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Os Direitos Humanos na Declaração Universal de 1948 e na

Constituição Brasileira em Vigor

Introdução

Para compreender ambos desses documentos, isto é, apreendê-los na totalidade de seus sentidos, não só isoladamente, mas
também um em relação ao outro, é indispensável atender a três exigências fundamentais.

A primeira delas é a perspectiva histórica. O ser humano e todas as suas criações culturais inserem-se num processo evolutivo, por
força do qual nada é estático, permanente, ou igual a si mesmo, mas tudo se apresenta como um perpétuo devir. A rigor, a vida,
notadamente a do ser mais complexo de toda a biosfera, só tem passado e futuro; o presente é um ponto em mutação permanente,
que aponta para um horizonte inalcançável.

O segundo pressuposto metodológico de compreensão desses textos jurídicos é nunca perder de vista que o direito não pode ser
reduzido a um conjunto abstrato de normas, sem contato com a realidade social. Entre, de um lado, o direito oficial – imposto no
interior de cada Estado, ou estipulado em tratados internacionais – e, de outro lado, o direito efetivamente vivido, estabelece-se
sempre uma relação dialética de confronto e transformação.

Finalmente, é preciso distinguir, no interior de cada sistema normativo, os princípios das regras.

Os princípios refletem os grandes valores éticos vigentes na coletividade, e se expressam, por isso mesmo, sob a forma de normas
gerais, da mais ampla aplicabilidade. As regras, ao contrário, têm um conteúdo preciso e concreto. Na verdade, a função social das
regras consiste em interpretar e concretizar os princípios, para melhor aplicá-los, em cada momento histórico e em determinado setor
da vida social. Assim ocorreu, por exemplo, com o princípio da igualdade. Ele foi interpretado como isonomia formal e abstrata (todos
são iguais perante a lei), à época das grandes revoluções do final do século XVIII, e como processo de eliminação das desigualdades
econômico-sociais, com o surgimento dos diferentes movimentos socialistas no século XIX.

Uma vez que os princípios nada mais são do que a tradução normativa dos grandes valores éticos acolhidos numa sociedade, a sua
vigência jurídica independe de serem eles expressamente declarados ou não, nas constituições, leis ou tratados internacionais. Eis
porque a doutrina jurídica alemã, com o advento da Constituição de Weimar, elaborou a distinção entre direitos humanos e direitos
fundamentais (Menschenrechte, Grundrechte), posteriormente incorporada à Lei Fundamental de Bonn de 1949. De acordo com essa
distinção, fundamentais são os direitos humanos expressamente declarados nos textos normativos oficiais. Ora, se o direito positivo
estatal ou os documentos jurídicos internacionais passam a incluir a formulação de normas de princípio, essa distinção perde a sua
razão de ser. A norma geral de princípio já contém, em si, implicitamente, um conjunto de regras especiais de aplicação, que vão
sendo progressivamente adotadas, pelo legislador ou o Poder Judiciário.

Vejamos, pois, à luz dessas premissas fundamentais, a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 e o sistema de direitos e
garantias fundamentais da Constituição Federal brasileira de 1988.

I - Os 60 Anos de Vigência da Declaração Universal de Direitos


Humanos

O contexto histórico em que surgiu o documento

Como se percebe da leitura de seu preâmbulo, a Declaração Universal de Direitos Humanos foi redigida sob o impacto das
atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial. A revelação desses horrores só começou a ser feita – e de forma muito
parcial, ou seja, com omissão de tudo o que se referia à União Soviética e dos vários abusos cometidos pelas potências ocidentais
durante a guerra – após o encerramento das hostilidades. Além disso, nem todos os membros das Nações Unidas, à época,
partilhavam por inteiro as convicções expressas no documento: embora aprovado por unanimidade, os países comunistas (União
Soviética, Ucrânia e Rússia Branca, Tchecoslováquia, Polônia e Iugoslávia), a Arábia Saudita e a África do Sul abstiverem-se de votar.

Na mente dos seus autores, a Declaração seria a primeira etapa de um processo que se desdobraria em várias fases, como foi
decidido durante a sessão de 16 de fevereiro de 1946 do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas. A segunda fase
consistiria em desenvolver os princípios da Declaração Universal de Direitos Humanos em pactos ou acordos internacionais de
conteúdo mais específico; o que foi feito, sobretudo, em 1966 com a aprovação, pela Assembléia Geral das Nações Unidas, de dois
Pactos Internacionais: o de Direitos Civis e Políticos e o de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.[1]

A Declaração de 1948, retomando os ideais da Revolução Francesa, representou a manifestação histórica de que se formara, enfim,
em âmbito universal, o reconhecimento dos valores supremos da igualdade, da liberdade e da fraternidade (ou solidariedade) entre os
homens, como ficou consignado em seu art. I.

A força jurídica da Declaração

Tecnicamente, a Declaração Universal dos Direitos do Homem é uma recomendação, que a Assembléia Geral das Nações Unidas faz
aos seus membros (Carta das Nações Unidas, art. 10). Nessas condições, sustentou-se, originalmente, que o documento não teria
força vinculante.

Essa interpretação, porém, pecava por excesso de formalismo e acabou sendo abandonado. O entendimento, hoje largamente
majoritário, é de que a vigência dos direitos humanos independe de sua declaração em constituições, leis e tratados internacionais;
exatamente porque se está diante de exigências de respeito à dignidade humana, exercidas contra todos os poderes estabelecidos,
oficiais ou não. “Todo homem”, proclama o art. VI da Declaração, “tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa
perante a lei”.

O Estatuto da Corte Internacional de Justiça, em seu art. 38, enumera como fontes do direito internacional, a par dos tratados ou
convenções, também os costumes e os princípios gerais de direito. Ora, os direitos definidos na Declaração de 1948 correspondem,
integralmente, ao que o costume e os princípios jurídicos internacionais reconhecem, hoje, como exigências básicas de respeito à
dignidade humana. A própria Corte Internacional de Justiça assim tem entendido. Ao julgar, em 24 de maio de 1980, o caso da
retenção, como reféns, dos funcionários que trabalhavam na embaixada norte-americana em Teerã, a Corte declarou que “privar
indevidamente seres humanos de sua liberdade, e sujeitá-los a sofrer constrangimentos físicos é, em si mesmo, incompatível com os
princípios da Carta das Nações Unidas e com os princípios fundamentais enunciados na Declaração Universal dos Direitos
Humanos”.[2]

Os grandes princípios de direitos humanos na Declaração de 1948

A Declaração se abre com a afirmação solene de que “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos; são dotados
de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade” (artigo I).

Reconheceu-se, assim, na seqüência das primeiras declarações nacionais de direitos, a americana e a francesa, o princípio da
igualdade essencial de todo ser humano em sua dignidade de pessoa; vale dizer, o fundamento de todos os valores, sem distinções
de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição, como se diz
no art. II da Declaração. Esse reconhecimento só foi possível quando, ao término da mais devastadora das guerras até então
deflagradas, percebeu-se que a idéia de superioridade de uma raça, de uma classe social, de uma cultura ou de uma religião, sobre
todas as demais, põe em risco a própria sobrevivência da humanidade.

Nos anos subseqüentes, as Nações Unidas aprovaram duas convenções internacionais, destinadas a confirmar o princípio da igual
dignidade de todos os seres humanos: a primeira, em 1952, sobre a igualdade de direitos políticos de homens e mulheres; a segunda,
em 21 de dezembro de 1965, sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial.[3]

No curso da segunda metade do século XX, no entanto, percebeu-se que o princípio da igualdade de todos os seres humanos deve
ser complementado com o reconhecimento do chamado direito à diferença.

O pecado capital contra a dignidade humana consistiu sempre em considerar e tratar o outro – um indivíduo, uma classe social, um
povo – como inferior, sob pretexto da diferença de etnia, gênero, costumes ou fortuna patrimonial. Sucede que algumas diferenças
humanas não são deficiências, mas, bem ao contrário, fontes de valores positivos e, como tal, devem ser protegidas e estimuladas.
Pode-se aprofundar o argumento e sustentar, como fez Hannah Arendt ao refletir sobre a trágica experiência dos totalitarismos no
século XX,[4] que a privação de todas as qualidades concretas do ser humano, isto é, de tudo aquilo que forma a sua identidade
nacional e cultural, torna-o uma frágil e ridícula abstração. A dignidade da pessoa humana não pode ser reduzida à condição de puro
conceito.

