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SUMÁRIO: Introdução; 1. Análise crítica da teoria do bem jurídico; 2. Análise crítica da teoria
do dano; 3. Análise crítica da teoria funcionalista; 4. Apresentação da teoria democrática mitigada
pela proporcionalidade; 5. Defesa de um modesto moralismo penal; Conclusão.
Introdução
*
Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
1
Para uma visão do estado da discussão sobre os critérios legítimos da criminalização de condutas humanas
numa perspetiva comparada anglo-americana e alemã, veja-se VON HIRSCH, Andrew, “Der Rechtsgutsbegriff
und das ‘Harm Principle’”, GA 149 (2002), (pp. 2-14) pp. 3-7; ANDROULAKIS, Nikolaos K., “Abschied
vom Rechtsgut: Einzug der Moralität? Der ‘Entrüstungsprinzip’ (zu der Entscheidung BVerfGE 120, 224)”,
in: AA.VV., Festschrift für Winfried Hassemer (org.: Felix Herzog e Ulfrid Neumann), Heidelberg: C. F.
Müller, 2010, (pp. 271-286) pp. 276-277; HÖRNLE, Tatjana, “‘Rights of Others’ in Criminalisation Theory”,
in: AA.VV., Liberal Criminal Theory – Essays for Andreas von Hirsch (org.: AP Simester, Antje du Bois-
Pedain e Ulfrid Neumann), Oxford / Portland, Oregon: Hart Publishing, 2014, (pp. 169-185) pp. 169-185
e AMBOS, Kai, “Liberal Criminal Theory: Ansätze eines angloamerikanisch-deutschen Dialogs zu Ehren
von Andrew (Andreas) von Hirsch”, GA 6 (2017), (pp. 297-323) pp. 308-310.
2
MARTINELLI, João Paulo Orsini / LOBATO, José Danilo Tavares / SANTOS, Humberto Souza, “Harm
principle e seus reflexos no direito penal: Uma leitura a partir de Joel Feinberg”, RBCCrim 115 (2015),
(pp. 255-290) pp. 255-290. 115
Paulo de Sousa Mendes
3
AZEVEDO, André Mauro Lacerda, Harm Principle – Fundamentos, Validade e Limites da Criminaliza-
ção, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020, pp. 93-97.
4
GRECO, Luís, “Tem futuro a teoria do bem jurídico? Reflexões a partir da decisão do Tribunal Consti-
tucional Alemão a respeito do crime de incesto (§ 173 Strafgesetzbuch)”, RBCC (2010), (pp. 165-185) p.
172.
5
JAKOBS, Günther, “Was schützt das Strafrecht: Rechtsgüter oder Normgeltung?”, in: AA.VV., Aktualität
und Entwicklung der Strafrechtswissenschaft – Festschrift für Seiji Saito zum 70. Geburtstag (org.:
Takayuki Shiibashi), Tokyo: Shonzansha, 2003, (pp. 760-779) pp. 760-779.
6
LAGODNY, Otto, Strafrecht vor den Schranken der Grundrechte, Tübingen: Mohr, 1996, p. 144 e
LAGODNY, Otto, “Basic rights and substantive criminal law: The incest case”, University of Toronto Law
Journal 4 (2011), pp. 761-781.
7
APPEL, Ivo, Verfassung und Strafe – Zu den verfassungsrechtlichen Grenzen staatlichen Strafens, Berlin:
Duncker & Humblot, 1998, p. 390.
8
ROXIN, Claus, “O conceito de bem jurídico como padrão crítico da norma penal posto à prova” (trad.
por Susana Aires de Sousa), RPCC 1 (2013), pp. 33-43. Mas o próprio Roxin abre agora caminho à con-
formidade constitucional de normas incriminadoras que não tutelam qualquer bem jurídico, tudo depen-
dendo, a final, da sua conformidade à luz do princípio da proporcionalidade, conforme nota MIRANDA
RODRIGUES, Anabela, “Direito Penal e Constituição: O que resta do conceito de bem jurídico-penal?”,
in: AA.VV., Homenagem ao Professor Doutor Germano Marques da Silva (coord.: José Lobo Moutinho,
Henrique Salinas, Elsa Vaz Sequeira e Pedro Garcia Marques), Coimbra: Almedina, 2020, (pp. 149-165)
p. 162.
9
GRECO, RBCC (2010), cit., pp. 181-182.
FIGUEIREDO DIAS, Jorge de, “Das ‘Rechtsgutstrafrecht’ als verfassungsrechtliches Prinzip unter dem
10
116 Blickwinkel der Rechtsprechung des portugiesischen Verfassungsgerichts”, GA 4 (2014), pp. 218-219.
Um novo paradigma moralista na definição material de crime
Manuel da Costa Andrade11, Maria Fernanda Palma12 e Augusto Silva Dias13, entre
outros. Mas é uma discussão que está ao rubro.
Grande parte da força dos argumentos dos defensores da doutrina do bem jurídico
parece basear-se na convicção de que o bem jurídico corresponderia a uma doutrina
liberal e que, portanto, seria a herdeira natural das grandes batalhas do Iluminismo
penal. Assim, a doutrina do bem jurídico relacionar-se-ia com a promoção da máxima
liberdade de cada um, desde que compatível com a liberdade dos outros. Só que isso
não corresponde à origem, nem à evolução histórica da doutrina do bem jurídico. A
doutrina do bem jurídico teve origem no utilitarismo e não no liberalismo14. A
circunstância de alguns filósofos utilitaristas serem também liberais não nos deve
fazer confundir essas duas linhas da filosofia ética e política. Basta aqui destacar que
a doutrina do bem jurídico não atribui prioridade à liberdade relativamente a outros
interesses.
O conceito de bem jurídico remonta a J. M. F. Birnbaum (1792-1877), embora
ele não tenha criado a própria expressão bem jurídico, mas usado várias expressões
mais ou menos equivalentes, tais como o objeto dos nossos direitos (Gegenstand
unseres Rechts)15. A lesão de bens jurídicos opunha-se à compreensão tradicional do
ilícito como lesão de direitos subjetivos. Era, pois, uma mudança da visão liberal do
ilícito como desrespeito pela vontade moral da vítima em prol de uma visão utilitarista
da lesão de interesses tangíveis, embora Birnbaum agregasse no seu pensamento as
influências mais díspares, desde os restos do jus-racionalismo iluminista, passando
pelo hegelianismo e o historicismo, até ao positivismo legalista. À conta de tantas
contradições, há quem chegue mesmo a interrogar-se sobre se o estudo de Birnbaum
não teria acabado por desaparecer para sempre, caso Karl Binding (1841-1920) não
o tivesse citado16. Seguramente, a referida deslocação da tónica tinha um sentido
11
COSTA ANDRADE, Manuel da, “Sobre a reforma do Código Penal português: Dos crimes contra as
pessoas, em geral e das gravações e fotografias ilícitas em particular”, in: AA.VV., Estudos Comemorativos
do 150.º Aniversário do Tribunal da Boa-Hora, Lisboa: Ministério da Justiça, 1995, (pp. 77-120) pp. 82-92.
12
PALMA, Maria Fernanda, “Conceito material de crime e reforma penal”, Anatomia do Crime 0 (2014),
(pp. 11-23) pp. 12-15.
