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Um novo paradigma moralista na definição material de crime

UM NOVO PARADIGMA MORALISTA NA DEFINIÇÃO


MATERIAL DE CRIME

Paulo de Sousa Mendes*

SUMÁRIO: Introdução; 1. Análise crítica da teoria do bem jurídico; 2. Análise crítica da teoria
do dano; 3. Análise crítica da teoria funcionalista; 4. Apresentação da teoria democrática mitigada
pela proporcionalidade; 5. Defesa de um modesto moralismo penal; Conclusão.

Introdução

O confronto entre a doutrina do bem jurídico (Rechtsgutslehre) da tradição


alemã e o princípio da ofensividade (Harm Principle) da tradição anglo-americana
ocupa grande parte do debate contemporâneo sobre o fundamento da criminalização
de condutas humanas1. A narrativa dominante proclama que os conceitos de bem
jurídico e de ofensividade revelam, afinal, grande similitude, dado que servem, de
igual maneira, para desentranhar do direito penal os bens meramente instrumentais,
ideológicos ou morais. Por exemplo, ambos os conceitos permitem sustentar o fim
da proibição penal da prostituição, da pornografia, da homossexualidade e do incesto.
Só assim se consegue assegurar – diz-se – que o direito penal se concentre na missão
exclusiva de proteção de interesses essenciais à coexistência livre e pacífica entre
os seres humanos. Esta interpretação, aliás, tem vindo a ganhar eco também na
doutrina de língua portuguesa, destacando-se os AA. que têm promovido a aproximação
entre a doutrina do bem jurídico e o princípio da ofensividade com base na definição
de dano proposta pelo jus-filósofo norte-americano Joel Feinberg (1926-2004)2.

*
Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
1
Para uma visão do estado da discussão sobre os critérios legítimos da criminalização de condutas humanas
numa perspetiva comparada anglo-americana e alemã, veja-se VON HIRSCH, Andrew, “Der Rechtsgutsbegriff
und das ‘Harm Principle’”, GA 149 (2002), (pp. 2-14) pp. 3-7; ANDROULAKIS, Nikolaos K., “Abschied
vom Rechtsgut: Einzug der Moralität? Der ‘Entrüstungsprinzip’ (zu der Entscheidung BVerfGE 120, 224)”,
in: AA.VV., Festschrift für Winfried Hassemer (org.: Felix Herzog e Ulfrid Neumann), Heidelberg: C. F.
Müller, 2010, (pp. 271-286) pp. 276-277; HÖRNLE, Tatjana, “‘Rights of Others’ in Criminalisation Theory”,
in: AA.VV., Liberal Criminal Theory – Essays for Andreas von Hirsch (org.: AP Simester, Antje du Bois-
Pedain e Ulfrid Neumann), Oxford / Portland, Oregon: Hart Publishing, 2014, (pp. 169-185) pp. 169-185
e AMBOS, Kai, “Liberal Criminal Theory: Ansätze eines angloamerikanisch-deutschen Dialogs zu Ehren
von Andrew (Andreas) von Hirsch”, GA 6 (2017), (pp. 297-323) pp. 308-310.
2
MARTINELLI, João Paulo Orsini / LOBATO, José Danilo Tavares / SANTOS, Humberto Souza, “Harm
principle e seus reflexos no direito penal: Uma leitura a partir de Joel Feinberg”, RBCCrim 115 (2015),
(pp. 255-290) pp. 255-290. 115
Paulo de Sousa Mendes

Outros AA. entrelaçam os conceitos de bem jurídico e de ofensividade de forma mais


ampla3.
A narrativa dominante enfrenta, porém, três linhas de questionamento. A primeira
argumenta que a criminalização de condutas humanas serve para reforço de quaisquer
políticas públicas cuja salvaguarda careça, na visão do legislador democrático, de
sanções penais que expressem uma desaprovação social superior às sanções administrativas
ou aos mecanismos de indemnização do direito civil. A segunda alega a legitimidade
de criminalização de condutas humanas quando a discricionariedade legislativa respeite
os princípios de ultima ratio e proporcionalidade das cominações penais, à luz das
necessidades de tutela de uma convicção há longo tempo radicada na cultura e na
história da sociedade e demonstrada por estudos empíricos. A terceira e última constata
que existem incriminações que tutelam visões morais e que, ainda assim, são reconhecidas
como legítimas pela sociedade e respetivas instituições desde que representem um
mal de dimensão pública numa comunidade de cidadãos aberta, liberal, plural e
inclusiva. São três frentes de questionamento independentes, mas até podem ser
cumuladas entre si4. Todas acentuam a crise das teorias do bem jurídico e do dano.
Multiplicam-se as vozes contrárias à teoria do bem jurídico na doutrina do direito
penal alemão, que não são só as de funcionalistas como Günther Jakobs5, mas também
de antifuncionalistas como Otto Lagodny6 ou Ivo Appel7. Talvez não nos demos conta
da retração da teoria do bem jurídico, considerando a fama dos seus atuais defensores,
desde Claus Roxin8 e Luís Greco9 ou, em terras lusas, Jorge de Figueiredo Dias10,

3
AZEVEDO, André Mauro Lacerda, Harm Principle – Fundamentos, Validade e Limites da Criminaliza-
ção, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020, pp. 93-97.
4
GRECO, Luís, “Tem futuro a teoria do bem jurídico? Reflexões a partir da decisão do Tribunal Consti-
tucional Alemão a respeito do crime de incesto (§ 173 Strafgesetzbuch)”, RBCC (2010), (pp. 165-185) p.
172.
5
JAKOBS, Günther, “Was schützt das Strafrecht: Rechtsgüter oder Normgeltung?”, in: AA.VV., Aktualität
und Entwicklung der Strafrechtswissenschaft – Festschrift für Seiji Saito zum 70. Geburtstag (org.:
Takayuki Shiibashi), Tokyo: Shonzansha, 2003, (pp. 760-779) pp. 760-779.
6
LAGODNY, Otto, Strafrecht vor den Schranken der Grundrechte, Tübingen: Mohr, 1996, p. 144 e
LAGODNY, Otto, “Basic rights and substantive criminal law: The incest case”, University of Toronto Law
Journal 4 (2011), pp. 761-781.
7
APPEL, Ivo, Verfassung und Strafe – Zu den verfassungsrechtlichen Grenzen staatlichen Strafens, Berlin:
Duncker & Humblot, 1998, p. 390.
8
ROXIN, Claus, “O conceito de bem jurídico como padrão crítico da norma penal posto à prova” (trad.
por Susana Aires de Sousa), RPCC 1 (2013), pp. 33-43. Mas o próprio Roxin abre agora caminho à con-
formidade constitucional de normas incriminadoras que não tutelam qualquer bem jurídico, tudo depen-
dendo, a final, da sua conformidade à luz do princípio da proporcionalidade, conforme nota MIRANDA
RODRIGUES, Anabela, “Direito Penal e Constituição: O que resta do conceito de bem jurídico-penal?”,
in: AA.VV., Homenagem ao Professor Doutor Germano Marques da Silva (coord.: José Lobo Moutinho,
Henrique Salinas, Elsa Vaz Sequeira e Pedro Garcia Marques), Coimbra: Almedina, 2020, (pp. 149-165)
p. 162.
9
GRECO, RBCC (2010), cit., pp. 181-182.
FIGUEIREDO DIAS, Jorge de, “Das ‘Rechtsgutstrafrecht’ als verfassungsrechtliches Prinzip unter dem
10

116 Blickwinkel der Rechtsprechung des portugiesischen Verfassungsgerichts”, GA 4 (2014), pp. 218-219.
Um novo paradigma moralista na definição material de crime

Manuel da Costa Andrade11, Maria Fernanda Palma12 e Augusto Silva Dias13, entre
outros. Mas é uma discussão que está ao rubro.

1. Análise crítica da teoria do bem jurídico

Grande parte da força dos argumentos dos defensores da doutrina do bem jurídico
parece basear-se na convicção de que o bem jurídico corresponderia a uma doutrina
liberal e que, portanto, seria a herdeira natural das grandes batalhas do Iluminismo
penal. Assim, a doutrina do bem jurídico relacionar-se-ia com a promoção da máxima
liberdade de cada um, desde que compatível com a liberdade dos outros. Só que isso
não corresponde à origem, nem à evolução histórica da doutrina do bem jurídico. A
doutrina do bem jurídico teve origem no utilitarismo e não no liberalismo14. A
circunstância de alguns filósofos utilitaristas serem também liberais não nos deve
fazer confundir essas duas linhas da filosofia ética e política. Basta aqui destacar que
a doutrina do bem jurídico não atribui prioridade à liberdade relativamente a outros
interesses.
O conceito de bem jurídico remonta a J. M. F. Birnbaum (1792-1877), embora
ele não tenha criado a própria expressão bem jurídico, mas usado várias expressões
mais ou menos equivalentes, tais como o objeto dos nossos direitos (Gegenstand
unseres Rechts)15. A lesão de bens jurídicos opunha-se à compreensão tradicional do
ilícito como lesão de direitos subjetivos. Era, pois, uma mudança da visão liberal do
ilícito como desrespeito pela vontade moral da vítima em prol de uma visão utilitarista
da lesão de interesses tangíveis, embora Birnbaum agregasse no seu pensamento as
influências mais díspares, desde os restos do jus-racionalismo iluminista, passando
pelo hegelianismo e o historicismo, até ao positivismo legalista. À conta de tantas
contradições, há quem chegue mesmo a interrogar-se sobre se o estudo de Birnbaum
não teria acabado por desaparecer para sempre, caso Karl Binding (1841-1920) não
o tivesse citado16. Seguramente, a referida deslocação da tónica tinha um sentido

11
COSTA ANDRADE, Manuel da, “Sobre a reforma do Código Penal português: Dos crimes contra as
pessoas, em geral e das gravações e fotografias ilícitas em particular”, in: AA.VV., Estudos Comemorativos
do 150.º Aniversário do Tribunal da Boa-Hora, Lisboa: Ministério da Justiça, 1995, (pp. 77-120) pp. 82-92.
12
PALMA, Maria Fernanda, “Conceito material de crime e reforma penal”, Anatomia do Crime 0 (2014),
(pp. 11-23) pp. 12-15.
13
SILVA DIAS, Augusto, “Delicta in Se” e “Delicta Mere Prohibita” – Uma análise das descontinuidades
do ilícito penal moderno à luz da reconstrução de uma distinção clássica, Coimbra: Coimbra Editora,
2009, pp. 641-677.
14
SOUSA MENDES, Paulo de, O torto intrinsecamente culposo como condição necessária da imputação
da pena, Coimbra: Coimbra Editora, 2007, pp. 332-343; GRECO, Luís, Lebendiges und Totes in Feuerbachs
Straftheorie, Berlin: Duncker & Humblot, 2009, p. 120 e GRECO, RBCC (2010), cit., pp. 175-176, n. 20.
15
BIRNBAUM, Johann Michael Franz, “Über das Erfordernis einer Rechtsverletzung zum Begriff des
Verbrechens mit besonderer Rücksicht auf den Begriff der Ehrenkränkung”, Archiv des Criminalrechtes-
NF 15 (1834), (pp. 149-194) p. 172.
16
AMELUNG, Knut, Rechtsgüterschutz und Schutz der Gesellschaft – Untersuchungen zum Inhalt und
zum Anwendungsbereich eines Strafrechtsprinzips auf dogmengeschichtlicher Grundlage – Zugleich ein
Beitrag zur Lehre von der “Sozialschädlichkeit” des Verbrechens, Frankfurt/M.: Athenäum, 1972, p. 45. 117
Paulo de Sousa Mendes