À luz desse princípio, a UNESCO afirmou solenemente, na Declaração sobre Raça e Preconceito Racial, aprovada em 27 de
novembro de 1978, que “todos os povos têm o direito de ser diferentes, de se considerarem diferentes e de serem vistos como tais”.
Em 2005, a mesma UNESCO aprovou a Convenção Universal sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade Cultural e das
Expressões Artísticas.

Atualmente, o princípio da igual dignidade de todos os seres humanos é consagrado, no direito interno e no direito internacional, em
duas dimensões. Há a igualdade que os gregos denominavam aritmética ou sinalagmática (vale dizer, contratual), dominante no plano
das relações interindividuais, a qual supõe uma paridade de situações de fato. E há também a igualdade geométrica ou proporcional,
que consiste em tratar desigualmente os que se acham em situação desigual, na exata medida dessa desigualdade. Foi com
fundamento nessa última dimensão do princípio da igualdade que se criou o Estado Social, em substituição ao Estado Liberal, e que
se admitiram, em vários países, as chamadas “discriminações positivas”: as classes ou grupos sociais que dispõem de menos
recursos, materiais ou culturais, devem receber proporcionalmente mais dos Poderes Públicos, e vice-versa.
Quanto ao princípio da liberdade, a Declaração Universal de 1948 o desdobra em direitos políticos e direitos civis. A liberdade política
vem declarada no artigo XXI:

1. Todo homem tem o direito de tomar parte no governo de seu país, diretamente ou por intermédio de representantes livremente
escolhidos.

2. Todo homem tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país.

3. A vontade do povo será a base da autoridade do governo; esta vontade será expressa em eleições periódicas e legítimas, por
sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade do voto.

Como se percebe, já em 1948 reconhecia-se que a soberania do povo só se torna efetiva, quando a eleição de governantes é
complementada com o livre funcionamento de instituições da democracia direta ou participativa.

A especificação das liberdades civis é feita nos artigos VIII (direito de acesso à Justiça) e IX (“ninguém será arbitrariamente preso,
detido ou exilado”); bem como nos artigos XV a XX (direito de ter uma nacionalidade; liberdade de contrair matrimônio e fundar uma
família; direito de propriedade; liberdade de pensamento, consciência e religião; liberdade de opinião e expressão; liberdade de
reunião e associação). Quanto à liberdade de opinião e de expressão, todavia, a evolução histórica posterior à Declaração de 1948
veio demonstrar que as restrições não ocorrem apenas em Estados totalitários ou autoritários, mas também em Estados liberais, em
razão do oligopólio empresarial dos meios de comunicação de massa.

A Declaração Universal reconhece que ambas as dimensões da liberdade, a civil e a política, são complementares e
interdependentes. A liberdade política, sem as liberdades civis, não passa de engodo demagógico de Estados autoritários ou
totalitários. E a proteção das liberdades civis, sem uma efetiva soberania do povo, mal esconde a dominação oligárquica dos mais
ricos.

Finalmente, o princípio da solidariedade está na base dos direitos econômicos e sociais, que a Declaração consagra nos artigos XXII
a XXVI. Trata-se de exigências elementares de proteção às classes ou grupos sociais mais fracos ou necessitados, a saber:

a) o direito à seguridade social (arts. XXII e XXV);

b) o direito ao trabalho e à proteção contra o desemprego (art. XXIII, 1);

c) os principais direitos ligados ao contrato de trabalho, como a remuneração igual por trabalho igual (art. XXIII, 2); o salário mínimo
(art. XXIII, 3); o repouso e o lazer; a limitação horária da jornada de trabalho; as férias remuneradas (art. XXIV);

d) a livre sindicalização dos trabalhadores (art. XXIII, 4);

e) o direito à educação: ensino elementar obrigatório e gratuito, generalização da instrução técnico-profissional, igualdade de acesso
ao ensino superior (art. XXVI).

Sucedeu, porém, que, a partir do último quartel do século XX, o movimento de globalização capitalista, apoiado na propaganda
universal do chamado neoliberalismo, enfraqueceu sobremaneira, em quase todos os países, o conjunto dos direitos econômicos e
sociais.

As novas espécies de direitos humanos

À época do imediato pós-guerra, mal começava a fazer-se o reconhecimento de duas novas espécies de direitos humanos: dos povos
e da própria humanidade.

Os primeiros direitos dos povos, reconhecidos internacionalmente, foram o de autodeterminação e o direito à vida. O respeito à
autodeterminação dos povos foi declarado como um dos propósitos fundamentais das Nações Unidas, no art. 1 da sua Carta de
fundação. Quanto ao direito dos povos à vida, ele foi objeto da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio,
aprovada no mesmo mês de dezembro de 1948.[5]

Pelo teor dessa Convenção, as vítimas de genocídio são grupos nacionais, étnicos, raciais ou religiosos. Esses qualificativos
restringem, indevidamente, a punibilidade dos atos de extermínio em massa.[6] O século XX inaugurou a técnica dos massacres de
populações civis por razões puramente políticas, sem qualquer vínculo com qualificações nacionais, étnicas, raciais ou religiosas das
vítimas. Foi o que ocorreu, por exemplo, na Indonésia em 1965 e no Camboja entre 1975 e 1977.

Ao assumir o poder na Indonésia em 1965, graças ao um golpe de Estado, o General Suharto, sustentado pelos norte-americanos,
patrocinou um verdadeiro banho de sangue: cerca de meio milhão de pessoas, tidas como membros ou simpatizantes do Partido
Comunista Indonésio, foram exterminadas em poucos meses. A sinistra façanha foi retomada em 1978 contra a população do Timor
Oriental, que buscava sua independência, com o saldo final de quase 200.000 mortos, muito embora aqui houvesse também a
interferência de fatores culturais (a profissão de fé católica da maioria da população timorense).
No Camboja, a política de “ruralização” praticada pelo grupo armado comunista Khmer Vermelho, que tomou o poder no curso de uma
guerra civil em 1975, provocou a morte de aproximadamente um milhão e duzentas mil pessoas, ou seja, um quinto da população
total.[7]

No entanto, nenhum desses episódios enquadra-se, tipicamente, na definição de genocídio dada pela convenção.

A triste verdade, porém, é que vários casos de genocídio típico ocorreram, a partir dos anos 90 do século passado. A guerra civil que
opôs os sérvios aos bósnios na antiga Iugoslávia, entre 1992 e 1995, deixou um saldo de 250 mil mortos e de quase dois milhões de
pessoas expulsas de seus domicílios. No Ruanda, em 1994, entre 500 mil e 800 mil membros da etnia tutsi e integrantes moderados
da etnia hutu foram exterminados pelos extremistas hutus. Na região do Darfur, no Sudão, estima-se em 300 mil o número de
integrantes das minorias Fur, Masalit e Zaghawa, massacrados desde 2003 pelo governo de Omar Hassan al Bashir. Este, aliás, é o
primeiro chefe de Estado em exercício a ser processado perante o Tribunal Penal Internacional, do qual se falará mais abaixo.

Na verdade, todos esses episódios de massacre de populações estão ligados a uma situação de guerra, externa ou civil. A proteção
de soldados doentes e feridos, bem como de populações civis atingidas por um conflito bélico, constitui objeto do chamado direito
humanitário. Atualmente, esse ramo dos direitos humanos acha-se compendiado em quatro convenções internacionais, assinadas em
Genebra em 12 de agosto de 1949.

Infelizmente, também aqui o mal chamado direito do mais forte tem prevalecido sobre a força do direito. Exemplos recentes do
desrespeito que as grandes potências mundiais votam às Convenções de Genebra foram dado pelos Estados Unidos, com a invasão
do Afeganistão, após os atentados de 11 de setembro de 2001, e pela invasão do Iraque em 2003, esta última realizada contra
decisão do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Aos prisioneiros de guerra, civis ou militares, em mãos dos norte-
americanos, foi negado todo direito a um tratamento decente: encarcerados em celas de metal, eles foram acorrentados e obrigados a
usar capuzes, máscaras cirúrgicas e tampões nos ouvidos, durante as 24 horas do dia.

