Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Momento da consagração
A ideia de que aos seres humanos deve ser reconhecido um conjunto de direitos e de
deveres adequados à sua especial natureza foi sendo desenvolvida por diversas correntes
filosóficas ao longo da História:
‣ Cristianismo – afirma que todos os humanos são filhos de Deus e por isso têm igual
dignidade (isto teve grande impacto na nossa cultura e no modo como se manifestam os
direitos fundamentais)
No entanto, só no séc. XVIII é que estas ideias foram positivadas. É com o Estado constitucional de
final do século XVIII, em particular, com as Revolução Americana e Francesa, que se dão as
primeiras consagrações globais, universais e com valor constitucional dos direitos
fundamentais:
Na França e, por influência francesa em toda a Europa continental, a compreensão dos direitos
era muito restrita à liberdade, segurança e propriedade e, mesmo em relação a estas, o seu
âmbito era delimitado pela lei. E esta conceção marcou definitivamente a Constituição Portuguesa
de 1822 e Carta de 1826, bem como outras CRPs europeias continentais do século XIX.
O que levou Georg Jellinek a afirmar no século XIX – “Sem a América, sem as constituições dos seus
diversos Estados, talvez tivéssemos uma filosofia de liberdade, mas nunca teríamos uma legislação
que garantisse a liberdade”(1892).
Na Europa, os direitos são concebidos como Na América, os direitos são concebidos como
escudos de defesa face ao Executivo, ao Rei, escudos de defesa face ao legislativo.
à Administração.
Por isso, a historiografia mais recente põe em causa a coerência do programa liberal e do
movimento constitucional com que ele se identifica: o liberalismo como o “primado dos direitos
sobre o direito” – a constituição de liberdades individuais.
Se é verdade que o Estado foi o berço dos direitos fundamentais, nos nossos dias, é também
verdade que o Estado não detém o monopólio da defesa destes direitos .
No século XX, deu-se a transição desta matéria de “domestic affair” para matéria de “international
concern”. Esta transição dá-se com particular força após a II Guerra Mundial, embora importantes
instrumentos de proteção dos direitos fundamentais tenham sido adotados na 1ª metade do
século XX e mesmo no século XIX:
‣ A Carta das Nações Unidas, Carta de São Francisco, de 1945, refere-se à necessidade de os
Estados cooperarem na defesa de direitos e liberdades fundamentais, embora esta
consagre igualmente o princípio de não ingerência nos assuntos internos de cada Estado.
E este sucesso afere-se, entre outros fatores, pela existência ou não de mecanismos de tutela e
garantia destes direitos que permitam às pessoas que se sintam vítimas de violações de direitos
humanos reagir a essas violações, apresentando queixas mesmo contra os Estados de que são
nacionais. Veremos, mais tarde, como funciona este mecanismo.
Também por isso, o reconhecimento de direitos humanos no plano internacional não se faz
apenas no âmbito da ONU. Faz-se também através de organizações de âmbito regional.
Assim aconteceu também na Europa, em que, no quadro do Conselho da Europa, logo em 1950, foi
aprovada a Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e a Salvaguarda de
Liberdades Fundamentais.
“The arrival of human rights on the international scene is, indeed, a remarkable event because it is a
subsersive theory destined to foster tension and conflict among States. Essentially it is meant to tear
aside the veil that in the past covered and protected sovereignity, giving each State the appearance of
a fully armoured titanic structure, perceived by other States only 'as a whole', the inner meahanisms
of which could not be tampered with. Today the human rights doctrine forces the States to give
account of how they treat their nationals, administer justice, run prisons, and so on, Potentially,
therefore, it can subvert their domestic order and, consequently, the traditional configuration of the
international community as well.
On the whole, one can say that within the international community this doctrine has acquired the
value and significance which, within the context of domestic systems, was accorded to Locke's theory
of a social contract, Montesquieu's concept of the separation of powers, and Rousseau's theory of the
sovereignity of the people. Just as these political ideas eroded absolute and despotic monarchy,
democratizing the fondations om which kingdoms rested, so the doctrine of human rights has lent
and still lends, in the world community, tremendous impetus to respect for the dignity of all human
beings, and also to the democratization of States”
Existe, quanto ao objeto desta disciplina uma discussão quanto ao exato significado e alcance dos
termos utilizados para descrever o objeto do seu estudo.
