSlLJN, por exemplo, «ao contrário do que sucede Talvez algo surpreendentemente, é, assim, a heterogeneidade dos referentes
com outras formas de ilícito, o que verdadeiramente define o crime é o facto de ele «materiais» do crime que acaba por avultar como uma das notas mais marcantes da
não atentar apenas contra uma determinada manifestação do direito, mas se dirigir doutrina penal inspirada pelo pensamento hegeliano. É certo que todos os penalistas
contra a sua essência» ("). Em sentido convergente, considera HÃLSCHNER que a hegeiiànos se mantêm fiéis ao dogma da vontade geral como referente último do
«forma e a configuração (Gestall) especial do direito que constitui o objecto conceito de crime, critério da sua essência e fundamento da sua compreensão
imediato do crime(...) representa apenas o meio em que se revela aquele conteúdo unificada. Só que a vontade geral se foi convertendo cada vez mais numa dimensão
de vontade que se dirige contra o direito em si» (5:). transcendental da experiência criminal que, na sua fenomenologia, apela preferen-
A pàr deste momento substancial e essencial,.os penalistas hegelianos subli- temente para outras realidades. Acresce que os penalistas hegelianos não deixam
nham invariavelmente um momento complementar e «fenomenológico,,: o momen- igualmente de insistir na Lcscdequea vontade geral, enquanto tal eem si mesma, está
to da concretização, especialização e individualização do Direito, em que este se por definição fora do alcance do próprio crime.
revela e se oferece como objecto idóneo da lesão criminal. Mas as águas já começam São realidades de outra índole que, embora detendo nà plano gnoseológico o
a apartar-se quando se trata de dar resposta à questão da natureza normativa e da e~tatulo de meros sinais ou mostraçõcs da vontade geral, na experiência real
estrutura ontológica destas formas específicas de revelação. A este propósito, fala emergem como os autênticos objectos do crime. Isto com destaque para realidades
KOSlLJN de um «direito especial», cm termos muito próximos do direito subjcctivo como: direitos subjectivos, bens que não constituem objecto de verdadeiros direitos
de FEUERBACH. Um direito que é, de resto, concebido como um produto da lei. E isto subjectivos, valores próprios dos códigos morais ou das confissões religiosas. Nesta
porquanto, segundo o autor, só a lei configura «a forma adequada» para a especifi- perspectiva, também a família ou as igrejas, por exemplo, valem como instituições
cação «da esfera do ser objectivo da moralidade (do direito)» (Die Sphare des necessárias à afirmação, subsistência e preservação do Estado. Também as lesões
objektiven Daseins der Si11lichkeit des Rechts) (53). Enquanto isto e cm sentido que as atingem relevam como atentados ao Estado e ao Direito (56). Para além disto,
idêntico, fala ABBEG de «direitos e relações jurídicas». os penalistas hegelianos vêem ainda nos diversos sistemas de acção ou instituições,
Já HÃLSCHNER, cuja obra se situa na fronteira do período do domínio da a· que a actividade administrativa do Estado dá origem, outros tantos objectos
influência hegeliana (54), recorre a um conjunto diversificado de expressões para possíveis do crime, outros tantos bens destinatários legítimos da prolecção penal.
traduzir a mesma realidade, ou seja: as especificações da vontade geral. Nos seus Em síntese, posta entre parênteses a transcendental vontade geral, a doutrina do
textos, onde é já visível a influência do positivismo, é já igualmente corrente a objecto do crime dos penalistas hegelianos propendc já para aquele «carácter
expressão bens jurídicos (rechtliche Güter). Isto a par de outms como: «direitos e tumultuário» com que LISZT haveria de estigmatizar criticamente a doutrina de
bens jurídicos», «bens e instituições éticas e jurídicas» (sillliche und 1ec/uliche BINDING.
Güter und fnstitutionen) ou ainda «dirciJos, instituições jurídicas e poderes momis Por outro lado, as reflexões destes autores consumam a ruptura com as
reconhecidos e protegidos pela lei com base na justificação da sua essência». Em estruturas da intcrsubjectividadc, antes privilegiadas na definição do crime. E
orientam-se, em vez disso, para o mundo exJcrior, para o universo das revelações do
Espírito ou da Ideia. Ideia que, subjectivada ao mesmo tempo no Estado-legislador,
conta com a maior plasticidade na conversão daqueles sinais em objectos do crime.
(") !d., pág. õ6. Isto porquanto não se vê confrontada com as resistências de uma qualquerverdadeira
(60) Apud Sl~A, Die Dogmengcschichtc, pág. 29.
(") !d., pág. 3 !. «natureza das coisas». Uma consideração reforçada pelo postulado dialéctico: «o
(") !d., pág. 32.
(") Ibidem.
(M) Dentre a sua bibliografia, merecem destaque: Geschichtc dcs Brandenburgisch-
-Preussischen Strafrechts, 1855; Syslem dcs Preussischen Strafrcchts, ErsL. Teil, 1858;
Zweitcr Tci1, 1868; "'Dic Lchre vom Unrccht und scimm verschicdcncn Formcn», GS 1869 1 ( 4tl) Apud SINA, Dic Dogmengeschichte, pág. 34.
pág. 11 e scgs.; Das gemeine deutsche Slrafrecht, 1881. (M) Cf. u.g., SEHNEH, Neues Archiu des Krimina.lrechts 1849, pág. 463.
F
60 Consentimento e Acordo em Direito Penal A Experiência Hist6rico-Doutrinal 61

que é racional é real...». Que, logo em sede epis1emológica e gnoseológica, veda o ' Acresce que es1a não será a última manifesiação duma concepção subjectivista
acesso a uma outra racionalidade-realidade, susccplível de ser erigida em matriz de e personalista do objccto do crime. Ela voltará a encontrar eco mesmo entre as mais
um sislema alternativo de direito (positivo). O que equivale ao reforço da referência recentes teorizações- v.g., a de MARX ('°) - relativas ao bem jurídico. O que, de
sislémico-social na.definição dos objectos da tutela penal. resto, está longe de constituir fenómeno isolado na história doutrinal do objecto do
Tudo, em conclusão, parece reforçar o acerto do juízo que começámos por crime, em geral, e do bem jurídico, em particular. Que, longe de obedecer a um
sugerir: mesmo a coberto do sacrifício ao mais extremado e especulativo idealismo, processo evolutivo linear, marcado por eventos irreversíveis, segue antes um curso
os penalistas hegelianos acabaram por se constituir em agentes de transformações em espiral. Ao longo do qual, tópicos que fizeram escola numa época dada acabam,
doutrinais que representam outros tantos contributos para a emergência e conforma- não raro, por voltar a emergir em contextos e horizontes histórico-culturalmente
ção do paradigma já antecipado na teorização de BIRNBAUM. O que fica exposto não renovados.
poderia, naturalmente, deixar de ter reflexos no entendimento - no âmbito e na 1.6. Apesar de todos os precursores e de todos os sinais da respectiva pré-
estrutura- da figura do consentimento. Isto apesar de a doutrina de obediência -história, só a partir da década de setenta é possível,já o vimos, referenciar o que com
hegeliana não ter votado à matéria atenção particularmente cuidada. De um modo alguma propriedade se pode designar por história doutrinal e político-criminal do
geral, estes autores-propcndem para a aceitação mais ou menos passiva do modelo bem jurídico.
herdado do jusraciónalismo e do iluminismo, assente na contraposição entre direitos Foi em 1871 e 1872 que tiveram lugar, respectivamente, a publicação do
disponíveis ou renunciáveis e indisponíveis ou irrenunciáveis (57). O que equivale a Código Penal do Império (a primeira codificação germânica unificada depois da
afirmar que, cm geral, os penalistas hegelianos não assumem explicitamente- nem Carolina) e o aparecimento do primeiro volume de Die Normen de BINDING.
as projectam numa doutrina própria do consentimento - as implicações do ethos Aparentemente excêntricos entre si, no que àsua significatividade histórica respeita,
transpersonalista e da acentuação da referência sistémico-social para que se orienta
ambos os eventos viriam a revelar-se intimamente ligados à história do bem jurídico
a sua compreensão do crime. E de que seria de esperar a assunção consequente da
ideia de que «a amplitude dessa eficácia (do consentimento) só pode ser estabelecida e determinantes, cada um a seu modo, para a respectiva afirmação: já como conceito
cm face do Espírito objcctivo da época, exteriori,.ado tanto no direito positivo como nuclear do sistema dogmático-penal; já como momento privilegiado do novo
nas instituições duma dada sociedade» ("). Tal ideia não é, porém, completamente discurso político-criminal (").
alheia à literatura hegeliana. Ela aflora expressamente nas suas manifestações mais Uma noIa avulta na caracterização deste período histórico de afirmação do bem
tardias, nomeadamente nos últimos escritos de HÃLSCHNER, em que é já notória a jurídico: o triunfo generalizado do positivismo. Tanto no que respeita aos seus
prevalência do bem jurídico, face aos conceitos alternativos de objecto do crime. enunciados e cânones metodológicos, como no que toca à ideologia geral de
Segundo este autor, devem valer como limites à eficácia do consentimento os casos interpretação e valoração do mundo e da vida. Por um lado e na impressiva
cm que o objecto do delito configura uma determinação essencial da personalidade formulação de ERICH KAUFMANN, a apoteose especulativa do período anterior, a
humana (Wesensbestimmtheit der menschlichen Persiinlichkeit) ("). culminar no pensamento hegeliano, deixara o espírito alemão esgotado e «cansado
1.5. Procurámos pôr em evidência alguns dos factores que terão contraria- de morte para a metafísica» (62). Por outro lado, assistia-se ao alas1ramento im-
do ou de algum modo moderado o triunfo da compreensão do crime assente rio parável da mentalidade e do ethos do cientismo e ao reforço dos seus créditos, ao
conceito de bem jurídico. Convirá ainda acautelar que, mesmo depois de assegurada ritmo dos sucessos sem precedentes das ciências exacias e naturais.
a sua consagração definitiva, mercê dos contributos de IHERING, BINDING e Liszr, Enquanto isto, do lado do direito e mais precisamente do direito penal, o
não se assistiu ao emudecimento, sem mais, das conSiruções alternativas e das cor- i1 contacto com as novas codificações induzia uma nova experiência do universo
respondentes controvérsias. Pelo contrário, mesmo num período sobreposto jáao fim jurídico. Que, como AMELUNG acentua, «pouco espaço deixava livre para a especu-
do século XIX e ao dealbar do século XX, e pelas vozes de autores como ORTMAi'<N, lação moralista e filosófica» (63). Era, noutros termos, uma experiência de descos-
HERTZ, KESSLER, PFERSD0RFFou KLEE, se ensaiaram novas tentativas de construção 1
1
mologização e, por isso, de desencantamento do direito (penal). Que se traduzia no
subjectivista do crime e do seu objecto. É o que, a seu tempo, procuraremos r
exemplificar com uma menção mais detida à obra de KESSLER que privilegia, como '
objccto do crime e da lesão, um conceito de interesse de conteúdo psicologista.
60
( ) MAIO.:, Zur Definition, passim.
''· ( 81 )Desenvolvidamente, SINA, Die Dogmengeschichte, pág. 39 e scgs.; AMELUNO,
Rechtsgüterschutz, pág, 53 e scgs.
(G 1 ) Cf. Ho~IO, Die Einwilligung, pág. 59; MoNCADA, BFDC 1942, pág. 258 e scgs.
("} Apud SINA, pág. 39.
(") MoNCADA, ld., pág. 261. (ISl) AMELUNG, Rechtsgüterschutz, pág. 58. Para uma melhor caracterização da positi•
(~ 9 ) Cf. HoNJG, Die Einwilligung, pág, 59.
vismo, E. CORREIA, Direito Criminal, I, pág, 199 e scgs.

STF - BlBL\C-:"'.:.CA
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62 Consentimento e Acordo cm Direito Penal A Experiência Hist6rico•Doutrinal 63

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desprendimento (e emancipação) não apenas cm relação às cons1ruçõcs cosmológicas aqui do que se trata éaindade protegeras condições vitais da sociedade, «constatadas
ou às ontologias do jusnaturalismo, mas também e de forma mais imediata, em do lado da legislação» ('").
relação aos seus sucedâneos devidos ao romantismo ou hegelianismo ("'). Significativas, em terceiro lugar, as implicações no plano dos referentes
O horizonte do pensamento jurídico (penal) deixa de ser, assim, povoado por materiais do objecto do crime. «Não sendo apenas as acções perturbadoras da
representações arquclípicas da realidade e da sociedade, a partir das quais seria sociedade a assumir significado jurídico mas também, em geral, todas as acções que
possível equacionar criticamente e responder ao problema dos fins do Estado. se projcctam no mundo exterior (Aussenwelt), não será, por isso, apenas o mundo
Segundo AMELUNG ("), uma das características da teoria positivista do Estado social que mediatiza a coexistência e cooperação dos homens, mas antes todo o
reside precisamente na perda de relevo - se não mesmo no silenciamento - do Aussenwelt que surgirá como campo da~ consequências juridicamente relevantes de
problema dos fins do Estado. O amor cita, a propósito, SEYDEL que Qustamcntc cm uma acção considerada como crime» ("). Em vez de se confinar às estruturas da
1872) escrevia: «Do ponto de vista jurídico, o Estado não tem qualquer fim, já que intcrsubjectividade e convivencialidade de que fundamentalmente releva o direito
ele conligura um fim cm si próprio; pelo que, e ainda do ponto de vista jurídico, não subjcctivo, o Güterkapital der Rechtsordnung (BINDING), vê a sua extensão consi-
se descortina nenhum obstáculo que possa impedir o Estado de estender o seu deravelmente alargada. Este passa a abranger realidades tão heterogéneas como
domínio a qualquer área, mesmo ao irracional»("). pessoas, coisas, estados, animais, afamília, as instituições político-administrativas,
Ora, acentua ainda AMELt;XG, este recuo da questão dos fins do Estado, e a sua a moral sexual, a religião, ele. ("). O próprio IHERING, mais propenso a privilegiar
subrogação pela representação do Estado como um fim-cm-si-mesmo, acabam por o· conceito de interesse, -estava longe de lhe atribuir aquele conteúdo subjcctivista
se revelar determinantes, tanto a nível da teoria do Estado como da doutrina do que posteriormente KEssLER lhe viria a adscrever. Segundo IHERING, o interesse
direito penal. corresponde à relação de valor que medeia entre o sujeito (individual ou colectivo)
Em primeiro lugar, eles sugerem uma compreensão do Estado de direito cm
termos puramente formais. Do que se trata é (apenas) de garantir o respeito pelas
formas e processos estabelecidos, preordenados, cm última instância, à salvaguarda
da segurança dos cidadãos. O que, aplicado ao direito penal, equivale a denegar à
intervenção criminalizadora do Estado qualquer legitimação material. Mas também, ( 81 ) rrVon Seiten derGesctzgebung Jwnstatierlcu, IHERING, Zweck, pág. 490/1. E isto, sem

rcílexa e complementarmente, qualquer limitação oriunda da mesma matriz. Pelo entrar cm linha de conta com a circunstância de IHERING ter expressàmentc projcctado
contrJ.rio, abrem-se as portas ao alargamento incontrolável das facas de criminaliza- determinadas realidades supra-individuais - Estado, Sociedade, Igreja, etc. - como enti-
dades subjectivas e pcrsonali:i;adas e, enquanto tais, homogeneizadas sob a lógica do fim como
ção, uma das marcas do direito penal de índole mais acentuadamente positivista. c;l~tcrminantc da acção e ..criador do direitou, Também elas surgem dotadas de interessc·s
Em segundo lugar, faz-se emergir o Estado ou a sociedade não só como vitais fundamentais, que não ·se esgotam na mera vontade da existência, antes aspiram
autónomos titulares de direitos e interesses ou portadores de bens jurídicos mas igualmente à realização e maximização do seu bem estar. Para elas valem, por isso, as
também, e sobretudo, como referentes subjectivos privilegiados, se não mesmo categorias da teorização de IHERI!\G, como fim, bem, interesse, originariamente invocadas para
i_ntçrprctar a postura da pessoa individual face ao direito. Por esta via, chega o autor à
exclusivos, do sentido da criminalização. É o que a referência mais detida ao doutrina do portador do bem jurídico, que lhe permite proceder a uma arrumação dos crimes,
pensamento de B!NDING permitirá explicitar. Mas o mesmo poderia adiantar-se a distinguindo entre os que se dirigem contra o indivíduo e os que contendem com entidades
propósito de uma concepção como a de IHERING, segundo o qual o direito penal tem supra-individuais, maximc o Estado, Mas também por esta via se adensa o perigo que
AMELUNO considera imanente a toda a visão positivista do direito penal. E que, segundo o
por fim proteger as «condições vitais da sociedade» (Lebensbedingungen der autor, poderá sintetizar-se no obnuvilamcnto do ideário individualista, que fizera o seu
Gesel/schaft), cuja lesão constitui precisamente o fundamento da ilicitude penal. advento com o jusracionalismo e o iluminismo, mas que começara a ceder o lugar a manifes-
Uma visão das coisas que, parecendo apontar para um conceito material de crime, tações mais ou menos vincadas do «cripta-absolutismo• de que fala BôeKE~'FORDE
não postula necessariamente uma sua compreensão pré-ou supra-positiva. Também (~echlsgüterschutz, pág. 59 e 60), Como, reportando-se à concepção de IHERINO, refere
AMELUNG: 11as condições uitais da :mciedade aparecem na doutrina do crime de IHERING, não
como condições da coexistência das pessoas que integram a sociedade, mas antes como
interesses de um hiper-sujeito, de um lcviathan, e dos organismos construídos à sua imagem
(, ..), Os problemas para cuja solução teleológica se orientam, segundo lHERlXG, as normas
penais não são os que derivam da convivência dos homens mas correspondem às exigências,
mesmo aos humores, dos quadros colcctivos personificados, todos querendo realizar o seu bem-
-estar subjectivo» (ob, cit., pág, 68).
Em sentido tendencialmente convergente, HONJG, Die Einwilligung, pág. 65 e scg.
( 84 )
(8&) AMELUNG, pág, 59.
AMEI.mm, /lechtsgüterschutz, pág. õ6 e segs.
{ 811 )
('ª) Cf. lHERINO, Zweck, pág. 484. IHERING rejeita o conceito de direito subjectivo uma vez
("l /d., pág. õ7. que ele não valeria, por exemplo, para os crimes contra a religião, a moral, etc,
f
64 Consentimento e Acordo em Direito Penal A Experiência llistórico-Doutrinal 6S

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de fins e um bem, isto é: uma coisa capaz de satisfazeruma necessidade ou de servir cida afirmação de ARMIN KAUFMANN, o mérito de ter outorgado ao bem jurídico «o
à realização de um fim. Simplesmente, IHERING, acaba por se inclinar claramente direito de cidadania na dogmática jurídico-penal(''). Para além disso e sobretudo,
para a hipostasiação d_o interesse, identificando-o tendencialmente com o próprio o que justifica nesta sede a atenção dispensada ao pensamento de BINDING é o seu
conceito de bem (70). E assim, pelo menos, com as condições de vida da sociedade carácter exemplar quanto a problemas como a noção de bem jurídico e o sentido da
que configuram, segundo o autor, o objecto da protecção da incriminação. E cujos danosidade social que a respectiva lesão significa, na perspectiva das suas implica-
pressupostos deverão encontrar-se no mundo exterior das coisas, isto é, no Aussenwelt ções em relação ao consentimento. É, noutros termos, mais a marca da sua
a partir do qual se procede à definição do Gürerwelt (71). singularidade no contexto de uma recolha de respostas típicas àqueles tópicos, do
1. 7. Só uma concepção do objecto do crime com a extensão e compreensão que a sua pretensa representatividade da pluralidade e diversidade de escolas ou
que fica sugerida se adequa ao direito penal próprio de um Estado de direito construções isoladas, com mais ou menos propriedade recondutíveis ao horizonte
meramente formal: que tem de assumir um cunho protectivo, mas que não está, à histórico-cultural do positivismo.
partida, pré-determinado por uma qualquer arquetipica e vinculativa representação De resto, só à custa de apressado reducionismo se poderia passar por cima das
do mundo, do homem e da sociedade. Acresce que só uma tal perspectiva responde profundas diferenças que medeiam, por exemplo, entre a doutrinaformal-normológica
às exigências metodológicas do horizonte filosófico então dominante e que, mesmo de BINDING e a doutrina de pendor naturalísrico-socio/ógico de LISZT, ambos em
para o mundo do direito, não deixariam de apontar, sem alternativa, o recurso a geral reconhecidos como os expoentes cimeiros do positivismo. Diferenças que não
objectos naturalisticamente referenciáveis. Nos termos de uma formulação de deixaram de ser assumidas porambos os autores e por eles discutidas em páginas de
AMELUNG que procura retratar, no essencial, a concepção positivista relativa ao polémica que chega a atingir níveis invulgares de veemência verbal
objecto do crime e ao correspondente sentido de danosidade social: «Como lesão de 2.1. Divergente se afigura, desde logo, a postura metodológica adaptada
um bem jurídico, a acção delitiva não configura um ataque a um sistema de relações pelos dois autores quanto à questão da autoridade e da legitimidade do legislador e
entre indivíduos, necessários à respectiva ·coexistência. Não desorganiza, noutros da lei penal para a definição do bem jurídico.
termos, a sociedade, apenas a atinge de modo mediato. Não é na sociedade, como Adaptando expressamente uma perspectiva intrassistemática e confessando-se
estrutura organizada que se devem procurar, em primeira linha, as consequências do adepto do mais estrito positivismo legal, BINDING comete exclusivamente à lei a
crime, mas antes no mundo exterior daqueles objectos considerados bens, quer pela competência para definir- e hoc sensu criar- o bem jurídico e identificar as
sociedade, vista no seu conjunto como um sujeito, quer pelos outros sujeitos nela formas de agressão que reclamam a intervenção do direito penal. Ao jurista,
integrados» (''). enquanto tal, está vedada a possibilidade de sugerir o que há-de valer como bem
jurídico e complementarmente como socialmente danoso. Ele tem de tomar por boa
2. Uma referência mais detida ao significado e função do bem jurídico na e definitiva a solução legalmente sancionada. É esta dependência face ao juízo do
obra de BINDING ajudará a uma melhor clarificação do modelo positivista que fica legislador que BINDING procura enfatizar num dos textos mais recorrentemente
sumariamente identificado. Uma referência que se justifica por caber a BINDING citados: «É bemjurídico tudo o que não constitui em si um direito, mas, apesar disso,
quer a paternidade do próprio termo bem jurídico (Rechtsgur) (''), quer, na conhe- tem, aos olhos do legislador, valor como condição de uma vida sã da comunidade
jurídica, em cuja manutenção íntegra e sem perturbações ela (a comunidade jurídica)
tem, segundo o seu juízo, interesse e cm cuja salvaguarda perante toda a lesão ou
perigo indesejado, o legislador se empenha através das normas» (''). E acrescenta,
( 7º) Cf. Homo, Die Einwilligung, pág. 66 e scgs.
(' 1) Zweck, pág. 490 e seg.
2
(" ) A?.IELUNG, Rechtsgüterschutz, pág. 72.
(7') A expressão bem, s6 ou acompanhada de qualificativos como rechtliche Gut ou bem retrocesso face a conceitos anteriormente utilizados, esses sim precisamente traduzíveis por
protegido, já vinha sendo, coma vimos, utilizada por autores como BIR.\.13AUM ou HÃLSCHNER. bem jurídico ou bem juridicamente protegido. A expressão Rechtsgut viria, contudo, a sofrer,
A expressão Rechtsgut terá sido, porém, cunhada e pela primeira vez utilizada por BINDIN'G, no ao longo da experiência doutrinal germânica, uma evolução semântica e político-criminal que
primeiro volume de Die Normen (1.• cd., 1872), onde pode ler-se: «As probições da produção a emanciparia dos limites que lhe foram consignados pelos primeiros textos de BUIDING, E que
causal de um resultado (Verursachungsuerbote) só podem explicar-se pelo facto de o estado a poria em consonância com as expressões e conceitos anteriores. Graduações conceituais e
produzido pela acção proibida contrariar os interesses do direito, enquanto o estado prcc,cis- semânticas a que a expressão portuguesa bem jurídico - por que igualmente se traduzem
tcnte à acção correspondia àqueles interesses. Todos os estados que não podem sofrer Rechtsgut e rechtliche Gut - não é dircctamentc sensível.
alterações assumem um valor para o.direito: podem, por isso, designar-se Rechtsgütern (Ob. C'') KAUFMANN, Lebendiges, pág. 9. Para uma rcfc~ncia mais aturada ao contributo de
cit., pág. 189). Como facilmente se intui, a expressão- que se adequa à obra de BINDL~G em BINDING para a doutrina do bem jurídico, AMELUNG, Rechtsguterschutz, pág. 73 e segs.
que o bem jurídico figura, em rigor, como um bem-do-direito - representa um certo ( 111) BINDING, Die Normcn, I, pág. 63/4.

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66 Consentimento e Acordo em Direito Penal A Experiência Hist6rico-Doutrinal 67

em tennos igualmente esclarecedores da fidelidade ao dogma positivista: «Na causa do homem» (82). Compreende-se, deste modo, que aos olhos de L!SZT, o
criação de bens jurídicos e no estabelecimento das correspondentes nonnas de tutela, conceito de bem jurídico não apareça como uma mera categoria da dogmática penal,
a fonte do direito não conhece outros limites para além dos decorrentes da lógica e que esgota a sua valência e fecundidade teórica no contexto duma «doutrina geral do
das suas próprias considemções. O direito positivo não.pode reconhecer como direito penal». Ele aparece, antes, como um «conceito de fronteira da abstractivi-
susceptível de lesão o que não pode ser lesado nem destruído, não podendo zante lógica jurídica» com uma relevância que se estende a outras sedes, nomeada-
igualmente produzir um nexo de causalidade onde ele não existe» {76). mente à política criminal ('3).
A complexidade que ao jurista cabe reduzir não tem aqui n;nhuma dimensão 2.2. Este afastamento, a nível metodológico e político-criminal, há-de
trans-sistemática nem comporta qualquer potencial de crítica. E certo, reconhece projectar-se noutras linhas de clivagem e, mesmo, de afrontamento. Duas merecem
BINDING, «que da imposição legal não se deduz que a valoração do legislador tenha uma menção. _
sido efectivamente correcta (...). Simplesmente, quem pode traçar com segurança a A primeira prende-se com as relações que, segundo as doutrinas em confronto,
fronteira entre o que é juridicamente razoável e não razoável'/» (!'). Ao jurista «só medeiam entre a norma e o bem jurídico. Ela é, segundo BINDING, uma relação de
restará, assim, a resignação (...). Por detrás da proibição e da imposição é a mais congruência absoluta: fundamento e medida da existência do bem jurídico, a nonna
opaca das neblinas que se depara a todo aquele que pretende encontrar a antijuridi- consome sem resíduos a valência jurídica e mesmo político-criminal deste último.
cidade» (''). E ainda: «o jurista humilha indignamente o direito quando considera Noutros termos, a norma constitui a única e definitiva fonte de revelação do bem
que a sua existência carece de outra justificação para além da que logra a vontade jurídico. Já para L!SZT, o mais frequente será uma relação de incongruência e de
geral de regulamentação da vida comunitária, assente no reconhecimento livre da tensão. Uma vez que os interesses a proteger penalmente e susceptíveis de ser
respectiva necessidade» (''). atingidos pelo crime existem antes e independentemente da lei, também o conteúdo
A partir duma postura político-criminal antitética - porquanto tendencial- e a dimensão da danosidade social ter-ão de aferir-se à margem do direito positivo.
mente trans-sistemática e crítica - vê-se LISZTcompelido a uma via metodológica LISZTvê-se, deste modo, confrontado com a distinção, que não tem lugar na doutrina
divergente, orientada, em primeira linha, para a realidade sociológica, para a vida de. BINDING, entre ilicitude formal e iliciwde material. Duas realidades não só
real dos homens e correspondentes expressões de danosidade. É a realidade social conceitualmente distintas, mas também normalmente desfasadas na respectiva
que cria os interesses vitais do homem ou da colectividade, que a ordem jurídica expressão quantitativa. É que, sublinha LISZT, o «conteúdo material antissocial do
reconhece e protege como bens jurídicos. Que não configuram , ao contrário do que ilícito é independente da sua correcta valoração por parte do legislador. A nonna
BINDING sustenta, bens-do-direito, mas antes bens do homem ou da sociedade. jurídica encontra-o, não o cria» (84).
Central na concepção de LISZTé, assim, a equiparação do conceito de bem jurídico A segunda tem a ver com a classificação dos bens jurídicos, segundo o critério
ao de interesse (vital, do homem ou da colectividade) ("): bens jurídicos são da sua relevância sistémico-social. BINDINGpropende para o tratamento homogenei-
interesses vitais, relações da vida, interesses juridicamente protegidos (81 ). O que zado de todos os bens jurídicos. Diferentemente, LISZT pronuncia-se por uma
fundamentalmente está em causa, na construção de LISZT é a problematização da resposta diferenciada.
própria legitimidade da norma penal. Uma questão cuja resposta só poderá, segundo A partir do postulado de que o direito positivo constitui a matriz e a sede de
o autor, encontrar-se a partir da dimensão teleológica da norma, do seu fim, isto é, revelação do bem jurídico, BINDING é levado a atribuir um relevo decisivo ao juízo
v
numa sede exterior à própria nonna. Uma resposta que, para além disso, terá de estar do legislador na conformação dos bens jurídicos. E a considerar que o legislador só
sempre em consonância com o postulado segundo o qual «todo ·o direito existe por há-de proteger como bens jurídicos o que se revelar necessário à comunidade que
representa. Na formulação do autor: «Os bens assumem todos um valor social
(sozial-Wert). A sua lesão terá de obedecer a uma ponderação, não apenas deste ou
('') Id., pág. 340.
daquele, mas de toda a comunidade viva. Ésó, por isso, que eles gozam de uma tutela
Die Normen, II, pág. 156.
(' 1 ) social (sozial-Schutz). Nada, pois, mais errado do que introduzir aqui uma perspec-
('') Id., pág. 160/1. tiva individualista e pretender traçar uma linha divisória rígida entre os bens do
(") ld., pág. 369. indivíduo, por um lado, e os da sociedade edo Estado, por outro. A eficácia corrosiva
(ªº) Cf. ZSlW 1888, pág, 134 e, sobretudo, pág, 141 e scgs.
(ª1) ...A pretender cstabclccCr-scuma distinção- sublinha LISZT, num esforço de maior
clarificação conceituai e terminológica-talvez se pudcssq afirmar: interesse é o valor que a
ocorrência de uma determinada modificação tem para o respectivo titular; bem, pela contrário, (") Ibidem.
é aquilo para que tal modificação (ou não•modificação) se reveste de algum valor». Jd., (") LISZT, ZSt\V 1886, pág. 672.
pág. 141. . (") LISZT, Lehrbuch, 14115 cd. (1905), pág.140.
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68 Consentimento e Acordo em Direito Penal A Experiência Hist6rico•Doutrinal 69

