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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE DIREITO DO LARGO DE SÃO FRANCISCO


DEPARTAMENTO DE DIREITO PROCESSUAL (DPC)

EDUARDO BIASOLI JORGE ELIAS

ANÁLISE DA ADEQUAÇÃO DO PREJUÍZO PARA A PROCESSUALÍSTICA PENAL

Projeto de Pesquisa do Trabalho de


Conclusão do Curso (“Tese de Láurea”)
apresentado ao Departamento de Direito
Processual da Faculdade de Direito do Largo
de São Francisco - FDUSP, conforme o
Edital Tese de Láurea CG-FD nº 01/2023 de
03 de abril de 2023.

SÃO PAULO
2023
ÍNDICE PARCIAL

I. O Desenvolvimento do Adágio do Prejuízo: De Sua Origem Material Francesa ao


Direito Processual Penal Brasileiro..................................................................................04

1. Introdução: A Instrumentalidade do Processo Penal e os Sistemas de Nulidade...........04

2. O Prejuízo na História: Breve Digressão sobre os Antecedentes que Culminaram na


Consolidação do Adágio do Pas de Nullité sans Grief......................................................06

3. A França entre os Séculos XVII e XIX: O Berço do Prejuízo........................................08

4. Prejuízo Material x Processual. A Expansão do Adágio para Além do Campo


Privado.............................................................................................................................11

5. Da França à América: A Introdução do Prejuízo no Direito Brasileiro..........................14


SUGESTÃO DE REPARTIÇÕES

I. O DESENVOLVIMENTO DO ADÁGIO DO PREJUÍZO: DE SUA ORIGEM MATERIAL


FRANCESA AO DIREITO PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO

1. INTRODUÇÃO: A INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO PENAL E OS SISTEMAS DE

NULIDADE

2. O PREJUÍZO NA HISTÓRIA: BREVE DIGRESSÃO SOBRE OS ANTECEDENTES QUE

CULMINARAM NA CONSOLIDAÇÃO DO ADÁGIO DO PAS DE NULLITÉ SANS GRIEF

3. A FRANÇA ENTRE OS SÉCULOS XVII E XIX: O BERÇO DO PREJUÍZO

4. PREJUÍZO MATERIAL X PROCESSUAL. A EXPANSÃO DO ADÁGIO PARA ALÉM DO CAMPO


PRIVADO

5. DA FRANÇA À AMÉRICA: A INTRODUÇÃO DO PREJUÍZO NO DIREITO BRASILEIRO

II. A EXPANSÃO DO PREJUÍZO PARA A PROCESSUALÍSTICA PENAL: EVENTUAIS


INCOMPATIBILIDADES GERADAS PELA TRANSPOSIÇÃO DO ADÁGIO

1. O ENTENDIMENTO DE PREJUÍZO PARA O DIREITO MATERIAL PRIVADO: BALIZAS E

CRITÉRIOS DE AFERIÇÃO

2. O ENTENDIMENTO DE PREJUÍZO PARA O DIREITO PROCESSUAL CIVIL: BALIZAS E

CRITÉRIOS DE AFERIÇÃO

3. O PREJUÍZO NO DIREITO PROCESSUAL PENAL: PROBLEMÁTICAS NA APLICAÇÃO DO

ADÁGIO

4. A PROCESSUALÍSTICA PENAL SOB A ÓTICA CONSTITUCIONAL. INCOMPATIBILIDADE DO


PREJUÍZO
I. O DESENVOLVIMENTO DO ADÁGIO DO PREJUÍZO: DE SUA ORIGEM MATERIAL
FRANCESA AO DIREITO PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO

1. INTRODUÇÃO: A INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO PENAL E OS SISTEMAS DE

NULIDADE

Não há fins sem meios no Direito Penal.

A despeito de reduzida, a afirmativa posta remete o leitor ao primeiro norte


elementar para a compreensão do recorte relegado ao presente trabalho: modernamente,
a pena não existe por si mesma dentro do ordenamento jurídico.

Essa máxima está intrinsecamente conectada com a própria atual compreensão do


conceito de Estado, visto como único detentor do monopólio da força. 1 Se o ente
supraindividual fora criado, dentre outras razões, para propiciar uma homogeneização do
tratamento relegado aos que a ele se sujeitam, então há de existir ferramentas que
garantam esta identidade de tratamento.

Isso pois - e não faltam exemplos à História para se demonstrar2 - o Estado se coloca
como ferramenta formidável para a violação dos mais basilares valores fundamentais da
vida humana – que, justamente, foram consolidados como tal após serem,
sistematicamente, nos mais diversos cenários, períodos e modos, rebaixados.

O ethos do poder instaurado é trespassar qualquer fronteira 3, e goza o chamado


“direito de punir”, em razão da sua própria natureza, de especial predileção para que seja
concretizado eventual alargamento desejado.

Por essas razões, a marcha do desenvolvimento das ciências criminais, a despeito


de não ser uniforme, procurou elaborar balizas a fazerem frente à natureza da expansão
do poderio estatal. Nesse sentido, um de seus mais notáveis institutos é, justamente, o
direito processual penal, meio pelo qual se justifica a seara material da punição.

