1 A INICIATIVA INSTRUTÓRIADO JUIZ NO PROCESSO PENAL ACUSATÓRIO ADA PELLEGRINI GRINOVER
SUMÁRIO: 1.Justificativa do tema- 2. Significado e alcance da expressão "sistema
acusatório" - 3. Sistema acusatório e adversarial s)'stem - 4. A concepção publicista do processoesua função social: o papel dojuiz-5. A iniciativainstrutóriadojuiz no processo moderno - 6. Os limites da atividade instrutória oticial: contraditório, motivação das decisões judiciárias.licitude (material) e legitimidade (processual) das provas - 7. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal e no processo civil. Verdade real e verdade formal- 8. Conclusões.
2. Significado e alcance da expres-
são "sistema acusatório" A propagação do modelo acusatório na América Latina, indubitavelmente pro- A ambigüidade e indeterminação do movida pelo Código Modelo de Processo binômio acusatório-inquisitório sãoconhe- Penal para Ibero-América, acarretou em cidas, sendo polivalente seu sentido. Por diversos países e está trazendo em outros isso nos preocupamos, em diversos escri- profundas modificações no sistema inqui- tos, em salientar aquilo que distingue, sin- sitório antes difuso na América espanho- teticamente, o modelo acusatório do la, com evidentes vantagens no tocante a inquisitório. No primeiro, as funções de um processo aderente às garantias consti- acusar, defender e julgar são atribuídas a tucionais e fiel às normas da Convenção órgãos distintos, enquanto no segundo as Americana dos Direitos Humanos. funções estão reunidas e o inq,uisidordeve No entanto, alguns equívocos têm sur- proceder espontaneamente. E só no pro- gido aqui e acolá, a partir da errônea con- cesso acusatório que ojuízo penal é o actwn cepção do que se deve entender por "pro- trium personarum, de que falava Búlgaro, cesso acusatório e processo inquisitivo", enquanto no processo inquisitório a assim como pelo significado da expressão investigação unilateral a tudo se antepõe, "processo de partes", ligada ao primeiro tanto que dele disse Alcalá-Zamora não se modelo. tratardeprocessogenuíno,mas simde forma Esses mal-entendidos têm induzido al- autodefensi va da administração da justiça. guns teóricos e certos sistemas a confun- Onde aparece o sistema inquisitório pode- dir o sistema acusatório moderno Com o rá haver investigação policial, ainda que adversarial system dos países anglo- dirigida por alguém chamado juiz, mas saxônicos, com profundas repercussões nunca verdadeiro processo. sobre o papel do juiz no processo penal. Decorrem desse conceito sintético di- Desfazer esses equívocos, ou ao menos versos corolários: a) os elementos esclarecer alguns conceitos, é o objetivo probat~rioscolhidos na faseinvestigatória, deste trabalho. prévia ao processo, servem exclusivamente para a formação do convencimento do adversarial. Um sistema acusatório pode acusador, não podendo ingressar no pro- adotaroadversarialsystemou o inquisitorial cesso e ser valorados como provas (salvo system, expressão que se poderia traduzir se se tratar de prova antecipada, submeti- por "processo de desenvolvi mento oficial". da ao contraditório judicial, ou de prova Ou seja, firme restando o princípio da de- cautelar, de urgência, sujeita a contradi- manda, pelo qual incumbe à parte a propo- tório posterior); b) o exercício dajurisdi- situra da ação, o processo se desenvolve ção depende de acusação formulada por por impulso oficial. órgão diverso do juiz (o que corresponde Acusatório-inquisitório e adversarial- ao aforisma Iatino nemo in iudicio tradetur inquisitorial são categorias diversas, em sine accusatione); c) todo o processo deve que os termos devem ser utilizados corre- desenvolver-se em contraditório pleno, tamente. De um lado, portanto, o contras- perante o júiz natural. te ocorre entre sistema acusatório e siste- Essas idéias, expostas e publicadas em ma inquisitório, no sentido empregado diversas oportunidades no Brasil e no para o processo penal no n. 2 deste estudo; exterior - incluindo diversas jornadas do do outro lado, a oposição manifesta-se, Insti tuto Ibero- Americano de Direito Pro- tanto no processo penal como rio civil, cessual-jamais mereceram qualquercon- entre o adversarial eo inquisitorial system, testação. Vê-se daí que o conceito de pro- vale dizer entre um processo que, uma vez cesso