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DECLARAÇÃO UNIVERSAL
DOS DIREITOS HUMANOS
COMENTADA
André Rehbein Sathler
Renato Soares Peres Ferreira
edições câmara
CIDADANIA
Preâmbulo • 15
PREÂMBULO
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
Preâmbulo
seres humanos devem tratar uns aos outros como um fim, nunca como um
meio. Isso significa dizer que pessoas não podem ser usadas como forma de
alcançar objetivos, não podem ser tratadas como objetos. Todo ser humano
é digno, tem valor absoluto e deve gozar de direitos básicos, iguais para
todos. Ninguém pode perder esses direitos, mesmo que, por alguma razão,
queira fazê-lo. São direitos inalienáveis, não podem ser vendidos ou nego-
ciados. Uma pessoa não pode, por exemplo, concordar em ser escravizada.
Os autores da DUDH fizeram questão de deixar bem claro que ela foi re-
digida tendo diante de si as atrocidades da Segunda Guerra Mundial. Em-
bora alguns pontos da Declaração Universal dialoguem com noções e tra-
dições milenares da humanidade, o que provocou a sua elaboração foi a
Segunda Guerra. Talvez a grande marca daquele conflito tenha sido justa-
mente a violação aberta, intencional e planejada de direitos de populações
civis. O Holocausto – tentativa de extermínio dos judeus na Alemanha –, por
exemplo, praticado pelos nazistas, foi um dos atos de barbárie que revolta-
ram a consciência da humanidade.
A Declaração Universal é, de certo modo, uma tentativa de eternização da
memória de atos como esses, para que nunca venham a ser esquecidos nem
repetidos. As experiências totalitárias do nazismo e do fascismo apresen-
taram o Estado como o maior violador dos direitos humanos. O genocídio
foi concebido como projeto político e realizado em escala industrial. Na An-
tiguidade, os mitos funcionavam para expiar acontecimentos traumáticos.
No nosso tempo, a resposta foi um documento formal, endossado simboli-
camente pelo conjunto de todos os povos.
A Organização das Nações Unidas foi fundada a partir de uma resolução
que diz muito sobre esse ponto:
Preâmbulo • 19
DUDH já foi subscrita por 193 países. O Brasil votou a favor da Declaração
Universal na Assembleia da ONU de 1948 e a assinou na mesma data de sua
proclamação – 10 de dezembro de 1948. Houve, e ainda há, muita discussão
sobre o caráter positivo dos direitos humanos, isto é, a possibilidade de que
sejam realmente compreendidos como lei, de que sejam imediatamente apli-
cáveis e devam ser respeitados desde já.
O fato é que a DUDH, ao mesmo tempo em que afirma direitos que devem
ser imediatamente reconhecidos e respeitados – como o da liberdade – traz
outros que têm caráter programático – como o do desenvolvimento econô-
mico. As declarações anteriores, sobretudo aquelas produzidas pelas revo-
luções liberais – a americana de 1776 e a francesa de 1789 – davam mais
importância à liberdade, o que ocasionava a predominância dos direitos
civis e políticos e a ausência de quaisquer direitos sociais, econômicos e
culturais que dependessem da intervenção do Estado. Isso não aconteceu
na Declaração Universal, que é tanto concreta quanto utópica: vale para o
presente e inspira o futuro, ao passo que mobiliza a ação com vistas a trans-
formar o hoje e a construir o amanhã.
A Declaração Universal tem um compromisso com a busca pela paz. Isso
implica a compreensão de que o respeito aos direitos humanos é necessário.
Quando desrespeitadas em seus direitos fundamentais, as pessoas podem
desesperar-se e adotar a violência como último recurso de resistência, o
que, por consequência, acaba com a paz.
A paz deve ser buscada entre todos e entre as nações. Em um cenário ideal,
povos pacíficos conviveriam amistosamente com outros povos. Esse tipo de
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E a eficácia dos direitos humanos, sua efetividade no dia a dia das pessoas,
é premissa para que a ONU possa alcançar o compromisso expresso em sua
carta de fundação. A Declaração Universal, portanto, está intimamente li-
gada aos próprios propósitos e à razão da existência de uma Organização
das Nações Unidas.