Pelo contrário, o conceito de “direitos fundamentais” é, muitas vezes, usado numa aceção restrita,
pretendendo abranger apenas os direitos reconhecidos numa ordem constitucional concreta e
deixando de fora as outras vias normativas de reconhecimento de direitos.
Pela nossa parte, designamos como direitos fundamentais aqueles que são protegidos por
normas jurídicas de carácter vinculativo – sejam estas de nível internacional, europeu ou
estadual.
Tal como a história humana se faz pela sucessão de gerações, também a história dos direitos se
poderia contar usando a mesma metáfora.
O uso desta metáfora remonta aos anos 70 do século XX, sendo a sua autoria atribuída a Karel
Vasak, que analisou o processo europeu de reconhecimento progressivo aos direitos
fundamentais, associando à metáfora das gerações a triologia da Revolução Francesa. E, assim,
defendeu que:
Esta metáfora das gerações foi, depois, usada por muitos autores, cada um fazendo a sua própria
leitura das principais etapas no processo de desenvolvimento do conjunto dos direitos
fundamentais.
Seguindo, por exemplo, a proposta de Vieira de Andrade (Os Direitos Fundamentais, p. 51-70),
descobrimos um primeiro grupo de direitos, que coincide com a que expusemos anteriormente,
composta pelos direitos à liberdade, direito à propriedade, reconhecidos como direitos de defesa
do indivíduo perante o Estado, direitos que exigem do Estado, fundamentalmente, uma postura de
abstenção perante as pessoas. São direitos que cumprem uma função de defesa do indivíduo
perante os poderes públicos, aos quais corresponde um status negativus, um dever de abstenção,
de não ingerência, de não restrição, de não violação.
Num terceiro momento, os direitos sociais – direito à saúde, direito à educação, direito à
habitação, direito à segurança social – direitos que exigem do Estado um conjunto de prestações
de serviços ou pecuniárias para satisfazer as necessidades individuais. São direitos
estruturalmente diferentes dos direitos de defesa; são direitos a prestações. Correspondem a uma
visão do Estado não como inimigo das liberdades, mas como um ente que necessita de intervir
para garantir os direitos fundamentais.
Novos direitos
Desde o último quartel do séc. XX têm surgido diversas correntes que reclamam o reconhecimento
de novos direitos:
(Ver, sobre a matéria, Maria Luísa Neto, Novos Direitos, UPorto, 2010)
Esta compreensão geracional dos direitos não é isenta de críticas. Ela indicia que os direitos das
novas gerações se substituem aos da geração anterior e não é assim. A evolução do acervo de
direitos reconhecidos como fundamentais tem obedecido a uma lógica de acumulação e não de
substituição. E a cada nova geração não são só novos direitos que se acrescentam aos existentes,
mas são também novos sentidos e novas dimensões que vêm enriquecer o sistema dos direitos
fundamentais.
Além disso, aos direitos de primeira geração tende a ser reconhecida uma densidade normativa
máxima que tende a regredir de geração em geração. Dessa diferença entre direitos de densidade
normativa forte e direitos de densidade normativa fraca, trataremos melhor quando estudarmos
os regimes dos direitos fundamentais e atentarmos na definição feita pela nossa Constituição
entre direitos, liberdades e garantias e direitos económicos, sociais e culturais.
Em função desta evolução, podemos caracterizar o sistema de direitos fundamentais como tendo
as seguintes características/ideias-força a orientar esta evolução: acumulação, variedade, abertura
(Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais, p. 67/68).
Acumulação – cada época histórica formula novos direitos, típicos do seu tempo, que se
vêm somar aos antigos. Os direitos típicos de cada geração subsistem a par dos da geração
seguinte.
Abertura – os catálogos não são nunca obras acabadas. Por interpretação vão-se
descobrindo sempre novas dimensões aos direitos pré-existentes e vão-se descobrindo e
acrescentando novos direitos.
‣ A doutrina ocidental, que valorizava direitos civis e políticos, punha em especial relevo as
liberdades cívicas – como a liberdade religiosa, de pensamento, de consciência e de
expressão e desvalorizava os direitos económicos, sociais e culturais.