acusatório e de processo de partes instaurado (mantido, assim, o princípio (no sentido de a acusação e a defesa serem da demanda, ou Dispositionsmaxime, na sujei tos da relação jurídica processual,jun- terminologia alemã), se desenvolve por tamente com o juiz) nada tem a ver com disposição das partes (o que se denomina a iniciativa instrutória do juiz no processo em alemão Verhandlungsmaxime) e pro- penal. cesso de desenvolvimento oficial. Para ilustrar o segundo binômio - con- 3. Sistema acusatório e adversarial dução do processo por disposição das par- system tes e desenvolvimento oficial -, especifi- camente no que diz respeito à iniciativa o que tem a ver, sim, com os poderes probatória, vale lembrar o caso referido instrutórios do juiz no processo é o deno- pela literatura inglesa relativamente ajuiz minado adversarial system, próprio do cujo julgamento foi anulado, sendo o ma- sistema anglo-saxão, em contraposição ao gistrado convencido a demitir-se, por ter inquisitorial system, da Europa continen- formulado às testemunhas perguntas de- tal e dos países por ela influenciados. mais, o que feriria o Jair triai. Como bem aponta José Carlos Barbosa Moreira, no Denomina-se adversarial system o mo- nosso sistema bem que alguns juízes mere- delo que se caracteriza pela predominância ceriam, ao contrário, ao menos uma adver- das partes na determinação da marcha do tência por fazer poucas perguntas, ou ne- processo e na produção das provas. No nhuma (Notas sobre alguns aspectos do inquisitoriál system, ao revés, as mencio- processo -civil e penal-nos países anglo- nadas atividades recaem de preferência saxônicos. Revista Forense, v. 344, p. 98). sobre o juiz. Vê-se por aí a importância do correto entendimento dos termos acusató- Cumpre observar, ainda, que nos pró- rio-inquisitório (no sentido empregado no prios ordenamentos anglo-saxônicos exis- . n. 2 deste trabalho) e adversarial-inqui- tem várias exceções à regra do predomínio sitorial (no sentido utilizado agora). O ter- das partes, abrindo-se espaço maior à in- mo processo inquisitório, em oposição ao tervenção do juiz. O caráter adversarial do acusatório, não corresponde ao inquisito- sistema vai cedendo espaço ao desenvolvi- rial (em inglês), o qual se contrapõe ao mento oficial e a distinção entre os dois processos parece tender a uma atenuação tem que zelar por seu cumprimento, uma cada vez mais perceptível (Barbosa Morei- vez que a paz social somente se alcança ra, loco cit., p. 99, com bibliografia). Além pela correta atuação das regras imprescin- dos sinais de mudanças, é também oportuno díveis à convivência das pessoas. Quanto salientar as críticas que se levantam contra mais o provimento jurisdicional se aproxi- o sistema até agora dominante no processo mar da vontade do direito substancial, mais civil inglês: várias propostas legislativas perto se estará da verdadeira paz social. propugnam no sentido de a condução do Trata-se da função social do processo, feito anterior ao trial não ser mais deixado que depende de sua efetividade. Nesse quase exclusivamente ao cuidado das par- quadro, não é possível imaginar um juiz tes, devendo submeter-se ao controle do inerte, passivo, refém das partes. Não pode órgão judicial, até para atenuar os proble- ele ser visto como mero espectador de um mas de procrastinações indesejáveis que duelo judicial de interesse exclusivo dos incidem sobre o custo e a duração do pro- contendores. Se o objetivo da atividade cesso. E, no processo norte-americano, toma jurisdicional é a manutenção da integri- corpo a idéia de que vale a pena buscar em dade do ordenamento jurídico, para o sistemas continentais europeus sugestões atingimento da paz social, o juiz deve para problemas que afligem ajustiçacrimi- desenvolver todos os esforços para alcançá- nal (Barbosa Moreira, loco cit., p. 108-109, 10. Somente assim a jurisdição atingirá com bibliografia). seu escopo social. O papel do juiz, num processo publicista, 4. A concepção publicista do pro- coerente com sua função soçial, é neces- cesso e sua função social: o papel sariamente ativo. Deve ele estimular o do juiz contraditório, para que se torne efetivo e concreto. Deve suprir às deficiências dos Mas a escolha entre oadversarial system litigantes, para superar as desigualdades e e o do