1
RANIERI, Nina. Teoria do Estado: do Estado de Direito ao Estado Democrático de Direito. 1. Ed.
São Paulo: Manole, 2013.
2
Veja-se, como bem destacado pelos estudos que orbitam a Justiça de Transição, as violações praticadas
no Cone-Sul no bojo das ditaduras militares do século XX. Nesse sentido, BETHEL, Leslie. História da
América Latina. A América Latina Após 1930: Argentina, Uruguai, Paraguai e Brasil, 2018
3
GLOECKNER, Ricardo. Uma Nova Teoria das Nulidades: Processo Penal e Instrumentalidade
Constitucional. 2010. 637 f. Tese (Doutorado em Direito), Faculdade de Direito, Universidade Federal do
Paraná, Curitiba, 2010, p. 14
À essa característica da processualística penal, atribui a doutrina sua faceta
denominada como instrumentalidade,4 não enquanto legitimador acrítico do poder
punitivo per si, mas de balizas que garantem respeito aos seus preceitos fundamentais
postos.

Portanto, o ordenamento pátrio, enquanto um todo, prevê a tipicidade processual,


formalística que deve ser seguida para o resguardo de direitos basilares e, por
consequência, para que seja válida pena eventualmente aplicada. Ao desrespeito da forma
prevista – ou a um de seus preceitos fundamentais -, um efeito é, via de regra, cominado:
a declaração da nulidade do ato amorfo.

A extensão das consequências de referida arguição, bem como os próprios


contornos do conceito de nulidade, contudo, não restaram imutáveis ao longo do decurso
histórico do processo penal enquanto ramo autônomo do direito. Em verdade, seu escopo
se confunde com a própria evolução do formalismo no âmbito do processo, dele
indissociável por significativa parte de sua existência.5 .

Assim, uma análise sobre referido instituto deve perpassar, necessariamente, pela
abordagem dos sistemas de formas processuais. Nesse viés, Gloeckner os agrupa em
quatro grandes modelos: (i) o sistema formular; (ii) o sistema judicial; (iii) sistema de
taxatividade; e, enfim, (iv) o sistema do prejuízo.6

(i) A primeira categoria, cronologicamente também a mais exordial (ao menos em


relação às raízes dos ordenamentos jurídicos ocidentais) pode ser sintetizada pela máxima
relegação de relevância à solenidade.

A forma, portanto, representaria um fim em si mesma. Uma pretensão só poderia


ser satisfeita se – e somente se – aquele que eventualmente pleiteasse tutela estatal
seguisse à risca a ritualística posta. Efígie máxima de referida sistemática são as legis
actiones do Direito Romano, que, à título de exemplificação, assevera Moreira Alves:

O processo das ações da lei é todo oral, quer diante do magistrado (in iure),
quer do juiz popular (apud iudicem). Caracteriza-se, principalmente, pela
rigidez do formalismo a ser observado pelos litigantes a ponto de alguém – o

4
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 1° volume. 32 edição. São Paulo: Saraiva Jus,
2010.
5
ZACLIS, Daniel. A regra do prejuízo e as nulidades processuais: construção de um modelo racional
de aplicação do "pas de nullité sans grief" no âmbito do processo penal brasileiro. 2015. Dissertação
(Mestrado em Direito Processual) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.
6
GLOECKNER, Ricardo. Uma Nova Teoria das Nulidades: Processo Penal e Instrumentalidade
Constitucional. 2010. 637 f. Tese (Doutorado em Direito), Faculdade de Direito, Universidade Federal do
Paraná, Curitiba, 2010, p. 240 - 241
exemplo é de Gaio 4 – perder a demanda pelo fato de haver empregado em
juízo a palavra uitis (videira), em vez do termo arbor (árvore), como
preceituava a Lei das XII Tábuas com relação à actio de arboribus succisis
(ação relativa a árvores cortadas), e isso apesar de, no caso concreto, as
árvores abatidas terem sido justamente videiras.7

(ii) O sistema judicial, ao revés, relega ao magistrado a discricionariedade de


apontar a existência de um defeito na forma (e, por consequência, também a necessidade
de se renovar um ato defeituoso). Há, portanto, nesta sistemática, uma desvinculação à
critérios legais, restando a cargo do juiz, em última análise, decidir sobre a lisura de
solenidade perpetrada (o que, por conseguinte, conduz à inevitável conclusão de que não
poderiam os magistrados eles mesmos produzirem mácula nos procedimentos).

(iii) Em um prisma diametralmente oposto ao modelo judicial, se coloca o sistema


formular. Corolário do Iluminismo e do brocardo ne pas de nullité sans texte, o modelo
da taxatividade vincula o reconhecimento de vício não mais ao arbítrio pretoriano, mas à
estrita legalidade.

Conforme postula Deroussin, (ano da publicação) referida sistemática buscou trazer


limitação objetiva ao poder do intérprete, em contrapartida ao que fora desempenhado em
períodos absolutistas, relegando maior soberania ao legislador,8 que passava a gozar de
maior autonomia após o período revolucionário francês.

(iv) Por fim, a última categoria representa ponto mediano entre os modelos judicial
e da taxatividade. É na vigência do prejuízo que, enfim, é consolidado o adágio do pas de
nullité sans grief, que preconiza que, ainda que se verifique a amorfia de ato praticado ao
curso do processo, o intérprete apenas deve reconhecer sua nulidade (com a incidência
das consequências jurídicas de referida arguição) se for verificado no caso concreto
efetivo prejuízo à parte.

É neste último modelo, destarte, que se desenvolve o objeto principal do presente


trabalho: a noção de prejuízo, conforme fora empregada na processualística penal
moderna. Antes de se passar para uma análise pormenorizada do seu escopo, entretanto,
uma breve digressão histórica em relação ao tema deve ser feita.