Em consequência desta distinção, temos que na DUDH – encontramos direitos dos dois tipos
misturados – mas nos Pactos Internacionais de 1966 já encontramos o reflexo desta distinção
geopolítica e vemos a divisão dos direitos em dois Pactos: o Pacto Internacional de Direitos Civis e
Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Económicos, Sociais e Culturais.
Ainda hoje se tenta vencer na Comunidade Internacional o estigma que esta distinção representou.
Assim, em 1993, a Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos, de Viena, no parágrafo 5, pode
ler-se: “Todos os Direitos Humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e interrelacionados.
A comunidade internacional deve considerar os Direitos Humanos, globalmente, de forma justa e
equitativa, no mesmo pé e com igual ênfase. Embora se deva ter sempre presente o significado das
especificidades nacionais e regionais e os diversos antecedentes históricos, culturais e religiosos,
compete aos Estados, independentemente dos seus sistemas políticos, económicos e culturais,
promover e proteger todos os Direitos Humanos e liberdades fundamentais.”. Esta declaração tem
sido repetida posteriormente inúmeras vezes, mas, no plano do direito internacional geral, esta
igualdade e equiparação entre os direitos ainda parece estar longe.
Mesmo na Europa, cujo modelo de desenvolvimento dá um especial relevo aos direitos sociais, se
atentarmos na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, constatamos que só lá estão
consagrados direitos de primeira geração, direitos de defesa dos indivíduos perante os Estados,
estando remetidos para a Carta Social Europeia os restantes. Ou seja, no seio do Conselho da
Europa, reflete-se a mesma cisão que se verifica ao nível das Nações Unidas.
A CRP consagra no seu art. 1.º o princípio da dignidade da pessoa humana. Tal significa que a
conceção antropológica consagrada na nossa Constituição é a do humanismo ocidental, ou seja, é
uma conceção liberal moderna. Neste contexto deve entender-se o princípio da dignidade da
pessoa humana como o princípio de valor que confere unidade de sentido e fundamento ao
conjunto de preceitos relativos aos direitos fundamentais.
Assim, além dos direitos fundamentais “em sentido formal” ou tipificados no catálogo,
temos ainda direitos fundamentais dispersos na Constituição, ou seja, direitos fundamentais
constitucionais, mas que se encontram previstos fora da parte I, sendo assim direitos
fundamentais dispersos, temos direitos fundamentais extra-constitucionais, de fonte internacional
ou legal.
Já vimos que a existência de uma dicotomia entre direitos, liberdades e garantias e direitos
económicos, sociais e culturais está, antes do mais, relacionada com a própria evolução histórica
dos direitos fundamentais e é ainda oriunda dos textos de Direito Internacional. Para além disso,
esta distinção parte do entendimento de que os direitos, liberdades e garantias se consubstanciam
em direitos de defesa, de não intervenção, dos particulares face ao Estado, enquanto os direitos
económicos, sociais e culturais são direitos a prestações estaduais positivas.
Convém realçar que, na nossa ordem jurídica, esta não é uma distinção meramente teórica, uma
vez que tem consequências práticas significativas: por um lado, implica o reconhecimento de um
regime mais protetor, estabelecido na CRP para os direitos, liberdades e garantias; por outro lado,
também releva na intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias (uma vez que esta
se aplica apenas a estes direitos e não já a direitos económicos, sociais e culturais, nos termos que
depois veremos).
E foi por isso que as Constituições e as jurisdições constitucionais criaram um regime particular
para defesa e garantia dos direitos fundamentais, que, a seguir estudaremos.
Esse regime veio, no entanto, a criar mecanismos de proteção e de defesa dos direitos
fundamentais que foram depois reproduzidos pelas instâncias internacionais que se ocupam da
proteção dos direitos fundamentais – em particular, pelo Tribunal Europeu dos Direitos do
Homem, sediado em Estrasburgo, que é a instância de proteção internacional dos direitos
fundamentais com a qual as jurisdições constitucionais mais têm dialogado. Neste diálogo vem
participando, cada vez mais, o Tribunal de Justiça da União Europeia, como já vimos.
‣ normas relativas a direitos, liberdades e garantias (DLG) (artigos 24.º a 57.º da CRP)
‣ normas relativas a direitos económicos, sociais e culturais (DESC) (artigos 58.º a 79.º da
CRP).