13
SILVA DIAS, Augusto, “Delicta in Se” e “Delicta Mere Prohibita” – Uma análise das descontinuidades
do ilícito penal moderno à luz da reconstrução de uma distinção clássica, Coimbra: Coimbra Editora,
2009, pp. 641-677.
14
SOUSA MENDES, Paulo de, O torto intrinsecamente culposo como condição necessária da imputação
da pena, Coimbra: Coimbra Editora, 2007, pp. 332-343; GRECO, Luís, Lebendiges und Totes in Feuerbachs
Straftheorie, Berlin: Duncker & Humblot, 2009, p. 120 e GRECO, RBCC (2010), cit., pp. 175-176, n. 20.
15
BIRNBAUM, Johann Michael Franz, “Über das Erfordernis einer Rechtsverletzung zum Begriff des
Verbrechens mit besonderer Rücksicht auf den Begriff der Ehrenkränkung”, Archiv des Criminalrechtes-
NF 15 (1834), (pp. 149-194) p. 172.
16
AMELUNG, Knut, Rechtsgüterschutz und Schutz der Gesellschaft – Untersuchungen zum Inhalt und
zum Anwendungsbereich eines Strafrechtsprinzips auf dogmengeschichtlicher Grundlage – Zugleich ein
Beitrag zur Lehre von der “Sozialschädlichkeit” des Verbrechens, Frankfurt/M.: Athenäum, 1972, p. 45. 117
Paulo de Sousa Mendes
antiliberal, até porque a atenção dada agora aos objetos dos direitos levava à marginalização
dos sujeitos, enquanto vítimas individuais. Aliás, a marginalização dos sujeitos era
mesmo a intenção de Birnbaum, de maneira a justificar, contra a perspetiva
liberal-individualista e kantiana de P. J. A. Feuerbach (1775-1833), a inclusão no
sistema do direito penal de verdadeiros crimes sociais (em vez de delitos de polícia)
contra os interesses supra-individuais (e.g., os crimes contra o Estado, contra a religião
ou contra a moralidade social), a par dos crimes naturais contra a esfera das liberdades
individuais17.
Foi só a partir dos anos setenta do século XIX, com a publicação por Binding
do seu primeiro volume acerca Das normas e da sua violação (Die Normen und ihre
Übertretung), em 187218, que o conceito de bem jurídico, incluindo o próprio termo
Rechtsgut, se estabeleceu com caráter firme como novo paradigma dos valores de re-
ferência da doutrina do direito penal alemão19. Em Binding, os bens jurídicos eram
as realidades do mundo exterior que, aos olhos do legislador, tinham valor como
condição de uma vida sã de toda a comunidade jurídica e cuja salvaguarda era garantida
pelo legislador através das normas jurídicas vinculativas. Binding foi o representante
do mais estrénuo positivismo jus-legalista (i.e., o império das valorações do legislador)
e jus-científico (i.e., a autossuficiência da teoria das normas). A doutrina do bem
jurídico consumava assim o afastamento dos precedentes arquétipos liberais, precisamente
porque o legislador era livre de selecionar do mundo das pessoas e das coisas aquilo
que mereceria a coroação de bem-do-Direito e nada lhe impunha que prezasse exclu-
sivamente a esfera das liberdades individuais.
Embora tenha assimilado a substituição dos direitos subjetivos pelos bens jurídicos,
von Liszt foi um adversário da definição proposta por Binding. Segundo von Liszt, os
bens jurídicos eram interesses vitais do homem ou da sociedade que o legislador
protegeria, em vez de serem os bens proclamados pelo legislador na sua torre de marfim.
Nas palavras de von Liszt: “Aos interesses juridicamente protegidos pomos o nome
de bens jurídicos”20. E ainda: “O conceito de bem jurídico de Binding é um conceito
fictício, quer dizer: uma palavra sem conteúdo”21. Mas a polémica de von Liszt com
Binding era mais aparente do que real. Caso a ideia de von Liszt fosse levada às últimas
consequências, então ter-se-ia ganhado a possibilidade de criticar, a partir de uma
perspetiva sociológica, a escolha dos bens jurídicos feita pelo legislador. Acresce que
o conteúdo do ilícito penal teria de ser retirado diretamente da realidade social, justamente
porque os interesses existiriam antes da própria lei. Na verdade, von Liszt estabeleceu
17
AMELUNG, Rechtsgüterschutz, cit., pp. 43-51.
BINDING, Karl, Die Normen und ihre Übertretung – Eine Untersuchung über die Rechtmässige Handlung
18
und die Arten des Delikts, vol. I, 4.ª ed., Leipzig: Felix Meiner, 1922 (1.ª ed., 1872), pp. 66-67.
19
COSTA ANDRADE, Manuel da, Consentimento e acordo em direito penal – Contributo para a funda-
mentação de um paradigma dualista, 1.ª reimp., Coimbra: Coimbra Editora, 2004 (1.ª ed., 1991): pp. 61
e 64-76.
VON LISZT, Franz, “Rechtsgut und Handlungsbegriff im Bindingschen Handbuche – Ein kritischer
20
Beitrag zur juristischen Methodenlehre”, agora in: Strafrechtliche Aufsätze und Vorträge, Vol. I (1875-1891),
Berlin: Walter de Gruyter, 1970 (fac-símile da ed. de Berlin: J. Guttentag, 1905), (pp. 212-251) p. 223.
118 21
VON LISZT, Strafrechtliche Aufsätze und Vorträge, I, cit., p. 224.
Um novo paradigma moralista na definição material de crime
22
COSTA ANDRADE, Consentimento, cit., p. 71.
23
DAHM, Georg / SCHAFFSTEIN, Friedrich, Liberales oder autoritäres Strafrecht? Hamburg: Hanseatische
Verlagsanstalt, 1933; DAHM, Georg, Nationalsozialistische und faschistisches Strafrecht, Berlin: Junker
und Dünnhaupt, 1935 e DAHM, Georg / SCHAFFSTEIN, Friedrich, Methode und System des neuen
Strafrechts – Zwei Abhandlungen, Berlin: Walter de Gruyter, 1938.
24
Para uma análise crítica do direito penal nacionalista-socialista, seus antecedentes históricos e suas ex-
pressões atuais, veja-se AMBOS, Kai, Direito Penal Nacional-Socialista – Continuidade e radicalização
(prólogo de R. A. Duff, trad. de Paulo César Busato e rev. de Pablo Alflen e Kai Ambos), São Paulo: Tirant
lo Blanch, 2020, pp. 63-67.
25
AMBOS, Direito Penal Nacional-Socialista, cit., p. 63.
26
Enquanto defensor do Führerprinzip e destacado representante da escola de Kiel, veja-se LARENZ,
Karl, Deutsche Rechtserneuerung und Rechtsphilosophie, Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1934,
p. 34. Em jeito de retratação posterior, veja-se a “Carta de Karl Larenz a Wolfgang Schild (26.7.91)”, que
foi reproduzida em fac-símile e traduzida por SOUSA MENDES, Paulo de, O torto intrinsecamente
culposo..., cit., pp. 523-527.