7
MOREIRA ALVES. Direito Romano. 18ª ed. São Paulo: Editora Forense, 2016, p. 233
8
DEROUSSIN, David. Pas de nullité sans texte. Éléments pour une archéologie d’une directive. Revue
des contrats 1. Mar., 2018.
2. O PREJUÍZO NA HISTÓRIA: BREVE DIGRESSÃO SOBRE OS ANTECEDENTES QUE

CULMINARAM NA CONSOLIDAÇÃO DO ADÁGIO DO PAS DE NULLITÉ SANS GRIEF

Comentários que apontaram a complexidade inerente ao estudo do sistema de


nulidades, em especial sua origem histórica, foram tão largamente repetidos à exaustão
pela doutrina que não é exagero afirmar tratar-se de jargão jurídico. A observação,
entretanto, não se faz vazia, ao menos em relação a órbita da noção de prejuízo: sua
ancestralidade não é nem de longe ponto pacificado pelas obras dedicadas ao tema, que
elencam origens tão variadas que perpassam desde o pretorianismo romano, até o direito
moderno.9

O presente trabalho, por consequência, necessitou eleger um primeiro recorte


temporal: o direito francês entre os séculos XVII e XIX. Referido posicionamento não se
dá por capricho aleatório; a despeito de possuir uma série de possíveis influências
pretéritas ao período elencado, o prejuízo conforme hoje o compreendemos foi
introduzido ao ordenamento nacional por influência do direito francófono. Por essa razão,
justificável uma análise pormenorizada sobre o cenário histórico que se inseriu o
desenvolvimento de referido instituto.

Nesse sentido, uma primeira aproximação histórica aos contornos da noção de


prejuízo para a processualística se deu em meados do século XVII À época, a coroa
francesa concluía um delicado processo de concentração de atribuições que, no mais
tardar, resultou no apogeu do período que, hodiernamente, restou conhecido como
Absolutismo.

Luís XIV, com o fulcro de resguardar ainda mais poderio de mando, editou a
Ordonnance Civile de 1667, que operou como verdadeiro código civil à época. Às
nulidades, era destinada a função de limitação da discricionariedade jurisdicional e, por
consequência, a aplicação literal daquilo que, originalmente, foi previsto pela coroa.

O embate, entretanto, não era direcionado ao judiciário como hoje o


compreendemos (Montesquieu, autor que refinou a idealização da tripartição do poder,
ainda nem havia nascido quando da elaboração da Ordonnance de 1667). Os órgãos

9
ZACLIS, Daniel. A regra do prejuízo e as nulidades processuais: construção de um modelo racional
de aplicação do "pas de nullité sans grief" no âmbito do processo penal brasileiro. 2015. Dissertação
(Mestrado em Direito Processual) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015
responsáveis pelo exercício majoritário da função jurisdicional no Ancient Régime eram,
em verdade, Parlamentos Regionais instalados pela Coroa.10

Nesse sentido, em resposta à Ordonnance e com o fulcro de limitar a


discricionariedade real, o Parlamento de Tolouse11 incluiu em julgados posteriores à
normativa um novo critério para a destituição de efeitos de eventual ato amorfo: a
comprovação de prejuízo acarretada pelo descumprimento da solenidade.

Portanto, mesmo que não se alinhasse para uma tendência unitária, uma primeira
aproximação do conceito de prejuízo no ordenamento francês adveio de uma construção
pretoriana. Todavia, a despeito de representar marco relevante para a evolução aqui
apresentada, a consolidação do adágio apenas se verificou após sua positivação, ocorrida
em período posterior: na edição do Código Napoleônico, mais de um século após a
Ordonnance de Luís XIV.

É com o Code Napoléon que, enfim, os contornos do prejuízo foram elevados ao


nível nacional na França. Nele, também se popularizou o brocardo do “nullité sans grief
n’opère rien”, ou, mais sucintamente, como ficou mundialmente conhecido, o “pas de
nullité sans grief”. A teleologia da norma, entretanto, não se distanciava do que fora
propagado por Tolouse: apenas seria arguida nulidade que representasse efetivo prejuízo
para parte processual.

Antes que se passe para um estudo pormenorizado do instituto, entretanto, uma


digressão se mostra indispensável: a análise detalhada do contexto histórico em que o
adágio, enfim, foi cunhado. Se as leis são frutos de seu tempo, então o estudo das forças
que levaram à sua consolidação é indispensável para que se tenha uma exata compreensão
dos seus termos, para além do que está previsto em sua letra fria. É o que se passa a expor
no tópico seguinte.

3. A FRANÇA ENTRE OS SÉCULOS XVII E XIX: O BERÇO DO PREJUÍZO

À Queda da Bastilha é atribuído o início simbólico do período revolucionário


francês. A aproximação não é de toda sem razão; o ano da tomada, 1789, marcou singular
instabilidade dentro da vida política do país europeu, especialmente após a demissão de

10
Inclusive, não era incomum a criação pelos monarcas de novos Parlamentos aparelhados com lealistas
ao governo, em resposta à eventuais insubordinações de demais já instalados. Nesse sentido, MIQUEL,
Pierre, Las Guerres de Relgion, 1980.
11
PÁDUA, Thiago Aguiar de.; CHAVES JUNIOR, A. ; PAULA, L. C. A Regra do Prejuízo: A Não
Recepção Constitucional do Art. 563 do Código de Processo Penal (Pas de Nullité Sans Grief). Revista
Brasileira de Ciências Criminais, v. 186, p. 163-189, 2021.
seu ministro das Finanças, Jacque Necker, por Luís XVI, então monarca-regente. A crise
governamental se agravou para além dos muros de Versalhes e atingiu com singular
precisão setores já insatisfeitos da população que, após o estopim, realizaram campanhas
de armamento para a tomada dos principais pontos de sustentação do regime.