Esta distinção marca de modo acentuado o regime aplicável aos direitos fundamentais, uma vez
que tem consequências práticas significativas:
‣ por outro lado, também releva do ponto de vista da proteção judicial dos direitos, havendo
meios específicos de proteção de direitos, liberdades e garantias, que excluem os direitos
económicos, sociais e culturais.
Por outro lado, segundo o Autor, é também comum na doutrina procurar a justificação da
consagração constitucional de um regime privilegiado de proteção aos direitos, liberdades e
garantias no facto de estes direitos terem uma relação mais próxima com princípios nucleares do
Estado de Direito, como sejam a dignidade da pessoa humana, a autonomia ou autodeterminação
pessoal, etc.
No entanto, considera que também esta tentativa é infundada, porque não há razões objetivas que
a sustentem. Por que, por exemplo, se deverá considerar que o direito de antena (DLG pessoal na
enumeração constitucional) está mais vinculado à dignidade ou à autonomia pessoal que o direito
a uma habitação condigna?
Assim sendo, Jorge Reis Novais defende a aplicação de uma dogmática unitária extensível a todos
os direitos fundamentais.
“As ideias diretrizes desta proposta são as de atribuição aos direitos sociais de uma relevância
plena enquanto direitos fundamentais, acompanhado do reconhecimento de uma especificidade
de natureza de que resultam consequências de diferenciação num quadro de uma dogmática una e
abrangente de proteção jurídica aos direitos fundamentais.
Ser um direito fundamental significa, em Estado constitucional de Direito, ter uma importância,
dignidade e força constitucionalmente reconhecidas que, no domínio das relações gerais entre o
Estado e o indivíduo, elevam o bem, a posição ou a situação por ele tutelada à qualidade de limite
jurídico-constitucional à atuação dos poderes públicos. Significa, por outro lado, já no plano das
relações entre os poderes públicos, que os bens, posições ou situações tuteladas pelos direitos
fundamentais são retirados da plena disponibilidade decisória do poder político democrático,
sendo a sua garantia atribuída, em última análise, à justiça constitucional. (...)
Assente aquele reconhecimento [de que os direitos sociais são direitos fundamentais], ele não
pode prescindir da atribuição da devida relevância à especificidade que os direitos fundamentais
apresentam no sistema dos direitos fundamentais. Designadamente, há que dar a devida
relevância ao facto de os direitos sociais (...) serem ainda sujeitos a uma reserva do
financeiramente possível e, logo, das margens de decisão e apreciação que (...) cabem ao legislador
democrático e ao poder judicial” (Reis Novais, Direitos sociais, 251-253).
2. O regime geral aplicável a todos os direitos fundamentais – âmbito de
aplicação dos direitos.
O regime geral aplica-se quer a direitos, liberdades e garantias, quer a direitos económicos e
culturais, e está previsto no Título I da Parte I da CRP.
Segundo o qual todos os cidadãos gozam dos direitos da CRP e estão sujeitos aos mesmos deveres.
Não invalida que certos direitos pressuponham uma certa idade, como é, p. ex., o caso da
generalidade dos direitos políticos (art. 49.º – direito de voto – e no art. 122.º – elegibilidade para
PR), ou ainda que haja direitos reservados a certas categorias de pessoas, como é o caso dos arts.
51.º ss (direitos dos trabalhadores), ou do art. 71.º (cidadãos portadores de deficiência). Quanto às
pessoas coletivas (art. 12º, n.º 2) estas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis
com a sua natureza. Tal significa que as pessoas coletivas gozam de direitos fundamentais que não
pressuponham características intrínsecas ou naturais do homem.
Segundo alguns autores é uma exigência que já decorre do princípio do Estado de Direito (em
sentido material, isto é, como um Estado comprometido com a realização da justiça). A inserção do
princípio nesta parte da CRP significa que a garantia de igualdade entre os cidadãos é medular do
próprio sistema constitucional dos direitos fundamentais, que são estruturas de igualdade e não de
privilégios. Tal não implica uma igualdade absoluta, visto que o princípio da igualdade visa apenas
proibir as discriminações arbitrárias irrazoáveis. O princípio da igualdade poderá inclusivamente
justificar tratamentos diferenciados das pessoas quando haja fundamento objetivo para tal
diferenciação.
