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tais fatos jamais poderiam acontecer, de acordo com a consciência de que temos
de nós mesmos, mas também revela que isto ocorreu devido à vontade dos próprios
homens. Se na natureza humana está o horror por Auschwitz-Birkenau, ali também
estão as causas que o produziram. Negar o Holocausto é não somente ignorar as
evidências históricas, mas cometer ‘crime’ contra a humanidade, porque retira
dela a possibilidade de extrair lições humanistas do genocídio, evitando que os
erros do passado sejam repetidos no presente e no futuro.” (Neconstitucionalismo
e neoprocessualismo: direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo
judiciário, p. 36).
4 Neconstitucionalismo e neoprocessualismo: direitos fundamentais, políticas públicas
e protagonismo judiciário, p. 30.
supranacional, é empregada para designar pretensões de respeito à
pessoa humana, inseridas em documentos de direito internacional. Já a
locução direitos fundamentais é reservada aos direitos relacionados com
posições básicas das pessoas, inscritos em diplomas normativos de cada
Estado. São direitos que vigem numa ordem jurídica concreta, sendo,
por isso, garantidos e limitados no espaço e no tempo, pois são
assegurados na medida em que cada Estado os consagra. Essa distinção
conceitual não significa que os direitos humanos e os direitos
fundamentais estejam em esferas estanques, incomunicáveis entre si. Há
uma interação recíproca entre eles”.2
Certo é que o reconhecimento expresso dos direitos fundamentais nos
textos constitucionais e ordenamentos jurídicos infraconstitucionais
contemporâneos permitiu a criação de um bloco compacto de salvaguarda
das pessoas e de suas liberdades contra quaisquer atos de abuso do poder
ou de arbítrio provenientes do Estado, no exercício das suas funções,
incompatíveis com o princípio maior da vinculação de qualquer ato
2 Curso de Direito Constitucional, p. 244.
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estatal ao princípio do Estado Democrático de Direito, qualificado como
o Estado de Direitos Fundamentais, 3 sobretudo o ato jurisdicional, que
somente pode ser praticado em processo devidamente
constitucionalizado, ponto sobre o qual já dissertamos no capítulo
anterior.
Esse apontado bloco compacto de salvaguarda das pessoas e de suas
liberdades deve ser considerado apanágio do Estado Democrático de
Direito, e é por isto que nos afinamos com a ideia-matriz do pensamento
de Gilmar Mendes, quando afirma: “Não há Estado de Direito, nem
Democracia, em que não haja proteção efetiva de direitos e garantias
fundamentais”.4
Oportuna, nesse sentido, doutrina de Eduardo Cambi, lastreada em obra
de Perez Luño: “No atual estágio de desenvolvimento jurídico, os
direitos fundamentais representam os elementos definidores e
legitimadores de todo o ordenamento jurídico positivo, proclamando um
concreto e objetivo sistema de valores de aplicação imediata e de
vinculação do poder público. Definem uma cultura jurídica e política,
limitando o poder do Estado. Por isto, o moderno Estado de Direito
democrático e constitucional deve ser denominado de Estado de Direitos
Fundamentais. O Estado de Direito é uma categoria interdependente dos
direitos fundamentais, porque somente são soberanas as leis que
uma pequena parcela, e mesmo esses são consumidos pela lógica neoliberal da
produtividade, uma vez que, caso desejem fazer uma análise adequada de todos os
casos, certamente não cumprirão o requisito objetivo de promoção por
merecimento (produtividade) (art. 93, inciso II, alínea ‘c’, CRFB/88). O problema
começa desde o início da formação dos profissionais do direito. Os cidadãos que
se propõem a fazer um curso de direito, em sua grande maioria, não apresentam a
menor vocação para a área jurídica. Eles a escolhem tão-somente com o objetivo
de ampliar suas possibilidades individuais e profissionais no mercado de trabalho.
E, pelo menos após a assunção de suas funções jurídicas, estes deveriam,
profissionalmente, assumir a total responsabilidade de seu múnus. Tal fato conduz
a um perfil de candidatos aos concursos de magistrados que buscam tão somente
13 A nosso ver, com carradas de razão, Dierle José Coelho Nunes, quando bem
descreve o seguinte quadro babilônico existente no Brasil: “A análise do perfil
atual dos juízes em exercício no nosso País e dos mecanismos de avaliação dos
candidatos ao ingresso na magistratura pelos concursos públicos revela que não se
busca um magistrado com uma formação humanística adequada, mas, sim, um
especialista na dogmática. Juízes com adequada formação humanística
representam
14 ALVIM WAMBIER, Teresa Arruda. Processo e constituição: estudos em
homenagem ao Professor José Carlos Barbosa Moreira, p. 1.078.
