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A INICIATIVA INSTRUTÓRIADO JUIZ
NO PROCESSO PENAL ACUSATÓRIO
ADA PELLEGRINI GRINOVER

SUMÁRIO: 1.Justificativa do tema- 2. Significado e alcance da expressão "sistema


acusatório" - 3. Sistema acusatório e adversarial s)'stem - 4. A concepção publicista
do processoesua função social: o papel dojuiz-5. A iniciativainstrutóriadojuiz no
processo moderno - 6. Os limites da atividade instrutória oticial: contraditório,
motivação das decisões judiciárias.licitude (material) e legitimidade (processual) das
provas - 7. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal e no processo civil.
Verdade real e verdade formal- 8. Conclusões.

2. Significado e alcance da expres-


são "sistema acusatório"
A propagação do modelo acusatório na
América Latina, indubitavelmente pro- A ambigüidade e indeterminação do
movida pelo Código Modelo de Processo binômio acusatório-inquisitório sãoconhe-
Penal para Ibero-América, acarretou em cidas, sendo polivalente seu sentido. Por
diversos países e está trazendo em outros isso nos preocupamos, em diversos escri-
profundas modificações no sistema inqui- tos, em salientar aquilo que distingue, sin-
sitório antes difuso na América espanho- teticamente, o modelo acusatório do
la, com evidentes vantagens no tocante a inquisitório. No primeiro, as funções de
um processo aderente às garantias consti- acusar, defender e julgar são atribuídas a
tucionais e fiel às normas da Convenção órgãos distintos, enquanto no segundo as
Americana dos Direitos Humanos. funções estão reunidas e o inq,uisidordeve
No entanto, alguns equívocos têm sur- proceder espontaneamente. E só no pro-
gido aqui e acolá, a partir da errônea con- cesso acusatório que ojuízo penal é o actwn
cepção do que se deve entender por "pro- trium personarum, de que falava Búlgaro,
cesso acusatório e processo inquisitivo", enquanto no processo inquisitório a
assim como pelo significado da expressão investigação unilateral a tudo se antepõe,
"processo de partes", ligada ao primeiro tanto que dele disse Alcalá-Zamora não se
modelo. tratardeprocessogenuíno,mas simde forma
Esses mal-entendidos têm induzido al- autodefensi va da administração da justiça.
guns teóricos e certos sistemas a confun- Onde aparece o sistema inquisitório pode-
dir o sistema acusatório moderno Com o rá haver investigação policial, ainda que
adversarial system dos países anglo- dirigida por alguém chamado juiz, mas
saxônicos, com profundas repercussões nunca verdadeiro processo.
sobre o papel do juiz no processo penal. Decorrem desse conceito sintético di-
Desfazer esses equívocos, ou ao menos versos corolários: a) os elementos
esclarecer alguns conceitos, é o objetivo probat~rioscolhidos na faseinvestigatória,
deste trabalho. prévia ao processo, servem exclusivamente
para a formação do convencimento do adversarial. Um sistema acusatório pode
acusador, não podendo ingressar no pro- adotaroadversarialsystemou o inquisitorial
cesso e ser valorados como provas (salvo system, expressão que se poderia traduzir
se se tratar de prova antecipada, submeti- por "processo de desenvolvi mento oficial".
da ao contraditório judicial, ou de prova Ou seja, firme restando o princípio da de-
cautelar, de urgência, sujeita a contradi- manda, pelo qual incumbe à parte a propo-
tório posterior); b) o exercício dajurisdi- situra da ação, o processo se desenvolve
ção depende de acusação formulada por por impulso oficial.
órgão diverso do juiz (o que corresponde Acusatório-inquisitório e adversarial-
ao aforisma Iatino nemo in iudicio tradetur inquisitorial são categorias diversas, em
sine accusatione); c) todo o processo deve
que os termos devem ser utilizados corre-
desenvolver-se em contraditório pleno, tamente. De um lado, portanto, o contras-
perante o júiz natural.
te ocorre entre sistema acusatório e siste-
Essas idéias, expostas e publicadas em ma inquisitório, no sentido empregado
diversas oportunidades no Brasil e no para o processo penal no n. 2 deste estudo;
exterior - incluindo diversas jornadas do do outro lado, a oposição manifesta-se,
Insti tuto Ibero- Americano de Direito Pro- tanto no processo penal como rio civil,
cessual-jamais mereceram qualquercon- entre o adversarial eo inquisitorial system,
testação. Vê-se daí que o conceito de pro- vale dizer entre um processo que, uma vez
cesso acusatório e de processo de partes instaurado (mantido, assim, o princípio
(no sentido de a acusação e a defesa serem da demanda, ou Dispositionsmaxime, na
sujei tos da relação jurídica processual,jun- terminologia alemã), se desenvolve por
tamente com o juiz) nada tem a ver com disposição das partes (o que se denomina
a iniciativa instrutória do juiz no processo em alemão Verhandlungsmaxime) e pro-
penal. cesso de desenvolvimento oficial.