Após sua proclamação, a DUDH vem a público como um ideal comum
a ser atingido por todos os povos e todas as nações. A proclamação im-
plicitamente reconhece que os direitos humanos não são naturais (existe
uma antiga polêmica sobre a possibilidade de o ser humano, em estado de
natureza, ter direitos). A ONU solicita o esforço de cada um e de cada órgão
da sociedade, portanto individual e coletivo, para promover o respeito a
esses direitos e liberdades. A DUDH é universal, assim como os direitos nela
postulados – pela primeira vez, a humanidade inteira teria um referencial
ético, um mínimo ético irredutível, como norte para todos.
A Declaração Universal aponta um caminho: ensino e educação. A esse
ponto conecta-se diretamente o objetivo do presente livro, uma obra de en-
sino e educação com relação aos direitos humanos, uma tentativa de explicá-
-los e contextualizá-los na vida cotidiana, de modo que estejam sempre em
evidência e assim tenham efetividade garantida.
Portanto, como afirmamos no início desse tópico, o preâmbulo da DUDH
contém os princípios e os valores que devem ser referência para a inter-
pretação de tudo o que estiver nela contido. A sequência de artigos traz as
definições, a ampliação e a tradução desses princípios e valores em direitos
passíveis de serem garantidos, reivindicados e acionados, nos casos de sua
violação.
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ARTIGO 1º
Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em
direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para
com os outros em espírito de fraternidade.
1. Entenda
O início da Declaração Universal tem um forte caráter simbólico. Não à
toa o art. 1º foi o de mais demorada discussão e deliberação. O mundo tinha
saído de uma guerra em que pessoas tiveram seus direitos totalmente des-
considerados e foram exterminadas em massa por conta de sua etnia. Os
primeiros direitos humanos firmados pela Declaração Universal estabele-
ceram a liberdade, a igualdade e a fraternidade como fundamentais – esta-
riam na raiz de todos os outros direitos que seriam discutidos.
É importante ter em mente que, mais do que uma “lista”, a Declaração Uni-
versal é um conjunto de princípios inter-relacionados derivados de ideias
abrangentes, expressas no preâmbulo e nos dois artigos iniciais. Saber que
a DUDH deve ser compreendida como um todo evita leituras fragmentadas
e equivocadas do documento (AMAR, 1991, p. 1.131). É isso que se entende
quando se afirma que os direitos humanos são indivisíveis – a violação a
um dos direitos afeta todos os demais direitos. Essa concepção foi depois
reforçada pela Declaração de Direitos Humanos de Viena, aprovada em
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1 Digno de nota que René Cassin, o responsável pela inclusão desses dois primeiros
artigos, que fazem uma afirmação de fé na racionalidade e na consciência humana,
era veterano da Primeira Guerra Mundial e perdeu 21 parentes em campos de
concentração na Segunda Guerra. Em 1968, foi reconhecido com o Prêmio Nobel da
Paz (GLENDON, 1998).
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1789). A fraternidade, por sua vez, foi adotada como o princípio que deveria
mediar a relação entre pessoas livres e iguais.
Importante perceber que o art. 1º fala em liberdade sem usar adjetivos,
mas menciona a igualdade qualificada em “dignidade e direitos”. A discussão
aqui, que também esteve presente entre os revolucionários franceses, era se
a igualdade deveria ser formal (pertencente exclusivamente ao âmbito da
política) ou se deveria ser material (aplicar-se também ao plano econômico).
Apesar de muitos que defenderam e ainda defendem que a igualdade deve se
estender tanto ao político quanto ao econômico, a desigualdade econômica
é fato presente em praticamente todas as eras e civilizações.
Em que pese tratar apenas da igualdade formal, o primeiro artigo da DUDH
dá um passo além da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão ao afir-
mar a igualdade na dignidade. Isso indica que a condição humana traz em si
mesma valor incalculável, que faz com que todos devam ser pensados e tra-
tados como um fim, nunca como um meio (proposta que se tornou mais fa-
mosa na voz do filósofo Immanuel Kant). Aceitar que um ser humano possa
ser escravo, por exemplo, é considerar esse ser humano como meio. Além dis-
so, posteriormente a Declaração de Direitos Humanos de Viena viria a afir-
mar que existe uma interdependência entre os valores dos direitos huma-
nos, a democracia e o desenvolvimento econômico (ONU, 1993). A dimensão
da igualdade material não ficou completamente ausente.
