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Título JURJS ET DE JURE

Nos vinte a n o s da Faculdade de Direito


d a Universidade Católica Portuguesa - P o r t o

Coonimaçâo MANUEL AFONSO VAZ


J . A- AZEREDO LOPES

EJtçiD UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA (PORTO)

Coord Grá/ica MANUELA COSTA

Ucp&lio Legal 128704/98

JSBN 972-8069-21-9

Data de sufdn 20 . Novembro . 1998

Tiragem 1500 exemplares

lixícuplo grá/lca Secção de Artes Gráficas das Oficinas


de Trabalho Protegido da APPACDM Distrital de Braga
Tel. (053) 67 63 98 - Fax (053) 67 97 58
4710 BRAGA

Oiiirlbuidora Coimbra. Editora, Lda.


Rua do Amado - Apartado 101
3002 Coimbra Codex
8042

t - J u

JÚRIS ET
DE JURE
Nos vinte anos da Faculdade de Direito
da Universidade Católica Portuguesa - Porto

Coordenação

MANUEL AFONSO VAZ


J. A. AZEREDO LOPES
602 Filipa Urbano Caivão

lação, pelo facto de o acto autorizativo não ser ilegal (razão por que o
requisito do n." 3 do art. 86." não constitui aqui obstáculo). Todavia,
há quem coloque a hipótese de este melo processual funcionar auto-
nomamente, o que seria de grande utilidade no presente contexto, pois
pela simples activação de tal mecanismo cessaria a lesão do direito ao
ambiente 72 .

73 VIE.RA DF ANDBADE, Direito..., cii., p. 121.


O DIREITO AO AMBIENTE COMO DIREITO
DO HOMEM NO QUADRO EUROPEU

MÁRIO DE MELO ROCHA 4

I. ENQUADRAMENTO DO DIREITO AO AMBIENTE COMO DIREITO DO


HOMEM

«O homem tem um direito fundamental à liberdade, à igualdade


e a condições de vida satisfatória, num ambiente no qual a qualidade
lhe permita viver com dignidade e bera-estar. Existe o dever solene de
proteger e melhorar o ambiente para as gerações presentes e futuras».
Este princípio, integrado na Declaração de Estocolmo de 1972 adoptada
pela Conferência das Nações Unidas sobre ambiente, contém os elemen-
tos que estão presentes no conceito de «direito ao ambiente» tal como,
desde aí, é concebido; a sua inserção no âmbito dos direitos do homem,

* Assistente da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa


— Porto. Pós-graduado em Direito Comparado pela Faculdade Internacional de Direito
Comparado — Estrasburgo.

JOÊIS ET DEJUMB
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Fana, 19«
fp. <03-642
604 Mdrio cie Melo Rocba

a definição do conteúdo do direito, a obrigação para cada um de o pro-


tegei; o objectivo de proteger as gerações presentes e futuras1.
Esta concepção do direito ao ambiente como direito do homem,
longe de ter conhecido um caminho isento de dúvidas, tem sido feita
através da superação de múltiplas questões formais e substantivas. Por
um lado, coloca-se a questão de saber se verdadeiramente se pode defi-
nir o direito do homem ao ambiente, se realmente ele pode ser objecto
de definição, quais os seus contornos e como é que se concretiza a sua
inserção normativa. Por outro lado, levantam-se dúvidas sobre o rela-
cionamento entre o direito ao ambiente e outros direitos acolhidos nas
Constituições e em textos normativos internacionais, ao mesmo tempo
que se reconhece a necessidade de operar transformações no plano da
protecção jurídica dos privados face ao crescimento de uma actividade
admlnWtr&tlv» da contorno» proípcctivos « infraestruturais «em domí-
nios de escassa densificaçâo normativa»
A questão de saber se o direito ao ambiente é susceptível de uma
formatação jurídica que o defina começou por ter uma resposta nega-
tiva. A própria existência e natureza de um direito do ambiente opor-
-se-la à construção de um direito ao ambiente enquanto direito indi-
vidual; quando muito, faiar-se-ia de um direito de tipo «sócio-econó-
mico», no quadro do qual «as leis se limitam a organizar a conciliação
de interesses gerais, sendo que a protecção do ambiente é apenas uma
das componentes como o são o crescimento económico ou a dimi-
nuição do desemprego» 3 . Em todo o caso, um eventual «direito ao
ambiente» só poderia ter um conteúdo «positivo», nos termos do qual
seriam dadas ao Estado orientações sobre o que deveria fazer e nunca
um conteúdo «negativo», que impusesse ao Estado a abstenção de uma
conduta 4 . Neste quadro, a protecção do ambiente haverá de ser anali-

1 Neste sentido, ALEXANDRE K I S S — in «Le Droit à. la conservation de 1' environne-


ment» - RUDH, vol. 2 - n." 2, Dez. 1990 - p. 445-
2 Cf. VASCO PEREIRA DA SILVA — in «Em busca do Acto Administrativo Perdido»,
Coimbra, 1996 — p. 231.
1 Cf. F O D I N A N D O ALBANESE — in «Un nouveau droit de 1* homrae ?» - Rev.
NATUROPA, n.* 70 - Estrasburgo, 1992 - p. 20.
4 Idem, Ibidem.
O Diretto ao Ambiente como Direito eto Homem no Quadro Europeu 605

sada caso a caso tendo em conta os outros interesses em (ogo e o indi-


víduo bater-se-á, nos diversos níveis de decisão, pelos seus interesses
depois de conhecer a informação relativa ao problema. Isto é: «direito
ao ambiente seria igual a direito de participação após uma informa-
ção apropriada» 5 , o que lhe retiraria a nota típica dos «direitos do
homem» que é a justiciabilidade.
Ora, viria a ser por aqui, pela questão dos instrumentos ao dispor
dos juízes em vista da justiciabilidade do «direito ao ambiente», que a
doutrina conheceu uma significativa evolução na matéria. Considerando
generalizadamente a insuficiência da noção de «direito ao ambiente»
ou de «direito do homem ao ambiente», vários autores defenderam a
necessidade de qualificar o conceito. Assim o fez A L B A N E S E , invocando
o exemplo do art. 66." da Constituição portuguesa («direito a um
ambiente são e ecologicamente equilibrados»)6 e Kiss, citando o art. 123°
da Constituição peruana («meio são, ecologicamente equilibrado e apro-
priado ao desenvolvimento da vida e bem assim à preservação da pai-
sagem e da natureza») 7 . Assim balizado, seria possivel conceber a sua
justiciabilidade: as dificuldades não seriam inultrapassáveis correspon-
dendo basicamente às que conceitos como «ordem pública», «moral
pública» ou «restrições necessárias numa sociedade democrática» dia-
riamente colocam à jurisprudência que trabalha com as matérias dos
Direitos do Homem. Estaríamos, pois, em presença de noções jurídicas
conhecidas e determináveis: ambiente «são» refere-se Imediatamente
ao «direito à saúde», ao direito de opôr resistência a tudo o que seja
atentatório da integridade psico-física do homem 8 . O que poderá esten-
der-se até abarcar o conceito de bem-estar do homem e o de qualidade
de vida capaz de contribuir para aquele bem-estar.
Acresce que o conceito de «direito ao ambiente» não deve ser visto
como um direito a um ambiente ideal, insusceptível de definição, mas
entendido como o direito «a que o ambiente seja preservado e prote-

5 Idem, ibidem.
' ob. cit., p. 21.
' Cf, ALEXANDRE KISS - in «Le droii à une protection efficace de I' environnement»
— Actes des Journées Sirasbourgeoises - 1992 — pp. 517 e ss.
s Cf. FERDINANDO ALBANESE — o b . c i t , , p. 2 1 .
606 Mdrio cie Melo Rocba

gido de toda a deterioração importante» 9 , o que configura o direito era


causa como «direito à conservação do ambiente». Assim concebido, o
direito ao ambiente pode ser concretizado como qualquer outro direito
a partir da análise dos objectivos fixados pelas normas internas de pro-
tecção (constituição, leis, regulamentos), dos instrumentos internacio-
nais existentes (convenções, directivas), do direito comparado e do
estudo dos conhecimentos científicos1D. Concebido como direito à con-
servação do ambiente, chama-se ainda a atenção para a primeira das
suas particularidades: o ênfase que é necessário pôr na prevenção. O que,
por um lado, implica a vertente da informação aos particulares e a da
participação destes nos vários níveis decisórios; e, por outro, traduz a
possibilidade de recurso em vista da reparação dos danos causados. Nes-
tes termos, o direito à conservação do ambiente comportará o direito à
informação, à participação e ao (-«curso p«rantt Initâncias jurisdicio-
nais internas e internacionais".
Do que vem de ser dito resulta existir, neste âmbito, um relaciona-
mento estreito entre os deveres do Estado e os direitos dos particulares.
O que conduz a que se deva ultrapassar a dicotomia entre as posições
que enfatizam as obrigações estaduais e as que reclamam os direitos
individuais. Se se ancorar o direito ao ambiente na sede própria dos
direitos do homem verificar-se-á que a um direito subjectivo reconhe-
cido a um particular corresponde um dever de protecção do Estado,
«sendo, pois, possível juntar num mesmo conceito as duas formulações
usadas pelos instrumentos constitucionais ou legislativos no que res-
peita à protecção do ambiente» Neste sentido apontam os Pactos inter-

' Cf. ALEXANDRE K J S S - in «Le droit à la conservation ( . . . ) » , cit., p. 447.


10 Neste sentido, ALBANESE - ob. e loc. cits.
11 Na verdade, dispõe o princípio 23 da Carta Mundial da Natureza (proclamado

pela AG da ONU em 28. Outubro. 1982 - resol. n.° 37/7) que «toda a pessoa terá a
possibilidade, em conformidade com a legislação do seu país, de participar, indivi-
dualmente ou com outras pessoas, na elaboração de decisões que concernem direc-
tamente ao ambiente, e, no caso em que este sofra prejuízos ou degradações, terá
acesso a meios de recurso para obter a reparação».
1! Cf. ALEXANDRE K I S S — in «Le droit à une protectioo efficace ( . . . ) » , cit., p. 519-

0 que é independente da imposição constitucional ou legal de deveres aos particula-


res na protecção ambiental como acontece nas Constituições de Espanha, Guiana,
O Diretto ao Ambiente como Direito eto Homem no Quadro Europeu 607

nacionais concluídos sob a égide das Nações Unidas, como o pacto rela-
tivo aos direitos civis ou políticos (art. 6.°) ou o relativo aos direitos
económicos, sociais e culturais (arts. 2.° a 15-°).
X evolução doutrinária referida correspondeu uma evolução no que
respeita à inserção normativa do direito ao ambiente com o objecto des-
crito. No plano internacional e para lá da Declaração de Estocolmo e
da Carta mundial da Natureza (instrumentos normativos sem carácter
obrigatório), têm sido os instrumentos regionais de protecção dos direitos
do homem que, expressamente, se referem ao direito ao ambiente; é o
caso da Carta africana dos direitos do homem e dos povos, adoptada
em 1 9 8 1 d o Protocolo adicional à Convenção americana dos direi-
tos do homem no domínio dos direitos económicos, sociais e culturais,
adoptada em 1988 H, da Convenção sobre os direitos da criança, de
1989 15 , e da Convenção 169 da OTI, de Junho de 1989 l6 .
Atenção especial merecem o TUE e a CEDH. Enquanto o primeiro
se refere expressamente ao ambiente, elevando o tema a objectivo comu-
nitário e consagrando-o em termos tais que é aqui que o princípio da
integração pode ir mais longe17, a segunda não se refere ao ambiente
e não menciona o «direito ao ambiente» como um dos direitos garan-
tidos no elenco que este instrumento normativo internacional acolhe.
A própria comissão o confirmou declarando que o direito à protecção
da natureza não se encontrava, enquanto tal, protegido pela Conven-
ção 18 . 0 facto é que, desde 1976, a jurisprudência da Comissão tem vindo
a evoluir e a matéria tem sido considerada quer na perspectiva do inte-
resse individual quer na do interesse colectivo podendo justificar a limi-

fndia, República da Coreia e Irão e em leis aprovadas na Colômbia, Hungria ou


Roménia.
11 Cf. art. 24.°'. «Todos os povos têm direito a um ambiente satisfatório e glo-

bal, propício ao seu desenvolvimento».