Posteriormente à Declaração Universal dos Direitos Humanos, outros direitos dos povos foram reconhecidos, especialmente na
Declaração de Argel de 1976 e na Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Direitos dos Povos de 1981: o direito ao
desenvolvimento, à livre disposição da riqueza e dos recursos naturais do seu território, o direito à paz e à segurança.

A idéia de que a própria humanidade é, da mesma forma, titular de direitos humanos surge pela primeira vez no estatuto do tribunal
militar internacional de Nurembergue em 1945, ao definir os crimes contra a humanidade. Essa noção foi retomada no tribunal militar
internacional de Tóquio de 1949, que julgou os criminosos de guerra japoneses naquele mesmo ano. Em 1968, as Nações Unidas
aprovaram uma Convenção sobre a imprescritibilidade dos crimes de guerra e dos crimes contra a humanidade, declarando que estes
últimos compreendem, além do genocídio, também os atos de apartheid, ainda que tais atos não sejam definidos como crimes pelas
leis internas dos Estados onde foram perpetrados. Finalmente, em 1998, a Conferência Diplomática de Plenipotenciários das Nações
Unidas, reunida em Roma, adotou o Estatuto do Tribunal Penal Internacional, com competência para julgar os responsáveis pelos
crimes de genocídio, os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra e o crime de agressão.[8]

Eis a definição de crimes contra a humanidade, dada pelo art. 7º do Estatuto do Tribunal Penal Internacional de 1998:

Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por "crime contra a humanidade", qualquer um dos atos seguintes, quando cometido
no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque:

a) Homicídio;

b) Extermínio;

c) Escravidão;

d) Deportação ou transferência forçada de uma população;

e) Prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das normas fundamentais de direito internacional;

f) Tortura;

g) Agressão sexual, escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada ou qualquer outra forma de
violência no campo sexual de gravidade comparável;

h) Perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais,
religiosos ou de gênero, tal como definido no parágrafo 3°, ou em função de outros critérios universalmente reconhecidos como
inaceitáveis no direito internacional, relacionados com qualquer ato referido neste parágrafo ou com qualquer crime da competência
do Tribunal;

i) Desaparecimento forçado de pessoas;

j) Crime de apartheid;

k) Outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a
integridade física ou a saúde física ou mental.
A criação do Tribunal Penal Internacional representa um marco na história dos direitos humanos. Pela primeira vez, fixaram-se regras
de responsabilidade penal em escala planetária, para sancionar a prática de atos que lesam a dignidade humana. Entendeu-se,
sabiamente, que em tais casos a definição do ato como criminoso, bem como o julgamento e a punição do agente responsável, não
constituem matéria adstrita à soberania nacional de cada Estado; tanto mais que, quase sempre, os agentes criminosos são
autoridades estatais, ou pessoas que gozaram de sua proteção para a prática de tais atos. Trata-se, sem dúvida, de um primeiro
passo apenas, pois várias grandes potências – como os Estados Unidos, a Rússia e a China – não subscreveram a convenção. Mas
esse início é irreversível.

Outros direitos da humanidade, já internacionalmente reconhecidos, têm por objeto a preservação do patrimônio natural e cultural, do
meio ambiente; a exploração do leito do mar, dos fundos marinhos e seu subsolo, além da jurisdição nacional; e a preservação do
genoma humano.

Em 1972, a UNESCO aprovou a Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural.[9]

Já a campanha mundial por um desenvolvimento sustentável iniciou-se em 1972, com a Conferência de Estocolmo sobre o Meio
Ambiente Humano, seguida vinte anos depois pela Conferência do Rio de Janeiro, ambas patrocinadas pelas Nações Unidas. Na
Conferência do Rio de Janeiro, foram também aprovadas, de um lado, uma Convenção sobre a Mudança Climática, que entrou em
vigor no plano internacional em 21 de março de 1994 e, de outro lado, a chamada Agenda 21, que estabelece o programa das
atividades a serem desenvolvidas durante o século XXI para a preservação do equilíbrio ecológico.

Em cumprimento ao programa da Agenda 21, foi assinado em 1998 em Kyoto, no Japão, um protocolo sobre a redução percentual,
variável conforme as diferentes regiões do mundo desenvolvido, sobre emissão de gases na atmosfera, em relação aos padrões de
poluição existentes em 1990. O protocolo, que entrou em vigor somente em 2005, estabelece um programa para a progressiva
redução na emissão de gases de efeito estufa até 2012. Os Estados Unidos, que já haviam se negado a assinar a Convenção sobre a
Diversidade Biológica, recusaram-se também a aderir a esse protocolo.[10]

Em dezembro de 2007, realizou-se em Bali, na Indonésia, a 13ª Conferência do Clima, destinada a preparar a renovação das metas
fixadas no protocolo de Kyoto a partir de 2013. A muito custo, conseguiu-se, no último minuto, evitar o veto norte-americano a uma
mera solução de compromisso, a qual consiste em iniciar um processo de negociação, a ser concluído em 2009.

Em 1982, a Convenção sobre o Direito do Mar declarou que o leito do mar, os fundos marinhos e seu subsolo, além dos limites de
jurisdição nacional, constituem “patrimônio da humanidade”. A Convenção determinou, numa perspectiva de solidariedade
internacional, que na exploração dessas áreas serão levados em conta, de modo particular, “os interesses e as necessidades
especiais dos países em desenvolvimento, quer costeiros, quer sem litoral”. Criou-se, assim, pela primeira vez na história, uma
organização mundial de exploração econômica de recursos naturais, em benefício de toda a humanidade. Os recursos minerais
sólidos, líquidos ou gasosos, localizados na área marinha além dos limites da jurisdição de cada Estado, foram subtraídos à
possibilidade de apropriação por algum Estado em particular.

O último direito da humanidade, reconhecido internacionalmente, tem por objeto o genoma humano. Na Declaração Universal sobre o
Genoma Humano e os Direitos Humanos, aprovada na 29ª sessão de sua conferência geral, em 1999, a UNESCO afirmou que “o
genoma humano está na base da unidade fundamental de todos os membros da família humana, assim como do reconhecimento de
sua dignidade intrínseca e de sua diversidade”. “Num sentido simbólico”, acrescenta, “ele é patrimônio da humanidade” (art. 1º).
“Cada indivíduo tem direito ao respeito de sua dignidade e de seus direitos, sejam quais forem suas características genéticas”, sendo
que “essa dignidade impõe a não-redução dos indivíduos às suas características genéticas e o respeito do caráter único de cada um,
bem como de sua diversidade” (art. 2º). A Declaração reconhece, ademais, a verdade científica de que “o genoma humano, pela sua
natureza evolutiva, é sujeito a mutações”, e que “ele encerra potencialidades que se exprimem diferentemente, de acordo com o meio
ambiente natural e social de cada indivíduo, especialmente em razão do estado de saúde, das condições de vida, da nutrição e da
educação” (art. 3º).

A partir dessas premissas fundamentais, a Declaração da UNESCO tira algumas conclusões importantes.

A primeira delas é de que “o genoma humano, em seu estado natural, não pode servir à obtenção de ganhos pecuniários” (art. 4º);
vale dizer, ele não pode ser objeto de apropriação para fins de exploração empresarial.

A segunda conclusão tirada pela Declaração da UNESCO sobre o caráter único de cada indivíduo, em razão da originalidade do seu
genoma, é de que toda pesquisa, tratamento ou diagnóstico, tendo por objeto o genoma de um indivíduo, só pode ser efetuado após
uma avaliação rigorosa e prévia dos seus riscos e vantagens potenciais, em conformidade com as prescrições da legislação nacional,
e, em qualquer caso, com o consentimento prévio, livre e esclarecido do interessado, ou, se este não está em condições de exprimir
seu consentimento, com a autorização prevista pela lei e orientada pelo seu interesse superior (art. 5º).

Demais, “a confidencialidade dos dados genéticos, associados a uma pessoa identificável, conservados ou tratados para fins de
pesquisa ou quaisquer outras finalidades, deve ser protegida nas condições previstas em lei” (art. 7º).