27
SILVA DIAS, Augusto, “A tutela do ofendido e a posição do assistente no processo penal português”,
in: AA.VV., Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais (coord.: Maria Fernanda
Palma), Coimbra: Almedina, 2004, (pp. 55-65) p. 58. 119
Paulo de Sousa Mendes
STERNBERG-LIEBEN, Detlev, “Bien jurídico, proporcionalidad y libertad del legislador penal”, in:
28
AA.VV., La Teoría del Bien Jurídico – Fundamento de la Legitimación del Derecho Penal o Juego de
Abalorios Dogmático? (org.: Rafael Alcácer Guirao, María Martín Lorenzo e Íñigo Ortiz de Urbina Gimeno),
Madrid / Barcelona / Buenos Aires / São Paulo: Marcial Pons, 2016, (pp. 101-122) p. 107.
29
NOVERSA LOUREIRO, Flávia, “Direito Penal da Concorrência? Reflexão a propósito de uma proposta
de criminalização”, in: AA.VV., Novos Estudos sobre Law Enforcement, Compliance e Direito Penal
(coord.: Maria Fernanda Palma, Augusto Silva Dias e Paulo de Sousa Mendes), Coimbra: Almedina, 2020,
120 (pp. 149-176) pp. 163-164.
Um novo paradigma moralista na definição material de crime
O princípio da ofensividade foi avançado pelo filósofo John Stuart Mill (1806-1873),
no opúsculo Sobre a Liberdade (On Liberty), de 185931. E tornou-se no principal
argumento usado no Relatório Wolfenden (Wolfenden Report), de 1957, contra a in-
criminação da homossexualidade e da prostituição em Inglaterra e no País de Gales:
Mill era liberal, mas era também utilitarista. Enquanto discípulo de Jeremy
Bentham (1748-1832), Mill achava que a diferença entre os domínios da moralidade
e da política pública dependia tão-somente da maior ou menor quantidade de pessoas
expostas aos efeitos da ação humana. De resto, ambos os domínios tratavam da mul-
tiplicação da felicidade dos indivíduos:
30
SILVA DIAS, Delicta in Se, cit., pp. 322-324.
31
STUART MILL, John, Sobre a Liberdade, Coimbra: Edições 70, 2006.
32
NATSCHERADETZ, Karl Prelhaz, O direito penal sexual – Conteúdo e limites, Coimbra: Almedina,
1985, p. 23. 121
Paulo de Sousa Mendes
Com base no pensamento de Mill, diz-se muitas vezes que o direito penal não
deve intervir na vida privada dos cidadãos. Acrescenta-se que, se o fizesse, estaria a
ser moralista por querer condicionar a forma como cada um decide viver a sua vida,
ademais em situações em que não há dano para outrem. Ou seja, o direito penal estaria
a impor padrões de moralidade social aos cidadãos, cuja autonomia e liberdade, pelo
contrário, deveria ser preservada, a menos que estivessem em causa interesses alheios.
Vale por dizer que o direito penal não deve ser moralista. Mas é preciso desconfiar
do que isso quer dizer, em vez de se concordar imediatamente, como se o moralismo
fosse uma posição antiliberal.
Greco, por exemplo, define o que se deve entender por moralismo:
Mas o que se nota aqui é uma hipérbole, a saber: a ideia de que o consequencialismo,
mormente o utilitarismo, não é uma filosofia moral, juntamente com uma rejeição de
outras filosofias morais. No fundo, é a proclamação do monopólio moral do utilitarismo,
que triunfaria de tal maneira que deixaria de ser reconhecer a si mesmo como uma
filosofia moral, a par de outras. É o culminar de uma evolução materialista do mundo,
que começou muito atrás.
A tradição filosófica reconhece vários tipos de bens (os bens do espírito, os bens
do corpo e os bens exteriores), mas um só soberano bem (ou, o que é o mesmo, a
questão referente ao fundamento da moralidade). Dizia o filósofo e orador Marco
Túlio Cícero (106-43 a.C.) que o soberano bem (finis, summum bonum ou ultimum
bonorum) era coisa controversa acerca da qual os sábios discordavam absolutamente
uns dos outros (De finibus 1.4.11 e De legibus 1.20.52)35. Talvez a divergência entre
doutores não fosse realmente absoluta, porquanto as doutrinas epicurista, estoica36 e
33
STUART MILL, John, Utilitarismo (trad. por Eduardo Rogado Dias e prefácio de Vieira de Almeida),
Coimbra: Atlântida, 1961, pp. 36-37. Em língua original, STUART MILL, John, Utilitarianism (org.:
Roger Crisp, com base no texto da 4.ª ed. de 1871, segundo a ed. original no Fraser’s Magazine 64, 1861),
4.ª ed., Oxford / New York: Oxford University Press, 2001 (1.ª ed., 1998), pp. 65-66.
34
GRECO, RBCC (2010), cit., p. 172, n. 10.
35
CÍCERO, Des termes extrêmes des biens et des maux (texto estabelecido e trad. por Jules Martha), 2.ª
reimp., Paris: Les Belles Lettres, 1999 (5.ª ed. rev., corrig. e acresc., 1989), p. 12 e CÍCERO, Traité des
lois (texto estabelecido e trad. por Georges de Plinval), Paris: Les Belles Lettres, 1959, p. 30.
O estoicismo foi a ética imperante numa época, a Era Helenística (desde a morte de Alexandre Magno,
36
122 em 323 a.C., até à morte de Cleópatra, em 31 a.C.), de expansão da civilização grega a toda a região do
Um novo paradigma moralista na definição material de crime
Mediterrâneo Oriental, mas também de contactos intercivilizacionais. Os tempos eram, pois, de um cos-
mopolitismo remoinhoso em torno da Hélade, manifestando-se assim a resiliência da cultura grega. O
estoicismo viria a ser também a filosofia oficial dos Romanos.
37
Muitos liberais denunciam a inconsistência da relação entre o utilitarismo e o liberalismo no ensaio On
liberty, de Mill, publicado em 1859.
38
BENTHAM, Jeremy, A Fragment on Government (org.: J. H. Burns e H. L. A. Hart, com introd. por
Ross Harrison), Cambridge: Cambridge University Press, 1988, p. 116: “[the principle of utility] that was
the name adopted from David Hume”.
39
A Ética a Nicómaco (Ethica Nicomachea) não começa pela proclamação de que todo o ser (incluindo o
ser humano) tende para aquilo que naturalmente é bom para si, mas começa dizendo que a ação moral
tende para um bem como o seu fim. Segundo Aristóteles (384-322 a.C.), a ação moral baseia-se na experiência
humana e na análise da situação moral. Esta análise da situação moral opõe-se, pois, à mera satisfação do
programa da natureza. ARISTÓTELES, L’éthique à Nicomaque (trad. e comentário por René Antoine
Gauthier e Jean Yves Jolif), T. I.-1., 2.ª ed. com nova introdução, Louvain: Publications Universitaires /
Paris: Beatrice-Nauwelaerts, 1970 (1.ª ed., 1958-59), p. 17. 123
Paulo de Sousa Mendes
SOUSA E BRITO, José de, “O princípio da utilidade, razão e Direito”, Filosofia – Publicação Periódica
40
da Sociedade Portuguesa de Filosofia, Vol. IV, n.os 1/2 (1990), (pp. 33-51) p. 35.
41
BURNS, J. H., “Bentham and the French Revolution”, Transactions of the Royal Historical Society 16
(1966), (pp. 95-114) p. 112.