As motivações do movimento, entretanto, não obstam em 1789 e, em verdade,


possuem causas de toda a sorte. Algumas das mais celebremente conhecidas são: a ruína
financeira do país após décadas de voluptuosos gastos propiciados pelo Primeiro e
Segundo Estado, fome generalizada causada por um inverno atipicamente rigoroso, o
aumento da tributação dos estamentos de base, dentre outras medidas.

Fundamentos, portanto, de natureza eminentemente econômica. Todavia, um outro


fator ainda mais exordial e, por vezes, menosprezado em face de uma narrativa fisiocrata.
não pode ser desprezado: o anseio da ascendente burguesia em adquirir capital político.

Desde a transição do medievo e o renascimento urbano, a nova casta social, a


despeito de ter obtido certo poderio econômico, não gozava de elevado prestígio e
representação dentro dos Estados Modernos.

Ao contrário, os diversos processos de unificação dos novos estados nacionais


privilegiaram a nobreza em seu sentido estrito – aqueles que, hereditariamente, possuíam
acesso às terras. Por consequência, já em meados do século XIV, grosso modo, se inicia
um gradual aumento de tensão entre ambos os estamentos.

Desta colisão, resultaram as chamadas Revoluções Liberais, categoria de maior


efígie o movimento revolucionário francês. Bem por isso, uma vez que tomado o poder,
a recém-instaurada burguesia buscou realizar uma série de quebras, simbólicas e práticas,
das instituições do Ancient Régime.

A ordem do dia era alinhar o esbulho do antigo ordenamento para com os pujantes
preceitos da ilustração, o que, por óbvio, acarretou consequências para com o mundo
jurídico. Conforme ensina Facchini Neto:

“Desde as primeiras sessões da Assembleia Constituinte, a burguesia


vencedora procurou demolir, pedra por pedra, todos os fundamentos político-
jurídicos que haviam sustentado o Antigo Regime. Pretendia-se a
‘régénération’ (palavra de ordem do vocabulário revolucionário) integral: do
homem, da sociedade, do Estado, por meio da lei”.12

12
FACCHINI NETO, Eugênio . O bicentenário da morte de Napoleão Bonaparte e seu principal legado
jurídico: o Código Civil francês e a proteção dos direitos da burguesia. RJLB - REVISTA JURÍDICA
LUSO-BRASILEIRA , v. 5, p. 757-816, 2021, p. 766.
Todas essas rupturas, entretanto, não lograram êxito sem sofrerem forte resistência,
tanto de ordem interna (toda a sorte de grupos armados, como revolucionários,
reacionários, restauradores etc), quanto externa (as sete coalisões europeias, fundadas
com o exclusivo fim de abafar as consequências do movimento francês, boicotes
econômicos e afins).

É nesse cenário de ebulição legislativa e de mais de três décadas de conflitos


interruptos que fora editado o Código Napoleônico. Enquanto fruto da Revolução, a nova
legislatura consagrou uma série de ideais da ilustração, como a igualdade civil, resguardo
da propriedade privada, separação entre o Estado e a Igreja etc.

Bem por isso, não é estranho encontrar, em certas linhas da doutrina, a inclusão do
novel sistema de nulidades – e, por derradeiro, o prejuízo - como ferramental de limitação
ao poder, como estava sendo propagado em certas áreas pelos revolucionários.13 O adágio
do prejuízo, nesta interpretação, representaria, tal como o posicionamento do Parlamento
de Tolouse, um balizador ao poderio estatal, a partir da diminuição da discricionariedade
na interpretação da amorfia dos procedimentos.

Referido posicionamento, entretanto, parece apresentar certo grau de reducionismo


de uma das mais complexas realidades históricas vistas pelo mundo ocidental. Em
primeiro lugar, pois a Revolução Francesa não pode ser entendida como um período
homogêneo: houveram indiscutíveis momentos de radical enfrentamento ao status-quo,
como a República Jacobina, e tantos outros mais moderados, pendendo ao
conservadorismo, como o Diretório e o próprio governo de Napoleão Bonaparte.

Do exato mesmo modo, ao passo em que preceitos revolucionários foram


cristalizados no Código Napoleônico, outras medidas apaziguadoras, como a concordata
com a Igreja Católica e o reestabelecimento da escravidão (com inclusive uma frustrada
tentativa de recolonização do Haiti), igualmente foram perpetrados.

Nesse sentido, a noção de prejuízo, conforme entendida em seus ditames originais,


não parece apenas apresentar um caráter progressista do recém-desenvolvido sistema de
nulidades francês.

Remete-se o leitor ao entrave disputado entre Luís XIV e o Parlamento de Tolouse


(adágio majoritário da burguesia). Não se tratava apenas de um mero embate sobre

13
Nesse sentido, DEROUSSIN, David. Pas de nullité sans texte. Éléments pour une archéologie d’une
directive. Revue des contrats 1. Mar., 2018.
celeumas jurídicas, mas sim a resolução de quem estaria autorizado a dar a última palavra
sobre o que é ou não válido e, por consequência, o que possui ou não força de lei.

Conforme leciona Gloeckner, o que se seguiu na esfera processual francesa fora a


exata mesma maleabilidade verificada durante os tempos áureos da inquisição, com a
flexibilização das formas processuais para se atingir o controle da “ordem social”14. Para
além de representar mero corolário liberal, o Código Napoleônico também objetivava ser
importante arma política, para assegurar, por um lado, a estabilização jurídica nacional,
mas também centrar seu poderio ao redor do recém-imperador.