Para ilustrar o segundo binômio - con-
3. Sistema acusatório e adversarial dução do processo por disposição das par-
system tes e desenvolvimento oficial -, especifi-
camente no que diz respeito à iniciativa
o que tem a ver, sim, com os poderes probatória, vale lembrar o caso referido
instrutórios do juiz no processo é o deno- pela literatura inglesa relativamente ajuiz
minado adversarial system, próprio do cujo julgamento foi anulado, sendo o ma-
sistema anglo-saxão, em contraposição ao gistrado convencido a demitir-se, por ter
inquisitorial system, da Europa continen- formulado às testemunhas perguntas de-
tal e dos países por ela influenciados. mais, o que feriria o Jair triai. Como bem
aponta José Carlos Barbosa Moreira, no
Denomina-se adversarial system o mo-
nosso sistema bem que alguns juízes mere-
delo que se caracteriza pela predominância
ceriam, ao contrário, ao menos uma adver-
das partes na determinação da marcha do
tência por fazer poucas perguntas, ou ne-
processo e na produção das provas. No
nhuma (Notas sobre alguns aspectos do
inquisitoriál system, ao revés, as mencio-
processo -civil e penal-nos países anglo-
nadas atividades recaem de preferência
saxônicos. Revista Forense, v. 344, p. 98).
sobre o juiz. Vê-se por aí a importância do
correto entendimento dos termos acusató- Cumpre observar, ainda, que nos pró-
rio-inquisitório (no sentido empregado no prios ordenamentos anglo-saxônicos exis- .
n. 2 deste trabalho) e adversarial-inqui- tem várias exceções à regra do predomínio
sitorial (no sentido utilizado agora). O ter- das partes, abrindo-se espaço maior à in-
mo processo inquisitório, em oposição ao tervenção do juiz. O caráter adversarial do
acusatório, não corresponde ao inquisito- sistema vai cedendo espaço ao desenvolvi-
rial (em inglês), o qual se contrapõe ao mento oficial e a distinção entre os dois
processos parece tender a uma atenuação tem que zelar por seu cumprimento, uma
cada vez mais perceptível (Barbosa Morei- vez que a paz social somente se alcança
ra, loco cit., p. 99, com bibliografia). Além pela correta atuação das regras imprescin-
dos sinais de mudanças, é também oportuno díveis à convivência das pessoas. Quanto
salientar as críticas que se levantam contra mais o provimento jurisdicional se aproxi-
o sistema até agora dominante no processo mar da vontade do direito substancial, mais
civil inglês: várias propostas legislativas perto se estará da verdadeira paz social.
propugnam no sentido de a condução do Trata-se da função social do processo,
feito anterior ao trial não ser mais deixado que depende de sua efetividade. Nesse
quase exclusivamente ao cuidado das par- quadro, não é possível imaginar um juiz
tes, devendo submeter-se ao controle do inerte, passivo, refém das partes. Não pode
órgão judicial, até para atenuar os proble- ele ser visto como mero espectador de um
mas de procrastinações indesejáveis que duelo judicial de interesse exclusivo dos
incidem sobre o custo e a duração do pro- contendores. Se o objetivo da atividade
cesso. E, no processo norte-americano, toma jurisdicional é a manutenção da integri-
corpo a idéia de que vale a pena buscar em dade do ordenamento jurídico, para o
sistemas continentais europeus sugestões atingimento da paz social, o juiz deve
para problemas que afligem ajustiçacrimi- desenvolver todos os esforços para alcançá-
nal (Barbosa Moreira, loco cit., p. 108-109, 10. Somente assim a jurisdição atingirá
com bibliografia). seu escopo social.