Estabelece que estes gozam dos direitos que não sejam incompatíveis com a ausência do país. Como
exemplo de um direito que não pode ser gozado por cidadãos portugueses que não residam em
Portugal podemos referir a capacidade eleitoral passiva, na maioria dos atos eleitorais. Já a
capacidade eleitoral ativa poderá ser exercida também por aqueles que residam no estrangeiro, nos
termos previstos na CRP e na lei.
Significa que os estrangeiros e apátridas gozam também dos direitos consignados na CRP para os
cidadãos portugueses. Estão apenas excluídos do gozo do leque de direitos que pertencem
exclusivamente a cidadãos portugueses e que estão previstos no n.º 2 deste artigo. Esta disposição
parece dar “carta-branca” ao legislador ordinário para alargar as exceções, reservando aos cidadãos
portugueses quaisquer direitos que entenda. No entanto, tem-se entendido que as exceções a
estabelecer por lei ordinária àquela regra não são livres, devendo as leis que eventualmente
reservem direitos deste tipo para cidadãos portugueses ser consideradas verdadeiras leis
restritivas e sujeitas às condições de legitimidade estabelecidas no artigo 18.º. Os restantes
números (3, 4 e 5) do art. 15.º consagram exceções às exceções.
(Sobre a interpretação que o Tribunal Constitucional tem feito do sentido e alcance desta norma, ver
Ana Luísa Pinto e Mariana Canotilho, “O Tratamento dos Estrangeiros e das Minorias na
Jurisprudência Constitucional Portuguesa”, em Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel
Cardoso da Costa, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, p. 231- 248)
Vimos que a CRP estabelece uma dicotomia entre direitos, liberdades e garantias e direitos
económicos sociais e culturais. Vimos também que essa distinção não é meramente teórica, tendo
consequências no regime aplicável aos diferentes direitos. Independentemente da bondade desta
diferenciação (que já vimos que é contestada), vamos ver qual o regime estabelecido pela CRP
para os DLGs e que visa proteger, com especial intensidade, estes direitos.
Dentro do regime específico dos direitos, liberdades e garantias, podemos distinguir entre: um
regime material, um regime orgânico e um regime de revisão constitucional.
Regime material
O regime material específico está essencialmente previsto no artigo 18.º da CRP (embora haja
também outras disposições constitucionais que atribuem um regime mais protetor a estes
direitos, como é o caso dos arts. 19º, 20º, nº 5, 21º, 22º e 272º, nº3).
Os DLGs são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas. Assim, este regime
material específico consubstancia-se na aplicabilidade imediata, o que significa que os preceitos
constitucionais vinculam todos os órgãos ou agentes do poder sem necessidade de mediação
legislativa.
No entanto, a aplicabilidade direta das normas consagradoras de DLGs não implica sempre a
transformação automática destes em direitos concretos e definitivos. É preciso distinguir consoante as
normas de DLGs sejam ou não exequíveis por si mesmas. Se ela for exequível por si mesma, ela pode
ser imediatamente invocada, ainda que haja falta ou insuficiência de lei. Pelo contrário, se a norma não
for exequível por si mesma (ex.: art. 26º, n.º 2), o sentido a atribuir ao art. 18.º é o de que o legislador
está vinculado a editar as medidas legislativas necessárias, não tendo o poder de apreciação quanto á
oportunidade de legislar. A falta dessas medidas implica uma inconstitucionalidade por omissão,
sujeita ao regime de controlo do artigo 283º.
(Ver, sobre esta matéria da aplicabilidade direta, em particular, Vieira de Andrade, Os Direitos
Fundamentais, p. 191-205).
Por outro lado, o art. 18.º estabelece a vinculação das entidades públicas e privadas aos direitos,
liberdades e garantias. Segundo esta disposição os DLGS obrigam tanto entidades públicas como
entidades privadas. Nas entidades públicas abrangem-se os órgãos legislativos, jurisdicionais e toda
AP, estendendo-se este imperativo de respeito pelos DLGs mesmo a poderes que não sejam estaduais,
mas exercidos através de pessoas coletivas públicas, como autarquias, universidades, ou outras.