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um bom emprego público, e não uma melhoria do bem-estar da sociedade, como
alguns defendem no plano teórico. Verifica-se, desse modo, que, infelizmente, o
exercício do direito, na média dos profissionais, ‘não passa de um ofício
burocrático, ou requisito para o exercício de determinadas funções públicas ou de
acesso em carreiras dentro do próprio funcionalismo público’ (Ferraz de Arruda).
Essa constatação, aliada a uma profusão de cursos jurídicos (cerca de 1.046 em
junho de 2007) com nível discutível, a uma indústria de cursos preparatórios para
concursos, ‘formatadores de cérebros, cujo único objetivo é a aprovação do aluno-
candidato’ (Ferraz de Arruda) e a um recrutamento mediante concursos públicos
de agentes estatais (juízes, promotores, procuradores e advogados públicos)
dogmatas e burocratas, que não se preocupam, em boa parte, com a reflexão, com
um pensar crítico-reflexivo, vai criando um quadro em que a lógica econômica e
quantitativa da produtividade e do julgamento em massa (escala industrial) vai
provocando o desmantelamento da aplicação dos direitos fundamentais e
dificultando sua obtenção pelos cidadãos” (Processo jurisdicional democrático, p.
167-169).
Nesse ponto, merece lembrança Hélio Tornaghi, há muito tempo
verberando as deturpações do processo detectadas na prática do foro, em
lição válida para os dias atuais: “O processo é um caminhar para a frente
(pro cedere; é uma sequência ordenada de atos que se encadeiam numa
sucessão lógica e com um fim, que é o de possibilitar ao juiz o
julgamento. Deturpações do processo. Qualquer ato que signifique um
retardamento é um noncesso, uma paralisia; tudo quanto obrigue a
voltar atrás acarreta um retrocesso (exemplo, os vícios que forçam à
repetição de atos já praticados); a balbúrdia, o movimento desordenado
(moto multo) é o tumulto”.15
Em razão dessas circunstâncias, é válida a tentativa de se fixar as
noções de pretensão e de ação, buscando-lhes reviver as principais
diferenças, até porque, como sustenta Gilmar Ferreira Mendes, escorado
na doutrina alemã, os direitos fundamentais, vistos sob o prisma de
direitos de defesa, preservam as pessoas das interferências ilegítimas ou
arbitrárias do Estado, no exercício de quaisquer de suas funções,
executiva, legislativa ou jurisdicional, o que lhes possibilita exercitar
várias pretensões constitucionais. Assim, para Gilmar Mendes, nos casos
de violação do princípio da vinculação estatal aos direitos fundamentais,
as pessoas dispõem “da correspondente pretensão, que pode consistir,
fundamentalmente, em uma: 1) pretensão de abstenção
55 No original: “Le juge doit, en toutes circonstances, faire observer et observer lui-
même le principe de la contradicition. Il ne peut retenir, dans sa décision, les
moyens, les explications et les documents invoqués ou produits par les parties que
si celles-ci on été à même d’en debattre contradictoirement. Il ne peut fonder sa
décision sur les moyens de droit qu’il a relevés d’office sans avoir au préalable
invité les parties à présenter leurs observations”.
56 Instituições de direito processual civil, v. I, p. 220.
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elementos de teoria do processo constitucional
alegados, dos meios probatórios deduzidos e das atividades
desenvolvidas pelas partes ou por ele próprio (Henke, 2003, p. 818).57
No Brasil, ao contrário, a apelidada decisão-surpresa, fruto do mero
convencimento solitário do juiz, sem debate prévio com as partes, é moda
forense. Vamos exemplificar com uma situação corriqueira nos pretórios,
hauridas das regras de experiência comum, ou seja, fundadas nas nossas
observações profissionais sobre o que normalmente acontece na prática
do foro, na qual surge em algumas oportunidades grosseira supressão da
garantia constitucional do contraditório às partes. Considere-se que o
autor ajuize ação, dando início ao processo, sustentando, na petição
inicial, como fundamento jurídico de seu pedido, incidência das normas
do Código Civil de 1916. O réu, por sua vez, na contestação, resiste à
pretensão e, como fundamento de defesa, embora reconhecendo os fatos
narrados pelo autor, a eles oponha outras consequências jurídicas,
postulando incidência das regras do Código Civil de 2002. Na fase
decisória, conclusos os autos, após as partes apresentarem suas razões
finais, entende o juiz do processo que o caso concreto, ao contrário das
teses jurídicas alinhadas pelo autor e pelo réu, receberá solução adequada
pela aplicação das normas do Código de Defesa e de Proteção ao
Consumidor. Pois bem, aqui no Brasil, na prática do foro, é o que
observamos em nossa atividade profissional, o juiz lavrará sentença-
surpresa, apoiada nas normas do Código de Defesa e de Proteção ao
Consumidor, sem permitir às partes possibilidade de prévia manifestação
a respeito, é o que acontece muitas vezes.