Finalmente, assentou a Declaração em seu artigo 11 que “as práticas contrárias à dignidade humana, tais como a clonagem com a
finalidade de reprodução de seres humanos, não devem ser permitidas”; instando-se junto aos Estados e organizações internacionais
competentes para a identificação dessas práticas e a tomada, em nível nacional ou internacional, das medidas apropriadas.

d d lí i i i l ó
A mudança no quadro político internacional, 60 anos após a
Declaração

Como se vê, a proteção da dignidade humana, que no texto da Declaração Universal de 1948 expressava-se no respeito a direitos
civis e políticos, e a direitos econômicos e sociais, compreende hoje, sessenta anos depois, mais duas modalidades de direitos
humanos: os direitos dos povos e os direitos da própria humanidade como um todo.

Sucedeu que a organização política, no interior da qual surgiu aquele texto magno – a Organização das Nações Unidas – modificou-
se sensivelmente. A ONU foi, de fato, uma criação dos Estados Unidos, concebida pela brilhante equipe de homens públicos que
assessorava o Presidente Franklin D. Roosevelt. O pressuposto de normal funcionamento da Organização era a permanência do
acordo político entre as potências que se haviam unido contra a Alemanha, a Itália e o Japão, durante a Segunda Guerra Mundial.
Roosevelt, porém, faleceu em abril de 1945, antes mesmo que o conflito terminasse oficialmente. A partir de então, teve início uma
outra confrontação mundial, conhecida como “guerra fria”, entre os Estados Unidos e seus aliados, de um lado, a União Soviética e os
países a ela subordinados, de outro lado.

A Declaração Universal de 1948, aliás, já reflete essa quebra de unidade entre os vencedores da guerra; tanto que, como assinalado,
os países comunistas abstiveram-se de votá-la. No ano imediatamente seguinte, a China, tradicionalmente sujeita às potências
ocidentais, e membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas, passa para o lado comunista, embora mantendo
uma posição independente em relação à União Soviética. Nos anos posteriores, outros países do Extremo Oriente – a parte norte da
Coréia, o Vietnã e o Camboja – também mudam de lado político.

Com esse novo quadro de disposição de forças no plano internacional, a ONU torna-se um obstáculo ao desenvolvimento da política
externa dos Estados Unidos. O Estado norte-americano, aliás, além de boicotar as Nações Unidas, decidiu não mais se submeter a
tratados internacionais de direitos humanos, por considerar que isto implica uma limitação de sua soberania. O último tratado dessa
espécie, ratificado pelos Estados Unidos, foi o Pacto de Direitos Civis e Políticos de 1966.

Em 1975, por iniciativa do então Presidente da França, criou-se, paralelamente à ONU, um grupo informal de países, com a finalidade
de harmonizar suas políticas externas. Foi o G7, composto pelos Estados Unidos, o Reino Unido, a República Federal Alemã, a
França, a Itália, o Canadá e o Japão. Com o desaparecimento da União Soviética, em 1991, a Rússia foi convidada a fazer parte do
grupo, que passou doravante a ser conhecido como G8. Completou-se, dessa forma, o esvaziamento das Nações Unidas.

Ora, a proteção internacional dos direitos humanos, com um mínimo de eficiência, exige a organização, acima das soberanias
estatais, de um poder político mundial. É este o grande desafio que enfrenta a humanidade, no atual início do novo milênio.

Uma primeira medida a ser tomada com essa finalidade diz respeito às convenções sobre direitos humanos, votadas pela Assembléia
Geral das Nações Unidas. A aplicação a tais convenções do sistema comum de ratificação individual pelos Estados-Membros
representa um anacronismo. Em sua obra fundadora do direito internacional[11], Grócio salientou que as convenções entre Estados,
analogamente aos contratos do direito privado, podem classificar-se em duas grandes espécies: as bilaterais e as multilaterais. As
primeiras, disse ele, dirimunt partes, isto é, separam os interesses próprios das partes contratantes, ao passo que as segundas
communionem adferunt, vale dizer, criam relações de comunhão. Ora, esse objetivo comunitário é mais acentuado no caso de
convenções multilaterais votadas no seio de uma organização internacional, cujas decisões, tal como no âmbito das sociedades ou
associações do direito privado, são normalmente tomadas por votação majoritária e não por unanimidade. O argumento de que a
assinatura de um tratado internacional, ou a adesão a ele, é ato do Estado e não simplesmente do governo não colhe no caso, pois o
ingresso do Estado na organização internacional já foi objeto de ratificação pelo seu Parlamento, e esta implicou, obviamente, a
aceitação de suas regras constitutivas.

É de inteira justiça, portanto, que a aprovação de convenções sobre direitos humanos seja incluída na categoria de assuntos a serem
decididos por uma maioria de dois terços, referidos no artigo 18, terceira alínea, da Carta das Nações Unidas, dispensando-se no
caso a ratificação individual dos Estados-Membros para sua entrada em vigor.

II - A Proteção dos Direitos Humanos no Brasil nos 20 Anos de


Vigência da Constituição Atual

O retorno do Brasil ao sistema internacional de direitos humanos

Encerrado oficialmente o regime militar com a promulgação de nova Constituição em 5 de outubro de 1988, o nosso país voltou a
fazer parte da comunidade internacional de defesa dos direitos humanos. Vários tratados sobre a matéria, já em vigor no plano
internacional, foram afinal ratificados; como os dois Pactos Internacionais de 1966, aprovados pela Assembléia Geral das Nações
Unidas[12]; a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969[13]; a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas
Cruéis, Desumanos ou Degradantes[14].

Até meados de 2008, o Estado Brasileiro foi várias vezes apontado, perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, como
responsável pela violação da Convenção de 1969. Em dois desses casos, a Comissão, não tendo obtido satisfação de nossas
autoridades, denunciou o Brasil perante a Corte Americana de Direitos Humanos.

Sucede que o maior número de violações graves de direitos humanos ocorre, entre nós, no âmbito estadual e não federal, em razão
de violências praticadas por policiais militares ou pelo mau funcionamento da Justiça estadual. A Convenção Americana de Direitos
Humanos dispõe, em seu art. 28, § 2º, que “no tocante às disposições relativas às matérias que correspondem à competência das
entidades componentes da federação, o governo nacional deve tomar imediatamente as medidas pertinentes, em conformidade com
sua constituição e suas leis, a fim de que as autoridades competentes das referidas entidades possam adotar as disposições cabíveis
para o cumprimento desta Convenção”.

Foi, sem dúvida, para atender a essa obrigação internacional que a Emenda Constitucional nº 45, de 2004, determinou que “nas
hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de
obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o
Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça
Federal” (Constituição, art. 109, § 5º).

A inovação, porém, revelou-se desde logo de eficácia muito limitada. A Emenda Constitucional foi objeto, nessa parte, de ação direta
de inconstitucionalidade, promovida pela Associação dos Magistrados Brasileiros; ação ainda não julgada pelo Supremo Tribunal
Federal até o momento em que escrevo estas linhas. Até meados de 2008, apenas em um caso a Procuradoria-Geral da República
suscitou o incidente de deslocamento de competência; e a providência foi rejeitada pelo Superior Tribunal de Justiça. Teria sido muito
mais adequado atribuir ao Ministério Público Federal o poder discricionário de provocar o deslocamento de competência, de pleno
direito, pelo simples ingresso no feito submetido ao exame da polícia judiciária estadual, ou a julgamento por órgão da Justiça local.

É que, tirante essa providência judicial, só resta à União o remédio heróico da intervenção no Estado (Constituição, art. 34, VII, b), o
que nunca ocorreu até hoje com esse fundamento.

A supremacia dos direitos humanos no novo sistema constitucional

Incontestável que, com a edição da vigente Constituição, em 5 de outubro de 1988, os direitos humanos passaram a ocupar uma
posição de supremacia no ordenamento jurídico brasileiro.

Pela primeira vez, em nossa história constitucional, eles são regulados no início do documento, logo após a declaração dos princípios
fundamentais. Nas Constituições anteriores, essa posição de precedência formal era ocupada pelas normas de organização do
Estado, como se fora este o principal objetivo de uma carta constitucional. Retomamos em 1988, pelo menos formalmente, a
concepção revolucionária francesa, expressa no art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: “Toda
sociedade, na qual a garantia dos direitos não é assegurada nem a separação de poderes determinada, não tem constituição”. A
função primordial desse documento solene, portanto, é de proteger a dignidade da pessoa humana contra todo abuso de poder.