O papel do juiz, num processo publicista,
4. A concepção publicista do pro- coerente com sua função soçial, é neces-
cesso e sua função social: o papel sariamente ativo. Deve ele estimular o
do juiz contraditório, para que se torne efetivo e
concreto. Deve suprir às deficiências dos
Mas a escolha entre oadversarial system litigantes, para superar as desigualdades e
e o do desenvolvimento oficial não deve favorecera par coMicio. E não pode sa-
ser determinada apenas pela maior ou tisfazer-se com a plena disponibilidade
menor eficiência de um em relação ao das partes em matéria de prova.
outro. À raiz do modelo que confia ao juiz
a condução do processo, inclusive no que 5. A iniciativa instrutória do juiz no
diz respeito à iniciativa instrutória, está processo moderno
uma escolha política que diz respeito à
concepção publicista do processo e à per- Nessa visão, que é eminentemente polí-
cepção de sua função social. tica, é inaceitável que o juiz aplique nor-
O direito processual é ramo autônomo mas de direito substancial sobre fatos não
do direito, regido por princípios publicis- suficientemente demonstrados. O resulta-
tas. Tem ele fins distintos de seu conteúdo do da prova é, na grande maioria dos casos,
e esses fins se confundem com os objetivos fator decisivo para a conclusão última do
do próprio Estado, na medida em que a processo. Por isso, deve o juiz assumir
jurisdição é uma de suas funções. Os objeti- posição ativa na fase instrutória, não se
vos da jurisdição e do seu instrumento, o limitando a analisar os elementos forneci-
processo, não se colocam com vistas à par- dos pelas partes, mas determinando sua
te, a seus interesses e a seus direitos subje- produção, sempre que necessário.
tivos, mas em função do Estado e dos ob- Ninguém melhor do que o juiz, a quem
jetivos deste. o julgamento está afeto, para decidir se as
A observância d,!s normas jurídicas pos- provas trazidas pelas partes são suficientes
tas pelo direito material interessa à socie- para a formação de seu convencimento.
dade. Por via de conseqüência, o Estado Isto não significa que a busca da verdade
seja o fim do processo e que o juiz só deva verdadeiro titular do direito. A pacifica..
decidir quando a tiver encontrado. Verda- ção social almejada pela jurisdição sofre
de e certeza são conceitos absolutos, difi- sério risco quando o juiz permaneceiner ••
cilmente atingíveis, no processo ou fora te, aguardando passivamente a iniciativa
dele. Mas é imprescindível que o juiz instrutória da parte.
diligencie a fim de alcançar o maior grau A iniciativa oficial no campo da proY3"
de probabilidade possível. Quanto maior por outro lado, não embaça a imparciali-
sua iniciativa na atividade instrut6ria, mais dade do juiz. Quando este determina que
perto da certeza ele chegará. se produza uma prova não requeri da pelas
O juiz deve tentar descobrir a verdade e, partes, ou quando entende oportuno voa.
por isso, a atuação dos litigantes não pode tar a inquirir uma testemunha ou solicitar
servir de empecilho à iniciativa instrut6ria esclarecimentos do perito, ainda não c0-
oficial. Diante da omissão da parte, o juiz nhece o resultado que essa prova trará ao
em regra se vale dos demais elementos dos processo, nem sabe qual a parte que será
autos para formar seu convencimento. Mas favoreci da por sua produção. Longe de
se os entender insuficientes, deverá deter- afetar sua imparcialidade, a iniciativa
minar a produção de outras provas, como, oficial assegura o verdadeiro equilíbrio e
por exemplo, ouvindo testemunhas não proporciona uma apuração mais comple-
arroladas no momento adequado. Até as tados fatos. Ao juiz não importa que vença
regras processuais sobre a preclusão, que o autor ou o réu, mas interessa que saia
se destinam apenas ao regular desenvolvi- vencedor aquele que tem razão. Aindaque
mento do processo, não podem obstar ao não atinja a verdade completa, a atuação
poder-dever do juiz de esclarecer os fatos, ativa do juiz lhe facilitará inegavelmente
aproximando-se do maior grau possível de o encontro de uma parcela desta.