desenvolvimento oficial não deve favorecera par coMicio. E não pode sa- ser determinada apenas pela maior ou tisfazer-se com a plena disponibilidade menor eficiência de um em relação ao das partes em matéria de prova. outro. À raiz do modelo que confia ao juiz a condução do processo, inclusive no que 5. A iniciativa instrutória do juiz no diz respeito à iniciativa instrutória, está processo moderno uma escolha política que diz respeito à concepção publicista do processo e à per- Nessa visão, que é eminentemente polí- cepção de sua função social. tica, é inaceitável que o juiz aplique nor- O direito processual é ramo autônomo mas de direito substancial sobre fatos não do direito, regido por princípios publicis- suficientemente demonstrados. O resulta- tas. Tem ele fins distintos de seu conteúdo do da prova é, na grande maioria dos casos, e esses fins se confundem com os objetivos fator decisivo para a conclusão última do do próprio Estado, na medida em que a processo. Por isso, deve o juiz assumir jurisdição é uma de suas funções. Os objeti- posição ativa na fase instrutória, não se vos da jurisdição e do seu instrumento, o limitando a analisar os elementos forneci- processo, não se colocam com vistas à par- dos pelas partes, mas determinando sua te, a seus interesses e a seus direitos subje- produção, sempre que necessário. tivos, mas em função do Estado e dos ob- Ninguém melhor do que o juiz, a quem jetivos deste. o julgamento está afeto, para decidir se as A observância d,!s normas jurídicas pos- provas trazidas pelas partes são suficientes tas pelo direito material interessa à socie- para a formação de seu convencimento. dade. Por via de conseqüência, o Estado Isto não significa que a busca da verdade seja o fim do processo e que o juiz só deva verdadeiro titular do direito. A pacifica.. decidir quando a tiver encontrado. Verda- ção social almejada pela jurisdição sofre de e certeza são conceitos absolutos, difi- sério risco quando o juiz permaneceiner •• cilmente atingíveis, no processo ou fora te, aguardando passivamente a iniciativa dele. Mas é imprescindível que o juiz instrutória da parte. diligencie a fim de alcançar o maior grau A iniciativa oficial no campo da proY3" de probabilidade possível. Quanto maior por outro lado, não embaça a imparciali- sua iniciativa na atividade instrut6ria, mais dade do juiz. Quando este determina que perto da certeza ele chegará. se produza uma prova não requeri da pelas O juiz deve tentar descobrir a verdade e, partes, ou quando entende oportuno voa. por isso, a atuação dos litigantes não pode tar a inquirir uma testemunha ou solicitar servir de empecilho à iniciativa instrut6ria esclarecimentos do perito, ainda não c0- oficial. Diante da omissão da parte, o juiz nhece o resultado que essa prova trará ao em regra se vale dos demais elementos dos processo, nem sabe qual a parte que será autos para formar seu convencimento. Mas favoreci da por sua produção. Longe de se os entender insuficientes, deverá deter- afetar sua imparcialidade, a iniciativa minar a produção de outras provas, como, oficial assegura o verdadeiro equilíbrio e por exemplo, ouvindo testemunhas não proporciona uma apuração mais comple- arroladas no momento adequado. Até as tados fatos. Ao juiz não importa que vença regras processuais sobre a preclusão, que o autor ou o réu, mas interessa que saia se destinam apenas ao regular desenvolvi- vencedor aquele que tem razão. Aindaque mento do processo, não podem obstar ao não atinja a verdade completa, a atuação poder-dever do juiz de esclarecer os fatos, ativa do juiz lhe facilitará inegavelmente aproximando-se do maior grau possível de o encontro de uma parcela desta. certeza, pois sua missão é pacificar com justiça. E isso somente acontecerá se o 6. Os limites da atividade instrutória provimento jurisdicional for o resultado oficial: contraditório, motivação da incidência da norma sobre fatos efetiva- das decisões judiciárias, Iicitude mente ocorridos. (material) e legitimidade (proces- Nada disso é garantido pelo adversarial sual) das provas system, em que a plena disponibilidade das provas pelas partes é reflexo de um supe- Mas a atuação do juiz na atividade rado liberal-individualismo, que não mais instrutória não é ilimitada. Existem bali- satisfaz à sociedade. Além