14 Cf- art. 11.': «Cada um tem o direito de viver num ambiente são e de bene-

ficiar dos serviços públicos essenciais. Os Estados contratantes comprometem-se a pro-


mover a protecção, a preservação e a melhoria do ambiente».
15 Que se reporta aos riscos causados pela poluição ambiental (cf. o art. 24.°).

" a . art. 4." - pt. 1.


17 Cf. arts. 2.', 3." alínea k) e 130.' R/S/T do Tratado UE.

18 Queixa n." 7407/76 - Comissão.


608 Mdrio cie Melo Rocba

tação de um direito individual ls . No plano interno, a evolução operada


conduziu a que pareça já sem sentido a discussão acesa de há poucos
anos sobre saber se o direito ao ambiente devia recolher uma consa-
gração constitucional ou se bastaria ser acolhido em lei ordinária20. Na
verdade, a evolução tem ido no sentido da cada vez maior consagração
constitucional na razão directa da crescente importância das matérias
ambientais 21 .
Definido e caracterizado o objecto, atente-se agora na questão dos
limites que o direito ao ambiente pode conhecer. Estamos situados no
centro da questão do relacionamento entre o Direito ao Ambiente e
outros direitos do homem. De um modo geral, os autores estão de acordo
quanto à admissão da existência de uma relação potencialmente
conflitual entre o direito ao ambiente e outros direitos, embora divir-
jam quanto à »ua amplitude". Neste enquadramento, o direito ao
ambiente levaria mais ao constrangimento de direitos económicos e
sociais do que à contracção de direitos civis e políticos. Seria o caso do
direito de propriedade (aí compreendida a liberdade de fixação de resi-
dência), o direito ao desenvolvimento económico e até o direito de igual-
dade (basta pensar no exemplo de certas medidas de ordenamento do
território, ditadas por preocupações ambientais, introduzirem dispari-
dades entre regiões e discriminações entre particulares).
Há, todavia, quem sustente que para lá da aparente contradição exis-
tem potencialidades de «fecundação»", pois que o direito ao ambiente,
visto como direito de equilíbrio, insere-se «no quadro da problemática
geral do equilíbrio entre direitos individuais e exigências da colectividade

19 São marcos desta evolução os casos «Arrondelle Vs. Reino Unido» (queixa

n." 7889/77) e «Herrick Vs. Reino Unido» (queixa n." 11185/84) - vd. infra pp. 24 e 32.
20 Sobre o tema, Vd. ALEXANDRE KISS — «Peut-on definir le droit de 1'homme à

1'environnement?», onde o autor dá conla da acesa polémica ocorrida no Colóquio


organizado pelo Conselho Europeu do direito do ambiente, em Bona - Junho de 1975;
in R.J.E 1/1976 - p p . 15ess.
21 vd. ALEXANDRE K I S S — in «Le drolt à ta conservation ( . . . ) » , cit, p. 445.

" vd., por todos, MOHAMRD Ali MEKOIMR - in «Études en Droii de !'Envi-
ronnement», Casablanca, 1988, p. 54.
" C f . MOHAMED A H M E X O W R - ob. cit., p. 55.
O Diretto ao Ambiente como Direito eto Homem no Quadro Europeu 609

e é um meio de clarificação do quadro social no qual se inscreve todo


o direito do homem» M. Neste sentido, em consequência das suas interac-
ções, o direito ao ambiente pode «levar ao enriquecimento dos direitos
do homem, reforçando os que existem e fazendo aparecer novos»25.
Se não se optar pelo optimismo, a questão reconduzir-se-á, afinal,
ao que noutros lados e noutros tempos sucedeu com as várias gerações
de direitos que, muitas vezes, coabitaram com dificuldades antes de se
sedimentarem. Assim contextualizada, a questão deve ser reconduzida
aos critérios, «maxime» jurisprudenciais, de resolução de conflitos entre
direitos, a partir do tríplice critério da adequação, necessidade e pro-
porcionalidade da medida constrangedora do direito.
É certo, por outro lado, que o surgimento das preocupações em
torno das questões ambientais levou, como nota VASCO P E R E I R A DA SILVA,
a que «se transitasse da mera relevância objectiva das tarefas estaduais
para a esfera dos direitos individuais, considerando-se que as normas
reguladoras do ambiente se destinam também à protecção de interes-
ses dos particulares, que desta forma são titulares de direitos subjecti-
vos p ú b l i c o s » N a esteira da jurisprudência alemã — com inegável
acolhimento na doutrina - a necessidade de se operarem transforma-
ções no plano da protecção jurídica dos privados passa pela atitude do
aplicador do direito que deve ser a de «olhar para as normas de pro-
tecção do ambiente e, interpretando-as à luz dos direitos fundamentais,
determinar quando é que elas conferem direitas subjectivos públicos,
além de recorrer directamente aos direitos fundamentais para a susten-
tação autónoma de direitos de defesa do domínio privado garantido por
esses direitos, em caso de agressão administrativa ilegal» 27 .

" Cf. Conclusões da Conferência Europeia sobre Ambiente e Direitos do Homem


- Estrasburgo, 1979 - II.', vol. p. 72.
M Idem, p. 73.

* Ob. cit., p. 268.


" Cf. VASCO PE&EIKA DA SILVA - i n ob. e h . , p . 2 7 1 .
610 Mdrio cie Melo Rocba

II) NASCIMENTO E EVOLUÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL E EURO-


PEU DO AMBIENTE

1. Introdução

Poucas serão as matérias em que o Direito Internacional e o Direito


Europeu conheçam uma evolução tão idêntica e paralela como com o
que acontece com o Direito do Ambiente nas perspectivas internacio-
nal e europeia. Daí que seja relativamente simples elencar os marcos
mais relevantes da evolução operada: a pré-história do Dl e do Direito
Europeu do Ambiente, a formação do DI e do Direito Europeu do
Ambiente, o estado actual e o que se pode esperar do futuro.

2. A pré-história do Direito Internacional e do Direito Euro-


peu d o Ambiente

É consensual a estimativa que situa nos finais da década de 60 do


nosso século as origens do Direito Internacional e do Direito Europeu
do Ambiente. Trata-se, assim, de um ramo do direito com trinta anos.
O primeiro tratado conhecido nestas matérias é a Convenção de
Paris de 19-M.arço.l902 relativa à protecção de aves úteis à agricultura,
cujo título é bem revelador dos objectivos utilitaristas que a ele presi-
diram. A seguir, em 1909. é celebrado o Tratado entre os EUA e a Grã-
-Bretanha, relativo às águas fronteiriças entre os EUA e o Canadá, que
é considerado de grande importância. Posteriormente, nos anos 30 e 40,
surgiu a Convenção de Londres de 8.Novembro.l933 relativa à conser-
vação da fauna e da flora, especialmente dirigida à Africa colonizada
à época e a Convenção de Washington de 12.Outubro. 1940 relativa à
protecção da flora, fauna e belezas panorâmicas naturais dos países da
América. Estas duas convenções são consideradas como precursoras das
actuais concepções em matéria de Direito Internacional do Ambiente28.
Já nos anos 50, o Protocolo de 8.Abril.1950, assinado pela Bélgica,
França e Luxemburgo é o primeiro tratado inteiramente dedicado à

M Cf. ALEXANDRE KISS, ob. cit. — p. 28.


O Diretto ao Ambiente como Direito eto Homem no Quadro Europeu 611

poluição das águas continentais; subsequentemente foram concluídos


outros29. A Convenção de Londres de l2.Maio. 1954 para a prevenção da
poluição do mar por hidrocarbonetos é o primeiro passo no sentido da
prevenção do mar. Até que chegam os anos 60.
No final da década, na sequência do alarme dado pelos cientistas,
um largo movimento de opinião começa a formar-se.
Simultaneamente, as Organizações Internacionais reagem e a sua
intervenção marca uma nova época. Em 19&8, a ONU; o Conselho da
Europa e a OUA dão passos decisivos: a Resolução 2398 (XXIII) adop-
tada pela AG da ONU em 3.Dezembro.1968 prevê a convocação de uma
conferência mundial sobre o «meio humano» e irá culminar nos pre-
parativos da Conferência de Estocolmo; o Conselho da Europa adopta,
em 8.Março.l968, a Declaração sobre a luta contra a poluição do ar e,
em ó.Maio. 1968, a Carta Europeia da Água; a OUA adopta, em 15.Setem-
bro.1968, a Convenção africana sobre a conservação da natureza e
dos recursos naturais que, na prática, substitui, a Convenção de Lon-
dres de 1933.
Pode dizer-se que nos primeiros setenta anos do séc. XX a regu-
lamentação internacional no domínio ambiental, sobre traduzir um
carácter avulso, consubstanciava-se num leque de textos normati-
vos marcados por todas as imprecisões Inerentes à verdura dos seus pou-
cos anos.
Do lado do Direito Europeu a situação não era multo diversa.
Enquanto no Tratado que instituiu a CECA havia uma referência à
«segurança no trabalho» (art. 55.°) e no Tratado constitutivo do
EURATOM havia ura capítulo (cap. III - arts. 30.° a 39 °) respeitantes
à protecção sanitária da população e dos trabalhadores contra as radia-
ções, o Tratado CEE era totalmente omisso quanto às questões ambien-
tais. Aqui, encontrar um fundamento jurídico que contemplasse estas
matérias tornava-se uma tarefa penosa. Houve quem visse nos arts. 100.°
a 102." - que possibilitavam a adopção de directivas que visassem a
harmonização de disposição legislativas, regulamentares e administra-
tivas dos Estados-membros — esse fundamento. Mas como bem notou

n Como o Tratado para o Mosela (27.Outubro.1956), para o lago Constança


(27.0ulubro.1960), para o lago Leman (l6.Novembro.1962) e para o Beno (29.Abril.1963).
612 Mdrio cie Melo Rocba

CARPENTIER, O art. 100." «não constitui nem em si, nem no seu espírito,
nem na sua letra, um instrumento que possa assegurar a protecção da
saúde do homem e do seu meio ambiente»30. Sustentou-se, por outro
lado, que sempre se poderia invocar o disposto no art. 235.° aí integrando
as questões ambientais, uma vez que o artigo determina que «se se con-
siderar necessária uma acção da Comunidade para realizar, no funcio-
namento do Mercado Comum, um dos objectivos da Comunidade, sem
que o presente Tratado tenha previsto os poderes de acção requeridos
para o efeito, o Conselho decidindo por unanimidade e após consulta
da Assembleia, adoptará as disposições apropriadas». Mas também aqui
surgiriam dificuldades, bastando que um Estado-membro fizesse uma
interpretação restritiva do normativo para que, por si só, se opusesse à
sua aplicação.