certeza, pois sua missão é pacificar com
justiça. E isso somente acontecerá se o 6. Os limites da atividade instrutória
provimento jurisdicional for o resultado oficial: contraditório, motivação
da incidência da norma sobre fatos efetiva- das decisões judiciárias, Iicitude
mente ocorridos. (material) e legitimidade (proces-
Nada disso é garantido pelo adversarial sual) das provas
system, em que a plena disponibilidade das
provas pelas partes é reflexo de um supe- Mas a atuação do juiz na atividade
rado liberal-individualismo, que não mais instrutória não é ilimitada. Existem bali-
satisfaz à sociedade. Além do mais, a zas intransponíveis à iniciativa oficial, que
omissão da parte na instrução do feito é se desdobram em três parâmetros: a rigo-
freqüentemente devida a uma situação de rosa observância do contraditório, a obri-
desequilíbrio material, em que preponde- gatoriedade de motivação, os limites im-
ram fatores institucionais, econômicos ou postos pela licitude (material) e legitimi-
culturais. O reforço dos poderes instrut6rios dade (processual) das provas.
do juiz desponta, nesse panorama, como O contraditório, entendido como parti-
instrumento para atingir a igualdade real cipação das partes e do juiz na colheita da
entre as partes. prova, constitui o primeiroparâmetro para
A visão do estado social não admite a a atividade instrutória oficial. Por isso
posição passiva e conformista do juiz, mesmo prefere-se o termo "iniciativa do
pautada por princípios essencialmente juiz" ao de "atividade do juiz", porquanto o
indi vidualistas. O processo não é um jogo, primeiro melhor representa a necessidade
em que pode vencer o mais poderoso ou de as partes participarem, com o magis-
o mais astucioso, mas um instrumento de trado, da colheita da prova. A participa-
justiça, pelo qual se pretende encontrar o ção das partes e do juiz na ati vidade ins-
trutória é condição de validade das provas a ver com o processo civil dispositivo.
e não podem ser consideradas provas aque- Tem a ver, exclusivamente, com a visão
las que não forem produzidas com a publicista do processo e com a sensibili-
concomitante presença do juiz e das par- dade para com a sua função social.
tes. A melhor maneira de preservar a Como visto, o modelo acusatório do
imparcialidade do juiz não é alijá-Io da processo penal não interfere com os pode-
iniciativa instrutória, mas sim submeter res instrutórios do juiz. Suas característi-
todas as provas - as produzidas pelas par- cas fundamentais são bem·diversas. A
tes e as determinadas ex officio pelo juiz separação nítida das funções de acusar,
- ao contraditório. defender e julgar não demandam um juiz
A segunda baliza em que deve conter-se inerte e passivo.
a iniciativa instrutória oficial é a obriga- A questão que envolve os elementos
ção de moti vação das decisões judiciárias. probatórios colhidos durante a investiga-
Seja no momento de determinar a produ- ção e sua inidoneidade para servir de base
ção de uma prova, seja no momento de para a formação do convencimento do juiz
valorá-Ia, a decisão do juiz há de ser fun- é estranha à problemática da iniciativa
damentada. A ausência ou carência de instrutória oficial. Esta se cirscunscreve ao
motivação acarreta a invalidade da prova. processo, o qual é instaurado após acusa-
Por último, ojuiz, tanto quanto as partes, ção formal do Ministério Público (ou do
encontra outro limite à atividade instrutória querelante, seu substituto processual, na
na licitude e legitimidade das provas. Há ação penal de iniciativa privada). Não se
uma regra moral intransponível que rege confunda o que se disse quanto aos poderes
toda a atividade processual, recepcionada dojuiz no processo e à sua iniciativa proba-
de forma explícita pelas constituições de tóriacom aatribuiçãodepoderespara buscar
diversos países. Não são provas as colhidas elementos probatórios durante a fase da
com infringência anormas ou valores cons- investigação prévia. Esta não pode sercon-
fiada ao juiz, sob pena de se retomar ao
titucionais, nem pode o juiz determinar a
juiz-inquisidor do modelo antigo. Duran-
produção de provas que vulnerem regras
te a investigação, o juiz do processo acu-
processuais. Trata-se do tema das provas satório tem apenas a função de determinar
ilícitas e ilegítimas, que não podem ingres- providências cautelares. Porisso, éoportu-
sar no processo nem, evidentemente, ser no que o juiz da investigação prévia (a
determinadas de ofício pelo juiz. A certeza cargo do Ministério Público e/ou da polí-
buscada emjuízo deve ser ética, constitu- ciajudiciária) seja diverso do juiz do pro-
cional e processualmente válida. cesso. É neste, e somente neste, que deve
Assim, a utilização de poderes instrutó- ser estimulada a iniciativa oficial.