A razão e a consciência são reconhecidas como atributos de todos, indis-
tintamente. Aqui também podemos enxergar o pensamento iluminista: ao
ser humano deve ser garantido o direito de emancipação, de decidir por si
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No âmbito institucional, o Estado assegura que essas pessoas livres e com di-
reitos iguais – os cidadãos – possam exercer efetivamente sua autonomia, de
modo que uma vontade coletiva possa surgir e ser expressa no Poder Legisla-
tivo. A força social integradora será a fraternidade, traduzida em uma capaci-
dade de se alcançarem processos não violentos de entendimento, elaborados
com razão e consciência e, por isso, capazes de respeitar diferenças e promo-
ver convergências. O art. 21º da DUDH, que trata dos direitos políticos ineren-
tes ao ser humano, retoma essa concepção, sinalizando a democracia como
forma preferencial de organização dos sistemas estatais.
Fazendo outra menção ao pensamento de Habermas (2003), vale lembrar
de sua insistência no papel da capacidade comunicativa como caminho para
realização desses processos de integração social não violenta, com as pes-
soas negociando interpretações comuns das diversas situações e buscando
harmonizar entre si os seus respectivos planos e prioridades, por meio de
processos de entendimento. Essa perspectiva se torna ainda mais impor-
tante diante da crescente complexidade da sociedade, da coexistência de
muitas formas de vida diferentes e da individualização das histórias pes-
soais, com suas inevitáveis sobreposições, divergências e convergências.
Logo em seu primeiro artigo, a DUDH rompeu com quaisquer critérios
discriminatórios – mesmo que tenham sido considerados admissíveis du-
rante séculos – como as diferenças entre nobres e plebeus, proprietários e
despossuídos, homens e mulheres, negros e brancos. Também colocou um
princípio – a fraternidade – capaz de dar conta de um desafio típico do mun-
do moderno: a estabilização social mesmo diante da constante interação de
pessoas portadoras de direitos e atores autônomos.
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2. Não confunda
A afirmação de igualdade da Declaração Universal é uma afirmação po-
lítica. Como mencionado, ela não equivale a uma igualdade material, mas a
Declaração Universal não deixou a dimensão econômica integralmente de
lado. A desigualdade econômica extrema, como a que vivemos atualmente,
impossibilita o acesso e a realização de outros direitos. Por isso, além de
assegurar a igualdade formal, a DUDH prevê direitos que se relacionam à
noção de justiça social e à busca de prosperidade para todos. Evidentemente
isso não significa, por exemplo, a abolição dos direitos de propriedade, aliás,
reafirmados na Declaração Universal.
O primeiro artigo da DUDH também não trata da abolição do Estado. No-
ções como a de soberania e princípios como os de autodeterminação e não
interferência ainda são válidos na presente ordem internacional. Estados
existem e são necessários. O que a Declaração Universal faz é antepor a qual-
quer Estado o princípio de que as pessoas têm direito a ter direitos e que es-
ses direitos não podem ser violados, ainda que por um poder soberano como
o do Estado.
3. Saiba mais
As declarações de direitos anteriores, como a Bill of Rights britânica, a De-
claração de Independência dos Estados Unidos da América e a Declaração
de Direitos do Homem e do Cidadão, francesa, eram voltadas para comuni-
dades específicas. Não se propuseram a afirmar uma realidade que tivesse
alcance universal. Esse pensamento já estava disponível na época em que
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Mussolini. Ele afirmou, por exemplo: “Tudo no Estado, nada contra o Estado e
nada fora do Estado”. Para completar a tríade dos países que formaram o cha-
mado Eixo, na Segunda Guerra Mundial, o Ministério da Educação japonês
publicou em 1941 um documento com o título O caminho dos súditos (Shinmin
no Michi), no qual afirmou que “As teorias de base desses novos princípios
sociais e do totalitarismo, na Alemanha e na Itália, visam afastar os malefí-
cios constituídos pelo individualismo e pelo liberalismo” (SCHMITZ, 2018).
A Declaração Universal assume perspectiva radicalmente oposta – os di-
reitos dos indivíduos vêm antes dos do Estado e o Estado não deve ser capaz
de privar o indivíduo de seus direitos básicos e de sua dignidade.