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da lesão do bem vai muito além da esfera jurídica do indivíduo. O bem jurídico é um As definições de bem jurídico propostas por Liszr- com predomínio para
conceito da ciência do direito público e não do direito privado.Mesmo quando o bem expressões como: «interesse juridicamente protegido» ('1) ou «um bem do homem,
constitui objecto de um direito privado, pode a norma impor a sua integridade reconhecido e protegido pelo direito» (ein durch das Recht anerkanntes und
mesmo em relação ao próprio titulan> (85). Na mesma linha de considerações e a geschütztes Gut des Mensch) (88) -denunciam outro percurso metodológico e
partir do princípio de que o direito é uma ordenação da convivência social, acentua horizonte político-criminal. Em vez de perspectivar os bens juridicos a partir do
BINDtNG que o direito «só considera as pessoas, coisas e objectos enquanto partes da direito, LiSZTencara-os a partir da própria vida. Que não só cria os bens ou interesses
vida da comunidade jurídica. Tudo aquilo a que adscreve um valor jurídico só o tem como também lhes imprime estruturas e funções que não podem deixar de ser
levadas à interpretação e aplicação da norma, como tópicos hermenêuticos decisi-
para o todo. O bemjurídico é sempre bem jurídico da totalidade, por mais individual
vos. Diferentemente do que sucede com BINDING, o discurso de L1szr confronta o
que ele possa aparentemente ser» (''). direito penal com a complexidade da própria vida e das coisas, processos, institui-
ções, etc. que a integram e nela se movimentam. Assim, L1szrnão faz a aproximação
do espectro fenomenológico dos bens ou interesses com uma armadura conceituai
(oferecida pelo direito), a operar como mediadora de unificação ou homogeneização
( 811 ) Bn•mnm,DieNonnen., I, pág. 340/1.A idcia(da legitimidade) de impora integridade
dos bens jurídicos, se., a proibição da autolcsã.o, é recorrente cm Bnmnm. Neste sentido, cultural. Pelo contrário, ele vê-se directamente confrontado com a excentricidade,
desenvolvidamente, ob. cit., pág, 344 e scgs. dispersão e heterogeneidade dos bens ou interesses ("). Mesmo depois da interven-
( 16) /d., pág. 358. Mesmo reduzido à sua expressão mais formal, o ideário liberal, que ção da lei penal, não será de esperar a total redução da heterogeneidade das
apesar de tudo domina as reflexões de Bll\1>ING, terá valido como antídoto contra os perigos expressões da realidade, agora convertidas em bens ou interesses protegidos pelo
que, à partida, parcciamcompromctcr a sua doutrina.Perigos que vinham, de resto, incubados
nos dois aspectos mais salientes da teorização bindinguiana: o extremado positiuismo e o
direito. É o que Liszr procura pôr em relevo ao apontar para a «diversidade de
carácter supra-indiuidual assinalado a todos os bens jurídicos. O primeiro, porquanto permi- formas» dos bens jurídicos ('º). É que, enquanto BINDING parecia acreditar na
tia ao legislador penal actuar a descoberto de toda a legitimação material e, por isso, à margem plasticidade das «coisas» do mundo e da vida nas mãos do direito, L1szr confiava
de qualquer lastro ou limitação ético-jurídica. O segundo, porque abria a porta a um direito mais na plasticidade reflexiva do direito para responder às exigências duma
penal vocacionado para sacrificar no altar de um Est.ado transpcrsonalista, holisticamcntc realidade múltipla e diferente. A par de bens jurídicos individuais, correspondentes
organizado cm tomo da absolutização dos seus próprios valores, programas e metas. Não
deverá, assim, imputar-se ao acaso a simpatia e a autoridade de qucBnmI!-iG viria a gozar entre
a interesses pessoais, haverá bens jurídicos supra-individuais, correspondentes a
os defensores- com destaque para SCHWINGE cZIMMERL-do conceito e do princípio do bem interesses desta índole. Em conformidade - e continuando a distanciar-se de
jurídico no contexto de um direito penal de obediência mais ou menos ortodoxa aos cânones do BINDING e a seguir, nesta parte, l!IERING - sustentaLISZTa existência de portadores
nazismo. Conceito que procuraram defender, mantendo para o efeito uma controvérsia muito individuais, ao lado de portadores supra-individuais, entre os quais sobressai o
viva com os nomes cimeiros do ordinalismo concreto da escola de Kicl (DAHll e ScIIAFFSTEIN). Estado como portador por excelência dos interesses colectivos (' 1).
Recorde-se, cm síntese, que estes últimos autores denunciam o conceito de bcmjurídico como
depositário atávico do legado liberal e individualista, esconjurando-o como irreconciliável com
a nova ordem jurídica do nacional-socialismo. ScHAFFSTEIN, por exemplo, refere-se ao bem
jurídico como o «veneno da ideologia liberal» que se instila «nos interstícios e fendas do direito
penal». Contra isto proclamam ScIIWINGE e ZtMMERL: «é precisamente o contrário que é
verdade!• (SCIIWINGEIZJMMERL, Wesensschau, pág. 64). Invocam, para o efeito, as metamorfo- vida às vicissitudes da doutrina do bem jurídico durante a experiência nacional,sócialistn, cf.
ses sofridas pelo conceito de bem jurídico desde o seu aparecimento, cm pleno período de AM.ELUNG, /lcchL,;gütcrschutz, pág. 216 e scgs.; SINA, Dic Dogmengeschichte, pág. 70 e scgs,;
afirmação do liberalismo. «Ao ordenar ao juiz a necessidade de, quer na interpretação, quer na MARXEN,Der Kampf, pág. 57 e segs.; A."°GIONI, Contenuto pág. 42 e scgs.:BARA'ITA,Positiuis-
aplicação do direito, ter sempre os olhos abertos para o sentido e fim dos singulares tipos mo, pág. 72 e scgs.
penais, das leis pertinentes e da ordem jurídica cm geral, a moderna doutrina do bcmjurídico <"> cr. zs1w 1888, pág. 151
orienta-se para a conformação do direito segundo o pensamento da comunidade e para a (") LISZT, Lehrbuch, 14/15 ed., pág. 65.
consonância da jurisprudência com o espírito do nacional-socialismo• (ob. loc. cit,). Do que se ( 119) O mesmo termo - Rechtsgut - utilizado por Illl\'DING e por LISZT esconde uma
trata, acrescentam ScHWINGE e ZL\U,IERL, «não é de abandonar o pensamento do bemjurídico, pronunciada dissonância semãntica1 se não mesmo uma indisfarçável ruptura metodol6gica e
cnqu_anto tal, no direito penal, mas antes e apenas de superar a atitude individualista, político-criminal. Como deixámos antecipado, só BI~'DING poderia, cm rigor, falar de
rcsponsá.vcl, além do mais, por ter imprimido ao principio do bcmjurídico no passado uma Rechtsgut, com o significado etimológico e doutrinal que este autor llic adscreve. E cuja
orientação errada» (ld). Para obviar à acusação de individualismo. os penalistas de Marburgo, autenticidade ÜETKER, por exemplo, se propôs salvaguardar optando explicitamente pela
do mesmo passo que denunciamo individualismo de autores como BIRNBAUM ou Ltszr, invocam expressão Güter des Rechts (ZStW 1897, pág. 508). Por seu turno, s6 o conceito de ..bem•
a autoridade dcBINDINo. Que terá já, antecipadamentc 1 «invalidado de forma irrespondível as ·protegiclo-pelo-direito.. , isto é, dcum bem que o éjá em si e de per si- e que do direito penal
suspeições de ScHAFFSTEIN•. E anotam, depois de citar precisamente os mesmos textos do espera apenas a protccção - se adequa verdadeiramente à doutrina de LISZT.
I vol., de Die Normen que recordamos no texto: ..Eis aqui afirmações que poderiam perfeita- ( 90) Sobre as uerschiedene Gestaltungen, LISZT, ZStW 1888, pág. 142 e scg.

mente ter sido retiradas de um manual do novo direito penal nacional-socialista: e é isto que ( 11) Sobre a problemática do portadar, AMELUNG, Rechtsgüterschutz, pág. 107 e scgs.;

SCHAFFSTEIN apoda de individualismo•. (Ob. cit,, pág. 65). Para uma referência mais desenvol- SINA, Die Dogmengeschichtc, pág. 57 e sega.
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70 Consentimento e Acordo cm Direito Penal A Experiência Hist6rico•Doutrinal 71

2.3. Apesar de tudo - refira-se ainda a propósito do confronto entre ' por isso, as «pessoa~, coisas e estados» com a significatividade, densidade e função
B!NDING e L!SZT- não deverá levar-se a exploração das divergências de molde a que o direito lhes adscreve e lhes prescreve. Mas esta diferença, nítida a nível
esquecerem-se os pontos de contacto subsistentes. conceituai, e seguramente não dcspicienda no plano pragmático ("), não impede
Comum, desde logo, e pese a diversidade de sentidos e de referentes, a que o resultado final, se. , o conceito de bem jurídico, espelhe a interpenetração dos
circunstância de ambos valerem como expoentes do positivismo no domínio das dois sistemas em confronto.
ciências penais. Daí que em ambos se encontre a mesma exaltação - quase a Também L!SZT. com efeito, acaba por definir o bem jurídico como o interesse
idolatria- dos factos: os factos lógico-normológicos num caso, e os factos juridicamente protegido. A ponto de o primado de princípio reconhecido à vertente
sociológico-naturalísticos no outro. E, reflexamente, a mesma recusa frontal duma sociológica ou naturalísticae, por essa via, à ilicitude material, devcrna prática e em
reflexão jurídica enquadrada por especulações metafísicas. Do mesmo passo que caso de conflito, ceder sempre o passo à ilicitude formal (''). Por sua vez, e apesar
B!NDING esconjura «todas as fantasias jusnaturalistas, os mais perigosos e eficazes de colocar a tónica numa estrutura normativa como é o direito, não deixa BINDING
inimigos da ciência jurídica» (92), proclamava L!SZT que a «ciência termina onde a de conceber o bem jurídico como uma realidade «objcctiva» (ARMIN KAUF-
metafísica começa» (93). MANN) ('') do mundo exterior que reveste a forma de «pessoas, coisas e estados»,
Acresce não ser líquido que as inultrapassáveis divergências de atitude meto- privilegiando, para efeitos de tutela, as respectivas vertentes mais expostas e
dológica e _sobretudo de pathos político-criminal, se transmitam com a mesma vulneráveis. «O legislador - escreve BINDING - procura as condições fácticas
amplitude às categorizações e construções teórico-doutrinais. Pelo menos na parte duma vida comunitária sã, detendo-se o seu olhar muito mais atentamente nas
que aqui mais directamente nos concerne, isto é: pôr a descoberto um paradigma de pessoas, coisas e estados do que nos direitos. Para além disso, ele procura identificar
compreensão do objecto do crime (do bem jurídico) e da <lanosidade da respectiva naquelas condições o que cu poderia designar pelo seu lado exposto às intempéries
lesão, susceptivel de indicar uma aproximação à estrutura normativa do consentimento. (Wetterseite): aquela qualidade que chama e atrai a agressão juridicamente pertur-
Vistas as coisas a esta luz, não será arriscado tentar referenciar algumas linhas de badora. Está, assim, encontrado o objecto imediato da carência de tutela: é ele que
continuidade. É o que a linguagem e os conceitos próprios da teoria sistémico-social é selado como objccto da norma e a sua lesão como crime. É da perspectiva do
podem, ainda aqui e à custa de alguma simplificação, ajudar a esclarecer. legislador e da sua experiência que depende o reconhecimento, o mais completo
Tanto BINDING como L!SZT se propõem lograr um conceito de bem jurídico possível, deste objecto; e é da intensidade do seu olhar que depende a sua precisa
apelando, de forma mais ou menos consciente, para a interpenetração de dois 1 delimitação» ("'°).
sistemas: por um lado, o sistema do direito (penal e positivo); e, por outro lado, o Verifica-se, pois, que o privilégio outorgado à forma jurídica- neste como
sistema do que L!SZTdcsigna, v.g., por«condições vitais da comunidade organizada 1 que hilemorfismo que é a doutrina do bem jurídico de BINDING - não determina a
cm estado» (Lebensbedingungen der staatlichen Gemeindschaft) (''), e B!NDINGpor 1 redução da pluralidade nem a homogeneização dos respectivos referentes materiais.
«condições fácticas de uma vida comunitária sã» (tatsãchlichen Bedingungen Também aqui, os bens jurídicos aparecem como objectos do mundo exterior, numa
gesunden Gemeinlebens) (''). Fazem-no, é certo, de perspectivas e com tónicas plétora de formas que cm boa medida faz juz à qualificação de «tumulruarische
diferenciadas: para L!SZTsão as condições da vida que aparecem no primeiro plano Charaklen, com que L!SZT estigmatiza o Güterkapita/ der Rechtsordnung de
e como sistema de referência, figurando o Direito como ambiente; para B!NDl1'G é, BINDING ('°'). Esta qualificação tem, no contexto, uma intencionalidade crítica. Só
de certo modo, a inversa que se dá. Daí que L!SZThaja de concluir que bens jurídicos que, ao formulá-la, LISZT ter-.í esquecido que a «desordem» censurada a BINDING
são os interesses- com a significatividade, a densidade e a função com que a vida
os faz emergir - se e na medida do respectivo reconhecimento legal, isto é, da
protecção que lhes é juridicamente assegurada. Já BINDING «tem de partir do
postulado de que o legislador quer seguramente proibir a acção danosa, só que não
pode prescrever ao legislador o q uc é socialmente danoso» (''). Bensjurídicos ser-ao,
(") Não está excluída a hipótese de o mesmo bem jurldico revelar uma extensão ou
compreensão diferenciada - e, por isso, oferecer superfícies idóneas de lesão não neces-
sáriamente sobrcponívcis- consoante a respectiva abordagem se faça a partir da norma
(") BINDING, Dic Schuld, pág. 2. CB1'"D1NG) ou da vida (LISZT).
(") L!SZT, ZSt\V 1883, pág. 8. (") L!sZT, Lehrbuch, 14/ló cd., pág. 140.
(") ZStW 1883, pág. 19. ( ) Lebendiges, pág. 69.
99

( ~) BIJ,1JIN'G, Dic Normcn, I vol., pág. 339. ( 100) Die Normen, I val., pág, 339/40.
9

( 1111) A.\IELUN'G, Rechtsgüterschutz, pág. 77. ("') L!SZT, ZSt\V 1886, pág. 676,
72 Consentimento e Acordo cm Direito Penal A Experiência Hist6rico-Doutrinal 73

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acaba por prestar homenagem à pluralidade e diversidade das coisas da vida E revela são do deli_to, isto é, para a da danosidade social que tem o bem jurídico como suporte
uma das linhas de convergência insuspeitada, que o empenho na controvérsia nem material. E o legislador que sclccciona no mundo das «pessoas, coisas e objectos»
sempre deixou vir à superfíce (lDl). aqueles que hão-de assumir a forma e o papel e beneficiar do estatuto de bem
jurídico. E fá-lo sem outros limites que os impostos pelas leis da lógica ou
3. O enquadramento histórico permitiu-nos já pôr a descoberto alguns dos decorrentes dos seus próprios, e insindicávcis, critérios. Isto explica que o bem
tópicos mais salientes da versão que BINDING imprimiu ao paradigma que se vinha jurídico- todo o bem jurídico - mantenha uma permanente e estreita vinculação
definindo a partir de BIRNBAUM, assente no conceito e princípio do bem jurídico. É ao legislador. Como explica as relevantes implicações no plano da respectiva lesão.
esta versão que agora caberá referenciar de forma mais aproximada. É que, já o vimos, segundo o autor, o efeito corrosivo da lesão do bem jurídico, vai
3.1. Numa primeira formulação-síntese, um dado se nos afigura irrecusável: muito para além da esfera jurídica do indivíduo ('°'). O que, pode antecipar-se,
todo o envolvimento-toda a «casca», na expressão do próprio autor- normati- prejudica, ou de algum modo sugere, uma pré-compreensão normativa do consenti-
vista adiantado por BINDING para a compreensão do ilícito penal, não prejudica a mento, isto é: aponta para uma construção do consentimento atenta ao significado
concepção de um direito penal orientado para a preservação de bens jurídicos. Estes autónomo da referência sistémico-social presente cm cada sacrifício concreto de um
são, por um lado, representados como realidades do mundo exterior: tanto em bem jurídico.
relação ao universo normativo do direito como em relação àestruturada intcrsubjec- Naturalmente, só no termo de aturada consideração analítica da obra de
tividade. Daí que a sua fenomenologia se caracterize pela pluralidade e heterogenei- BIND!NG - sobretudo da original e grandiosa teoria das normas- atenta às suas
dade de formas materiais. mais determinantes implicações sistemáticas, doutrinais e pragmáticas, se poderia
No conceito de bem jurídico de BINDING avulta, por outro lado, a subjectiviza- lograr uma representação corrccta do conteúdo e da função do bem jurídico no
ção por parte do legislador. Que corresponde a uma acentuação sem precendentes- contexto do respectivo sistema. Na impossibilidade de refazer aqui esse percurso,
mesmo à apoteose -da referência sistémico-social do bemjurídico. Uma referên- recordaremos, contudo, apressadamente algumas das suas premissas doutrinais e
cia que, importa acentuá-lo, transcende a subjcctivização conatural àquela dimensão metodológicas. Fá-lo-emos, remetendo-nos no essencial para a interpretação legada
do delito segundo a qual este configura sempre a violação de um direito subjectivo por ARMIN KAUFMANN no já igualmente clássico Lebendiges undTotes in Bindings
de obediência encabeçado pelo Estado ('º'). Pois, vale também para a outra dimen- Normentheorie (1954).
3.2. Nuclear na doutrina de BINDING éa distinção entre alei penal e as «leis»
ou proposições jurídicas que o autor designa por normas. As normas são, de forma
mais ou menos consciente, o referente dos conceitos de violação ou transgressão que
a linguagem corrente e, mesmo, a científica reportam normalmente à própria lei
(lll2) A sobrevalorização da dissonância cm prejuízo das vias de convergência foi fre- penal. Esta não é, pura e simplesmente, susceptível de violação e transgressão pela
quente na polómica entre BI!\1lING e LISZT, como o seria aliás nas discussões que, ao mesma infracção criminal: o crime configura pelo contrário, o preenchimento da sua
tempo, opuseram cada um deles a autores como KEssLER, Nem sempre, por isso, os juízos de
apreciação recíproca se terão mantido acima do preconceito. Para a16m disso, e do mesma
fattispecie. Para se poder falar com propriedade de violação, é preciso referenciar
passo que formula a sua tese - de que o legislador penal tem, e sempre teve, coma fim primeiro as proposições normativas que prescrevem ao destinatário, impondo ou
preservar as oondiçõcs de vida dos homens cm comunidade -BINDING acaba igualmente por proibindo, um modelo de conduta. Tal é, segundo BINDING, o sentido e o alcance da
rejeitar definições de sentido idêntico formuladas por autores como IHEIUNG, H. MEYER. norma; tal é, outrossim e em síntese, a via epistemológica proposta pelo autor para
HENKE e outros, estigmatizando-as como «concepções apenas próprias de sociólogos e inade-
quadas para juristas» (Die Nonnen, 1 vol., pág. 339, n. 1). E isto apenas porque tais
demonstrar a existência e a necessidade das normas. A norma é a «lei que o
afirmações aparecem cm contextos que lhes emprestam conotações metodológicas, episte- delinquente transgride e que precede conceitualmente e- por via de regra, se bem
mológicas e político-criminais divergentes. Elas denotBmt noutros termos, a postura de uma que não necessariamente- temporalmente a lei que prescreve a sua condena-
ciência jurídico-penal aberta não só à dimensão imanente ao sistema, mas também a uma ção» ('º'). Desta representação da norma, como «não ditada por qualquer outra
dimensão trans-sistemática e crítica. Isto é, uma doutrina penal que, para além das sombras
da caverna em que o legislador a terá encerrado, pretende ter igualmente acesso ao mundo consideração que não seja a de evitar a acção descrita», deduz BINDING a respectiva
exterior e «real« dos arquétipos que o legislador reservaria para si. E nesse mesmo espaço e a forma e conteúdo. Numa formulação do autor: «a sua forma é ade uma ordem; o seu
esse mesmo nível problematizar o sentido e a correcção das opções do legislador. Resumida-
mente, não deixa de assistir alguma razão a Hm.,10 quando (Die Einwilligung, pág. 62 e scgs.)
inscreve as doutrinas de LtSZT e BINDL"G sob a rubrica comum do «positivismo sociológico»,
Nessa medida cabendo temperar a crítica de AMELUNG, sobre o carácter «erróneo» da arruma-
ção de IIONIG. (Rechtsgüterschutz, pág, 76). ('") ld., pág. 341.
( 101) Die Normen, I vol., pág. 97,299 e 365. ("') ld., pág. 4.
f
74 Consentimento e Acordo cm Direito Penal A Experiência Histórico-Doutrinal 75

conteúdo, uma proibição ou imposição, uma acção que deve ser levada a cabo ou ' objcctivo fundamental, a «preservação do domínio do direito, obrigando o criminoso
omitida» (106). a dobrar-se sob a forma coactiva da ordem jurídica» ("').
Uma correcta aproximação do pensamento de BINDING postula, desde logo, a É cm termos homólogos que deve entender-se a contraposição entre delito e
clarificação das relações que medeiam entre a norma e a lei penal. Nos casos mais crime. O delito constitui a violação da norma, a «acção antinormativa culposa,
relevantes, a norma obter-se-á «mediante transformação da primeira parte das punível ou não» ou ainda «a desobediência culposa ao direito público de submissão».
proposições jurídico-penais numa ordem: não realizar a acção descrita ou, pelo Por seu turno, «chama-se crime ao delito na medida cm que é penalmente sancio-
contrário, agir como se determina» ('"'). Apesar de tudo-, e aqui reside o essen- nado» (114). Assim, nem todo o dclilo será naturalmente punível. Como não o
cial - a norma perfila-se como realidade «totalmente independente» da lei penal. serão - ou não o scrJo necessariamente nos mesmos termos - todas as manifes-
tações do chamado delito genérico (115).
Tanto na sua estrutura ôntica como nos seus fins, vicissitudes da sua tmjectória
3.3. Mesmo depois dé refcrcnciado o travejamento basilar da construção de
histórica ou ainda da sua extensão. Na verdade, formulada através da lei penal, a
BINDIXG, não deixarão de sobrar dúvidas atinentes ao estatuto dogmático do bem
norma não é formulada na mesma lei penal. Nem está, por isso, «necessariamente jurídico. Dúvidas que radicarão na~ incongruências e contradições a que o sistema
vinculada ao destino da lei penal» (1"). Daí que as duas não sejam sobrcponívcis na de BINDING não Lerá, apesar de tudo, logrado furtar-se. E a que não será alheia a
sua extensão, porquanto a norma detém uma extensão muito maior: pam além de o tensão - assumida pelo autor, mas cuja superação não foi consequentemente
respectivo sancionamento poder encontrar-se fora da lei penal, a verdade é que a empreendida - entre uma mais elaborada dimensão dogmática e uma mais
norma proíbe um espectro de acções que vão muito para além das que a lei sanciona imprecisa dimensão teleológica. Também esta última fica claramente assinalada na
com uma pena (v.g., a negligência ou a tentativa na generalidade das infracções). As obra de BIXDl:-/G, através de fórmulas como: «assegurar as condições fácticas duma
normas não devem, por isso, e sob pena de infidelidade ao pensamento de B!ND!NG, vid,a comunitária sã». Tal dá-se, porém, na área de penumbra- merfos acessível e
representar-se como referentes meramente conceituais, apenas necessários ao en- nunca sindicável-das motivações do legislador. No plano ·estritamente sis-
quadmmento teórico-doutrinal da experiência jurídica mediatizada pela lei penal. temático-dogmático é notório o primado do direito subjectivo de obediência cuja
Noutros termos, as normas não configuram meras categorias transcendentais inven- violação constitui, de algum modo, o objecto universal do crime.
tadas pam ordenar a fenomenologia jurídico-positiva que se mostra nas leis penais. Isto não deve, porém, induzir a subvalorização do relevo que BINDING quis,
Elas constituem verdadeiras e autónomas realidades jurídicas, dotadas de força apesar de tudo, reconhecer à dimensão teleológica das normas. Resumidamente e de
cogentc própria. As normas contêm, assinala B!NDING, «as ordens obrigatórias com acordo com a interpretação de KAUF:vlANN, «do ponto de vista do Estado, as normas
conteúdo jurídico» (109). são um meio para preservar os bens jurídicos de ataques futuros por parte de pessoas
Esta relação entre a norma e a lei penal reproduz-se em dois novos planos: nos -~responsáveis» (116). E o próprio BI~DING sublinha: «seria uma concepção inteira-
diferentes «tipos de direitos subjectivos» (110) a que dão origem; e na contraposição
entre delito (Delikt) e crime (Verbrechen).
A norma faz impcnder sobre o destinatário um «dever de obediência ou ("') ld., pág. 420.
submissão» (111 ), que tem como reverso um «direito subjectivo do soberano à ("') l!JS"Dl~O, Handbuch, pág. 499.
obediência» (112). Diferentemente, a lei penal faz emergir um direito subjectivo à (
115
) A expressão delito genérico compreende, na doutrina de BINDING, todos os delitos

coacção que resultada transformação do direito à submissão. É a violação do direito que infringem a mesma norma (Die Schuld, pág, 29). Em ordem a uma melhor compreensão
das coh;as, deve chamar.se ainda a atenção para a contraposição entre os chamados «clcmcn•
àsubmissão quedá origem ao novo direito subjectivo - direito penal subjectivo - tos do delito,. (Deliklsmcrkmale) - que o autor designa também por ..elementos da antinor•
estabelecido no direito penal objectivo. Dai que a pena pública só possa ter, como matividadc» (Normwidrigkeitsmerkmale) - e os ..elementos da punibilidade» (Strafbarkeits•
mcrkma/c). Para que se possa falar de crime será indispensável que os elementos da
punibilidade acresçam ou qualifiquem os elementos da antinonnatividade, que convertam o
delito - ou uma parcela dele («ein Deliktsausschnitt») - cm crime. São eles outrossim que
determinam o ..contclldo formei» específico de cada crime singular. O que fica dito tornará
mais óbvias afirmações de 8J~1)ING como: «Todos os crimes formados a partir do mesmo delito
("') ld., pág. 51. genérico, todos os homicídios, furtos ou ofensas corporais partilham os mesmos elementos da
("') !d., pág. 45. antinormatividade, apenas se distinguindo entre si, através dos elementos da punibilidade»
('") !d., pág. 85 e 156 e scgs. (Handbuch, pág. 510). Ou ainda: ..Para todas as violações da mesma norma s6 existe um tipo
cios) /d., pág. 4õ nota 19. penal objectivo de delito .. (Slrafrechtliche und slrafprozessuale, I, pág. 148). Para uma
( 110) B1~1JING, Handbuch, pág. VIII.
referência mais aturada à contraposição entre delito e crime, KAUFMANN,Lebendiges, pág. 30
( 111 ) Dic Normen, I vol., pág. 82,
e segs. e 196 e segs.
( 116) KAUFMANN,Lebendiges, pág. 11.
("') ld., pág. 97.
,--
76 Consentimento e Acordo em Direito Penal A Experiência Hist6rico.Doutriual 77

mente grotesca das proibições e imposições legais acreditar que elas são apenas ' 4. Um sistema doutrinal como o de BINDING- que, pelo menos de certo
ditadas para oferecer aos destinatários da lei exercícios de afirmação das suas ponto de vista, aparece como uma versão do paradigma do bem jurídico que desde
atitudes de lealdade ou deslealdade. O que sobretudo importa é manter afastadas as BIRNBAUM vinha ganhando contornos- teria de oferecer ou ao menos sugerir uma
desvantagens objectivamente grnves da ordem jurídica» (117). Acresce que o bem resposta ao problema da estrutura normativa do consentimento. É esse modelo
jurídico não releva apenas como mera motivação e, por isso, como mero ambiente normativo que procuraremos pôr a descoberto. Uma tarefa que empreenderemos
exterior à estrutura jurídica da norma. Para além disso, a definição do bem jurídico despertos para a eventualidade ou mesmo, pode adiantar-se, para a probabilidade de
configura a primeirn valoração que é pressuposto jurídico da norma ou, talvez as respostas explicitamente legadas se revelarem, - à luz da problemática actual e
mesmo, um momento do seu processo genético de produção e afirmação (118). das categorias disponíveis para o respectivo tratamento, - de inescapável equivo-
É o que uma referência apressada ao tratamento reservado por BINDING à cidade. Uma equivocidade q~e avulta de forma paradigmática na particular concep-
categoria exemplar dos chamados delitos de lesão ajudará a clarificar (119). Estes ção de BINDING em matéria de relações tipicidade-ilicitude (124) e que, à partida,
delitos apresentam segundo BINDING uma conformação (Gesta/t) complexa, tradu- compromete qualquer expectativa de comunicabilidade e de valência directas das
zida na fórmula expressiva: «debaixo da casca da desobediência esconde-se, como respectivas soluções no contexto da sistemática actual. Daí que uma resposta mais
miolo, a lesão de um bem jurídico» ("º). ou menos aproximada ao problema actual da estrutura normativa e do estatuto
O delito de lesão apresenta, assim, um duplo rosto: a par da desobediência que doutrinal do consentimento haja de procurar-se mais do que nas respostas expressa-
a acção culposa corporiza, esta infracção integra ainda «o efeito destrutivo e
mente subscritas pelo autor, nos enunciados metodológico-doutrinais que servem de
igualmente inapagável da acção desobediente sobre o mundo dos bens jurídicos» (121).
Em termos expressivos refere BINDING que, «das duas partes do momento do delito, premissas a tais respostas.
a desobediência atinge o direito de forma menos sensível do que a lesão de bens 4.1. Numa primeira leitura, tudo no pensamento de BINDINGpareceapontar
jurídicos. A obediência à norma valerá apenas como um meio para a preservação da para uma concepção do consentimento oposta à que antes havia sido sustentada por
integridade do bem jurídico: a lesão do bem jurídico frustra em concreto o fim que FEUERBACII ou à que,já no seu tempo, teria em KEsSLER o mais persistente defensor.
o direito prossegue com a norma; a desobediência configura apenas o meio Isto é, tudo parece apontar para uma perspectivação desta figura em termos
censurável para o efeito» (122). Esta acentuação do peso do bem jurídico parece a tendencialmente homólogos aos do moderno paradigma de GEERDS.
BINDING bastante para invalidar a acusação de formalismo com que vinha a ser, de Manifesto parece, desde logo, que no pensamento de BINDING o consentimento
vários lados, atingido. De resto, argumenta o autor, ninguém melhor do que ele terá releva duma conflitualidade mais ou menos latente entre duas ordens de exigências:
«de forma mais enérgica, relegado o momento da desobediência para trás do bem as exigências encabeçadas no sistema social e as decorrentes da autonomia pessoal.
jurídico». Como ninguém terá levado mais longe a defesa da necessidade de graduar Recorde-se, por outro lado, que, segundo BJNDING, a norma tem invariavelmente
a gravidade dos singulares crimes em função da dimensão daquela lesão (123). atrás desi um conjunto de valorações prévias e sucessivas. Entre as quais avulta, pela
sua originalidade e positividade, a que opera a criação e conformação do bem
jurídico. Que constitui uma manifestação de autonomia e de autoridade do legisla-
dor. Pois, no seu desempenho, o legisladornão conhece outros limites para além dos
( 117) Bl!\1JI~G, Dic Normen, II vol., pág. 232,
(11&) Descnvolvidadmcntc, KAUFMANN, Lebendiges, pág. 69 e scgs. impostos pela lógica ou os decorrentes da valência comunitária dos bens jurídicos,
(1 19) Isto à custa duma simplificação consciente, na medida, sobretudo, em que se evita por ele próprio reflexivamente ponderada. A definição do bem jurídico e a determi-
a referência à área mais problemática, precisamente a dos crimes de perigo abstracto, corres- nação da sua estrutura, consistência, extensão, função e respectivas superfícies
pondentes a delitos meramente formais, que se esgotam na simples desobediência. Sobre o vulneráveis, começam por ter lugar pondo-se entre parênieses o seu significado para
sentido cm que, apesar de tudo, é possível assinalar aqui um papel ao bem jurldiro,
cf. AMELUNG, Rechtsgüterschutz, pág. 80. Na interpretação deste autor não haverá, segundo o portador individual. Acresce que a referência sistémico-social, que começa por
BINDING, crimes sem bcmjurídico. Em sentido divergente, SIN'A, Die Dogmengeschichte, p. 4 7. determinara emergência do bem jurídico, não pode deixar de o acompanharem toda
É, aliás, no rontexto dos delitos formais que se torna particularmente equívoca a citação e a sua trajectória.
aparente adesão de BI!-l"DL'.G à afirmação de BRI~'Z:•A violação da lei ronstituijá, seguramente,
de per si um mal; mas a lei de cuja violação não resultasse qualquer outro mal, a16m do que a
Com BINDING consuma-se, assim, a transformação das representações subja-
violação configura, seria ela própria um me},. (Die Nonnen, I vol., pág. 398). Sobre o centes à doutrina de FEURBACH, especialmente as concernentes às relações entre três
significado da citação cm causa para a interpretação do pensamento de BJNDING, AMELUNG, «sistemas»: bem jurídico, sistema social e sistema pessoal. A partir de então, a
pág. 80, e SINA, pág. 43.
( 120) B1mmm, Die Normen, 1 vol., pág. 365.
( 121) Ibidem.
( 122) Ibidem.
{ 121) Ibidem.
(12') Sobre a questão, cf. infra, pág, 81 e segs.
78 Consentimento e Acordo cm Direito Penal A Experiência Hist6rico-Doutrinal 79