3- A formação do Direito Internacional e do Direito Euro-


peu do Ambiente e o estado actual

Na sequência da evolução operada e da importância dos eventos de


1968, a atenção internacional para coro as matérias ambientais é cla-
ramente marcada peia Conferência das Nações Unidas sobre o meio
ambiente, realizada em Estocolmo, em Junho de 1972 (a «Conferência
de Estocolmo»). É a partir dela que é possível apreciar uma estrutura
normativa com fio condutor e composta por normas e princípios.
Primeiramente, uma estrutura composta por três tipos de normas:
as normas obrigatórias, as normas com carácter incentivador e as nor-
mas técnicas de referência ou indicativas. No primeiro grupo, incluir-
-se-ão os actos levados a cabo no seio de Organizações Internacionais,
as Convenções e as Convenções-quadro; no segundo grupo, incluem-se
as recomendações e declarações e, de um modo geral, os actos sem con-
teúdo jurídico formalmente obrigatório; finalmente, no terceiro grupo
cabem todas as normas destinadas ao preenchimento de uma for-
mação científica ou técnica junto das administrações nacionais.

50Cf. M. CARPENTIER — *L'actÍon de la Communautée en matière d'environne-


raent», In «Revue du Maché Comum», 1972 - p. 390-
O Diretto ao Ambiente como Direito eto Homem no Quadro Europeu 613

Em segundo lugar, há a referenciar os príncipios de que o Direito Inter-


nacional se alimenta também, desde a Conferência de Estocolmo: os
princípios directores e os princípios inspiradores. No primeiro grupo
cabem o princípio da avaliação prévia da incidência do acto sobre o
ambiente, o princípio da informação e consulta prévia ao inicio de acti-
vidades susceptíveis de afectarem o ambiente e o princípio do alerta em
caso de acidente e, ainda, o princípio da não discriminação e da igual-
dade de tratamento das vítimas da poluição nacional e transfronteiriça
no que toca às acções indemnizatórias; no segundo grupo, cabem o
princípio do direito soberano de qualquer Estado em explorar os seus
recursos naturais, o princípio da solidariedade e da cooperação, o prin-
cípio da utilização equitativa dos recursos comuns e a salvaguarda do
património comum da humanidade31. Ao lado das normas e princípios,
há ainda os instrumentos da política de ambiente. A própria Declara-
ção de Estocolmo lhes faz referência: a planificação e gestão pelas ins-
tituições nacionais, o recurso à ciência e à tecnologia, a troca de
informações e o ensino e a informação era matéria ambiental".
Por outro lado e como resultado da Conferência de Estocolmo, sur-
giu o «Plano de acção para o Ambiente»35 que reúne 109 resoluções
que podem ser alinhadas em tomo de três preocupações: a avaliação
do ambiente, a gestão do ambiente e as medidas de suporte.
Foi também em 1972 que os chefes de Estado e do Governo dos nove,
reunidos em Paris em Outubro, deram o primeiro passo para a forma-
ção do Direito Europeu do Ambiente ao adoptarem uma declaração que
proclamou a necessidade de melhorar a qualidade e o nível de vida,
dando especial atenção aos «valores e bens não materiais e à protec-
ção do ambiente a fim de colocar o progresso ao serviço do homem»
Assim nasceu o ponto de partida do Primeiro Programa de Acção das
Comunidades em matéria de ambiente (1972/76) 35 que é, bem justa-

31 Para maiores desenvolvimentos, vd. PÍERRE-MARIE DUPUY — «Le Droit Interna-

tional de 1' Environnement et la souveraineté des États» — in «LÍAventr du Droit Inter-


nationa) de 1' Environnement» - Haia, 1985 - Martinns Nijhoff., pp. 29 e ss.
52 Cf. princípios 18 a 20 da Declaração de Estocolmo.

» Cf. Documento A/CONF. 48/14, pp. 10 a 62.


M A . ALEXANDRE Kiss-ob. cit., p. 3 3 1 .
55 Cf. JOCE, n." C 112 de 20.Dezembro.1973
614 Mdrio cie Melo Rocba

mente, considerado como a carta fundadora dos princípios de uma polí-


tica de ambiente na Comunidade Europeia. Trata-se de um programa
assente em onze orientações fundamentais e no qual se refere expres-
samente pela primeira vez que os aspectos importantes da política de
ambiente não devem ser previstos e realizados de maneira isolada por
cada país mas sim coordenados de acordo com políticas comunitárias.
0 segundo Programa de acção (1977/81) 36 traduz a continuidade do
anterior (a sua própria estruturação é idêntica sendo retomados os prin-
cípios na integra) mas surgem algumas orientações novas, «desenvol-
vendo as prioridades que apareciam em estado embrionário no primeiro
e visando proteger certos recursos como o caso das zonas húmidas e dos
seus ecossistemas característicos e a salvaguarda e gestão dos recursos
da água» 57 . Com o terceiro Programa de acção (1982/86) M surgiu um
primeiro balanço do conseguido com os Programas precedentes, tendo
sido constatada a existência de significativos problemas, desde a ausên-
cia de informação científica disponível e de informação sobre os cus-
tos de medidas preconizadas até à ausência de vontade política por parte
dos Estados-membros no exercício de acções coordenadoras. Diagnos-
ticadas as preocupações, o terceiro Programa elenca as prioridades:
«a) integração ambiental nas outras políticas; b) procedimento da ava-
liação das incidências no ambiente; c) redução das poluições, se possí-
vel na fonte, no contexto de uma visão destinada a evitar a transferência
de poluição de um meio para outro» i9 .
Tudo com o objectivo de levar à prática e concretizar a ideia segundo
a qual a política de ambiente é uma política estrutural que deve ser
prosseguida independentemente de dados conjunturais. 0 facto incon-
tornável é, no entanto, o de que este Programa toma consciência que o
agravamento da crise das economias europeias no princípio da década
de 80 impede o desenvolvimento de uma política ambiental no mesmo
ritmo da década precedente.

* Cf. JOCE, n.°C 139 de 13.Junho.1977.


37Cf. JEAN-LOIC NICOUZO e BERNARD KACZMAHEK in «UEurope de L'eau, de Bruxelles
à Paris» - Ed. Continent Europe, Paris 1996 - p. 36.
38 Cf. JOCE, n.° C 46 de 1 Z.Fevereiro. 1983-
39 Cf. JEAN-LOIC NICOUZO e BERNARD KACZMAHEK, o b . c i t . , p . 4 0 .
O Diretto ao Ambiente como Direito eto Homem no Quadro Europeu 615

O Acto Único Europeu (AUE) veio revelar a atenção que se decidiu


atribuir às questões ambientais. Nos seus arts. 100.°A e 130." R, S e T
vem consagrar a espinha dorsal que juridicamente enforma estas ques-
tões. A sua adopção regulamentou a questão da competência comuni-
tária em matéria de protecção do ambiente". A acção comunitária visa
dar corpo a três grandes objectivos (definidos no art. 130." R):

— conservar, proteger e melhorar a qualidade do meio ambiente;


— contribuir para a protecção da saúde das pessoas-,
— garantir uma utilização prudente e racional dos recursos natu-
rais.

Por outro lado o n.° 2 do artigo dispõe que «a acção da Comuni-


dade em matéria de ambiente, fundamentar-se-á nos princípios da acção
preventiva, da reparação dos danos ao ambiente na origem e no prin-
cípio do poluidor-pagador». Desta sorte, a acção preventiva converte-se
no princípio de base e supõe que a conservação dos recursos objecto de
protecção deve ser tida em conta antes do procedimento de concepção
e decisão e o princípio do poluidor-pagador assume toda a sua impor-
tância na sua vertente persuasiva, sendo visto como «pedra angular da
política comunitária do ambiente»
Mais do que tudo, o artigo vem consagrar um salto qualitativo de
grande importância na evolução operada ao dar corpo ao princípio da
integração. Ou seja: «as acções de protecção do ambiente devem ser inte-
gradas noutras políticas da Comunidade, das quais as mais importan-
tes são a agricultura, o desenvolvimento regional e a energia» 43 . Ocorre
registar que o princípio da integração não deve ser visto no mesmo plano
dos restantes princípios a que alude o art. 130.° R (acção preventiva,
reparação dos danos ao ambiente na origem e poluidor-pagador).

40 Foi o PE que tomou a iniciativa de fazer inserir um determinado número de

disposições relativts à protecção do ambiente; veja-se ALEXANDKE KISS, ob. cit., p. 332.
° Cf. MAXIA ALEXANDRA ARAGÍO - in « O princípio do poluidor-pagador» - Studia
Jurídica, n." 23 - Coimbra Edil. 1997.
tí Cf. CYNTHIA WHITEHEAD — in «Legislação Comunitária no domínio do ambiente»
- vol. I - p. XXI
6l6 Mário de Melo Rocba

Pois que, enquanto estes são princípios de acção, o princípio da inte-


gração é um «princípio metodológico» 4J cujo objectivo é permitir a
aplicação daqueles outros princípios que, como se disse, são princípios
de acção da política comunitária de ambiente. Como nota K R A M E R
o princípio da integração é «provavelmente a mais importante de todas
as disposições relativas ao ambiente» 4 \ sendo que vai ser das suces-
sivas conjugações do princípio da integração com os princípios de acção
que resultarão actos definidores da política comunitária em matéria
ambiental 45 .
O quarto Programa de acção ( 1 9 8 7 / 9 2 ) i n i c i a a sua vigência sob
os melhores auspícios uma vez que o AUE veio legitimar, em definitivo,
uma política comunitária de ambiente''7. Precisamente pelo facto de o
AUE ter consagrado o princípio da integração, este quarto Programa veio
atribuir Importância a novM obrigação de integração da dimensão
ambiental noutras políticas comunitárias, visando quatro áreas:

— a implementação da legislação comunitária existente;


— a regulamentação das «fontes» de poluição e das «substâncias»
poluentes;
— o incremento do acesso do público à informação;
— a criação de emprego.

Ainda antes de concluir a sua vigência o quarto Programa de acção


(cujos resultados ficaram aquém das expectativas) via ser assinado o
Tratado de Maastricht48. Com ele um novo salto qualitativo foi dado em
matéria ambiental. Com efeito, o Tratado da UE vem consagrar a noção
de «desenvolvimento sustentável» a partir da tese segundo a qual um

43 Cf. JACQUES GUTOMABD- in «L" intégration de 1'environnement dans les politiques

intra-communautaires» Ed. Apogée, Rennes 1995 — p. 28.


** Cf. Lurnric KRAMER — in «Observations sur le droit communautaire de 1' envi-
ronnemenU - AJDA n.° 9/1994.
45 Vd. infra, p. 16.

« Cf. JOCE n." 289 de 29.Outubro.1987.