antiliberal, até porque a atenção dada agora aos objetos dos direitos levava à marginalização
dos sujeitos, enquanto vítimas individuais. Aliás, a marginalização dos sujeitos era
mesmo a intenção de Birnbaum, de maneira a justificar, contra a perspetiva
liberal-individualista e kantiana de P. J. A. Feuerbach (1775-1833), a inclusão no
sistema do direito penal de verdadeiros crimes sociais (em vez de delitos de polícia)
contra os interesses supra-individuais (e.g., os crimes contra o Estado, contra a religião
ou contra a moralidade social), a par dos crimes naturais contra a esfera das liberdades
individuais17.
Foi só a partir dos anos setenta do século XIX, com a publicação por Binding
do seu primeiro volume acerca Das normas e da sua violação (Die Normen und ihre
Übertretung), em 187218, que o conceito de bem jurídico, incluindo o próprio termo
Rechtsgut, se estabeleceu com caráter firme como novo paradigma dos valores de re-
ferência da doutrina do direito penal alemão19. Em Binding, os bens jurídicos eram
as realidades do mundo exterior que, aos olhos do legislador, tinham valor como
condição de uma vida sã de toda a comunidade jurídica e cuja salvaguarda era garantida
pelo legislador através das normas jurídicas vinculativas. Binding foi o representante
do mais estrénuo positivismo jus-legalista (i.e., o império das valorações do legislador)
e jus-científico (i.e., a autossuficiência da teoria das normas). A doutrina do bem
jurídico consumava assim o afastamento dos precedentes arquétipos liberais, precisamente
porque o legislador era livre de selecionar do mundo das pessoas e das coisas aquilo
que mereceria a coroação de bem-do-Direito e nada lhe impunha que prezasse exclu-
sivamente a esfera das liberdades individuais.
Embora tenha assimilado a substituição dos direitos subjetivos pelos bens jurídicos,
von Liszt foi um adversário da definição proposta por Binding. Segundo von Liszt, os
bens jurídicos eram interesses vitais do homem ou da sociedade que o legislador
protegeria, em vez de serem os bens proclamados pelo legislador na sua torre de marfim.
Nas palavras de von Liszt: “Aos interesses juridicamente protegidos pomos o nome
de bens jurídicos”20. E ainda: “O conceito de bem jurídico de Binding é um conceito
fictício, quer dizer: uma palavra sem conteúdo”21. Mas a polémica de von Liszt com
Binding era mais aparente do que real. Caso a ideia de von Liszt fosse levada às últimas
consequências, então ter-se-ia ganhado a possibilidade de criticar, a partir de uma
perspetiva sociológica, a escolha dos bens jurídicos feita pelo legislador. Acresce que
o conteúdo do ilícito penal teria de ser retirado diretamente da realidade social, justamente
porque os interesses existiriam antes da própria lei. Na verdade, von Liszt estabeleceu

17
AMELUNG, Rechtsgüterschutz, cit., pp. 43-51.
BINDING, Karl, Die Normen und ihre Übertretung – Eine Untersuchung über die Rechtmässige Handlung
18

und die Arten des Delikts, vol. I, 4.ª ed., Leipzig: Felix Meiner, 1922 (1.ª ed., 1872), pp. 66-67.
19
COSTA ANDRADE, Manuel da, Consentimento e acordo em direito penal – Contributo para a funda-
mentação de um paradigma dualista, 1.ª reimp., Coimbra: Coimbra Editora, 2004 (1.ª ed., 1991): pp. 61
e 64-76.
VON LISZT, Franz, “Rechtsgut und Handlungsbegriff im Bindingschen Handbuche – Ein kritischer
20

Beitrag zur juristischen Methodenlehre”, agora in: Strafrechtliche Aufsätze und Vorträge, Vol. I (1875-1891),
Berlin: Walter de Gruyter, 1970 (fac-símile da ed. de Berlin: J. Guttentag, 1905), (pp. 212-251) p. 223.
118 21
VON LISZT, Strafrechtliche Aufsätze und Vorträge, I, cit., p. 224.
Um novo paradigma moralista na definição material de crime

a distinção entre a antijuridicidade material e a antijuridicidade formal, a primeira


ajuizada em função da realidade social e a segunda ajuizada em função do direito
positivo. Essas parecem ser grandes diferenças em comparação com o pensamento de
Binding, para quem o fundamento e a medida dos bens jurídicos eram as normas
jurídicas e a antijuridicidade era sempre e só formal. Mas tais diferenças esvaíam-se
depressa. Também von Liszt acabava por definir o bem jurídico como interesse juri-
dicamente protegido, a ponto de o primado da antijuridicidade material dever, na prática
e em caso de conflito, ceder sempre o passo à antijuridicidade formal22.
A doutrina do bem jurídico só ganhou fama de liberal por causa da crítica que
lhe foi dirigida pelos protagonistas da Escola de Kiel, durante o nacional-socialismo23/24.
Naturalmente, a doutrina do bem jurídico não podia senão ser liberal no confronto
com a vontade do chefe (Führerprinzip) e as exigências da vida do povo (die Forderungen
des völkischen Lebens)25 como princípios de interpretação da lei penal e a admissibilidade
da integração de lacunas da lei penal por analogia com os preceitos penais preexistentes
que caracterizavam o direito penal nacional-socialista26. Mas a doutrina do bem jurídico
nunca foi liberal na sua origem e, desde o pós-guerra (ou seja, após a Segunda Guerra
Mundial) até à atualidade, evoluiu num sentido cada vez menos liberal e cada vez
mais estatista e coletivista.
A teoria do bem jurídico nunca se restringiu aos bens jurídicos individuais (e.g.,
a vida, a integridade física, a honra ou o património), dado que abrangeu, desde sempre,
uma grande variedade de bens jurídicos supra-individuais. Tal variedade relacionava-se
não apenas com a clássica proteção do Estado (e.g., a soberania nacional, a segurança
do Estado ou a independência e a integridade nacionais), mas também com a proteção
de interesses coletivos e sociais (e.g., a autonomia e a imparcialidade da administração
pública, a probidade e a fidelidade dos funcionários ou o erário público) ou, mais re-
centemente (ou seja, a partir dos anos 80 do século passado), com a proteção de interesses
de titularidade difusa e objeto indivisível (e.g., o ambiente e os bens de consumo)27.

22
COSTA ANDRADE, Consentimento, cit., p. 71.
23
DAHM, Georg / SCHAFFSTEIN, Friedrich, Liberales oder autoritäres Strafrecht? Hamburg: Hanseatische
Verlagsanstalt, 1933; DAHM, Georg, Nationalsozialistische und faschistisches Strafrecht, Berlin: Junker
und Dünnhaupt, 1935 e DAHM, Georg / SCHAFFSTEIN, Friedrich, Methode und System des neuen
Strafrechts – Zwei Abhandlungen, Berlin: Walter de Gruyter, 1938.
24
Para uma análise crítica do direito penal nacionalista-socialista, seus antecedentes históricos e suas ex-
pressões atuais, veja-se AMBOS, Kai, Direito Penal Nacional-Socialista – Continuidade e radicalização
(prólogo de R. A. Duff, trad. de Paulo César Busato e rev. de Pablo Alflen e Kai Ambos), São Paulo: Tirant
lo Blanch, 2020, pp. 63-67.
25
AMBOS, Direito Penal Nacional-Socialista, cit., p. 63.
26
Enquanto defensor do Führerprinzip e destacado representante da escola de Kiel, veja-se LARENZ,
Karl, Deutsche Rechtserneuerung und Rechtsphilosophie, Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1934,
p. 34. Em jeito de retratação posterior, veja-se a “Carta de Karl Larenz a Wolfgang Schild (26.7.91)”, que
foi reproduzida em fac-símile e traduzida por SOUSA MENDES, Paulo de, O torto intrinsecamente
culposo..., cit., pp. 523-527.
27
SILVA DIAS, Augusto, “A tutela do ofendido e a posição do assistente no processo penal português”,
in: AA.VV., Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais (coord.: Maria Fernanda
Palma), Coimbra: Almedina, 2004, (pp. 55-65) p. 58. 119
Paulo de Sousa Mendes

A introdução dos bens jurídicos supra-individuais corre, porém, o risco de


esvaziar o conceito de bem jurídico de qualquer referente objetivo, tornando-o ma-
nipulável pelo legislador e inútil para o julgador como pauta de interpretação de cada
tipo legal de crime e da sua eventual desaplicação com fundamento na falta de bem
jurídico, já para não dizer que também é insuscetível de aproveitamento pela doutrina
penal para avaliação crítica do catálogo de normas incriminadores em vigor num de-
terminado ordenamento jurídico de referência28. De facto, cabe aqui perguntar como
se pode distinguir a tutela de bens jurídicos tangíveis de uma tutela de bens jurídicos
intermédios, que, na prática, acaba por se transformar numa tutela de funções de su-
pervisão e de fiscalização das atividades económicas, financeiras e sociais, enquanto
funções que o Estado pode e deve cumprir, aliás mais eficazmente, através de
instrumentos de direito administrativo, inclusive na sua vertente sancionadora (e.g.,
o direito contraordenacional)? Por exemplo, onde fica, segundo a teoria do bem
jurídico, a fronteira de criminalização dos cartéis, considerando que a colusão entre
empresas para fixação de preços ou repartição de mercados constitui uma ameaça à
livre concorrência e já se sabendo que esta última é uma condição do desenvolvimento
da economia e da salvaguarda dos interesses dos consumidores? No direito da con-
corrência europeu (artigos 101.º e 102.º do Tratado sobre o Funcionamento da União
Europeia), assim como no Regime Jurídico da Concorrência (Lei n.º 19/2012, de 8
de maio), os acordos secretos entre empresas (vulgo, cartéis) constituem um ilícito
administrativo (entre nós, uma contraordenação prevista no artigo 9.º da Lei n.º
19/2012). Mas há vozes que pugnam pela sua criminalização, alegando que a liberdade
concorrencial corresponde a um relevante interesse da comunidade, de mais a mais
acolhido na Constituição da República Portuguesa em diversas disposições, quer na
perspetiva da organização económica (artigos 61.º e 62.º), quer enquanto incumbência
prioritária do Estado (artigos 80.º e 81.º, alínea f)), quer como objetivo da política
comercial nacional (artigo 99.º), onde especificamente se refere a importância da
repressão das práticas restritivas29. Só que, tudo visto e somado, a teoria do bem
jurídico pouco ou nada tem para oferecer ao debate sobre a criminalização dos cartéis,
dado que a margem de decisão do legislador não dependerá tanto da dignidade cons-
titucional do valor da livre concorrência, que se concede que possa existir, quanto
da necessidade de pena para os cartéis, o que só pode ser avaliado à luz da eficácia
repressiva da Direção-Geral da Concorrência da Comissão Europeia e da atuação da
Autoridade da Concorrência Nacional. Onde baste a atuação sancionadora das
autoridades administrativas, seguramente mais eficazes do que as autoridades de in-
vestigação criminal, então cairá por terra qualquer veleidade de criminalização das

STERNBERG-LIEBEN, Detlev, “Bien jurídico, proporcionalidad y libertad del legislador penal”, in:
28

AA.VV., La Teoría del Bien Jurídico – Fundamento de la Legitimación del Derecho Penal o Juego de
Abalorios Dogmático? (org.: Rafael Alcácer Guirao, María Martín Lorenzo e Íñigo Ortiz de Urbina Gimeno),
Madrid / Barcelona / Buenos Aires / São Paulo: Marcial Pons, 2016, (pp. 101-122) p. 107.
29
NOVERSA LOUREIRO, Flávia, “Direito Penal da Concorrência? Reflexão a propósito de uma proposta
de criminalização”, in: AA.VV., Novos Estudos sobre Law Enforcement, Compliance e Direito Penal
(coord.: Maria Fernanda Palma, Augusto Silva Dias e Paulo de Sousa Mendes), Coimbra: Almedina, 2020,
120 (pp. 149-176) pp. 163-164.
Um novo paradigma moralista na definição material de crime

condutas em causa, em razão dos princípios de proporcionalidade, na vertente de


proibição do excesso, e de ultima ratio do direito penal.
Seja como for, a evolução da doutrina do bem jurídico acabou por aproximá-la
do funcionalismo penal, na medida em que a imensa amplitude da definição dos
possíveis bens jurídico-penais acolhe a tutela de quaisquer funções do Estado, não
obstante haver vozes que procuram contrariar esta tendência através da exigência de
um referente pessoal para o bem jurídico30. Mas o referente pessoal acaba por existir
mediatamente a propósito de quaisquer funções do Estado.