\
incindívcl referência sistémico-social que o objecto da infracção passa a assumir, ao seu alcance. A elevação de uma realidade à constelação ou «capital de bens da
não poderá deixar de se rellcctir no conceito de danosidade social. Deixa de poder ordem jurídica» dirige à generalidade das pessoas - o portador concreto inclui-
sustentar-se em gemi e sem mais - como o faziam os adeptos da doutrina do direito do - a «exigência de organizar as suas acções em termos tais que o respectivo
suhjectivo - que o consentimento é razão bastante para neutralizar todo o coefi- prejuízo não possa ter lugar» (128). O que se rellecte (e explica) na legitimidade,
ciente de danosidadc presente no sacrifício dos bens jurídicos, nomeadamente dos recorrentemente assinalada por BINDING, que assiste ao direito penal de proteger os
bens jurídicos disponíveis. E, por essa via, ditara forma mais radical de afastamento bens jurídicos, mesmo os «individuais», contra o respectivo titular.
da ilicitude, a exclusão da tipicidade. Sempre, na verdade, sobrará a referência Uma conclusão parece resultar desta primeira leitura de BINDING, mais atenta
sistémico-social como matriz autónoma de danosidadc social. E cuja neutralização, às linhas de fundo e ao horizonte político-criminal do seu pensamento do que aos
do ponto de vista da ilicitude penal terá de situar-se noutro plano: um plano enunciados expressos de índole sistemática. E que se poderia sintetizar na hipótese:
susccptível de superar a conllitualidade subsistente e provocada precisamente pela na medida em que a problémática actual do estatuto normativo e doutrinal do
ocorrência do consentimento. Como, cm sentido convergente, e numa tentativa de consentimento conhece na obra de BIND!l\G algum alloramento, a sua resposta (dada
interpretação da mesma realidade cultural e doutrinal refere HONJG: «Significa isto, ou sugerida) contraria no essencial a argumentação dos que hoje propendem para a
aplicado à função protcctora das proposições jurídicas, que a tutela jurídica cm redução unificadora de todas as expressões de consentimento penalmente relevante
relação a acções humanas é, por via de princípio, independente da vontade e do como casos de exclusão de tipicidade. Uma hipótese cuja plausibilidade acaba por
interesse individuais, bem podendo mesmo intervir contra a vontade individual. se ver reforçada por duas considerações suplementares. Por um lado, é seguramente
Como significa igualmente que a vontade individual, nos casos cm que a lei abre a neste sentido que se orientam os autores que, já antes de BINDING, procuram
porta à sua expressão, só fica a dever a sua eficácia ao reconhecimento através do
direito. O que vale nalllralmente para o consentimento do ofendido. A sua eficácia explicitar as implicações do novo princípio do bem jurídico (de BIRNBAUM) sobre o
assenta, mais do que na força da vontade individual, na vontadecolcctiva plasmada instituto do consentimento. Por outro lado, foi nesse preciso sentido que, ao tempo
e objectivada na~ proposições jurídicas» (125). de BINDING, LISZT se viria a pronunciar,
No que fica dito contém-se já o enunciado, mais ou menos explícito, de um Entre os primeiros sobressai SCHAPER a quem, como HONIG recorda, terá ficado
conjunto de proposições doutrinais identificadas na obra de BINDING e que poderão a dever-se uma das tentativas pioneiras de perspectivar o consentimento a partir do
valer como tópicos privilegiados da compreensão do consentimento que ela parece conceito de BIRNBAUM (129). Resumidamente, SCHAPER começa por arrumar todos
sugerir. Assim e em primeiro lugar, a rejeição das soluções generalizadas e os delitos em duas categorias, consoante contendam com bens da colectividade ou,
apriorísticas, logicamente deduzidas a partir do que, em abstracto, se considera a inversamente, apenas atinjam bens «radicados na pessoa do indivíduo». A validade
natureza do objccto do crime (1 26). A preferência de BINDING vai ostensivamente e eficácia do consentimento estarão naturalmente excluídas quanio ao primeiro
para soluções contingentes e diferenciadas, variáveis cm função do crime e do bem grupo. Mas o mesmo valerá em relação ao segundo sempre que, apesar de estarem
jurídico e da amplitude e consistência das - também elas variáveis - exigências em jogo «bens do indivíduo, o Estado reclame a sua preservação em atenção ao seu
sistémico-sociais. valor para a colectividade» (130). Para além disso, e mesmo para a generalidade dos
Decisiva, por isso e em segundo lugar, a relação que medeia entre o bem bens individuais, deve valer o princípio: os bens do indivíduo cuja tutela o Estado se
jurídico e o sistema social. É esta relação que preside à criação do bem jurídico e propõe assegurar através do direito penal, não devem em qualquer caso sofrer lesões
determina a relevância das suas vicissitudes, tanto no sentido da danosidade social que impliquem a sua completa destruição. Em conformidade, permanecerá punível
como na direcção do direito penal. Trata-se de uma relação a que o «portador» a correspondente acção, mesmo que realizada a coberto de consentimento (131).
concreto do bem jurídico é, como tal, alheio. Nesta perspectiva o indivíduo vê-se
confrontado com a complexidade derivada do ambiente, que para ele configuram as
relações sistemasocial-bemjurídico. Uma complexidade cuja redução pela via, v.g.,
do desaparecimento do interesse ou do exercício do direito subjectivo (127), escapa
( 128) Die Normen, I vol., pág. 54.
129
( ) HONIO, dieEinwilligung,pág. 15. O clima para a viragem- no sentido do estrei-
tamento do âmbito da eficácia do consentimento e da nova compreensão doutrinal da figura-
( 125)Hm:tG, Die Einwilligung, pág,70. vinha sendo preparado portados os que, desde o início do século, se opunham à tese central
( 126)Cf. sobretudo, BL\1>ING, Handbuch, pag. 709 e scgs. .do iluminismo do direito subjcctivo. Com destaque para a obra já referenciada de TlIIDAUT.
(121) Sobre acrítica vigorosa dcB1~1>ISGás doutrinas dadireitosubjectiuo e do interesse, Sobre os limites assinalados por este autor à eficácia do consentimento, HDNIG, pág. 5 e scgs.
por ele esconjuradas como relevantes do psicologismo individualista, Die Normen, I vai., (1~ 0) Apud HONIO, pág. 15. ·
) cr. Ho~1a, Ibidem.
131
pág. 3õ4 e scgs.; Handbuch, pág. 709 e segs. (
F
80 Consentimento e Acordo cm Direito Penal A Experiência Hist6rico-Ooutrinal 81

Não cremos, por seu turno, que possa fundadamente questionar-se a pertinência ' Ora, circunstância que pode numa primeira consideração revelar-se perturba-
da argumentação colhida a partir do paralelismo com os ensinamentos de L!SZT. As dora, a resposta adiantada por BIND!NG a esta última questão não parece consentir
consideráveis diferenças que separam entre si os dois autores - maxime a nível da grandes dúvidas: o consentimento penalmente relevante esgota a sua relevância em
impostação político-criminal e da relevância acordada ao direito positivo- não sede de tipicidade. Na verdade, o tipo constitui para BINDING a matriz e o mediador
prejudicam, como vimos, a convergência a propósito da representação do bem epistemológico exclusivo de revelação do consentimento eficaz. Daí que o autor
jurídico: uma realidade do mundo exterior que conta com a protecção do direito privilegie no seu discurso relativo ao consentimento uma dimensão essencialmente
penal. E isto independentemente de se acrediiar que é a realidade que «reinvindica» hermenêutica das normas inériminatórias típicas. E esconjure ao mesmo tempo,
ou «faz jus» à tutela {L!SZT) ou, inversamente, é o direito que, no desempenho da sua como o mais comprometedor vício do intelecto nesta matéria, «a construção
função, dispensa a mesma tutela (B!NDING). Como quer que seja, nunca a respos~~ apriorística bem como o pr<Jpósito de fazer dobrar a lei perante os seus pretensos
parece comprometer a comunicabilidade entre as duas doutrinas em confronto, nem resultados» (135).
neutralizar a fecundidade heurística da comparação e da argumentação que nela se Parecem, de resto, óbvias as razões da preferência de BINDING por uma solução
pode apoiar. de tipicidade, isto é, de concentração de todos os momentos relevantes para a
Partindo duma concepção do bem jurídico, neste sentido idêntica à de BINDING, determinação da matéria proibida. Poderá mesmo adianiar-se que ela é, de algum
e movendo-se ao mesmo tempo no contexto de um sistema dogmático (de relações modo, reclamada pelos postulados político-criminais do pensamento bindinguiano.
entre a tipicidade e a ilicitude) que se aproxima do entendimento hoje domi- Nada, com efeito, mais indicado do que privilegiar o tipo como entreposto autên-
nante (132), L!SZT pronuncia-se abertamente pela existência de casos de consenti- tico - e simultaneamente exclusivo e esgotante-de revelação do programa do
mento a relevar em sede de ilicitude. Isto é, a operar como verdadeira causa de legislador em matéria de definição de bensjurídicos e de determinação da respectiva
justificação (133). Significativa outrossim - e de algum modo surpreendente- a área de tutela. Qualquer solução de policentrismo, que erigisse a par do tipo polos
circunstância de L!SZT estreiiar sensivelmente o âmbito de validade e eficácia que alternativos e concorrentes de referência axiológica e normativa, seria, do ponto de
BIND!NG acabava por demarcar ao consentimento. É o que bem demonstra o espaço vista das representações político-criminais de BINDING, inconveniente. Daí a vanta-
reconhecido ao consentimento da lesão da integridade física. Enquanto B!NDING lhe gem, se não mesmo a necessidade, de perspectivar o consentimento penalmente
atribui a mais irrestrita eficácia, L!SZT circunscreve-a ao campo das ofensas eficaz como um momento integrado e, hoc sensu, «funcionalizado» pelo imperativo
corporais ligeiras (134). de tutela presente no tipo penal.
4.2. B!NDING não se ateve, porém, ao enunciado de um conjunto de propo- Acresce que, segundo BINDING e como já deixámos assinalado, o legislador não
sições genéricas de índole doutrinal e metodológica a partir das quais se poderia hoje pode erigir o interesse em objecto de tutela penal. Se o fizesse, «rapidamente
referenciar uma construção mais ou menos acabada do consentimento. Para além naufragaria nos escolhos deste mar dos interesses. A tarefa da ordem jurídica é a
disso, o autor legou um tralamento expresso da problemática do consentimento: quer protecção do direito e dos bens jurídicos e não dos sentimentos (Gefühlsschutz),
no que toca à delimitação do âmbito de eficácia quer no que respeita ao respectivo salvo na medida em que o sentimento seja, ele próprio, excepcionalmente encarado
estatuto doutrinal. como um bem jurídico» (136). Na mesma linha, e procurando expliciiar as relações
que em seu entender medeiam entre o bem jurídico e o interesse ou sentimento
individual, considera ainda: «Se a lesão do bem jurídico revela e demonstra ipso
facto a lesão do chamado interesse do direito na preservação do bem jurídico, então
( 131)Cf. LtSZT, Tratado, II, pág. 335 e scgs.: Hmscu, Die Lehre, pág. 37 e scgs.
(lll) Reparos s6 poderá suscitar a amplitude com que o faz,já que tende a inscrever na
ela é completamente independente do facto de valer simultaneamente como lesão de
mesma categoria todas as manifestações de vontade penalmente relevantes do portador interesses individuais ou de quaisquer dos chamados interesses públicos. Nunca o
concreto do bem jurídico. Tambóm as expressões de vontade eficaz, u.g., cm sede de crimes juízo de valor do indivíduo sobre bens ou estados se pode converter em motivo da
contra o património ou contra a liberdade são por LISZT tratadas como causa de exclusão da legislação, salvo quando ela se sobrepõe ao juízo social de valor da comunidade
ilicitude (LISZT, Tratado, II, pág, 364 e scgs.).
cm) Sobre a discrepância entre os dois autores, cf. BINDu;o, Handbuch, pág. 724. O
jurídica. Os objectos do juízo de valor individual só podem gozar da tutela jurídica
motivo do ...espanto» denotado po texto reside nisto: de certo modo, era a inversão de posições enquanto bens sociais ou bens do direito e nunca como meros bens individuais. Seria
que parecia dever esperar-se. E LtSZT, com efeito, que faz concessões mais ostensivas- tanto
no plano doutrinal corno político-criminal - à ideia de interesse. O que denuncia urna
predisposição para alargar o âmbito da eficáciado consentimento. De LtSZT mais facilrnentese
esperaria, noutros termos, uma posição de alguma contiguidade com as teses de autores como
KESSLER ou Kl.EE. Inversamente, já da acentuação da referência sistémico-social por BI?\'DING, ( 135) BINDING, Handbuch, pág, 719.

seria de esperar uma compressão das margens do consentimento penalmente relevante. (U&) Dié Normen, I vol., pág. 363/4.

b
82 Consentimento e Acordo em Direito Penal A Experiência Hist6rico-Ooutrinal 83

\
um duplo erro acreditar que aquela tutela deva seguir-se automaticamente ao juízo No que fica dito contém-se já antecipada, no essencial, a resposta e a superação
de valor individual. Se é certo que os juízos de valor só podem valer como motivos do que pode, à primeira vista, aparecer como motivo de perplexidade ou razão de
e não como objecto da lei, a verdade é o que o juízo de valor enquanto tal não assume objecção, no que toca ao sentido da lição deBINDING para a controvérsiaactual sobre
qualquer relevo face à valoração social das coisas e estados» (137). a estrutum normativa e o estatuto dogmático do consentimento. A aporia pode
Simplesmente, concede BINDJNG, haverá casos em que o legislador só sintetizar-se: na medida em que se ocupa expressamente do problema, BINDING
reconhece um bem jurídico como digno e carecido de tutela penal se e na medida cm apontará para uma solução (de tipicidade), divergente daquela para que pareciam
que exista uma vontade individual de o proteger. «O bem jurídico figurará então apontar os fundamentos doutrinais e metodológicos do pensamento do autor (ilici-
como qualidade de uma pessoa se e na medida em que puder contar com o suporte tude). O que parece obrigar-nos a questionar a justeza da interpretação que se louva
de uma vontade» (138). É por aqui que o autor abre a porta à validade e eficácia do das linhas de fundo do pensamento bindinguiano ou, em alternativa, a pôr mesmo em
consentimento. Uma porta, de resto, particularmente larga como o demonstra o caso causa a congruência intrínseca da construção legada pelo autor.
paradigmático da integridade física. Segundo BINDING, «a defesa da integridade Não cremos que o dilema seja inescapável em termos de a resposta estar
física é essencialmente o mesmo que a defesa da vontade de mantera inviolabilidade circunscrita a estas duas vias: ou comprometendo-se a procedência da interpretação
da integridade física» ("'). Apesar disso, sublinha, só apressadamente se poderia do pensamento de BINDING que deixámos ensaiada, ou, em alternativa, a coerência
sustentar sem quaisquer limitações que «o bem jurídico é apenas a integridade física do mesmo pensamento. Só seria necessariamente assim se em causa estivesse o
sustentada pela vontade do respectivo titular» (140). mesmo problema, equacionado e solucionado no contexto do mesmo sistema
4.3. Numa primeira consideração há, assim, que tomar ao pé da letra a dogmático. Isto é, se: por um lado, o problema da estrutura normativa e doutrinal do
inscrição do consentimento em sede de tipicidade. De acordo com BINDING, não se consentimento que hoje nos ocupa eà luz do qual tentámos interpretar o pensamento
trata, porém, de interpretaras incriminações que protegem bens jurídicos «pessoais» de BINDING se identificasse com o problema para o qual ele deixou expressamente
fazendo intervir uma clásula geral de invito /aeso, que teria como efeito a exclusão exarada uma resposta; e, por outro lado, o sistema dogmático a que hoje nos
sem mais da tipicidade da agressão levada a cabo a coberto do consentimento. reportamos fosse ainda substancialmente o mesmo em que aquele penalista se
Cremos seroutra - se não a inversa- a postura político-criminal, epistemológica movia. Só que nem uma coisa nem outra se dá.
e metodológica a que obedece a doutrina em exame. Em primeiro lugar, não é o mesmo o problema. Para BINDING tudo se
Do que fundamentalmente se trata é de saberem que medida o tipo - que, por reconduzia a uma questão de hermenêutica da incriminação típica. As margens de
princípio, declara puníveis as condutas que lesam bens jurídicos e que, em regra, o consentimento eficaz referenciáveis - relativamente amplas no entendimento do
faz volente no/ente o portador individual - limita ele próprio a matéria proibida cm autor- teriam de encontrar consagração na própria incriminação típica e relevar,
consideração do consentimento. Do que se trata segundo B!NDING é, pois, de a seu modo, do desempenho autorcferente do sistema social e não de um sistema
esclarecer cm que termos o programa incriminatório integra já o consentimento na alternativo e ambiente (a autonomia pessoal) como fonte autónoma de complexi-
sua própria lógica e o toma em linha de conta na modelação da sua específica área dade. Em síntese, e ao contrário do que hoje sucede: o que BINDING questiona não
de tutela. Na expressão do próprio autor, «ninguém pode autorizar ou declarar como é um consentimento como princípio geral de aplicação do direito penal e, por isso,
juridicamente sem significado o que o Estado proíbe: o que se passa é que a vontade de redução da tipicidade ou ilicitude mas apenas as manifestações de consentimento
do particular é legalmente armada com este efeito» (141 ). que, de forma fragmentária, logram ou não consagração nas diferentes incrimina-
ções da parte. especial do Código !'ena!, como dimensão específica do respectivo
programa de tutela.
("') /d., pág. 360.
("') Id., pág. 358.
( 1H) BINDING, Handbuch, pág. 722.
14
( º) Bumum, DieNormen, I vol., pág. 358. BP.\1>IN'Gcita, a propósito, o caso do duelo: o (cf.Die Normen, I vol., pág, 360), O modelo de consentimento referido no texto vale natural•
consentimento dos intervenientes não legitima nem justifica as les(5cs corporais que eles mente para crimes como a vida ou a integridade física cm que a acção implica o sacrifício do
venham a sofrer. Se, em geral, a lei admite o consentimento eficaz em relação aos atentados bem jurídico. Diferentemente se passarão as coisas- reconhece BI?\"DING - naqueles casos
normais à integridade fisica, tal não se dá, todavia, quando as lesões ocorrem pela via do duelo. em que a liberdade de formação da vontade é, ela própria, objccto de tutela ou cm que, por
( 141) BL\1JING, Handbuch, pág. 708. BINDING cita e aplaude neste contexto uma senten~ negócio jurídico, se pode retirar ao bem jurídico a possibilidade de _lesão. (Sobre estas
ça do RG (de 20~10·1887) segundo a qual: «Toda a punição é cominada e aplicada no interesse modalidades de consentimento, Handbuch, pág. 713 e segs.). Deve ainda reter.se que a
público, não podendo o ofendido, pela via do conscntiment.o na acção punível renunciar ao amplitude do consentimento, scr,•1.1ndo a doutrina de BlNDJNG acaba por resultar de algum
interesse público. Em direito penal o consentimento do lesado não terá, por isso, cm geral modo aleatória, tudo dependendo da interpretação das singulares normas incriminatórias.
qualquer significado, salvo quando a lei expressamente lhe reconhece uma dada relevância» Jsto porquanto BINDING não reconhece um princípio geral de consentimento.
84 Consentimento e Acordo em Direito Penal A Experiência Hist6rico.Doutrinal 85

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Em segundo lugar, é outro o modelo sistemático-doutrinal em que BINDING e segundo a qual o bem jurídico se perfila «ainda hoje como dominante na dogmática
projccta as relações entre a tipicidade e a ilicitude. Um modelo que pode sintetizar- jurídico-penal» (146).
-se na asserção segundo a qual a antijuridicidade constitui invariavelmente um Apesar de tudo, não deverá acreditar-se que BINDJNG ou LISZT tenham dado
elemento do tipo objectivo (142). Numa das impressivas formulações do autor, a an- resposta definitiva aos mais complexos problemas suscitados pelo conceito de bem
tijurídicidade «é um elemento presente cm cada átomo de todo o anel do tipo jurídico. Tanto pelas divergências e afrontamentos que opuseram entre si os dois
objectivo» (143). O que permitirá compreender a tese, nuclear neste capítulo da autores, como pelas ambiguidades ou equívocos imanentes às respectivas obras, o
dou1rina de BINDING, e segundo a qual todas as razões de inexistência da ilicitude legado científico de BINDING e LISZT apresentava-se minado pelas sementes da
precludem ipso facto a afirmação de que se verifica o tipo objcctivo (144). Assim, «o dissonância, prontas a germinar na pulverização de escolas.
tipo objcctivo do homicídio, do fogo posto, etc. não consiste verdadeiramente no 1.1. Decisivo foi, neste contexto, o papel do conceito alternativo de inte-
facto de uma pessoa matar outra ou de incendiar uma casa: ambas as coisas têm antes resse (legalmente protegido), situado no epicentro de praticamente todas as diver-
de ocorrer sob a desaprovação jurídica. Neste sentido, o tipo objcctivo contém gências e que viria, por isso, a constituir-se motivo e catalizador de quase todos os
sempre o elemento da antijurídicidade» (145). confrontos entre escolas. Isto, de resto, no desenvolvimento da tensão já expressa-
Ora, diga-se a terminar, dificilmente este original sistema dogmático, relativo mente assumida por BINDING e LISZT e porventura a responsável maior pelo calor da
às relações cnlre a tipicidade e a ilicitude, pode prejudicar a actual con1rovérsia polémica que os dois penalistas alemães directamente alimentaram. Enquanto, nesta
dou1rinal. Mais do que das categorias dogmáticas explicitamente cunhadas e parte acompanhando IHERING, LISZT dava como assente o postulado da continuidade
utilizadas por BINDING será, antes, das subjacentes reflexões de índole normativa, doutrinal, político-criminal e sistemático-dogmática entre o interesse e o bem
político-criminal e metodológica que pode esperar-se alguma comunicabilidade e jur(dico, BINDING esconjurava sem apelo todo o significado dou1rinal do conceito de
colher-se alguma lição para a problemática actual. Uma lição que claramente interesse (147). Daí que o animado panorama doutrinal inaugurado por BJNDING e
contraria - no que à eSlrutura normativa e ao estatuto dogmático do consentimento LISZT e retomado pelos seus seguidores imediatos - e que viria a conhecer uma
concerne - a tese que pretende reconduzir à tipicidade todas as manifestações densidade sem precedentes de estudos relativos ao objccto do crime- se polari-
penalmente relevantes do consentimento. zasse no essencial em tomo da alternativa: bem jurídico ou interesse legalmente
protegido? Uma alternativa de que se fazem eco títulos sugestivos como o de
KEssLER,Rechtsgut oder rechtlich geschüztes Interesse, oder subjektives Recht?; ou
§ 6. KESSLER: A DOUTRl:-1A DO INTERESSE EA REAFIRMAÇÃO DO INDIVIDUA- de FINGER, Rechtsgut oder rechtlich geschütztes Interesse? Zur Lehre vom Objeckle
LISMO EM DIREITO PENAL. des Verbrechens (148).
E aqui reside uma primeira e determinante linha de clivagem, susceptível de
1. BINDING e LISZT colocaram o conceito de bem jurídico no ccn1ro da
emprestar alguma arrumação ao babélico mosaico de respostas que o problema do
construção doutrinal do crime e converteram-no, de forma irreversível, em polari-
objccto do crime conheceu nas últimas décadas do século passado e no dealbar do
zador das controvérsias relativas ao objecto do crime e ao conteúdo material da
século em curso ('"). Pois, não será difícil referenciar, subjacente a cada uma destas
ilicitude. A partir de então, os debates passaram a ser invariavelmente conduzidos
por referência directa ao bem jurídico: já para defender o conceito ou imprimir-lhe
uma dada compreensão ou extensão, já para pôr em causa a sua validade doutrinal ( 10)Apud SINA, Die Dogmengeschichte, pág. 54.
e político-criminal, confrontando-o com conceitos alternativos. Em termos tais que Cf., sobretudo, Die Normen, I vol., pág. 353 e segs. E isto, acentue-se, depois de,
( 141)

ainda manterá actualidade e pertinência a constatação feita já em 1914 por JAKOBS numa primeira fase, também BINDING ter apelado para o conceito de interesse para definir o
bem jurídico. Fê-lo, concretamente, na primeira edição do primeiro volume de Die Normen
(1872), onde o bemjurídico era definido como «tudo aquilo em cuja manutenção sem modifi•
caçõcs nem alterações o direito positivo tem, segundo a sua concepção, um interesse•
(1'2) Neste sentido, DieNonnen, II vol., pág. 231 e, sobretudo, GS 1910, pág. 1 e segs. (pág. 193). Uma visão que o autor viria a abandonar nas edições subsequentes onde sobem de
Para uma referência mais aturada à concepção de BINDnmno contexto da história dogmática tom as críticas ao ..individualismo» e -sentimentalismo» da doutrina do interesse. -o objecto
do tipo, nomeadamente nas suas relações com a doutrina de BELING por um lado, e a doutrina da agressão do crime de homicídio- sustenta BumINGna4.•edição a que, em geral, nos vimos
dos elementos negativos da tipo, por outro, HIRSCH, Die Lehre, pág, 87 e segs; KAUFMANN, reportando - é a vida de outrem e não o interesse de Hinz ou Kunz pela sua vida».
Lebendiges, pág. 19 e segs., SCHWEIKERT, Die \Vandlungen, pág, 31 e scgsj F. DIAS, O (Pág. 860/1).
Problema, pág. 65 e segs. ("') GS 1887, pág. 94 e segs.; e GS 1888, pág. 189 e segs.
( 1U) Die Normen, II vol., pág. 271. (Ha) Para uma visão de conjunto, A.m:LUNG, Rechtsgüterschu.tz, pág. 96 e segs,j SINA, Die
( 1U) BINDING, GS 1910, pág. 11. Dogmengeschichte, pág. 54 e scgs.: ÜPPE~11ED,f, Die Objekte, pág. 13 e segs.; Rocco, L'oggetto,
(1t 11) Ibidem. pág. 155 e segs.
86 Consentimento e Acordo cm Direito Penal A Experiência Hist6rico-Doutrinal 87

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respostas, uma tomada de posição - mais ou menos explícita e assumida cm termos crime a partir da ideia de interesse. Uma dispersão que se explica, desde logo, a partir
da mais extremada exclusividade ou antes de compromissório eclectismo - ao da tensão centrífuga já presente na abenura oferecida por IHERING e LISZT, autores
problema de fundo: bem jurídico ou interesse legalmente protegido? que, já o vimos, tratam as noções de interesse e bem jurídico como comunicáveis
É, com efeito, a resposta a esta interrogação que começa por operar a primeira entre si, conceituai e funcionalmente fungíveis, e que, de cena modo, reciproca-
separação das águas em duas grandes matrizes doutrinais, por via de regra e mente se implicam. Reconhecem a possibilidade, mesmo a necessidade, da distinção
respectivamente referenciadas como doutrina do objecto da tutela (Schutzobjeks- Jógico-categorial dos dois conceitos. Só que deixam a demarcação das respectivas
theorie) e doutrina do interesse. fronteiras onerada com margens irredutíveis de equívoco e permeabilidade. Daí um
A primeira - cm que avultam os nomes de ÜPPENHEIM, HIRSCHBERG, GER- bem jurídico preferencialmente concebido em termos de relação (do que inter-est)
LAND, OETKER- adere e procura desenvolver algumas das representações essen- com os seus portadores ou_ beneficiários, o indivíduo ou a comunidade. Isto em
ciais da doutrina bindinguiana, nomeadamente: rejeição expressa do conceito de in- consonância com as representações sociológicas a que ambos prestam homenagem.
teresse ("º) e dos conceitos alternativos que apelam para a estrutura da intersubjec- Daí, por outro lado e inversamente, um conceito de interesse tendencialmente
tividade; e, rellcxamentc, acentuação da exclusividade do bem jurídico como substantivado e «hipostasiado» (H0NIG) (154), de molde a aproximar-se, e mesmo a
objecto ou realidade do mundo exterior e objectivo. A esta corrente doutrinal ficou confundir-se, com os respectivos objectos de referência
a dogmática do objecto do crime a dever importantes contribuições em duas linhas É precisamente o tópico das relações-de identidade, comunicabilidade,
distintas, se bem que complementares. proximidade, grau de cobertura ou implicação recíproca- entre o bemjurfdico e
Por um lado, os esforços na procura de um conceito susceptívcl de emprestar o interesse que emerge como um dos primeiros motivos de divisão de opiniões. A
alguma unidade à grande heterogeneidade dos referentes materiais, das real idades ou este propósito, os adeptos da doutrina do interesse distribuem-se por um contínuo
«coisas» elevadas por lei à categoria de bem jurídico. Uma questão cuja resposta entre dois extremos: de um lado os autores- entre os quais se-contam, para além
viria tendencialmente a estabilizar-se em tomo do conceito de estado (Zustand), de IHERING e L!SZT, nomes como os de MERKEL ou M. E. MAYER- que defendem
proposto e sustentado sobretudo por HIRSCHBERG (151 ). Os adeptos da doutrina do a identidade, ou pelo menos a equivalência doutrinal e funcional, dos dois concei-
objecto da mte/a procuram, por outro lado, esclarecer e consagrar a distinção entre tos ('"); do outro lado, os defensores da mais extremada distinção conceituai e,
o bem jurídico e os concretos objectos em que ele se incorpora e oferece à sobretudo, da total incomunicabilidade doutrinal e funcional entre interesse e bem
possibilidade de lesão por parte do agente. O que os leva a defrontarem-se com o
problema de um conceito transjurídico de acção. E, cm conformidade, a afastarem-
-se, nesta parte, de BINDING e a aproximarem-se de LISZT, autor que já antes
considerara ser necessária uma distinção clara e consequente entre: o interesse
juridicamente protegido como objecto do crime quando este é concebido como (1 54 )Homo, Die Einwilligung, pág. 66 e segs.
violação do direito («Rechtsverletzung») e a revelação incorporada daquele inte- (1 55 )Pera uma referência bibliográfica, cf. SINA1 pág. 62/3. A título meramente exempli-
ficativo, deixaremos uma nota apressada à lição de M.E.MAYER, colhida sobretudo a partir de
resse, como objecto do crime, se este se perspectivar como acção (llandlung) (152). Rechtsnormen und Kulturnormen (1903). Depois de analisar(pág. 64 e segs.) os conceitos de
Foi para responder a esta questão que ÜPPENHEIM cunhou a contraposição entre bem jurídico e interesse, e de os definirem termos substancialmente sobrepon(veis, acentua
objecto da tutela (Schutzobjekt), identificado com o bem jurídico, e o objecto da MAYER: «A questão da designação de algo valioso como bem ou interesse terá sempre um
acção (liandlungsobjekt) ("'). significado extremamente reduzido. Em qualquer dos casos, eu ponho cm evidência a quali-
dade deu ma coisa ou estado que fez da agressão ao objecto uma lesão. E se eu identifico aquela
1.2. As coisas são mais complexas, resultando num espectro mais alargado qualidade indispensável para o tomar susceptívcl de lesão (a vida com o valor da vida), então
de posições, do lado dos autores que pro pendem para a perspectivação do objccto do é o bem ou interesse que aparece como imediatamente atingido.A distinção, necessariamente
secundária, que apesar de tudo se pode estabelecer entre bem e interesse reside nisto: ou
aquilo que é considerado como valioso aparece mais como um valor autónomo e independente
do sentimento individual e então fala-se de um bem, ou antes como algo ligado à psique do
indivíduo e então cabe falar-se de interesse» (pág. 68). Depois de sustentar a relativa
111
( º) Por todos, e em termos particularmente imprcssivos, 0PPE~1IEIM, Die Objekte, indiferença ou fungibilidade dos conceitos, sublinha MAYER ser-corrccta a afirmação segundo
pág. 41 e scgs. a qual os bens jurtdicos são interesses juridicamente protegidos». E isto porquanto «todo o
1111
( ) HmscHBERG, Dic Schutzobjekte, pág, 43 e 65. Em sentido convergente, e falando de objccto que se possa qualificar como bem jurídico há-de valer igualmente como um interesse
«estados sociais-idcaisl) e, por isso e como tais, ainda n!lo existentes, mas valendo apenas como juridicamente protegido: cm ambas as hipóteses mais não se significa, afinal, que o objccto é
estados almejados, OETKER, ZStW 1897, pág. 495. portador deum valorjuridicamente reconhecido• (pág. 69). O autor pode, cm síntese, concluir:
("'} LlSZT, ZSt\V 1888, pág.151. «as violações do direito são lesões de bens ou interesses produzidos pela vida e reconhecidos
153
( ) 0PPE~1íEIM, Die Objekle, pág, 155 e segs.; 160 e 183 e segs. pelas normas jurídicas,. (Ibidem).
88 Consentimento e Acordo em Direito Penal A Experiência Hist6rico-Doutrinal 89

