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A gramática dos direitos humanos contemporâneos compreende prioritariamente o estudo

dos sistemas internacionais de proteção e sua normatividade. Estuda o sistema protetivo (global)
das Nações Unidas (v. Capítulos V a VII, infra) e os sistemas (regionais) europeu, interamericano
e africano (v. Capítulo IX, infra); também, como não poderia deixar de ser, compreende os
mecanismos específicos de proteção dos direitos humanos, tanto convencionais (v. Capítulo
VII, infra) como não convencionais (v. Capítulo VIII, infra).
A perfeita compreensão dessa gramática auxilia as vítimas de violações de direitos humanos
a vindicar seus direitos, quer nos tribunais internos como nas instâncias internacionais,
fomentando, ademais, a consagração de uma “cultura de direitos humanos” no país (v. Capítulo
XX, item 3, infra).

7.Interpretação conforme os direitos humanos

Por fim, cabe referir que, tendo os direitos humanos se tornado o núcleo-chave do direito
pós-moderno, todas as normas (internas e internacionais) presentes em um determinado Estado e
que atingem, de uma ou outra maneira, os indivíduos sujeitos à sua jurisdição, devem ser
interpretadas em conformidade com esses direitos, é dizer, de acordo com as normas
internacionais (convencionais ou costumeiras) de proteção dos direitos humanos ratificadas e em
vigor.15
Todas as normas em vigor no Estado, sejam internas ou internacionais, devem ser
interpretadas “conforme” os direitos humanos, sem qualquer exceção. Assim, v.g., quer seja a
Constituição do Estado (norma interna) ou um tratado internacional de comércio (norma
internacional) em vigor nesse mesmo Estado, ambas as normas devem ser interpretadas
“conforme” as diretrizes dos direitos humanos contemporâneos previstas em tratados ou em
costumes internacionais, a fim de encontrar a melhor solução para o direito da pessoa em um dado
caso concreto.
Veja-se, a propósito, o seguinte exemplo (ao qual voltaremos no Capítulo XV, item
5.1, infra): a Constituição brasileira de 1988 refere-se, em vários dispositivos, às “pessoas
portadoras de deficiência”, o que não está correto, tendo em vista que a Convenção da ONU sobre
os Direitos das Pessoas com Deficiência (2007) emprega a melhor expressão
“pessoas com deficiência”. Assim, tendo a Convenção da ONU entrado em vigor no Brasil (2009)
com “equivalência de emenda constitucional”,16 tem-se como certo que, a partir desse momento,
há de se fazer a interpretação “conforme” a Convenção e atualizar a antiga expressão nacional
“pessoas portadoras de deficiência” para “pessoas com deficiência” (a qual é universalmente
aceita, por revelar mais precisamente a condição dessa categoria de pessoas). Esse, como se vê, é
um bom exemplo para se compreender como há de ser levada a efeito essa técnica interpretativa,
quando necessário adequar o direito interno à norma internacional de direitos humanos.
A interpretação conforme os direitos humanos impede, por igual, que seja aplicada
norma menos benéfica ao ser humano em detrimento de norma a ele mais favorável, eis que o
princípio básico presente em todos os tratados de direitos humanos,17 bem assim no costume
internacional relativo a esses direitos, é o princípio pro homine ou pro persona, por meio do qual
o intérprete, num dado caso concreto, deve sempre aplicar a norma mais favorável à pessoa. Dessa
maneira, seria tecnicamente impossível pretender que a interpretação “conforme os direitos
humanos” pudesse fazer valer, num certo caso concreto, determinada norma menos benéfica ao
ser humano, pois a própria ordem internacional de proteção (quer convencional ou costumeira)
dá primazia à aplicação da norma sempre mais benéfica à pessoa. Tal significa que, aplicando a
interpretação conforme os direitos humanos, sempre há de ser encontrada a solução mais
benéfica ou mais protetiva (e também mais justa) ao ser humano sujeito de direitos diante de uma
situação concreta.
A interpretação conforme os direitos humanos deve seguir prioritariamente o entendimento
da jurisprudência dos tribunais internacionais respectivos (em nosso entorno geográfico, da Corte
Interamericana de Direitos Humanos). De fato, as decisões dos tribunais regionais de direitos
humanos, além de valerem para as partes como res judicata, valem para terceiros a título de res
interpretata.18 Assim, a interpretação que faz, v.g., a Corte Interamericana relativamente a um
determinado direito previsto na Convenção Americana, tem valor jurídico (como res interpretata)
para todos os Estados-partes do Pacto de San José, devendo ser por eles seguida (sempre que mais
benéfica) quando se trata de compreender o conteúdo ou o alcance de quaisquer normas em vigor
no plano interno.
Destaque-se, por derradeiro, que não apenas as normas internas e internacionais alheias ao
tema “direitos humanos” devem ser interpretadas “conforme” os direitos humanos e o
princípio pro homine, senão também os próprios tratados de direitos humanos em vigor no
Estado, como se verá oportunamente (v. Capítulo XIII, item 8, infra).