Oscar Tenório, nesse ponto, ilustra:

“Napoleão queria que o Código Civil servisse de base a um código europeu.


Aos que se opunham à sua implantação no exterior, reagia. A seu irmão
Jerônimo, rei da Westfália, esclarecia que contava mais, para a consolidação
do poder, com o Código Civil do que com o resultado das grandes vitórias.
Determinava-lhe que aos que fizessem objeção opusesse uma firme
vontade.”15

O governo bonapartista foi, portanto, um período de conchavos. O então lançado


líder buscava, em um primeiro plano, a estabilidade nacional. E, para esse fim, o sistema
de nulidades, em especial a noção de prejuízo, apresentava-se como útil ferramental.

Conforme ressalta Binder, a despeito da alteração do regime vigente, formas


processuais ainda eram amplamente utilizadas para se representar – e perpetrar – o poder,
incluindo as novas instituições criadas. 16

Inserido nessa sistemática, o pas de nullité sans grief, destarte, é dupla-facetado: a


despeito de possuir interferência iluminista, é ele mesmo fonte unificadora de um projeto
organizado de poder e do arbítrio estatal, em busca de plena expansão à época.

14
O mesmo designo foi verificado na elaboração do próprio Código de Processo Penal da República.
Conforme disposto em sua exposição de motivos, “De par com a necessidade de coordenação sistemática
das regras do processo penal num Código único para todo o Brasil, impunha‑se o seu ajustamento ao
objetivo de maior eficiência e energia da ação repressiva do Estado contra os que delinquem. As nossas
vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela
evidencia das provas, um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna,
necessariamente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da
criminalidade. Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela
social.”
15
TENÓRIO, Oscar. Napoleão e o Código Civil. Centro de Estudos Politicos do Tribunal Regional
Eleitoral, 14 de novembro de 1969
16
BINDER, Alberto. Descumprimento das Formas Processuais. 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumens
Iuris, 2003
Qual seja sua real razão de ser, fato é que o sistema de nulidades francês, incluso o
prejuízo, se disseminou para toda a Europa e, por derradeiro, influiu nos mais diversos
sistemas jurídicos do globo, como o pátrio.

4. PREJUÍZO MATERIAL X PROCESSUAL. A EXPANSÃO DO ADÁGIO PARA ALÉM DO CAMPO


PRIVADO

O atento leitor, entretanto, deve à essa altura ter se deparado com a incontornável
questão: quais são exatamente os contornos do conceito de prejuízo?

A resposta para essa questão não se mostrou estanque. Isso pois, como também se
mostra notável na presente marcha, a noção de prejuízo foi originalmente desenvolvida
por uma normativa de direito material privado, ainda a naus de distanciamento da
processualística penal.

Por essa razão, antes que se passe até mesmo para a elementar análise do contexto
histórico em que estava envolta a edição do Código Napoleônico, uma breve digressão
sobre seus contornos iniciais, conforme proposto pelo próprio Código Napoleônico, se
mostra indispensável.

No caso, conforme já referenciado, a normativa napoleônica tratava-se do novo


Código Civil do país, em aspecto puramente material – ainda distante do processo em si.
O adágio do prejuízo, nesse sentido, era originalmente direcionado a seara privatista e,
em específico, ao campo contratual.

A lógica historicamente elencada era a de que, mesmo nos casos em que fosse
verificado eventual trespasse à formalidade prevista pela legislação, a inobservância da
solenidade apenas seria cominada com a declaração de nulidade caso a parte arguente
demonstrasse efetivo prejuízo para sua demanda.

Nesse sentido, conforme ensinamento de Espínola Filho:

“Perdura, ainda hoje, como uma lição perfeita a justicação oferecida, num
livro clássico, por Solon (Theorie sur la nullité des conventions, 1835),
registrando ter semelhante regra se originado em vista da necessidade de
acabar com os processos escandalosos em que o devedor remisso ou o
demandista de má fé, sem terem sofrido prejuízo algum nas garantias que a lei
lhe assegura, arguém simples omissão de fórma, indiferente à efetivação de
tais garantias, com o intüito de remover temporàriamente o cumprimento de
obrigação incontrastável”17

17
FILHO, Eduardo Espinola. Código de Processo Penal Brasileiro Anotado. Volume V. Comentários
Aos Arts. 503/573. 6ª ed. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1965, p. 437
É dizer, o prejuízo era até então entendido em seu mais literal sentido: o de perda
econômica. A regulação se voltava, em última análise, para lides tratadas dentro da seara
civil, de modo a evitar que demandas desvinculadas de dano patrimonial fossem bem-
sucedidas, usando-se como pretexto eventual trespasse de forma prevista pela legislação.

O pas de nullité sans grief, portanto, não apenas foi criado pensando-se em
aplicação voltada à faceta do direito material, mas se encontrava plenamente inserido
dentro de sua lógica e principiologia, da proteção da autonomia da vontade e da livre
pactuação.

Por essa razão, seu auferimento inicial passava por exame com substancial nível de
objetividade: bastava que a parte, dentro da lógica de distribuição de cargas probatórias
inerente à esfera civil, demonstrasse a despesa à ela imposta pela amorfia, de modo a
buscar ressarcimento.

Eventualmente, entretanto, a noção de prejuízo, inicialmente adstrita à seara


material, teve seu escopo ampliado para o processo civil. Ao que aparenta, o primeiro
ponto de intersecção com o novo campo se deu com a Lei de Processo Civil do Cantão
de Genebra, de inspiração clara nos ditames elaborados pelo regime bonapartista (como
se verá em maiores detalhes, em seguida).