O legislador também está vinculado aos direitos fundamentais – “são as leis que gravitam à volta dos
direitos fundamentais e não os direitos fundamentais que gravitam à volta das leis” (Krűger). No
entanto, o legislador tem um papel essencial na proteção dos direitos fundamentais, através de leis
que podem ampliar, ordenar e concretizar o gozo e o exercício de direitos fundamentais. Tem
também um papel mais ingrato, que é o de intervir antecipando conflitos entre os direitos
fundamentais ou entre estes e bens comunitários essenciais através de leis que restringem DLGs. Os
termos concretos desta vinculação específica estão previstos nos números 2 e 3 do artigo 18º.
O papel dos juízes na proteção dos direitos fundamentais, como amigos das liberdades do cidadão,
obriga os tribunais a uma vinculação estrita em matéria de DLGs. Esta vinculação impõe-lhes uma
atuação particularmente célere nos processos em que estão em causa, de modo mais flagrante, direitos
fundamentais – em particular naqueles em que há lesão iminente de bens jurídicos fundamentais
(quando há arguidos presos, quando se trata de um recurso perante o TC em que estão em causa DLGs,
quando se requer uma providência cautelar para defesa de DLGs – sobre isto, veremos, mais à frente,
concretizações legais específicas destas exigências).
Na substância das suas decisões, o dever de interpretar normas em conformidade com a CRP e de
recusar a aplicação de normas que com não se conformam com a CRP tem uma expressão mais intensa
quando se trata de normas relativas a DLGs.
‣ Vinculação da Administração
A vinculação das entidades administrativas às normas de DLGs, prevista no art. 18º/1 e reforçada no
art. 266º da CRP, significa que a Administração:
essa atuação legislativa permite ao legislador interferir no espaço de liberdade de cada um,
regulando-o, daí que a CRP crie um conjunto de requisitos, de “cautelas” que devem ser
verificadas sempre que estejamos perante leis restritivas de DLGs
Antes, porém, de estudarmos quais são esses requisitos, convém entendermos melhor o que são
leis restritivas, começando por enfrentar o problema da determinação do âmbito de proteção dos
direitos.
Só estamos perante uma lei restritiva quando: esta comprime o âmbito de proteção do direito, tal
como ele resulta da norma (ou das normas) que o consagram.
A determinação do âmbito de proteção é, pois, uma tarefa prévia essencial para que se possa
concluir quanto à verificação ou não de uma restrição. Há duas formas de circunscrever o âmbito
de proteção:
Segundo estas teorias, o âmbito de proteção deve ser definido, abrangendo o mais amplo e
completo conjunto de manifestações possíveis do direito fundamental. Não cabe ao
intérprete excluir prima facie do âmbito de proteção do direito situações que estão dentro
das margens semânticas da norma, cujos pressupostos devem ser amplamente
interpretados (posição defendida por Robert Alexy).
Jorge Reis Novais defende que na delimitação do âmbito de proteção do direito deve excluir-se
apenas aquilo que, com toda a evidência, não pode ser considerado pela consciência jurídica
própria de Estado de Direito como exercício jusfundamentalmente protegido – comportamentos
que apresentem intolerável danosidade social ou sejam radicalmente incompatíveis com os
requisitos mínimos da vida em comunidade e que, por isso, suscitam reprovação social e jurídica
consensuais.
A nossa Constituição prevê, nos números 2 e 3 do artigo 18º seis requisitos substanciais para a
restrição legal de direitos, liberdades e garantias:
Grande parte da doutrina tem uma posição crítica quanto ao primeiro e ao último requisitos
constitucionais, tendendo a desvalorizá-los ou a contorná-los.
O art. 18.º, n.º 2 estabelece uma exigência de previsão constitucional expressa da respetiva restrição.
Ora esta exigência constitucional coloca uma série de problemas, uma vez que há muitos preceitos
constitucionais que não preveem expressamente restrições legislativas. (ex: direito à vida, à
integridade pessoal e outros direitos pessoais - arts. 24.º a 26.º, liberdade de aprender e de ensinar -
art. 43.º, direitos de deslocação e emigração - art. 44.º, direito de reunião e manifestação - art. 45.º,
etc.)
A doutrina tem procurado diferentes vias para contornar este requisito de previsão constitucional
expressa da possibilidade de restrição, seja através da ideia de limites imanentes, da existência de
restrições implícitas ou ainda do apelo ao art. 29.º da DUDH.