jurídico. Uma concepção que contou com o apoio de autores como HERlZ, KESSLER, ' sempre o Estado (...), os seus interesses. Nessa medida, antijuridicidade é, pois,
FINGER ou FRANK {156). sempre anti-estadualidade»("').
· A questão da pertinência ou titularidade dos interesses a proteger pelo direito Por último, e como já deixámos sugerido, também a propósito da natureza
penal viria, por seu turno, a constituir-se noutro motivo de dissenso doutrinal. material ou da estrutura ontológica do interesse as opiniões dos adeptos.dadoulrina
Também aqui, e a partir da solução com promissória e ecléctica de LISZT- o direito do interesse se dividiram. Entre os que propendem para a representação objectivada
penal protegerá, a par de bens ou interesses jurídicos individuais, bens ou interesses ou substancializada do interesse e os que, inversamente, lhe adscrevem uma
supra-individuais- se assistiu a uma grande proliferação de respostas. E também estrutura predominantemente relacional. Os primeiros, identificam de forma mais
aqui não faltam as posições mais extremadas, a sustentar quer a exclusividade dos ou menos explícita o interesse com o respectivo objecto, bem ou estrutura funcional,
interesses individuais (v.g., HERlZ) (157), quer o primado ou mesmo o monopólio dos imprimindo-lhe um signifi_cado que o aproxima do conceito de Belangen. Na
interesses estaduais ou colectivos. «Em ordem a assegurar a tutela de interesses linguagem corrente, argumenta nesta linha HEGLER, «a expressão isto ou aquilo
humanos vitais- escreveFINGER-a norma estreita a esfera de liberdade dos seus cons1i1Ui o meu interesse não se reporta a uma relação ou juízo de valor, mas antes
destinatários. Os interesses protegidos são os que, de acordo com a perspectiva das a algo que é objecto da valoração e aparece, por isso, como valioso» ("º). Já os
fontes de direito, a~sumem um significado para a comunidade (...). Todo o crime é últimos, que representam a opinião maioritária, concebem o interesse como uma
lesão de interesses: não no sentido de ele atingirum interesse efectivo e já existente, relação entre um sujeito e um objecto, isto é, comoumaestruturadesignificatividade
mas antes no sentido de pôr em causa um interesse pressuposto de acordo com as e conteúdo psicológicos. Que pode ter um sentido predominantemente volitivo-
concepções dominantes ao tempo da produção da lei» (158). Em sentido convergente aparecendo como uma relação-de-vontade (Willensbeziehung)- ou, antes, uma
explicita HEGLER que o «direito penal é uma ordenação de protecção e protege índole fundamentalmente emotiva ou sentimental. A relação de vontade foi defen-
dida, entre outros, por PFERSD0RFF, segundo o qual «o verdadeiro objecto da lesão
da acção punível é precisamente esta vontade que serve de suporte à relação entre
indivíduo e bem» {161 ). Por seu turno, HERlZ e KESSLER sobressaem como os mais
(
158
) Autor de Das Unrecht und die allgcmeine Lehre des Strafrechts (1880), um marco
empenhados apoiantes da tese do inreresse com o significado de uma relação
na evolução doutrinal do ilícito e, por isso, com uma presença recorrente na historiografia, aíectivo-emotiva (Lusrgefüh[) com o objecto.
HERTZ terá sido o autor que levou mais longe a definição do objccto do crime cm termos de
individualismo e psicologismo, Ele perfila-se, por isso, como o mais frontal e consequente dos 2. Referenciados os traços mais salientes- e as linhas de clivagem que no
opositores de B1~1>ING. Tanto no que concerne ao conceito de bem jurídico cm si, como e
sobretudo no que toca ao ethos comunitário e supra•individual que BI!-."DL';G lhe adscreve. A
seu seio se revelam - da dourrina do interesse, caberá tentar pôr a descoberto as
partir de uma definição de interesse, cm termos exclusivamente psicológicos como sentimento suas implicações em matéria de estrutura normativa e estatuto dogmático do
(GefUhl), HERTZ é levado - na esteira de FEUERBACH de cuja herança se louva- a erigir a consentimento. Para tanto estará indicada uma referência mais detida às versões que
pessoa humana, individualmente considerada, em titular exclusivo dos interesses protegidos acentuam o primado ou mesmo a exclusividade da vertente individual nos interesses
pelo direito penal. Para além de imposta por considerações de índole doutrinal, a recusa do
conceito de bemjurldico é ainda ditada por considerações de ordem político-criminal. Segundo
protegidos pelo direito penal. Daí que nos detenhamos na doutrina de KESSLER, que
HERil, o conceito de bem jurldico releva de um direito penal orientado para o primado dos assume neste contexto um valor paradigmático. Para além de autor de uma investi-
valores colcctivos, uma concepção contrastante com os seus postulados político.criminais. Foi gação monográfica dedicada à natureza normativa, ao regime e ao enquadramento
igualmente cm nome de razões político•criminais que FRA.';K se viu compelido a renunciar ao doutrinal do consentimento (Die Einwilligung des Verlelzlen in ihrer srrafrechlli-
conceito de bemjurldico. 86 que agora e significativamente, a partir dcumhorizonte político•
criminal de sentido oposto. De acordo com a interpretação histórica de FRA.~K, o bem jurídico chen Bedeu1ung, 1884), KESSLER deixou ainda contributos relevantes para a discus-
mais não representará do que o resultado de uma metamorfose do conceito precedente de são do objecto e do conteúdo material do crime (162). O exame da sua obra oferece,
direito subjectiuo. Como este, mais não será do que um fruto do ideário liberal de dirccta
inspiração iluminista e jusracionalista, 86 por atavismo e falta de consciência histórica se
poderia, segundo FRANK, continuar a sacrificar aos mitos dojusracionalismo, num tempo em
que o triunfo do positivismo transformara já tão profundamente as coordenadas da experiên• ( 14 Y) HEGLER,Festg. Frank, I, pág. 271; do mesmo autor, ZStW 1915, pág. 27 e segs. No
ciajurídico•penal (FRANK, Kommentar, 9/10 ed., pág. 14 e scgs.). Digno de menção, contudo, sentido da prevalência ou mesmo da exclusividade dos interesses colectivos e estaduais, cf.
que já na última edição (18.·) desta obra, F'RA.'lKsc decida a manter o conceito de bemjurtdico ainda FRANK e MERKEL, apud SINA, Die Dogmengeschichte, pág. 60.
como «Bequemlichkeitsausdruck». Para uma referência crítica a HERTZ e F.RA.'..'K, AM:ELUNG, ( 160) HEGLER, Prinzipien, pág. 61.
Rechtsgüterschulz, pág. 113 e segs. Sobre KEssLER, cf. infra, pág. 93 e segs. (m) Apud SINA, pág. 61.
. ( 1~1) Cf. nota anterior. ( 182 ) De K.EssLER merecem referência, para além da monografia Die Einwilligung des
(lllS) Apud H0NIG, Die Einwilligung, pág. 7112. De FJNGER, embora assumindo uma Verlelzten in ihrer strafrechtlichen Bedeulung (1884), os artigos publicados cm GS 1886,
posição não inteiramente coincidente, cf. ainda GS 1888, pág. 153 e segs. pág. 561 e scgs.; 1887, pág. 94 e scgs.; 1888, pág, 580 e scgs.
90 Consentimento e Acordo cm Direito Penal A Experiência Hist6rico-Doutrinal 91

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assim, a vantagem de um contacto direc10 com as conexões, expressamente estabe- (•..) antes abrangem também uma vontade, pelo menos virtual, de efectivar o
lecidas pelo autor, enlre dada concepção do objec10 do crime e uma (correspondente) ,domínio sobre este objecto. Daí que ele se extinga não apenas por carência do
compreensão do consentimento. O que, se por um lado desonera o intérprete do risco _respectivo pressuposto físico mas também quando o animus de domínio do sujeito
de sugerir aquelas conexões, por ou1ro lado vale igualmente como conlraprova da cede o passo a um seu contrarium, pondo deste modo termo ao seu pressuposto
consistência das conexões que, não raro, o intérprete é chamado a adiantar por sobre ético» (163). É a partir daqui que ORTMANN conclui pela legitimidade e impunidade
as descontinuidades e omissões do discurso doutrinal. da morte que tem a1rás de si a expressão do consentimento livre da vítima. Isto, de
2.1. Uma observação preliminar permitir-nos-á acautelar o que no estádio resto, cm termos cuja pertinência não poderá deixar de se afirmar afortiori para as
acmal da investigação aparecera já relativamente óbvio. Concretamente: não pode demais manifestações de consentimento. À semelhança do que em geral acontece,
encarar-se a obra de KESSLER como um caso isolado num ambiente histórico- argumenta o autor, também _o direito à vida deixa de subsistir a partir do momento
-dou1rinal caracterizado pelo domínio das referências sistémico-sociais, próprio não em que o respectivo titular assume (e não revoga) a decisão livre de consentir que
só do paradigma do bem jurídico como também de muitaS das variantes da doutrina ou1rem o mate. Isto é: não valendo como violação do direito de ninguém, forçoso
do interesse. Pelo conlrário, a obra de KESSLER configura apenas um - cnlre será, segundo ORTMANN, considerara morte consentida como insusceptível de pena.
numerosos ou1ros, anteriores, coevos ou posteriores - dos afloramentos duma É substancialmenie convergente a dou1rina sustentada por PFERSD0RFF na sua
particular compreensão do crime e, por vias disso, do consentimento. Uma com- dissertação dedicada ao consentimento (1897), obra que pôde já beneficiar e louvar-
preensão que põe a tónica na afronta à vontade ou sentimentos humanos individuais -se expressamente da lição de KESSLER. Uma convergência que se estende tanto aos
e que, como KIENTZY sublinha, manteve continuamente a sua lrajcctória, num curso postulados dou1rinais, político-criminais e metodológicos- com o primado do que
paralelo ao da representação alternativa orientada para as referências sistémico- Ho:-<IG aponta criticamente como «dedução apriorística» - como ainda ao plano
-sociais (ou «sociológicas»), com ela alternando períodos mais ou menos longos de das consequências práticas. Também para PFERSD0RFF o crime se define essencial-
supremacia (163). E que passavajá- pode afirmar-se, ampliando o horizonte-por mente como violação de interesse ('"). E isto concebendo o interesse como uma
FEUERBACH, como ullcriormente viria a passar por M. MARX e, de certo modo, por relação de conteúdo psicológico - mais concretamente, já o vimos, como uma
SCHMIDHÃUSER ou SALM. Ou, para não ul1rapassar o contexto histórico cm que relação-de-vontade - enlre um sujeito e um bem. Valendo o consentimento como
KESSLER se movia, por autores como ORTMANN, HERTZ, PFERDSD0RFF ou KLEE. manifestação de vontade, cujo sentido consiste precisamente na neu1ralização
Resumidamente, cm estudo publicado cm 1877 (164), poucos anos após o daquela tensão psíquica, forçoso será concluir que o consentimento deixa a conduta
aparecimento da primeira edição de Die Normen de BINDING, ORTMANN vem típica sem objecto idóneo de agressão. O que equivale a concluir que será ao nível
conlrapor e enfatizara importância do momento volitivo para a definição- e como mais radical e definili vo que o consentimento actualizará a sua eficácia derimente da
condição de existência e subsistência -do objec10 do crime. Ocupando-se dirccta- relevância jurídico-penal.
mcnte do problema da punibilidade do homícidio assente em consentimento, Uma referência merece ainda neste contexto o estudo de KLEE, publicado já
ORTMANN acaba por se inclinar para uma resposta francamente negativa. Isto ao sobre a viragem do século (1901-1903) e subordinado ao título significativo
cabo de considerações versando sobre o objecto do crime, a natureza e a eficácia do Selbstverletzimg und Verletzung eines Einwilligenden ('"'). E cuja tese cen!ral
consentimento. O que, segundo ORTMANN, define o crime é a afronta à esfera de contende precisamente com o princípio da equiparação jurídico-penal enlre a
domínio que o direito reconhece à vontade individual. Isto porquanto o fundamento autolesão e a heterolesão consentida. Segundo KLEE, estaS duas modalidades de
jurídico do direito subjectivo reside invariavelmente na vontade especial (e virtual) conduta terão não sódeserperspectivadas à luz dos mesmos critérios e padrões ético-
do respectivo titular: ter um direito confunde-se com o seu exercício virtual. O que -jurídicos como deverão beneficiar do mesmo e comum regime de não punibilidade.
implica que «a pessoa não possa deter um bem jurídico con1ra a sua vontade». Como Uma tese que o autor pretende fazer valer como dedução lógica da essência da
implica que uma pessoa só possa ser sujeito dos seus direitos se e na medida em que
o queira. Em ordem a uma melhor explicitação dos conceitos considera o autor: «O
direito subjectivo é o domínio sobre um dado objccto que o direito objectivo confere
à pessoa. Os seus pressupostos não se circunscrevem à existência de um meroobjecto º
( 1 5) ÜRTMANN,ob. cit.,pág. 107 e scgs.
( 168)
«Na realidade - argumenta PFERSDORFF- são os interesses de um círculo maior
ou menor de indivíduos sobre determinados bens que constituem invariavelmente o objecto da
agressão da acção punível» (apud Hmno, Die Einwilligung, pág. 18. Em HoNIG pode encon-
trar-se ainda uma referência mais desenvolvida à monografia de Fmn l'FERSDORFF, Die
(m) KIEN1'ZY 1 Der Mangel, pág, 16. Einwilligung eles Verletzten ais Strafaussch.liessungsgrund, 1897).
("') ÜRTMANN, GA, 1877, pág. 104 e scgs, cm) KLEE, GA 1901, pág. 177 e scgs., e 1902, pág. 248 e scgs.
92 Consentimento e Acordo em Direito Penal A Experiência Histórico-Doutrinal 93

infracção criminal, eideticamente reduzida à expressão de uma afronta à vontade ' tivar-se, interpretar-se e avaliar-se criticamente a obra de KESSLER. Se é irrecusável
,Jheia. Que falece em absoluto nas hipóteses de autolesão. Mas, sustenta KLEE, o que àquele movimento ficou KESSLER a dever muitos dos postulados político-
.nesmo terá de ser o juízo a propósito da heterolesão consentida.Também aqui a -criminais e doutrinais que servem de esteio às suas reflexões, não é menos seguro
vontade do agente não só não contraria a do autor do consentimento como, pelo que a ele ficaram a dever-se os esforços mais logrados para emprestar ao mesmo
contrário, se orienta para o mesmo fim concreto. Do ponto de vista do portador movimento uma maior racionalidade e consistência intrínsecas. Esta simbiose entre
individual do interesse, a heterolesão consentida mais não representa do que uma a construção do autor e o ambiente cultural e doutrinal, permite-nos aliviar, nesta
forma (mediata) de autolesão. sede, a exposição do seu pensamento. Limitar-nos-emos, por isso, a recordar alguns
O relance apressado sobre os pontos mais salientes das concepções de ORT- enunciados fundamentais, confiando que aquele ambiente, como pano de fundo,
MANN, PFERSDORFF ou KLEE, permitiu identificar um conjunto de tópicos, teses ou oferecerá as referências necessárias a soldar a unidade e consolidar a coerência da
princípios doutrinais comuns. E relativamente consistentes quer no que concerne à leitura
expressividade e alcance de cada um dos princípios ou teses, quer sobretudo no que Central na teorização de KESSLER a tese: «o fim da lei penal é a defesa de
respeita à tessitura de relações que os articulam entre si. O que permite afirmar que interesses humanos mediante a prevenção da sua lesão através de acções humanas».
as concepções jurídico-penais daqueles autores relevam de um modelo doutrinal Uma formulação prenhe de implicações doutrinais, de cujo correcto esclarecimento
relativamente estabilizado. Que, para além de se inscrever num mesmo horizonte dependerá a apreensão dos momentos mais significativos do pensamento do autor.
político-criminal e adoptar uma via metodológica comum, integra um número Decisiva, desde logo, a circunstância de sero conceito de interesse- e não o de bem
considerável de respostas de conteúdo idêntico a alguns dos problemas centrais jurídico - a aparecer como objecto de tutela do direito penal e, por isso, como
relativos ao objecto do crime e à natureza material do ilícito. E sugere, nessa medida objecto da infracção. Este constitui um dos dogmas sobre que assenta a doutrina de
- ou mesmo expressamente oferece - uma particular compreensão normativa e KESSLER e a cuja demonstração o autor dedica as mais empenhadas reflexões (168).
doutrinal do consentimento. As divergências que, apesar de tudo, subsistem entre Sublinhando embora a importância decisiva do bem jurídico, além do mais como
eles, algumas já recenseadas, não são de molde a pôr irremediavelmente em causa referente necessário do conceito de interesse, KESSLER acredita, contudo, que só o
o núcleo essencial daquele modelo comum. interesse pode serobjecto de protecção penal e, consequentemente, só a sua violação
Que se define, desde logo, pela pronunciada subjectividade (pessoal) do pode valer como objecto do crime. Desde logo, argumenta, por força de «imperativos
objecto do crime e da respectiva danosidade social: aquele reduzido a uma relação lógicos e práticos» há que «distinguir claramente entre o interesse e o bem
de conteúdo psicológico entre um sujeito e um bem; esta esgotando a sua relevância jurídico» ('"). Para o autor e por outro lado, a estrutura das normas penais não se
no plano da intersubjectividade. Daí, em segundo lugar e como corolário, o princípio adequa ao propósito de proteger a integridade de bens jurídicos. Para tanto teria o
da total disponibilidade do objecto da tutela do direito penal. O titular do interesse legislador de incriminar e punir toda a conduta de que resultasse um qualquer dano
pode, em interacção com os «outros significantes» e sem quaisquer limitações - ou perigo para os bens jurídicos. O que redundaria numa tutela contínua e absoluta
pelo menos à margem de limitações decorrentes de exigências sistémico-sociais ou que nem sequer a um bem jurídico com a importância, v.g., da vida humana é
comunitárias- transformar ou mesmo extinguir pura e simplesmente aquela dispensada. Pelo contrário, as normas penais limitam-se a prevenir alguns tipos de
relação psicológica. E, por essa via, deixar a norma penal sem objecto idóneo de conduta humana e, nessa medida, a proteger apenas um número contado de interesses
tutela. Em terceiro lugar, e estreitamente associado,esta corrente doutrinal define-se dentre a plétora daqueles que, por via de regra, se reportam a cada bem jurídico. Em
pelo âmbito, praticamente sem limites, de validade e eficácia que reconhece ao síntese, penalmente protegidos não são estados ou coisas. Segundo KESSLER «é antes
consentimento. Tese que, por sua vez, tem como complemento um quarto princípio: o sentimento espiritual ou corpóreo de seres humanos vivos que há-de ser posto a
o da plena equiparação - tanto em sede de valoração político-criminal e de coberto de agressões por outros homens. Este é, e não outro, o significado real do•
configuração doutrinal, como e sobretudo no que concerne aos efeitos prático- direito com todas as suas instituições(...). Na realidade, éo homem comoserafectivo
-jurídicos - da heterolesão consentida à autolesão. Resulta, por último, claro que, (ais empfindendes Wesen) que aparece sempre como objecLO de tutela penal e, por
a esta luz, só poderá atribuir-se ao consentimento a sede mais definitiva e radical de isso, de todo o crime» (170).
exclusão da puniblidade, a tipicidade. Qualquer outra e divergente construção
doutrinal não prestaria homenagem à realidade dos «factos»: o consentimento retira,
em concreto e em absoluto, à norma penal o objecto de tutela como retira à conduta ("') Cf. sobretudo, GS 1887, pág. 97 e scgs.
do agente todo o objecto idóneo de agressão. ( 16 ª) KEsSLER censura com particular veemência a LISZT a confusão que ele terá estabe-
2.2. É no contexto deste movimento doutrinal, nele integrado e figurando ao lecido entre os dois conceitos. ·
( 110) KESSLER, GS 1887, pág, 111,
mesmo tempo como um dos seus mais representativos expoentes, que deve perspec-
94 Consentimento e Acordo em Direho Penal

'
r __________ A_E_•x_p_en_·ê_n_ci_a_H_i_st_6n_·co_-D_o_u_1n_·n_at___________
95

No que fica dito contém-se já o essencial da caracterização do conceito de defesa de interesses contra a vontade do seu titular, acentua KESSLER, constituiria em
interesse quer no que respeita à qualificacão material quer no que concerne ao si mesma uma invencível contradição». Pois, através do consentimento o indivíduo
respectivo titular ou portador. No primeiro aspecto, sobressai a estrutura de uma declina deixar de ter qualquer interesse no objecto concretamente atingido. Com o
relação psicológica de conteúdo prevalentemente cmotivo-afectivo. Já quanto ao que, para além de deixar a lei sem objecto idóneo de tutela, retira outrossim todo o
portador, KEssLERconsidera que, cm rigor, só a pessoa individualmente considerada sentido ao conceito de lesado. Como retira, por último, todo o suporte e toda a
pode figurar como sujeito de interesses uma vez que só ela detém a necessária legitimação à intervenção limitadora da eficácia do consentimento que apelasse para
dimensão psicológica reclamada para o efeito. O autor admite, porém - neste qualquer referência sistémico-social ou, concretamente, para qualquer cláusula dos
aspecto se distanciando do individualismo exacerbado de HERTZ-que exigências bons costumes.
de técnica legislativa possam induzir a tutela de interesses abstractos, referenciados Igualmente decisiva a u;se da plena parificação jurídico-penal entre a auto lesão
a construções do direito como pessoas jurídicas ou o próprio Estado. Isto sendo certo e a heterolesão consentida. Uma equiparação que permite defender a aplicação a esta
que a pessoa humana aparece invariavelmente como beneficiário último da tutela última do mesmo regime de impunidade de que em princípio goza a auto lesão. Como
penal. Restará acrescentar que o interesse penalmente tutelado não se reporta, argumento destinado a reforçar a consistência desta tese, em geral subscrita pelos
segundo KEsSLER, ao objecto ou bem em si mas antes ao acontecimento (Ereignis) adeptos da doutrina do interesse, considera KEsSLER: «Se uma determinada acção é
ou evento que pode atingir aqueles referentes materiais. «O interesse duma pessoa proibida a todas as pessoas excepto a uma, então isso constitui a prova de que apenas
num facto (Thatsac/ze) é a relação da pessoa com esse facto, por virtude da qual a o interesse dessa pessoa é protegido pela lei e de que, em consequência, é
ocorrência ou não ocorrência do mesmo tem consequências negativas para um bem considerada permitida a acção realizada com o seu consentimento» ( 174).
da pessoa» (171 ).
2.3. A obra de KESSLER caracteriza-se igualmente,já o deixámos assinala- § 7. AMELUNG: UMA DOUTRINA FUNCIONALISTA DA DANOSIDADE SOCIAL.
do, por assumir expressamente as relações de implicação recíproca entre a pro-
blemática do objecto da tutela e do crime, por um lado, e o tema do consentimento, 1. Na concretização do propósito que começámos por declinar propomo-nos
por outro. Daí que o consentimento figure como referência permanente e como pedra agora uma referência à doutrina de dois autores contempor-Jneos, AMELUNG e
de toque do acerto doutrinal de cada um dos momentos mais decisivos da reflexão JAKOBS. Fá-lo-emos mantendo, no essencial, inalterado o interessecognitivo que nos
do autor. Não faltam mesmo vozes a denunciar que a doutrina do objecto da tutela tem movido. Apenas nos permitiremos, dada a proximidade das respectivas obras e
e do crime sugerida por KESSLER apenas terá surgido como construção «ad /zoe» a sua óbvia relevância par-.t a actual impostação das questões, reforçar a vigilância
(OPPEK!IEIM), predeterminada para se ajustar a uma concepção do consentimento e valoração críticas. Quanto a AMELUKG, a nossa atenção cenmrr-se-á preferencial-
previamente assumida (172). mente na aturada investigação publicada cm 1972 sob o título elucidativo
Marcante, a começar, o princípio, pelo próprio autorapontado como «extrema- Rechtsgüterschutz und Sc/zutz der Gesellschafi. Obra que se analisa em duas partes
mente importante»: «o consentimento do ofendido excluirá sempre a punibilidade autónomas se bem que complementares entre si e obedecendo à mesma orientação
da acção do agente». Nem será difícil apreender o sentido e alcance das razões doutrinal de fundo: a primeira dedicada à história dogmática do bem jurídico; a
invocadas pelo autor para fundamentar uma tão extremada adesão ao dogma volenti segunda de índole construtiva e concebida como« uma teoria da danos idade social».
non fit injuria. Razões que relevam fundamentalmente da ideia de que um bem
jurídico só persiste como tal see na medida em que subsiste acorrespondenterelacão
psicológica com o indivíduo, através da qual se mediatiza a sua valência para o bem-
-estar pessoal e se faz emergir um interesse digno de protecção penal (173). «Uma
cm) KEssLEn, GS 1886, pág. 570. Não se afigura difícil pôr a descoberto a inconsis-
tência desta argumentação, aparentemente convicentc. Nela confundem-se e identificam-se
duas coisas distintas: a ausência de incriminação num determinado sentido e a insubsistência
de interesse digno de tutela penal. Hoje sabemos que tal identificação não é necessária. A
(
171
) KESSLER, !d.,pág, 101. Para fundamentar esta definição de interesse, o autor lacuna de punibilidade pode ser ditada por considerações do discurso da criminalização que
invoca, inter alia, o étimo do próprio termo interesse, Recordando, a propósito, que na não contendem dircctamente com a dignidade penal do bem a proteger. Isto é, a não punição
corrcs~ondenlc expressão latina (u.g., interest mea) se pede sempre, como complemento, uma da autolesão pode perfeitamente justificar-se por razões que se prendem com a carência da
acção, isto é um verbo. tutela penal ou mesmo com a eficácia desta específica protecção. Como pode outrossim
(
172
) 0PPE?-.11EJM, Die Objekte, pág. 38. No mesmo sentido, BINDL'-i'G, Die Nonnen,
justificar-se - tópico recorrente na presente investigação - por considerações de política
I vol.,pág. 3õ4. criminal atinentes à polaridade dialéctica entre a ordem da autonomia (do sistema pessoal) e
(m) KEsSLER, GS 1887, pág. 99 e segs. a ordem da hctcronomia (do sistema social).
A Experiência Hist6rico•Doutrinal 97
96 Consentimento e Acordo em Direito Penal

\
No plano histórico, AMELUNG dá particular ênfase à tese da ruptura entre, por que julga ser o imperativo constitucional em matéria de criminalização. «A consti-
um lado, o pensamento iluminista de um direito penal circunscrito às condições tuição impõe que o direito penal proíba apenas condutas socialmente danosas. Deste
básicas da convivência humana e, por outro lado, a doutrina do bem jurídico. Com princípio constitucional decorre que a norma só pode ser aplicada de molde a que
o que procura pôr em crise o entendimento até então dominante na historiografia do dela resulte um contributo para a manutenção do sistema social. O que naturalmente
bem jurídico, onde, maxime depois da investigação de SINA (175), era relativamente reclama uma maior aproximação do problema da função social da norma pe-
pacífico o postulado da continuidade histórico-doutrinal entre a lesão do direito nal» (17').
subjectivo do iluminismo e a lesão do bem jurídico do positivismo. Em sentido 2.1. Para tanto, privilegia AMELUNG a teoria do sistema social nas versões de
diametralmente oposto, contrapõe AMELUNG que «a teoria do objecto da tutela de PARS0NS e LUHMANN. Nesta linha, começa por definir a sociedade como um
BIRNllAUM se afasta da doutrina da lesão do direito subjectivo em três aspectos «sistema de interacções», que «a si mesmo se mantém e que transcende a duração
significativos: na criação do conceito de bem (jurídico) da comunidade; no alarga- temporal da vida do indivíduÓ, secompletaatravés da reprodução biológica e assume
mento do espectro de tarefas e fins legítimos do Estado; e, por último e estreitamente o encargo da socialização das novas gerações». É esta representação da sociedade,
concxionado, na recusa a ancorar a doutrina do objecto do crime numa teoria das cm termos sistémico-funcionalistas, que permite a AMELUNG identificar em moldes
condições de convivência humana, como antes o tinham feito os iluministas» (176). pré-jurídicos as perturbações das condições da convivência humana. Isto é, lhe
Segundo AMELUKG, cm vez de um direito penal sobrcponívcl a uma teoria da permite definir a categoria da danosidade social de que o crime constituirá apenas
sociedade e, por isso, racional e trans-sistemático, a teoria do bem jurídico veio abrir uma forma particular de revelação. «Socialmente danoso é, neste sentido, uma
a porta a um direito penal irracional erestaurncionista, àmargem de todo o «controlo manifestação de disfuncionalidade, um fenómeno social que impede ou dificulta a
sociológico». «Enquanto a doutrina iluminista da danosidade social se orienta para superação pelo sistema social dos problemas da sua sobrevivência e manutenção.
uma rcllexão, em última instância sociológica, sobre as condições da convivência Tais fenómenos sociais podem revestir as formas mais diversificadas (...). O crime
humana, a doutrina da protecção de bens jurídicos rompe de forma dccisionística é apenas uma forma especial dos fenómenos disfuncionais e, em geral, raramente o
com tal reflexão. O decisivo para a constituição do bem jurídico é um momento mais perigoso. O crime é disfuncional enquanto violação de uma norma instiwcionalizada
volitivo. Os bens jurídicos nascem de um acto de valoração cujo objecto é estabele- (deviance), indispensável para a solução dos problemas de subsistência da socie-
cido pelo legislador (...). Ora, se os bens jurídicos dimanam de uma decisão de valor dade (.•.). O seu perigo reside fundamentalmente no facto de impedir a solução dos
do legislador, então a legitimação do direito penal a partir da protecção de bens problemas do sistema, já que põe em questão a vigência de normas que podem
jurídicos mais não significa do que a legitimação do direito penal por ele próprio» (177). contribuir de alguma forma para esta tarefa. A função do direito penal, como
mecanismo de controlo social é, assim, a de contrariar o crime» (179).
2. Na leitura histórico-dogmática de AMELUNG estão já coenvolvidas as Do exame analítico da sociedade, como um sistema de intcracções - a que
premissas e prenunciado o caminho a seguir pelo autor na parte construtiva. AMELUNG procede antes de curar expressamente da sua projecção sobre o direito
Propondo 0sc retomar a via da pureza originária da mundivisão iluminista, o autor penal (18º) - importa reter duas notas.
apela para a teoria sociológica como fundamento das condições de convivência A primeira contende com as relações entre o indivíduo e a comunidade. O autor
humana (Bedingungen menschlichen Zusammenlebens) isto é, dos referentes pré- considera serem ostensivas as vantagens da teoria sistémica, de modelo cibernético,
-positivos de um conceito igualmente transjurídico de danosidade social. O que face às tradicionais e conservadoras teorias do organismo (social), de modelo
abrirá caminho a uma inovadora doutrina da criminalização e da ilicitude material, biológico. Para estas últimas, o indivíduo só tem sentido enquanto membro da
construída à margem do conceito de bem jurídico. Isto, de resto, em obediência ao colcctividade, estatuto que de alguma forma implica a dissolução da sua individua-
lidade. Diferentemente, a teoria sistémica não encara a pessoa- ao contrário do que
sucede, por exemplo, com as normas, instituições, papéis, sub-sistemas, estes sim,
membros da sociedade-como membro do sistema social. É precisamente aqui que
radica a diferença fundamental entre os dois modelos teóricos: a teoria do sistema
( 176) Quanto à controvérsia historiográfica sobre a continuidade/descontinuidade entre
a doutrina iluminista do direitosubjectiuo e o novo paradigma do bemjur!dico inaugurado por
BmNBAUM, cf. supra, notas 40 e 41. De AMELUNG, e para alóm da monografiaRechtsgüterschutz
a que dircctamcntc nos reportamos, cf. ainda ZStW 1972, pág. lOlõ e scgs. Sublinhando
igualmente o sentido histórico-ideológico da mudança, numa perspectiva crítica do direito
penal, Scunm, Responsabilità, pág. 33 e segs. ("') [d., pág. 370.
( 118) AMELUNG, Rechtsguterschutz, pág. 49.
("') [d., pág. 361.
( 18º) Desenvolvidamente, pág. 350 e scgs.
("') Id., pág. 5/6.