Infelizmente, por um cochilo de redação, ao serem enumeradas, no art. 60, § 4º, as matérias inafastáveis do texto constitucional,
indicaram-se apenas “os direitos e garantias individuais” (inciso IV), sem referência explícita às demais espécies de direitos
fundamentais. Mas uma interpretação sistemática da Constituição supera, sem maiores dificuldades, essa imperfeição formal, pois o
art. 1º, inciso III, declara como fundamento da República Federativa do Brasil “a dignidade da pessoa humana”, da qual os direitos
fundamentais, todos eles, são meros desdobramentos.

Os princípios estruturais dos direitos humanos na Constituição

Na organização desses direitos, a Constituição de 1988 adotou alguns princípios estruturais.

O primeiro deles é o de que as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata (art. 5º, § 1º). Sem
dúvida, a própria Constituição criou o remédio judicial do mandado de injunção (art. 5º, inciso LXXI), “sempre que a falta de norma
regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”.[15]
Da mesma forma, atribuiu ao Supremo Tribunal Federal competência para declarar a inconstitucionalidade por omissão “de medida
para tornar efetiva norma constitucional” (art. 103, § 2º). Tais garantias judiciais não dispensam, porém, o Poder Executivo e o Poder
Judiciário de dar cumprimento imediato às normas constitucionais referentes a direitos e garantias fundamentais, nos casos concretos
submetidos à sua apreciação.

O segundo princípio estrutural do sistema de direitos humanos, na Constituição de 1988, é o de que os direitos e garantias
fundamentais, nela expressos, “não excluem outros, decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados” (art. 5º, § 2º). Superou-
se, assim, como assinalado no início desta exposição, a distinção entre direitos humanos e direitos fundamentais, introduzida pela
doutrina jurídica germânica e incorporada à Lei Fundamental de Bonn de 1949. Os princípios fundamentais da nossa organização
constitucional e o regime político adotado são declarados nos quatro primeiros artigos da Constituição. Os princípios aparecem sob a
forma de fundamentos (art. 1º)[16] e de objetivos (art. 3º)[17]. O regime político é republicano e democrático. A federação é forma de
organização do Estado e não qualidade do regime político.
Finalmente, o terceiro princípio estrutural do nosso sistema de direitos humanos, pelo menos na origem, é o da equiparação entre as
normas de direito interno e as de direito internacional. O já citado art. 5º, § 2º determina a inclusão no sistema constitucional “dos
tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Sucedeu, porém, que a Emenda Constitucional nº 45, de
2004, acrescentou um parágrafo ao art. 5º, determinando que somente terão força constitucional “os tratados e convenções
internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos
dos votos dos respectivos membros”. Houve, aí, uma clara violação ao princípio da irreversibilidade dos direitos humanos já
declarados oficialmente. Dado que o princípio da dignidade transcendental da pessoa humana se impõe não só aos Poderes Públicos
em cada Estado, mas também a todos os Estados no plano internacional, é juridicamente inválido suprimir ou enfraquecer direitos
fundamentais, por via de novas regras. O mínimo que se espera do Supremo Tribunal Federal (que parece ter estado na origem
dessa disposição da Emenda nº 45) é que a nova regra não se aplique retroativamente.

Deve-se notar que a equiparação entre as normas sobre direitos humanos de direito interno e direito internacional, no sistema de
origem da Constituição de 1988, completava-se com a disposição do art. 4º, determinando que o Estado brasileiro obedeça, nas suas
relações internacionais, ao princípio da “prevalência dos direitos humanos” (inciso II).

A declaração de direitos e garantias fundamentais no texto


constitucional

Quanto à declaração de direitos fundamentais, no texto constitucional, houve inegável modernização, ao se incluírem direitos
transindividuais, que transcendem a divisão da sociedade em classes, como os direitos do consumidor (art. 5º, XXXII).

Demais disso, os direitos sociais foram ampliados, para incluir, além da saúde, da educação e da previdência, também a moradia, o
lazer, a segurança, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados (art. 6º).[18]

Inovação importante foi a regulação conjunta dos direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social, no sistema dito de
seguridade social (Título VIII, Capítulo II). No quadro de um federalismo cooperativo, instituiu-se pela primeira vez, no setor da saúde,
a coordenação em um sistema único dos serviços federais, estaduais e municipais.

No campo da educação, o ensino fundamental tornou-se obrigatório e gratuito, assegurando-se, inclusive, sua oferta gratuita para
todos os que a ele não tiveram acesso na idade própria (art. 208, I). A Constituição declara que “o acesso ao ensino obrigatório e
gratuito é direito público subjetivo” (art. 208, § 1º).

Os direitos do trabalhador, tanto urbano quanto rural, foram reforçados (artigos 7º e seguintes). Além disso, reafirmou-se o dever
fundamental de dar à propriedade uma função social (art. 5º, XXIII), instituindo-se regras específicas de política urbana (artigos 182 e
seguintes) e de reforma agrária (artigos 184 e seguintes).

No campo da proteção da família, da criança e do idoso, as disposições dos artigos 226 e seguintes são louváveis. Em 13 de julho de
1990, foi promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990), que representa um modelo nessa
matéria. Em 7 de agosto de 2006,, por sua vez, foi sancionada e promulgada a chamada Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340),
originada de uma dupla tentativa de homicídio de marido contra a sua mulher, a qual acabou sendo levada ao exame da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos.

Da maior importância, também, o conjunto de normas protetoras dos direitos dos índios (artigos 231 e 232), cujo reconhecimento, na
consciência ética da coletividade, avança muito lentamente.

Outra inovação relevante diz respeito à proteção do meio ambiente (Capítulo VI do Título VIII).

Em matéria de direitos políticos, contudo, é preciso reconhecer que os avanços institucionais foram modestos.

Sem dúvida, a Constituição, como não poderia deixar de ser após o encerramento do regime militar, declara solenemente que “todo
poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente” (art. 1º, parágrafo único). O art. 14, por sua
vez, dispõe que “a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e,
nos termos da lei, mediante: I – plebiscito; II – referendo; III – iniciativa popular”.

Mas essas disposições de princípio são anuladas dentro do próprio sistema constitucional. De um lado, o poder de emendar a
Constituição pertence exclusivamente ao Congresso Nacional, não tendo o povo nem mesmo o direito de iniciativa (art. 60). De outro
lado, interpretando autoritariamente a regra do art. 49, inciso XV, o Congresso tornou a manifestação soberana do povo, por meio de
plebiscitos e referendos, dependente do prévio consentimento parlamentar. Ou seja, o mandante é obrigado a pedir autorização ao
mandatário para exercer os seus direitos.

No tocante às garantias fundamentais, a Constituição de 1988 apresenta alguns aperfeiçoamentos.

Foram criados novos remédios judiciais, como o mandado de injunção e o habeas data (art. 5º, LXXI e LXXII), e admitiu-se a
possibilidade de mandado de segurança coletivo (art. 5º, LXX).[19] A competência judicial do Ministério Público foi ampliada,
notadamente com a possibilidade de o órgão promover o inquérito civil e a ação civil pública (art. 129, III). Instituiu-se, além disso, a
Defensoria Pública, incumbida da orientação jurídica e da defesa judicial, em todos os graus, das pessoas necessitadas (art. 134).[20]

Além disso, a Emenda Constitucional nº 45, de 2004, determinou que “nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o
Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais
de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do
inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal” (Constituição, art. 109, § 5º).

A inovação, porém, revelou-se desde logo de eficácia muito limitada. Essa alteração constitucional foi objeto de ação direta de
inconstitucionalidade, promovida pela Associação dos Magistrados Brasileiros, ação ainda não julgada pelo Supremo Tribunal Federal
até o momento em que escrevo estas linhas. Até meados de 2008, apenas em um caso, a Procuradoria-Geral da República suscitou
o incidente de deslocamento de competência; e a providência foi rejeitada pelo Superior Tribunal de Justiça.

As alterações do texto constitucional em matéria de direitos humanos

É preciso, porém, não esquecer, como foi advertido logo no início desta exposição, que a vigência efetiva de uma Constituição é
sempre dependente do meio social onde ela deve aplicar-se. O conjunto das tradições e costumes, a mentalidade coletiva e a
situação do poder econômico privado condicionam fortemente a efetiva aplicação do ordenamento constitucional originalmente
promulgado, quando não provocam a mudança do texto normativo.