Jorge Reis Novais, cuja tese de doutoramento trata precisamente o problema das restrições não
expressamente previstas na Constituição, considera, por seu lado, que a consagração constitucional de
um direito fundamental sem a simultânea previsão da possibilidade da sua restrição não deve
constituir qualquer indicação definitiva sobre a sua limitabilidade. Segundo este autor, “[t]omado a
sério, o limite do n.º 2 do artigo 18.º CRP significaria serem inconstitucionais hipotéticas normas
ordinárias que, por exemplo, possibilitassem à Administração impor medidas de vacinação obrigatória
em caso de epidemia (por violação do art. 25.º, n.º 1), que permitissem a um corpo policial ou de
bombeiros entrar, sem autorização, no domicílio de alguém em caso de incêndio (por violação do art.
34.º) ou que proibissem um culto religioso que envolvesse a prática de crimes (por violação do art.
41.º, n.º 1) (…).”
O reconhecimento de uma reserva geral imanente de ponderação despe de todo e qualquer sentido útil
o requisito da necessidade de previsão constitucional expressa, pois onde a Constituição preveja,
implícita ou explicitamente, a necessidade de restrição, já o legislador estava autorizado a restringir
com base naquela reserva.
Por outro lado, a restrição só se pode justificar para a salvaguarda de um outro direito ou interesse
constitucionalmente protegido: o interesse que se visa acautelar tem que ter suficiente e adequada
expressão no texto constitucional (ex: defesa nacional, a segurança interna, ordem pública, etc.). O fim
que se visa com a restrição de um bem jurídico fundamental tem de ter dignidade constitucional, sob
pena de a restrição ser ilegítima, injustificada.
‣ Princípio da proporcionalidade
Não basta, no entanto, que haja outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos a
garantir. É ainda exigido que a restrição se limite ao necessário para salvaguardar esses outros direitos
ou interesses constitucionalmente protegidos, nos termos do artigo 18º, número 2. Está aqui em causa
o princípio da proporcionalidade, que obriga a que entre o conteúdo de uma decisão estadual e o fim
que ela prossegue haja um equilíbrio.
Podemos distinguir três critérios no seio do princípio da proporcionalidade: a idoneidade, a
necessidade e a proporcionalidade em sentido restrito.
O princípio da idoneidade ou adequação obriga a que se tenha em conta se um dado meio é apto para a
realização do fim em vista. O que se requer é um juízo de razoabilidade, bastando provar que
razoavelmente, em circunstâncias normais, o meio escolhido é apto para alcançar o fim de interesse
público que justifica a medida estadual.
Quanto ao princípio da necessidade, trata-se de apreciar se não existe outra medida menos gravosa
capaz de assegurar o objetivo com o mesmo grau de eficácia. O que se pretende avaliar é se não haverá
outro meio igualmente apto para a prossecução do fim mas que seja menos oneroso para os direitos
fundamentais.
O art. 18.º, n.º 3 exige ainda que as restrições de direitos, liberdades e garantias têm de revestir
carácter geral e abstrato. Ou seja, as normas que as preveem têm de ter como destinatários um número
indeterminado ou indeterminável de pessoas e devem aplicar-se a um número indeterminado ou
indeterminável de situações.
Esta exigência visa tornar claro que, se a possibilidade de leis retroativas – sempre indesejável num
Estado de Direito, preocupado em garantir e respeitar a segurança jurídica dos cidadãos – não é
sempre inconstitucional, em matéria de restrições a direitos, liberdades e garantias, é inadmissível. Ou
seja, não deve haver aqui margem de ponderação no sentido de perceber se o fim que legitima a
restrição sobreleva as expectativas juridicamente protegidas. Se essas expectativas se referem a
direitos, liberdades e garantias, estas devem sempre prevalecer.
Então: deve o conteúdo essencial proteger a posição subjetiva do titular do direito fundamental
afetado (teoria subjectiva), ou o preceito constitucional enquanto norma referida a valores, a bens
jurídicos como tal considerados (teoria objectiva)?
Perante estas dificuldades, Jorge Reis Novais considera que a garantia do conteúdo essencial não
desempenha, hoje, qualquer papel autónomo significativo nem desenvolve qualquer efeito jurídico
efetivo enquanto limite aos limites dos direitos fundamentais e, consequentemente, para a limitação
dos poderes de restrição dos direitos fundamentais.