Referida comunicabilidade, a despeito de possivelmente causar certo


estranhamento por uma análise moderna da compartimentalização do Direito, não era de
toda sem sentido para o período. Em verdade, podemos sintetizar a influência
desempenhada na esfera processual por duas principais razões.

A primeira delas diz respeito à forma como o próprio processo em si era visto à
época. A autonomia científica da esfera processual não é dos mais antigos conceitos. Em
verdade, um desvencilhamento mais energético para com a seara material remonta a
períodos mais ulteriores.

Por essa razão, conforme destaca Gloeckner, os franceses (em linhas gerais)
atribuíam ao processo a condição sui generis de um “quase-contrato”, conforme também
previsto pela seara material. O entendimento era que os laços processuais emergiam da
vontade unilateral do indivíduo, que, por meio de suas ações, possibilitava a criação de
diversos tipos de vínculos com diferentes sujeitos, mediante a prática de determinados
atos jurídicos.18

Por essa razão, eventual transposição de institutos materiais para a processualística


não seria motivação completamente alienígena.

Em segundo lugar, Paschoal também ressalta uma certa influência geográfica para
a transmutação da sistemática das nulidades materiais à processualística. À época, o tema
já se encontrava pormenorizado com fôlego na seara material, mas ainda dava seus
primeiros passos no campo processual. 19

Por conta disso, e também pelos temas usualmente serem disciplinados juntos,
houve um primeiro movimento natural de importação dos conceitos do mundo material
para o campo processual, em que, eventualmente, também fora incluído o adágio do
prejuízo.

Se referida intercambialidade foi operada entre o direito material e processual civil,


quem dirá também com a processualística penal, que usualmente era tratada nos mesmos
volumes que sua contraparte civilista até mesmo nas legislações.20

As transposições feitas, entretanto, parecem não ter sido operadas sem traumas. Se
o conceito de prejuízo era suficientemente bem delimitado para o campo privado,
apresentou abrangência em demasia para a esfera processual, conforme será exposto em
tópico apartado.

5. DA FRANÇA À AMÉRICA: A INTRODUÇÃO DO PREJUÍZO NO DIREITO BRASILEIRO

Qual seja o ethos do Código Napoleônico e do consagrado adágio do prejuízo, fato


é que criador e criatura se espalharam por toda Europa e, por derradeiro, para o resto do
planeta. A disseminação se deu por duas principais razões; primeiro, pela qualidade
inquestionável do codex.

A despeito de não ser a primeira codificação feita em solo do Velho Continente, o


Código Civil de 1804 gozava de uma série de marcas distintivas: era equilíbrio

18
GLOECKNER, Ricardo. Uma Nova Teoria das Nulidades: Processo Penal e Instrumentalidade
Constitucional. 2010. 637 f. Tese (Doutorado em Direito), Faculdade de Direito, Universidade Federal do
Paraná, Curitiba, 2010
19
PASCHOAL, Jorge Coutinho. O Prejuízo na Teoria das Nulidades Processuais Penais e Sua Análise
Jurisprudencial Nos Tribunais Superiores. 2014. Dissertação (Mestrado em Direito Processual) -
Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014,
20
Cita-se, por exemplo, os Códigos de Processo Civil e Criminal do Estado do Paraná, reunidos em um
único volume.
competente entre as heranças consuetudinária e romanista do Direito, apresentava
notáveis avanços e inovações em relação ao então dominante regime feudal, bem como
possuía profundidade e detalhamento em relação aos temas regulamentados etc.21

Todavia, também não há como se olvidar de sua disseminação a partir do conflito


armado. Após a edição do Código, a França napoleônica travou empreitadas contra
diversos outros Estados europeus, como os Reinos da Prússia, Rússia, Áustria, Duas
Sicílias, Baviera, a República Batava e afins e, em todos os locais derrotados, também
espalhou parcialmente o recém modificado estilo de governo francês, onde se inseria o
Direito.

Nas palavras de Hobsbawn:

Visto que para os adversários inteligentes da França era evidente que tinham
sido derrotados pela superioridade de um novo sistema político, ou pelo menos
por seu próprio fracasso em adotar reformas semelhantes, as guerras
produziram mudanças não só através da conquista francesa mas também
através da reação contra ela; em alguns casos — como na Espanha — por
ambos os meios. Os colaboradores de Napoleão, os afrancesados, de um lado,
e, do outro, os líderes liberais da junta antifrancesa de Cádiz imaginavam
essencialmente o mesmo tipo de Espanha, modernizada de acordo com os
preceitos das reformas revolucionárias francesas, e o que uns deixaram de
alcançar, os outros tentaram.22

De todo o modo, a normativa napoleônica e seu sistema de nulidades inspiraram


uma série de outras codificações levadas à cabo após sua publicação. Inicialmente, na
Europa, pode-se citar ordenações na Bélgica, Luxemburgo e Suíça (inicialmente partes
da França, mas que mesmo após separação, continuaram a utilizar o codex de 1804),
Holanda (1809), Dantzig (1807), Westfalia (1807), Frankfurt (1809), Modena (1851),
Sardegna (1837), Espanha (1889), dentre outros.23

Após, também encontrou território fértil nas Américas, que estavam perpassando
pelos seus processos internos de independência. Com eles, também advinha a necessidade
da criação de um novo direito, desvencilhado das suas metrópoles originais,
predominantemente absolutistas. Por essa razão, duplicatas do Código Napoleônico se