42
KANT, Immanuel, “Metaphysische Anfangsgründe der Rechtslehre”, agora in: Kant’s Gesammelte
Schriften (org.: Königliche Preußische Akademie der Wissenschaften), Vol. VI, 1.ª subdiv.: Werke, T. VI:
Die Metaphysik der Sitten, Berlin: Georg Reimer, 1914, (pp. 203-493) p. 228. Os Princípios Metafísicos
da Doutrina do Direito (Metaphysische Anfangsgründe der Rechtslehre), de 1797 (2.ª ed., 1803), consti-
124 tuem a primeira parte autónoma da Metafísica dos Costumes (Metaphysik der Sitten).
Um novo paradigma moralista na definição material de crime
categórico, que diz o seguinte: “Age segundo uma máxima pela qual possas querer
que ela se torne uma lei universal”43. Kant leva a cabo um projeto de maximização
da razão, determinando através dela o conjunto das condições de possibilidade do
sujeito no seu todo, de modo a articular o reino da natureza e o reino da liberdade.
Há quem queira, ainda assim, conciliar Kant com os utilitaristas44. Mas a procura de
um menor denominador comum às éticas deontológicas (paradigmaticamente: o
kantismo) e consequencialistas (paradigmaticamente: o utilitarismo) implica desca-
racterizá-las a ponto de as tornar irreconhecíveis, para além de inócuas45.
As éticas deontológicas e as éticas teleológicas, especialmente a ética das virtudes
da tradição aristotélica46, estas sim, situam-se do mesmo lado. Mas o problema do
dever autolegislado reside na ilusão de poder haver máximas para todos os dilemas
morais, quando, na realidade, Kant acabava ilustrando o seu pensamento através de
máximas muito simples e inadequadas a satisfazer os desafios morais complexos, não
obstante a sua crença na justificação racional pura da ação moral47. Pelo contrário, a
razão prática aristotélica é ágil, pois é um pensamento orientado pela vontade de se
aperfeiçoar como pessoa praticando o bem, um bem que não é alheio às consequências
da ação moral. A razão prática aristotélica corresponde a uma ética da situação, sem
respostas de princípio para os casos particulares48, mas que, apesar disso, serve para
43
Em língua original (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, 1785): “[H]andle nur nach derjenigen
Maxime, durch die du zugleich wollwn kannst, daß sie ein allgemeines Gesetz werde” (KANT, Die Metaphysik
der Sitten, cit., p. 421).
HARE, R. M., “Could Kant have been a Utilitarian?”, agora in: Sorting Out Ethics, Oxford: Oxford
44
49
Anscombe falava na irrelevância prática do conceito de ação (in)justa na ética de Aristóteles, uma vez que
acabava por relevar somente a noção de homem (in)justo e, quem sabe, justos seriam aqueles que realizassem
sempre e só ações justas. Assim, ANSCOMBE, Gertrude Elisabeth Margaret, “Modern Moral Philosophy”,
agora in: AA.VV., Virtue Ethics (org.: Roger Crisp e Michael Slote), Oxford: Oxford University Press, 2000
(1.ª ed., 1997), (pp. 26-44) p. 43. É preciso, porém, explicar que Aristóteles estava claramente interessado no
valor das ações morais concretamente consideradas. Tal é demonstrado por Bostock: “[Aristóteles] chama a
atenção para o facto de a noção de [vida da parte racional da alma, abrangendo não só a parte que é propriamente
capaz de raciocínio ou entendimento, mas também a parte que contém os desejos ou as emoções que podem
ser controlados pela razão] poder ser entendida de duas maneiras: ou como uma disposição para fazer certas
coisas (que se mantém mesmo quando estamos a dormir, uma vez que a pessoa entregue ao sono está viva),
ou como a atividade (energeia) pela qual se manifesta a referida disposição. Aristóteles queria ser interpretado
da segunda maneira: a vida que corresponde à função do homem é para ser entendida como uma atividade,
e não como uma simples disposição”. Em língua original: “[Aristotle] remarks that the notion of [a life of the
part of the soul that has reason, including both the reasoning or thinking part proper, and the part containing
desires and emotions that can be controlled by it] can be taken in two ways, either as the disposition to do
certain things (which one retains even when asleep – for a sleeper is still alive), or as the ‘activity’ (energeia)
that manifests that disposition. He wishes to be understood in the second way: the life that is man’s ‘function’
is to be understood as an activity, and not a mere disposition” (BOSTOCK, David, Aristotle’s Ethics, Oxford:
Oxford University Press, 2000: p. 19). No mesmo sentido, DORIS, John M., Lack of Character – Personality
and Moral Behavior, Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 17.
Um exemplo atual de aplicação da ética das virtudes pode ver-se em HURSTHOUSE, Rosalind, “Virtue
50
Theory and Abortion”, agora in: AA.VV., Virtue Ethics (org.: Roger Crisp e Michael Slote), Oxford: Oxford
126 University Press, 2000 (1.ª ed., 1997), pp. 217-238.
Um novo paradigma moralista na definição material de crime
A sociedade democrática e liberal não se mantém por inércia. É uma obra coletiva
que depende do contributo dos cidadãos quer no domínio das relações sociais, quer
no domínio da vida privada. O liberalismo não consente uma intervenção no domínio
da vida privada que transcenda o fomento das condições de florescimento da personalidade
humana, o que corresponde ao supremo bem que cada um busque para si mesmo, mas
com respeito pelos demais. Mas resta espaço para uma chamada de atenção, uma “co-
tovelada suave” (nudging), à maneira do paternalismo libertário51. Afinal, é isso que
o Estado faz para proteger os cidadãos diante do risco de erros crassos na condução
das suas vidas autónomas e livres. É uma missão das instituições públicas, desde as
escolas aos tribunais. O próprio direito penal participa dessa missão. O direito penal
é uma instituição que promove as condições necessárias ao desenvolvimento autónomo
e livre da personalidade humana no quadro de uma sociedade aberta ou comunidade
liberal52. É isso que legitima que se discuta a criminalização de factos tais como a
eutanásia, o auxílio ao suicídio, o lenocínio, a posse de material pornográfico com
representação realista de menor, a ofensa à memória de pessoa falecida, a omissão
de auxílio, a negação ou banalização grosseira de crimes de genocídio, guerra ou
contra a paz e a humanidade e os maus tratos a animais ou o abandono de animais de
companhia, entre outros53.
“A experiência tem revelado que os atuais regimes de sanções não têm sido
suficientes para garantir a observância absoluta da legislação sobre proteção
do ambiente. Esta observância pode e deverá ser reforçada através da previsão
de sanções penais que reflitam uma desaprovação social qualitativamente
51
O A. de referência do paternalismo libertário é SUNSTEIN, Cass R., Why Nudge? The Politics of
Libertarian Paternalism, New Haven / USA: Yale University Press, 2015.
Uma comunidade liberal como a que defende DUFF, R. A., Punishment, Communication, and Community,
52
Oxford: Oxford University Press, 2001, pp. 35-73. Duff acredita que não há contradição em defender-se
um comunitarismo liberal ou um liberalismo comunitarista. Naturalmente, é uma afirmação discutível.