47 Aliás, 1987 foi designado «Ano Europeu do Ambiente».

*' Assinado em 7.Fevereiro. 1992 e que entraria era vigor em Í.Novembro. 1993-
O Diretto ao Ambiente como Direito eto Homem no Quadro Europeu 617

desenvolvimento só pode ser considerado real se ele melhorar a quali-


dade de vida49; o «desenvolvimento sustentável» traduz então a ideia
de ser «um desenvolvimento que satisfaz as necessidades do presente
sem comprometer a aptidão das gerações futuras a satisfazer as suas
próprias necessidades» 50, importando preservar o equilíbrio geral
redefenindo os critérios de avaliação de custos e vantagens a curto,
médio e longo prazos.
Esta noção de «desenvolvimento sustentável»S1 vem, pois, receber
acolhimento no tratado de Maastricht que inscreve como objectivo
comunitário «o crescimento sustentável e não Inflacclonista que res-
peita o ambiente ( . . . ) » e «o aumento do nível e da qualidade de vida»
(art. 2.°), ao mesmo tempo que se prevê que, para alcançar os fins enun-
ciados naquele artigo, a acção da Comunidade implica «uma política
no domínio do ambiente» (art. 3-° alínea k)). Neste sentido são desen-
volvidos os arts. 130 ° R, S e T, já existentes desde o AUE.
O acolhimento do conceito de «desenvolvimento sustentável» anda
a par com o reforço do princípio da integração que o AUE consagrou e
que o TUE tornou mais imperativo. Por um lado, o princípio, conti-
nuando a figurar no art. 130.° R, recebe agora um novo impulso pelo
facto da protecção ambiental ter sido elevada a objectivo comunitário,
conformemente ao art. 2.°, citado. Daqui decorrem importantes conse-
quências dado que o TJCE utiliza frequentemente o método da inter-
pretação teleológica pela qual, em caso de conflito entre objectivos
diversos, predominarão os objectivos gerais do Tratado (precisamente
mencionado nos arís. 2.° e 3.°)- Por outro lado, a formulação do prin-
cípio conheceu precisões; a nova redacção do n.° 2 do art. 130.° R acen-
tua o alcance do princípio ao dizer que «as exigências em matéria de

45 Tese inscrita no relativo de 1987 da Comissão mundial sobre o ambiente e o

desenvolvimento (dito «relatório Brundtland» dado ter sido a senhora Brundtland a


relatora do grupo).
50 Cf. JEAM-LOIC Nicouzo e BERNAÍD KACZMAREJC — ob. cit., p. 4 7 .

51 Noção que viria a ser retomada, ao nível mundial, pela conferência das

Nações Unidas sobre o ambiente e o desenvolvimento, em Junho de 1992 no Rio de


Janeiro («Conferência do Rio»), sob a forma operacional de «Agenda 21».
618 Mdrio cie Melo Rocba

protecção do ambiente devem ser integradas na definição e aplicação


das demais políticas comunitárias» ao mesmo tempo que vem falar de
«um nível de protecção elevado». De notar, na nova redacção, o carác-
ter imperativo do princípio ( « d e v e m ser integradas») e a ideia de que
a preocupação ambiental será incluída logo na concepção de uma dado
projecto, podendo até dar-lhe outro rumo («na definição e aplicação
das demais políticas»); de notar, ainda, que será o conjunto das outras
políticas que deve assegurar um grau de protecção elevado do ambiente.
Finalmente, na evolução de que se tem vindo a dar conta, há a
registar o quinto Programa de acção (1993/98), aprovado em Fevereiro
de 1993 por uma resolução do Conselho e que é consequência directa
da adopção peio Tratado da UE do conceito de «desenvolvimento sus-
tentável». As prioridades inscritas neste quinto Programa são:

- a gestão duradoura dos recursos naturais (solos, águas, zonas


naturais e costeiras);
- lula integrada contra a poluição e acção preventiva relativamente
aos resíduos;
- redução do consumo de energia;
- melhoria da qualidade de vida do meio urbano;
- melhoria da saúde e da segurança.

4. Perspectivas futuras

A evolução operada desde 1972 até hoje, nos planos internacional


e europeu, tem apontado para uma preocupação crescente num sen-
tido uniformemente acelerado em torno das questões ambientais.
No que ao processo normativo concerne (que continua e, tudo o
indica, continuará a ser centrado na base convencional) nota-se uma
tendência para o crescimento quantitativo e para uma progressiva
globalização com algumas alterações qualitativas (como na UE onde
se passou a legislar mais por regulamento em matéria ambiental).
Notam-se afloramentos de novos princípios como o da «avaliação
do impacto ambiental» que «deixou de ser uma mera técnica de direito
interno para configurar um princípio inspirador da acção protectora
O Diretto ao Ambiente como Direito eto Homem no Quadro Europeu 619

internacional» " e de que a Directiva n,° 85/337/CEE do Conselho de


27.Junho. 1985 é exemplo, tornando-se, aliás, mais do que consequên-
cia, um autêntico corolário do princípio da integração.
Por outro lado, como consequência do princípio da acção preven-
tiva, afirmaram-se outros critérios preventivos como o BAT («best availa-
ble technology»), o BEP («best environmental practice») e o desenvol-
vimento da «clean production» (métodos de produção limpa).
E se é certo que em matéria de responsabilidade internacional a
evolução operada não tem tido correspondência na prática — uma vez
que os Estados se mostram renitentes a grandes alterações - o facto é
que há quem defenda a criação de um Tribunal Internacional do Meio
Ambiente55 e quem pense dever estender para as questões ambientais o
direito de ingerência na fórmula de um direito de ingerência ecológica.
O futuro dirá se estas tendências se concretizarão.

III) O D I R E I T O AO A M B I E N T E C O M O D I R E I T O D O H O M E M

A. Melo Ambiente e Desenvolvimento Sustentável

«O vínculo entre meio ambiente e direitos humanos está claramente


demonstrado pelo facto da degradação ambiental poder agravar as vio-
lações de direitos do homem e, por sua vez, as violações de direitos do
homem poderem igualmente levar à degradação ambiental ou tornar
mais difícil a protecção do meio ambiente»". O facto é que, se esta rela-
ção não sofre contestação, importa atentar e precisar outros aspectos
com ela relacionados.

" Cf. J O S É JUSTE RUIZ - «La evolución dei derecho internacional de! médio
ambiente» — 1993, Madrid — in «Hacia un nuevo orden internacional y europeo» -
pp. 407 e 408.
" Cf. A. POSTGIJONE — «Per un tribunale íntemazionale deH'ambiente» — in «Atti
dei Convegno Roma; 21-24 Aprile 1989 - Giuffré, Milano, 1990.
H Cf. conclusões do Seminário Interamericano sobre Direitos Humanos e Melo

Ambiente — (Brasília, 1992) — in «Derechos Humanos, Desarrolto sustentable y Medlo


Ambiente» - San José de Costa Rica, 1995 - p. 291.
620 Mário de Meto Rocha

O primeiro é a internacionalização e a globalização da protecção


dos direitos e do meio ambiente. Desde a DUDH de 1948 e. sobretudo,
desde a CEDH de 1950 o Tratamento pelo Estado dos seus nacionais pas-
sou a ser uma questão internacional; do mesmo modo, desde a Decla-
ração de Estocolmo de 1972 a protecção do meio ambiente conhece essa
dimensão internacional. Mas mais do que isto: a proclamação, pela
Conferência de Teerão de 1968, da indivisibilidade dos direitos do
homem e a resolução 32/130 adoptada pela AG da ONU em 1977 con-
duziram à globalização das questões em torno dos direitos do homem;
da mesma maneira, a existência de questões e regras que atravessam
os vários sectores da protecção ambiental conduziram também à glo-
balização nos assuntos do meio ambiente,
O segundo aspecto prende-se com a necessidade de «protecção de
grupoi vulneráveis na confluência do direito internacional dos direitos
humanos e do direito ambiental internacional»
Em vários instrumentos normativos há referências expressas a estes
grupos compostos por crianças, pessoas deficientes, minorias étnicas,
religiosas ou linguísticas, populações indígenas. A título de exemplo,
citem-se o «Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos
Humanos em Matéria de Direitos Económicos, Sociais e Culturais de
1988» 56 , a «Carta Social Europeia» de 1 9 6 1 a «Convenção das Nações
Unidas sobre os Direitos da Criança» de 1989 S8 , a «Convenção da OIT
relativa aos Povos Indigenas e Tribais em Países Independentes» de 19895®
Mais recentemente, na sequência da Conferência do Rio, a Agenda 21
adoptada pela Conferência, «refere-se expressamente aos grupos vulne-
ráveis, exemplificando cora os pobres urbanos e rurais, as populações
indígenas, as crianças, as mulheres, os idosos, os desabrigados, os do-
entes terminais e os incapacitados» 60 .

55 Cf. CANÇADO TRINDADE, in «Direitos Humanos e Meio — Ambiente» — Porto Ale-

gre, 1993 - p. 89.


" Cf. aro. l6.°, 17.° e 18.°.
" Cf. arte. 7.', 8. a , 15.*, 17." e 19*.
H Cf. Preambulo e am. 19.*, 27.', e 28.'.
» Cf. art. 7.®.
60
Cf. CANÇADO TRINDADE, ob. cit„ p. 95.
O Diretto ao Ambiente como Direito eto Homem no Quadro Europeu 621

O terceiro aspecto diz respeito à questão da protecção «erga omnes»


da pessoa humana e do meio ambiente. Como nota C A N Ç A D O T R I N D A D E
os distintos instrumentos de protecção internacional dos direitos huma-
nos e do meio ambiente incorporam obrigações de conteúdo e alcance
variáveis: algumas normas são susceptíveis de aplicabilidade directa,
outras afiguram-se antes como programáticas. Há, pois, que prestar
atenção à natureza jurídica das obrigações. A esse respeito surge pre-
cisamente a questão da protecção «erga omnes» de determinados
direitos garantidos, que levanta o ponto da aplicabilidade a terceiros
- simples particulares ou grupo de particulares — de disposições con-
vencionais» No fundo, o problema é próximos da questão da aplica-
bilidade directa das normas de Direito Internacional Convencional.
O facto do Direito internacional ser muitas vezes silencioso sobre o
carácter «self-executing» das suas normas dificulta, na prática, aquela
aplicabilidade directa de normas que atinjam o sujeito de direito na sua
esfera jurídica, que confiram direitos ou imponham obrigações e que
possam ser aplicadas pelo tribunal nacional quando invocadas pelas
partes com legitimidade para tanto. Cabe, caso a caso, uma tarefa inter-
pretativa para se analisar a questão da aplicabilidade directa. Aqui a
questão ê a da protecção de direitos «também nas relações entre
indivíduos ( . . . ) . Certos direitos humanos têm validade «erga omnes»,
no sentido de que são reconhecidos em relação ao Estado, mas tam-
bém e necessariamente em relação a outras pessoas, grupos ou insti-
tuições que poderiam impedir o seu exercício» ta. Ilido, num âmbito em
que «a protecção <io meio ambiente tornou-se uma tarefa inevitável do
Estado moderno (BRBUER) ( . . . ) » sendo que «o tratamento jurídico do
ambiente, contudo, não se reduz à dimensão de tarefa estadual, uma
vez que o surgimento de uma consciência ecológica dos cidadãos levou
a que se transitasse da mera relevância objectiva das tarefas estaduais
para a esfera dos direitos individuais ( . . .)» É 3 .