21
GRIMALDI, Michel. L’Exportation du Code Civil. Disponível em: https://revue-pouvoirs.fr/wp-
content/uploads/pdfs_articles/107Pouvoirs_p80-96_Exportation_code_civil.pdf
22
HOBSBAWN, Eric J. A era das revoluções: Europa 1789 -1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p.
23
FACCHINI NETO, Eugênio . O bicentenário da morte de Napoleão Bonaparte e seu principal legado
jurídico: o Código Civil francês e a proteção dos direitos da burguesia. RJLB - REVISTA JURÍDICA
LUSO-BRASILEIRA , v. 5, p. 757-816, 2021
espalharam pelas ordenações “da Argentina, Paraguai, México, Peru, Venezuela e Bolívia,
onde foi por duas vezes promulgado.”24

O ordenamento brasileiro não restou incólume. Entretanto, sua maior afetação não
se deu no campo material – escopo originário do prejuízo –, mas sim na processualística
pátria.

Como fora explicitado, o Código Napoleônico teve grande influência dentro dos
países latino-americanos, que não só compartilhavam do sistema do civil law em
detrimento do movimento de colonização, mas que, também, por estarem se
desvencilhando de suas metrópoles, demandavam a criação de um direito novo, afastado
do esbulho absolutista imposto até então.

No Brasil, entretanto, a doutrina francesa teve dificuldades de instaurar seus


institutos. Especialmente em relação à seara civil, uma das mais proeminentes mentes
desta esfera, Teixeira de Freitas, denegava a influência do país do velho continente,
especialmente pela segmentação proposta entre o direito civil e comercial.

A despeito disso, a sistemática de nulidades francófona firmou influência em solo


brasileiro. Não no campo dos contratos, que, como leciona Caio Mario, o ordenamento
pátrio abandonara o adágio do prejuízo em detrimento da principiologia do respeito à
ordem pública.25 A maior influência inicial, em verdade, se mostrou dentro da
processualística civil, a partir do Decreto nº 737/1850.

Referida normativa foi inicialmente pensada, dentro do contexto do Brasil Imperial,


para operar na seara do direito comercial; todavia, na prática, teve forte influência também
em seu advento no processo civil. Nesse cenário, estabelece seu art. 677:

Art. 677. As nullidades arguidas não sendo suppridas ou pronunciadas pelo


Juiz, importam:
§ 1.° A annullação do processo na parte respectiva, si ellas causaram prejuizo
áquelle que as arguiu

A expansão do escopo do adágio do pas de nullité sans grief para o processo penal,
entretanto, não foi tão imediato. A começar, o Código de Processo Criminal do Império
dedicava parcelas extremamente rudimentares às “formalidades substanciais” e

24
SOUZA, Sylvio Capanema de. O Código Napoleão e sua influência no Direito Brasileiro. Revista da
EMERJ , Rio de Janeiro, v. 7, nº 26, p. 36-51, set. 2004, p. 39
25
PEREIRA, Caio Mario. Instituições de Direito Civil. São Paulo: Editora Forense, 2020.
“formalidades acidentais”, de modo que o novel desenvolvimento das teorias da nulidade
restou parcialmente alheio ao ordenamento imperial.26

A inserção do prejuízo na processualística criminal, nesse sentido, apenas ganhou


forma após a queda da monarquia e a instauração da República. A nova Constituição de
1891, baseando-se no modelo estadunidense, delegou aos Estados brasileiros, naquilo que
não competisse à Justiça Federal, editarem seus próprios códigos de processo, tanto na
esfera civil, quanto na penal.27

Na primeira, o que já se encontrava consagrado a partir do Decreto nº 737/1850,


apenas foi ainda mais fixado. Conforme ensina Calmon de Passos, previsões da noção de
prejuízo poderiam ser encontradas nos Códigos Processuais Civis dos Estados da Bahia,
Rio Grande do Sul, Ceará, Maranhão, Distrito Federal, dentre outros.28

A inovação, destarte, veio para a processualística penal. Com a nova possibilidade


de edição, alguns entes estaduais passaram a prever o adágio do prejuízo em seus codices
estaduais. Nesse sentido, destacam-se os seguintes exemplos:

CÓDIGO DE PROCESSO CRIMINAL DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL


Art. 327: Constituem nullidades insanaveis
g) a preterição de alguma formulla ou termo do processo, sem prejuízo da
acusação ou da defesa

CÓDIGO DE PROCESSO CRIMINAL DO ESTADO DE MINAS GERAIS


Art. 476: A nullidade não póde ser pronunciada contra aquelle em cuja
garantia tiver sido institui da. a formalidade omittida ou prejudicada.
Paragrapho uníco. Outrosim, não póderá pronunciada quando não houver
prejuizo de nenhuma das partes, ou quando a falta tiver sido supprida
proveitosamente no correr da acção.