Para uma visão abrangente dos pontos de tensão entre o liberalismo e o comunitarismo, veja-se KYMLICKA,
Will, Liberalism, Community and Culture, 1.ª ed. Pbk., Oxford: Oxford University Press, 1991 (1.ª ed.,
1989), pp. 253-258; MULHALL, Stephen / SWIFT, Adam, Liberals and Communitarians, Oxford, UK /
Cambridge, USA: Blackwell, 1992, pp. 289-294 e HÖFFE, Otfried, Kritik der Freiheit – Das Grundproblem
der Moderne, München: Beck, 2015, pp. 178-194.
53
Os crimes elencados fazem parte do atual Código Penal português. 127
Paulo de Sousa Mendes
54
Nenhum outro sociólogo teve tanta influência no pensamento jurídico nosso contemporâneo como Ulrich
Beck (1944-2015). Em especial, a política ambiental europeia inspirou-se nas ideias de Beck. A legislação
ambiental da União Europeia e dos Estados-Membros é, em alguma medida, tributária dessa fonte de
inspiração, sobretudo na parte relativa ao direito penal. O conceito de sociedade de risco (Risikogesellschaft)
que Beck apresentou, pela primeira vez, em 1986 tem servido de pano de fundo para a declaração de uma
espécie de estado de emergência ambiental. Tal declaração amparou a convocação do direito penal para
assumir o papel de guardião da política ambiental europeia. Neste sentido, BECK, Ulrich, Risikogesellschaft
128 – Auf dem Weg in eine andere Moderne, 23.ª ed., Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2015 (1.ª ed., 1986).
Um novo paradigma moralista na definição material de crime
55
MIRANDA RODRIGUES, Anabela, “Comentário ao artigo 83.º do TFUE”, in: AA.VV., Tratado de
Lisboa anotado e comentado (org.: Manuel Lopes Porto e Gonçalo Anastácio), Coimbra: Almedina, 2012,
(pp. 435-438) p. 437.
56
FISCHER, Thomas, Strafgesetzbuch mit Nebengesetzen, 67.ª ed., München: C. H. Beck, 2020.
AA.VV., Festschrift für Thomas Fischer (org.: Stephan Barton, Ralf Eschelbach, Michael Hettinger,
57
Alemanha (§ 173 StGB)60, a qual suscitou grande celeuma doutrinária porque o BVerfG
sepultou a doutrina do bem jurídico a tal propósito61. O BVerfG considerou o conceito
de bem jurídico controverso e inseguro: ou se apresenta como um conceito normativo
que não difere de ratio legis e seria, portanto, incapaz de limitar o legislador, ou então
apresenta-se como um conceito naturalístico, com pretensão de suprapositividade, o
que estaria em contradição com o facto de, segundo a GG, ser tarefa do legislador de-
mocraticamente legitimado fixar os bens a proteger pelo direito penal62. Apenas o
voto discordante do Vice-Presidente Winfried Hassemer (1940-2014), professor
catedrático da Universidade de Frankfurt a. M. e único penalista presente, se baseou
na defesa da teoria do bem jurídico63/64. O caso do irmão e irmã germanos que deu
origem ao acórdão do Tribunal Constitucional alemão passou ainda sem mácula pelo
controlo do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos65.
Segundo o BVerfG, o tipo legal de crime de incesto tutela o matrimónio e a
família como formas de relacionamento preexistentes ao Direito e reconhecidas pela
Constituição, nos termos do Art 6. (1) GG. A separação de papéis e as relações entre
parentes, de acordo com um padrão social predefinido, constitui, segundo o BVerfG,
uma premissa essencial para o bem-estar da prole66. O incesto, pelo contrário, gera
uma “sobreposição de papéis” (Rollenüberschneidung)67. Acresce que o incesto é
suscetível de causar dano direto aos agentes da conduta proibida e dano indireto aos
outros membros da família, ainda que sobre este ponto escasseie informação de
carácter empírico, como os próprios juízes conselheiros o reconheceram68. A auto-
determinação sexual também não é alheia à tutela oferecida pelo § 173 StGB, no
tocante aos sujeitos da relação incestuosa cuja interação frequentemente revela a
submissão de um em relação ao outro69. O BVerfG não deixou de sublinhar, ademais,
a ligação entre o incesto e a exasperação das possibilidades de geração de filhos
portadores de graves doenças hereditárias, com base em estudos empíricos disponi-
bilizados aos juízes conselheiros70. À guisa de derradeiro argumento, o BVerfG
defendeu a legitimidade da incriminação impugnada com base numa “convicção há
muito radicada na cultura e na história da sociedade” (kulturhistorisch begründete,
60
Em Portugal, o incesto consensual entre adultos não é crime.
61
BVerfG, 2 BvR 392/07, 26.02.2008. Disponível em: www.bverfg.de/entscheidungen.
62
GRECO, RBCC (2010), p. 169.
63
Abweichende Meinung des Richters Hassemers zum Beschluss des Zweiten Senats vom 26. Februar
2008 – 2 BvR 392/07 –, in BVerfG, 2 BvR 392/07, Nr. 73 ss.
64
Para uma análise desenvolvida do voto discordante, veja-se NISCO, Attilio, “Controle das escolhas de
incriminação e eclipse do bem jurídico: O caso do incesto no direito alemão”, Revista de Estudos Criminais
51 (2013), (pp. 8-30) pp. 16-20.
65
Case Stübing v. Germany, 12.04.2012, Application no. 43547/08. Disponível em: www.echar.coe.int.
66
BVerfG, 2 BvR 392/07, Nr. 43.
67
BVerfG, 2 BvR 392/07, Nr. 45.
68
BVerfG, 2 BvR 392/07, Nr. 44.
69
BVerfG, 2 BvR 392/07, Nr. 47-48.
130 70
BVerfG, 2 BvR 392/07, Nr. 49.
Um novo paradigma moralista na definição material de crime
71
BVerfG, 2 BvR 392/07, Nr. 50.
72
BVerfG, 2 BvR 392/07, Nr. 50.
73
BVerfG, 2 BvR 392/07, Nr. 36.
74
BVerfG, 2 BvR 392/07, Nr. 37.
75
NISCO, REC 51 (2013), p. 16. 131
Paulo de Sousa Mendes
76
NISCO, REC 51 (2013), p. 17-20.
77
Uma comunidade inclusiva como defendem as correntes de pensamento comunitaristas e liberal-pluralistas.
O A. de referência das correntes comunitaristas é MACINTYRE, Alasdair, After Virtue, 2.ª ed., London:
Duckworth, 2000 (1.ª ed., 1981), pp. 256-263. Um dos AA. de referência das correntes liberal-pluralistas
é GALSTON, William A., Liberal Pluralism – The Implications of Value Pluralism for Political Theory
and Practice, Cambridge: Cambridge University Press, 2002, pp. 11-22.
78
Uma cultura cívica comum é compatível com a integração das minorias culturais, pois a cultura cívica
é apenas o menor denominador comum das distintas mundividências no quadro de uma sociedade histórica
e geograficamente determinada, como defende SILVA DIAS, Augusto, Crimes culturalmente motivados
– O direito penal ante a “estranha multiplicidade” das sociedades contemporâneas, 1.ª reimp., Coimbra:
Almedina, 2018 (1.ª ed., 2016), pp. 148-167. A atenção do A. citado pelo tema da definição e limites da
sociedade plural e multicultural já vem de trás, como se pode ver em SILVA DIAS, Augusto, A relevância
jurídico-penal das decisões de consciência, Coimbra: Almedina, 1986, pp. 65-165; SILVA DIAS, Augusto,
“Problemas do direito penal numa sociedade multicultural: O chamado infanticídio ritual na Guiné-Bis-
sau”, RPCC 6 (1996), (pp. 209-232) pp. 221-232 e SILVA DIAS, Augusto, “Faz sentido punir o ritual do
fanado? Reflexões sobre a punibilidade da excisão clitoridiana”, RPCC 16 (2006), (pp. 1-52) pp. 18-52.