2. Análise crítica da teoria do dano

O princípio da ofensividade foi avançado pelo filósofo John Stuart Mill (1806-1873),
no opúsculo Sobre a Liberdade (On Liberty), de 185931. E tornou-se no principal
argumento usado no Relatório Wolfenden (Wolfenden Report), de 1957, contra a in-
criminação da homossexualidade e da prostituição em Inglaterra e no País de Gales:

“[A função do direito penal] é a de preservar a ordem e a decência públicas,


proteger os cidadãos do que é ofensivo ou nocivo, e prover suficientes salvaguardas
contra a exploração e a corrupção de outros [...]. Não constitui, de acordo com
a nossa conceção, função da lei intervir na vida privada dos cidadãos, ou
procurar reforçar qualquer padrão particular de comportamento, mais do que
o necessário para se poder cumprir o propósito que delineámos”32.

Mill era liberal, mas era também utilitarista. Enquanto discípulo de Jeremy
Bentham (1748-1832), Mill achava que a diferença entre os domínios da moralidade
e da política pública dependia tão-somente da maior ou menor quantidade de pessoas
expostas aos efeitos da ação humana. De resto, ambos os domínios tratavam da mul-
tiplicação da felicidade dos indivíduos:

“A grande maioria das boas ações não se realiza em benefício do mundo,


mas sim dos indivíduos, de cujo bem depende o do mundo; e, nestas cir-
cunstâncias, os pensamentos dos homens mais virtuosos não necessitam ir
além das pessoas em particular a que se referem, a não ser o necessário para
se assegurarem de que ao beneficiá-las não estão violando os direitos, isto
é, as legítimas e autorizadas esperanças de mais ninguém. A multiplicação
da felicidade é, de acordo com a ética utilitarista, o objeto da virtude; as
ocasiões em que qualquer indivíduo (excetuando um em mil) pode fazer
isto em grande escala, ou, por outras palavras, ser um benfeitor público,
são realmente excecionais; e é só nestas ocasiões que se lhe exige que tome

30
SILVA DIAS, Delicta in Se, cit., pp. 322-324.
31
STUART MILL, John, Sobre a Liberdade, Coimbra: Edições 70, 2006.
32
NATSCHERADETZ, Karl Prelhaz, O direito penal sexual – Conteúdo e limites, Coimbra: Almedina,
1985, p. 23. 121
Paulo de Sousa Mendes

em conta a utilidade pública; em qualquer outro caso, apenas terá de atender


à utilidade privada, ao interesse ou felicidade de umas quantas pessoas. Só
aqueles cujas ações influem sobre a sociedade em geral têm necessidade
constante de se interessarem por um objeto tão amplo”33.

Com base no pensamento de Mill, diz-se muitas vezes que o direito penal não
deve intervir na vida privada dos cidadãos. Acrescenta-se que, se o fizesse, estaria a
ser moralista por querer condicionar a forma como cada um decide viver a sua vida,
ademais em situações em que não há dano para outrem. Ou seja, o direito penal estaria
a impor padrões de moralidade social aos cidadãos, cuja autonomia e liberdade, pelo
contrário, deveria ser preservada, a menos que estivessem em causa interesses alheios.
Vale por dizer que o direito penal não deve ser moralista. Mas é preciso desconfiar
do que isso quer dizer, em vez de se concordar imediatamente, como se o moralismo
fosse uma posição antiliberal.
Greco, por exemplo, define o que se deve entender por moralismo:

“[O] termo moral, no contexto de discussões como a presente, foi reconstruído


como o conjunto de exigências de comportamento fundadas de modo não con-
sequencialista, o que entend[o] como sinónimo de exigências de comportamento
fundadas de modo deontológico ou segundo uma ética das virtudes”34.

Mas o que se nota aqui é uma hipérbole, a saber: a ideia de que o consequencialismo,
mormente o utilitarismo, não é uma filosofia moral, juntamente com uma rejeição de
outras filosofias morais. No fundo, é a proclamação do monopólio moral do utilitarismo,
que triunfaria de tal maneira que deixaria de ser reconhecer a si mesmo como uma
filosofia moral, a par de outras. É o culminar de uma evolução materialista do mundo,
que começou muito atrás.
A tradição filosófica reconhece vários tipos de bens (os bens do espírito, os bens
do corpo e os bens exteriores), mas um só soberano bem (ou, o que é o mesmo, a
questão referente ao fundamento da moralidade). Dizia o filósofo e orador Marco
Túlio Cícero (106-43 a.C.) que o soberano bem (finis, summum bonum ou ultimum
bonorum) era coisa controversa acerca da qual os sábios discordavam absolutamente
uns dos outros (De finibus 1.4.11 e De legibus 1.20.52)35. Talvez a divergência entre
doutores não fosse realmente absoluta, porquanto as doutrinas epicurista, estoica36 e

33
STUART MILL, John, Utilitarismo (trad. por Eduardo Rogado Dias e prefácio de Vieira de Almeida),
Coimbra: Atlântida, 1961, pp. 36-37. Em língua original, STUART MILL, John, Utilitarianism (org.:
Roger Crisp, com base no texto da 4.ª ed. de 1871, segundo a ed. original no Fraser’s Magazine 64, 1861),
4.ª ed., Oxford / New York: Oxford University Press, 2001 (1.ª ed., 1998), pp. 65-66.
34
GRECO, RBCC (2010), cit., p. 172, n. 10.
35
CÍCERO, Des termes extrêmes des biens et des maux (texto estabelecido e trad. por Jules Martha), 2.ª
reimp., Paris: Les Belles Lettres, 1999 (5.ª ed. rev., corrig. e acresc., 1989), p. 12 e CÍCERO, Traité des
lois (texto estabelecido e trad. por Georges de Plinval), Paris: Les Belles Lettres, 1959, p. 30.
O estoicismo foi a ética imperante numa época, a Era Helenística (desde a morte de Alexandre Magno,
36

122 em 323 a.C., até à morte de Cleópatra, em 31 a.C.), de expansão da civilização grega a toda a região do
Um novo paradigma moralista na definição material de crime

eclética (rectius, académico-peripatética) – ou seja, as três escolas helenísticas expostas


por Cícero no De finibus – partiam de uma base minimamente comum: eram todas
éticas construídas sobre a ideia de que há uma tendência natural do ser animado para
aquilo que é bom para si. Mas essas doutrinas divergiam depois radicalmente acerca
do objeto do soberano bem, atenta a natureza do Homem (De finib. 5.6.17, 5.9.24,
5.9.27 e 5.12.34). Foi preciso esperar pela modernidade para se voltar a discutir as
ideias do soberano bem da vida humana fora da religião ou da revelação, apenas como
resultado do exercício da razão livre e disciplinada. Por outras palavras, foi preciso
esperar pela modernidade para se voltar à natureza como fundamento último da
moralidade (um tema caro ao epicurismo, ao estoicismo e ao peripatetismo ciceronianos).
Mas a modernidade acabou reduzindo a questão do bem aos bens avulsos e esqueceu
o soberano bem dos seres humanos. É preciso refletir criticamente sobre a redução
da questão do bem aos bens avulsos e sobre a ideia errada, mas muito difundida, de
que a sociedade democrática e liberal nunca deverá fazer mais do que simplesmente
garantir a proteção dos bens avulsos, nunca se imiscuindo na promoção do soberano
bem dos seres humanos. Tudo isto para concluir que não há mal nenhum no moralismo,
se for entendido como recuperação de valores que não se esgotam nos bens avulsos
(i.e., os bens do espírito, os bens do corpo e os bens exteriores).
É preciso ultrapassar a confusão entre liberalismo e utilitarismo, em parte resultante
da circunstância de Mill ser um filósofo liberal e utilitarista37. No utilitarismo, cuja
criação se deve a Bentham, mas cujo princípio da utilidade foi tirado do filósofo David
Hume (1711-1776)38, o maior bem do homem era a felicidade (happiness), só que
esta correspondia à busca do bem-estar (well-being), em vez de corresponder à busca
da excelência moral (eudaimonia) da tradição peripatética39. À crítica esperada, e
certeira, de que se esqueceram do soberano bem dos seres humanos, transformando-os
em escravos dos próprios desejos (tal como os hedonistas, que viam os indivíduos
como seres concentrados exclusivamente nos seus apetites), os utilitaristas contrapunham
que, ainda assim, era possível motivar os indivíduos para o bem comum sob a ameaça
de um mal maior do que a frustração do desejo no caso concreto. Aliás, é com base
nessa visão que o utilitarismo acredita que podem ser criadas artificialmente certas

Mediterrâneo Oriental, mas também de contactos intercivilizacionais. Os tempos eram, pois, de um cos-
mopolitismo remoinhoso em torno da Hélade, manifestando-se assim a resiliência da cultura grega. O
estoicismo viria a ser também a filosofia oficial dos Romanos.
37
Muitos liberais denunciam a inconsistência da relação entre o utilitarismo e o liberalismo no ensaio On
liberty, de Mill, publicado em 1859.
38
BENTHAM, Jeremy, A Fragment on Government (org.: J. H. Burns e H. L. A. Hart, com introd. por
Ross Harrison), Cambridge: Cambridge University Press, 1988, p. 116: “[the principle of utility] that was
the name adopted from David Hume”.
39
A Ética a Nicómaco (Ethica Nicomachea) não começa pela proclamação de que todo o ser (incluindo o
ser humano) tende para aquilo que naturalmente é bom para si, mas começa dizendo que a ação moral
tende para um bem como o seu fim. Segundo Aristóteles (384-322 a.C.), a ação moral baseia-se na experiência
humana e na análise da situação moral. Esta análise da situação moral opõe-se, pois, à mera satisfação do
programa da natureza. ARISTÓTELES, L’éthique à Nicomaque (trad. e comentário por René Antoine
Gauthier e Jean Yves Jolif), T. I.-1., 2.ª ed. com nova introdução, Louvain: Publications Universitaires /
Paris: Beatrice-Nauwelaerts, 1970 (1.ª ed., 1958-59), p. 17. 123
Paulo de Sousa Mendes

condições exteriores à ação humana que promovam o princípio da utilidade ou Princípio


da Máxima Felicidade (Greatest Happiness Principle):

“Nos Pannomial Fragments o apêndice [‘do maior número’] surge reformulado


como ‘o próximo princípio específico’ (isto é, logo a seguir ao princípio da
máxima felicidade), ‘o princípio numérico da felicidade’: ‘em caso de colisão
e disputa: sendo igual a felicidade de cada parte, preferir a felicidade do
maior à do menor número’. Esta formulação evita as anteriores aplicações,
em que a felicidade que se retira excede a felicidade que se dá, e é um
exemplo de como as aplicações levam à reformulação do princípio”40.