do mais, a zas intransponíveis à iniciativa oficial, que omissão da parte na instrução do feito é se desdobram em três parâmetros: a rigo- freqüentemente devida a uma situação de rosa observância do contraditório, a obri- desequilíbrio material, em que preponde- gatoriedade de motivação, os limites im- ram fatores institucionais, econômicos ou postos pela licitude (material) e legitimi- culturais. O reforço dos poderes instrut6rios dade (processual) das provas. do juiz desponta, nesse panorama, como O contraditório, entendido como parti- instrumento para atingir a igualdade real cipação das partes e do juiz na colheita da entre as partes. prova, constitui o primeiroparâmetro para A visão do estado social não admite a a atividade instrutória oficial. Por isso posição passiva e conformista do juiz, mesmo prefere-se o termo "iniciativa do pautada por princípios essencialmente juiz" ao de "atividade do juiz", porquanto o indi vidualistas. O processo não é um jogo, primeiro melhor representa a necessidade em que pode vencer o mais poderoso ou de as partes participarem, com o magis- o mais astucioso, mas um instrumento de trado, da colheita da prova. A participa- justiça, pelo qual se pretende encontrar o ção das partes e do juiz na ati vidade ins- trutória é condição de validade das provas a ver com o processo civil dispositivo. e não podem ser consideradas provas aque- Tem a ver, exclusivamente, com a visão las que não forem produzidas com a publicista do processo e com a sensibili- concomitante presença do juiz e das par- dade para com a sua função social. tes. A melhor maneira de preservar a Como visto, o modelo acusatório do imparcialidade do juiz não é alijá-Io da processo penal não interfere com os pode- iniciativa instrutória, mas sim submeter res instrutórios do juiz. Suas característi- todas as provas - as produzidas pelas par- cas fundamentais são bem·diversas. A tes e as determinadas ex officio pelo juiz separação nítida das funções de acusar, - ao contraditório. defender e julgar não demandam um juiz A segunda baliza em que deve conter-se inerte e passivo. a iniciativa instrutória oficial é a obriga- A questão que envolve os elementos ção de moti vação das decisões judiciárias. probatórios colhidos durante a investiga- Seja no momento de determinar a produ- ção e sua inidoneidade para servir de base ção de uma prova, seja no momento de para a formação do convencimento do juiz valorá-Ia, a decisão do juiz há de ser fun- é estranha à problemática da iniciativa damentada. A ausência ou carência de instrutória oficial. Esta se cirscunscreve ao motivação acarreta a invalidade da prova. processo, o qual é instaurado após acusa- Por último, ojuiz, tanto quanto as partes, ção formal do Ministério Público (ou do encontra outro limite à atividade instrutória querelante, seu substituto processual, na na licitude e legitimidade das provas. Há ação penal de iniciativa privada). Não se uma regra moral intransponível que rege confunda o que se disse quanto aos poderes toda a atividade processual, recepcionada dojuiz no processo e à sua iniciativa proba- de forma explícita pelas constituições de tóriacom aatribuiçãodepoderespara buscar diversos países. Não são provas as colhidas elementos probatórios durante a fase da com infringência anormas ou valores cons- investigação prévia. Esta não pode sercon- fiada ao juiz, sob pena de se retomar ao titucionais, nem pode o juiz determinar a juiz-inquisidor do modelo antigo. Duran- produção de provas que vulnerem regras te a investigação, o juiz do processo acu- processuais. Trata-se do tema das provas satório tem apenas a função de determinar ilícitas e ilegítimas, que não podem ingres- providências cautelares. Porisso, éoportu- sar no processo nem, evidentemente, ser no que o juiz da investigação prévia (a determinadas de ofício pelo juiz. A certeza cargo do Ministério Público e/ou da polí- buscada emjuízo deve ser ética, constitu- ciajudiciária) seja diverso do juiz do pro- cional e processualmente válida. cesso. É neste, e somente neste, que deve Assim, a utilização de poderes instrutó- ser estimulada a iniciativa oficial. rios pelo juiz encontra seus limites na ob- No processo civil, a regra da iniciativa servância do contraditório, na obrigação oficial no campo probatório impõe-se