Sobre a abertura do direito penal às idiossincrasias culturais e os limites estabelecidos a essa abertura fun-
dados na ordem jurídico-constitucional, veja-se ainda BRITO NEVES, António, A circuncisão religiosa
como tipo de problema jurídico-penal, Coimbra: Almedina, 2014, pp. 261-269.
79
Como diz Maria Fernanda Palma: “[...] o Direito Penal tem como objeto específico o âmago do Direito
e a proteção dos valores da liberdade essenciais em Sociedade” (PALMA, Maria Fernanda, Direito
Constitucional Penal, Coimbra: Almedina, 2006: p. 47).
80
Entre nós, veja-se CASTANHEIRA NEVES, António, A crise atual da filosofia do Direito no contexto
da crise global da filosofia – Tópicos para possibilidade de uma reflexiva reabilitação, Coimbra: Universidade
de Coimbra / Coimbra Editora, 2003, pp. 92-96.
81
Sobre a questão da integração das minorias culturais, veja-se SILVA DIAS, Crimes culturalmente mo-
tivados, cit., 150, n. 411.
132 82
DUFF, Punishment, Communication, and Community, cit., p. 79-82.
Um novo paradigma moralista na definição material de crime
do processo penal é uma das sedes em que são reatualizados os temas que não devem
cair no esquecimento. A chamada à responsabilidade da pessoa através do processo
penal é uma das formas de enriquecimento e eventual revisão da tradição cultural, na
medida em que os argumentos da controvérsia judicial contribuam para a descoberta
de novas perspetivas sobre os problemas da moral social83.
Antony Duff defende que o ser chamado à responsabilidade (to be called to account)84
pressupõe que os que chamam (callers) e os que são chamados (called) sejam parte da
mesma comunidade de cidadãos85. Na verdade, o processo penal trata os arguidos como
membros da comunidade e sujeitos às mesmas leis que os seus concidadãos. Só assim
se percebe que os primeiros sejam chamados à responsabilidade e censurados em público
através da aplicação de uma pena se as imputações dirigidas contra eles se confirmarem
no final do julgamento criminal86. Como é possível que um procedimento com estas ca-
racterísticas ocorra numa república liberal? Só se acolhermos uma conceção da punição
que sirva para comunicar aos ofensores quais as consequências que merecem pelos crimes
que praticaram. Não se trata simplesmente de exprimir aos ofensores a finalidade da
punição, mas de integrá-los num procedimento comunicativo racional e recíproco que
poderá terminar na irrogação da pena e na respetiva execução, se for o caso87.
A finalidade comunicativa do direito penal conduz Duff à defesa de um modesto
moralismo jurídico (modest legal moralism)88. Duff defende que as razões para se
criminalizar uma qualquer espécie de conduta humana passam necessariamente por esta
constituir um mal de dimensão pública (public wrong). Os aspetos centrais do seu
argumento são os seguintes: (i) o reconhecimento de que o direito penal é uma instituição
83
SOUSA MENDES, Paulo de, “Über die philosophischen Wurzeln der Trennung zwischen Unrecht und
Schuld”, in: AA.VV., Gesamte Strafrechtswissenschaft in internationaler Dimension – Festschrift für
Jürgen Wolter zum 70. Geburtstag am 7. September 2013 (org.: Mark A. Zöller, Hans Hilger, Wilfried
Küper e Claus Roxin), Berlin: Duncker & Humblot, 2013, (pp. 271-289) pp. 287-289.
84
AA.VV., The Trial on Trial (org.: Antony Duff, Lindsay Farmer, Sandra Marshall e Victor Tadros), Vol.
II (Judgement and calling to account), Oxford / Portland, Oregon: Hart Publishing, 2006, pp. 3-10.
85
DUFF, R. A., “Responsibility, citizenship, and criminal law”, in: AA.VV., Philosophical Foundations
of Criminal Law (org.: R. A. Duff e Stuart P. Green), Oxford: Oxford University Press, 2011, (pp. 125-
148) p. 131 e HÖFFE, Kritik der Freiheit, cit., pp. 192-194.
86
DUFF, Philosophical Foundations of Criminal Law, cit., p. 75.
87
Fica-nos a impressão de que Duff acredita que o arguido teria de concordar com a sua punição no final
do julgamento se fossem improcedentes todas as defesas concretamente utilizadas. Nesta posição extremada
não podemos concordar com Duff, pois só as pessoas desprovidas de emoções e interesses individuais
estariam disponíveis para aceitar a sua própria condenação. Os cidadãos de carne e osso não são ascetas.
Mas também não é preciso esperar pela concordância do arguido com a sua condenação para se defender
a finalidade comunicativa do direito penal. Na verdade, a dimensão comunicativa do direito penal revela-
se na interação dos vários sujeitos processuais, podendo o arguido prestar declarações em qualquer momento
da audiência, embora o arguido interaja com os demais sujeitos processuais sobretudo por interposta pessoa
do seu mandatário judicial. Ora, a aceitação do resultado do julgamento ocorre quando a defesa técnica
prescinde de recorrer da decisão final ou então quando se esgotaram todas as vias de recurso e até mesmo
a possibilidade de se apresentar uma queixa individual diante do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.
DUFF, R. A., “Towards a Modest Legal Moralism”, Criminal Law and Philosophy 8 (2014), pp. 217-235.
88
Para um comentário ao texto de Duff, veja-se MEYER, F., “Towards a Modest Legal Moralism: Concept,
Open Questions, and Potential Extension”, Criminal Law and Philosophy 8 (2014), pp. 237-244. 133
Paulo de Sousa Mendes
política, e não moral, o que significa que todas as decisões de criminalização não começam
pela discussão do mal moral (wrongdoing)89, mas pela consideração das condutas que
se enquadram no domínio público da vida humana numa comunidade liberal; (ii) a
necessidade de se analisar os diferentes processos de criminalização, desde a criminalização
tal como é prevista e punida ‘nas leis’ (‘in the books’) até à criminalização tal como é
perseguida pelas autoridades e percecionada pelas vítimas ‘nas ruas’ (‘on the streets’) e,
por fim, (iii) a necessidade de se atender ao entrosamento e às diferenças essenciais entre
o direito penal e os outros modos de disciplina jurídica das relações interpessoais90.
Uma das dificuldades desta perspetiva está na inclusão dos não-cidadãos, algo
que Duff procura superar através de uma visão inclusiva da cidadania, abrangendo não
só as pessoas nascidas em território nacional, mas também os forasteiros que adquiram
a cidadania com relativa facilidade. Na falta de uma ordem cosmopolita, a cidadania
não pode, porém, deixar de ter uma vertente exclusiva. Esta vertente não será especialmente
preocupante para as pessoas que vivam prosperamente noutros países e que permanecem
em território nacional por períodos mais ou menos longos. As políticas criminais não
têm de lhes ser hostis, mas podem e devem tratar os hóspedes com respeito e consideração.