rios pelo juiz encontra seus limites na ob- No processo civil, a regra da iniciativa
servância do contraditório, na obrigação oficial no campo probatório impõe-se
de motivação das decisões e na exclusão mesmo quando o objeto do processo fo-
das provas ilícitas e ilegítimas. rem relações disponíveis de direito mate-
rial. Seria até fácil sustentar que no pro-
7. A iniciativa instrutória do juiz no cesso civil dispositivo não ~abe a iniciati-
processo penal e no processo civil. va instrutória do juiz, reservada aos pro-
Verdade real e verdade formal cessos que versem sobre direitos indispo-
níveis, entre os quais avulta o processo
o que se disse acima aplica-se a qual- penal. Mas não é disso que se trata.
quer processo, penal ou não penal. Não José Roberto dos Santos Bedaque (na
tem nada a ver com o sistema acusatório, obrá' Poderes instrutórios do juiz. 2. ed.
também chamado de partes, não tem nada São Paulo: RT, p. 65 et seq.) demonstra
à saciedade que a iniciativa instrutória ofi- mento processual, queiram exercer sobre
cial não passa exclusivamente pelo pro- ela. E isso vale para os dois processos, em
cesso civil que verse sobre direitos indis- matéria probat6ria.
poníveis. A disponibilidade do direito A diferença que persiste reside na exis-
material não influi sobre o processo que, tência, no processo civil, de fatos incontro-
como instrumento da função estatal, tem versos, sobre os quais não se admite a pro-
invariavelmente natureza pública e cuja va, resumindo-se a controvérsia a uma
finalidade social, de pacificar com justi- questão de direito, enquanto no processo
ça, não se altera consoante seu objeto. penal tradicional não pode haver conver-
O papel ativo do juiz na produção da gência das partes sobre os fatos. O juiz
prova não afeta de modo algum a liberdade penal, mesmo diante de fatos incontrover-
das partes. Têm elas a plena disponibili- sos, deve sempre pesquisar com a finali-
dade do direito material, podendo, por dade de determinar a produção da prova
exemplo, renunciar, transigir, desistir. Mas capaz de levá-lo ao conhecimento dos fatos
a solução processual estánas mãos do juiz, da maneira mais próxima possível à certe-
que não pode por isso ser obrigadÜ'a sa- za. Mas, aqui também, as tendências rumo
tisfazer-se com a atividade das partes, àjustiça penal consensual estão modifican-
mesmo no processo civil dispositivo. do os dados da questão.
Assim, pode-se afirmar que a questão O princípio da verdade real, que foi o
referente à iniciativa instrutória do juiz no mito de um processo penal voltado para a
processo não se vincula à dicotomia direi- liberdade absoluta do juiz e para a utiliza-
tos disponíveis-direitos indisponíveis, aqual ção de poderes ilimitados na busca da pro-
se restringe exclusivamente ao campo do va, significa hoje simplesmente a tendên-
direito material. Ainda que disponível a cia a uma certeza pr6xima da verdade ju-
relação material, o Estado tem interesse dicial: uma verdade subtraída à exclusiva
em que a tutela jurisdicional seja prestada influência das partes pelos poderes instru-
da melhor maneira possível. Já asseverava t6rios do juiz e uma verdade ética, proces-
Calamandrei que a ampliação dos poderes sual e constitucionalmente válida. Isso para
do juiz no campo probatório não é incom- os dois tipos de processo, penal e não pe-
patível com Qobjeto do processo (Istituzioni nal. E ainda, agora exclusivamente para o
di diritto processuale civile, in Opere processo penal tradicional, indica uma
Giuridiche. Nápoles: Morano, VoI. IV, verdade a serpesquisada mesmo quando os
1970, p. 223). fatos forem incontroversos, com a finali-
Vê-se daí que não há qualquer razão dade de o juiz aplicar a norma de direito
para continuar sublinhando a distinção material aos fatos realmente ocorridos, para
entre "verdade real" e "verdade formal", poder pacificar com justiça.