61 Ob. cit., p. 145


" Cf. CANÇADO TRÍNDADE, o b . c i t . , p . 1 4 9 .
43 Cf. VASCO P E R E Í A DA SILVA — in «Da prelecção jurídica ambiental» — AAFDL -
Lisboa, 1997.
622 Mdrio cie Melo Rocba

Mas a questão central que, por ora, nos ocupa diz respeito à rela-
ção que deve ser estabelecida entre o direito a um meio ambiente são e
o direito ao desenvolvimento como direito do homem. Ora, o conceito
de «desenvolvimento sustentável» pode ser a chave que relacione o
ambiente com o direito ao desenvolvimento na medida em que coloca
a tónica na necessidade de ver conjuntamente o meio-ambiente e o
desenvolvimento, não apenas no presente mas sobretudo tendo em conta
o futuro. São vários os textos que o referem: a título de exemplo e para
além do Tratado de Maastricht que incorporou o conceito de desenvol-
vimento sustentável, citem-se a «Declaração Ministerial sobre Desen-
volvimento Sustentável e Ambientalmente Sadio» adoptado pela reunião
de Bangkok de Outubro de 1990, a «Declaração de Brasília sobre o Melo-
-Ambiente» de 1989, o Relatório «Nossa Própria Agenda» de 1990 da
Comissão Latino-Americana sobre Desenvolvimento e Meio Ambiente,
enfim o «Relatório sobre o Desenvolvimento Humano de 1991» do PNUD
- que advertiu para a estreita relação entre a probreza e a degradação
ambiental —, textos que elevaram o «desenvolvimento sustentável» à
categoria de princípio de direito internacional contemporâneo.
A Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento da ONU de 1986 64
afirma que «a pessoa humana é o sujeito central do desenvolvimento
e deveria ser participante activo e beneficiário do direito ao desenvolvi-
mento». Importa, por isso, precisar que uma coisa é o «direito inter-
nacional do desenvolvimento» - que é um sistema normativo que regula
as relações entre Estados «juridicamente iguais mas economicamente
desiguais» Ss — e outra o «direito ao desenvolvimento» — como direito
do homem e como tal proclamado pela Declaração de 1986.
Resta referir as dificuldades no que concerne à efectivação do direito
ao desenvolvimento e no seu controlo, sobretudo à escala global e de
possíveis mecanismos («v.g., rapporteur» especial no seio da ONU),
numa época em que há quem sustente que o quotidiano desconstrói o
direito e em que se tenderá a atribuir ao registo consuetudinário um
papel mais incisivo, paralelamente a uma drástica deslegiferação ou

Adoptada peia resolução 41/128 da AG, 4.Dezembro. 1986.


45 C f . CANÇABO TRINDADE, o b . c i t . , p . 176.
O Diretto ao Ambiente como Direito eto Homem no Quadro Europeu 62)

«emagrecimento normativo» 0 que não deixaria de traduzir um novo


modelo jurídico.

B. O Direito do Homem a o Ambiente, direito fundamental


ao nível europeu, no quadro da CEDH

A Conferência das Nações Unidas sobre o ambiente adoptou, era


1972, a Declaração de Estocolmo que proclama no seu primeiro Prin-
cípio: « 0 homem tem um direito fundamental à liberdade, à igualdade
e a condições de rida satisfatórias, num ambiente cuja qualidade lhe
permita viver com dignidade e bem-estar. Tem o dever solene de prote-
ger e melhorar o ambiente para as gerações presentes e futuras».
Curiosamente, os instrumentos internacionais relativos aos direi-
tos do homem raramente contêm disposições específicas que directa-
mente digam respeito ao ambiente. Assim é que a DUDH, adoptada em
1948 pela AG da ONU não se refere expressa e directamente ao ambiente,
limitando-se à esperança genérica de que reine uma ordem em que os
direitos e as liberdades enunciadas na Declaração possam ser efectiva-
das. Identicamente se passara as coisas com os Pactos concluídos em
1966, sob a égide das Nações Unidas, relativos aos direitos civis e polí-
ticos e aos direitos económicos, sociais e culturais. Já a Carta africana
dos direitos do homem e dos povos, adoptada em Nairobi em 1981, faz
referência no Preâmbulo aos valores da civilização africana e proclama
que «todos os povos tem direito a um ambiente satisfatório e global,
propício ao seu desenvolvimento».
No que respeita aos instrumentos normativos europeus relativos aos
direitos do homem, nem a CEDH (assinada em Roma em 4.Novem-
bro.1950 e que enlrou em vigor em 3-Setembro.l953) nem os seus Pro-
tocolos adicionais fazem uma referência directa ao «direito do homem
ao ambiente» enquanto tal. De modo que a pergunta é inevitável e

64 Vd. PEDOA-SHIOPPA— « 0 direito comuna na Europa: reflexão sobre o declínio e

renascimento de um modelo» — in «I Giuristi e L'Europa» — Vários — Roma - Bari,


Laterza, 1997.
624 Mdrio cie Melo Rocba

incontornável: «a noção de direito do homem ao ambiente pode ser


evocada em ligação com a Convenção ?» 67. À semelhança do que ocor-
reu com outras questões noutro tipo de organizações (as de integração)
em que foi fundamentalmente o trabalho jurisprudencial que as
desbloqueou, aqui também a resposta afirmativa se deve à jurisprudên-
cia dos órgãos da Convenção, a Comissão e o Tribunal Europeu. Na ver-
dade, na ausência de referência expressa ao «direito do homem ao
ambiente», este é invocado através de certos direitos garantidos na Con-
venção e seus Protocolos, de uma maneira mediata ou «por ricochete
( . . . ) e manifesta-se no que toca a certos direitos substantivos e pro-
cessuais»
É o que se passa — quanto aos direitos substantivos — com o «direito
à vida» (art. 2.7CEDH), o «direito à integridade física» (art. 3.7CEDH),
o «direito à Uberdade • i seguranfifl» (art. 5.7CEDH), o «direito ao res-
peito da vida privada e do domicílio» (art. 8.7CEDH) e o «direito ao
respeito dos bens e da propriedade» (art. 1.7Protocolo n.° 1).
E é o que acontece também — quanto aos direitos ditos processuais
ou procedimentais — com o art. 6.7CEDH relativo ao direito a um pro-
cesso equitativo, com o art. 10.7CEDH relativo ao direito à informação
e ao art. 13.7CEDH relativo ao direito a um recurso efectivo para pro-
tecção dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção.
É, pois, através destas disposições e a propósito da sua invocação
que a jurisprudência dos órgãos da Convenção e seus Protocolos tem
vindo a tratar do «direito do homem ao ambiente».
A sua natureza fundamental, no quadro europeu e aos olhos da
jurisprudência dos ógãos da CEDH e Protocolos, decorre de um facto
que, também jurisprudencialmente, foi expresso: « 0 direito a um
ambiente equilibrado e são releva em bloco de uma categoria diferente
de direitos - em relação aos direitos civis e políticos — pois diz respeito
a nada menos que a autopreservação e a autoperpetuação, noções que

" Cf. MAGUELONNE DÉJBANT-PONS — In «Le droit de 1'homme à 1'environnement et


la Convention Europèenne de Sauvegarde des Droits de 1'Homme et des Libertés
Fondamentales» — «Liber Amicorum Marc-André Eissen» — Bruylant - Bruxelles, 1995
- p . 82.
M C f . MAGUELONNE DÉJIANT-PONS — o b . c i t , p . 8 3 .
O Diretto ao Ambiente como Direito eto Homem no Quadro Europeu 625

se pode dizer que precedera todos os governos e todas as constituições»65.


Foi, pois, sob a pressão da realidade que a jurisprudência interna-
cional iniciou e tem vindo a desenvolver a sua própria evolução neste
domínio.
Por outro lado, não deixa de ser curioso que seja através da invo-
cação de alegadas violações de direitos económicos e sociais (que mais
constrangidos são pelo direito ao ambiente) que este aparece invocado
no âmbito dos órgãos da Convenção e Protocolos. A ausência de refe-
rência expressa ao «direito do homem ao ambiente» conduziu, assim,
ao efeito perverso de ser através da invocação, v.g., do direito de pro-
priedade — multas vezes em conflito com o direito ao ambiente - que
o direito ao ambiente é Invocado perante a Comissão ou o Tribunal. Será
sempre o que acontece nos casos em que um atentado ao ambiente
atenta também um direito garantido na CEDH ou Protocolos.
É ainda de notar que no quadro do Conselho da Europa, depois da
Carta da Água (1968), da Declaração de Princípios sobre a luta contra
a poluição do ar (1968) e da Carta dos solos (1972), se têm vindo a
fazer esforços no sentido de favorecer formas de cooperação não-esta-
dual num domínio — o da protecção ambiental — priveligiado para essas
acções.

C. A invocação do Direito do homem a o Ambiente por via


da invocação da violação dos arts. 8.VCEDH e 1."/Proto-
colo n.° 1

Como se deixou dito70, na ausência de referência expressa ao direito


ao ambiente na Convenção e nos seus Protocolos, tem vindo a ser «por
ricochete», através da invocação de outros direitos substantivos e pro-
cessuais, que as preocupações em torno do direito ao ambiente, enquanto
direito do homem, são analisadas pelos órgãos previstos na CEDH.

69 Cf. Acórdão io Supremo Tribunal das Filipinas, cit. por MAGUELONNE DÊJEANT-

PONS - ob, cit, p. 7 9 .


70 Vd. supra, p. 21.
6l6 Mário de Melo Rocba

A jurisprudência mais abundante tem surgido a propósito da invo-


cação do direito ao respeito da vida privada e familiar (art. 8.7CEDH)
e da invocação do direito ao respeito dos bens e da propriedade
(art. 1."/Protocolo n.° 1).
É, pois, ela que analisaremos detalhadamente.
Dispõe o art. 8,° da CEDH: «1, Qualquer pessoas tem direito ao res-
peito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua corres-
pondência.
2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício
deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e cons-
tituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja neces-
sária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o
bem-estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das
infraaçõei penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção
dos direitos e das liberdades de terceiros».
O direito ao ambiente foi já invocado, por diversas vezes, através
da invocação do disposto no art. 8." da Convenção, ou seja do respeito
pela vida privada e familiar. Ora, quando o requerente invoca o art. 8.°,
os órgãos da CEDH analisam se o lugar em causa pode ser considerado
domicílio para efeitos da Convenção, se houve ingerência de uma auto-
ridade pública no exercício do direito do queixoso, se a ingerência se
pode justificar de acordo com o disposto no artigo.
O caso «Arrondelle Vs. Reino Unido»71 tornou-se emblemático,
sendo um dos «leading cases» neste âmbito. A requerente, proprietária
de uma casa situada ao lado da pista principal do aeoroporto de Gatwick
e entre esta e uma auto-estrada, queixou-se de condições de vida parti-
cularmente difíceis em virtude do permanente ruído que lhe afectava a
saúde; sustentava, de resto, que várias tentativas de venda da proprie-
dade, ao valor do mercado, haviam fracassado. A Comissão, ao anali-
sar a admissibilidade da queixa, considerou que o facto do Governo
inglês não estar na origem da produção do ruído não o desonerava da
responsabilidade, desde logo porque quer o aeoroporto quer a auto-
-estrada haviam sido construídos e são geridos pelas autoridades públi-
cas. A Comissão veio mesmo acentuar que a requerente estava subme-

71 Cf. supra, p. s - nota (19); queixa n.° 7889/77.


O Diretto ao Ambiente como Direito eto Homem no Quadro Europeu 627

tida a ura «stress» intolerável. 0 caso terminou com um acordo entre


as partes, através de um montante indemnizatório que o Governo pagou
à requerente.
No caso «G. e E. Vs. Noruega»72, um grupo minoritário - no caso,
lapões — veio protestar contra a construção de uma central hidroeléctrica
que teria como consequência a imersão de uma parte do vale de Alta
(concretamente, 2.8Kms), vale onde os requerentes nasceram e onde
tinham intenção de trabalhar — um como caçador e outro como pes-
cador. Ora, ao abrigo do art. 8 " , os requerentes vinham reivindicar o
direito ao respeito do seu modo de vida próprio. Mas a Comissão enten-
deu que os requerentes n ã o se poderiam prevelecer, sobre a zona e m
causa, de um «direito de propriedade» (no sentido tradicional do
termo). Todavia, admitiu que a construção da central constituía uma
ingerência na sua vida privada, para logo considerar que esta ingerên-
cia podia ser considerada razoavelmente como justificada (à luz do
n.° 2 do art. 8."), como prevista na lei e necessária numa sociedade
democrática para o bem-estar económico do país. A queixa foi, assim,
declarada mal fundada, no sentido do n.° 2 do art. 27.7CEDH.
No caso «Baggs Vs. Reino Unidq»73, o requerente, proprietário de
um terreno onde havia instalado a sua residência e onde exercia acti-
vidades ligadas à horticultura, queixava-se do ruído (níveis de varia-
ção: de 83 a 127 décibeis) que os aviões que descolavam e aterravam
no aeoroporto de Heathrow provocavam e da respectiva poluição.
Acresce que o facto da família Baggs trabalhar muitas horas por
dia no exterior da casa agravava ainda mais a situação. 0 requerente
queixava-se então de ser vítima de uma violação do art. 8.° (violação
do respeito da sua vida familiar e do domicílio) e, ainda, do art. 1.° do
Protocolo n.° 1 (direito de propriedade). Na sua decisão sobre a admis-
sibilidade da queixa, a Comissão constatou que o ruído era de tal
maneira «terrível» e «intolerável» — ainda pior do que no caso «Arron-
delle» — que se impunha um exame da questão quanto ao fundo —
o que, afinal, não viria a ser feito pelo facto da queixa ter terminado

* Cf. queixas n." 9278/81 e 9415/81.