1
Nesse sentido, v. WEIS, Carlos. Direitos humanos contemporâneos. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2010,
p. 23, que compreende os direitos humanos “como aqueles correspondentes ao conteúdo das
declarações e tratados internacionais sobre o tema”.
2
V. GOUVEIA, Jorge Bacelar. Manual de direito constitucional. 3. ed. rev. e atual. Coimbra: Almedina,
2009, p. 1.029, v. II.
3
Nesse sentido, v. Eur. Court H.R., Case of de Souza Ribeiro Vs. France, Grand Chamber, Application
n.º 22689/07, j. 13.12.2012, relativo à violação de direitos humanos a cidadão brasileiro residente na
Guiana Francesa.
4
Cf. PEREZ LUÑO, Antonio E. Los derechos fundamentales. 3. ed. Madrid: Tecnos, 1988, p. 44-47;
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina,
2003, p. 393-398; COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 3. ed. rev.
e ampl. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 224; RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos
humanos na ordem internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 21-29; e SARLET, Ingo
Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2006, p. 33-42.
5
Exemplifique-se com o “direito à fuga”, reconhecido como um “direito natural” pelo STF: “A fuga é
um direito natural dos que se sentem, por isto ou por aquilo, alvo de um ato discrepante da ordem
jurídica, pouco importando a improcedência dessa visão, longe ficando de afastar o instituto do excesso
de prazo” (RHC 84.851/BA, 1.ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 01.03.2005, DJ 20.05.2005). Veja-
se, também, a referência feita pelo STF ao “direito de autodefesa”, nos seguintes termos: “A autodefesa
consubstancia, antes de mais nada, direito natural. O fato de o acusado não admitir a culpa, ou mesmo
atribuí-la a terceiro, não prejudica a substituição da pena privativa do exercício da liberdade pela
restritiva de direitos, descabendo falar de ‘personalidade distorcida’” (HC 80.616/SP, 1.ª Turma, Rel.
Min. Marco Aurélio, j. 18.09.2001, DJ 02.10.2001).
6
Sobre o papel desse instrumento para a proteção dos direitos na União Europeia, v. CARDUCCI, Michele
& MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Teoria tridimensional das integrações supranacionais: uma análise
comparativa dos sistemas e modelos de integração da Europa e América Latina. Rio de Janeiro:
Forense, 2014, p. 17-42.
7
Sobre a CEDH, v. Capítulo IX, item 1.1, infra.
8
Cf. VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976.
4. ed. Coimbra: Almedina, 2010, p. 27 e ss.
9
Compare-se, v.g., o título da obra de FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos
fundamentais. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2008 (o autor, entretanto, não mantém qualquer
uniformidade no emprego das expressões “direitos do homem”, “direitos fundamentais” e “direitos
humanos” no decorrer do texto).
10
Cf. MIRANDA, Jorge. A dignidade da pessoa humana e a unidade valorativa do sistema de direitos
fundamentais. In: Estudos em homenagem ao Professor Doutor Martim de Albuquerque. Coimbra:
Coimbra Editora, 2010, p. 933-949.
11
Cf. CARRIÓ, Genaro R. Los derechos humanos y su protección: distintos tipos de problemas. Buenos
Aires: Abeledo-Perrot, 1990, p. 14-15; e NINO, Carlos Santiago. Ética y derechos humanos: un ensayo
de fundamentación. 2. ed. ampl. y rev. Buenos Aires: Astrea, 1989, p. 14 e ss.
12
V. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 12. ed. rev. e atual.
São Paulo: Saraiva, 2011, p. 196-198.
13
STF, ARE n.º 639.337 AgR/SP, 2.ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello, j. 23.08.2011, DJe 15.09.2011.
14
A expressão, salvo engano, é de VIEIRA, Oscar Vilhena. A gramática dos direitos humanos. Boletim
Científico da Escola Superior do Ministério Público da União, Brasília, ano I, n.º 4, p. 13-33, jul.-set.
2002.
15
Cf. VETTORI, Giuseppe. The interpretation according to human rights, fundamental freedoms and
constitutional laws (art. 1:102 DCFR). In: CAFAGGI, Fabrizio & MICKLITZ, Hans-W. (Ed.). European
private law after the common frame of reference. Cheltenham: Edward Elgar Publishing, 2010, p. 24-
35.
16
Aprovada nos termos do art. 5.º, § 3.º, da Constituição (três quintos dos votos dos membros de cada
Casa do Congresso Nacional, em dois turnos).
17
Por exemplo, v. o já citado art. 29, b, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos: “Nenhuma
disposição da presente Convenção pode ser interpretada no sentido de (...) limitar o gozo e exercício
de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos em virtude de leis de qualquer dos
Estados-partes ou em virtude de Convenções em que seja parte um dos referidos Estados”.
18
V. MAC-GREGOR, Eduardo Ferrer. Eficacia de la sentencia interamericana y la cosa juzgada
internacional: vinculación directa hacia las partes (res judicata) e indirecta hacia los Estados parte de
la Convención Americana (res interpretata) – Sobre el cumplimiento del Caso Gelman Vs.
Uruguay. Anuario de Derecho Constitucional Latinoamericano, ano 19, Bogotá: Konrad-Adenauer-
Stiftung, 2013, p. 607-638.

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