Naturalmente, haverá crimes que os forasteiros de passagem não poderão cometer, tais
como fraudes eleitorais ou fiscais. Mas poderão cometer a maior parte dos crimes,
aliás contra cidadãos e não-cidadãos. Neste caso, o aspeto a ressaltar é o tratamento
que lhes deve ser concedido pelo Estado, pois devem ser respeitados e protegidos, mas
também devem ser sujeitos às leis nacionais, incluindo as leis penais, embora por vezes
beneficiem de um tratamento mais favorável se o erro sobre a ilicitude não lhes for
censurável em função das diferenças culturais profundas91. Em qualquer caso, nem os
forasteiros que cometem crimes são tratados como inimigos, nem os cidadãos que
cometem crimes perdem o estatuto da cidadania. Nenhuma semelhança há, pois, com
o chamado direito penal do inimigo (Feindstrafrecht)92, nem com a retórica da guerra
ao crime (war on crime) e nem com a política criminal das três infrações e acabou
(three strikes and you are out)93. É verdade que as pessoas que constroem autênticas
carreiras criminais desafiam a conceção de um direito penal do cidadão, mas também
Sobre a caracterização do wrongdoing na doutrina anglo-saxónica, SILVA DIAS, Delicta in Se, cit., pp.
89
32-33.
90
DUFF, Criminal Law and Philosophy 8 (2014), cit., 217.
91
Sobre a falta de consciência da ilicitude não censurável, veja-se FIGUEIREDO DIAS, Jorge de, O
problema da consciência da ilicitude em direito penal, 5.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2000 (1.ª ed.,
1969), pp. 352-354 e PALMA, Maria Fernanda, “Exclusão do dolo por erro”, in: AA.VV., Direito Penal
– Fundamentos dogmáticos e político-criminais: Homenagem ao Prof. Peter Hünerfeld (org.: Manuel da
Costa Andrade, José de Faria Costa, Anabela Miranda Rodrigues, Helena Moniz e Sónia Fidalgo), Coimbra:
Coimbra Editora, 2013, (pp. 613-636) pp. 629-633.
92
Dado que as críticas ao direito penal do inimigo se tornaram amplamente conhecidas e praticamente
consensuais na doutrina juspenalista de vários países, incluindo Portugal e Brasil, não vale a pena discutir
o tópico no presente contexto. Na verdade, o inimigo recusa o diálogo e repudia a comunidade moral, mas
a comunicação não passa necessariamente pelo diálogo, nem falta ao inimigo a capacidade de entendimento
para perceber o que está envolvido no seu julgamento. Neste sentido, WATSON, Gary, Agency and Answerability
– Selected Essays, Oxford: Clarendon Press, 2004, p. 239.
134 93
DUFF, Criminal Law and Philosophy 8 (2014), cit., pp. 141-148.
Um novo paradigma moralista na definição material de crime
é certo que o estatuto da cidadania não é algo de que se possa falar em termos puramente
abstratos, pois é um feixe de direitos e deveres que pode sofrer limitações, tais como
a perda de certos benefícios sociais ou mesmo a privação da liberdade ambulatória
através da pena de prisão efetiva. Uma característica de um sistema penal liberal é,
porém, que nenhuma privação é ilimitada, nem nenhuma pena é indeterminada ou
vitalícia. Mais difícil é o problema suscitado pelas pessoas que praticam atos terroristas
ou, dada a dificuldade de definir rigorosamente o terrorismo, atos violentos com vista
a desestabilizar a vida pública. Duff defende que devem ser tratados não como criminosos,
mas como soldados inimigos numa guerra contra o terrorismo, devendo ser capturados
e detidos como prisioneiros de guerra enquanto a guerra durar. Os soldados inimigos
não são fora-da-lei, mas devem ser protegidos pelas leis da guerra94/95.
A comunidade dos cidadãos de Michael Pawlik é comparável à comunidade dos
cidadãos de Duff. Para Pawlik a tarefa fundamental do direito penal consiste em
assegurar que todos se possam conduzir segundo a sua própria autonomia e visão da
vida96. A prática de um crime corresponde à violação por parte do indivíduo do seu
dever de preservar o atual estado das liberdades (Freiheitlichkeit)97 e a punição retri-
bui-lhe precisamente a transgressão desse dever98. Pawlik fundamenta a responsabilidade
do sujeito no seu estatuto de cidadão (Bürger) a quem o Estado garante um espaço
de liberdades fundamentais. A corresponsabilidade pela manutenção desse estado de
liberdades recai sobre cada cidadão como um imperativo de razoabilidade (fairness)
que visa excluir qualquer espécie de aproveitamento ou parasitismo social. Se o
cidadão não cumprir o seu dever primário de cooperação (Mitwirkungspflicht), então
poderá ter de cumprir um dever secundário de tolerância da pena (Duldungspflicht).
A comunidade de Pawlik implica, pois, a sujeição à pena em caso de incumprimento
94
É certo que existe o difícil problema das medidas de segurança privativas de liberdade aplicadas aos
inimputáveis, mas é um problema que mereceria tratamento ex professo e aqui não será considerado.
95
Mas esta generalização de que as pessoas que praticam atos violentos com vista a desestabilizar a vida
pública devem ser consideradas como soldados inimigos não é totalmente convincente, desde logo porque
os agentes radicalizados ou devotos não são necessariamente estrangeiros, mas são frequentemente jovens
nascidos nos países que são alvo de atentados terroristas. Assim, é difícil de aceitar que não devam ser
tratados como cidadãos no quadro de um sistema penal liberal. Seja como for, a resposta é tudo menos
fácil, pois, como acentuou Maria Fernanda Palma, não sabemos de onde vem esta evolução do Direito
para um permanente estado de exceção perante o terrorismo, se do interior, do fracasso do próprio Estado
de Direito e dos modelos de fundamentação liberais, se do exterior, da evolução dos estados islâmicos.
Neste sentido, PALMA, Maria Fernanda, “Dos fundamentos da normatividade na filosofia ao problema
do enquadramento pelo Direito do terrorismo”, Anatomia do Crime 4 (2016), (pp. 23-29) p. 28.
PAWLIK, Michael, Das Unrecht des Bürgers – Grundlinien der Allgemeinen Verbrechenslehre, Tübingen:
96
Mohr Siebeck, 2012, p. 101 e PAWLIK, Michael, Ciudadanía y derecho penal – Fundamentos de la teoría
de la pena y del delito en un Estado de libertades, Barcelona: Atelier, 2016, pp. 36 e 85.
97
Pawlik faz parte do número crescente de AA. que vêm pondo em crise a doutrina do bem jurídico na
doutrina juspenalista alemã. Pawlik entende que a teoria do bem jurídico não é capaz de apreender, enquanto
danosidade social punível, a perturbação das relações entre as pessoas jurídicas (Rechtspersonen), pois
foca-se apenas na lesão de objetos externos socialmente valiosos, empobrecendo assim o horizonte do
direito penal como disciplina das relações entre as pessoas iguais em direitos e deveres (PAWLIK, Das
Unrecht des Bürgers, cit., pp. 127-151).