7i Cf. queixa n.6 9310/81-
628 Mdrio cie Melo Rocba

com um acordo mediante o pagamento pelo Governo inglês de um


montante indemnizatório ao requerente.
No caso «Vearncombe, Herbst, Lothar Clemens e Eilen Spielhagen
Vs. Reino Unido e República Federal da Alemanha»74, os requerentes
queixavam-se dos inconvenientes sonoros provocados por tiros dispa-
rados num campo de tiro próximo das suas casas. Os requerentes invo-
caram a jurisprudência anterior da Comissão (precisamente os casos
«Arrondelle» e «Baggs») e vieram sustentar serem vítimas da violação
do respeito da vida privada e do domicílio, para efeitos do art. 8.° da
Convenção. Na sua decisão sobre a admissibilidade da queixa, a Comis-
são estimou não haver qualquer possibilidade de equiparação entre o
ruído contínuo e elevado (frequência e nível) provocado por aeropor-
tos e o provocado por um campo de tiro — ainda por cima, como no
caso vertente, com horários de funcionamento que impediam a sua uti-
lização de noite, aos fins de semana e em dias feriados, considerando
a queixa mal fundada, para efeitos do n.° 2 do art. 27.7CEDH.
O caso «Powell e Rayner Vs. Reino Unido»75 é outro «leading case».
Na verdade, o interesse do caso decorre não tanto do conteúdo da queixa
que não é inovador (barulho excessivo provocado pelo tráfego aéreo de
Heathrow) mas do facto de, pela primeira vez, o Tribunal Europeu ter sido
chamado a pronunciar-se, dado que não houve acordo entre as partes.
Constatando que o ruído provocado pelos aviões diminuiu a qua-
lidade de vida privada dos requerentes, o Tribunal considerou que havia
que olhar o caso ã luz do art. 8.° da Convenção; mas também conside-
rou que não havia razões para pensar que as medidas tomadas pelas
autoridades britânicas (que os requerentes alegaram ser ineficazes) não
fossem adequadas, pois que os Estados dispõem de uma margem de apre-
ciação em termos da escolha dos meios mais adequados ao respeito pelas
disposições da Convenção. Por outro lado, no preenchimento do justo
equilíbrio entre os direitos individuais e o bem-estar económico do país,
o Tribunal foi sensível à posição-chave que o Aeroporto de Heathrow
ocupa no que concerne ao comércio e às comunicações internacionais
e o que daí decorre para a economia do Reino Unido e que, no caso

14 Cf. queixa n." 12816/87.


75 Cf. Acordão de 21de Fevereiro. 1990 - Publ. TEDH, série A n.° 172.
O Diretto ao Ambiente como Direito eto Homem no Quadro Europeu 629

era apreço, não se poderiam eliminar inteiramente as repercurssões


negativas sobre o ambiente. Quanto ao demais, o Tribunal considerou
que não lhe caberia « substituir-se às autoridades nacionais na apre-
ciação do que pode consistir a política óptima neste domínio social e
técnico difícil» e entendeu que na matéria «se deve reconhecer aos Esta-
dos contratantes uma importante latitude», declarando-se incompetente
para conhecer a queixa dos requerentes, ao abrigo do art. 8 " da Con-
venção.
O caso *S. Vs. França» 74 é igualmente interessante a vários títu-
los. A requerente, proprietária de uma casa situada numa zona rural,
na margem do Loire, deparou com a construção a cerca de 300 metros
e separando-a apenas o rio, de uma central nuclear construída e gerida
pela empresa «Electricidade de França». A requerente veio queixar-se,
ao abrigo do art. 8.° da Convenção (e do art.° 1 do Protocolo n.° l ) ,
dos prejuízos decorrentes de ruídos permanentes, de luz industrial per-
manentemente acesa e de modificação do micro-clima, para além da
transformação da paisagem campestre em quadro industrial. O que é
interessante no caso (cuja queixa foi considerada mal fundada para efei-
tos do n.° 2 do art. 27-° da Convenção pelo facto de a Comissão ter con-
siderado que a indemnização que lhe havia sido paga anteriormente
era justa) é o facto da Comissão, baseando-se no caso «Powell e Rayner
Vs. Reino Unido», ter considerado que o art. 8.°/l não podia ser inter-
pretado como aplicando-se exclusivamente às medidas directamente
tomadas pelas autoridades públicas e que violassem a vida privada
e/ou o domicílio do indivíduo e que, pelo contrário, podia igualmente
cobrir as medidas indirectas que traduzissem uma intromissão e uma
violação da vida privada e/ou do domicílio.
Finalmente, o caso «Gregori a Lopez Ostra Vs. Espanha» 77 . A reque-
rente entende que a instalação e o funcionamento ilegais de uma esta-
ção de tratamento situada a 12 metros da sua habitação com os
consequentes cheiros pestilentos, sobre violar o art. 3." da Convenção,
constituía ainda flagrante violação do respeito à vida privada previsto

74 Cf. queixa n.' 13728/88.


77 Cf. queixa Q.° 16798/90.
6l6 Mário de Melo Rocba

no art. 8.°, A Comissão lembrou que nos termos desta disposição da Con-
venção, um Estado não deve apenas respeitar mas proteger efectivamente
os direitos garantidos por ela e que ela não deve ser interpretado como
aplicando-se exclusivamente às medidas directas tomadas pelas auto-
ridades. Referindo-se à decisão do caso «Powell e Rayner Vs. Reino
Unido», a Comissão considerou que a questão de saber se as autorida-
des espanholas tinham assegurado o respeito suficiente dos direitos de
que a requerente é titular, ao abrigo do art. 8.°, exigia um exame de
fundo. Todavia, haveria de ocorrer um acordo.
São várias as conclusões a retirar da evolução jurisprudencial
demonstrada por estes sete casos.
A 1.* conclusão é a de que em seis dos sete casos apreciados, houve
reconhecimento por parte dos órgãos da Convenção de ingerência
na vida privada e no domicílio (caaoi «Arrondelle», «G. e E.», «Baggs»,
«Powell e Rayner», «S.» e «Lopez Ostra»);
A 2.* conclusão é a de que esta quase unanimidade já não existiu
quanto à justificação da ingerência. Assim, enquanto em três deles a
Comissão estimou que as ingerências não eram justificáveis («Arrondelle»,
«Baggs» e «Lopez Ostra»), para os outros três, a Comissão e o Tribu-
nal consideraram que as ingerências se justificavam («G. e E.»; «Powell
e Rayner»; «S»);
A 3-* conclusão é a de que no único caso apreciado pelo Tribunal
(caso «Powell e Rayner Vs. Reino Unido»), apesar de considerar que
as ingerências se justificavam, o Tribunal preferiu declarar-se incom-
petente, escudando-se no «princípio da subsidariedade» e considerando
que os Estados dispõem de uma grande «margem de apreciação»;
Por fim, a 4. 1 conclusão: os órgãos da Convenção operam uma
gradação nos prejuízos ambientais (sonoros, olfactivos, visuais, etc.),
considerando que os menos justificáveis e os mais justiciáveis são os
que atentam imediatamente contra a saúde física do homem.
Diz o art. L* do Protocolo n.° 1: «Qualquer pessoa singular ou colec-
tiva tem direito ao respeito dos seus bens. Ninguém pode ser privado
do que é sua propriedade a não ser por utilidade pública e nas condi-
ções previstas na lei e pelos princípios gerais do direito internacional.
As condições precedentes entendem-se sem prejuízo do direito que os
Estados possuem de pôr em vigor as leis que julguem necessárias para
a regulamentação do uso dos bens, de acordo com o interesse geral, ou
O Diretto ao Ambiente como Direito eto Homem no Quadro Europeu 631

para assegurar o pagamento de impostos e outras contribuições ou de


multas» 7 8 .
São já muito numerosas as queixas nas quais a invocação do direito
ao ambiente está subjacente à invocação do direito ao respeito dos bens
e da propriedade. Normalmente, os requerentes invocam conjuntamente
a violação do disposto no art. 8." e no art. 1.° do Protocolo n." 1.
Assim é que no caso «G. e E. Vs. Noruega» 7 ', os requerentes invo-
cam também o art. 1."/Protocolo n.° 1, sustentando que haviam sido
desapossados das suas terras o que afectou o seu próprio modo de vida.
Mas a Comisssão veio lembrar que os requerentes não haviam feito qual-
quer prova de deterem um direito de propriedade sobre as ditas terras e
julgou a queixa, no que concerne à invocação do art. 1."/Protocolo
n.° 1, mal fundada para efeitos do n.° 2 do art. 27.7CEDH.
No caso «Baggs Vs. Reino Unido» 8S , o requerente invocou também
o art. 1.7Protocclo n.° 1 e a Comissão entendeu que, no caso, as con-
dições de vida que haviam sido impostas ao requerente durante anos
justificavam o exame do fundo - o que não for feito por se ter chegado
a acordo.
No caso «Vearncombe e outros Vs. Reino Unido e República Fede-
ral da Alemanha» 81 foi também invocado o art. 1. "/Protocolo n.° l, mas
a Comissão concluiu que não se poderia considerar que os requerentes
estivessem expostos a prejuízos intoleráveis e excepcionais que pudes-
sem considerar-se atentatórios do seu direito de propriedade — a queixa
foi declarada mal fundada para efeitos do art. 27-°/2 da Convenção.
No caso «S. Vs. França» B\ tendo a requerente invocado também a
violação do direito de propriedade, obteve como resposta da Comissão
que o art. 1."/Protocolo n." 1 «não garante, em princípio, o direito à
manutenção dos bens num ambiente agradável» mas a Comissão reco-
nheceu que os prejuízos sonoros, do ponto de vista de nível e de fre-
quência, afectavam com gravidade o valor de mercado da propriedade.