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98 Consentimento e Acordo em Direito Penal A Experiência Hist6rico Doutrinal
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social é um produto da alienação entre o indivíduo e a colectividade, enquanto ' as danosidade social entre os polos do decisionismo e do direito natural. Não resta,
doutrina~ do organismo procuram superar esta alienação, se bem que de fonna depois de ambas as soluções extremadas haverem sido, por causa das suas conse-
meramente ideal. Em qualquer caso, a teoria do sistema social investiga em primeira quências históricas, proscritas, outro caminho» {186).
linha, «não as necessidades da pessoa individual, mas antes as exigências da Compreende-se, assim, que AMELUNG busque, nesta sede, o apoio da Consti-
interacção entre uma maioria de pessoas» (1 81 ). tuição. Já para emprestar conteúdo ao modelo abstracto resultante da teoria do
A segunda prende-se com a «neutralidade política» {182) da teoria do sistema. sistema social, já sobretudo como matriz de legitimação material das soluções
Como modelo teórico-analítico dos sistemas de interacção, na perspectiva da concretas do direito penal, reclamadas pelo princípio de danosidade social. A
funcionalidade sistémica, tanto pode valer para uma sociedade democraticamente Constituição- sub-sistema de organização política, económica e social e, sobretu-
legitimada como para um sistema totalitário ou uma vulgar associação criminosa. do, catálogo dos direitos fupdamentais- emerge como fundamento do que AME-
Como interpretação sociológica, a teoria do sistema não detém, por si própria, LUNG·designa por limites ou custos de índole liberal que o sistema tem de respeitar
estruturas nem princípios de legitimação. Esta só poderá derivar de premissas nas suas respostas às manifestações de danosidade social. «Os custos dos artigos 1.º
normativas segregadas pelo sistema jurídico e, nomeadamente, pela Constitui- e 2.• da Lei Fundamental para o sistema social consistem no facto de os princípios
ção ('"). fundamentais neles consagrados estreitarem o espectro das soluções possíveis: o
2.2. É sobre o pano de fundo da teoria do sistema social que AMELUNG sistema não pode superar os seus problemas àcusta do desrespeito do valorautónomo
procura pôr de pé uma construção do direito penal, orientada por um «conceito da pessoa. Nessa medida, os princípios funcionam como limites do pensamento da
objcctivávcl de danosidadesocial». Uma tentativa que, imponasublinhá-lo desde já, danosidade social em direito penal» {187).
vem a resultar cm frustração das expectativas que o percurso até aqui seguido faria Em ordem a umamelhor clarificação das coisas deve ter-se presente que, em
legitimar. Tudo, com efeito, a partir daqui se encaminha no sentido do restabeleci- consonância com as considerações já recenseadas, AMELUNG considera o sistema
mento dos coelicicntcs de normativização num horizonte que tão laboriosamente se social como o «lugar de detenninação dos efeitos socialmente danosos do crime» (188).
havia «purificado» dos lastros de positividade, historicamente sedimentados a partir É outrossim àquela instância ou sede que devem reportar-se todos os crimes, mesmo
de BIRl\UAlJM. os que atentam directamente contra a pessoa individual: também o atentado contra
A~IEl.li:SG começa porexplicitarqueda teoria do sistema apenas poderá colher- a pessoa humana é socialmente danoso «porquanto nenhum sistema de interacção
-se um modelo de interpretação, rastreio e superação dos problemas organizatórios pode subsistir sem pessoas» {189). Esta perspectiva vem a revelar-se, como o próprio
com que, cm abstracto, o sistema social se defronta. Ela não está em condições de autor assinala, rica de consequências no plano ético-jurídico.
oferecer soluções acabadas cm matéria de estruturas, instituições, nonnas, etc. Se é o sistema social que deline os critérios de relevância do crime, então não
«Assim como da teoria do sistema social não pode fazer-se decorrer um direito poderá esperar-se dele qualquer limite à funcionalização da pessoa. As bârreiras -
natural sociológico, assim, ela não está igualmente em condições de servir de ou, na linguagem do autor, os custos - só poderão advir de espaços exteriores ou
fundamento a um conceito natural de danosidade social que delina aquilo que, em ambientais, com destaque para a Constituição com o intransponível «princípio da
concreto, é prejudicial para a vida em comum cm todas as sociedades passadas, · inviolabilidade da dignidade humana». Como AMELUNG sublinha, «o postulado de
presentes e futuras» {184). A solução dos problemas fundamentais do sistema há-de, que o direilO penal tem de assegurar as condições de convivência humana não
pois, consti LUir matéria de decisão política. E há-de, por isso, caracterizar-se pela sua significa, de acordo com a concepção aqui desenvolvida, que a pessoa tenha de ser
natural plasticidade e contigência. Pré-positivos, e nessa medida subtraídos ao protegida por ela própria, mas apenas por causa da sociedade(•. ;). Uma vez que toda
arbítrio do legislador, são apenas os problemas fundamentais da organização da vida a solução de problemas tem os seus custos, é pensável a solução de um problema do
cm comum {185). «As soluções, essas são já na sua natureza, pelo menos nas sistema à custa da tutela da pessoa e, se necessário, mediante o sacríficio da
sociedades modernas, determinadas pelo genial instrumento de solução de proble- existência de cidadãos individuais» ("º). E ainda: «um sistema social pode estabi-
mas que é o direito positivo (...). Este conceito permite dirigir o pensamento da

("') ld,, pág. 363. (1H) Ibidem.


( 1") Id., pág. 366. (m) ]d., pág. 385 e scgs.
("') ld., pág. 363. ( 18ª) !d., pág. 385 e scgs.
("') Id., pág. 368. ("') Id., pág. 388.
( 155) Ibidem.
("º) Id., pág. 389.
100 Consentimento e Acordo cm Direito Penal A Experiência Hist6rico-Doutrinal 101

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lizar-se Iambém pennitindo a morte de velhos, doentes ou criminosos» (191). Face a problemas cuja resposta não poderá lograr-se a partir da «análise das consequências
esla tendência da lógia sistémico-social para a absolutização do ethos da funciona- objectivas de uma conduta sobre o sistema social, mas, por princípio, só mediante
lidade- se necessário, à cusla de soluções de Rocha Tarpeia- terá de apelar-se remissão para um sujeito que prossegue determinados objectivos que dimanam de
para um «princípio constitucional de garantia do valor autónomo da pessoa». Um certas representações de valor. Entre estes problemas contam-se: «a detenninação do
princípio que, «afinal, Iambém se reveste de significado funcional para a sociedade objectivo de uma nonna (ao contrário do que sucede com as suas funções); a questão
em geral,já que uma sociedade ai lamente diferenciada carece de pessoas seguras do de saber se uma proibição penal foi estabelecida por causa do indivíduo ou da
seu próprio valor» ('"). colectividade; a medição dos danos produzidos por um agente e a sua hierarquiza-
Em síntese conclusiva quanto a este ponto e apelando ainda para a formulação ção» ("').
do autor: «A detenninação da danosidadesocial de uma acção criminosa tem sempre Nestes tcnnos, o bem jurídico represenla para AMELUNG um entreposto
um alcance generalizador, uma vez que o sistema social procura sempre resolver os necessário à operatividade do princípio de danosidade social e, simultaneamente, a
seus problemas de fonna duradoira, através da institucionalização de nonnas. instiincia de intervenção do legislador, confonnadora do sentido definitivo da tutela
Assim, e no que toca à tutela da pessoa, a Constituição institucionaliza uma solução a prosseguir com a norma penal. «O dogma do bem jurídico possui todas as
optimizada: garantindo a protecção de cada indivíduo. O princípio do respeito da vantagens de uma investigação compreensiva das representações de um legislador
pessoa, uma máxima fundamenlal da nossa ordem social, seria gravemente posto em que actua finalisticamente; pelo contrário, a investigação das funções sociais de uma
perigo se se pudesse recusar este respeito a um só homem, invocando-se a sua falia norma detém todas as vantagens da análise sociológica do seu significado objectivo
de utilidade. A partir deste princípio pode, pois e em geral, concluir-se que terá de no sistema social da sociedade» ("').
combater-se como socialmente danosa, toda a acção lesiva da pessoa» ("'). Quando, nesta linha, o autor se interroga sobre as relações que medeiam entre
2.3. Os limites que AMELUNG assinala àobediência absoluta do direito penal dois conceitos ou princípios que toda uma longa investigação predispusera para
ao princípio da danosidade social não se circunscrevem aos que ficam referenciados considerar irreconciliavelmente divergentes, a resposta acaba por resultar significa-
e que o autor designa por limites liberais. Para além destes outros há, com des1aque tivamente clara. «Talvez - considera- a melhor forma de o conseguir seja
para o que apoda de limites dogmáticos e que contendem essencialmente com a encarar a renexão sobre as condições funcionais da ordenação social como base de
ten1ativa de confronto e articulação entre o princípio da danos idade social e o do bem valoração para a detenninação dos bens jurídicos» (197). O que implica «ter de se
jurídico. continuar apegado ao ponto de partida subjectivo do bem jurídico», assente num
Ao contnírio do que se poderia esperar, AMELUNG não se propõe substituir pura juízo de valor do legislador. E, nessa medida, correr-se o risco de «ter de se ver
e simplesmente o princípio do bem jurídico pelo dogmadadanosidade social. Trata- convertido em bem jurídico qualquer objecto que o legislador tem por valioso e
-se, segundo o autor, de conceitos distintos, correspondentes a interesses cognitivos digno de protecção». Este é, porém, um risco que poderá correr-se na crença de que,
diferenciados, desempenhando no contexto da dogmática jurídico-penal funções afinal, «sempre o legislador quererá, por princípio, fazer algo para melhor se
diversificadas, se bem que complementares entre si. A danosidade social e o bem assegurarem as condições da convivência humana». Crença que deve ser privilegia-
jurídico respondem a questões diferentes que se prendem, respectivamente, com a da no labor hennenêutico, maxime no que concerne à superação das dúvidas, apesar
função e o objectivo da norma. O que credita o pensamento do bem jurídico de uma de tudo sobrantes, quanto à determinação precisa da área de tutela da incriminação
específica e não despicienda vantagem: «O desenvolvimento imediato, a partir de típica.
um juízo de valor, do objecto que sofre os efeitos lesivos de um crime.» O «que
constitui uma barreira intransponível à objectivação da danosidade social sobre o 3. As concepções de AMELUNG despertaram grande interesse no âmbito
terreno do dogma do bem jurídico. Isto porquanto juízos de valor remetem sempre doutrinal. Um interesse justificado já pela dimensão e profundidade da investigação;
para um sujeito valorador. E aí residem precisamente todas as vantagens do já pela originalidade da interpretação histórica da evolução dos dogmas conexiona-
pensamento do bem jurídico no contexto de uma argumentação orientada para a dos com o objecto do crime e, em especial do bem jurídico; já ainda pelo teor
vontade do legisladon> ("'). Há, deste modo, prossegue o autor, um conjunto de inovador das suas propostas dogmáticas. Mas Ac\1ELUNG tem sido igualmente alvo de

("') Ibidem.
( 192) Ibidem. ('") Ibidem.
("') ld., pág. 390. ( 1H) Ibidem.
('") [d., pág. 394. (1") Ibidem.
102 Consentimento e Acordo cm Direito Penal A Experiência Hist6rico•Doutrinal 103

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críticas particularmente exigentes. Que têm posto em evidência algumas debilidades distância que separa o ponto de chegada das metas à partida anunciadas. Em termos
intrínsecas que inquinam no plano doutrinal a sua construção bem como as inadequa- tais que não deverá levar-se à conta de exagero o reparo de um autor segundo o qual,
ções eos perigos que ela comporta em sede político-criminal {198). Estando aqui fora as «inesperadas» conclusões de AMELUNG «realizam precisamente aquilo que ele se
de causa uma valoração esgotante e sistemática, limitar-nos-emos a enunciar três propunha esconjurar: um retorno aBinding e à definição do bem jurídico como tu d.o
notas críticas. Para pôr em evidência o que se nos afiguram ser outras tantas 0 que, do ponto de vista do legislador, constitui condição de uma vida sã da
limitações na perspectiva que aqui mais directamente nos concerne. Isto é: no que comunidade jurídica» (1'"). AMELUNG não só mantém o conceito de bem jurídico
toca ao peso relativo das referências.sistémico-sociais e individuais do objecto do como se reporta a um bem jurídico cuja conformação definitiva comete, em
crime, com as respectivas implicações para a compreensão normativa e doutrinal do exclusivo, ao legislador. O que equivale a uma como que capitulação face ao
consentimento. positivismo, abrindo-se aléJ!I disso mão dos potenciais de crítica e de liberalismo
3.1. O que, em primeiro plano, sobressai é o que se nos afigura ser o relativo com que, esforços entretanto desenvolvidos- por autores como JÃGER, RUDOLPHI,
inêxito teórico-doutrinal de AMELUNG. Ele está, com efeito, longe de concluir pela SAX ou ROXIN - tinham procurado armar o conceito de bem jurídico (''").
configuração e validação das hipóteses desde o início sugeridas. E que aspiravam a
referenciar uma teoria sociológica- concretamente a teoria sistémico-funcionalis-
ta -susceptível de ser convertida num princípio pré-positivo de danosidade social
que pudesse dispensar e substituir com vantagem o dogma do bem jurídico ('"). O
que AMELUNG, noutros termos, começa por propor é redimir a doutrina jurídico-
-penal do pecado original do positivismo devido ao aparecimento do bem jurídico. º Musco, Bene giuridico, pág. 107.
( 2 1)
º Não cabe aqui individualizar no seu significado histórico-doutrinal os contributos
( 2 2)
E, por essa via, e com os olhos postos no modelo iluminista (2"'), abriras portas a um destes autores para a compreensão do bem jurídico, hoje dominante. Deverá, contudo,
direito penal: liberto, por um lado,. da contigência (e arbítrio) das valorações do adiantar-se que, cada um a seu modo - e pondo entre parênteses as oscilações assumidas,
legislador, cristalizadas no bem jurídico; e, por outro lado, directamente ancorado r,,g., por R0XIN, e que a seu tempo procuraremos recensear-eles tentaram e cm boa medida
conseguiram: por um lado, salvaguardar o que de material e político-criminalmente inovador
numa representação sociológica das condições da vida em sociedade. a proposta de AMELUNG deixava edivinhali e1 por outro lado e complementarmente, ladear as
Ora, bastará ter presentes as duas páginas que fecham a volumosa investigação dificuldades que a doutrine de AMELUNG não conseguiria superar. Recortando o bem jurídico
de AMELUNG, de que extraímos as nossas últimas citações, para se concluir pela - pelo menos na sua vertente político-criminal - sobre o horizonte problemático da
danosidade social (constitucionalmente sancionada), aqueles autores erigiram a danosidade
social oferecida pela teoria sociológica numa dimensão integrante do conceit.o e do princípio do
bem jurídico. À radical distanciação e incomunicabilidade entre as duas perspectivas- a do
positivismo assente no princípio do bem jurídico e a da teoria sociológica mediatizada pelo
(
198
) Por todos, HASSEMER, ZSt\V 197õ, pág, 146 e scgs.j STRATE?\'WERTH,Strafrecht,AT, princípio da <lanosidade social - preferiram uma impostação de tensão e de síntese dialécti-
pág. 36 e scgs.; Musco, Bene giuridico pág, 103 e scgs. cas. Um caminho que evite o recurso àqueles contactos exmachina a que AMELUNG acabou por
( 1P9 ) Sobre as dificuldades que, Jogo a este nível, se deparam à teoria de A.'\IELUNG, se ver compelido.
STRATESWERTII, ob. loc. cit. Terá sido o propósito de vencer estas críticas que levou SCHALL-Die Schulzfunktionen
(
200
) Sobre a possibilidade de rcfcrcnciaruma teoria sociológica, subjacente às rcprcscn• der Slrafbestimmung gegen Hausfriedensbruch (1974), com o sugestivo subtítulo Ein Beispiel
taçõcs do iluminismo, cf. ANGI0NI, Contenuto, pág. 125 e scgs. Seja como for quanto a este für dic soziologisch fundierle Auslegung strafrechtlicher Talbesta.nde, em que é ostensiva e
ponto, sempre terá de se questionar a pertinência de uma das pretensões mais recorrente- expressamente assumida a influência metodológica e teórica dcAMELUNG- a procurar novas
mente sublinhadas por AlIBLUNG: assumir face ao direito penal e à representação da sociedade formas de compreensão das relações entre o bem jur{dico e a danos idade social. Desta forma
a postura teórica que considerou ter sido a dos penalistas do ilumiitismo. Ora, a verdade é que ensaiando uma via intermlldia entre AMELUNG e os autores referidos no texto, SCHALL começa
tal estava historicamente precludido. Pois, se é verdade que não podemos lavar-nos duas vezes por acompanhar AMELUNG na reinterpretação da historiografia e da história doutrinal do bem
nas (mesmas) águas do mesmo rio, muito menos podemos fazê,,lo mudando de rio. E são, com jurídico (pág. 42 e segs~). Por outro lado, e à semelhança de AMELUNG, também ScHALL
efcit.o, distintos e incomunicáveis os leitos por onde correm as representações da sociedade privilegia a teoria do sistema social de PARSONS como critllrio de <lanosidade social e como
subscritas por AJ\.IBLUNG e as que o aut.or imputa ao iluminismo (A?.IBLUNG, ob. cil., pág. 26 e referência do "'controlo sociológico)) (pág. 79), necessário para se contornar o risco do positi-
segs.). O modelo teórico sistém.ico-funcionalista de queAMELUNG se louva implica por definição vismo incubado no conceito de bem jurídico. Os caminhos dos dois autores seguem ainda
uma representação arquetípica da sociedade e do seu funcionamento. E postula1 cm conformi- paralelos quanto ao dogma de que as normas constitucionais (ma.:cime as de mais óbvia
dade, um programa político-criminal destinado a assegurar a sua manutenção e curso sem relevância para efeitos de Estado de Direito), só consentem <0mo fundamento da legitimação
perturbações. Diferentemente, e ainda segundo a interpretação do autor, o iluminismo da pena estadual, a <lanosidade social, isto é, os comportamentos que abalam as condições da
apontaria para uma sociedade que se esgotaria na existência e expressão de autarcias existência dos cidadãos e da vida comunitária organizada cm Estado .. (pág. 72). O que impele
individuais. O que retiraria legitimidade a qualquer programa de intervenção para alóm da igualmente ScHAJ,L a virar-se para a teoria sociológica com vista à identificação dos pressupos-
(exclusivamente) necessária a garantir a segurança das esferas de acção dos cidadãos tos, funções e disfunções da convivência socialmente organizada. Contudo- e aqui começam
monadicarnentc considerados. a ganhar rosto as divergências cm relação aAMELUNG- a doutrina da <lanosidade social de
104 Consentimento e Acordo em Direito Penal A Experiência Hist6rico•Doutrinal 105

\
Acresce que o equilíbrio que AMELUNG procura estabelecer entre os princípios -- complexidade e dos custosq ue reclamam a neutralização ou, ao menos, a moderação
dadanosidade edo bem jurídico resulta claramente leonino a favor deste último cujo das exigências sistémico-sociais de que a danosidade social é expressão.
primado é expressamente ressalvado. Ao princípio de danosidadc social fica apenas 3.2. Uma reflexão mais atenta sobre a construção de AMELUNG não deixará,
reservada a função de um distante pano de fundo sobre que se vão sobrepondo e em segundo lugar, de trazer à superfície algumas descontinuidades e incongruências
estratificando as grelhas normativas (maxime, a ordem jurídico-constitucional) e teórico-doutrinais. Recorda-se, por exemplo, que ao interrogar-se sobre os limites da
dogmáticas (o bem jurídico). Um princípio cuja margem de operatividade será, cm legitimação da acção sistémico-social e, concretamente, da específica acção social
qualquer caso, apenas a consentida pelas descontinuidades ou insuficiências do bem que é a criminalização de condutas humanas, o autor responde com a Constituição.
jurídico. Significativamente, AMELUNG encerra a investigação com uma vaga Em termos de não ser o sistema social em si mesmo, mas apenas o sistema talhado
recomendação dirigida ao legislador: que desenhe as incriminações típicas e as à medida e na forma da orc_lem constitucionalmente positivada que aparece legiti-
respectivas áreas de tutela em moldes tanto quanto possível sobreponíveis aos mado - como sujeito da valoração e beneficário da mesma- a lançar mão da
sistemas de acção e às esferas de acção individual (21"). reacção contrafáctica própria do direito penal para assegurar a sua manutenção e a
Resumidamente, a doutrina da danosidade social de AMELUNG parece conde- das suas estruturas fundamentais.
nada ao estigma da «profecia-que-a-si-mesma-se-destrói». Com a singularidade e, O que induz dircctamcnte a questão do estatuto teórico-sistemático da própria
de algum modo a ironia, de ser a Constituição, apesar de tudo um sub-sistema Constituição: sub-sistema do sistema social ou, pelo contrário, sub-sistema do
jurídico-positivo, que, cm nome dos princípios do Estado-de-Direito, nega ao direito ambiente e, por isso, matriz de complexidade ou, como o autor prefere, de custos?
penal a legitimação para a prossecução de fins transcendentes e impõe a realização A adaptar-se a primeira hipótese, não poderá deixar de se fazer coro com HASSEMER
de finalidades socialmente imanentes. E, nessa medida, acaba por garantir à quando, criticamente, se interroga: «como é possível que a legitimidade possa advir
danosidade social a única abertura para a sua (residual) relevância. A mesma de um dos seus sub-sistemas precisamente o ordenamento constitucional?» (""). Já
Constituição que, noutro enquadramento, AMELUNG apontara como a fonte da na segunda hipótese, não pode, inversamente, deixar de suscitar perplexidade a
aceitação, ao arrepio das próprias premissas teóricas, da possibilidade deo ambiente
condicionar tão decisivamente o desempenho do sistema
Segundo o autor, por outro lado, a pessoa não é, em si mesma, portador
autónomo de dignidade penal. Ela só merece a tutela penal necessária e conveniente
ScHALL é ainda uma doutrina da bem jurídico, reclius a doutrina daSozialbezogenheit do bem - isto é.funcional, mas apenas essa - do ponto de vista do sistema social. Como
jurídico. ScHALL não se propõe converter a danosidadc social em alternativa pol(tico-criminal
ou dogmática ao bcmjurídico. Pelo contrário, trata-se apenas de converter a danosidadc social
HASSEMER acertadamente refere F), a doutrina de AMELUNG aponta para a ideia de
numa dimensão correctiua dos juízos de positivaçãa primária ou secundária, que são os «funcionarização da pessoa». Não poderá ser outra a consequência do entendimento
momentos de formação, interpretação e aplicação do bcmjurídico. O autor não se verá, assim, de que o problema da danosidade social dos atentados directamente infligidos à
constrangido a lançar pontes, tão inconsistentes como artificiosas, sobre margens antes - e pessoa só pode ser solucionado a partir da ideia de que «nenhum sistema de
arbitrariamente- afastadas. «Nós concebemos a função social roma um corrcctivo e(ectiva•
mente necessário mas que acresce ao juízo de valor do legislador. O que significa que, na interacção pode existir sem pessoas». A pessoa é, assim, destronada da constelação
identificação dos bens jurídicos, podemos partir do acto inicial de valoração do legislador que dos fins directos da tutela penal, passando a valer como mero meio de protecção do
determina, nos·seus traços fundamentais os objcctos da protccção das normas bem como o sistema social. O que não deixará de apontar a via da invenção de equivalentes
respectivo âmbito de tutela. E s6 a partir daí caberá, como auxílio da respectiva função social, funcionais que poderão ir, é o próprio AMELUNG que o acautela, até à «renúncia à
interpretar e definir os bens jurídicos segundo o seu contributo para a solução dos problemas
da organização social. A nossa concepção presta, assim, homenagem tanto ao pilar positivista existência de membros da intcracção». Quando muito, a pessoa figurará, face ao
do conceito de bem jurídico como à função - de efeitos limitadores - do próprio direito sistema, como um custo ou lastro, com o peso que a ordenação jurídico-constitucio-
penal• (pág. 82). Em síntese, também para SCHALL a danosidade social mais não define do que nal, historicamente positivada, lhe outorgar. O que não pode deixar de se considerar
o pano de fundo sobre que se hão-de recortar e à luz do qual se hão.de interpretar os bens escasso e perigoso. E tanto mais quanto mais eco encontrasse a recomendação final
jurídicos. Compreende•se, por isso, que o autor encare a «danosidade social como apenas
relativamente independente• (pág. 88). E ainda: «O direito penal s6 deve estabelecer as
proibições que visam prevenir os danos sociais. De acordo com as nossas investigações sobre
a Sozialbe:zogenheit do bem jurídico, podemos definir a danosidade social, na perspectiva da
dimensão sociológica da teoria estrutural.funcionalista do sistema, como a conduta que
prejudica ou põe em perigo a solução dos problemas organizatórios. Isto é, sabemo-lo hoje, um
comportamento que lesa os bensjurldicos protegidos pelo direito penal, na sua função social•
(pág. 88). (2~) HASSEMER, ZSt\V 1975, pág, 161.
(2 01 ) AMELUNG, Rechtsgllterschutz, pág. 395. ("') HASSEMER, ]d., pág. 162,
106 Consentimento e Acordo em Direito Penal A Experiência Histórico-Doutrinal 107

de AMELUNG: pôr de pé um direito penal sobreposto ao sistema social e mimético cm ' 4. AMELUNG não cura de dar resposta sistemática e esgotante aos problemas
relação à sua lógica autorcfcrente (2"6). do regime do consentimento e do seu estatuto dou1rinal.

( 206 ) Isto explica as críticas que, oriundas de vários lados - tanto de origem «liberal,.
(v.g., Scl!ELSKY) comO de inspiração «crítica,. ou «radica},. (v.g., BARATTA ou SMAUS) ;.._ têm sistema, reduzido a um instrumento activo da realização de um mundo de que ele, como
convergido sobre a t.coria do sistema e sobre as interpretações sociológicas do direito, cm simples meio, não participa nem decide. A experiência de símbolo cm que nasce a pessoa1 opõe-
especial do direito penal, a que ela tem dado origem (SCHELSKV ..Sistcmfunktionalcr-; -se à experiência do êxito e da eficácia de um mundo de funções gerado no ocaso da experiência
BARATTA,KrimJ 1984, pág. 132 e scgs.; S:.tAUS, Dei delittiedellepene 1985, pág. 93 e scgs. No do sentido incondicionado na sobreposição de categorias de domínio e de exploração» (..Filoso-
que ao direito penal concerne, sobressaem, para alóm da de A.\tELUNG, construçõés como a de fia», pág. 11). E ainda: 11Ao contrário do funcionário, a pessoa ó reserva de solidão perante as
OTTo e sobretudo a de JAK0BS. Pelo seu relevo tcórico-doutrinátio piocurarcmos deixar uma totalidades sistemáticas e, apesar de sempre empenhada nas estruturas que cria, ó diferença
referência mais desenvolvida à doutrlna de JAK0BS, autor que lcvoti mais longe a procura de inobjectivável referida ao excesso da diferença do ser, segundo a relação dialógica da resposta
uma interpretação e construção sistémico-social do direito penal. O que aqui se propõe ó um ao apelo inaugurador da existência pessoal• (Ibidem).
apontamento critico, motivado pela leitura de AMELUNG, mas cuja pertinência cm relação à e) Caberá ainda sublinhar que dificilmente a doutrina de AMELUN'G - o mesmo
generalidade das demais construções jurídico-penais de inspiração sistémico-social se afigura valendo, em princípio, para as teorizações convergentes de ÜTT0 e JAK0BS- se poderia
óbvia. compaginar com o nouo paradigma da teoria do sistema social, entretanto proposto por
a) A propósito da interpretação sistémico-social do direito, e denunciando o seu Lmt:i.tANN (Sobre o significado e a génese deste paradigma, cf., ZoLO, Soziale Wclt 1985,
unilateralismo e rcducionismo, refere SCUELSKV: oca análise sistémico-social do direito gira cm pág. 519 e segs., e supra, pág. 85 e segs.). Este novo paradigma da teoria do sistema assenta
torno desta questão: que contributos traz o direito para o funcionamento do sistema? ,O sobre um conjunto de conceitos onde avultamos deautoreferência caulopoiese e, complemen-
indivíduo (só) aparece nesta análise na dupla veste de destinatário da norma e de portador do tarmente, o de interpenetração. O mais decisivo destes conceitos - pelo menos do ponto de
con{l.ilo. Isto significa que ele ó chamado(...) a assumir passivamente, como motivos da sua vista da inovação teórica e epistemológica-ficou o autor germânico a dCvê-lo aos estudos de
acção, os sistemas de normas produzidos e representados pelo direito (...), que a sua acção MATURANA e VARELA sobre os ..sistemas vivos». No conceito e na teoria daautopoiese sobressai
social aparece induzida pelo sistema. E que, deste modo, o indivíduo nada mais é, por assim a ideia de que a participação de sistemas menos complexos cm sistemas mais complexos não
dizer, do que a marionete do sistema de normas que lhe é imposto( ...). Na análise sistómico- significa que os primeiros percam a sua dimensão autopoiética. Se, no plano cognitivo ou
-íuncional, o indivíduo ó confrontado com o direito, que não ó o seu direito, mas o do sistema epistemológico se explica de algum modo a sobrevalorização da nova dimensão alopoiética do
(...) s6 indircctnmente os interesses do indivíduo são garantidos pelo dircitoD (Ob. cil., sistema elcmcntnr,já o mesmo não terá sentido de uma perspectiva teórico-sistémica. Deste
pág. 56). Para vencer este unilateralismo, propõe SCHELSKV, a par de uma 11análisc funcional ponto de vista não deverá desetcndcr-se que o desempenho alopoiótico do sistema menos
orientada pelo programa da sociedade», o que ele designa por uma «análise funcional-pessoal" complexo ó sempre desenvolvido cm termos de eutoreferência e autopoicse (MATURAXAI
cm que a pessoa apareça como ·um ..abjectivo último• (Endzicl). O que equivale a contrapor VARELA,Autopoiesis, pág. 96 e scgs., sobretudo, pág. 109-111). Por maioria de razão terá de
uma análise funcional orientada para à pessoa e a liberdade à análise que releva das ser assim quando estão cm causa as relações entre o sistema social e o sistema pessoal. Um
representações e interesses das posições de domínio e coerção. Pois, segundo o autor, a aspecto que LtntMAXN viria, de fonna particularmente conseguida, a pôr em evidência. Um
11funcionalidade sistémica do direito ó sempre, de forma larvada, uma funcionalidade de aspecto, de resto, que a obra de MATURANAjá deixa claramente anunciado, 11Na medida em que
domínio (Herrschaftsfunklionalitõ.t) (pág. 77). A análise funcional-pessoal há-de,. pelo os seres humanos são sistemas autopoiéticos - refere MATURANA na sua caracterização do
contrário, estar orientada para preservar a ..integridade e autonomia. da pessoa face ao perigo sistema social- todas as suas actividadcs como organismos sociais têm de satisfazer a sua
de 11dissolução e desintegração» na teia de 11papéis» ou funções a que a teoria sistémico-social autopoiese (•.•). Enquanto componentes da sociedade, eles realizam necessariamente os seus
tende a reduzi-la. (Desenvolvidamente, ob, cit,, pág. 76 e segs,). Uma análise funcional- mundos individuais e contribuem pera a determinação dos mundos individuais dos outros(...).
-pessoal do direito na sociedade moderna exigirá, segundo SCHELSKV, como pressuposto uma Quando um ser humano escolhe um particular modo de vide, expresso na realização de um
teoria sociológica dotada de uma armadura conceituai orientada para a ..integridade e particular sistema de relações sacieis, ele faz uma escolha ética fundamental através da qual
autonomia da pessoa• face à 11socicdadc orgf!.nizada e às suas exigências sistómioo-univer- valida um mundo para ele próprio e para aqueles que, explícita ou implicitamente, aceit.ou
salísticas». O objectivo da análise funcional-pcsso8.1, será, assim, estabilizar a integridade e como companheiros na sua vida. O problema ético fundamental que, como observador-membro
continuidade moral e psíquica da pessoa como unidade de acção que a si mesma se orienta, de uma sociedade, o homem enfrente, ó, assim1 o da justificação ótica das específicas relações
através da autoconsciência que a si mesma se representa e se reconhece. Uma unidade de de redução da autonomia e individualidade que exige de si e dos membros da sociedade que ele
acção que 11rcelabora e integra» na sua identidade, continuidade e totalidade pessoais, como produz e legitima com a sua conduta» (MATURANA, ob. cit., pág. XXVI). Do mesmo passo que
fundamento das suas acções, todas as influências do .. ambiente», sejam elas ffsicas, biológicas, reclama esferas de liberdade e criatividade individuais- «necessariamente antissociais» -
psíquicas ou morais (pág. 83). MATURANA aponta limites às exigências sistémico-sociais que impendem sobre o indivíduo. E
b) A concepção do direito penal segundo a teoria sociológica do sistema social colide isto pera se.obviar ao perigo da ..destruição da plasticidade individual básica, necessária para
igualmente com as representações e as reivindicações da antropologia filosófica, a projectarem o ?st_e~elecimento de donúnios consensuais, a produção da linguagem e, por essa via, da
a pessoa com a dignidade de destinatário autónomo e final do direito penal (Cf., desenvolvida- cnat1v1dadc humana em geral».
mente, MAnt0FER, ..Qie gcscllschaftliche Funktion»). Enquanto isto, também do lado da Resumidamente, este paradigma da teoriasistómico-social traz consigo uma nova e mais
filosofia oontcmporãnea se tem igualmente sublinhado a distanciação e a diferença da pessoa consistente subjectivização do sistema pessoal.É o que, louvando-se expressamente da teoria
individual face ao sistema ou aos diferentes sistemas. São elas que, como entre nós acentua B. da autorofcrência e da autopoicsc de LUIIMANN1 SCHIMANK procura pôr cm evidência (Soziale
PEREIRA, distinguem ..o que no Ocidente se denomina pessoa, oposta ao funcionário de um Welt 1985, pág. 447 e segs.). A autora procura, desde logo, contrariar as representações
108 Consentimento e Acordo cm Direito Penal A Experiência Hist6rico,Doutrinal 109