Evidentemente, na situação dantes narrada, estará sendo violado o
contraditório, em concepção científica atualizada, pois as partes
destinatárias da sentença, que suportarão seus efeitos, não tiveram a
possibilidade de influir no convencimento do juiz, quanto às normas de
considerado
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elementos de teoria do processo constitucional
72 Estudos de direito processual constitucional, p. 50-51.
73 Princípios do contraditório e da ampla defesa na reforma da execução civil, p. 80.
74 Na segunda metade do século passado, o contraditório era tecnicamente articulado
somente em dois tempos essenciais, informazione e reazione (binômio informação-
reação), conforme explica Aroldo Plínio Gonçalves, ao comentar lições do
processualista italiano
– informação – reação – diálogo – influência – como resultado lógico-
formal da correlação do princípio do contraditório com o princípio da
fundamentação das decisões jurisdicionais.75
Essa concepção do contraditório que vislumbramos, na perspectiva de
seu quadrinômio estrutural, na dinâmica de qualquer procedimento,
impõe nova postura ao agente público julgador, que deve ser um juiz-
dialogador do processo. Daí que, de forma acertada, normas do Código
de Processo Civil de 2015 prescrevem que o juiz, em decisão de
saneamento e de organização do processo, deverá resolver questões
processuais pendentes, delimitar questões de fato e de direito (questões
de mérito) e definir a distribuição do ônus da prova. Assim deverá fazê-lo
sob designação de audiência com tal objetivo, se as questões de mérito
discutidas no caso concreto se revelarem complexas (artigo 357).
Porém, diante das considerações até agora expendidas, em
conformidade com o devido processo constitucional e em face do
considerado quadrinômio estrutural do contraditório, que estrutura a
dinâmica do procedimento, o juiz não poderá proferir a decisão de
saneamento e de organização do processo de forma solipsista, ou seja,
sem a participação das partes, menosprezando o contraditório.
Bem ao contrário, seguindo as prescrições dos artigos 6º e 7º do
Código de Processo Civil de 2015, normas ali qualificadas fundamentais
do processo, para proferir a decisão de saneamento e de organização do
processo, deverá o juiz previamente ouvir as partes e com elas dialogar a
respeito, concretizando, assim, o regime de cooperação
(=comparticipação) a ser observado entre os sujeitos processuais, no
desenvolvimento, na organização e no resultado decisório do processo
(artigo 357, § 3º).76
Por consequência, no Estado Democrático de Direito, é esta forma de
estruturação procedimental que legitima o conteúdo das decisões
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jurisdicionais proferidas ao seu final, fruto da comparticipação dos
sujeitos principais do
75 Cf. BRÊTAS et alii. Estudo sistemático do NCPC, p. 51. FREITAS, José Lebre de.
Introdução ao processo civil, p. 96-97. GRECO, Leonardo. Dicionário de Filosofia
do Direito, p. 155. Nesse mesmo sentido, considerações de Eduardo Augusto
Madruga de Figueiredo Filho e Rinaldo Mouzalas: “A consolidação de um Estado
Democrático de Direito consubstancia [...] terreno ideal para a ampliação da
noção de contrariedade e para refutar a ideia de atos repentinos e inesperados por
parte de um órgão público que aplica o direito. Nessa conjuntura, surge a
cooperação na sua faceta ‘dever de diálogo’, para atualizar e dinamizar o conceito
do contraditório [...], de modo a injetar a previsibilidade, a participação e a
influência como elementos essenciais desse novo rosto” (FIGUEIREDO FILHO;
MOUZALAS. Novo CPC doutrina selecionada, p. 507-508).
76 Cf. BRÊTAS et alii. Estudo sistemático do NCPC, p. 53 e seguintes.
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elementos de teoria do processo constitucional
É oportuno consignar que desenvolvemos essas ideias sobre o
quadrinômio estrutural do contraditório no Congresso da Magistratura e
do Ministério Público de Minas Gerais sobre o vigente Código de
Processo Civil, realizado na histórica cidade de Tiradentes, Minas Gerais,
no período de 25 a 27 de novembro de 2015, ao expor o tema “Normas
fundamentais do processo”.
Como resultado do evento, suas entidades organizadoras, em 10 de
março de 2016, elaboraram a Carta de Tiradentes, na qual relacionados
trinta e um enunciados aprovados, como sínteses conclusivas dos temas
ali expostos e debatidos. Dentre eles, para nosso gáudio, o Enunciado n.