79 Tradução portuguesa que acompanhou a lei n.° 65/78 de 13.Outubro.


" Cf. supra, p. 24.
M Cf. supra, p. 25.
81 Cf. supra, p. 25.
82 Cf. supra, p. 26.
6l6 Mário de Melo Rocba

Há dois interessantes casos, nos quais os requerentes invocam ape-


nas a alegada violação do art. l.°/Protocolo n.° 1. 0 primeiro é o caso
«M. Vs. Áustria»83 no qual o requerente entendia que diversas medidas
decididas pelo município - v.g. autorizações de perfurações para uma
central eléctrica, trabalhos de construção, instalação de uma zona indus-
trial — constituiriam ingerências injustificadas no exercício dos seus
direitos garantidos pelo art. 1."/Protocolo n.° 1, uma vez que afectavam
florestas de uma comunidade de 680 pessoas (de que o requerente fazia
parte) e que só eles podiam usar. A Comissão notou que a propriedade
formal das terras pertencia ao município e que o direito de uso dos bens
não é um direito individual distinto e independente dos direitos pró-
prios da comunidade e não pode ser considerado como um direito de
propriedade no sentido e para os efeitos do art. 1."/Protocolo n.° 1.
O segundo caso é o d e «Claus Braunerhielm Vs. Suécia» levanta
questões que (ao menos indirectamente) tocam a preservação do ambiente.
O requerente, proprietário de um domínio de cerca de 5 hectares
de espaços marinhos, queixava-se que, em virtude de nova legislação
nacional que permitia ao público obter uma licença de pesca indivi-
duai, passou a ver a sua propriedade cheia de pescadores, sem que qual-
quer indemnização lhe tivesse sido atribuída. O que antes era o direito
exclusivo de utilizar as suas águas para pescar, não tinha mais sentido.
A Comissão reconheceu que a nova legislação e os efeitos por ela
produzidos atentavam contra o direito de propriedade garantido pelo
art. 1."/Protocolo n.° 1. A Comissão tratou, então, de saber se esta inge-
rência se podia justificar e ao fazê-lo considerou que o requerente não
tinha ficado formalmente privado do seu direito de propriedade (nem
do seu direito de pescar) mas somente do direito de excluir os pescado-
res, praticando pesca individual. Tendo em conta que a nova legisla-
ção se destinava a permitir a pesca individual naquela zona da Suécia,
a Comissão considerou que a queixa, vista à luz do segundo parágrafo
do art. l.° («interesse geral»), era mal fundada (n.° 2 do art. 27-7Con-
venção). A «margem de apreciação» do Estado não podia ser conside-

w Cf. queixa n." 9465/81.


" Cf. queixa n." 11764/85.
O Diretto ao Ambiente como Direito eto Homem no Quadro Europeu 633

rada desproporcionada. Esta decisão vem, de resto, na esteira de juris-


prudência constante, porventura aberta por uma decisão do Tribunal
Constitucional austríaco que referiu que «o artigo 1.°, parágrafo 1.°, do
Protocolo n.° 1 nio se aplica, como resulta claramente do seu texto, às
simples limitações ao direito de propriedade, mas apenas à privação da
propriedade»85.
São três as conclusões a retirar decorrentemente dos casos expostos.
A l . * conclusão é a de que não é possível a um requerente invocar
uma violação dc seu direito de propriedade face a um bem que foi
objecto de uma medida atentatória se ele não for proprietário desse bem.
Esta conclusão, que parece óbvia, mostra que um requerente (v.g. casos
*G. e E Vs. Noruega» e «M. Vs. Áustria) não pode prevalecer-se do
art. 1."/Protocolo n.° 1 para preservar o ambiente em geral ou o seu se
não detiver um título de propriedade «stricto sensu»; a 2.* conclusão
mostra que as medidas atentatórias da propriedade podem ser directas
(expropriação, transferência de bens, regulamentação do seu uso) e indi-
rectas (actividades causadoras de distúrbios de toda a ordem) - o que
coloca a questão da proporcionalidade entre as exigências do interesse
da comunidade ao desenvolvimento e o do indivíduo à protecção do seu
ambiente; por fim, a 3-' conclusão: a prática da Comissão tem ido mais
no sentido de fazer prevalecer o interesse da comunidade ao desenvol-
vimento em detrimento do interesse do indivíduo ao ambiente.
Ora, justamente desta terceira condução, decorre a inevitável per-
gunta que tem sido feita e que deve ser vista como pergunta crítica à
orientação da Comissão: pôr a tónica na atribuição de indemnizações,
como meio de reparação de ingerências consideradas importantes e
como forma de equilibrar a tendência para o favorecimento do inte-
resse da comunidade ao desenvolvimento será o caminho correcto?
Como nota D É J E A N T - P O N S , «a outorga de compensações é apropriada a
certas situações nas quais o requerente não vê o seu problema resolvi-
do?» E, por outro lado, os requerentes que sofreram uma ingerência

85 Cf. Acórdio de 17.Dezembro. 1977, in «Annualre», XXI, 679


" Cf. MAGUELOMIE DÊJEANT-PONS — in «Le droit de 1'homme à l'environnement
( . . . ) » - Strasbourg, 1993 — ed, policp. — p. 16.
6l6 Mário de Melo Rocba

no seu direito, ainda que justificada, «não deveriam beneficiar de uma


certa reparação?»87.

D. A invocação do Direito do Homem a o Ambiente por via


da limitação dos direitos garantidos no art. 8.VCEDH e
no art. 1."/Protocolo n.° 1

Na análise da evolução jurisprudencial dos órgãos da Convenção


quanto à invocação do direito ao ambiente por via da limitação do
direito ao respeito da vida privada e do domicílio e do direito ao res-
peito dos bens e da propriedade, considerar-se-ão, como marcos juris-
prudenciais, os casos «Muriel Herrick Vs. Reino Unido», «ulf Lundquist
Vs. Suécia», «Martin D«n«v Vs. Suécia», «Fredln Vs, Suécia» e «Zumtobel
V». Auitrln».
No caso «Muriel Herrick Vs. Reino Unido»88, a requerente queixa-
va-se que as restrições impostas à instalação de um «bunker» que lhe
serviria de habitação em alguns meses do ano contrariavam os arts. 8.°/
CEDH e l.VProtocolo n ° 1. A Comissão considerou que uma eventual
violação do direito ao respeito pela vida privada e o domicílio se justi-
ficava à Juz do n. c 2 do art. 8.°: estava prevista pela lei e perseguia um
fim legítimo - o de proteger o valor de zonas rurais bem situadas. Por
outro lado, a Comissão considerou que os controlos de instalação eram
necessários e desejáveis para preservar as zonas onde a natureza tinha
uma excepcional beleza — como, no caso, Jersey.
No caso «Ulf Lundquist Vs. Suécia» 89 , o requerente queixava-se de
que uma decisão que lhe negou autorização de construção de uma casa
de habitação lhe impedia de beneficiar do disposto no art. 1."/Proto-
colo n.° 1. A Comissão, depois de admitir que o terreno era propriedade
do requerente, entendeu poder deixar sem resposta a questão de saber
se a interdição atingiu ou não o disposto no artigo, baseada na convic-

87 Idem, ibidem.
88 Cf. queixa n.a 11185/84.
99 Cf. queixa n.° 10911/84.
O Diretto ao Ambiente como Direito eto Homem no Quadro Europeu 635

ção de que nas sociedades actuais, cuja complexidade é crescente, é


indispensável a regulamentação cuidada do ordenamento - o que inclui
a interdição de construir; por outro lado a interdição era proporcional
ao fim legítimo por haver o perigo de, se assim não fosse, surgirem pro-
blemas sanitários e poluirem-se as fontes de água.
No caso «Martin Denev Vs. Suécia» o requerente, proprietário de
uma floresta e cientista, de dupla nacionalidade (sueca e búlgara), quei-
xava-se que a Comissão das águas e florestas sueca lhe tinha ordenado,
por escrito, a plantação da espécie de árvores intitulada «pinus silvestris»
ao longo dos três anos futuros e que, caso não o fizesse, se sujeitava ao
pagamento de multa no montante de 10 mil coroas suecas. O reque-
rente veio sustentar que as decisões adoptadas pela Comissão das águas
e florestas sueca constituía uma ingerência injustificada no seu direito
ao respeito dos seus bens em clara violação do disposto no art. 1."/Pro-
tocolo n," 1. A Comissão reconheceu existir essa Ingerência que repre-
sentava uma regulamentação do uso dos bens e foi examinar se a
ingerência se se justificava. Concluiu que sim dado que as decisões adop-
tadas eram legais e haviam sido tomadas de acordo com o «interesse
geral», no sentido do parágrafo 2." do art. 1."/Protocolo n.° 1, visto que
visavam assegurar a protecção ambiental. E, ao invés do requerente
— que consideravaínadmissível que um Estado democrático o impedisse
de plantar as árvores que ele entendia querer plantar na sua proprie-
dade e lhe impusesse que plantasse outras —, a Comissão veio dizer que
o proprietário de uma floresta que não respeitasse os conselhos e direc-
tivas que os serviços de águas e florestas lhe indicavam que respeitasse
poderia ser sujeito a multa.
O caso «Fredin Vs. Suécia» 91 permitiu ao TVibunal Europeu profe-
rir um acórdão de grande significado. A perfeitura do condado de Esto-
colmo concedeu, em 1963, sob certas condições aos pais do requerente,
a concessão de exploração de uma antiga saibreira. Em 1973, uma
emenda à lei de salvaguarda da natureza veio autorizar que se retirasse
a concessão a partir de 1983. Tendo-se tornado proprietário da saibreira,

» Cf. queixa n." 12570/86.


91 Cf. queixa n.' 12033/86 - série A n." 192.
6l6 Mário de Melo Rocba

o requerente começou a explorá-la em 1980 tendo procedido a avulta-


dos investimentos. A perfeitura acabou por ordenar a paragem da explo-
ração e o requerente queixou-se de violação do art. 1.'/Protocolo n.° 1.
0 Tribunal considerou que não ocorreu uma expropriação formal e que
a retirada da concessão não engendrou consequência especialmente gra-
ves para que se pudesse configurar que tivesse havido expropriação de
facto; considerou que as emendas de 1973 á lei em vigor, já nessa altura
tornava aleatória a possibilidade para os interessados de prosseguir a
exploração; e considerou que a retirada da concessão não era despro-
porcionada ou inadequada face ao fim da lei: a protecção da natureza.
Concluiu, pois, pela ausência de violação do art. 1."/Protocolo n.° l .<
Finalmente, no caso «Zumtobel Vs. Áustria» ,z , os requerentes ale-
gavam que a expropriação de que tinham sido vítimas para a constru-
ção d» uma wtrsdft regional inttrcomunal - cujo traçado Unha tido
em consideração motivos ambientais - era uma expropriação Ilegal, não
era de utilidade pública e contrariava um projecto de aumento de um
supermercado construído em terreno contíguo. A Comissão não pensou
assim e considerou que, para lá da expropriação se ter feito de acordo
com as condições previstas na lei, obedeceu a imperativos de circula-
ção, segurança das crianças de escola e protecção ambiental.
Dos cinco casos referidos retira-se uma evolução jurisprudencial.
Não no sentido de uma evolução uniforme e que corresponda a inflexões
jurisprudenciais paralelas a décadas (p. ex. na década de 70 pensava-
-se predominantemente de uma maneira e na década de 80 passou a
pensar-se de outra); mas no sentido de que, no cômputo global dos casos
«ambientais» presentes aos órgãos da Convenção existe uma grande
diferença quantitativa entre os que culminaram com a decisão de que
tinha existido violação do art. 1* do Protocolo n.° 1 (apenas três) 95 e o
número daquele em que se declara não ter ocorrido violação do pre-
ceito ou em que se declara a ingerência justificável. Na verdade, o que
se alterou na evolução da jurisprudência dos órgãos da Convenção - e

>* cf. queixa n.° 12235/86.