O utilitarismo, de resto, confia na manipulação dos desejos e temores como


alavanca para motivar a conduta humana na direção que maximize o bem de todos.
Segundo Bentham e Mill, o truque passava por dar aos indivíduos motivos egoístas
para defenderem ou respeitarem os interesses alheios. A saber, a força dos prémios e
castigos externos (o próprio sentimento do dever, caso o indivíduo acredite na força
pura do dever, poderia ser visto como sanção interna que é estimulada não só pelas
influências da educação, mas também pelo conjunto de corroborações sociais decorrentes
da aplicação de sanções externas). Salta à vista que o utilitarismo não acredita nos
indivíduos como centros de decisão moral autónoma e livre. Pelo contrário, o utilitarismo
conduz os indivíduos como um rebanho em nome da máxima felicidade coletiva, o
que lhes retira também qualquer estatuto de cidadania numa comunidade que se assuma
de cidadãos livres e conscientes.
Na ética filosófica, a fratura interna da modernidade dá-se entre a liberdade e a
utilidade. Bentham está do lado da utilidade e, ao mesmo tempo, abstrai da liberdade,
quando não a hostiliza, como se pode ver na sua crítica aos direitos naturais (natural
rights), que são, afinal, liberdades individuais41. O filósofo Immanuel Kant (1724-1804)
está do lado da liberdade e, ao mesmo tempo, está manifestamente contra a utilidade.
Kant é o filósofo mais antiutilitarista de todos os tempos. Kant não dava qualquer
margem para avaliação da ação moral em função das respetivas consequências,
inclusive as mais nefastas, uma vez que estas só seriam imputáveis ao sujeito quando
ele tivesse cometido uma ação ou omissão contrária ao dever moral42. Onde está a
liberdade do indivíduo diante do dever? Na verdade, o indivíduo é o legislador de si
mesmo. É a paradoxal afirmação de uma liberdade que se autolimita para seguir o
imperativo categórico autolegislado. Lembremos a primeira formulação do imperativo

SOUSA E BRITO, José de, “O princípio da utilidade, razão e Direito”, Filosofia – Publicação Periódica
40

da Sociedade Portuguesa de Filosofia, Vol. IV, n.os 1/2 (1990), (pp. 33-51) p. 35.
41
BURNS, J. H., “Bentham and the French Revolution”, Transactions of the Royal Historical Society 16
(1966), (pp. 95-114) p. 112.
42
KANT, Immanuel, “Metaphysische Anfangsgründe der Rechtslehre”, agora in: Kant’s Gesammelte
Schriften (org.: Königliche Preußische Akademie der Wissenschaften), Vol. VI, 1.ª subdiv.: Werke, T. VI:
Die Metaphysik der Sitten, Berlin: Georg Reimer, 1914, (pp. 203-493) p. 228. Os Princípios Metafísicos
da Doutrina do Direito (Metaphysische Anfangsgründe der Rechtslehre), de 1797 (2.ª ed., 1803), consti-
124 tuem a primeira parte autónoma da Metafísica dos Costumes (Metaphysik der Sitten).
Um novo paradigma moralista na definição material de crime

categórico, que diz o seguinte: “Age segundo uma máxima pela qual possas querer
que ela se torne uma lei universal”43. Kant leva a cabo um projeto de maximização
da razão, determinando através dela o conjunto das condições de possibilidade do
sujeito no seu todo, de modo a articular o reino da natureza e o reino da liberdade.
Há quem queira, ainda assim, conciliar Kant com os utilitaristas44. Mas a procura de
um menor denominador comum às éticas deontológicas (paradigmaticamente: o
kantismo) e consequencialistas (paradigmaticamente: o utilitarismo) implica desca-
racterizá-las a ponto de as tornar irreconhecíveis, para além de inócuas45.
As éticas deontológicas e as éticas teleológicas, especialmente a ética das virtudes
da tradição aristotélica46, estas sim, situam-se do mesmo lado. Mas o problema do
dever autolegislado reside na ilusão de poder haver máximas para todos os dilemas
morais, quando, na realidade, Kant acabava ilustrando o seu pensamento através de
máximas muito simples e inadequadas a satisfazer os desafios morais complexos, não
obstante a sua crença na justificação racional pura da ação moral47. Pelo contrário, a
razão prática aristotélica é ágil, pois é um pensamento orientado pela vontade de se
aperfeiçoar como pessoa praticando o bem, um bem que não é alheio às consequências
da ação moral. A razão prática aristotélica corresponde a uma ética da situação, sem
respostas de princípio para os casos particulares48, mas que, apesar disso, serve para

43
Em língua original (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, 1785): “[H]andle nur nach derjenigen
Maxime, durch die du zugleich wollwn kannst, daß sie ein allgemeines Gesetz werde” (KANT, Die Metaphysik
der Sitten, cit., p. 421).
HARE, R. M., “Could Kant have been a Utilitarian?”, agora in: Sorting Out Ethics, Oxford: Oxford
44

University Press, 2000 (1.ª ed., 1997), pp. 147-165.


45
Não obstante o afirmado em texto, o projeto de unificar as grandes éticas filosóficas tem presidido às
indagações de alguns AA. de referência, tais como o filósofo Derek Parfit (1942-2017), que defende que
as diferentes éticas filosóficas nada mais revelam do que diferentes maneiras de superar o mesmo desafio
final. Em língua original: “It has been widely believed that there are such deep disagreements between
Kantians, Contractualists, and Consequentialists. That, I have argued, is not true. These people are climbing
the same mountain on different sides” (PARFIT, Derek, On What Matters, Vol. 1 [The Berkeley Tanner
Lectures], Oxford: Oxford University Press, 2011, p. 26). Num sentido semelhante, já antes, veja-se SOUSA
E BRITO, José de, “Falsas e verdadeiras alternativas na teoria da justiça”, in: AA.VV., Estudos em
homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves (coord.: Jorge de Figueiredo Dias, José Joaquim
Gomes Canotilho e José de Faria Costa), Vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, 2008, pp. 289-334.
46
A ética das virtudes opera com noções básicas de virtude e vício – por exemplo, a (des)honestidade –
como ponto de partida para uma retórica situacionista que permita a cada um decidir as respetivas ações
morais concretas. A propósito, leia-se a descrição de dezenas de tipos humanos feita por TEOFRASTO,
Os caracteres (introd., trad. do grego e notas por Maria de Fátima Silva), Lisboa: Relógio D’Água, 1999:
pp. 16-21 e 45-81.
47
Veja-se a absurda crítica de Kant ao direito de mentir por motivos altruístas, que é lembrada por HILL
Jr., Thomas E., “Kant on Responsibility for Consequences”, in: AA.VV., Jahrbuch für Recht und Ethik –
Annual Review of Law and Ethics, Vol. 2 (org.: B. Sharon Byrd, Joachim Hruschka e Jan C. Joerden),
Berlin: Duncker & Humblot, 1994, (pp. 159-176) pp. 162-163, 167 e 174 e REATH, Andrews, “Agency
and the Imputation of Consequences in Kant’s Ethics”, in: AA.VV., Jahrbuch für Recht und Ethik, cit.,
(pp. 259-261) pp. 264 e 269-280.
48
GADAMER, Hans-Georg, Wahrheit und Methode – Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik, 3.ª
ed. revista, Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1972 (1.ª ed., 1960), pp. 295-307. 125
Paulo de Sousa Mendes

ajuizar as ações concretas49, sendo especialmente sensível à abundância das irreplicáveis


circunstâncias presentes no trajeto da motivação à ação e, por isso mesmo, adaptável
às exigências do caso concreto50.
Seja como for, cabe destacar que tanto as éticas deontológicas como as teleológicas
promovem o surgimento de cidadãos autónomos, livres e responsáveis, o que corresponde
a um dos sentidos do liberalismo, enquanto programa de florescimento das potencialidades
dos seres humanos, em si mesmos e com respeito pelos seus iguais e até pelos seres
sencientes e pela vida em seu esplendor. Dir-se-á que tanto as éticas deontológicas
como as teleológicas são elitistas, dado que pressupõem cidadãos ilustrados. Tal não
pode deixar de ser verdade se considerarmos que a cidade (polis) era a moldura prees-
tabelecida da existência humana e a discussão acerca da virtude (aretê), em ordem à
felicidade (enquanto realização das potencialidades individuais), qualificava o estatuto
dos seres humanos nesse mundo instalado de privilegiados. Não é assim nas sociedades
complexas em que os diferentes estratos sociais exibem gritantes diferenças de civismo,
cultura e educação. Mas o liberalismo, quando é posto à prova em contextos renitentes,
mostra a sua garra, nem que seja por se colocar do lado da promoção do civismo, da
cultura e da educação. Ou será que preferiremos ceder diante da constatação de que
os indivíduos comuns são desprovidos dessas qualidades, ainda que tal se deva à falta
de melhores oportunidades em suas vidas desfavorecidas? Dir-se-ia que os estratos
sociais desfavorecidos só alinham no fomento do maior bem para o maior número
sob ameaça de sanções para a violação dos interesses de outrem. Nesse caso, o
liberalismo soçobra diante de uma espécie de republicanismo que governa segundo
a égide do princípio da utilidade. Mas é triste o destino da sociedade que desiste de
criar um espaço de comunicação entre cidadãos livres e responsáveis.

49
Anscombe falava na irrelevância prática do conceito de ação (in)justa na ética de Aristóteles, uma vez que
acabava por relevar somente a noção de homem (in)justo e, quem sabe, justos seriam aqueles que realizassem
sempre e só ações justas. Assim, ANSCOMBE, Gertrude Elisabeth Margaret, “Modern Moral Philosophy”,
agora in: AA.VV., Virtue Ethics (org.: Roger Crisp e Michael Slote), Oxford: Oxford University Press, 2000
(1.ª ed., 1997), (pp. 26-44) p. 43. É preciso, porém, explicar que Aristóteles estava claramente interessado no
valor das ações morais concretamente consideradas. Tal é demonstrado por Bostock: “[Aristóteles] chama a
atenção para o facto de a noção de [vida da parte racional da alma, abrangendo não só a parte que é propriamente
capaz de raciocínio ou entendimento, mas também a parte que contém os desejos ou as emoções que podem
ser controlados pela razão] poder ser entendida de duas maneiras: ou como uma disposição para fazer certas
coisas (que se mantém mesmo quando estamos a dormir, uma vez que a pessoa entregue ao sono está viva),
ou como a atividade (energeia) pela qual se manifesta a referida disposição. Aristóteles queria ser interpretado
da segunda maneira: a vida que corresponde à função do homem é para ser entendida como uma atividade,
e não como uma simples disposição”. Em língua original: “[Aristotle] remarks that the notion of [a life of the
part of the soul that has reason, including both the reasoning or thinking part proper, and the part containing
desires and emotions that can be controlled by it] can be taken in two ways, either as the disposition to do
certain things (which one retains even when asleep – for a sleeper is still alive), or as the ‘activity’ (energeia)
that manifests that disposition. He wishes to be understood in the second way: the life that is man’s ‘function’
is to be understood as an activity, and not a mere disposition” (BOSTOCK, David, Aristotle’s Ethics, Oxford:
Oxford University Press, 2000: p. 19). No mesmo sentido, DORIS, John M., Lack of Character – Personality
and Moral Behavior, Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 17.
Um exemplo atual de aplicação da ética das virtudes pode ver-se em HURSTHOUSE, Rosalind, “Virtue
50

Theory and Abortion”, agora in: AA.VV., Virtue Ethics (org.: Roger Crisp e Michael Slote), Oxford: Oxford
126 University Press, 2000 (1.ª ed., 1997), pp. 217-238.
Um novo paradigma moralista na definição material de crime

A sociedade democrática e liberal não se mantém por inércia. É uma obra coletiva
que depende do contributo dos cidadãos quer no domínio das relações sociais, quer
no domínio da vida privada. O liberalismo não consente uma intervenção no domínio
da vida privada que transcenda o fomento das condições de florescimento da personalidade
humana, o que corresponde ao supremo bem que cada um busque para si mesmo, mas
com respeito pelos demais. Mas resta espaço para uma chamada de atenção, uma “co-
tovelada suave” (nudging), à maneira do paternalismo libertário51. Afinal, é isso que
o Estado faz para proteger os cidadãos diante do risco de erros crassos na condução
das suas vidas autónomas e livres. É uma missão das instituições públicas, desde as
escolas aos tribunais. O próprio direito penal participa dessa missão. O direito penal
é uma instituição que promove as condições necessárias ao desenvolvimento autónomo
e livre da personalidade humana no quadro de uma sociedade aberta ou comunidade
liberal52. É isso que legitima que se discuta a criminalização de factos tais como a
eutanásia, o auxílio ao suicídio, o lenocínio, a posse de material pornográfico com
representação realista de menor, a ofensa à memória de pessoa falecida, a omissão
de auxílio, a negação ou banalização grosseira de crimes de genocídio, guerra ou
contra a paz e a humanidade e os maus tratos a animais ou o abandono de animais de
companhia, entre outros53.