Ainda que nos tempos atuais a igualdade formal (política) seja considera-
da insuficiente, é importante ressaltar que à época de suas primeiras afir-
mações (Declaração de Independência dos Estados Unidos e Declaração de
Direitos do Homem e do Cidadão) ela foi uma revolução. Até aquele momen-
to, prevalecia a concepção de uma sociedade em que os seres humanos eram
hierarquizados: havia os nobres e os plebeus. As possibilidades de vida e o
exercício de direitos e deveres eram extremamente diferentes entre as di-
ferentes categorias de pessoas. Categorizar os seres humanos é o primeiro
passo para o colapso moral. A igualdade política cria, ao menos, possibilida-
des para a superação de outras desigualdades.
futuro que não se concretiza. O Brasil foi o último país da América Latina a
abolir a escravidão (a Lei Áurea é de 1888) e conduziu o processo de forma
a não propiciar, de imediato, qualquer condição de inserção cidadã dos es-
cravos libertos. Os analfabetos só tiveram direito de voto em 1985, quase
cem anos após a Proclamação da República. Somente em 1979 o Brasil as-
sinou e ratificou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres, outro documento da ONU. E se o Brasil
avançou lentamente no plano normativo, o passo é ainda mais arrastado
nas práticas e vivências cotidianas.
Outro elemento importante é a gritante desigualdade econômica existen-
te em nosso país. Dados científicos demonstram que o Brasil se localiza entre
os países mais desiguais do mundo (SOUZA, 2018) e isso tem sido uma cons-
tante ao longo de todo seu período republicano. Em uma democracia liberal,
a desigualdade econômica pode existir. Contudo, quando essa desigualdade
se torna acentuada demais, acaba resultando em desigualdade política e vio-
lando, de forma indireta, o primeiro artigo da DUDH. Nas palavras de Lilia
Schwarcz (2019), “desde o período colonial, passando pelo Império e chegan-
do à República, temos praticado uma cidadania incompleta e falha, marcada
por políticas de mandonismo, muito patrimonialismo, várias formas de ra-
cismo, sexismo, discriminação e violência”.
Em dois períodos, o país viveu sob regimes ditatoriais. No último deles, a
ditadura militar, que foi de 1964 a 1985, havia a vigência efetiva de desigual-
dade de direitos políticos. Parlamentares foram cassados sem justificativa,
apenas por expressar opiniões contrárias ao regime. Quem fosse a favor
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ARTIGO 2º
Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberda-
des proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma,
nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de
opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna,
de nascimento, ou de qualquer outra situação.
1. Entenda
O segundo artigo da Declaração Universal presta-se a sublinhar, com
grande ênfase, o caráter verdadeiramente universal de suas disposições,
sem que se admita qualquer ressalva quanto aos destinatários dos direitos
que enumera. A ideia fundamental é que os direitos consagrados na Decla-
ração Universal são titularizados por todo e qualquer ser humano.
A DUDH enumera as distinções que não podem ser feitas entre os seres
humanos em dois grupos, separados nos dois trechos do art. 2º. No primeiro
grupo, há referências a distinções sociais, como “raça, cor, sexo, língua, re-
ligião, opinião, origem, fortuna ou nascimento” e, no segundo, a distinções
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2. Não confunda
É interessante perceber que concretizar a proclamação de que os direitos
humanos são titularizados por todo e qualquer ser humano não é tão sim-
ples quanto parece. Ao mesmo tempo em que consagra essa afirmação no
art. 2º, a Declaração Universal se apoia nos atributos básicos humanos de
razão e consciência no art. 1º. O que a DUDH quer deixar claro é que a todo
ser humano é reconhecido um conjunto de direitos, exatamente por serem
todos dotados de razão e consciência.
Deve-se ter o cuidado de não tomar os atributos básicos humanos de ra-
zão e consciência, mencionados no art. 1º, como requisitos que possam limi-
tar a universalidade dos direitos que a DUDH proclama no art. 2º. A Declara-
ção Universal não quer dizer, no seu art. 2º, que todo ser humano titulariza
os direitos consagrados por ela se for dotado de razão e consciência. O que
ela quer dizer é que os humanos são sempre dotados desses dois atributos
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3. Saiba mais
O fato de a Declaração Universal sublinhar, em um artigo à parte, que ela
se dirige a todo e qualquer ser humano é explicado pelo seu contexto histó-
rico. Como em outros trechos do documento, a ênfase na não discriminação
entre as pessoas é uma resposta a fatos então recentes e um compromisso
de não deixar que se repetissem os abusos verificados no período entre-
guerras e, especialmente, no período da Segunda Guerra Mundial. O aspecto
histórico é, assim, o “elemento central do reconhecimento do direito à não
discriminação” (SCHROEDER, 2016, p. 232).
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