Ora, a alteração do texto original da Constituição ocorreu copiosamente nos últimos vinte anos. Foram 56 emendas normais e 6
emendas de revisão; o que significa uma média de mais de três alterações da Constituição por ano.

Dentre essas emendas, algumas vieram, sem dúvida, reforçar a proteção dos direitos fundamentais, quer quanto aos direitos sociais
em geral, por meio de medidas de saneamento financeiro, quer especificamente em relação aos direitos trabalhistas.

É lamentável, porém, verificar que várias outras emendas constitucionais enfraqueceram direitos consagrados na Constituição, em
flagrante violação ao princípio da irreversibilidade normativa nessa matéria. Assim foi com as sucessivas emendas que estabeleceram
a desvinculação das receitas da União para a realização de políticas sociais, ou das que reduziram direitos trabalhistas, sob pressão
do meio empresarial.

Não se pode deixar de notar, igualmente, que várias dessas emendas são inválidas, pois modificam o Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias, como se fosse possível voltar atrás no tempo. É escusado lembrar que as disposições transitórias, quer
de leis, quer de constituições, têm sua vigência encerrada, de pleno direito, com o término do prazo nelas determinado.

A resistência do meio social à aplicação das normas constitucionais

Apesar de tudo, a mentalidade social tem evoluído, no Brasil, em favor de uma crescente receptividade dos valores éticos,
consubstanciados nas normas de proteção da dignidade humana. É este, sem dúvida, o grande efeito pedagógico das declarações de
direitos, no plano interno e na esfera internacional.

Concomitantemente, porém, observa-se que o peso negativo do passado continua a manter, em nosso país, uma das situações de
mais profunda desigualdade social do mundo. Em razão dela, as políticas públicas de proteção dos direitos sociais são
permanentemente falseadas.

Três fatores, estreitamente ligados entre si, contribuíram para produzir esse efeito negativo: a escravidão, o sistema latifundiário e a
privatização do espaço público.

A escravidão de africanos e afrodescendentes, praticada oficialmente em nossa terra por quase quatro séculos, foi o crime coletivo de
mais longa duração nas Américas e um dos mais hediondos que a História registra.

Nos domínios rurais, os negros, mal nutridos, trabalhavam até 16 horas por dia, sob o chicote dos feitores. O tempo de vida do
escravo brasileiro no eito nunca ultrapassou 12 anos, e a mortalidade sempre superou a natalidade; de onde o incentivo constante ao
tráfico negreiro. Segundo as avaliações mais conservadoras, três milhões e meio de africanos foram trazidos como cativos ao Brasil.
O seu enquadramento no trabalho rural fazia-se pela violência contínua. Daí a busca desesperada de libertação, pela fuga ou o
suicídio.

As punições aplicavam-se em público, geralmente pelo açoite. Era freqüente castigar um escravo com até 300 chibatadas, quando o
Código Criminal do Império as limitava ao máximo de 50 por dia. Mas em caso de falta grave, os patrões não hesitavam em infligir
mutilações: dedos decepados, dentes quebrados, seios furados.

As seqüelas da escravidão permanecem bem marcadas até hoje em nossos costumes, mentalidade social e relações econômicas.
Atualmente, negros e pardos representam mais de 70% dos 10% mais pobres de nossa população. No mercado de trabalho, com a
mesma qualificação e escolaridade, eles recebem em média quase a metade do salário pago aos brancos, e as mulheres negras até
metade da remuneração dos trabalhadores negros. Em nossas cidades, mais de dois terços dos jovens assassinados, entre 15 e 18
anos, são negros.

A escravidão desenvolveu-se entre nós, desde o primeiro século da colonização, no quadro do grande domínio rural, produtor de
commodities para exportação. Tratava-se de um sistema de organização senhorial e doméstico, que os filósofos gregos denominaram
despótico, pois a palavra despotes, na língua helênica, designava o chefe de família e senhor de escravos. No caso brasileiro, no
território de sua propriedade o latifundiário dispunha de plenos poderes. Tal como o dominus romano, usufruía de larga clientela e
mantinha, a seu serviço, um verdadeiro exército particular. Suas relações com os demais senhores rurais, ou as autoridades políticas
e religiosas, eram de potência a potência, como entre Estados soberanos.

Confundiam-se, assim, no grande domínio rural brasileiro, o direito público e o direito privado; ou melhor, não havia propriamente
espaço público, pois tudo era submetido aos poderes dominiais do chefe. O julgamento definitivo de Frei Vicente do Salvador, emitido
no início do segundo século da colonização, merece ser mais uma vez repetido: “Nem um homem nesta terra é repúblico, nem zela e
trata do bem comum, senão cada um do bem particular”.

Tudo isso contribuiu, decisivamente, para a instalação permanente, no Brasil, de um regime político oligárquico, malgrado as
declarações constitucionais em contrário. A República Velha, como sabido, representou o apogeu do coronelismo, onde prevalecia, de
alto a baixo, a conhecida máxima política: “para amigos, tudo; para os inimigos, a lei” – lei, no caso, que era votada sob medida para
proteger os ricos e poderosos.[21]

É daí que veio, também, a tradição de violência letal das forças policiais de segurança,[22] e o velho costume dos interrogatórios sob
tortura nas Delegacias de Polícia. O regime militar, vigente de 1964 a 1985, adotou e ampliou essas práticas, com a invenção dos
“desaparecimentos” de opositores.

A partir de 1930, criamos uma legislação trabalhista, fundada no patronato estatal dos sindicatos operários. Iniciamos, também, a
política de assistencialismo oficial à população pobre. Em ambos os casos, o governante em funções, e não propriamente o Estado,
aparece como o protetor do povo, numa extensão do modelo coronelista do passado. É preciso, aliás, não esquecer que as palavras
pai e patrão tem origem no mesmo étimo latino.

Nesse contexto paternalista, é natural que os movimentos sociais, do campo ou da cidade, os quais dispensam o apoio dos políticos
nos seus programas de ação, e procuram organizar o povo para exigir diretamente o respeito aos seus direitos fundamentais, sejam
tidos pela opinião pública e, por via de conseqüência, por alguns setores do Judiciário e do Ministério Público, sem falar da Polícia,
como organizações criminosas.

Seria um funesto equívoco supor que a influência dos três fatores acima apontados – a escravidão, o latifúndio e a privatização do
espaço público – já não se faz presente nos dias atuais.

Entre 1995 e 2007, o Ministério do Trabalho registrou 30.036 casos de trabalhadores em condição análoga à de escravos.

A seu turno, o velho latifúndio se moderniza. Agora, já não estamos diante de patriarcas rurais, vivendo enfurnados em suas
fazendas, mas de governadores de Estado, ou empresas multinacionais de controle anônimo, responsáveis pela liquidação da
agricultura familiar e pelo incessante desmatamento da Amazônia. Crescem, com isso, de ano a ano, os conflitos agrários. Segundo
dados apurados pela Comissão Pastoral da Terra, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em 2007 houve homicídios ligados a
conflitos agrários em 14 Estados da federação, seis a mais do que no ano anterior. Análogo espraiamento territorial registrou-se
quanto à expulsão de famílias do campo: enquanto em 2006 tais incidentes ocorreram em 10 unidades da federação, em 2007 eles
foram registrados em 14 Estados.

Finalmente, a privatização do espaço público, em nosso país, recrudesceu com a vaga de globalização capitalista. O Estado brasileiro
enfraqueceu-se duplamente. De um lado, com a venda a particulares, notadamente estrangeiros, de grandes empresas estatais na
bacia das almas, e ainda por cima com financiamento do negócio pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. Em
segundo lugar, pelo endividamento público, que passou do equivalente a 28% do PIB em 1995 a 52,2% em 2003. Sem dúvida, a partir
de então houve uma redução da dívida líquida do Estado brasileiro de 11 pontos percentuais, em relação ao PIB. Mas à custa do
encolhimento dos dispêndios públicos com políticas sociais, mediante a desvinculação inconstitucional das despesas da União, como
foi assinalado acima.