3. Análise crítica da teoria funcionalista

No plano europeu, é indesmentível o impacto das diretivas da União Europeia


na política criminal dos Estados-Membros, dado que podem impor a criminalização
nas ordens jurídicas internas daqueles comportamentos que ameaçam as políticas eco-
nómicas e sociais da União. Por exemplo, o direito penal aparece como a trave-mestra
da política ambiental europeia na Diretiva 2008/99/CE do Parlamento Europeu e do
Conselho, de 19 de novembro de 2008, relativa à proteção do ambiente através do
direito penal. No respetivo Considerando (3), pode ler-se o seguinte:

“A experiência tem revelado que os atuais regimes de sanções não têm sido
suficientes para garantir a observância absoluta da legislação sobre proteção
do ambiente. Esta observância pode e deverá ser reforçada através da previsão
de sanções penais que reflitam uma desaprovação social qualitativamente

51
O A. de referência do paternalismo libertário é SUNSTEIN, Cass R., Why Nudge? The Politics of
Libertarian Paternalism, New Haven / USA: Yale University Press, 2015.
Uma comunidade liberal como a que defende DUFF, R. A., Punishment, Communication, and Community,
52

Oxford: Oxford University Press, 2001, pp. 35-73. Duff acredita que não há contradição em defender-se
um comunitarismo liberal ou um liberalismo comunitarista. Naturalmente, é uma afirmação discutível.
Para uma visão abrangente dos pontos de tensão entre o liberalismo e o comunitarismo, veja-se KYMLICKA,
Will, Liberalism, Community and Culture, 1.ª ed. Pbk., Oxford: Oxford University Press, 1991 (1.ª ed.,
1989), pp. 253-258; MULHALL, Stephen / SWIFT, Adam, Liberals and Communitarians, Oxford, UK /
Cambridge, USA: Blackwell, 1992, pp. 289-294 e HÖFFE, Otfried, Kritik der Freiheit – Das Grundproblem
der Moderne, München: Beck, 2015, pp. 178-194.
53
Os crimes elencados fazem parte do atual Código Penal português. 127
Paulo de Sousa Mendes

diferente das sanções administrativas ou dos mecanismos de indemnização


do direito civil”.

Trata-se da utilização do direito penal como principal instrumento para combater


as grandes ameaças ao ambiente, como se fosse um direito penal de prima ratio, em
vez do tradicional direito penal de ultima ratio da tradição liberal. Em grande medida,
o direito penal ambiental foi construído por cima do conceito de sociedade de risco54.
Como todos sabemos, o conceito de sociedade de risco caracteriza-se por uma dra-
matização da autocolocação em perigo da Humanidade no quadro da civilização
tecno-industrial. Ora, é precisamente esta dramatização que serve de argumento para
o direito penal mudar de foco, deixando de punir apenas as condutas que provocam
danos ambientais concretos para passar a punir as condutas suscetíveis de contribuir,
aliás cumulativamente, para uma futura e incerta degradação ambiental e ecológica.
Em princípio, esta é uma função de regulação das atividades humanas que deveria
caber ao direito administrativo, inclusive na sua vertente sancionatória, e que só se
percebe que passe a caber, também, ao direito penal se dramatizarmos as ameaças da
civilização tecno-industrial a ponto de impor um princípio da máxima precaução nas
atividades económicas, mormente tecno-industriais. É o que se verifica precisamente
quando se diz, como no Considerando (3) da Diretiva 2008/99/CE, que é necessário
“garantir a observância absoluta da legislação sobre proteção do ambiente”. Destaca-se
a “observância absoluta”. É como se as potencialidades catastróficas, mesmo que as
probabilidades determinadas pelos peritos da análise do risco tecnológico sejam muito
baixas, fossem, só por si, argumento suficiente para se exigir a tal observância absoluta
da legislação sobre proteção do ambiente (pelo menos, aos olhos da opinião pública
ocidental, o que não deixa de ser decisivo para determinar as opções do legislador
europeu). Mais do que isso, é como se a incerteza acerca do grau de risco ambiental
ou ecológico de uma determinada atividade económica não admitisse falhas quanto
à tomada das decisões preventivas adequadas a garantir um elevado nível de proteção
do ambiente. Entra, pois, o direito penal em campo para garantir a observância da
legislação sobre proteção do ambiente. Ou seja, o direito penal do ambiente é posto
ao serviço da tutela das funções preventivas do direito administrativo, o que nunca
antes se vira.
Esta intenção de “garantir a observância absoluta da legislação sobre proteção
do ambiente” é, ou parece ser, uma decorrência da velha ideia de “garantir a plena
efetividade de uma política da Comunidade”. Cabe aqui recordar a controvérsia que
existia entre o Conselho e a Comissão, antes da entrada em vigor do Tratado de Lisboa,

54
Nenhum outro sociólogo teve tanta influência no pensamento jurídico nosso contemporâneo como Ulrich
Beck (1944-2015). Em especial, a política ambiental europeia inspirou-se nas ideias de Beck. A legislação
ambiental da União Europeia e dos Estados-Membros é, em alguma medida, tributária dessa fonte de
inspiração, sobretudo na parte relativa ao direito penal. O conceito de sociedade de risco (Risikogesellschaft)
que Beck apresentou, pela primeira vez, em 1986 tem servido de pano de fundo para a declaração de uma
espécie de estado de emergência ambiental. Tal declaração amparou a convocação do direito penal para
assumir o papel de guardião da política ambiental europeia. Neste sentido, BECK, Ulrich, Risikogesellschaft
128 – Auf dem Weg in eine andere Moderne, 23.ª ed., Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2015 (1.ª ed., 1986).
Um novo paradigma moralista na definição material de crime

sobre a questão da competência penal da(s) Comunidade(s) Europeia(s). Tal controvérsia


sobre a base jurídica (entre o primeiro e o terceiro pilares) para a adoção de instrumentos
legislativos de natureza penal acabou sendo decidida pelo Tribunal de Justiça (Comissão
v. Conselho, acórdãos de 13 de setembro de 2005 e de 23 de outubro de 2007) a favor
do direito comunitário, se as injunções de incriminação dirigidas aos Estados-Membros
se afigurassem indispensáveis “para garantir a plena efetividade de uma política da
Comunidade”55. Tratando-se a presente Diretiva da primeira que estabeleceu regras
mínimas relativas à definição de infrações penais e respetivas sanções num particular
domínio sujeito a medidas de harmonização, digamos que apareceu como uma espécie
de aplicação avant la lettre do art. 83.º, n.º 2, TFUE, o qual entraria em vigor em 1
de dezembro de 2009.
A perspetiva funcionalista do direito penal como instrumento de tutela de quaisquer
políticas públicas não é, afinal, muito diferente das teorias do bem jurídico e do dano.
Todas falham diante da necessidade de impor limites ao direito penal e esquecem que
este ramo de Direito só pode ser utilizado moderadamente pelo Estado, dado que as
penas criminais constituem a mais severa intrusão na esfera dos direitos fundamentais
de liberdade dos cidadãos.

4. Apresentação da teoria democrática mitigada pela proporcionalidade

Thomas Fischer, ex-juiz conselheiro do Supremo Tribunal Federal (Bundesgerichtshof


– BGH), ademais com funções docentes nas Universidades de Leipzig e Würzburg
nos anos 90 do século passado, sempre muito atento à ligação entre a práxis judicial
e a dogmática jurídica, aliás como se percebe pelo seu Comentário ao Código Penal
(Kommentar Fischer – StGB), o mais usado pelos tribunais alemães56, já celebrado
com um livro em sua homenagem oferecido pelos seus pares da academia57, apontava
a teoria do bem jurídico como um exemplo paradigmático do jogo dogmático de
argumentos sem consequências práticas58.
Não é só a jurisprudência dos tribunais judiciais alemães que é insensível à
doutrina do bem jurídico. É sabido que o Tribunal Constitucional Federal
(Bundesverfassungsgericht – BVerfG) da Alemanha tão-pouco aceita a doutrina do
bem jurídico. Recorde-se a declaração de não desconformidade da incriminação do
incesto (Inzest) à Lei Fundamental (Grundgesetz – GG)59, que ainda é crime na

55
MIRANDA RODRIGUES, Anabela, “Comentário ao artigo 83.º do TFUE”, in: AA.VV., Tratado de
Lisboa anotado e comentado (org.: Manuel Lopes Porto e Gonçalo Anastácio), Coimbra: Almedina, 2012,
(pp. 435-438) p. 437.
56
FISCHER, Thomas, Strafgesetzbuch mit Nebengesetzen, 67.ª ed., München: C. H. Beck, 2020.
AA.VV., Festschrift für Thomas Fischer (org.: Stephan Barton, Ralf Eschelbach, Michael Hettinger,
57

Eberhard Kempf, Christoph Krehl e Franz Salditt), München: C. H. Beck, 2018.


58
FISCHER, Thomas, “Strafrechtswissenschaft und strafrechtliche Rechtsprechung: Fremde seltsame Welten”,
in: AA.VV., Festschrift für Rainer Hamm zum 65. Geburtstag am 24. Februar 2008 (org.: Regina Michalke,
Wolfgang Köberer, Jürgen Pauly e Stefan Kirsch), Berlin: De Gruyter Recht, 2008, (pp. 63-81) p. 74.
59
MIRANDA RODRIGUES, Homenagem ao Prof. Doutor G. Marques da Silva, cit., p. 155. 129
Paulo de Sousa Mendes

Alemanha (§ 173 StGB)60, a qual suscitou grande celeuma doutrinária porque o BVerfG
sepultou a doutrina do bem jurídico a tal propósito61. O BVerfG considerou o conceito
de bem jurídico controverso e inseguro: ou se apresenta como um conceito normativo
que não difere de ratio legis e seria, portanto, incapaz de limitar o legislador, ou então
apresenta-se como um conceito naturalístico, com pretensão de suprapositividade, o
que estaria em contradição com o facto de, segundo a GG, ser tarefa do legislador de-
mocraticamente legitimado fixar os bens a proteger pelo direito penal62. Apenas o
voto discordante do Vice-Presidente Winfried Hassemer (1940-2014), professor
catedrático da Universidade de Frankfurt a. M. e único penalista presente, se baseou
na defesa da teoria do bem jurídico63/64. O caso do irmão e irmã germanos que deu
origem ao acórdão do Tribunal Constitucional alemão passou ainda sem mácula pelo
controlo do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos65.
Segundo o BVerfG, o tipo legal de crime de incesto tutela o matrimónio e a
família como formas de relacionamento preexistentes ao Direito e reconhecidas pela
Constituição, nos termos do Art 6. (1) GG. A separação de papéis e as relações entre
parentes, de acordo com um padrão social predefinido, constitui, segundo o BVerfG,
uma premissa essencial para o bem-estar da prole66. O incesto, pelo contrário, gera
uma “sobreposição de papéis” (Rollenüberschneidung)67. Acresce que o incesto é
suscetível de causar dano direto aos agentes da conduta proibida e dano indireto aos
outros membros da família, ainda que sobre este ponto escasseie informação de
carácter empírico, como os próprios juízes conselheiros o reconheceram68. A auto-
determinação sexual também não é alheia à tutela oferecida pelo § 173 StGB, no
tocante aos sujeitos da relação incestuosa cuja interação frequentemente revela a
submissão de um em relação ao outro69. O BVerfG não deixou de sublinhar, ademais,
a ligação entre o incesto e a exasperação das possibilidades de geração de filhos
portadores de graves doenças hereditárias, com base em estudos empíricos disponi-
bilizados aos juízes conselheiros70. À guisa de derradeiro argumento, o BVerfG
defendeu a legitimidade da incriminação impugnada com base numa “convicção há
muito radicada na cultura e na história da sociedade” (kulturhistorisch begründete,