entendendo a primeira própria do proces-
so penal e a segunda típica do processo
civil. O conceito de verdade, como já dito,
não é ontológico ou absoluto. No proces- Em conclusão, afirma-se:
so, penal ou civil que seja, o juiz só pode a) O processo penal acusat6rio, ou pro-
buscar uma verdade processual, que nada cesso de partes (em contraposição ao
mais é do que o estágio mais pr6ximo inquisit6rio), deve ser entendido, sinteti-
possível da certeza. E para que chegue a camente, como aquele em que as funções
esse estágio, deverá ser dotado de iniciati- de acusar, defender ejulgar são atribuídas
va instrutória. a 6rgãos diversos, daí decorrendo os se-
Por isso mesmo, o termo "verdade real", guintes corolários: aI) os elementos pro-
no processo penal e no processo civil, in- bat6rios colhidos na investigação prévia
dica uma verdade subtraída à exclusiva servem exclusivamente para a formação
influência que as partes, por seu comporta- do convencimento do acusador, não po-
dendo ingressar no processo e serem va- h) O direito processual é regido porprin-
lorados como provas; a2) o exercício da cípios publicistas e tem fins que se confun-
jurisdição depende de acusação formula- dem com os objetivos do Estado, na medida
da por órgão diverso do juiz; a3) todo o em que a jurisdição é uma de suas fun-
processo deve desenvolver-se em contra- ções. Os objetivos da jurisdição e do pro-
ditório pleno, perante o juiz natural. cesso não se colocam com vistas às partes
b) O conceito de processo penal acusa- e a seus interesses, mas em função do Es-
tório não interfere com a iniciativa ins- tado e de seus objetivos. Pacificar com
trutória do juiz no processo. justiça é a finalidade social da jurisdição
e quanto mais o provimento jurisdicional
c) Tem a ver com os poderes instrutórios
se aproximar da vontade do direito subs-
do juiz no processo denominado adver- tancial, mais perto se estará da paz social.
sarial system, do direito anglo-saxão, em
oposição ao inquisitorial system, do siste- i) Trata-se da função social do processo,
ma continental europeu e dos países por que depende de sua efetividade. Nesse
este influenciados. quadro, não é possível imaginar um juiz
d) Denomina-se adversarial system o inerte, passivo, refém das partes. No pro-
modelo que se caracteriza pela predomi- cesso publicista, o papel do juiz é necessa-
nância das partes na determinação da mar- riamente ativo. Deve ele estimular o con-
cha do processo e na produção das provas. traditório, para que se tome efetivo e con-
No inquisitorial system, ao revés, as men- creto; deve suprir às deficiências dos liti-
cionadas atividades recaem de preferência gantes, para superar as desigualdades e
sobre o juiz. favorecer a par condicio. E deve ter ini-
ciativa probatória, não podendo limitar-se
e) A dicotomia processo acusatório-pro- a analisar os elementos fornecidos pelas
cesso inquisitório, no sentido utilizado na partes, mas determinando sua produção,
alínea a, não corresponde ao binômio sempre que necessário.
adversarial-inquisitorial (em inglês). Um
sistema penal acusatório pode adotar o j) Verdade e certeza são conceitos abso-
modelo "adversarial" ou "inquisitorial". lutos, dificilmente atingíveis. Mas é im-
prescindível que ojuiz diligencie a fim de
f) A fim de evitar confusões terminoló-
alcançar o maior grau de probabilidade
gicas, propomos que, na segunda dicoto-
possível. Quanto maior sua iniciativa
mia, a expressão adversarial-inquisitorial
instrutória, mais perto da éerteza chegará.
system seja traduzida por processo que se
desenvolve por disposição das partes e k) Nada disso é garantido pelo adversa-
processo de desenvolvimento oficial. Isto rial system, em que aplena disponibilidade
significa que, no chamado inquisitorial das provas pelas partes é reflexo de um
system, uma vez proposta a ação (princí- superado liberal-individualismo, que não
pio da demanda, Dispositionsmaxime), o mais satisfaz à sociedade. Além do mais, a
processo se desenvolve por impulso ofi- omissão da parte na instrução do feito é
cial e não por disposição das partes (não freqüentemente devida a uma situação de
adotando, na terminologia alemã, o Ver- desequilíbrio material, em que preponde-
hanlungsmaxime ). ram fatores institucionais, econômicos e
g) Mesmo nos países anglo-saxônicos, culturais. O reforço dospoderes instrutórios
o caráter adversarial do sistema vai ce- dojuiz representa instrumento valioso para
dendo espaço ao desenvolvimento oficial. atingir a igualdade real.