Nesse capítulo da invasão generalizada do público pelo privado, cabe um lugar de destaque para os meios de comunicação de
massa. Rádios e televisões, por exemplo, servem-se de um espaço público para as suas transmissões, ou seja, um espaço
pertencente ao povo. E é por isso que elas carecem de permissão, autorização ou concessão para o exercício de suas atividades.
Mas elas são, entre nós, em sua quase totalidade, possuídas por empresas privadas e vivem de publicidade empresarial ou
governamental sem interesse público. Além disso, os meios de comunicação de massa passam, atualmente, por um processo de
grande concentração de poder. Seis redes controlam, no país, por intermédio de 138 grupos associados, 668 veículos de
comunicação (televisões, rádios e jornais).

E quem são as pessoas físicas que se escondem no anonimato empresarial nesse setor?

Em verdadeiro atentado à soberania nacional, o Congresso aprovou, em 2002, a mudança de redação do art. 222 da Constituição, a
fim de permitir que “a propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão sonora e de sons e imagens” possa pertencer a “pessoas
jurídicas constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sede no País”. Nenhuma exigência quanto à nacionalidade dos
controladores, em última instância, dessas pessoas jurídicas!
E isso, sem falar dos veículos de comunicação de massa possuídos por políticos. Em 2003, o Ministério das Comunicações informou
oficialmente que 30 senadores eram proprietários de empresas de rádio ou de televisão; o que é expressamente vedado pela
Constituição e pela lei. Em 2007, verificou-se que pelo menos metade das rádios comunitárias, autorizadas a funcionar no país,
achava-se sob controle de grupos com vínculos partidários. Ora, nem o mais incorrigível ingênuo imaginaria que os políticos atuam
nesse setor para defender o bem comum do povo.

Em pleno debate constitucional, nos Estados Unidos, James Madison afirmou que “um governo popular, sem informação popular, é
um prólogo à farsa, à tragédia ou a ambas as coisas”. Como não perceber a verdade dessa afirmação no campo dos direitos
humanos, com o advento da civilização de massas, a qual enseja, como todos sabem, a possibilidade de ampla manipulação da
opinião pública pelos meios de comunicação social?

Rumos para a reforma constitucional

Para corrigir esses defeitos graves de aplicação das normas constitucionais de proteção aos direitos humanos, é inadiável proceder a
uma reforma do nosso sistema político.

Formalmente, vivemos em regime republicano e democrático. Mas tanto a república, quanto a democracia, sempre foram entre nós,
para retomar a célebre expressão de Sérgio Buarque de Holanda, lamentáveis mal-entendidos. A república impõe a supremacia do
bem comum do povo (a res publica, no lídimo sentido romano), em relação a todo e qualquer interesse particular, seja ele de partidos,
de empresas, de agremiações religiosas, e até dos próprios órgãos estatais. A democracia, por sua vez, assenta-se na efetiva (e não
meramente simbólica) soberania popular; ou seja, no poder de controle do povo sobre todos os agentes públicos, que são afinal seus
servidores.

Para que o país comece a trilhar o caminho da reforma política, no sentido autenticamente republicano e democrático, a Ordem dos
Advogados do Brasil teve ocasião de propor três medidas institucionais.

A primeira delas medidas consiste no desbloqueio parlamentar dos mecanismos do referendo e do plebiscito. Como foi observado
acima, numa interpretação autoritária do art. 49, inciso XV da Constituição o Congresso Nacional, composto de mandatários do povo,
arrogou-se o poder de autorizar o mandante a votar em plebiscitos e referendos.

Convém aqui ressaltar, para corrigir uma opinião assaz difundida, que o sistema de direitos humanos está acima da soberania
popular. O povo, ainda que em votação unânime, não tem o poder de tomar medidas contrárias à dignidade humana. Ele também
está sujeito aos princípios que regem os direitos humanos, inclusive o de irreversibilidade, do qual já se falou acima. Nessas
condições, o povo brasileiro, quando for finalmente libertado da tutela do Congresso Nacional para votar em plebiscitos e referendos,
não poderá validamente, por exemplo, reintroduzir a pena de morte em nossa legislação.

A segunda medida de autêntica reforma política no sentido democrático é o reforço e a ampliação da iniciativa popular: reforço da
iniciativa popular de projetos de lei e criação da iniciativa popular de propostas de emenda constitucional.

Finalmente, a terceira medida de reforma em profundidade do nosso regime político é a instituição do recall, ou seja, do referendo
revocatório de mandatos eletivos.

O desbloqueio de plebiscitos e referendos, bem como a facilitação e o reforço da iniciativa popular legislativa, já são objeto de dois
projetos de lei oferecidos pela OAB ao Congresso Nacional, e que se encontram em tramitação: o projeto de lei nº 4.718/2004, na
Câmara dos Deputados, e o projeto de lei n° 01/2006, no Senado Federal. Se tais projetos forem convertidos em lei, o povo adquirirá,
entre outros, o poder de autorizar a alienação do controle de empresas estatais, assim como a realização de obras públicas
suscetíveis de causar grande impacto ambiental, como a transposição das águas do rio São Francisco, por exemplo. Adquirirá,
também, o poder de referendar emendas constitucionais e tratados internacionais. Pelo teor de ambos os projetos – é bom que se
diga – a iniciativa de plebiscitos e de referendos não é do Poder Executivo, mas do próprio povo, ou de uma minoria qualificada (um
terço) de Deputados ou Senadores.

Quanto à iniciativa popular legislativa, tais projetos a facilitam e reforçam, suprimindo exigências formais descabidas na coleta de
assinaturas, e instituindo o regime de preferência em sua tramitação.

O recall, por sua vez, é objeto da proposta de emenda constitucional nº 73/2005, no Senado Federal. Ela prevê a iniciativa popular
para o referendo revocatório de mandatos eletivos. Podem ser assim destituídos, pelo voto popular, não só o Presidente da República
e os Senadores, eleitos pelo sistema majoritário, como também os Deputados Federais, eleitos pelo sistema proporcional, mediante
dissolução da Câmara dos Deputados.

Conclusão

Neste limiar do terceiro milênio da era cristã, tomamos, todos, consciência de que está em sua fase conclusiva o longo processo
histórico de unificação da humanidade.

Sem dúvida, a simples expansão demográfica num espaço esférico limitado, como é o nosso planeta, já conduz, naturalmente, a esse
resultado. Mas a verdadeira unificação da espécie humana não é somente de massa física, mas de comunhão de valores éticos. E
isto supõe o estabelecimento de uma organização política mundial.

Justamente, a partir de meados do século XX, ou seja, no momento em que foi aprovada, na Assembléia Geral das Nações Unidas, a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, a humanidade percebeu que se encontrava diante de uma alternativa histórica decisiva.
Só havia duas opções para a organização política mundial: ela teria que apoiar-se, ou na força militar, na dominação tecnológica e na
concentração de poder econômico, ou então fundar-se no sistema universal de direitos humanos, como concretização dos princípios
de igualdade, liberdade, segurança e solidariedade.

A primeira opção pareceu, até há pouco, a mais viável, a partir do momento em que se deu o esfacelamento do império soviético e a
orientação irreversível da República Popular da China rumo a um capitalismo de Estado. Tais fatos sucederam concomitantemente ao
surgimento, graças à revolução eletrônica no setor das telecomunicações, de um mercado de âmbito mundial: a globalização
capitalista.

Ora, o capitalismo não é mero sistema econômico, mas uma forma global de vida em sociedade; ou, se se quiser, dando ao termo um
sentido neutro, uma civilização. Como tal, define-se ele por um espírito (no sentido em que Montesquieu empregou o termo), um
conjunto de instituições sociopolíticas e uma prática.

O espírito do capitalismo é o egoísmo competitivo, excludente e dominador. Daí por que toda espécie de colaboração entre
empresários é naturalmente tida por suspeita; assim como suspeita e nociva à boa economia sempre pareceu, desde as origens, aos
olhos dos empresários, a sindicalização dos trabalhadores e a organização reivindicativa dos despossuídos.

Nesse tipo de civilização, toda a vida social, e não apenas as relações econômicas, fundam-se na supremacia absoluta da razão de
mercado.