de motivação das decisões e na exclusão mesmo quando o objeto do processo fo- das provas ilícitas e ilegítimas. rem relações disponíveis de direito mate- rial. Seria até fácil sustentar que no pro- 7. A iniciativa instrutória do juiz no cesso civil dispositivo não ~abe a iniciati- processo penal e no processo civil. va instrutória do juiz, reservada aos pro- Verdade real e verdade formal cessos que versem sobre direitos indispo- níveis, entre os quais avulta o processo o que se disse acima aplica-se a qual- penal. Mas não é disso que se trata. quer processo, penal ou não penal. Não José Roberto dos Santos Bedaque (na tem nada a ver com o sistema acusatório, obrá' Poderes instrutórios do juiz. 2. ed. também chamado de partes, não tem nada São Paulo: RT, p. 65 et seq.) demonstra à saciedade que a iniciativa instrutória ofi- mento processual, queiram exercer sobre cial não passa exclusivamente pelo pro- ela. E isso vale para os dois processos, em cesso civil que verse sobre direitos indis- matéria probat6ria. poníveis. A disponibilidade do direito A diferença que persiste reside na exis- material não influi sobre o processo que, tência, no processo civil, de fatos incontro- como instrumento da função estatal, tem versos, sobre os quais não se admite a pro- invariavelmente natureza pública e cuja va, resumindo-se a controvérsia a uma finalidade social, de pacificar com justi- questão de direito, enquanto no processo ça, não se altera consoante seu objeto. penal tradicional não pode haver conver- O papel ativo do juiz na produção da gência das partes sobre os fatos. O juiz prova não afeta de modo algum a liberdade penal, mesmo diante de fatos incontrover- das partes. Têm elas a plena disponibili- sos, deve sempre pesquisar com a finali- dade do direito material, podendo, por dade de determinar a produção da prova exemplo, renunciar, transigir, desistir. Mas capaz de levá-lo ao conhecimento dos fatos a solução processual estánas mãos do juiz, da maneira mais próxima possível à certe- que não pode por isso ser obrigadÜ'a sa- za. Mas, aqui também, as tendências rumo tisfazer-se com a atividade das partes, àjustiça penal consensual estão modifican- mesmo no processo civil dispositivo. do os dados da questão. Assim, pode-se afirmar que a questão O princípio da verdade real, que foi o referente à iniciativa instrutória do juiz no mito de um processo penal voltado para a processo não se vincula à dicotomia direi- liberdade absoluta do juiz e para a utiliza- tos disponíveis-direitos indisponíveis, aqual ção de poderes ilimitados na busca da pro- se restringe exclusivamente ao campo do va, significa hoje simplesmente a tendên- direito material. Ainda que disponível a cia a uma certeza pr6xima da verdade ju- relação material, o Estado tem interesse dicial: uma verdade subtraída à exclusiva em que a tutela jurisdicional seja prestada influência das partes pelos poderes instru- da melhor maneira possível. Já asseverava t6rios do juiz e uma verdade ética, proces- Calamandrei que a ampliação dos poderes sual e constitucionalmente válida. Isso para do juiz no campo probatório não é incom- os dois tipos de processo, penal e não pe- patível com Qobjeto do processo (Istituzioni nal. E ainda, agora exclusivamente para o di diritto processuale civile, in Opere processo penal tradicional, indica uma Giuridiche. Nápoles: Morano, VoI. IV, verdade a serpesquisada mesmo quando os 1970, p. 223). fatos forem incontroversos, com a finali- Vê-se daí que não há qualquer razão dade de o juiz aplicar a norma de direito para continuar sublinhando a distinção material aos fatos realmente ocorridos, para entre "verdade real" e "verdade formal", poder pacificar com justiça. entendendo a primeira própria do proces- so penal e a segunda típica do processo civil. O conceito de verdade, como já dito, não é ontológico ou absoluto. No proces- Em conclusão, afirma-se: so, penal ou civil que seja, o juiz só pode a) O processo penal acusat6rio, ou pro- buscar uma verdade processual, que nada cesso de partes (em contraposição ao mais é do que o estágio mais pr6ximo inquisit6rio), deve ser entendido, sinteti- possível da certeza. E para que chegue a camente, como aquele em que as funções esse estágio, deverá ser dotado de iniciati- de acusar, defender ejulgar são atribuídas