95 O caso «Sporrong e Lonnroth Vs. Suécia» (1982) e os casos «Poiss Vs. Áus-
tria» e «Erlrner e Hofner Vs. Áustria» (ambos de 1987).
O Diretto ao Ambiente como Direito eto Homem no Quadro Europeu 637

que se alterou substancialmente — foi a «largura» da margem de apre-


ciação do Estado que passou a ter uma dimensão quase total, o que
determinou que a Comissão e o Tribunal sejam cada vez menos aber-
tos à aceitação de interesses individuais face aos interesses ambientais
gerais. De sorte que se a disposição restritiva do direito de propriedade
estiver prevista na lei, está aberto o caminho para a constatação da não
violação do art. 1."/Protocolo n.° 1; de resto, a jurisprudência dos órgãos
da Convenção constata que os controlos do ordenamento do território
são necessários e desejáveis, que é «indispensável regulamentar o uso
de terrenos em vista de um ordenamento ou uma planificação detalhada
( . . . ) e que a protecção da natureza e dos sítios corresponde a um fim
de interesse geral»94. Assim se explica que andem a par as constatações
de ingerências justificadas e as compressões ao direito de propriedade
a partir da ideia segundo a qual se o Indivíduo tem direito ao ambiente,
tem também para com ele deveres.
Ao considerar, no caso «Fredin Vs. Suécia», a necessidade de pre-
servar o ambiente, o Tribunal confirmou esta orientação.

No actual estádio da evolução jurisprudencial, parece mais cons-


tante e mais firme a jurisprudência em torno dos casos em que a invo-
cação do direito ao ambiente se fez pela via da limitação do direito de
propriedade do que aquela que se formou em torno dos casos em que a
invocação do direito ambiente se fez por via da invocação de violação
do art. 8.7CEDH e l.VProtocoJo n.° 1.

De tudo resulta que a situação se pode, hoje, compaginar como


segue: «situação de reconhecimento indirecto e limitado dos direitos do
homem ao ambiente, ainda que evolutiva»9S.
As duas grandes linhas da actual tendência jurisprudencial - aliás
linhas convergentes no seu efeito útil - são, por um lado, o tomar-se
em consideração a dimensão ambiental dos direitos protegidos (o que
configura uma espécie de «princípio da integração» nos direitos garan-

94 C f . MAGUELONNS D ^ E A N T - P O N S - o b . c i t . , p. 3 8 .
54 Idem, ibidem - p. 44.
6l6 Mário de Melo Rocba

tidos pela CEDH) e, por outro lado, a admissão de limitações a certos


direitos protegidos, limitações motivadas por razões ambientais.
Mas há ainda grandes passos a dar e um longo caminho a percor-
rer. D É J E A N T - P O N S coloca a tónica em três pontos. Era primeiro lugar,
«o espírito ( . . . ) deve ser orientado para a prevenção ( . . . ) e a possi-
bilidade de impôr medidas de conservação deveria ser especialmente
estudada»; em segundo lugar, «deveria ser plenamente reconhecida a
qualidade de «vítima potencial» ou «eventual», à qual os órgãos da
Convenção se referem, por vezes, já»; em terceiro lugar, «a possibi-
lidade de se reivindicar um direito à protecção de elementos da bio-
-diversidade (espécies de fauna e de flora selvagens e meios naturais,
especialmente) de que o homem não é juridicamente proprietário mas
pelos quais se pode sentir responsável, deveria ser-lhe reconhecido»9Í.
Os quadros alternativos em que tudo isto ocorreria seriam:

a ) se a CEDH não fôr alterada, deverão ser desenvolvidos proce-


dimentos no âmbito de outros instrumentos internacionais,
v.g. a Convenção de Berna de 1979 relativa à conservação da
vida selvagem e do meio natural na Europa;
b) adopção de um Protocolo adicional à CEDH relativo aos assun-
tos ambientais;
c) elaboração de uma nova Convenção Europeia cobrindo todos
os aspectos da protecção ambiental97.

IV) Novas tendências: a caminho da primazia do Direito ao


Ambiente em relação a outros Direitos do Homem?

Tendo optado por um modelo de enunciação dos direitos em que,


simultâneamente, se precisa o conteúdo dos direitos protegidos e se espe-
cificam as condições nas quais o exercício de tais direitos pode conhe-

" C f . MAGUELONNE DÉJEANT-PONS - ob. cit., p. 45

" Para lá de que haja quem proponha a criação de um Tribunal Internacio-


nal do Meio Ambiente — vd. supra, p. 17. - nota 53-
O Diretto ao Ambiente como Direito eto Homem no Quadro Europeu 639

cer limitações,a CEDH abarca, como é generalizadamente aceite, três


tipos diferentes de situações nas suas disposições:

- as que, consagrando um direito, imediatamente especificam as


restrições a que fica sujeito, em certas circunstâncias (v.g. arts.
8." a 11." CEDH e art. 1.7P. n.°l);
- as que autorizam restrições aos direitos baseados em razões de
índole geral (v.g. arts. 15." e 17 VCEDH);
- as que, tendo carácter geral, limitam a aplicação de restrições
autorizadas em virtude de outros artigos (v.g. arts. 14.° e 18.°/
CEDH).

Ora, manifesto se torna que o direito ao respeito da vida privada e


do domicílio (consagrado no art. 8.°) e o direito ao respeito pelos bens
pessoais e pela propriedade (consagrado no art. do Protocolo n.° 1)
entram no primeiro grupo de situações e podem, por isso, conhecer limi-
tações. Ponto é que a restrição seja legal, isto é que seja «prevista pela
lei» (art. 8.° parág. 2.°) ou «feita nas condições previstas na lei e nos
princípios gerais de direito internacional» (art. 1."/Protocolo n.° 1) e
que seja «necessária numa sociedade democrática» (art. 8.° parág. 2.°)
ou que se justifique pela utilidade pública (art. 1 ."/Protocolo n."l).
Pela sua própria natureza, pois, os direitos previstos nos arts. 8.°
CEDH e 1."/Protocolo n.° 1 podem ser sujeitos a restrições.
Mas ocorre, uma segunda ordem de argumentos que aponta no
mesmo sentido. É a permissão que é conferida aos Estados membros de,
dadas certas circunstâncias, poderem tomar providências que derroguem
obrigações previstas na Convenção (art. 15.7CEDH).
Se a isto juntarmos a atribuição aos Estados membros da «margem
de apreciação» na valorização de determinadas situações concretas
e/ou na posterior elaboração e aplicação de medidas decorrentes daque-
las situações e destinadas a fazer-lhes face, então temos o quadro que
permite compreender que o direito do homem ao ambiente pode levar
à compressão de outros direitos garantidos pela CEDH'8.

** 0 que há uns anos seria impensável não o é hoje: considerar que todas as
formas de poluição integram o conceito de «outro perigo público que ameace a vida
640 Mdrio cie Melo Rocba

Mas daqui não decorre qualquer sinal que sustente a primazia do


direito ao ambiente sobre outros direitos do homem, no momento actual.
Está, apenas, aberta a porta à consideração do direito ao ambiente como
um dos direitos do homem e a constatação de novos desafios que com
ele surgem.
Como nota B O I S S O N D E C H A Z O U R N E S «as instruções e os mecanismos
de aplicação do direito internacional devem fazer face a novos desafios
no domínio do ambiente ( . . . ) sendo que estes desafios vieram , por um
lado, pôr em evidência os limites das instituições clássicas e, por outro
lado, favorecerem o surgimento de novos processos baseados, antes de
tudo, numa cooperação contínua entre os Estados a fim de protegerem
os interesses que lhes são comuns» 99 . Há, todavia, um longo caminho
a percorrer.
Está por criar um Tribunal Internacional do Ambiente como o está
um Provedor do Ambiente. E se, no âmbito do Dl, alguns passos impor-
tantes foram dados - como a criação da «Chamber for Environmental
Matters» do TIJ (que pode ser o embrião do Tribunal Internacional do
Ambiente), e no Direito Europeu, o «Fórum Europeu Consultivo», criado
pela Comissão, em matéria de ambiente e desenvolvimento sustentável100,

da nação» para efeitos do art. 15.VCEDH. O constatado fracasso dos resultados prá-
ticos da Cimeira do Rio de 1992 feito recentemente na li.' Cimeira da Terra (Nova
Vorque, 1997) provam-no. Como observou ANTONOPOULOS - para outro contexto —
o carácter grave e excepcional do perigo (a que se reporta o artigo) advém da pala-
vra «outro»; o perigo deve revestir uma excepcionalidade e uma gravidade paralelas
às existentes numa situação de guerra, sendo já irrelevante a sua origem (cf. «La
jurisprudence des organes de la C E D H , Leyden - 1967 - p. 221). E a Comissão,
concordantemente, sustenta haver lugar ao conceito quando, cumulativamente, esti-
verem reunidas as seguintes características: tratar-se de uma situação actual ou emi-
nente; que piovoque repercurssões em toda a nação; que constitua uma ameaça à
vida organizada da comunidade; e que as medidas restritivas previstas pela Conven-
ção para garantirem a segurança, a saúde, a ordem pública se revelem insuficientes
para combaterem aquele perigo público (cf. «Repertoire de la Jurisprudence relativa
á l a CEDH - Heule - p. 229).
" Cf. LAIIRENCE B O I S S O N DE CHAZOURNES — in «La mise en oeuvre du Droit
International dans le domaine de laprotection de 1'environnement: enjeux et défis»
- in RGDIP. Tome IC - 1995 - p. 72.
Cf. J0 L 58, 1997.
O Diretto ao Ambiente como Direito eto Homem no Quadro Europeu 641

o facto é que, paia se alcançar efeito útil, é necessário que «os meca-
nismos de promoção, como os de reacção, constituam etapas diferen-
tes mas complementares de um «continuum»
No âmbito da UE, o Conselho adoptou recentemente uma posição
comum sobre o plano para rever a aplicação do quinto programa .de
acção em matéria de ambiente, cujo objectivo é promover o desenvol-
vimento sustentável. O plano identifica áreas prioritárias, uma das quais
é um maior rigoi na aplicação da legislação ambiental. Ocorre que,
apesar de se entender que os instrumentos normativos continuam a ser
o fulcro da política ambiental da UE, a Comissão tem vindo a defender
a utilização de outros instrumentos (v. g., acordos voluntários e apli-
cação de impostos ambientais 102 ) para reforçar a via do desenvolvimento
sustentável.
Outra questão é a de saber se estes mecanismos serão inseridos no
actual modelo jurídico europeu — e vistos à luz dos «direitos europeus
específicos» que o Tratado de Maastricht consagrou e o Tratado de
Amesterdão veio reforçar — ou se as questões ambientais também aju-
darão à criação de um novo modelo jurídico à escala europeia, que
antecederia alterações significativas à escala internacional. Neste último
plano, apontando para uma nova ordem sócio-ecológica internacional,
sustentada por normas jurídicas que superem quadros clássicos de refe-
rência e que potenciem vastas áreas consensuais.

BIBLIOGRAFIA

ALBANESE, Ferdinando - «Un nouveau droit de 1' homme? « - Rev. NATUROPA

n." 70, Estrasburgo, 1992.


ANTONOPOW.OS — «La |urisprudence des organes de la CEDH» - Leyden, 1967.

ARAGÃO, Maria Alexandra — «O princípio do poluidor-pagador» — Coimbra, 1997.


BOÍSSON DE CHAZOURNES, Laurence - «La mise en oeuvre du Droit International dans
le domalne de la protection de t' environnement: enjeux et déíis» - in
— RGDIP — Tome IC — 1995.

101 LAURENCE BOÍSSON DE CHAZOURNES - ob. cit., p. 7 3 .

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