Contudo, as referências esparsas e descontínuas, presentes na sua obra, conju- ' É o que, numa observação clarificadora sobre a estrutura normativa do consen-
gadas com os postulados e princípios doutrinais e com as suas imposlações político- timento, o autor procura pôr em evidência: «O consentimento do ofendido numa
-criminais de fundo são, apesar de tudo, suficientes para sugerir, em termos lesão da sua pessoa não afasla automaticamente e sem mais a danos idade social da
relativamente consistentes, uma compreensão desla figura. Que, diga-se em síntese, acção lesiva. De resto, os limites à eficácia do consentimento, do ponto de vista da
se opõe claramente à tese dos autores que propugnam pela redução de todo o danos idade social terão de estabelecer-se em termos diferentes dos do§ 226a StGB.
consentimento penalmente relevante à categoria de problema da tipicidade. Tais Decisivas nesta perspectiva terão de ser, não a imoralidade (Sittenwidrigkeít) do
teses não se compaginam com a prevalência - se não mesmo com a exclusivi- facto, mas sim as suas consequências sobre as possibilidades de a pessoa participar
dade -atribuída àreferência sistémico-social enquanto fundamento da danos idade na vida colectiva. Isto significa, por exemplo, que as lesões corporais sado-
social e da ilicitude material. Que equivale a afirmar uma danosidadc social -masoquistas não são proibi~as enquanto tais mas só, e quando muito, a partir do
transcendente à autonomia pessoal e subsistente para além do seu exercício. · momento em que atingem o tipo da ofensa à saúde(§ 223, I. 2, da versão anterior do
À semelhança do que sucede com a dignidade humana constitucionalmente StGB) <1°9).
tutelada, se bem que cm sentido inverso, também o consentimento, expressão da
autonomia individual, não pode deixar de valer aqui como uma frustração para o
desempenho do sistema social. Ou como um custo para um sistema penal assumida- § 8. JAKODS: O DIREITO PENAL A PARTIR DUMA COMPREENSÃO TRANSCEN•
mente «anti-individualista» e q uc «coloca a sociedade e não o indivíduo no epicentro
nm,TAL :'(ORMATIVl~"TA DA TEORIA DO SISTEMA.
da doutrina penal da danosidadc social» ('"'). O postulado de que o direito penal tem
1. Também JAKOBS - cujo manual, Strafrecht. A/lgemeiner Teil (1983),
de assegurar as condições da convivência humana, não implica apenas que a pessoa
configura o exemplo mais acabado de um inovador sistema dogmático jurídico-
não seja protegida por causa dela própria mas sim por causa da sociedade. Reversa
-penal edificado com os olhos postos na teoria sociológica de LUHMANN (2'') - se
e complementarmente, ele implica outrossim que «toda a acção que lesa a pessoa,
tenha de ser combatida como lesiva da sociedade» (2'"). Mesmo quando- e é com
esta afirmação que AMELUNG encerra a investigação - o legislador comete à
decisão do indivíduo prevalecer-se da ou, inversamente, renunciar à protecção
209
oferecida pelas normas penais, mesmo então, «isso assume implicações funcionais ( ) /d., pág. 889. Para uma maior explicitação do pensamento do autor sobre a estru-
tura normativa e o estatuto doutrinal da consentimento, cf. ainda AMELUNG,Die Einwilligungc
para o sistema». ZSt\V 1972, pág. !O!õ e segs.
(zt 0) Como deixámos assinalado (supra, nota 206), AMELUNG e JAKODS não esgotam as
tentativas dogmáticas de construção do sistema penal a partir da lição da teoria do sistcma(de
Lum,lANX). Outras pennlistas têm, de forma mais ou menos explícita e mais ou menos
consequente, prestado homenagem à nova compreensão do sistema social oícrccida pelo
dominantes, correspondentes às primeiras reflexões motivadas pelo advento da modernidade socióloga. Com destaque para Orro: quer por declinar expressamente o seu tributo à teoria
e que apontam invariavelmente para a dissolução da individualidade pessoal no contexto da sistémiro-soclal (de Lum,1ANX)i quer por procurar assumir coerentemente as suas implicações,
sociedade moderna. Este é, com efeito, o sentido em que converge toda uma plétora de nomeadamente no que toca à estrutura normativa e ao estatuto doutrinal do consentimento.
expressões: desde as clássicas ideias de alienação e anomia, ao medo da liberdade (FRm.tM), the (Cf., em especial, ZSt\V 1975, pág. 554 e scgs.; Grundkurs,AT, pág. 5 e segs. 76 e scgs. e 106
loneley crowd (RIESMAN), o fim do ind{uiduo (HDRKIIEIMER), lhe hameless mind (BERGER! e segs,; ZStW 1984, pág. 843 e segs.; Fest. TrOndle, pág. 157 e scgs.). Na parte mais directa-
KELLNER). Ora, sustenta a autora, os factos não condizem com esta atitude, nem com a .eteoria.. mcnte pertinente às nossas preocupações nesta sede, a doutrina de OTTO caracteriza-se pela
que a suporta. O que se passa é apenas que cada formação social traz consigo as suas formas adesão aos fundamentas e princípios da doutrina do ilícito pessoal, se bem que projcctada
de identidade. Se, por exemplo, na Idade Média prevalecia uma «identidade material- sobre a (perspectivada a partir da) lição da análise sociológica da teoria do sistema. A uma
tcológice.», a moderna sociedade, funcionalmente diferenciada, faz emergir uma identidade noção meramente formal de crime contrapõe um conceito material, atento à «função do direit.o
caracterizada pelo subjectiuismo reflexivo, «A forma de identidade da Idade Média estava penal na sociedade juridicamente organizada». Orro apela, por isso, para o principio da
estruturada segundo referências exteriores (fremdreferentiell strukturiert). A reflexão danos idade social com um sentido e alcance que presta dircctamente homenagem à interpre-
biográfica nunca colocava a pessoa sobre o terreno de um nada sem suportes: para todos os tação sociológica de LUHMANN (cf. Grundkurs, pág. 78 e scgs.). Na senda de LUHMANN, também
problemas da condução individual da vida encontrava-se sempre uma resposta clara na OITO atn'bui ao direito uma função prevalcntemente sistémico-social, que se analisa na
palavra de Deus, interpretada pela Igreja» (ob. cit., pág. 449). Não é menos estabilizada nem ocestabilização das expectativas» (Erwartungssicherung) e na «orientação da conduta,, (Verhal-
menos consistente a identidade mediatizada pela sociedade moderna: «uma construção tenss teuerung) (Cf., a propósito, o estudo de LtJHMANN-de que Orro explicitamente se louva
autorefercnte da identidade» (pág. 462. Sobre o tema, LUHMANN,Soziale Welt 1985, pág. 402 -precisamente so~ o Utu]o Die Funktion des Rechts: Erwarlungssicherungoder Verhallens•
e segs.). steuerung? 1974). A semelhança de AMELUNG e JAKOBS, também OITO se propõe, se não
( 201 ) AMELUNG, Rechtsgüterschutz, pág. 890.
superar pura e simplesmente o conceito de bcmjurídico, pelo menos rcdifinir a sua compreen-
( 2 ºª) Ibidem.
são e o seu papel polítiro•criminal e dogmático. Isto a partir de um entendimento do direito
110 Consentimento e Acordo em Direito Penal A Experiência Histórico-Doutrinal 111

propõe ultrapassar o dogma do bem jurídico, substituindo-o por um princípio de ' à definição da ilicitude penal. E induz, por isso, uma compreensão do consentimento
danosidade social, na linha dos ensinamentos daquela teoria sociológica. E também em franca oposição à tese da parificacão generalizadora sub nomine tipicidade. E que
a sua obra, deve acentuar-se desde já, redunda num claro reforço da referência o autor expressamente assume com rigor metodológico e coerência intrínseca
sistémico-social: tanto no que toca à legitimação do direito penal como no concerne exemplares.

penal que não pode circunscrever-se à mera tutela de bcnsjurldicos, antes terá, sobretudo, de teoricamente mediatizada e hoc sensu pré-jurídica. «O conceito de bem jurídico aponta para
assumir a função simbólica de um ordenamento normativo preordenado à orientação da uma pré-valoração ético-sqcial no seio da sociedade que decide quais as relações do indivíduo
conduta e estabilização da confiança. A lesão de um bem jurídico terá, por isso, segundo o ou da comunidade, que unidades funcionais sociais têm de ser reconhecidas como toleradas
autor, de se ..interpretar como um dano social, A esta luz, compreende-se que o crime, embora desejadas ou até mesmo indispensáveis para que a convivência social seja possível• (ZSt\V
configurando sempre um ataque a um bcmjurídico, não se reduza apenas a isso. Pelo contrário ~984~ pá~. 344! no mesmo sentido, Grun~k!"rs, pág. 8). Nesta medida, occabe à ordenação
e para além disso, o crime representa sempre um ataque aos fundamentos da ordenação Jurídica mtcrv1r sobre as estruturas sociais com uma função estabilizadora, gerante da
jurldica, que se abjcctiva na lesão do bcmjurldico. É um ataque àquele bonum cammune que segurança, mas também valoradora» (Ibidem). O texto acabado de citar denuncia outra das
possibilita a convivência no seio de uma sociedade organizada segundo o direito. É, noutros notas mais marcantes da concepção de OTTO: a acentuação da referência sistémico-social no
termos, um ataque à confiança que constitui os alicerces daquele sociedade• (Grundkurs, conceito de bem jurídico. Uma referência que se deve tanto à realidade sociológica subjacente
pág. 77). E ainda: ocÉ, assim, o ataque contra os fundamentos de confiança das relações sociais interpretada cm termos sistómico-funcionais, como e sobretudo ao peso de componen~
que invariavelmente caracteriza o comportamento criminoso,já que a tutela da confiança é um positivista na definição do bem jurídico. «Os próprios valores - as unidades funcionais
elemento da protecção dos bens jurídicos• (ZStW 1984, pág. 344). Segundo ÜTTO, é, pois, a sociais- não constituem quaisquer dados subtraídos à crítica, mas antes realidades perma-
confiança, mais precisamente a confiança sistémica (Systemvertrauen), que constitui o refe- nentemente expostas à comprovação crítica e submetidas à mudança, Isto ao ritmo das
rente material do juízo de danos idade social. Isto porquanto só a confiança pode constituir o mudanças a nível das metas almejadas pele sociedade juridicamente organizada e das
fundamento da ordenação jurídica e assegurar a todos as condições do livre desenvolvimento transformações que se registam na autocomprcensão da mesma sociedade• (Grundkurs,
da personalidade. Na medida cm que se esbate a confiança originária e espontânea (ursprün• pág. 8), A acentuação da dimensão positivista e, reflexamente da referência sistémico-social
gliches Vertrauen), assente na comunicação e intcrecção pessoais dircctas, e vai cedendo o na compreensão do bem jurídico, tem como reverso uma progressiva abstracção e uma maior
lugar à gcnera1izeção da desconfiança (Misstrauen), é à ordem jurídica que cabe a tarefa de ;elati,vizaçdo e contingência.dos ~rrespondentcs substratos reais ....A relativização do bem
estabilizar as expectativas (ZStW 1975, pág. 561 e segs.)...Para ser possível a continuação da <;>no
JUTÍ~1co -:- rccord_a na esteira de !IEDEMANN- assenta no reconhecimento de que o
convivência, a confiança originária terá de ser substituída pela confiança sistémica. E tanto bcmJurídico.constitui um quadro categonal conformado segundo pontos de vista jurídicos•. S6
mais quanto mais complexas se tornarem as rclaçães sociais• (ZStW 1975, pág. 561). Em ocsob_detennmado ~onto dcvisteé que algo vale como um bem• (Grundkurs, pág. 8j no mesmo
conforrrúdade: ocsocialmcntc danoso éa comportamento que se orienta para a lesão deum bem 8?nltdo, descnvolvtdamente, TII:!DEMA.';N, Tatbestandsfunktionen, pág, 115 e segs.). Expres-
jurídico, porque: a) ele visa o sacriffcio de um detcrrrúnado bemjurídico e, nessa medida, b) e siva a este propósito - e com implicações decisivas para a compreensão normativa e
para além desse prejuízo concreto, põe em causa os fundamentos de confiança da sociedade d?utrinal do consentimento - é a caracterização dos bens jurídicos individuais, do ponto de
juridicamente organizada, as relações sociais, e reduz a confiança nos outros l1lembros da Vlsta da sua valência sistémico-social. Segundo ÜTIO «tamb~m os bens jurídicos individuais
comunidade, abrindo a porta à desconfiança( ... ) o prejuízo que lhe é imputado não vale apenas têm uma relação com a totalidade, Pois, estes bens apenas são reconhecidos aos indivíduos
como lesão deum bemjurídico, valioso e protegido pelaordemjurídica, mas tambómcomo um porquanto o ~csenvolvimcnto da personalidade por eles mediatizada é bom para os indivíduos
dano social» (Id., pág. 562). e para a totalidade. Daí que possam tambóm reclamar-se limitações à disponibilidade de bens,
O que fica dito permite compreender o sentido e alcance que OTTO adscreve ao conceito em geral, cometidos à disponibilidade individual• (Grundkurs, pág. 9), E ainda: .clndependcn-
de bem Jurídico. Que, por seu turno, prcdeterrrúna o significado de lesão e reflexamente o ~me!1tc das singulares exigências do conceito de bem jurídico, na conversão pela ordem
enquadramento normativo e dogmático da figura do consentimento. Resumidamente, OTIO Jurídica de um bem cm bem jurídico intervêm aspectos individuais e sociais. Com a defesa de
qualifica o bem jurídico como uma ocrcalidadc espirituali. (geistige Realitiit), que define: ocbem bens indi:-1duais como bens jurídicos, a comunidade jurídica não salvaguarda apenas os inter-
jurídico é uma determinada (mais precisamente descrita nas incriminações típicas) relação esses do mdivíduos. Tambóm os bens jurídicos do indivíduo possuem uma- necessária-
real da pessoa com os valores concretos, reconhecidos pela comunidade jurídica - unidades refc~ncia à totalidade social (Bezug aufdas soziale Ganze) pois, a sociedade juridicamente or-
funcionais sociais - cm que, sob a aprovação da ordem jurídica, o sujeito do direito se gamzada protege estes bens, como bens jurídicos do indivíduo porque o desenvolvimento da
desenvolve pessoalmente* (Grundkurs, pág, 7). Este conceito pode suscitar algumas reservas personalidade que eles mediatizam é sentida como bom para o indivíduo e para a sociedade
quer do ponto de vista lógico-categorial quer no que respeita à coerência com que é assumido. (Fesl. Trondle, pág, 158).
Contudo, ele indicia um conjunto de notas significativas na perspectiva por que nos vimos No que ao consentimento dircctamente concerne, também ÜTIO reconhece que as
orientando. Apesar da estruture relacional que prima facie lhe adscreve, OTTO encara o bem posições assumidas em matéria de bemjurídico condicionam e reduzem a complexidade das
jurídico como algo verdadeiramente real e subsistente, dotado de uma consistência que não se respostas à correspondente problemática normativa e doutrinal. Fá-lo de resto em termos
esgota em vínculos meramente psicológicos, de expressão mais ou menos volitiva. Daí que o tcórico-me_todoló_gicos substancialme.nte convergentes com a hipótese q~c, nesta ~arte, orien-
autor se demarque expressamente de um conceito de bem jurídico como o proposto por ~a a n?sse mvest1gação.A acentuação da referência sistémico-social permite-lhe, por um lado,
ScHMIDHÃUSER, que tende para a sublimação idealizante do bemjurídico sob a fórmula da mera identiTicar uma expressão de danosidade social além e apesar do consentimento. Como llie
ocexigência de respeito,. (Achtungsanspruch) (Grundkurs, pág, 9), O apego à lição da teoria permite interpretar o consentimento a partir da concorrência - vale dizer, da conflituali-
sistémico:.social leva-o, por seu turno, a privilegiar a abertura à realidade sociológica, dade - dos desempenhos dos sistemas pessoal e social. E, nessa medida, reforçar a plausibi-
112 Consentimento e Acordo em Direito Penal A Experiência Históric.o-Doutrinal 113

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1.1. O que, em primeira linha, sobressai na concepção de JAKOBS é o seu ontologização se revelarão mais nítidos Expressiva, por exemplo, e no que ao
transcendentalismo normativista. Tanto cm relação aos referentes de fundo on- conceito de agente concerne, é a plena des-subjectivização da pessoa. Para além de
tológico da dogmática tradicional, como cm relação às próprias realidades so- deixar de figurar como centro e fim do direito, a pessoa é, enquanto suporte do juízo
ciológicas mediatizadas pela interpretação teórico-sistémica de que o autor se de culpa, convertida num mero «sub-sistema físico-ps(quico», que tem a «acção
confessa tributário. Isto, de resto, em cumprimento do programa de «renormativiza- como output específico» ("').
ção dos conceitos» anunciado logo na primeira página do tratado e sempre prosse- Mas também a realidade sociológica, mesmo a resultante da teoria do sistema
guido de forma consequente. social, é cuidadosamente posta entre parênteses. O que, se, por um lado, permite a
Segundo este postulado, recorda JAKOBS, «um sujeito não é quem pode JAKOBS evitar a equivocidade estrntural da doutrina AMELUNG, aponta, por outro
produzir ou impedir um evento, mas quem pode ser por ele responsabilizado. De lado, a via do mais acabado positivismo normativista. E isto não obstante JAKOBS
igual modo, também conceitos como causalidade, poder (Kõnnen), capacidade, deslocar decididamente o centro de gravidade do sistema penal para o que LUHMANN
culpa, etc., perdem o seu conteúdo pré-jurídico e são convertidos em conceitos cor-
respondentes a degraus de responsabilização. Estes conceitos não oferecem ao
direito penal nenhum modelo de regulamentação jurídico-penal» (211). E sobretudo
cm relação a conceitos como o de culpa (212) ou agente que os reflexos desta des- pondo cm crise o princípio ontológico da culpa, que no princípio do século KoHLRAUSCH
estigmatizava como uma .. ficção necessária ao Estado• (staatsnotwendigen Fiktion) (Neste
sentido, BARATTA, KrimJ 1984, pág, 136. Sobre a crítica do princípio ontológico da culpa1 cf.
rcccntementeELLSCIIEIDIHASSEMER, ..Strafe ohne,.). JAKons leva, porem. a crítica e a tentativa
de su péração ao extremo das suas implicações l6gicas e dogmáticas. A segunda prende-se com
lidado de um conscntimcnto.justificaçiia, diferenciado de um consentimento que exclui a a problemática da medida da pena, à luz das exigências antinómicas da êulpa e da prevenção
tipicidade (Grundkurs, pág, 104 e scgs.)• ..Se, como acontece aqui, o bcmjurfdico ó abstracta- geral. Uma aporia que já levou RoXIN à introdução do conceito de responsabilidade como
mcntc definido como relação, digna de tutela, entre uma pessoa e uma unidade funcional social categoria dogmática autónoma, a par da culpa. Isto no contexto de uma construção em que a
(valor), então a lesão desta relação ó independente do consentimento do portador concreto. A culpa figura apenas como criMrio limitativo duma pena, por princípio, determinada Segundo
socicdadcjuridicamcntc organizada garante ao indivíduo a tutelada relação pessoal _reconhc• exigências de prevenção (ROXIN, Fest. Henkel). E na base do postulado de que «o decisivo não
cidacomo bcmjurídico, porque também ela tem um interesse no desenvolvimento do indivíduo é o poder agir de outra maneira, mas antes que o legislador queira, segundo pontos de vista
através desta relação de valor» (!d., pág. 107}. Nestes tcnnos, a renúncia cm concreto do jurídico-penais, chamar o agente à responsabilidade pela sua actuação,. (ob. cit., pág. 182).
porladorindividual não determina sem mais que aquela relação se tome não-digna-de-tutela. Segundo RoXIN, caberá precisamente à responsabilidade mediatizar, para o caso concreto, as
O que se passa é que, ocporvia de regra, o interesse social subsistente já não justifica qualquer exigências político-criminais que, cm geral, legitimam a aplicação de reacções penais. Numa
protccção penal. Excepcionalmente, contudo, pode aquele interesse social subsistente pela síntese do autor, esta categoria responde 1 ocà. luz das exigências político-criminais, à carência,
preservação da relação de valor legitimar U!fla protccção penal, independentemente da cm concreto, de sanção penal. Ora, tanto o legislador como o julgador que interpreta a sua
vontade do portador do bcmjurfdico,.(lbidemJ. E o que, segundo o autor, permite compreender vontade, só podem encontrar uma resposta a partir dos princípios relativos aos fins das penas.
um regime como o da punição do Homicúlio a pedido da vitima: oco interesse da comunidade Pois, do ponto de vista duma doutrina racional da aplicação da pena, não se descortina outro
na preservação deste bemjurídico sobrepõe-se ao interesse pelo respeito da livre manifestação fundamento de decisão, A categoria da responsabilidade constitui, assim, o momento cm que
de vontade de disposição do portador concreto,. (Ibidem), O que fica dito legitima, cm síntese, a poUtica criminal referida ao autor penetra directamente na dogmática penal» (Ibidem). Vai
a conclusão de ÜTTO segundo a qual também o consentimento f'Con{i.gura, pela sua estrutura, mais longe a superação do dilema proposta porJAKOns.De acordo coma sua doutrina sistémica
um caso de ponderação de interesses justificante (rechtfertigenden lnteressenabwãgung)», da pena, toda a pr:oblemática da justiça se reconduz à funcionalidade dos critérios da punição,
( 211 ) JAKoBs, Strafrecht,AT, pág. V e VI. como reafirmação contrafáctica do significado simbólico da norma violada. Uma visão das
( 2 U) No juízo de culpa deixa de ser determinante a questão da capacidade real do agente coisas com reflexos igualmente profundos na questão da imputabüidade. Neste plano, JAKons
para se determinar cm conformidade com as normas. Decisivo será, segundo JAKons, o facto vê-se compelido a aceitar o postulado da igualdade entre o cidadão deliquente e os cidadãos
de a actuação do agente e a sua situação corresponderem a um quadro normativo típico face fiéis ao direito. Isto é: a plena comunicabilidade entre eles no que concerne à estrutura funda-
ao qual a comunidade tem de reagir normativamente e não em termos meramente cognitivos. mental dos mecanismos de motivação normativamente pressupostos. ,11Jmputável - refere
(Desenvolvidamente, ob. cit., pág, 394 e segs.). Considerando que o juízo de culpa não é um JAKons-é uma pessoa que é definida como igual. A igualdade significa que os factores que
juízo de demonstração da realidade mas antes de adscrição de responsabilidade segundo nas suas linhas fundamentais constituem (ou não impedem) no agente o evento motivador,
critérios normativos, o autor aponta para uma compreensão da culpa independente de podem, pela sua natureza, produzir (ou não impedir) ubiquamentc um evento motirador( ...).
referentes ontológicos ou metafísicos. Como que se propõe superar duas das maiores aporias Os factores fundamentais com eficácia motivadora só interessam na sua espécie e não no seu
da problemática da culpa. A primeira relativa ao próprio fundamento do juízo de culpa, e que conteúdo e intcnsidade,já que estes variam clanimcnte com os indivíduos. A violação de uma
se prende com o princípio subjcctivo da liberdade de acção, isto é, com o poder agir de outra norma por um sujeito, no contexto de uma situação motivacional igual nas suas linhas
maneira (Anders-handeln-kõnnen). Um problema cuja acuidade se vinha acentuando, ·à fundamentais e no que à sua índole concerne, vale como violação exemplar de qualquer outro
medida que ganhava terreno o movimento de nonnativização da culpa, de que WELZEL viria a agente equiparável. E, por isso, como um atentado à vigência das normas para qualquer
converter-se num dos corifeus tanto na perspectiva da fundamentação como da sistemati- pessoa» JAKoBs, Strafrecht,AT, pág, 407.
zação. JAKOBS situa-se, assim. no prolongamento daqueles autores que, de há muito, vinham (ZU) JAKOBS, Strafrecht, AT, pág, 258.

B
114 Consentimento e Acordo cm Direito Penal A Experiência Hist6rico-Doutrinal 115

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designa a «fronteira do output» ("14). Rejeitando as teorias absolutas, JAKOBS demonstração da validade da norma violada, à custa do agente» ('"). A disfuncio-
considera que o direito penal e a pena só têm sentido do ponto de vista «da nalidade da infracção não reside essencialmente na lesão do bem jurídico, mas antes
manutenção da ordenação social» e como contributo para o seu «funcionamento sem no seu significado simbólico, como denegação da fidelidade ao direito através da
perturbações». Também para JAKOBS só a danosidade pode constituir fundamento problematização da validade e vigência das normas necessárias à orientação da
bastante para a legitimação da punibilidade ('"). «Decisivo- acentua o autor-é acção e à estabilização das expectativas, sem as quais a interacção não é possível.
que a punibilidade não possa reportar-se ao que em si é contrário a valores; mas Com este significado, a infracção faz emergir um conflito social que, ao atingir o
apenas à danosidade social». Só que, acrescenta, não é possível determinar com limiar da intolerabilidade social, reclama a resposta do sistema através da pena
rigor os contornos do socialmente danoso. «Mesmo a invocação da fórmula segundo À semelhança da infracção, também a pena vale pela sua expressividade
a qual só poderão ser protegidas pelo direito penal, as condições de existência da simbólica, como reafirmação contrafáctica da norma violada. «Em conformidade
sociedade, pouco poderá contribuir para o efeito. Isto porquanto não é possível com a localização da violação da norma e da pena no plano do significado e não das
referenciar nenhuma fronteira segura do social, nem as condições de subsistência da consequências exteriores da conduta, não deve ver-se a tarefa da pena na prevenção
sociedade podem pensar-se em termos de numerus clausus» ('"). A danosidade da lesão dos bens jurídicos. A função da pena é antes a confirmação da vigência da
social acaba, pois, por constituir apenas o referente da intencionalidade última da norma, valendo aqui vigência como sinónimo de reconhecimento» ("19). A tutela que
construção de JAKOBS, não assumindo qualquer relevância dogmática autónoma. a pena visa assegurar realiza-se pelo reforço da confiança dos que aderem às normas.
Pelo contrário, são as normas - consideradas apenas na sua vigência e validade O que não deve entender-se no sentido de que, no futuro, e por força da eficácia
formais, e abstraindo do seu conteúdo - que aparecem no primeiro plano. São, intimidatória da pena sobre os delinquentes potenciais, ninguém mais volte a violar
aliás, as normas que, significativamente o autor define como os verdadeiros bens as normas. Menos sentido teria ainda uma perspectiva de prognose especial quanto
jurídico-penais (217). à conduta futura do agente. «Os destinatários, de primeira linha, da pena não são
1.2. Na esteira de LUHMANN, JAKOBS encara o direito penal como um alguns homens enquanto agentes potenciais, mas todos os homens. A interacção
sistema específico de que se espera a estabilização social, a orientacão da acção e a social é, com efeito, indispensável a todos, todos tendo igualmente de saber aquilo
ins_titticionalização das expectativas, pela via da restauração da confiança na que podem esperar. A pena há-de, nesta medida, prosseguir um exercício de
vigência das normas. Ao reagir à infracção, o direito penal visa sobretudo «uma confiança na norma. Acresce que a pena onera o comportamento contrário à norma
com os respectivos custos e consequências, elevando por essa via a probabilidade de
tal comportamento não ser em geral aprendido como alternativa eventual de
conduta. E realiza, nessa medida, um exercício de fidelidade ao direito» (""). Para
(21') LUHMANN,Rechtssystem, pág, 25 e segs. •Numa consideração genérica, a distinção
além disso, a pena prossegue ainda um exercício de aceitação das consequências.
entre input e output é uma consequência da diferenciação do sistema numa perspectiva Isto, podendo os três efeitos «sintetizar-se como um exercício de reconhecimento
temporal. A autonomização de um sistema do ponto de vista da dimensão temporal significa das normas». É por esta via do reconhecimento e fidelidade ao direito bem como pela
que os acontecimentos no interior do sistema não estão sintonizados com os acontecimentos do confiança institucional na vigência das normas que se realizará a chamada prevenção
ambiente, antes os precedem ou os seguem. Isto é: que para o sistema há uma separação entre
os horizontes temporais do passado e do futuro» (ob. cit., pág. 25). Numa melhor explicitação, de integração ou prevenção geral positiva. Que se contrapõe à clássica prevenção
considera LUHMANN que um centro de gravidade próximo da fronteira do output significa ..que geral negativa, assente na eficácia meramente intimidatória da pena ("21 ).
o sistema considera como seu problema fundamental a produção de determinados efeitos no 1.3. Ajá referida des-subjectivação da pessoa tem como reverso a acentua-
ambiente e procura obter informaçÕCS como meio para a prossecução daquele fim, isto é, ção da subjectivação do sistema social, que se mostra através do ordenamento
segundo o critério deum específico interesse na produção de efeitos.Já um centro de gravidade
na fronteira do input terá, do ponto de vista da sociedade no seu conjunto, de estar assegurado normativo positivado. O que equivale a afirmar o primado, se não mesmo a
através da garantia da indiferença em relação às consequências,,. Em amformidade, só a um
sistema com"'º centro de gravidade na fronteira do output é reconhecida a liberdade de escollia
dos meioS>J (ob. cit., pág. 26). Resumidamente, e ainda segundo LUHMANN, enquanto a fronteira
do input determina o horizonte do passado, a fronteira do output determina a do futuro
(pág, 36). Isto explicitando que o futuro, seja qual foro modo como se encare, ..apresenta maior
complexidade, concretamentc mais possibilidades e, acima de tudo, mais interdependências ("') ld., pág. 4.
que o passado» (pág. 36). É que, ao contrário do que sucede com o passado, o futuro é sempre ("') ld., pág. 7.
um horizonte «aberto» (pág. 37). ("') !d., pág. 9.
( 221 ) Id., pág. 13 e segs. No mesmo sentido RoXIN, Fest. Shultz, pág, 463 e segs,i Moos,
('") JAKOBS, Strafrecht,AT, pág. 38.
(2 18 ) Id. 1 ibidem.
Fest. Pallin, pág. 283 e segs.; ZIPF, Fest, Pallin, pág. 4 79 e segs.; F. DIAS, Direito Penal, 2, PG,
( 217 ) /d., ibidem. pág, 51 e scgs.
116 Consentimento e Acordo em Direito Penal A Experiência Hist6rico,Ooutrinal lt7