va instrutória. a 6rgãos diversos, daí decorrendo os se- Por isso mesmo, o termo "verdade real", guintes corolários: aI) os elementos pro- no processo penal e no processo civil, in- bat6rios colhidos na investigação prévia dica uma verdade subtraída à exclusiva servem exclusivamente para a formação influência que as partes, por seu comporta- do convencimento do acusador, não po- dendo ingressar no processo e serem va- h) O direito processual é regido porprin- lorados como provas; a2) o exercício da cípios publicistas e tem fins que se confun- jurisdição depende de acusação formula- dem com os objetivos do Estado, na medida da por órgão diverso do juiz; a3) todo o em que a jurisdição é uma de suas fun- processo deve desenvolver-se em contra- ções. Os objetivos da jurisdição e do pro- ditório pleno, perante o juiz natural. cesso não se colocam com vistas às partes b) O conceito de processo penal acusa- e a seus interesses, mas em função do Es- tório não interfere com a iniciativa ins- tado e de seus objetivos. Pacificar com trutória do juiz no processo. justiça é a finalidade social da jurisdição e quanto mais o provimento jurisdicional c) Tem a ver com os poderes instrutórios se aproximar da vontade do direito subs- do juiz no processo denominado adver- tancial, mais perto se estará da paz social. sarial system, do direito anglo-saxão, em oposição ao inquisitorial system, do siste- i) Trata-se da função social do processo, ma continental europeu e dos países por que depende de sua efetividade. Nesse este influenciados. quadro, não é possível imaginar um juiz d) Denomina-se adversarial system o inerte, passivo, refém das partes. No pro- modelo que se caracteriza pela predomi- cesso publicista, o papel do juiz é necessa- nância das partes na determinação da mar- riamente ativo. Deve ele estimular o con- cha do processo e na produção das provas. traditório, para que se tome efetivo e con- No inquisitorial system, ao revés, as men- creto; deve suprir às deficiências dos liti- cionadas atividades recaem de preferência gantes, para superar as desigualdades e sobre o juiz. favorecer a par condicio. E deve ter ini- ciativa probatória, não podendo limitar-se e) A dicotomia processo acusatório-pro- a analisar os elementos fornecidos pelas cesso inquisitório, no sentido utilizado na partes, mas determinando sua produção, alínea a, não corresponde ao binômio sempre que necessário. adversarial-inquisitorial (em inglês). Um sistema penal acusatório pode adotar o j) Verdade e certeza são conceitos abso- modelo "adversarial" ou "inquisitorial". lutos, dificilmente atingíveis. Mas é im- prescindível que ojuiz diligencie a fim de f) A fim de evitar confusões terminoló- alcançar o maior grau de probabilidade gicas, propomos que, na segunda dicoto- possível. Quanto maior sua iniciativa mia, a expressão adversarial-inquisitorial instrutória, mais perto da éerteza chegará. system seja traduzida por processo que se desenvolve por disposição das partes e k) Nada disso é garantido pelo adversa- processo de desenvolvimento oficial. Isto rial system, em que aplena disponibilidade significa que, no chamado inquisitorial das provas pelas partes é reflexo de um system, uma vez proposta a ação (princí- superado liberal-individualismo, que não pio da demanda, Dispositionsmaxime), o mais satisfaz à sociedade. Além do mais, a processo se desenvolve por impulso ofi- omissão da parte na instrução do feito é cial e não por disposição das partes (não freqüentemente devida a uma situação de adotando, na terminologia alemã, o Ver- desequilíbrio material, em que preponde- hanlungsmaxime ). ram fatores institucionais, econômicos e g) Mesmo nos países anglo-saxônicos, culturais. O reforço dospoderes instrutórios o caráter adversarial do sistema vai ce- dojuiz representa instrumento valioso para dendo espaço ao desenvolvimento oficial. atingir a igualdade real. Mas mais importante do que isso são os 1) A iniciativa oficial no campo da pro- princípios que informam o modelo de va não embaça a imparcialidade do juiz. desenvolvimento oficial: quais sejam, a Quando este determina a produção de concepção publicista do processo e a per- poova não requerida pelas partes, ainda cepção de sua função social. não conhece o resultado que essa prova trará ao processo, nem sabe