60
Em Portugal, o incesto consensual entre adultos não é crime.
61
BVerfG, 2 BvR 392/07, 26.02.2008. Disponível em: www.bverfg.de/entscheidungen.
62
GRECO, RBCC (2010), p. 169.
63
Abweichende Meinung des Richters Hassemers zum Beschluss des Zweiten Senats vom 26. Februar
2008 – 2 BvR 392/07 –, in BVerfG, 2 BvR 392/07, Nr. 73 ss.
64
Para uma análise desenvolvida do voto discordante, veja-se NISCO, Attilio, “Controle das escolhas de
incriminação e eclipse do bem jurídico: O caso do incesto no direito alemão”, Revista de Estudos Criminais
51 (2013), (pp. 8-30) pp. 16-20.
65
Case Stübing v. Germany, 12.04.2012, Application no. 43547/08. Disponível em: www.echar.coe.int.
66
BVerfG, 2 BvR 392/07, Nr. 43.
67
BVerfG, 2 BvR 392/07, Nr. 45.
68
BVerfG, 2 BvR 392/07, Nr. 44.
69
BVerfG, 2 BvR 392/07, Nr. 47-48.
130 70
BVerfG, 2 BvR 392/07, Nr. 49.
Um novo paradigma moralista na definição material de crime

nach wie vor wirkkräftige gesellschaftliche Überzeugung)71. Em suma, a incriminação


do incesto, segundo o BVerfG, desempenha uma função de prevenção geral estabilizadora
da eficácia normativa e reafirma, do mesmo passo, o quadro de valores reconhecidos
pelo legislador, contribuindo para sua implementação72. Tendo em conta que o
princípio de ultima ratio do direito penal condiciona a necessária discricionariedade
legislativa em quaisquer escolhas de criminalização, o BVerfG realizou um juízo de
proporcionalidade (Verhältnissmäßigkeit) entre os meios empregados e os fins da
norma colocada sob escrutínio de (in)constitucionalidade, aliás em linha com
ponderações que já lhe conhecíamos quando se trata de restringir a intervenção
estatal, e não apenas penal, em sede de direitos fundamentais. Os limites desse juízo
de proporcionalidade são a “idoneidade” (Eignung), a “necessidade” (Erforderlichkeit)
e a “razoabilidade” (Zumutbarkeit) ou “proporcionalidade em sentido estrito”
(Verhältnismäßigkeit i.e.S.). Uma norma penal é idónea se for útil para alcançar o
resultado esperado pelo legislador, embora não se espere uma eficácia a cem por
cento. A norma também é necessária se o legislador não dispuser de outro meio
igualmente eficaz e menos invasivo no tocante aos direitos fundamentais73. Finalmente,
a norma é razoável se o sacrifício imposto couber numa justa medida à luz de
parâmetros constitucionais. A violação deste último limite importa excesso no emprego
do instrumento sancionatório (Übermaßverbot)74.
Não há dúvida de que estamos defronte de um método de raciocínio mais so-
fisticado do que a teoria do bem jurídico, ademais enriquecido pela incorporação
de dados empíricos no processo de aferição da proporcionalidade75. Mas o acórdão
do BVerfG sobre o incesto suscita grandes perplexidades e convida à discordância
a respeito das suas conclusões. Se isso não decorre do método argumentativo
utilizado, nem dos dados empíricos recolhidos, então onde reside o motivo de dis-
cordância? Cremos que a discordância tem a ver com os próprios argumentos
utilizados e com a omissão de outros argumentos que, em nossa opinião, deveriam
ter sido reconhecidos.
Pedindo de empréstimo alguns dos argumentos de Hassemer, diga-se de seguida
que: (i) o argumento da confusão de papéis na família tem escasso valor, se considerarmos
que os sujeitos ativos do delito cresceram separados e foram vítimas de um ambiente
familiar degradado, mas não seus fautores; (ii) o argumento da não potenciação de
defeitos genéticos confunde-se com a eugenia e promove um inconcebível direito “de
não nascer”, em vez de nascer doente; (iii) por fim, a convicção há muito radicada
na cultura e na história da sociedade acerca do merecimento de pena não basta como
argumento para respaldar a criminalização do incesto, sob pena de o direito penal se
transformar em mais um instrumento de tutela das conceções morais da sociedade
(gesellschaftliche Moralvorstellung), igual a tantos outros, o que contende com os

71
BVerfG, 2 BvR 392/07, Nr. 50.
72
BVerfG, 2 BvR 392/07, Nr. 50.
73
BVerfG, 2 BvR 392/07, Nr. 36.
74
BVerfG, 2 BvR 392/07, Nr. 37.
75
NISCO, REC 51 (2013), p. 16. 131
Paulo de Sousa Mendes

princípios de ultima ratio e de proporcionalidade como limites constitucionais à


intervenção penal76.
Em suma, discordamos da decisão do BVerfG no caso do incesto, mas concordamos
com a respetiva metodologia de respeito pela legitimidade do legislador democrático,
embora mitigada pelos princípios de proporcionalidade e de ultima ratio.

5. Defesa de um modesto moralismo penal

A sociedade aberta é uma comunidade, enquanto conjunto de pessoas ligadas


por um significativo conjunto de crenças77/78. O direito penal é uma instituição que
promove as condições necessárias ao livre desenvolvimento da personalidade humana79,
no quadro de uma sociedade aberta ou comunidade liberal80/81. A comunicação das
razões morais para os cidadãos se absterem de certas ações ou, excecionalmente,
realizarem outras ações constitui o fim do direito penal. O fim do direito penal
transcende o fim das penas criminais, embora a teoria do fim das penas criminais
deva incorporar a dimensão comunicativa do direito penal82. O processo penal reelabora
na prática o conteúdo das mensagens oriundas do direito penal. O processo penal
realiza a justiça conectiva. A justiça conectiva é um imperativo de recordação dirigido
a todos os membros de uma dada sociedade. A justiça concretamente realizada através

76
NISCO, REC 51 (2013), p. 17-20.
77
Uma comunidade inclusiva como defendem as correntes de pensamento comunitaristas e liberal-pluralistas.
O A. de referência das correntes comunitaristas é MACINTYRE, Alasdair, After Virtue, 2.ª ed., London:
Duckworth, 2000 (1.ª ed., 1981), pp. 256-263. Um dos AA. de referência das correntes liberal-pluralistas
é GALSTON, William A., Liberal Pluralism – The Implications of Value Pluralism for Political Theory
and Practice, Cambridge: Cambridge University Press, 2002, pp. 11-22.
78
Uma cultura cívica comum é compatível com a integração das minorias culturais, pois a cultura cívica
é apenas o menor denominador comum das distintas mundividências no quadro de uma sociedade histórica
e geograficamente determinada, como defende SILVA DIAS, Augusto, Crimes culturalmente motivados
– O direito penal ante a “estranha multiplicidade” das sociedades contemporâneas, 1.ª reimp., Coimbra:
Almedina, 2018 (1.ª ed., 2016), pp. 148-167. A atenção do A. citado pelo tema da definição e limites da
sociedade plural e multicultural já vem de trás, como se pode ver em SILVA DIAS, Augusto, A relevância
jurídico-penal das decisões de consciência, Coimbra: Almedina, 1986, pp. 65-165; SILVA DIAS, Augusto,
“Problemas do direito penal numa sociedade multicultural: O chamado infanticídio ritual na Guiné-Bis-
sau”, RPCC 6 (1996), (pp. 209-232) pp. 221-232 e SILVA DIAS, Augusto, “Faz sentido punir o ritual do
fanado? Reflexões sobre a punibilidade da excisão clitoridiana”, RPCC 16 (2006), (pp. 1-52) pp. 18-52.
Sobre a abertura do direito penal às idiossincrasias culturais e os limites estabelecidos a essa abertura fun-
dados na ordem jurídico-constitucional, veja-se ainda BRITO NEVES, António, A circuncisão religiosa
como tipo de problema jurídico-penal, Coimbra: Almedina, 2014, pp. 261-269.
79
Como diz Maria Fernanda Palma: “[...] o Direito Penal tem como objeto específico o âmago do Direito
e a proteção dos valores da liberdade essenciais em Sociedade” (PALMA, Maria Fernanda, Direito
Constitucional Penal, Coimbra: Almedina, 2006: p. 47).
80
Entre nós, veja-se CASTANHEIRA NEVES, António, A crise atual da filosofia do Direito no contexto
da crise global da filosofia – Tópicos para possibilidade de uma reflexiva reabilitação, Coimbra: Universidade
de Coimbra / Coimbra Editora, 2003, pp. 92-96.
81
Sobre a questão da integração das minorias culturais, veja-se SILVA DIAS, Crimes culturalmente mo-
tivados, cit., 150, n. 411.
132 82
DUFF, Punishment, Communication, and Community, cit., p. 79-82.
Um novo paradigma moralista na definição material de crime

do processo penal é uma das sedes em que são reatualizados os temas que não devem
cair no esquecimento. A chamada à responsabilidade da pessoa através do processo
penal é uma das formas de enriquecimento e eventual revisão da tradição cultural, na
medida em que os argumentos da controvérsia judicial contribuam para a descoberta
de novas perspetivas sobre os problemas da moral social83.
Antony Duff defende que o ser chamado à responsabilidade (to be called to account)84
pressupõe que os que chamam (callers) e os que são chamados (called) sejam parte da
mesma comunidade de cidadãos85. Na verdade, o processo penal trata os arguidos como
membros da comunidade e sujeitos às mesmas leis que os seus concidadãos. Só assim
se percebe que os primeiros sejam chamados à responsabilidade e censurados em público
através da aplicação de uma pena se as imputações dirigidas contra eles se confirmarem
no final do julgamento criminal86. Como é possível que um procedimento com estas ca-
racterísticas ocorra numa república liberal? Só se acolhermos uma conceção da punição
que sirva para comunicar aos ofensores quais as consequências que merecem pelos crimes
que praticaram. Não se trata simplesmente de exprimir aos ofensores a finalidade da
punição, mas de integrá-los num procedimento comunicativo racional e recíproco que
poderá terminar na irrogação da pena e na respetiva execução, se for o caso87.
A finalidade comunicativa do direito penal conduz Duff à defesa de um modesto
moralismo jurídico (modest legal moralism)88. Duff defende que as razões para se
criminalizar uma qualquer espécie de conduta humana passam necessariamente por esta
constituir um mal de dimensão pública (public wrong). Os aspetos centrais do seu
argumento são os seguintes: (i) o reconhecimento de que o direito penal é uma instituição