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exclusividade, da relevância sistémico-social na compreensão da ilicitude penal. E (de LUHMANN), a construção de JAKOB furta-se cuidadosamente aos escolhos desta
explica, por seu turno, o carácter público de que invariavelmente se reveste, segundo opção. Para o efeito, JAKOBS erige a norma à categoria de bemjur(dico acreditando
o autor, o conflito emergente da violação das normas penais. «Só são penalmente realizar por essa via a in1egração das dimensões sociológica e normativa.
garantidas as normas a cuja observância geral não pode renunciar-se sem prejuízo Só que isto não tolhe o caminho ao transcendentalismo já assinalado, na prática
para a preservação essencial da ordenação da sociedade. A frustração, o conflito e a correspondente a um modelo de monismo normativista. Que constitui, por seu turno,
exigência de reacção não devem, por isso, ser consideradas como vivências do a razão das debilidades da doutrina de JAKOBS: quer do ponto de vista da consistência
sistema individual do homem singular, antes lerão de ser compreendidos como intrínseca quer ainda em matéria de adequação político-criminal e de legitimidade
eventos localizados no sistema social de referência» (222). ético-política (22').
Mesmo em relação a valores como a propriedade, a tutela penal tem lugar, No que ao primeiro pl,mo respeita, não pode deixar de se apontar a incongruên-
segundo JAKOBS, sem a consideração necessária do respectivo titular. E isto não só cia de se pretender, por uma via, iden1ificar o direito penal como um sub-sistema do
por forçado imperativo de generalização conaliJrala toda a produção norma1iva, mas sistema social e, ao mesmo tempo, fechá-lo a todos os sinais, informação e
também e principalmente devido à necessária orientação da tutela pelo significado complexidade emergente do sistema social. É certo que JAKOBS propõe expressa-
de que a propriedade se reveste para a sociedade global. «Esta perspectiva pública mente um sistema penal claramente situado sobre a fron1eira do output, isto é: em
não exclui, em caso de infracção contra a propriedade, a consideração da qualidade primeira linha orientado para as (e determinado pelas) consequências a produzir no
de lesado da vítima. Mas tal qualidade lerá de assumir comprovadamente relevo sistema social. Tal propósito só poderá, todavia, lograr-se mediante a abertura
colectivo (...) se se prelende que ela possa, ao menos, influenciar a medida da (e relevância concedida) às informações, sinais e complexidade do pré-jurídico.
pena» (222). Só é, noutros termos, congruente com a interiorização do ambiente de que fala
LUHMANN {2"').
2. Numa valoração crítica dos aspec1os parcelares da doutrina de JAKOBS A coerência da doutrina deJ AKOBS só poderia ser salva através da crença de que
que ficam expostos, os mais directamente pertinentes à discussão que fundamental- pelas normas sedimentadas nas codificações penais e vigentes correm, afinal, todas
mente nos ocupa, convirá privilegiar o seu pendor marcadamenle normativista e as- e só as - exigências sistémico-sociais O que apenas poderia dar-se à custa de
positivista. Que se traduz na recusa de relevância aos referen1es pré-jurídicos- de uma daquelas coincidências em que a álea das criações histórico-culturais não é
raiz ontológica, metafísica ou sociológica-susceptiveis de condicionar a namreza fértil. Nestes termos, e pesem embora as premissas enunciadas em sentido oposto, a
ou a intensidade da ~esposta penal ou o seu enquadramento doutrinal. A intenciona- alternativa é um sistema jurídico-penal fechado sobre si próprio, alheio ao ecos do
lidade sistémico-social, que o au1orcomeça por pôr em evidência, acaba pornão ter seu output sobre o sistema social ambiente. «Na medida em que os fins da pena são
correspondência na construção doutrinal, que passa a desenvolver-se como um materialmente determinados pela convergência de conhecimentos criminológicos,
processo de «redução eidética» operado sobre as «aparências» normativamente sociológico-jurídicos e filosófico-jurídicos, deparamos aqui com aquela relação
sustentadas. · estreita entre a dogmática e as ciências básicas sem cuja ponderada consideração o
2.1. É a este transcendentalismo que devem em grande medida imputar-se labor com os parágrafos legais facilmente se cristaliza numa lógica rigidamente
tanto as virtualidades como as limitações mais patentes da obra de JAKOBS. Entre as conceimal» (2").
primeiras avulta, à partida, o facto de o autor ter logrado, como BARATIA recorda, A construção de JAKOBS assenta, assim, numa dissonância entre os fins que se
«vencer as gravíssimas aporias teóricas e contradições práticas em que a ciência propõe alcançar e os recursos mobilizados para o efeito. O autor propõe-se emprestar
penal e a política criminal tradicional parecem, há vários anos enredadas» (2'4). ao sistema penal uma funcionalidade sistémico-social, concebida como a estabiliza-
Elucidativo, a este propósilo, o confronto com a doutrina de AMELUNG, condenada, ção contrafáctica das expectativas normativas, o reforço da confiança nas normas e
já o vimos, àequivocidade da opção entre a danosidadesocial (conceito e perspectiva da fidelidade ao direito. E, isto pela via da significatividade simbólica das reacções
sociol6gicas) e o bem jurídico (conceito e perspectiva dogmático-normativas). penais. Fá-lo, todavia,aceitandoo sistema penal vigente como um dado. Um sistema
Apesar de projectada sobre o pano de fundo da teoria sociológica do sistema social

( 224) Neste sentido, BARA'ITA, KrimJ 19B4passim, e SMAUB,Dei delitti e delle pene 1985,
pág. 93 e sega.
cm) JAKOBS, Strafrecht, A T, pág. 6. ( 228 ) Sobre as exigências de um sistema orientada pela fronteira do output, cf. supra,
(m) Ibideln. nota 214. Para maior desenvolvimento, LUHMANN, Rechtssystem, pág. 24 e segs.
(m) BARA'ITA, Doctrina penal 1985, pág. 8, ( 217 ) Roxm, Fest, Henkel, pág. 182.
118 Consentimento e Acordo em Direito Penal f ___________
!
!
A_E_x;;_pc_n_·ê_n_ci_a_H_i_si_6_ri_co_-_D_o_ut_rin_•l_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _l_l::_9

cujas possibilidades de deslocação para a fronteira do ourpur são, como LUHMANN ' consequentemente a perspectiva sistémico-funcionalista do direito, dificilmente
acentua F), escassas. É que, para «fundamentar a sua identidade como sistema e JAKOBS poderia igualmente furtar-se a repensar o programa legislado no que toca à
reflectir sobre as suas funções» (22'), o sistema jurídico-dogmático não se orienta hierarquização das infracções e à correspondente escala de reacções penais. Pois,
preferencialmente para as consequências mas para os sentidos que lhe definem a
essência e onde sobressaem tópicos como legalidade, igualdade,justiça, oroporcio-
nalidade, etc. Que relevam fundamentalmente da fronteira do input.
Na obra de JAKOBS podem, noutros termos, refenciar-se duas concepções
(Sociologia, pág. 424 e segs.). De igual modo, sustenta PoPrrz: «uma sociedade que estivesse
estratificadas do sistema jurídico-penal. O autor começa por operar na perspectiva cm condições de descobrir e de sancionar toda a deuiance destruiria simultanemaente o valor
de um sistema jurídico aberto, virado para o sistema social e interiorizando a das suas normas» (Über die Prãuentiuwirkung, pág. 14 e segs. Sobre o tema, cf. ainda F .DIAs/
respectiva complexidade em ordem ao adimplemento do seu originário estatuto C.ANDRADE, Criminologia, pág. 367 e scgs. Por seu turno, e no contexto duma crítica às
funcional. Mas a verdade é que acaba por construir na base de um sistema jurídico concepçÕCS do direito penal inspiradas pela teoria funcionalista do sistema, BARATI'A, KrimJ
1984, pág. 142). A ideia de um limiar ..óptimo» de conhecimento e reacção à infracção,
fechado sobre si mesmo, postulando-se (sem se demonstrar) a sua adequação conjugada com a selecção, tem1 de resto, constituído um dos tópicos privilegiados da crimino-
funcional. Isto explica que JAKOBS tenha claramente ficado a meio do caminho das logia crítica (cf. BARATI'A, ob, loc, cit.). O que aqui sobretudo importa reter é que uma doutrina
metas que começou por se propor. De outra forma, e como BARATIA acertadamente penal, que se louve da teoria do sistema social, nas versões de PARSONS ou LUHMANN1 não
observa, ver-se-ia compelido a afrontar abertamente problemas como os relativos a: poderá deixar de prestar atenção àquele limiar, e de integrá-lo no respectivo programa de
resposta à criminalidade. Uma injunção que JAKOBS terá ou não implicitamente assumido
equivalentes funcionais, disfunções das reacções institucionais (2'º), equilíbrios (assim BARATIA, ob. cit., pág. 143). Seguro é, contudo, que o autor não a erigiu em critério
funcionais entre a visibilidade e a latência das infracções (2''), etc. A assumir político-criminal e dogmático com o sentido de uma redução da responsabilidade criminal. E
nisto reside a incongruência referenciada no texto. ·
b) As co_isas passam-se em termos homólogos, se bem que em sentido inverso, com a
chamada teoria dos efeitos positivos do crime ou das funções latentes do crime. Pela primeira
vez avançada por DURKHEIM, a tese dos efeitos positivos do crime tem vindo a merecer a
atenção de um número crescente de autores: psicólogos, sociólogos e criminólogos. Com
destaque para os nomes de MEAD, COSER, PARSONS, MERTON, CoHEN, ERIKSON, Para uma
referência mais desenvolvida, F. DIAs/C.ANDRADE, Criminologia, pág. 259 e segs., e
( 228 ) LUHMANN, Rechtssystem, pág. 24 e scgs.
C. ANDRADE, A Vitima, pág. 107 e segs. Ora, dentre a gama das funções latentes em geral
("') !d., pág. 42. apontadas ao crime, sobressai o reforço da coesão e solidariedade sociais cm torno das normas
( 230 ) Cf. BARATI'A, Doctrina penal 1985, pág. 15 e segs. A doutrina sistémico.funcional
violadas e solenemente reafirmadas no ritual da responsabilização do delinquente. São
em exame apenas toma em consideração os eventuais efeitos positivos da criminalização, tanto
conhecidos os textos clássicos que DURKHEm(A Diuisão do Trabalho Social) eMEAD (artigo sob
primária como secundária, dum ponto de vista da prevenção de integração, O que, como o título The Psychology of Punitiue Justice, 1918) dedicaram ao tema, ambos enfatizando o
BARA'ITA observa, parece relevar de alguma ignoratio elenchi. JAKOBS faz, na verdade, tábua
reforço da consciência dos cidadãos conformistas e, consequentemente, o restabelecimento da
rasa das consequências negativas das reacções institucionais. Consequências hoje em geral
lealdade e respeito pela lei (sobre as relaçães de JAKoBs com DURKHEIM e MEAD, cf. BARATIA,
reconhecidas, sobretudo depois das investigações criminológicas inspiradas pela perspectiva
Doctrina penal 1985, pág. 14 e seg.; SMAUS, Dei delitti e delle pene 1985, pág. 104 e segs.), Já
interaccionista, com todo o arsenal de conceitos e ..teorias» relativas à estigmatização,
mais próximo de nós, considera ERIKSON que continua a ser no ..cadafalso público que a
instituição total, distância social, manipulação da. identidade, assunção de uma auto-imagem
moralidade e a imoralidade se encontram face a face» e que o império da ordem é reafirmado.
e duma carreira delinquente, etc. Sobre o tema, e para além das obras dos clássicos do labeling
Ou se vence aquele ""terror anómico que se actualiza sempre que são ameaçadas as legitima-
approach (BECKER, LEMERT, GARFINKEL, SCHUR, ERIKSON, etc.), uma síntese apud F. DIAS, ""A
ções que obscurecem a precaridade» da construção social dominant.e da realidade (BERGER!
Perspectiva Interaccionista» eF.DIAs/C.ANDRADE, Criminologia, pág. 48 e segs. e 342 e segs.
LUCKMANN, La construcci6n, pág. 134. Em sentido convergente e em síntese, PARSONS, El
cm) Com esta expressão pretendemos evocar duas teorias de matriz sociológica, com
Systema, pág, 292). Nareferência aos efeitos positivos do crime, caberá recordar os contributos
implicações dificilmente comportáveis pelo direito vigente. Mas que não podem ser desaten-
convergentes, entretanto oferecidos pela criminologia e pela política criminal de obediência
didas por uma perspectiva sistémico-funcional como a sugerida por JAKons e orientada para
psicanalítica. Além do mais por ser o próprio JAKOBS a assumir expressamente a contiguidade
a estabilização contrafáctica das normas. Referimo-nos, por um lado, à teoria que, de acordo
entre o seu conceito de pena, como resposta simbólica ao crime, e o entendimento que vem
com o sugestivo título da obra de POPITZ, poderíamos designar como teoria da eficácia
sendo subscrito pelos penalistas que mais recentemente têm ensaiado uma compreensão da
'preuentiua do desconhecimento (Prãuentivwirkung des Nichtwissens),· e, por outro lado, à
pena a partir da lição da psicanálise- HAFFKE, STRENG, JÃGER, ENGELHARDT, etc, (Cf.JAKOBS,
chamada teoria dos efeitos positiuos da. delinquência, Strafrecht, AT, pág, 9), Temos sobretudo em vista aquela vertente da criminologia psica-
a) Segundo a primeira, nada obriga a encararem termos necessariamente disfuncionais
nalítica que pretende explicar o crime acentuando sobretudo as variáveis relacionadas com a
a selecção e as cifras negras. Pelo contrário, seria precisamente a aplicação sem lacunas da lei
alma colectiva, isto é,a vertente da chamada psicanálise da. sociedade punitiva (Para uma
penal a todas as condutas a ela em abstracto subsumíveis que se revelaria perturbadora do
síntese, F. DIAs/C.ANDRADE, Criminologia, pág. 201 e segs.). Iniciada por FREuo (maxime em
normal funcionamento do sistema social. Segundo MERTON, haverá «um grau funcionalmente
Totem e Tabu), esta dimensão da criminologia psicanalítica viria a conhecer o seu primeiro
óptimo de visibilidade da delinqucência». Pelo que .. alguns limites sobre a total visibilidade do
tratamento sistemático na obra de P. REIWALD, Die Gesellscha~ und ihre Verbrecher (1948), e
comportamento são funcionalmente exigidos para a operação eficiente de uma sociedade»
·,1

!
120 Consentimento e Acordo em Direito Penal A Experiência Hist6rico.Doutrinal 121

nada impõe, sequer sugere, que as normas incriminatórias das infracções mais graves ' regra, são as normas correspondentes aos crimes graves as que contam com uma
sejam, por definição, as que carecem de uma mais expressiva reafirmação simbólica interiorização mais estabilizada e uma mais generalizada fidelidade. Paradigmático
conlrafáctica. Tudo, pelo conlrário, parece apontar no sentido inverso: por via de o que se passa com o Homicídio. Dele pôde FREUD afirmar: «Dir-se-ia que, muito
antes da existência de qualquer legislação recebida das mãos de um deus, os
primitivos conheciam já o mandamento não matarás» ("'). Bem se compreendendo,
por isso, que - no contexto de uma doutrina da prevenção geral positiva de
influência psicanalílica-HAFFKE tenha podido interrogar-se sobre a legitimidade
posteriormente a contar com estudos entre outros, de PLACK, F'RoMM, NAEGELI, ÜSTERMEYER da remíncia àcominação penal dos diferentes tipos de homicídio. Isto tendo em vista
e ENGELHARDT. Para além de respostas a outros níveis, a psicanálise da sociedade punitiua
procura pôr a descoberto as funções que a experiência criminal desempenha para a colectivi• que as «imposições subjacentes a estes lipos legais estão tão intensamente interiori-
dade nomeadamente na perspectiva dos cidadã.os socializados na cultura, na ordem e normas zadas que a revogação dos correspondentes preceitos penais não teria como conse-
ofici~lmente codificadas. A pena é vista como expressão aloplástica das instintos de agressivi- quência qualquer amolecimento da moral do direito» ("'). O que corresponderia a
dade da própria comunidade, como uma resposta de projecção (teoria d? bode expiaf~rio) ou pôro problema da legitimidade e da viabilidade de um modelo geral de sistema penal
exercício de catarse colectiva. Mas ela é também e sobretudo compreendida como legitimação
da ordem e, reflexamente, como contra,estfmulo aos efeitos de contágio do crime. E, por esta segundo o qual «a criminalidade mais grave permaneceria impune (descontadas as
via, como reforço da confiança nas normas e da fidelidade ao direito •.. com a punição pretende razões de prevenção especial que pudessem em concreto reclamar medidas terapêu-
a sociedade apoiar e reforçar o Ego social, auxiliando-o no domínio dos seus instintos( ...). O ticas) uma vez que dela não seria de esperar qualquer abalo do Super-ego nesta área
castigo dos elementos associais reconfortará os membros das maiorias obedientes à lei, relativamente estabilizada» ("4). O quadro já seria naturalmente ou Iro, segundo este
sancionando as suas posições de seres normais e morais• (F.DIAs/C.ANDRADE, Criminologia,
pág. 203), Segundo FROMM: oca justiça penal tem o papel do pau encostado à parede, que modelo, em se tratando da pequena criminalidade e sobretudo de infracções como as
mostra à criança rebelde que um pai é um pai e uma criança é uma criança» (FROMM, contra-ordenações ou as que integram o chamado direito penal secundário. Produtos
Analytische Sozialpsychologie, pág. 139). É na esteira desta psicanálise da sociedade puni~• da «intervenção da política no direito» (GR!MM) ("'), as suas normas careceriam de
va que alguns penalistas procuram dar fundamentação a uma nova compreensão d~preuenç'!o
geral positiua, substancialmente convergente com a proposta por JAKOBS a partir.da tcona
sociológica do sistema social. Particularmente representativa é a obra de HAFFKE, Tiefenspsy-
chologie und Generalprêiuention (1976). Recusando tanto as teorias ético-retributivas como as
da prevenção especial, HAFFKE pretende superar igualmente os limites da prevenção geral contradição que, a nosso ver, inquina a doutrina deste autor. O crime, rectius a pena, como
negativa, assente numa eficácia meramente intimidatória. Opte, assim, por uma mais racional resposta simbólica à significatividade do crime, pode, na verdade, oferecer um contributo para
e humanizadapreuençãogeral positiua, •que aspira à construção e estabilização de modelos de a •estabilização (da norma) imunizada contra a realidadei. (LUHMANN). Este facto, conjugado
conduta ético-socialmente desejáveis,. (HAFFKE, ob. cit., pág. 63), Tudo estará, segundo a com o primado concedido à norma sobre o bem jurtdico e niesmo sobre a conduta, pode
formulação de STRENG, •no reforço da ordenação de valores ancorada no Super-ego)I (ZStW estimular o sistema social a induzir a infracção, como ocasião ritualizada de celebração da
1980, pág. 674). Independentemente dos méritos intrínsecos que assistam à_ obra d~ ~FKE, norma e de reforço da confiança na sua vigência. Poderá, pelo menos, ser assim, para quem-
ela sempre apresentará uma inegável vantagem sobre a de JAKOBS: a sua maior coerenc1a. Por como é o caso de JAKOBS- acompanhe LUHMANN, segundo o qual: •a função primárla do
um lado e na medida cm que se propõe desencadear efeitos a nível das representações direito não reside na produção de determinados comportamentos, .mas sim no fortalecimento
colectiv~ e dos modelos de acção, HAFFKE procura apoiar em conhecimentos cientificamente de dadas ex.pectativasi. (LUHMANN, ..PositivitH.tit, pág. 179), Ou como, em sentido convergente,
consolidados (a lição da criminologia psicanalítica), as pontes indispensáveis à prossecução de escreve OT'r: ..a efectividade social do direito não se pode aferir a partir do comportamento
tal meta. Em vez de se fechar numa atitude de transcendentalismo normativista, dando os imediatamente observável,já que isso apenas pode revelar o valor aparente da nonnajurídica.
efeitos almejados por adquiridos, o autor vira-se dircctamentc para uma dada interpretação Onde a efectividade verdadeiramente se mostra é na relação entre o apego às expectativas
da sociedade e dos seus mecanismos de afirmação, realização, funcionamento e expressão. normativas e o comportamento fáctico desviante. Neste sentido, a efectividade do direito não
ocUma doutrina - sublinha HAFFKE- que afirma a necessidade e a eficácia de uma só pressupõe o comportamento desviante, como ela será tanto maior quanto mais frequente for
orientação do comportamento colectivo através do direito penal, e é, por vias disso, na sua o comportamento desviante. Suposto naturalmente que este possa ser mantido isolado dos
essência, uma teoria psicossociológica, carece da complementariedade e do aprofundamento processos de aprendizagem na área das expectativas normativas,. (Orr, «Die soziale Effekti-
que só o conhecimento empírico pode oferecer» (ob. cit., pág. 65). Da( que, cm vez do ideal de vitãt,,, pág. 360). Simplesmente, a ideia de indução, ou apenas da mera desejabilidade do
uma dogmática asséptica a todo o real não jurídico, o autor advogue uma doutrina penal aberta comportamento delinquente está linearmente excluída do horizonte do direito penal vigente.
a (virada para) uma compreensão interdisciplinar da realidade humana e social (ob. cit,, E isto independentemente do seu impacto funcional do ponto de vista da estabilização das
pág. 17 e segs.). Por outro lado e complementarmente, HAFFKE propende para encarar o normas. Uma linútação com que - pese embora o pendor funcionalista das suas premissas
direito penal em termos historicamente relativos. O direito penal contribui apenas como um teóricas e metodológicas, e, por isso, contra elas - JAKoBs parece ter-se conformado.
meio para a realização de uma determinada função social. Um meio que comporta alternativas (2U) FREun, Totem et tabu, pág. 51.
(equivalentes funcionais dir-se-ia em linguagem sociológico-funcionalista) e cujo desapareci• (
233
) HAFFKE, Tiefenspsychologie, pág, 169. Como o autor recorda, sugestões neste sen-
mento não releva necessariamente da utopia (pág. 86 e 176 e seg.). Retomando a consideração tido foramja adiantadas por ALEXANDERISTAUB ou REIWALD (ob. cit., pág.170).
crítica de JAKOBS, não será difícil representar como também a tese dos efeitos positivos do (m) HAFFKE, Id., pág. 170.
crime - de matriz sociológica, ou de índole psicanalltica -pode fazer aflorar de novo a ( 235) Cf. GRIMM, JuS 1969, pág, 501 e segs,
122 Consentimento e Acordo em Direito Penal A Experiência Hist6rico-Doutrinal 123

\
um ordenamento sanciona16rio, como instância de reafirmação contrafáctica e
oportunidade de interiorização e estabilização. Pois, só por esta via se poderia lograr
evidência. Resumidamente, há normas que contam co·m a plausibilidade da sua continuidade
um sucedâneo do envolvimento cultural e da ressonância ético-jurídica com que à com as«estruturas cfu muncfu da vida» de que fala Scmrrz(SCmrrz/LUCJO,IANN, Las estruturas,
partida contam as normas do direito penal «clássico» ("'). passim). Tais normas inscrevem-se no mesmo horizonte de sentido e alimentam-se do mesmo
·armazém de conhecimento- a expressão é de Scmrrz, Wissensuorrat/ Stock ofknowledge -
que garante ao mundo da vida a sua reprodução cm termos de coerência cognitiva1 continui-
dadé semântica e simbólica e integração social. O reconhecimento e interiorização destas
( 238 ) Cf. HAFFKE, Tiefenspsychologie, pág. 170. Um modelo teórico-doutrinal como o •normas inscrevem-se no que Scm;rz/LucKMANN apontam como o horizonte não problemátioo
referenciado no texto prestaria homenagem à conhecida distinção entr~ duas espécies de e dado, no interior do qual se movem os sujeitos da interacção comunicativa, confrontados com
normas, quanto ao respectivo horizonte pré-jurídico ou trans-jurídico. Uma distinção cujo 'O-problemático. Trata-se1 noutros termos, de normas cuja traject6ria e as vicissitudes da sua
relevo do ponto de vista duma construção sistémico-funcionalista do direito penal justifica emergência e transformação obc'dccem ao processo de .creprodução cultural do mundo da vida»
uma caracterização sumária, atenta quer aos seus referentes sociológicos e culturais, quer às de que fala HABERMAS, Segundo o autor: .cA reprodução cultural do mundo da vida assegura
suas implicações mais óbvias para a doutrina penal. que as novas situações que ocorrem na dimensão semântica se integrem nos estados do mundo
a) Foi para enquadrar conceitualmente esta distinção que M. E. MAYER cunhou a (Weltzustãnde) preexistentes. Ela garante a continuidade da tradição e uma coerência do
contraposição entre normas de cultura e nonnas jurtdicas, com base na qual procurou conhecimento bastantes para a pra.xis quotidiana,. (HABERMAS, Theorie des kommunikatiuen,
demarcar as fronteiras entre o ilícito penal e o ilícito penal administrativo. Um caminho em :II vol., pág. 212/13). O quadro tenderá a ser outro quanto ao segundo grupo de normas. É o que
que viria a ser seguido por autores como LANGE, MICHELS ou AMELUNG, empenhados no •as reflexões de O1T1 centradas sobre o direito económico, o direito penal económico incluído,
estabelecimento de uma divisória qualitativa entre o crime e a contra-ordenação (Uma síntese permitem exemplificar. (Cf. OTT, ob. cit,, passim, especialmente pág. 401 e segs.). Segundo o
em C. ANDRADE, RDE 1980/1, pág. 8 e segs.). Independentemente da sua valência heurístico- autor, esta área do direito caracteriza-se além do mais, pela especificidade dos seus .cproble-
-dogmática - para efeito, nomeadamente, de demarcação entre crimes e contra-ordena- mas de comunicação... Mesmo nos casos cm que a norma atinja o seu destinatário, "'ª verdade
ções - uma coisa parece líquida: a existência de normas jurídicas com uma diferenciada ·é que este não a pode utilizar,já que não logra descodificá-la. Noutros ten11;os, e a ser permitida
densidade ética e com um diferente envolvimento sociológico-cultural. O ordenamento :a·imagcm, as normas são emitidas a um comprimento de onda que o destinatário não pode
jurídico-penal continua a integrar normas que correspondem às representações ético-sociais -recebcl">lt. Em vez de contar com a consonância cognitiva, simbólica e motivadora das normas
colectivas e são consensualmente assumidas, isto é, normas sintonizadas com a consciência '..sociais», o direito económico corre à margem delas, se não mesmo, muitas vezes, contra elas.
colectiua (OURKHEIM), A par delas, outras há que apenas ..relevam do projecto de um futuro E aqui residirá um dos mais oomplexos problemas .. do direito positivo que rompe a harmonia
apenas referenciado ou antecipado nos seus postulados programáticos e, por isso, ainda cm ·com as estruturas da ordenação social e as normas.sociais( ...): A particularidade do direito
aberto,. (MAilI0FER, .cDie Funktion», pág. 35). E que, de certo modo, assinalam o que com positivo reside, em última análise, no facto de ter perdido a ligação e comunicabilidade directa
HABERMAS se poderá designar por colonização cfu muncfu-da-vida pela racionalidade sistémi- ·com a matriz da ordenação social recebida e de se ter constituído numa realidade instrumental
ca.Trata-se, de resto, de normas cujo peso relativo na ordenação jurídico-penal contemporâ- autónoma. E de, ao mesmo tempo, se ter em boa medida colocado contra esta ordenação,. (ob.
nea vem aumentando de forma acelerada. É que, oomo Orr sublinha, a intervenção do político cit., pág. 401/2). Em síntese, conclui O'IT, tcC sob pena de se converter cm letra morta, este
no direito, de que estas normas derivam, ..tende a adensar-se com o processo de diferenciação direito tem de substituir as estruturas da ordenação social, enquanto supporting system por
e hcterogcneização dã sociedade, cm que já não é possível perspectivar o direito como ·um sistema organizat6rio de aplicação do direito,. (Ob. cit., pág. 402).
revelação de um consenso básico. Até porque cm tal sociedade não existe qualqu_er consenso b) A distinção de dois tipos de normas - diferenciadas, além do mais, quanto ao
básico pré-dado, susceptível de oferecer suporte a uma convergência cultural quanto à envolvimento simbólico, dimensão cognitiva e comunicabilidade entre legislador e desti-
rcfcrenciação do que é justo,,., O direito assumirá, por isso, cada vez mais uma dimensão e uma natário -conta, assim1 com o apoio de uma das representações mais estabilizadas da teoria
tarefa programático-conformadora, como mediação positivada do político (cf. OTT, ..nie zoziale sociológica. Ocioso será sublinhar que esta convergência tem-atrás de si profundas divergên-
Effektivitüt., pág. 347 e segs). A distinção sumariamente referenciada, corresponde em cias de impostação metodológica, de horizonte teórico, de ethos mais ou menos crítico, de
grande medida, a uma antinomia recorrente na história da sociologia e com afloramentos mais extensão e significatividade dos conceitos. Na impossibilidade de refazer, neste contexto, os
explícitos em autores como DURKHEIM, TôNNIES, WEBER, Scmrrz, PARS0NS, LmtMANN ou caminhos desencontrados através dos quais as diferentes perspectivas sociológicas chegaram
HABERMAS. Isto descontada a natural dispersão de verbalização, enquadramento teórico e à já assinalada área de convergência e de contacto, limitar-nos-emos a uma referência
valoração axiológica. Podem, a título exemplificativo, citar-se contraposições como: solidarie- apressada ao que no pensamento mais recente de HABERMAS, se afigura de mais óbvia
dade orgânica/solidariedade mecânica; comunidade/sociedade; consenso/conflitoi sistema/ pertinência para os problemas que aqui nos ocupam.Feita a título meramente exemplificativo,
mundo-da-vida. (Sobre esta última, hoje particularmente assumida por HABERMAS, cf. infra, e ela permitir-nos-á tomar mais ostensiva a limitação metodológica e teórica da doutrina de
ELLSCUEID, .cHermeneutik»). Esta distinção e as antinomias subjacentes projectam-se no JAKoos: que, começando por inscrever o seu programa político•criminal e dogmático sobre a
discurso e nos mecanismos de comunicação entre o legislador e os destinatários da norma. lição da teoria sistémico-social, persiste, todavia, na mais hermética epoche da realidade
Temas que uma teoria sistémico-funcional consequente, orientada para a reafirmação con- social. Central na teoria de HABERMAS é o conceito de acção comunicativa (Kommunikatiue
trafáctica das normas e para o reforço do seu reconhecimento e vigência não deverá desaten- Handlung) quc,juntamcntc com a acção teleol6gica, dramatúrgica e normativamente regula-
dcr. São, com efeito, manüestas as diferenças de índole cognitiva e simbólica que medeiam . da, constituem os quatro modelos fundamentais de acção, segundo a classificação do autor. A
entre dois conjuntos de normas, claramente rcferenciáveis1 pelo menos na sua expressão acção comunicatiua reporta-se a interseções de pelo menos dois sujeitos capazes de linguagem
..ideal-típica». Com reflexos decisivos nos planos da interiorização, socialização, reconheci- e de acção, que, através de meios verbais ou não verbais, se envolvem numa relação
mento e, por isso, da confiança e cfectividade. É o que a reflexão sociológica, desde os clássicos interpessoal. Os setores procuram uma compreensão da situação da acção parai de forma
do fim do século passado, às mais recentes perspectivas (interaccionismo simbólico, sociologia acordada, coordenarem os seus planos e, por essa via, as suas acções ... o conceito basilar de
fenomenológica, sociologia compreensiva, sociologia crítica) tem insistentemente posto em interpretação refere-se em primeira linha à viabilização de uma definição da situação
124 Consentimento e Acordo em Direito Penal A Experiência Hist6rico-Doutrinal 125