7, do seguinte teor: “A cooperação constante do art. 6º. do Novo CPC
deve ser entendida como coparticipação, que se liga ao contraditório,
consistente nos princípios informação, reação, diálogo e influência na
construção da decisão.” 77
Nessa linha de pensamento, as considerações de Leonardo Carneiro da
Cunha:“a participação propiciada pelo contraditório serve não apenas
para que cada litigante possa influenciar a decisão, mas também para
viabilizar a colaboração das partes com o exercício da atividade
jurisdicional. Em razão do contraditório, a atividade jurisdicional deve
pautar-se num esquema dialógico, de modo que o juiz exerça a
jurisdição com o auxílio das partes. A decisão judicial não deve ser fruto
de um trabalho exclusivo do juiz, mas resultado de uma atividade
conjunta, em que há interações constantes entre diversos sujeitos que
atuam no processo. [...]. A sentença e, de resto, as decisões judiciais
passam a ser fruto de uma atividade conjunta”.78
analisada sob a ótica dos signos linguísticos utilizados, costuma ser caracterizada
por um arquétipo básico, que se reflete no emprego de (1) termos técnicos, com
significados puramente técnicos; (2) termos técnicos com significados comuns; (3)
termos ordinários com significados comuns; (4) termos ordinários com
significados incomuns ou técnicos; (5) termos de origem estrangeira,
especialmente latina; e (6) termos técnicos ou ordinários, vagos ou ambíguos, daí
decorrendo uma polissemia interna (significados distintos na própria linguagem
jurídica) ou uma polissemia externa (um significado na linguagem ordinária e
outro na linguagem jurídica), o que aumenta o risco de interferências no processo
de comunicação. Não é por outra razão que, na atualidade, a linguagem
estritamente jurídica, pelas barreiras que cria, não tem se mostrado um meio
totalmente eficaz à veiculação dos conteúdos jurídicos. Distanciar-se do
egocentrismo e aproximar-se do conhecimento mútuo é o grande desafio a ser
enfrentado tanto pelas autoridades responsáveis pela elaboração dos textos
normativos, como pelo intérprete, aumentando, com isso, as chances de sucesso no
processo de comunicação normativa”. (GARCIA, Emerson. Improbidade
administrativa, p. 181-182).
82 Ver BRÊTAS. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, v. 92, p. 233.
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defesa, com todos os meios que lhe são possíveis, almejando decisão
jurisdicional que a rejeite. É por isto que a principal defesa do réu, a
contestação, pode ser tecnicamente qualificada de pretensão resistida. O
juiz, sujeito imparcial do processo, que representa o Estado no exercício
da atividade jurisdicional (agente público decisor), equidistante dos
interesses das partes, tem como objetivo dar-lhes resposta decisória que
concretize ou realize as normas componentes do ordenamento jurídico no
caso em julgamento. A partir desse tenso cenário dialético, parece-nos
muito difícil existir a possibilidade de que os principais atores e sujeitos
do cenário processual – juiz e partes – possam trabalhar em comum,
plenamente acordados, acertados, unidos, de mãos dadas, colaborando
gentilmente uns com os outros ou se auxiliando fraternal, carinhosa e
mutuamente, em todos os atos e fases processuais, rumo à decisão final
de mérito. Enfim, como bem adverte Renhard Greger, o dever de
cooperação não obriga que os sujeitos processuais “devam resolver o
[...] processo [...] em íntimo companheirismo”.83
No assunto, portanto, precisas são as lições de Leonardo Carneiro da
Cunha, em comentários ao enunciado normativo do artigo 6º., do vigente
Código de Processo Civil: “Cooperar entre si não é unir-se à parte
contrária, ajudá-la, mostrar-lhe simpatia, contribuir para sua atuação.
Não se está diante de um compadrio ou de uma reunião de amigos. O
termo cooperar pode causar essa falsa impressão. É por isso que há
quem critique a cooperação no processo, afirmando ser uma utopia, um
surrealismo ou uma ingenuidade”, pois não se deve pensar, imaginar ou
supor “que o processo é um alegre passeio de jardim que as partes dão
de mãos dadas, na companhia do juiz”.84
A partir dessas ideias que defendemos, o normatizado dever de
cooperação, como prescreve o enunciado do artigo 6º. do Código de
Processo Civil, deve ser tecnicamente entendido e seguido no processo
como comparticipação dos sujeitos processuais. Em outras palavras, os
sujeitos do processo devem praticar os atos processuais que lhes tocam
em regime de comparticipação, concretizada pelo efetivo contraditório
(artigo 7º.), seu elemento normativo estruturador, na medida em que o
contraditório se entrelaça com a fundamentação da decisão jurisdicional.