Este requisito em particular do conteúdo essencial está presente também noutras Constituições e
consta atualmente de modo expresso do artigo 52º, número 1 da Carta dos Direitos Fundamentais da
União Europeia, ao lado dos requisitos do princípio da proporcionalidade. Donde se deve atentar no
facto de, também ao nível da União, se fazer uma consideração autónoma do requisito do respeito pelo
conteúdo essencial.
Regime orgânico
A matéria dos DLGs está sujeita a reserva de lei num duplo sentido material e formal. Por um lado,
só a lei pode intervir na esfera reservada e protegida pelos direitos fundamentais. Por outro lado,
só o Parlamento pode legislar em matéria de DLGs. Estes fazem parte da reserva relativa da
Assembleia da República, o que está previsto no art. 165º, n.º 1, alínea b) da Constituição. Há, no
entanto, determinadas matérias relativas a DLGs que estão abrangidas pela reserva absoluta da
Assembleia da República. É o caso das alíneas a),b),c),e),h),i),j),l),m) e o) do art. 164º.
Finalmente, a alínea d) do art. 288.º da CRP integra os DLGs como limites materiais de revisão
constitucional. No entanto, tal não significa que não se possa alterar de forma alguma a parte da
Constituição que os consagra. Não são os preceitos constitucionais em si que são irrevisíveis, mas
o sentido dos princípios ou normas que visam proteger (p. ex., as alterações introduzidas por
revisão constitucional nos artigos 33º e 34º, admitindo a extradição de nacionais em situações
excecionais e admitindo a entrada no domicílio durante a noite para repressão de criminalidade
grave).
Em que termos é que os direitos previstos noutros lugares da CRP, na lei e em normas
internacionais aplicáveis que sejam análogos (por natureza) aos direitos enumerados no Título II,
Parte I da CRP, são equiparados, a DLG, nos termos do artigo 17.º?
Quanto aos direitos análogos constantes do Título I, Parte I da CRP (ex: direito de acesso a
tribunal; direito de resistência, etc.): ficam sujeitos ao regime jurídico dos DLGs na sua
plenitude.
Gomes Canotilho, Bacelar Gouveia e Vieira de Andrade, por seu lado, consideram
que também se deve aplicar o regime orgânico, sendo que este último Autor
defende ainda que o regime de revisão se deve aplicar, na medida em que não se
deve inserir na CRP nenhum preceito que vá contra o direito em causa.
Para além das situações de previsão abstrata de conflitos resolvidos através de restrição
legislativa, subsistem ainda muitas situações de colisão entre direitos fundamentais – situações
em que o direito fundamental de A colide com outro direito fundamental de B. Essa colisão pode
ser mais ou menos intensa consoante afete faculdades mais ou menos nucleares dos direitos
fundamentais em causa.
Para estas situações não dispomos à partida de uma hierarquia entre os direitos fundamentais,
que nos autorize a sacrificar direitos menos fundamentais do que os outros que pretendemos
salvaguardar.
Devemos partir sempre de uma ideia de igual valor dos direitos fundamentais em conflito e
formular juízos de ponderação entre os bens constitucionais em conflito tentando encontrar para
a situação concreta uma solução adequada, equilibrada e razoável – o que nos remete para a
aplicação do princípio da proporcionalidade. Os direitos em conflito hão-se ser sacrificados
apenas na estrita medida do que se revele necessário para permitir a realização do direito
conflituante.
Para se encontrar a solução para o conflito, uma vez que não partimos de uma hierarquia abstrata,
temos de atender às circunstâncias concretas do caso, selecionando quais os elementos que devem
ser relevantes para o juízo de ponderação que se impõe.
3.2. o regime de exceção constitucional
O elemento que se segue é um aspeto do regime das DLGs, que é a possibilidade de restringir os
DLGs em situações excecionais. Em 1976 previram que para além de conceder ao legislador a
possibilidade de restringir DLGs para conciliar os direitos individuais e gerais poderiam ocorrer
situações onde teria de ser adotado um regime excecional que deveria de passar pelos estados da
exceção constitucional (art. 19 CRP nº1 e nº2):