qual a parte processo com a atribuição de poderes de que será favorecida por sua produção. Ao busca da prova na fase de investigação. juiz não importa que vença o autor ou o Durante esta, o juiz só pode ter os poderes réu, mas interessa que saia vencedor aque- de determinar medidas cautelares, sob pe- le que tem razão. na de voltar-se à figura do juiz-inquisidor m) Mas a atuação do juiz na atividade do processo antigo. instrutória não é ilimitada. Existem balizas r) Não há razão para se retirar do juiz a intransponíveis' à iniciativa oficial, que se iniciativa instrutória, mesmo no processo desdobram em três parâmetros: ml) a ri- civil que verse sobre direitos disponíveis. gorosa observância do contraditório; m2) A disponibilidade do direito material não a obrigatoriedade da motivação; m3) os influi sobre o processo que, como instru- limites impostos pela Iicitude (material) e mento da função estatal, tem invariavel- legitimidade (processual) das provas. mente natureza pública e função social. O n) O contraditório, entendido como papel ativo do juiz na produção da prova participação das partes e do juiz na colhei- não afeta a liberdade das partes, que podem ta da prova, é condição de validade r;fas renunciar, transigir, desistir. Mas a solu- provas. Não podem ser consideradas pro- ção processual está nas mãos do juiz, que vas as que forem produzidas sem a con- não pode por isso ser obrigado a satisfazer- comitante presença do juiz e das partes. se com a atividade instrutória das partes, Todas as provas - produzidas pelas partes mesmo no processo civil dispositivo. ou determinadas ex officio pelo juiz - s) Vê-se daí que não há porque continuar devem ser submetidas ao contraditório, sublinhando a distinção entre "verdade real" sob pena de invalidade. (para o processo penal) e "verdade formal" o) A obrigação de motivação é a segun- (para o processo civil). O conceito de ver- da baliza em que deve conter-se a inicia- dade não é ontológico nem absoluto e no tiva probatória oficial. Seja no momento processo - penal ou civil que seja - o juiz de determinar a produção da prova, seja s6 pode buscar a verdade processual, que no momento dé valorá-Ia, a decisão do nada mais é do que o estágio mais próximo juiz há de ser fundamentada, sob pena de possfvel da certeza. E para que chegue a nulidade. esse estágio, deve ser dotado de iniciativa p) O terceiro limite à iniciativa proba- instrutória. tória do juiz consiste na licitude (material) t) Nos dois tipos de processo, deve en- e na legitimidade (processual) das provas tender-se por "verdade real" a verdade cuja produção determinar. Não são provas subtraída à exclusiva influência das partes. as colhidas com infringência a normas ou A diferença que persiste reside na existên- valores constitucionais, nem pode o juiz cia, no processo civil, de fatos incontrover- determinar de ofício provas que vulnerem sos, sobre os quais não se admite prova, regras processuais. A certeza buscada em enquanto no processo penal tradicional, mes- jufzo deve ser ética, constitucional e pro- mo diante de fatos incontroversos, o juiz cessualmente válida. deve sempre pesquisar com a finalidade de q) O acima exposto aplica-se a qualquer determinar a produção da prova capaz de processo, penal e não-penal. Observe-se, levá-Io ao conhecimento dos fatos. Mas, para o processo penal, que é estranha ao aqui também, a tendência rumo à justiça tema a questão dos elementos probatórios penal consensual está aproximando o pro- colhidos durante a investigação prévia e de cesso penal do processo civil. sua inidoneidade para servir de base à for- u) O princípio da verdade real, que foi mação do convencimento do juiz. Não se o mito de um processo penal voltado para confunda a iniciati va instrutória do juiz no a liberdade absoluta do juiz e para a uti- lização de poderes ilimitados na busca da constitucional e processualmente válida. prova, significa hoje simplesmente a ten- Isso para os dois tipos de processo, penal dência a uma certeza próxi ma da verdade e não-penal. E ainda, agora exclusi vamen- judicial: uma verdade subtraída à exclusi- te para o processo penal tradicional, uma va influência das partes pelos poderes verdade a ser pesquisada mesmo quando instrutórios do juiz e uma verdade ética, os fatos forem incontroversos.