83
SOUSA MENDES, Paulo de, “Über die philosophischen Wurzeln der Trennung zwischen Unrecht und
Schuld”, in: AA.VV., Gesamte Strafrechtswissenschaft in internationaler Dimension – Festschrift für
Jürgen Wolter zum 70. Geburtstag am 7. September 2013 (org.: Mark A. Zöller, Hans Hilger, Wilfried
Küper e Claus Roxin), Berlin: Duncker & Humblot, 2013, (pp. 271-289) pp. 287-289.
84
AA.VV., The Trial on Trial (org.: Antony Duff, Lindsay Farmer, Sandra Marshall e Victor Tadros), Vol.
II (Judgement and calling to account), Oxford / Portland, Oregon: Hart Publishing, 2006, pp. 3-10.
85
DUFF, R. A., “Responsibility, citizenship, and criminal law”, in: AA.VV., Philosophical Foundations
of Criminal Law (org.: R. A. Duff e Stuart P. Green), Oxford: Oxford University Press, 2011, (pp. 125-
148) p. 131 e HÖFFE, Kritik der Freiheit, cit., pp. 192-194.
86
DUFF, Philosophical Foundations of Criminal Law, cit., p. 75.
87
Fica-nos a impressão de que Duff acredita que o arguido teria de concordar com a sua punição no final
do julgamento se fossem improcedentes todas as defesas concretamente utilizadas. Nesta posição extremada
não podemos concordar com Duff, pois só as pessoas desprovidas de emoções e interesses individuais
estariam disponíveis para aceitar a sua própria condenação. Os cidadãos de carne e osso não são ascetas.
Mas também não é preciso esperar pela concordância do arguido com a sua condenação para se defender
a finalidade comunicativa do direito penal. Na verdade, a dimensão comunicativa do direito penal revela-
se na interação dos vários sujeitos processuais, podendo o arguido prestar declarações em qualquer momento
da audiência, embora o arguido interaja com os demais sujeitos processuais sobretudo por interposta pessoa
do seu mandatário judicial. Ora, a aceitação do resultado do julgamento ocorre quando a defesa técnica
prescinde de recorrer da decisão final ou então quando se esgotaram todas as vias de recurso e até mesmo
a possibilidade de se apresentar uma queixa individual diante do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.
DUFF, R. A., “Towards a Modest Legal Moralism”, Criminal Law and Philosophy 8 (2014), pp. 217-235.
88

Para um comentário ao texto de Duff, veja-se MEYER, F., “Towards a Modest Legal Moralism: Concept,
Open Questions, and Potential Extension”, Criminal Law and Philosophy 8 (2014), pp. 237-244. 133
Paulo de Sousa Mendes

política, e não moral, o que significa que todas as decisões de criminalização não começam
pela discussão do mal moral (wrongdoing)89, mas pela consideração das condutas que
se enquadram no domínio público da vida humana numa comunidade liberal; (ii) a
necessidade de se analisar os diferentes processos de criminalização, desde a criminalização
tal como é prevista e punida ‘nas leis’ (‘in the books’) até à criminalização tal como é
perseguida pelas autoridades e percecionada pelas vítimas ‘nas ruas’ (‘on the streets’) e,
por fim, (iii) a necessidade de se atender ao entrosamento e às diferenças essenciais entre
o direito penal e os outros modos de disciplina jurídica das relações interpessoais90.
Uma das dificuldades desta perspetiva está na inclusão dos não-cidadãos, algo
que Duff procura superar através de uma visão inclusiva da cidadania, abrangendo não
só as pessoas nascidas em território nacional, mas também os forasteiros que adquiram
a cidadania com relativa facilidade. Na falta de uma ordem cosmopolita, a cidadania
não pode, porém, deixar de ter uma vertente exclusiva. Esta vertente não será especialmente
preocupante para as pessoas que vivam prosperamente noutros países e que permanecem
em território nacional por períodos mais ou menos longos. As políticas criminais não
têm de lhes ser hostis, mas podem e devem tratar os hóspedes com respeito e consideração.
Naturalmente, haverá crimes que os forasteiros de passagem não poderão cometer, tais
como fraudes eleitorais ou fiscais. Mas poderão cometer a maior parte dos crimes,
aliás contra cidadãos e não-cidadãos. Neste caso, o aspeto a ressaltar é o tratamento
que lhes deve ser concedido pelo Estado, pois devem ser respeitados e protegidos, mas
também devem ser sujeitos às leis nacionais, incluindo as leis penais, embora por vezes
beneficiem de um tratamento mais favorável se o erro sobre a ilicitude não lhes for
censurável em função das diferenças culturais profundas91. Em qualquer caso, nem os
forasteiros que cometem crimes são tratados como inimigos, nem os cidadãos que
cometem crimes perdem o estatuto da cidadania. Nenhuma semelhança há, pois, com
o chamado direito penal do inimigo (Feindstrafrecht)92, nem com a retórica da guerra
ao crime (war on crime) e nem com a política criminal das três infrações e acabou
(three strikes and you are out)93. É verdade que as pessoas que constroem autênticas
carreiras criminais desafiam a conceção de um direito penal do cidadão, mas também

Sobre a caracterização do wrongdoing na doutrina anglo-saxónica, SILVA DIAS, Delicta in Se, cit., pp.
89

32-33.
90
DUFF, Criminal Law and Philosophy 8 (2014), cit., 217.
91
Sobre a falta de consciência da ilicitude não censurável, veja-se FIGUEIREDO DIAS, Jorge de, O
problema da consciência da ilicitude em direito penal, 5.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2000 (1.ª ed.,
1969), pp. 352-354 e PALMA, Maria Fernanda, “Exclusão do dolo por erro”, in: AA.VV., Direito Penal
– Fundamentos dogmáticos e político-criminais: Homenagem ao Prof. Peter Hünerfeld (org.: Manuel da
Costa Andrade, José de Faria Costa, Anabela Miranda Rodrigues, Helena Moniz e Sónia Fidalgo), Coimbra:
Coimbra Editora, 2013, (pp. 613-636) pp. 629-633.
92
Dado que as críticas ao direito penal do inimigo se tornaram amplamente conhecidas e praticamente
consensuais na doutrina juspenalista de vários países, incluindo Portugal e Brasil, não vale a pena discutir
o tópico no presente contexto. Na verdade, o inimigo recusa o diálogo e repudia a comunidade moral, mas
a comunicação não passa necessariamente pelo diálogo, nem falta ao inimigo a capacidade de entendimento
para perceber o que está envolvido no seu julgamento. Neste sentido, WATSON, Gary, Agency and Answerability
– Selected Essays, Oxford: Clarendon Press, 2004, p. 239.
134 93
DUFF, Criminal Law and Philosophy 8 (2014), cit., pp. 141-148.
Um novo paradigma moralista na definição material de crime

é certo que o estatuto da cidadania não é algo de que se possa falar em termos puramente
abstratos, pois é um feixe de direitos e deveres que pode sofrer limitações, tais como
a perda de certos benefícios sociais ou mesmo a privação da liberdade ambulatória
através da pena de prisão efetiva. Uma característica de um sistema penal liberal é,
porém, que nenhuma privação é ilimitada, nem nenhuma pena é indeterminada ou
vitalícia. Mais difícil é o problema suscitado pelas pessoas que praticam atos terroristas
ou, dada a dificuldade de definir rigorosamente o terrorismo, atos violentos com vista
a desestabilizar a vida pública. Duff defende que devem ser tratados não como criminosos,
mas como soldados inimigos numa guerra contra o terrorismo, devendo ser capturados
e detidos como prisioneiros de guerra enquanto a guerra durar. Os soldados inimigos
não são fora-da-lei, mas devem ser protegidos pelas leis da guerra94/95.
A comunidade dos cidadãos de Michael Pawlik é comparável à comunidade dos
cidadãos de Duff. Para Pawlik a tarefa fundamental do direito penal consiste em
assegurar que todos se possam conduzir segundo a sua própria autonomia e visão da
vida96. A prática de um crime corresponde à violação por parte do indivíduo do seu
dever de preservar o atual estado das liberdades (Freiheitlichkeit)97 e a punição retri-
bui-lhe precisamente a transgressão desse dever98. Pawlik fundamenta a responsabilidade
do sujeito no seu estatuto de cidadão (Bürger) a quem o Estado garante um espaço
de liberdades fundamentais. A corresponsabilidade pela manutenção desse estado de
liberdades recai sobre cada cidadão como um imperativo de razoabilidade (fairness)
que visa excluir qualquer espécie de aproveitamento ou parasitismo social. Se o
cidadão não cumprir o seu dever primário de cooperação (Mitwirkungspflicht), então
poderá ter de cumprir um dever secundário de tolerância da pena (Duldungspflicht).
A comunidade de Pawlik implica, pois, a sujeição à pena em caso de incumprimento

94
É certo que existe o difícil problema das medidas de segurança privativas de liberdade aplicadas aos
inimputáveis, mas é um problema que mereceria tratamento ex professo e aqui não será considerado.
95
Mas esta generalização de que as pessoas que praticam atos violentos com vista a desestabilizar a vida
pública devem ser consideradas como soldados inimigos não é totalmente convincente, desde logo porque
os agentes radicalizados ou devotos não são necessariamente estrangeiros, mas são frequentemente jovens
nascidos nos países que são alvo de atentados terroristas. Assim, é difícil de aceitar que não devam ser
tratados como cidadãos no quadro de um sistema penal liberal. Seja como for, a resposta é tudo menos
fácil, pois, como acentuou Maria Fernanda Palma, não sabemos de onde vem esta evolução do Direito
para um permanente estado de exceção perante o terrorismo, se do interior, do fracasso do próprio Estado
de Direito e dos modelos de fundamentação liberais, se do exterior, da evolução dos estados islâmicos.
Neste sentido, PALMA, Maria Fernanda, “Dos fundamentos da normatividade na filosofia ao problema
do enquadramento pelo Direito do terrorismo”, Anatomia do Crime 4 (2016), (pp. 23-29) p. 28.
PAWLIK, Michael, Das Unrecht des Bürgers – Grundlinien der Allgemeinen Verbrechenslehre, Tübingen:
96

Mohr Siebeck, 2012, p. 101 e PAWLIK, Michael, Ciudadanía y derecho penal – Fundamentos de la teoría
de la pena y del delito en un Estado de libertades, Barcelona: Atelier, 2016, pp. 36 e 85.
97
Pawlik faz parte do número crescente de AA. que vêm pondo em crise a doutrina do bem jurídico na
doutrina juspenalista alemã. Pawlik entende que a teoria do bem jurídico não é capaz de apreender, enquanto
danosidade social punível, a perturbação das relações entre as pessoas jurídicas (Rechtspersonen), pois
foca-se apenas na lesão de objetos externos socialmente valiosos, empobrecendo assim o horizonte do
direito penal como disciplina das relações entre as pessoas iguais em direitos e deveres (PAWLIK, Das
Unrecht des Bürgers, cit., pp. 127-151).
98
PAWLIK, Ciudadanía y derecho penal, cit., p. 81. 135
Paulo de Sousa Mendes

dos deveres dos cidadãos, se for o caso. Diferentemente de Duff, Pawlik não considera
o papel do processo penal no reforço dos laços de cidadania, mas limita-se, como nor-
malmente acontece na doutrina juspenalista alemã, a propor uma visão substantiva
dos fins das penas criminais99. Apresenta uma nova versão do retributivismo penal,
que, na prática, acaba confundindo-se com o preventismo geral, na modalidade da
prevenção geral positiva, algo que Pawlik reconhece e não desdenha100. Tanto assim
é que, segundo Pawlik, a punição por uma infração ao dever cívico de cooperar na
manutenção de um estado de liberdades preexistente e juridicamente configurado
(Daseinordnung von Freiheit) serve para reforçar a vontade da comunidade jurídica
de impor eficazmente o princípio da igualdade a todos os cidadãos. Ao propor uma
visão substantiva dos fins das penas criminais, mas não uma visão processual da res-
ponsabilidade criminal, Pawlik acaba menosprezando a atual discussão sobre a
necessidade de os fins das penas criminais serem interpretados à luz dos fins do
processo penal através das teorias comunicativas ou expressivas da pena criminal,
embora não rejeite a ideia geral, mas não especificamente jurídico-penal, de que o
ato punitivo tem necessariamente uma dimensão comunicativa101.
Afigura-se-nos que o aspeto mais promissor do pensamento de Pawlik é a sua
teoria das competências sociais dos cidadãos. Pawlik oferece-nos diferentes tipologias
de competências sociais (Zuständigkeitstatbestände), dessa forma procurando fundamentar
os vários tipos de obrigações jurídico-penalmente relevantes (Verpflichtungstatbestände).
Assim, Pawlik distingue os deveres de respeito para com as outras pessoas (Pflichten
zur Respektierung) e os deveres de garantir as condições reais fundamentais da existência
pessoal (Pflichten zur Gewährleistung grundlegender Realbedingungen personaler
Existenz)102. Pawlik expressa as competências sociais dos cidadãos através de deveres
jurídicos. Quanto aos deveres de respeito, a norma básica de comportamento interpessoal
obriga a deixar o outro tal como está, i.e., a não prejudicar o nível de integridade da
esfera jurídica atribuída a cada cidadão. Neste tocante, os cidadãos devem uns aos
outros uma espécie de co-humanidade negativa (negative Mitmenschlichkeit), a qual
é, aliás, uma condição necessária para que cada um possa realizar a sua liberdade in-
dividual103. Mas os deveres de respeito implicam ainda mandados de neutralização se
o cidadão, de forma imputável (zurechenbar), criar através da organização perigosa
da sua esfera de atuação uma ameaça a terceiros, o que explica, aliás, a posição de
garante por força de ingerência na esfera jurídica alheia. No contexto dos deveres de
respeito, a posição de garante também pode nascer das particulares exigências do tráfico