98
PAWLIK, Ciudadanía y derecho penal, cit., p. 81. 135
Paulo de Sousa Mendes
dos deveres dos cidadãos, se for o caso. Diferentemente de Duff, Pawlik não considera
o papel do processo penal no reforço dos laços de cidadania, mas limita-se, como nor-
malmente acontece na doutrina juspenalista alemã, a propor uma visão substantiva
dos fins das penas criminais99. Apresenta uma nova versão do retributivismo penal,
que, na prática, acaba confundindo-se com o preventismo geral, na modalidade da
prevenção geral positiva, algo que Pawlik reconhece e não desdenha100. Tanto assim
é que, segundo Pawlik, a punição por uma infração ao dever cívico de cooperar na
manutenção de um estado de liberdades preexistente e juridicamente configurado
(Daseinordnung von Freiheit) serve para reforçar a vontade da comunidade jurídica
de impor eficazmente o princípio da igualdade a todos os cidadãos. Ao propor uma
visão substantiva dos fins das penas criminais, mas não uma visão processual da res-
ponsabilidade criminal, Pawlik acaba menosprezando a atual discussão sobre a
necessidade de os fins das penas criminais serem interpretados à luz dos fins do
processo penal através das teorias comunicativas ou expressivas da pena criminal,
embora não rejeite a ideia geral, mas não especificamente jurídico-penal, de que o
ato punitivo tem necessariamente uma dimensão comunicativa101.
Afigura-se-nos que o aspeto mais promissor do pensamento de Pawlik é a sua
teoria das competências sociais dos cidadãos. Pawlik oferece-nos diferentes tipologias
de competências sociais (Zuständigkeitstatbestände), dessa forma procurando fundamentar
os vários tipos de obrigações jurídico-penalmente relevantes (Verpflichtungstatbestände).
Assim, Pawlik distingue os deveres de respeito para com as outras pessoas (Pflichten
zur Respektierung) e os deveres de garantir as condições reais fundamentais da existência
pessoal (Pflichten zur Gewährleistung grundlegender Realbedingungen personaler
Existenz)102. Pawlik expressa as competências sociais dos cidadãos através de deveres
jurídicos. Quanto aos deveres de respeito, a norma básica de comportamento interpessoal
obriga a deixar o outro tal como está, i.e., a não prejudicar o nível de integridade da
esfera jurídica atribuída a cada cidadão. Neste tocante, os cidadãos devem uns aos
outros uma espécie de co-humanidade negativa (negative Mitmenschlichkeit), a qual
é, aliás, uma condição necessária para que cada um possa realizar a sua liberdade in-
dividual103. Mas os deveres de respeito implicam ainda mandados de neutralização se
o cidadão, de forma imputável (zurechenbar), criar através da organização perigosa
da sua esfera de atuação uma ameaça a terceiros, o que explica, aliás, a posição de
garante por força de ingerência na esfera jurídica alheia. No contexto dos deveres de
respeito, a posição de garante também pode nascer das particulares exigências do tráfico
99
PAWLIK, Das Unrecht des Bürgers, cit., pp. 52-57.
100
PAWLIK, Das Unrecht des Bürgers, cit., pp. 82-90 e PAWLIK, Ciudadanía y derecho penal, cit., pp.
57 e 63-64. Assinalando a proximidade do retributivismo de Pawlik em relação às teorias preventivas
gerais, veja-se ROXIN, Claus, “Prevention, Censure and Responsibility: The Recent Debate on the Puposes
of Punishment”, in: AA.VV., Liberal Criminal Theory – Essays for Andreas von Hirsch (org.: AP Simester,
Antje du Bois-Pedain e Ulfrid Neumann), Oxford / Portland, Oregon: Hart Publishing, 2014, (pp. 23-42)
p. 24.
101
PAWLIK, Ciudadanía y derecho penal, cit., p. 62.
102
PAWLIK, Ciudadanía y derecho penal, cit., pp. 84-85.
136 103
PAWLIK, Ciudadanía y derecho penal, cit., pp. 86-87.
Um novo paradigma moralista na definição material de crime
104
PAWLIK, Ciudadanía y derecho penal, cit., pp. 87-93.
PAWLIK, Das Unrecht des Bürgers, cit., pp. 219-237 e PAWLIK, Ciudadanía y derecho penal, cit.,
105
pp. 97-98.
106
PAWLIK, Michael, “Der Polizeibeamte als Garant zur Verhinderung von Straftaten”, ZStW 111 (1999),
(pp. 335-356) pp. 348-356 e PAWLIK, Ciudadanía y derecho penal, cit., pp. 98-100.
PAWLIK, Das Unrecht des Bürgers, cit., pp. 186-192 e PAWLIK, Ciudadanía y derecho penal, cit.,
107
pp. 100-101.
108
Veja-se o art. 200.º, n.º 1, CP.
109
Veja-se o § 323c StGB alemão.
110
PAWLIK, Das Unrecht des Bürgers, cit., pp. 190-192 e 249-254 e PAWLIK, 2016: 102-103.
111
SCHAFFSTEIN, 1935: 110.
FRISCH, 2016: 122-123, WITTMANN, 2017: 363-370 e AMBOS, 20202: 39-47. Entre nós, D’ÁVILA,
112
2005: 338-355.
PAWLIK, Michael, “Unterlassene Hilfeleistung: Zuständigkeitsbegründung und systematische Struktur”,
113
Conclusão
dos pontos de vista relevantes. Mas a justiça realizada através do processo penal é
apenas uma das sedes em que são reatualizados os temas que não devem cair no es-
quecimento (por exemplo, a escola também desempenha uma função de educação
para a cidadania). A chamada à responsabilidade através do julgamento é a forma por
excelência do enriquecimento e eventual reforma da tradição cultural, na medida em
que os argumentos da disputa adversarial contribuem para a descoberta de novas pers-
petivas sobre os problemas da moralidade social. Enquanto arguido, o indivíduo não
é estranho ao facto que cometeu e é por isso que é chamado a responder. A função do
direito penal integral (material, processual e probatório) é, pois, contribuir decisivamente
para a constituição de uma memória conectiva dinâmica que salvaguarde as condições
de florescimento da personalidade dos indivíduos em sociedade. Não admira assim
que as incriminações obedeçam a critérios de legitimação que participam dessa função
de edificação da memória conectiva, assumindo cada incriminação um cunho mo-
destamente moralista, na esteira de uma ética das virtudes.
Várias vezes dou comigo a pensar que lhe podia telefonar, que preciso de falar
com ele, que preciso de um conselho, de uma opinião ou simplesmente de uma conversa
de rotina. Levo algumas frações de segundo a mentalizar-me de que isso já não é
possível. Demora até que as lembranças vivas de uma pessoa querida passem para
um outro lado da mente, ou então talvez para o lado do coração. É então que passamos
a sentir que essas pessoas nos acompanham como se estivessem dentro de nós,
dando-nos serenidade, lucidez, resiliência e, oxalá, bondade. Demora, mas vou
começando a sentir isso com o Augusto.
Quando me despedi dele pela última vez não sabia que era a despedida. Disse-lhe
adeus, como sempre. Uma frase simples. Escreveu Pessoa, num papelinho, na véspera
de partir: “I know not what tomorrow will bring”. Toda a metafísica do mundo nessa
frase, ao ser escrita no umbral do destino. Mas só se percebe isso depois de tudo
acontecer. Sinto, pois, que me despedi do Augusto com um simples “Adeus Augusto,
fica bem e falamos em breve, agora que conseguimos terminar a época de exames”.
139