No campo econômico, opera-se, com isto, uma completa inversão ontológica. Enquanto o capital desumanizado é elevado à posição
de pessoa artificial, o homem é reduzido à condição de simples instrumento de produção, ou ao papel de mero consumidor a serviço
do capital.

Quanto ao arcabouço institucional do capitalismo, a sua peça-mestra é o confinamento da atividade estatal à proteção da ordem, do
contrato e da propriedade privada, como garantias do exercício da liberdade empresarial. O conjunto das liberdades civis e políticas
passa, assim, a exercer um papel secundário nesse quadro institucional: elas podem ser preteridas diante da liberdade de empresa,
como se tem visto amiúde na Ásia, na África e na América Latina.

Em contraposição ao capitalismo, é urgente construir uma civilização que garanta a toda a humanidade, tanto pelo seu espírito quanto
pelo sistema institucional ou a prática de vida, o direito de buscar uma vida mais feliz.

Em oposição ao individualismo excludente, o espírito da nova civilização há de ser a irradiação da fraternidade universal, a
organização de uma humanidade solidária, onde se editem enfim, “na paz, leis iguais, constantes, que aos grandes não dêem o dos
pequenos”, como sonhou Camões.[23]

Se todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos, segundo proclamou a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, a vida social há de organizar-se comunitariamente, à luz do princípio daquela justiça proporcional ou distributiva, sobre a
qual tão bem discorreu Aristóteles.[24] Pelo seu caráter eminentemente político, ela se contrapõe à justiça comutativa ou de troca,
que regula as relações contratuais entre particulares. Enquanto esta última diz respeito à igualdade de prestações, isto é, à
equivalência das coisas e serviços que se trocam por um preço, a justiça proporcional concerne à igualdade essencial dos homens,
que não se troca nem se vende, porque não tem preço e representa, por isso, um valor incomensuravelmente mais elevado do que o
econômico.

Quando o capitalismo avassala o Estado, ele introduz em seu funcionamento a lógica mercantil do intercâmbio de prestações, e dele
retira o poder-dever de submeter os interesses particulares à supremacia da coisa pública, ou bem comum do povo.

Sendo objetivo da justiça proporcional ou distributiva instaurar a igualdade substancial de condições de vida, é óbvio que ela só pode
realizar-se por meio de políticas públicas ou programas de ação governamental. Um Estado fraco, permanentemente submetido às
injunções do capital privado, no plano nacional ou internacional, é incapaz de atender à exigência do estabelecimento de condições
sociais de uma vida digna para todos. Nunca como hoje percebeu-se, tão nitidamente, o caráter anticapitalista dos direitos humanos
de natureza econômica, social e cultural.

A tarefa para a qual somos todos convocados nesta virada do milênio, no mundo inteiro e em cada país, é muito clara: construir uma
sociedade livre, justa e solidária. É, justamente, o primeiro objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, indicado no art. 3º
da Constituição de 1988.

Julho de 2008.

[1] Ratificados pelo Brasil pelo Decreto Legislativo n° 226, de 12 de outubro de 1991, e promulgados pelo Decreto n° 592, de 6 de
dezembro de 1992.
[2] International Court of Justice Reports, 1980, p. 42.

[3] Esta última Convenção foi promulgada no Brasil pelo Decreto n° 65.810, de 8 de dezembro de 1968.

[4] The Origins of Totalitarianism, nova edição, Harcourt Brace & Company, págs. 298 e s,

[5] Aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo n° 2, de 11 de abril de 1951, e promulgada pelo Decreto n° 30.822, de 6 de maio de
1952.

[6] É oportuno lembrar que essa restrição não constava do estatuto do tribunal militar internacional de Nurembergue, que julgou os
criminosos de guerra nazistas em 1945. Em seu art. 6, alínea c, foi definida como crime contra a humanidade a prática dos seguintes
atos: “o assassínio, o extermínio, a redução à condição de escravo, a deportação e todo ato desumano, cometido contra a população
civil antes ou depois da guerra, bem como as perseguições por motivos políticos e religiosos, quando tais atos ou perseguições,
constituindo ou não uma violação do direito interno do país em que foram perpetrados, tenham sido cometidos em conseqüência de
todo e qualquer crime sujeito à competência do tribunal, ou conexo com esse crime”.

[7] cf. Paul Johnson, Modern Times – The World from the Twenties to the Nineties, edição revista, Harper Perennial, 1991, p. 657.

[8] Pelo Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002, foi promulgada no Brasil a ratificação da convenção que criou o Tribunal Penal
Internacional. A Emenda Constitucional nº 45, de 2004, acrescentou um parágrafo ao art. 5º Constituição Federal de 1988, dispondo
que “o Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão”.

[9] Ela foi promulgada no Brasil pelo Decreto nº 80. 978, de 12 de dezembro de 1977.

[10] Na verdade, responsável por essa atuação contrária aos interesses da humanidade é o governo federal norte-americano. No
início de 2008, já havia 600 municípios e 25 estados da federação norte-americana, entre eles a Califórnia, que haviam adotado
metas de redução da poluição atmosférica.

[11] De Jure Belli ac Pacis, livro II, capítulo XII, §§ III e IV.

[12] Ratificados pelo Brasil pelo Decreto Legislativo nº 226, de 12 de dezembro de 1991, e promulgados pelo Decreto nº 592, de 6 de
dezembro de 1992.

[13] O Brasil aderiu à Convenção por ato de 25 de setembro de 1992, ressalvando no entanto a cláusula facultativa do art. 45, 1º,
referente à competência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos para examinar queixas apresentadas por outros Estados
sobre não cumprimento das obrigações impostas pela Convenção, bem como a cláusula facultativa do art. 62, 1º, sobre a jurisdição
obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos. A Convenção foi promulgada no Brasil pelo Decreto nº 678, de 6 de
novembro do mesmo ano. Pelo Decreto Legislativo nº 89, de dezembro de 1998, o Congresso Nacional aprovou “a solicitação de
reconhecimento da competência obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos para fatos ocorridos a partir do
reconhecimento, de acordo com o previsto no parágrafo primeiro do art. 62 daquele instrumento internacional”. Pelo Decreto nº 4.463,
publicado em 11/11/2002, foi promulgada essa declaração de reconhecimento da competência obrigatória da Corte.

[14] Aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo nº 4, de 23 de maio de 1989, e promulgada pelo Decreto nº 40, de 15 de fevereiro de
1991.

[15] Aliás, a primeira orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal foi, surpreendentemente, a de julgar inaplicável essa
norma, por ausência de lei regulamentadora. Ou seja, o remédio judicial criado especificamente para resolver o problema da omissão
legislativa foi julgado inaplicável, por ausência de lei regulamentadora...

[16] “A República Federativa do Brasil [...] constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II
– a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político.”

[17] “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II –
garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV –
promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

[18] O direito à moradia foi acrescentado ao art. 6º pela Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000.

[19] Com base nesse alargamento do mandado de segurança, discute-se atualmente, nos tribunais, o cabimento de habeas corpus
coletivo.

[20] A criação da Defensoria Pública, porém, não se fez de imediato. No Estado de São Paulo, ela só foi criada em 2006, e atua,
presentemente, em apenas vinte e duas das mais de seiscentas comarcas do Estado.

[21] A expressão vem da instituição da Guarda Nacional, criada pela Lei de 18 de agosto de 1831. Ela atuava como auxiliar do
Exército e exercia funções da polícia de segurança no território provincial. Todos os cidadãos brasileiros, maiores de dezoito anos,
eram obrigatoriamente nela inscritos. A patente de coronel era a mais elevada da Guarda Nacional. A corporação tornou-se, no final
do Império, meramente decorativa ou honorífica, mas a tradição de mandonismo local dos antigos coronéis ficou bem viva na mente
de todos.

[22] Segundo pesquisa realizada pelo Núcleo de Informações de Segurança e Violência do Instituto Pereira Passos, da Prefeitura do
Rio de Janeiro, com base em dados fornecidos pelo Instituto de Segurança Pública do governo do Estado, de 2000 a 2007 o número
de mortos pelas forças policiais, no Município do Rio de Janeiro, em relação ao número de pessoas detidas, subiu 87,5% (O Globo,
27 de julho de 2008, pág. 18).

[23] Os Lusíadas IX, 745-746.

[24] Ética a Nicômaco, 1131 a, 10 e ss.

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