99
PAWLIK, Das Unrecht des Bürgers, cit., pp. 52-57.
100
PAWLIK, Das Unrecht des Bürgers, cit., pp. 82-90 e PAWLIK, Ciudadanía y derecho penal, cit., pp.
57 e 63-64. Assinalando a proximidade do retributivismo de Pawlik em relação às teorias preventivas
gerais, veja-se ROXIN, Claus, “Prevention, Censure and Responsibility: The Recent Debate on the Puposes
of Punishment”, in: AA.VV., Liberal Criminal Theory – Essays for Andreas von Hirsch (org.: AP Simester,
Antje du Bois-Pedain e Ulfrid Neumann), Oxford / Portland, Oregon: Hart Publishing, 2014, (pp. 23-42)
p. 24.
101
PAWLIK, Ciudadanía y derecho penal, cit., p. 62.
102
PAWLIK, Ciudadanía y derecho penal, cit., pp. 84-85.
136 103
PAWLIK, Ciudadanía y derecho penal, cit., pp. 86-87.
Um novo paradigma moralista na definição material de crime

jurídico ou mesmo da assunção efetiva (tatsächliche Übernahme) de comportamentos


concludentes que visem proteção da esfera jurídica alheia, neste último caso como de-
corrência de uma espécie de proibição de comportamentos autocontraditórios em
situação de perigo para a esfera jurídica de quem confiou na promessa de proteção104.
A par dos deveres de respeito surgem os deveres de fomento que implicam a melhoria
de um estatuto jurídico preexistente. Num Estado de direito liberal, a afirmação de que
existem deveres positivos com relevância penal carece de fundamentação jurídica
adicional. Tal afirmação não é problemática se os deveres positivos decorrerem de um
ato de vontade do obrigado (e.g., o consentimento)105, do desempenho de funções
públicas (e.g., o polícia, o guarda prisional)106 ou, ainda, de relações vitais (e.g., as
relações paterno-filiais, as matrimoniais, a comunidade de perigos)107. Já os deveres
independentes de um comportamento prévio que nasçam de uma situação de necessidade
de outro membro da comunidade jurídica são mais difíceis de fundamentar. Pawlik
oferece-nos o exemplo do dever genérico de promover o socorro em situação de
necessidade que ponha em perigo outra pessoa, o qual, se for incumprido, é punível
como crime de omissão de auxílio108 (unterlassene Hilfeleistung)109. Ou então o exemplo
do estado de necessidade agressivo justificante (Aggressivnotstand). No quadro de um
ordenamento jurídico-penal moderno, Pawlik não considera, porém, qualquer destes
dois exemplos um pecado contra o espírito da liberdade110.
O ponto mais delicado da argumentação de Pawlik prende-se com a fundamentação
dos deveres de fomento que surgem independentemente de um comportamento prévio
do cidadão, apenas por força de uma situação de necessidade de outro membro da co-
munidade jurídica. Basta recordarmos a genealogia da incriminação da omissão de
auxílio, que não faz parte da tradição do direito penal liberal, mas surgiu primitivamente
na Alemanha durante o período do nacional-socialismo como reação contra o indivi-
dualismo (Individualismus)111. Na generalidade dos países de common law ainda hoje
não existe um dever genérico de prestar auxílio a outra pessoa em perigo (duty to
rescue)112. Não admira, pois, que Pawlik tenha sentido a necessidade de dedicar um
artigo inteiramente à fundamentação da incriminação da omissão de auxílio113.

104
PAWLIK, Ciudadanía y derecho penal, cit., pp. 87-93.
PAWLIK, Das Unrecht des Bürgers, cit., pp. 219-237 e PAWLIK, Ciudadanía y derecho penal, cit.,
105

pp. 97-98.
106
PAWLIK, Michael, “Der Polizeibeamte als Garant zur Verhinderung von Straftaten”, ZStW 111 (1999),
(pp. 335-356) pp. 348-356 e PAWLIK, Ciudadanía y derecho penal, cit., pp. 98-100.
PAWLIK, Das Unrecht des Bürgers, cit., pp. 186-192 e PAWLIK, Ciudadanía y derecho penal, cit.,
107

pp. 100-101.
108
Veja-se o art. 200.º, n.º 1, CP.
109
Veja-se o § 323c StGB alemão.
110
PAWLIK, Das Unrecht des Bürgers, cit., pp. 190-192 e 249-254 e PAWLIK, 2016: 102-103.
111
SCHAFFSTEIN, 1935: 110.
FRISCH, 2016: 122-123, WITTMANN, 2017: 363-370 e AMBOS, 20202: 39-47. Entre nós, D’ÁVILA,
112

2005: 338-355.
PAWLIK, Michael, “Unterlassene Hilfeleistung: Zuständigkeitsbegründung und systematische Struktur”,
113

GA (1995), pp. 360-372. 137


Paulo de Sousa Mendes

Quanto à tarefa fundamental do direito penal, tendemos a concordar com Duff


e Pawlik, a saber: é assegurar que todos se possam conduzir segundo a sua própria
autonomia e visão da vida. Também concordamos com Pawlik quando reclama a
atualidade da clássica doutrina da imputação (Zurechnungslehre), embora evoque o
pensamento tutelar de Kant, em vez de Pufendorf114. Pena é que Pawlik não dedique
senão poucos parágrafos à noção de imputação, mas é relevante que diga que “[a]
pessoa é quem se qualifica no relacionamento social como autor de ações, as quais,
segundo a conhecida fórmula de Kant, são suscetíveis de imputação”115. Em Pawlik
falta a dimensão retórica e processual da imputação, mas ainda assim destaca-se o
papel da pessoa no tráfico jurídico como base da imputação. Em Duff a dimensão
retórica e processual da imputação está presente na visão comunicativa do direito
penal.

Conclusão

A sociedade democrática e liberal é uma comunidade, enquanto conjunto de


pessoas ligadas por um significativo conjunto de crenças. O direito penal é uma
estrutura dessa comunidade cuja função é a promoção das condições essenciais ao
desenvolvimento da personalidade humana no quadro de uma sociedade aberta,
inclusiva e plural, incluindo-se nessas condições o respeito pelas liberdades dos outros
cidadãos, mas não só. O fim do direito penal não se confunde com os fins das penas,
seja qual for a teoria dos fins das penas perfilhada. O direito penal é aplicado através
do processo penal. O fim do direito penal coincide com o do processo penal, enquanto
realização da justiça conectiva, sendo a irrogação concreta da pena apenas uma con-
sequência residual do julgamento. A justiça conectiva é um imperativo de recordação
dirigido a todos os membros de uma dada sociedade, se quisermos na forma de uma
pergunta: – De que coisas é que não nos devemos esquecer? A constituição de uma
tradição depende das respostas dadas a essa pergunta, que, no entanto, admitem
variações e flutuações em função da complexidade das situações da vida e da evolução
114
Schneewind escreveu que não encontrara provas de que Kant tivesse lido Pufendorf, embora se saiba
que Kant estava familiarizado com a filosofia desse período (SCHNEEWIND, J. B., The Invention of
Autonomy – A History of Modern Moral Philosophy, Cambridge: Cambridge University Press, 1998, pp.
509 e 520). É verdade que Kant não cita Pufendorf, mas a semelhança de muitos dos conceitos e argumentos
de Kant com as anteriores linhas de pensamento de Pufendorf deixa-nos sérias dúvidas sobre a possibilidade
de o primeiro não ter lido diretamente as obras do segundo. Demonstrando, por exemplo, que Kant tirou
de Pufendorf o conceito de sociabilidade (sociabilitas), veja-se HRUSCHKA, Joachim, “Auf dem Wege
zum Kategorischen Imperativ”, in: AA.VV., Metaphysik und Kritik – Festschrift für Manfred Baum zum
65. Geburtstag (org.: Sabine Doyé, Marion Heinz, Udo Rameil e Holger Kaletha), Berlin / New York:
Walter de Gruyter, 2004, (pp. 167-181) p. 168. Sobre o conceito de sociabilidade, veja-se SILVA DIAS,
Delicta in Se, cit., pp. 92-93, n. 214.
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Em língua original: “Person ist, wer im sozialen Verkehr als Urheber von Handlungen gilt, wessen
Verhalten also nach der bekannten Formel Kants einer Zurechnung fähig ist” (PAWLIK, Das Unrecht des
Bürgers, cit., pp. 141-142, destaques no original). No mesmo sentido, veja-se SEELMANN, Kurt, “Does
Punishment Honour the Offender?”, in: AA.VV., Liberal Criminal Theory – Essays for Andreas von Hirsch
(org.: AP Simester, Antje du Bois-Pedain e Ulfrid Neumann), Oxford / Portland, Oregon: Hart Publishing,
138 2014, (pp. 111-121) pp. 117-119.
Um novo paradigma moralista na definição material de crime

dos pontos de vista relevantes. Mas a justiça realizada através do processo penal é
apenas uma das sedes em que são reatualizados os temas que não devem cair no es-
quecimento (por exemplo, a escola também desempenha uma função de educação
para a cidadania). A chamada à responsabilidade através do julgamento é a forma por
excelência do enriquecimento e eventual reforma da tradição cultural, na medida em
que os argumentos da disputa adversarial contribuem para a descoberta de novas pers-
petivas sobre os problemas da moralidade social. Enquanto arguido, o indivíduo não
é estranho ao facto que cometeu e é por isso que é chamado a responder. A função do
direito penal integral (material, processual e probatório) é, pois, contribuir decisivamente
para a constituição de uma memória conectiva dinâmica que salvaguarde as condições
de florescimento da personalidade dos indivíduos em sociedade. Não admira assim
que as incriminações obedeçam a critérios de legitimação que participam dessa função
de edificação da memória conectiva, assumindo cada incriminação um cunho mo-
destamente moralista, na esteira de uma ética das virtudes.

In memoriam Professor Doutor Augusto Silva Dias

Várias vezes dou comigo a pensar que lhe podia telefonar, que preciso de falar
com ele, que preciso de um conselho, de uma opinião ou simplesmente de uma conversa
de rotina. Levo algumas frações de segundo a mentalizar-me de que isso já não é
possível. Demora até que as lembranças vivas de uma pessoa querida passem para
um outro lado da mente, ou então talvez para o lado do coração. É então que passamos
a sentir que essas pessoas nos acompanham como se estivessem dentro de nós,
dando-nos serenidade, lucidez, resiliência e, oxalá, bondade. Demora, mas vou
começando a sentir isso com o Augusto.
Quando me despedi dele pela última vez não sabia que era a despedida. Disse-lhe
adeus, como sempre. Uma frase simples. Escreveu Pessoa, num papelinho, na véspera
de partir: “I know not what tomorrow will bring”. Toda a metafísica do mundo nessa
frase, ao ser escrita no umbral do destino. Mas só se percebe isso depois de tudo
acontecer. Sinto, pois, que me despedi do Augusto com um simples “Adeus Augusto,
fica bem e falamos em breve, agora que conseguimos terminar a época de exames”.

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