Mas mais importante do que isso são os 1) A iniciativa oficial no campo da pro-
princípios que informam o modelo de va não embaça a imparcialidade do juiz.
desenvolvimento oficial: quais sejam, a Quando este determina a produção de
concepção publicista do processo e a per- poova não requerida pelas partes, ainda
cepção de sua função social. não conhece o resultado que essa prova
trará ao processo, nem sabe qual a parte processo com a atribuição de poderes de
que será favorecida por sua produção. Ao busca da prova na fase de investigação.
juiz não importa que vença o autor ou o Durante esta, o juiz só pode ter os poderes
réu, mas interessa que saia vencedor aque- de determinar medidas cautelares, sob pe-
le que tem razão. na de voltar-se à figura do juiz-inquisidor
m) Mas a atuação do juiz na atividade do processo antigo.
instrutória não é ilimitada. Existem balizas r) Não há razão para se retirar do juiz a
intransponíveis' à iniciativa oficial, que se iniciativa instrutória, mesmo no processo
desdobram em três parâmetros: ml) a ri- civil que verse sobre direitos disponíveis.
gorosa observância do contraditório; m2) A disponibilidade do direito material não
a obrigatoriedade da motivação; m3) os influi sobre o processo que, como instru-
limites impostos pela Iicitude (material) e mento da função estatal, tem invariavel-
legitimidade (processual) das provas. mente natureza pública e função social. O
n) O contraditório, entendido como papel ativo do juiz na produção da prova
participação das partes e do juiz na colhei- não afeta a liberdade das partes, que podem
ta da prova, é condição de validade r;fas renunciar, transigir, desistir. Mas a solu-
provas. Não podem ser consideradas pro- ção processual está nas mãos do juiz, que
vas as que forem produzidas sem a con- não pode por isso ser obrigado a satisfazer-
comitante presença do juiz e das partes. se com a atividade instrutória das partes,
Todas as provas - produzidas pelas partes mesmo no processo civil dispositivo.
ou determinadas ex officio pelo juiz - s) Vê-se daí que não há porque continuar
devem ser submetidas ao contraditório, sublinhando a distinção entre "verdade real"
sob pena de invalidade. (para o processo penal) e "verdade formal"
o) A obrigação de motivação é a segun- (para o processo civil). O conceito de ver-
da baliza em que deve conter-se a inicia- dade não é ontológico nem absoluto e no
tiva probatória oficial. Seja no momento processo - penal ou civil que seja - o juiz
de determinar a produção da prova, seja s6 pode buscar a verdade processual, que
no momento dé valorá-Ia, a decisão do nada mais é do que o estágio mais próximo
juiz há de ser fundamentada, sob pena de possfvel da certeza. E para que chegue a
nulidade. esse estágio, deve ser dotado de iniciativa
p) O terceiro limite à iniciativa proba- instrutória.
tória do juiz consiste na licitude (material) t) Nos dois tipos de processo, deve en-
e na legitimidade (processual) das provas tender-se por "verdade real" a verdade
cuja produção determinar. Não são provas subtraída à exclusiva influência das partes.
as colhidas com infringência a normas ou A diferença que persiste reside na existên-
valores constitucionais, nem pode o juiz cia, no processo civil, de fatos incontrover-
determinar de ofício provas que vulnerem sos, sobre os quais não se admite prova,
regras processuais. A certeza buscada em enquanto no processo penal tradicional, mes-
jufzo deve ser ética, constitucional e pro- mo diante de fatos incontroversos, o juiz
cessualmente válida. deve sempre pesquisar com a finalidade de
q) O acima exposto aplica-se a qualquer determinar a produção da prova capaz de
processo, penal e não-penal. Observe-se, levá-Io ao conhecimento dos fatos. Mas,
para o processo penal, que é estranha ao aqui também, a tendência rumo à justiça
tema a questão dos elementos probatórios penal consensual está aproximando o pro-
colhidos durante a investigação prévia e de cesso penal do processo civil.
sua inidoneidade para servir de base à for- u) O princípio da verdade real, que foi
mação do convencimento do juiz. Não se o mito de um processo penal voltado para
confunda a iniciati va instrutória do juiz no a liberdade absoluta do juiz e para a uti-
lização de poderes ilimitados na busca da constitucional e processualmente válida.
prova, significa hoje simplesmente a ten- Isso para os dois tipos de processo, penal
dência a uma certeza próxi ma da verdade e não-penal. E ainda, agora exclusi vamen-
judicial: uma verdade subtraída à exclusi- te para o processo penal tradicional, uma
va influência das partes pelos poderes verdade a ser pesquisada mesmo quando
instrutórios do juiz e uma verdade ética, os fatos forem incontroversos.

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