CÓDIGO DE PROCESSO CRIMINAL DO ESTADO DA PARAÍBA


Art. 64 - Não induzem nullidade as meras irregularidades de forma, que não
importarem prejuizo para a parte que allega, ou que tiverem sido suppridas
antes da allegação.29

26
PÁDUA, Thiago Aguiar de. ; CHAVES JUNIOR, A. ; PAULA, L. C. A Regra do Prejuízo: A Não
Recepção Constitucional do Art. 563 do Código de Processo Penal (Pas de Nullité Sans Grief). Revista
Brasileira de Ciências Criminais, v. 186, p. 163-189, 2021.
27
Art 34: Compete privativamente ao Congresso Nacional:
23º) Legislar sobre o direito civil, comercial e criminal da República e o processual da Justiça Federal;
28
CHAVES JUNIOR, A. ; PAULA, Leonardo Costa de ; PADUA, T. A. . O prejuízo da 'regra do
prejuízo': a não recepção constitucional do art. 563 do Código de Processo Penal (pas de nullité sans
grief). Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 182, p. 163-190, 2021.
29
No mesmo sentido, o artigo 56 do Código de Processo Criminal do Estado de São Paulo:
Art. 56 _. A nullidade não pode ser pronunciada contra aquelle em cuja garantia tiver sido instituída a
formalidade omittida. § único - Outrosim, não pode ser pronunciada quando não houver prejuízo da parte,
que a alega, ou quando a falta tiver sido supprida, antes da allegação.
Com a nova Constituição de 1937 e a crescente tendência unitária do Estado Novo,
entretanto, a legislatura processual penal se aglutinou novamente como competência
privativa da União. Todavia, a influência do prejuízo, já dispersa por uma série de entes
federativos, também foi incorporada às novas normativas federais. Antes da própria
edição do Código de 1941, cita-se, por exemplo, o Decreto-Lei nº 167/38, que
regulamentou o júri em território nacional:

Art. 102. A nulidade de citação, intimação ou notificação é sanada desde que


a parte interessada compareça em juízo, embora declare que o faz para o único
fim de arguí-la. Todavia, reconhecendo que a irregularidade prejudica
efetivamente o direito de defesa, o juiz ordenará a repetição do ato.30

Por fim, adveio o Código de Processo Penal de 1941 e seu Título I do Livro III, que
consolidou a influência da doutrina francesa das nulidades em território nacional. O
prejuízo, in casu, é explicitamente previsto, com escopo transcendente à toda a
processualística penal:

Art. 563. Nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para
a defesa.

II. A EXPANSÃO DO PREJUÍZO PARA A PROCESSUALÍSTICA PENAL: EVENTUAIS


INCOMPATIBILIDADES GERADAS PELA TRANSPOSIÇÃO DO ADÁGIO

O primeiro capítulo realizou um sobrevoo em relação às origens do prejuízo no


direito material Francês e, após, sua dispersão não somente para outros ordenamentos
jurídicos, mas, igualmente, para outros campos do próprio Direito. Assim, uma vez
apresentado ao leitor o curso histórico que seguiu o adágio, até sua implementação na
processualística penal, um maior detalhamento sobre o seu uso, tanto para o Direito
Privado, quando para o Direito Civil, se faz necessário.

Referida remissão se faz imprescindível, pois apenas com a exata compreensão dos
contornos dados ao prejuízo pelas suas searas originárias é possível firmar um olhar
crítico em relação ao instituto na processualística penal. Afinal de contas, a aplicação é
realizada de maneira idêntica? Existem singularidades em alguma das áreas? Quando do
nascimento do adágio, como se manifestaram os tribunais e a doutrina?

30
Entendidos os contornos antecessores, a análise para com o prejuízo na ótica
processualística penal se torna mais refinada e, por consequência, é possibilitada uma
identificação de eventuais incompatibilidades de maneira mais precisa.

1. O PREJUÍZO PARA O DIREITO MATERIAL PRIVADO: BALIZAS E CRITÉRIOS DE AFERIÇÃO

Essa repartição obstina o estudo do prejuízo inserido na ótica do direito privado e,


em especial, para a seara dos contratos, onde, ao que aponta a pesquisa até o momento,
foi mais comumente utilizado. A investigação se debruçará, portanto, sobre o uso inicial
do prejuízo para o direito privado, passando por temas como, por exemplo a maneira de
sua arguição, a objetividade dos critérios traçados para a sua verificação, o
posicionamento da doutrina sobre o tema, etc.

2. O ENTENDIMENTO DE PREJUÍZO PARA O DIREITO PROCESSUAL CIVIL: BALIZAS E

CRITÉRIOS DE AFERIÇÃO

Feito o estudo do adágio em seu campo inicial, se fará uma análise similar dos
contornos do prejuízo para a processualística civil. Primeiro, será desenvolvida, com
maior profundidade, as razões da transposição da seara material para o campo em
comento. Após, será investigado se eventual deslocamento alterou os contornos
originalmente traçados pelo direito privado para o conceito de prejuízo e o uso do adágio
para a processualística civil.

3. O PREJUÍZO NO DIREITO PROCESSUAL PENAL: PROBLEMÁTICAS NA APLICAÇÃO DO

ADÁGIO

Por fim, o trabalho se debruçará, com maior detalhamento, em relação à recepção


do adágio pelo processo penal. O presente capítulo, entretanto, terá maior enfoque nas
problemáticas ocasionadas pela transposição, em especial a perda de objetividade do que,
ao fim, significa “prejuízo” para fins processuais penais.

4. A PROCESSUALÍSTICA PENAL SOB A ÓTICA CONSTITUCIONAL. INCOMPATIBILIDADE DO


PREJUÍZO

Esta seção busca explorar a interação entre a processualística penal e a perspectiva


constitucional, destacando a incompatibilidade do princípio do prejuízo nesse contexto.
Será examinado como a aplicação do adágio enfrenta obstáculos à luz dos preceitos
constitucionais, analisando se a noção tradicional de prejuízo, conforme consolidado no
campo processual penal, condiz com as exigências constitucionais postuladas à referida
seara. O foco será direcionado para as possíveis contradições e desafios apresentados pela
interseção destas duas esferas, evidenciando a complexidade e os dilemas decorrentes da
tentativa de conciliar o princípio do prejuízo com os princípios fundamentais consagrados
na Constituição no contexto do processo penal.
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