susceptívcl de consenso. Neste modelo de acção a linguagem desempenha um lugar decisivo» dlIDensão pragmática e crítica de HADERMAs. O autor faz avultar tópicos como: diferenciação,
(Theorie des kommunikativen, I vol. pág. 128). Significativo, no que à linguagem concerne, o gCJleralização, formalização e abstracção dos valores e motivos de acção, e, sobretudo,
confronto da acção comunicativa com a acção normativamente regulamentada. Nesta última, polarização em tomo de duas estratégias conceituai e pragmaticamente divergentes, se não
a linguagem intervém .. como um meio que transmite os valores culturais e é portadora de um mesmo irreconciliáveis: a do sistema e a do mundo da vida. O sistema subjectivando a
consenso que pura e simplesmente se reproduz em cada um dos demais ectos de compreensão .. · racionalidade da produção e do sucesso e emergindo como um espaço vazio de sentido, para
([d., pág, 142). Diferentemente, o modelo de acção comunicativa, e s6 ele, pressupõe a al6m do sentido da eficácia. O mundo da vida afirmando-se, por seu turno, como o espaço da
linguagem como um meio para uma ..compreensão plena. Em que, na procura de definições pCssoa e da cultura, portador duma integração na base da participação activa, da vivência e
comuns da situação - e a partir do horizonte do respectivo mundo da vida, por eles pré- criatividade de sentidos, e com uma racionalidade alternativa à do sistema. No que às sues
-interpretado - tanto o que fala como o que ouve se reportam ao mesmo tempo a algo do relações respeita, considera HABERMAS que, enquanto o sistema social se emancipa progressi•
mundo objectivo, social e subjectivo" (Ibidem). Acresce que a acção comunicativa se caracte• vamcnte do horizonte de sentidos do mundo da vida, este último, inversamente, se vai
riza ainda, segundo HABERMAS, pela circunstância de os seus actores não se moverem por convertendo cada vez mais num sub-sistema ou numa realidade «provincial» (Ob.
motivações egoístas de mero sucesso. Incindivelmente ligado ao conceito de acção comunica• cit., II vol., pág. 258). Este movimento de irradiação centrífuga é acompanhado,e em boa
tiua, aparece o conceito de mundo da vida (Lebenswelt/World-life). Definido por Scmrrz/ medida potenciado, por um processo que, na esteira de PARSONS, HABERMAS designa por
LUCKMANN como «a realidade fundamental e eminente do homem» (Las estructÜras, pág. 25), g~neralização dos valores ([d., pág. 267 e segs.). Um processo que induz tendências rontra•
o mundo da vida aparece cm HABERMAS como o horizonte de sentido irrcdutfvcl da acção ditórias no plano da interacção, Por um lado, a generalização e abstracção dos valores estimula
comunicativa. Os sujeitos que actuam de forma comunicativa encontram•sc e compreendem• a emancipação da acção comunicativa dos lastros das Wertordnungen reificedas, próprias das
-se sempre no horizonte de um niundo da vida. O seu mundo da vida assenta cm convicções sociedades primitivas, dominadas por representações míticas ou teocráticas. O que potencia
fundamentais pressupostas, mais ou menos difusas, mas sempre aproblcmáticas. Este subs. os coeficientes de racionalidade fnsitos na acção comunicativa c, por essa via1 a sua abertura
trato de pressuposições do mundo de vida serve como fonte de definição das situações que os e renovação. Poroutro lado, porém, a generalização dos valores e motivos abre o caminho para
"participantes assumem como não problemáticas. No desempenho da sua interpretação, os a afirmação de um sistema de racionalidade meramente teleológica, se não mesmo exclusiva•
membros deumacomunidede de comunicação definemo seu mundo objectivo e o mundo social mente estratégica. Por seu turno, também o progressivo afastamento e Polarização dos dois
intcrsubjectivamente partilhado e delimitam-no face aos mundos subjectivos individuais ou universos ou realidades se revela portador de consequências teóricas e pragmáticas: faz
(de outros) colectivos ... os conceitos do mundo da vida e as correspondentes exigências de aparecer dois modelos distintos de integração que o autor designa, respectivamente, por
validade constituem o instrumento formal mediante o qual os que actuam romunicativamente integração social e integração sistémica (Ob. cit., II vol., pág. 226 e segs.). «Num caso, o
reconduzem os contextos situecionais problemáticos (isto é, carecidos de unificação) ao mundo sistema de acção é integrado através de um consenso que pode ser normativamente garantido
de vida, assumido como aproblcmático,, (HABERMAS, Theorie des kommunikativen, I vol., ou comunicativamente alcançado; no outro, inversamente, através da direcção não normativa
pág. 107). Decisivo, neste contexto, o conceito de cultura uma das trêsm!omponentes estrutu• de decisões individuais a que não subjaz qualquer coordenação intersubjectiva. Quando
rais»(a parda sociedade e dapessoa)domundo da vida(Ob. cit., II vol., pág, 209) ...Por cultura encaramos a integração da sociedade exclusivamente como uma integração social, escolhemos
- refere HADERMAS - designo o armazém de conhecimento em que os participantes na uma estratégia conceituai que parte da acção comunicativa e constrói a sociedade como um
comuniceçãl? buscam i~terpretações para se entenderem sobre algo no mundo• ([d., II vol. mundo da vida. Que, por outro lado, vincula a análise das ciências sociais à perspectiva
pág. 209). E este armazém de conhecimento que garante à comunicação as ronvicções imanente aos membros dos grupos sociais e compele-a a sintonizarhermeneuticamente a sua
fundamentais pressupostas e comuns, que estruturam o conceito cm que os sujeitos encon• compreensão pela compreensão daqueles membros. A reprodução da sociedade aparece,
tram situações estebilizadamente definidas, ou superam a problemática aberta por situações assim, a>mo preservação das estruturas simbólicas do mundo da vida• (Ibidem, pág. 226). A.s
novas. Noutros termos, este horizonte de um mundo objectivo pré•interpretado explica que os transformações referenciadas acabam por ter reflexos a nível da moral e do direito, como
sujeitos não caiem no vazio quando vão para além das situações dadas...Na praxis comunica• instâncias de superação de conflitos e de integração. O direito vê-se chamado a intervir em
tiva de todos os dias não há situações pura e simplesmente inéditas... As situações novas espaços, cada vez maiores, vazios duma comunicação quotidiana, normativamente orientada.
emergem sempre num mundo da vida estruturado sobre (e esclarecido por) um armazém de As normas jurídicas- o mesmo valendo para as morais - convertem-se, assim, cm «normas
conhecimento cultural, em relação ao qual não será possível assumir uma ..posição extramun. de acção de segunda ordcID.>t (Handlungsncnnen zweiter Ord.nung) (pág. 259). Como, nesta
dana. ([d., vol. II., pág. 191). Para um melhor esclarecimento das relações que, segundo o linha- e cuja pertinência no contexto duma crítica da doutrina deJAKoes se afigura óbvia -
autor, medeiam entre a acção comunicativa e o mundo da vida, convirá ter presente a refere HABERMAS: ..o direito transforma.se progressivamente num poder exterior e heterono•
articulação funcional entre aquela acção e as -componentes estruturais• do mundo da vida: mamente imposto. De tal forma que o moderno direito de coacção, estadualm.cnte sancionado,
cultura, sociedade, pessoa, A este propósito, considera HABERMAS que, do ponto de vista da se converte cada vez mais numa instituição desvinculada das motivações éticas dos sujeitos do
compreensão (Verstãndigung), a acção comunicativa serve a tradição e renovação do conheci• direito e orientada para uma obediência meramente abstracta. Esta evolução é uma parte da
menta cultural; do ponto de vista da coordenação da acção, serve a integração social e a diferenciação estrutural do mundo da vida, Ela espelha( ...) a autonomização face à cultura e
produção da solidariedade; do ponto de vista da socialização, serve a formação de identidades à personalidade dos componentes sociais do mundo da vida e, por outro lado, a tendência no
pessoais (cf.Jd., II vai., pág. 208). «As estruturas simbólicas do mundo da vida reproduzem• sentido de as ordenações legítimas se revelarem cada vez mais dependentes de processos
-se pela via da a>ntinuação do ronhecimento válido, da estabilização da solidariedade do grupo formais de imposição e fundamentação das normas.. (II vai., pág. 261).
e da formação de actores imputáveis. O processo de reprodução liga as situações novas aos Em conclusão: no plano estritamente teórico, surpreendem-se cm HABERMAS aponta•
estados existentes do mundo da vida: tento na dimensão semântica dos significados e mentas significativos que exprimem outras tantas linhas de convergência com autores como
conteúdos (transnússão cultural), como na dimensão do espaço social (dos grupos socialmente LUHMANN ou, mesmo HAYECK. À semelhança da colonização do mundo da vida pela racionali•
integrados) ou do tempo histórico (das gerações que se sucedem)• (/d., II vai., pág, 209). É da dade sistémica (de HABERMAS) também este último privilegia a contraposição entre o que
interpretação da moderna sociedade industrial à luz desta grelha conceitua! que emerge a designa por ordem do kosmos e ordem da taxis e, reflexamente, entre nomos e thesis (HAYECK,
.i
Consentimento e Acordo cm Direito Penal A Experiência Histórico-Doutrinal 127
126

2.2. Procurámos até aqui pôr em evidência algumas das limitações do ' Mas é, sobretudo, a viragem operada por JAKOBS a nível do sentido da tutela do
pensamento de JAKOBS como construção que se louva da teoria sociológi~a do direito penal, com o bem jurídico a ceder o lugar ao reconhecimento das normas e
funcionalismo sistémico-social (237 ). Para além disso, JAKOBS vem sendo 1gual- ao reforço da confiança, que deve suscitar as maiores reservas. É aí que radicam as
men1e alvo de críticas que privilegiam a sua dimensão extrínseca, isto é, a sua razões das mais comprometedoras implicações pragmáticas e ético-políticas da
projecção sobre os referentes sociais, pessoais e axiológico-teleológicos do direito doutrina Ao renunciar ao conceito de bem jurídico como objecto e critério da tutela
penal, o autor abre deliberadamente mão do potencial de garantia que ele representa,
penal.Desde Jogo, e duma perpecuva. .msprra'da pe1a cnmmo
··1 ·,
ogia . tem-se
cnuca, sem curar ao mesmo tempo de erguer um dique alternativo à natural propensão pan-
censurado a construção de JAKOBS como uma legitimação tecnocrática do sistema criminalizadora do sistema ("'º).
vigente e, por isso, como reprodução da realidade com as suas margens de selecção Numa perspectiva histórico-dogmática, JAKOBS representa, de algum modo, o
da delinquência e dos delinquentes (238). A JAKOBS tem-se igualmente criticado a ponto de chegada da evolução semântica e político-criminal operada na compreen-
hipostasiadasubjectivação do sistema social. Facto que, conjugado com o ostensivo são do conceito e da função do bem jurídico: uma evolução no sentido da erosão do
esquecimento do mundo da vida e da pessoa, não deixará, segundo alguns autores, seu conteúdo e alcance liberal. Neste aspecto, o reaparecimento e reafinnação
de valer como a potenciação, pelo lado e com os meios do direito penal, daquela dogmática e político-criminal do bem jurídico no direito penal do pós-guerra,
«colonização» do mundo da vida pelo sistema de que fala HABERMAS ('-''). caracterizou-se pela ambivalência. Emergindo integrado no arsenal de mecanismos
do Estado de Direito que veio tomar o lugar das fonnas totalitárias de organização
política, o bem jurídico converteu-se ao mesmo tempo no referente privilegiado de
uma política criminal sintonizada com as exigências do Estado de Direito material
ou social. Em termos tais que um conceito, que reaparecera indissociavelmente
ligado a um movimento sem precedentes de descriminalização e de crítica à crimi-
Recht, Gesetzgebung, I, pág. 57 e segs. e 133 e scgs.). Enquanto isto, enfatiza LUHMANN a nalização, viria igualmente a operar como mediador fundamental da legitimação da
diferenciação da sociedade moderna e com ela a progressiva autonomização e tensão autore- neo-criminalização (1" 1). São, com efeito, em número cada vez maior as projecções
fcrcntc dos diferentes sub-sistemas, com destaque para o político. O que ten: por reverso a
ruptura da semântica tradicional, que mediatizava e assegurav~ a co~umcnção entre o normativas de complexas funções sistémico-sociais que aparecem na constelação
político e os demais sub-sistemas, entre as normas e os seus dcstmatános (Cf., sobretudo, dos bens jurídicos dos modernos ordenamentos penais (1"2).
SoziologischeAufkliirung, 4,passim, principalmente pág, 33 e scgs. e 74 e segs,). ~h~teroge- Ora, este acesso progressivo de novas necessidades colectivas à categoria de
ncidade de dois universos ou tipos diferenciados de normas cm que os actua1s s1Stcmas interesses dignos de tutela penal fez-se naturalmente à custa do alargamento da
normativos O direito penal incluído, se analisam emerge, assim, como um dado intersubjccti-
vamcnte lc~timado. Um dado que JAKOBS não poderia (como o fcz)_desatcnder,. a p_reten~cr extensão do conceito de bem jurídico e reflexamente do esbatimento dos seus
(como prometeu) pôr de pó um sistema pen!11 congruente com a lição da teona sisté~co- contornos. E, por vias disso, em detrimento da sua função de garantia e crítica. «O
.funcionalista. fenómeno da expansão do momento penal- refere nesta linha BARATIA- como
c2l1) Para além das incongruências que deixámos citadas, numa apreciação que não se
pretende esgotante, outras poderiam elcncar-se. A doutrina de JAKDBS não deix~a de ficar
perturbada por uma leitura sistémico-funcionalista de fenómenos co~o a «_verbah~a~ão• (Vf •
Mn.LS) ou as «técnicas de neutralização• (SYKEs!MATZA), para que a sociologia e a cnnunologia
vêm chamando a atenção. Resumidamente, fala-se de neutralização sem~re que o age~te de
uma infracção a comete embora declinando, cm abstracto, o seu reconhecimento e fidel!dade
à norma violada: cuja vigência ou eficácia, em concreto, se afasta através de mccarusmos
variadas de racionalização. Nessa medida e duma perspectiva funcionalista, pouco sentido JAKoBS, adquire uma outra identidade. Sujeito do sistema já. não é apenas o Estado, mas
teria O recursa à expressividade simbólica da pena para se reafirmarem cantrafacticamente também uma relação de interdependência entre a administração estadual e a vida económica
normas cuja validade, afinal, não se problematiza. Acresce, estreitamente ligado, que JAKons (...). Não há dúvida que as exigências de autoconscrvaçãa do sistema são parcialmente
não precisa qual o momento ou dimensão da «estrutur~ ~e '?gênciait a eri~r à categoria de estranhas aos interesses do mundo da vida, pela que haverá que questionar cm que medida os
bem-jurldico•penal. (Sobre a conceito de «estrutura de V1genc1ait, desenvolVIdamente, PoP~, interesses do sistema resultam satisfeitos pela prossecução dos interesses do mundo da vida».
Die normatiue Konstruktion, passim, sobretudo, pág. 64 e segs.). Não resulta, com efeito, (Ob. cit., pág. 111).
2
líquido se tal vale quanto à dimensão da vigência e validade se, pelo contrária, quanto à da sua ( 'ª) A defesa do bem jur{dico na sua vertente liberal e com a seu contet1da de garantia

cfectividade expressa em comportamento conformista. é hoje aceite, mesmo por adeptos da criminologia e da dogmática críticas (neste sentido,
cm) Neste sentido, por todos, BARATI'A, Doctrina penal 1985 pág. 15 e segs.; SMAUS, SMAUS, ob, cit,, pág, 105; BARA'ITA, Doctrina penal 1985, pág. 10 e segs.).
241
( ) Sobre a neo-criminnlização, F .DIAs/C. ANDRADE, Criminologia, pág. 434 e segs.
Dei delitti e delle pene 1985, pág. 102 e segs. .. 2
(2 311) Neste sentido, SMAUS, ob. cit., pág. 108 e segs. De acordo com SMAUS: «A luz da ( ª) Para ~ma síntese, HASSEMER, Dei delitti e delle pene 1984, pág, 104 e segs.; e

confronto entre sistema e mundo da vida, o sistema protegido pela direito penal, segundo CALLIESS, Theorie, pág. 122 e segs.
128 Consentimento e Acordo em Direito Penal A Experiência Hist6rico-Doutrinal 129

\
suporte integrador do direito e da actividade administrativa do Estado, isto é, o Ao que acrescem os perigos inerentes à des-subjectivização que a doutrina de
fenómeno da chamada administrativização do direito penal, corresponde a uma real JAKOBS claramente postula e, por sua vez, potencia. Encarada como mero centro de
e autêntica transformação do sistema e da função do direito penal. Na maior parte das ads_c~çã~ da responsa?ili?ade penal, a pessoa vê-se privada da densidade _ e
vezes, a disciplina penal constitui apenas um dos elementos que integram os res1stencia- da sua d1gmdade e reduzida à abstracção de um sub-sistema físico-
domínios cada vez mais extensos da disciplina jurídica, na regulamentação da •?síqui~o. Ten~encialmente, a pessoa figurará apenas como o portador da resposta
intervenção estadual ou da actividade privada em matérias como a saúde, a s1mbóhca do sistema «à custa de quem» a validade contrafáctica das normas é
construção, a economia em geral»("''). O que significará, segundo BARATIA, pôr afirmada. o_ que dificilmente se poderá compaginar com as exigências de um direito
irreversivelmente em crise, para além do princípio do bem jurídico, os princípios do penal própno de um Estado de Direito.
discurso da criminalização nele ancorados, v.g., o da subsidiaridade. Como também - refira-se a encerrar estas observações críticas - dificil-
Ao formalizar a ruptura com o bem jurídico como objecto de tutela penal, me~te s~ pod?ria compaginar com os desenvolvimentos entretanto conhecidos pela
JAKOBS apenas terá sancionado a transformação da quantidade em qualidade. E, por teona s1stém1co-sociológica e devidos principalmente a LUHMANN. Desenvolvi-
este meio, aberto mais a porta a um direito penal que não reconhece, fora de si mi:ntos que s? caracterizam fundamentalmente - e como já por mais de uma vez
próprio, quaisquer limites ao «actual movimento de expansão do sistema penal e de ?e1~ámos assmalado - pela emergência de um novo paradigma, centrado sobre as
incremento da resposta penal, tanto em extensão como em intensidade» ('44). 1de1as de autoreferência e interpenetração, e contraposto ao paradigma assente na
2.3. As dificuldades sobem de tom quando se ponderam os riscos desta visão rela~ão meramente mecanicista entre sistema e ambiente. As coisas são, desde logo,
das coisas do lado da pessoa. Privada de valência e relevância sistémico-social óbvias do lado da pessoa. Como sistema, também ela - especialmente ela! -
autónoma, a pessoa surge na expressão já recordada de SCHELSKY, reduzida à «dupla autoreferen_te, a pessoa há-de perfilar-se no ambiente dos sistemas social e penal
veste de destinatário da norma e de portador do conflito». Na hipótese, apesar de como matriz autónoma de complexidade não inteiramente redutível. E as coisas
tudo mais benigna, a pessoa será chamada ao exercício de confiança e fidelidade às devem ~erspectivar-se de modo tendencialmente idêntico do lado do próprio sistema
normas e de aceitação das consequências normativas da conduta. O que equivale, pen.ai, situado, por sua vez, no ambiente quer do sistema pessoal quer do sistema
desde logo, a afirmar a plena supremacia da «cultura do sistema penal» (BARATIA), social. E também ele há-de recortar-se, no desempenho autoreferente à luz dos seus
face a uma pessoa chamada à metanoia compulsiva aos valores da construção social valores específicos, como portador de uma complexidade que o sistema social não
da realidade subjacente ao sistema penal ("''). pode aspirar a reduzir sem reservas.

_3 •• ui:ria p':rspecti_va do sistema penal como a de JAKOBS, que acentua a


referencia s1stém1co-social, não poderia deixar de revelar implicações a nivel da
compreensão do consentimento. Implicações que o próprio autor explicita e assume.
( 2º) BARA'ITA, Doctrina penal 1985, pág. 11. Desde ~~go, e no que toca ao estatuto dogmático do consentimento, JAKOBS começa
('") BARA'ITA, [d., pág. 15.
( 245) Para além dos perlgos que comporta, a doutrina de JAKons vê-se, assim, confronta-
por reJe1~ como «pura ': simplesmente errada a nova doutrina que pretende
da com problemas de legitimação análogos aos que, na d6cada de setenta abalaram a reconduzir todo o consenumento eficaz à exclusão do tipo» ("''). A par disso e
plausibilidade político-criminal do dogma da ressocialização (Para uma síntese do problema, complementarmente, põe em evidência a diferença e a incomunicabilidade- tanto
A. RODRIGUES,A Posição, pág. 53 e segs.; da mesma autora ..Polémica Actual»; T. BELEZA, .,A no qu~ toca ao significado simb6/ico como no que respeita à valência social -que
Reinserção social»; C. ANDRADE, «O Novo Código Penal» pág. 206 e scg.; MUNoz CONDE,
Derecho penal y control, pág. 87 e segs.). Sobre os problemas de legitimação no contexto medeia entre a autolesão e a heterolesão consentida ('47).
específico da preuenção de integração, BARA1TA, Doctrina penal, pág. 21 e segs. Problemas a 3.1. No plano estritamente dogmático, a doutrina de JAKOBS singulariza-se
que os autores espanhóis se têm mostrado particularmente atentos. Segundo, por exemplo, pela arrumação e categorização tripartida das manifestações penalmente relevantes
Mm PlJIG, «não será admissível invocar o conceito de prevenção geral estabilizadora, integra-
dora ou positiva para se exigir ou permitir que a prevenção geral vá mais longe e alargue as
suas exigências para além da intimidação, acrescentando a vontade de interiorizar valores. É
precisamente o contrário que terá de sustentar-se: limitar a prevenção geral intimidatória
exigindo que complementarmente se apresente como socialmente integradora. De outro modo,
a ideia da prevenção geral estabilizadora revestiria um sentido moralizante de imposição, socialmente integradora, entendida como categoria autónoma- sobretudo se exclusiva-
mediante a coacção da pena, de uma adesão interior aos valores jurídicos por parte dos e co:11 exigê~cias próprias» (Cuadernos de polttica criminal 16, 1982, pá~. 99; no mesmo
cidadãos. O que seria verdadeiramente incompatível com um direito penal alinhado pelos sentido, Muz.mz CONDE, Derecho penal y control, passim, sobretudo, pág,31 e segs.).
248
princípios da garantia do indivíduo.• (Función, pág. 32). Também LuzóN PERA sublinha «o ( ) JAKODS, Strafrecht, AT, pág. 202.

carácter repressivo que, em comparação com a prevenção de intimidação, revela a prevenção ("') [d. pág. 359.

9
130 Consentimento e Acordo em Direito Penal A Experiência Hist6rica-Doutrinal 131

\
de consentimento. Ao lado do acordo (Einverstiindnis) que exclui o Iipo, coloca o deles se disponha sem qualquer equivalente geralmente reconhecido. Nesta área é a
autor o consentimento (Einwil/igung) que nuns casos exclui a tipicidade enquanlo vontade do portador que decide sobre se, em concreto, o destino de um bem
noutros, inversamenle, só poderá excluir a ilicitude, configurando uma autêntica representa um sacrifício, configura um acto neutro ou vale mesmo como um
causa de justificação. Mais do que a divisória que separa entre si as hipóteses de ganho» (2' 1). Segundo o autor, em relação a esta fenomenologia não terá sentido
acordo e consentimento que excluem a tipicidade, é a fronteira estabelecida para apelar a um princípio de justificação para afastar a ilicitude da conduta. Isto,
•contraporo conjunto das manifestações de exclusão da tipicidade às de exclusão da porquanto, pressuposto o consentimento do titular, a conduta não constitui qualquer
ilicitude que imprime carácter à construção de JAK0BS e lhe empresta o seu frustração nem releva daquelas formas de conflitualidade social que só excepcional-
significado doutrinal. Na verdade, a primeira ter-se-á ficado sobretudo a dever à mente a ordem jurídica pode tolerar (2'").
sobrevalorização de elementos meramente extrínsecos ou formais, muitas vezes O consentimento que exlui a tipicidade reporta-se, assim, a expressões da vida
ditados, como RoXIN recorda, por aleatórias considerações de ordem linguística ou em que a emergência do «conflito social depende de uma relação, com uma
estética: a referência expressa ou implícita contra a vontade ou sem a vontade do determinada estrutura, entre um bem e o seu portador». Daí que o «preenchimento
portador concreto do bem jurídico ("''). Pelo contrário, é na definição e fundamen- da factualidade típica possa ser condicionado através da conformação desta rela-
tação da segunda linha de clivagem queJAK0BS afronta directamente a controvérsia ção» (2'3). É outro o teor das relações que medeiam entre o consentimento-justifica-
doutrinal hoje polarizada pelo problema do estatuto dogmático do consentimento. ção e a conduta a justificar. Posto o consentimento entre parênteses, é desde logo
Uma controvérsia que procura superar apelando directamente para a prevalência da distinta a expressividade simbólica e a relevância social das condutas em causa.
referência sistémic.o-social n.a id.entificação do bemjurídico-penql._ .. Como JAK0BS sublinha a propósito das correspondentes incriminações típicas:
Na fenomenologia de casos de exclusão da tipicidade inscreve JAK0BS, para «Assim como a autonomia não é directamente protegida mas apenas através dos
além das hipóteses de acordo (v.g., o crime de Coacção), as manifestações de tipos legais- sendo certo que o legislador tem em mente a autonomia, a verdade
consentimento atinentes aos bens que estão cometidos ao respectivo portador para é que apenas a nomeia pela via objectivada do acontecer típico -de igual modo, e
fins de disposição (zum Zweckder Disposition zustehen») ("''). Como exemplo desta ., inversamente, pode preencher-se o tipo legal objectivo sem que se verifique
última categoria, aponta o autor o consentimento relevante no contexto de crimes qualquer afronta àautonomia» ('-'4). Noutros termos, o consentimento contende aqui
contra a propriedade, o património, o sigilo da correspondência, a inviolabili?ade do com bens que «não têm uma função de troca» nem constituem «meios de desenvol-
domicílio, bem como o relativoainfracções que contendem com bens pessoais como vimento». «O seu tratamento como um meio só é possível em situação especial,
a liberdade, a honra e a integridadefisica. Isto com uma ressalva: em se tratando de dando em qualquer caso origem a uma frustração cuja superação não poderá dar-se
bens pessoais (2'º) como os que ficam enunciados, o consentimento só excluirá a apelando apenas para o consentimento, antes reclama a consideração do respectivo
·. tipicidade quando se reporte a expressões que constituam «meios de desenvolvimen- contexto». É por isso que, explicita o autor, será de distinguir claramente entre uma
to» e não atinjam a própria «base do desenvolvimento». Um limite que, aplkado, doação de sangue e a extracção de um rim para efeitos de transplantação. Dada a
v.g., à integridade física significará que caberão aqui hipóteses como: corte do «importância do bem», e apesar do consentimento, só «no contexto de uma situação
cabelo, doação de sangue, ingestão de anticonceptivos, etc. Inversamente, já a excepcional» é que esta última poderá ser «tida como razoável» (2' 5).
extracção de um rim para fins de transplantação terá de increver-se no âmbito e no 3.2. Do ponto de vista do pensamento de JAK0BS, afigura-se óbvia a
regime do consentimento-justificação. Em síntese, o consentimento excluirá a existência de expressões da vida em que o sacrifício de um bem, mesmo disponível
tipicidade «na área dos bens permutáveis (tauschbaren) mesmo que em concreto e a coberto de consentimento eficaz; configure umafrustracção ou conflito social,
isto é, denote aquela soziale Auffii//igkeit des Geschehens que, segundo o autor,
define a tipicidade (2''). Pois, apesar de consentida, a heterolesão pode valer como
uma frustração das normas penais que, relevando do desempenho do sistema social,
(H') Não é, de resto, fácil demarcar com rigor os limites assinalados por J~oes. às·
respectivas fenomenologias. Entre a Einuerstandnis e o Einwilligung que exclui o tipo
subsistem, com efeito, zonas consideráveis de sobreposição, (Cf., ob. cit., pág. 200 e 201). Isto
apesar do propósito de adscrever uma extensão relativamente circunscrita ao acordo: segundo
JAKOBS só valerá como tal o que, à vista do contexto objectivo do tipo, se possa identificar como ( 251)
Ibidem.
afront;exprcssa ou implícita à voritade do portador do bemjurídico ou, ao menos, coma evieção ( 281)
Ibidem.
ou ultrapassagem ilegítima daquela mesma vontade. ('") Id. pag. 358.
("') Id. pág. 201. ('") Id.,pág. 202.
(2110) Na que taca aos bens patrimoniais, maxime na perspectiva do crime de Dano, cf. ( 254) Ibidem.
infra, § 34.2. ('") Id., pág. 133.
132 Consentimento e Acordo em Direito Penal A Experiência Hist6rico-Ooutrinal 133

se oriemam para a estabilização generalizada de expectativas. Convirá, por outro ' casos sempre se dará, contudo, uma redução do grau do ilícito: pois, já não se trata
lado, 1er prese me a consislência que JAKOBS reserva à referência sistémico-social na da lesão do bem de um portador individual mas apenas da criação de um perigo para
compreensão material da ilicitude e que lhe permite apontá-la como fundamento a subsistência geral de determinados bens, mediante a violação das máximas de
autónomo de uma danosidade social, capaz de susbsistir para além e apesar do conduta em geral esperadas. A alternativa para efeitos de ponderação é, pois: um
consentimento. motivo de acção determinado de forma individual ou colectiva (individue/1 oder
Nesta linha, não será igualmente difícil acompanhar JAKOBS quando adianta ser allgemein bestimmter Handlungsanlass). Com este alcance pode seguir-se a teoria
«mais complexa» a fundamentação duma justificação ex vi consentimento. Tal da ponderação» (2'').
fundamentação é, além do mais, reclamada para superar a antinomia que parece
subsistir entre, por um lado, «a natureza pública do direito penal» e, por outro lado,
a circunstância de a verificação «de um ilícito penal-típico depender da vontade do
lesado» (2'7). É, de resto, na tentativa de resposta a esta aporia que a posição de
JAKOBS sobre a estrutura normativa e o estatuto dogmático do consentimento adquire
contornos mais claros. É aqui que o autor estabelece uma mais directa aproximação
entre o consentimemo e as matrizes teórico-doutrinais e metodológicas da sua
doutrina, nomeadamente: o positivismo transcendental-normativista eo primado da
referência sistémico-social. E fá-lo em termos que denotam uma compreensão do
consentimento que - à semelhança do que sucede com as demais causas de
justificação-releva duma conflitualidade real e apela, por isso, para um princfpio
de ponderação. Isto é, em termos de explícita e assumida contiguidade doutrinal,
político-criminal e metodológica com as posições nesta matéria sustentadas por
autores como NOLL, JESCHECK ou GEPPERT (2''). Face às quais a concepção de
JAKOBS se singulariza, apesar de tudo, no que toca à idemificação das linhas de
conflitualidade e da respectiva significatividade. Segundo JAKOBS, do que acima de
tudo se trata é de saber «quando o exercício da autonomia por parte do autor do
consentimemo acarreta para o terceiro que realiza a lesão um motivo razoável de
acção (vernünftigen Handlungsanlass)». Se tal não se dá, a lesão não deixa, apesar
do consentimento, de frustrar a expectativa de que os bens alheios devem permane-
cer intocados. Mesmo que a lesão consentida não atinja o portador do bem jurídico
na sua autonomia, «sempre se perturbará a conexão geral de autorização de agressão
(generelle Verknüpfung von Eingriffserlaubnis) bem como -em termos ainda a
concretizar- a razão». Diferentememe do que sucede com a autolesão, em que só
de forma mediata (isto é ligada à autolesão) pode emergir uma relação social - «a
heterolesão configura invariavelmente uma autêntica relação social». Ela pode, por
isso, perturbar as expectativas gerais sobre o conteúdo de tais relações, mesmo
quando a pessoa concretamente lesada se afasta do padrão geral e consente. «Nestes

("') Id., pág. 358.


( 2M) Ibidem. Em termos não inteiramente sobrcponívcis e dücrcntemcnte de JAKoes,
estes autores propcndcm a privilegiar a ponderação entre: por um lado, o relevo social do
exercício da autonomia pessoal; e, por outro lado, o interesse geral na prcrservação dos bens
jurídicos. ("') Ibidem.
CONCLUSÃO

O percurso histórico que fica registado confirma a pertinência e plausibilidade


teórico-doutrinais da hipótese que começámos por antecipar:
PARTE SEGUNDA
1. Há uma relação de interdependência entre a concepção do objecto do
crime e a doutrina do consentimento, Tanto no que concerne ao seu âmbito de
validade e eficácia, como no que respeita ao seu estatuto normativo e dogmático.
SISTEMADOGMÁTICO: UM NOVO PARADIGMADUALISTA

2. As doutrinas que enfatizam a estrutura relacional-subjectiva ou intersub-


jectiva do objecto do crime e privilegiam o atentado à autonomia individual, como
fundamento e conteúdo do ilícito material, propendem para o relativo silenciamento
da valência sistémico-social. E, nessa medida, para a maximização da eficácia do
consentimento, adscrevendo-lhe ao mesmo tempo a sede mais radical de relevância
e exclusão do ilícito - a tipicidade. O quadro é outro nas doutrinas que concebem
o objecto do crime como pertinente ao mundo exterior (no sentido de transcendente
ao plano da subjectividade e da intersubjectividade) e autonomizam e acentuam a
sua directa valência sistémico-social. Posto entre parênteses o atentado à autonomia
pessoal do portador, sobra sempre a frustração das expectativas subjectivadas pelo
próprio sistema social e um potencial de conflitualidade só superável pela via. da
justificação.

3. O triunfo do bem jurídico, sobre conceitos alternativos e concorrentes


(v.g., direito subjectivo ou interesse), tende a reforçar asubjectivação, pelo sistema
social, do programa de tutela penal. Como tende igualmente a multiplicar e
diversificar os referentes materiais susceptíveis de valer como autónomos bens
jurídico-penais.

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