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JUIZ DAS GARANTIAS: A BUSCA PELA

EFETIVAÇÃO DO SISTEMA ACUSATÓRIO

Thiago Henrique Trentini Penna


Graduando em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie

Resumo:
A positivação legal do instituto batizado como “juiz das garantias” consubs-
tancia notório avanço do processo penal brasileiro, buscando a efetivação do
sistema processual acusatório. Embora alguns ainda insistam em fazê-lo, não
há como negar que o sistema processual inquisitivo é o que permeou a subs-
tância do diploma legal que ainda constitui o principal alicerce do Processo
Penal brasileiro. Nesse sentido, o instituto denominado de juiz das garantias
objetiva salvaguardar a premissa fundamental do processo penal contempo-
râneo: a imparcialidade do julgador. Não há que se falar em sistema penal
acusatório e garantias penais constitucionais sem que se preocupe com a im-
parcialidade. Por fim, impõe-se ainda a análise dos aspectos jurídicos, motiva-
ções e consequências da suspensão cautelar, pelo Supremo Tribunal Federal,
da eficácia dos dispositivos legais que formalizaram o juiz das garantias. Toda
a análise se baseia em pesquisa bibliográfica e documental, aferida de modo
qualitativo.

Palavras-chave: Processo Penal; Juiz das Garantias; Imparcialidade; Sistema


Acusatório.

Introdução
Os desafios do Processo Penal contemporâneo parecem se perpetuar
em meio às sucessivas alterações legislativas e incorporação de variados ins-
trumentos processuais nesse campo do Direito.
Entretanto, os intermináveis obstáculos não devem causar espanto. Afi-
nal, não se olvide que o diploma normativo basilar do Processo Penal foi ori-
ginalmente batizado em 1941. Assim, o objetivo dos atuantes da área consiste
nada menos na releitura do arcaico código sob a lente neoconstitucional ofe-
recida pela Constituição da República de 1988.
Nessa perspectiva, destacou-se a lei n. 13.964/2019, que ficou conheci-
da como “pacote anticrime”. Entre as diversas mudanças na legislação penal e
processual penal operadas pelo diploma legal em comento, o instituto nomea-

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do de “juiz das garantias” foi um dos de maior relevância.
O juiz das garantias consubstancia uma das facetas da verdadeira efe-
tivação do Processo Penal Constitucional. Nenhuma utilidade há nos trans-
critos constitucionais que contemplam garantias processuais fundamentais,
como a ampla defesa, o contraditório, o devido processo legal, a presunção de
inocência, entre tantos outros, se a prática forense é pautada por praxes arcai-
cas e idealizadas cerca de oitenta anos atrás.
O juiz das garantias busca concretizar a imparcialidade do magistrado
no Processo Penal, fenômeno do qual emana a possibilidade de efetivação de
todos os demais instrumentos assecuratórios do devido processo legal. A se-
paração rígida da fase inquisitiva da persecução penal, em relação à etapa pro-
cessual, é fundamental para que a parcialidade seja mantida, conforme será
demonstrado. Nesse sentido, a figura do juiz das garantias é simplesmente in-
dispensável.

Retrospecto histórico comparativo


Inicialmente, convém tecer um breve cotejo histórico entre os sistemas
processuais acusatório e inquisitivo.
A origem do sistema acusatório se remete ao direito grego, no qual o
próprio povo detinha a prerrogativa de iniciar o processo acusatório. A siste-
mática adotada no âmbito penal se baseava pelos preceitos gerais do direito
civil, o que justifica o papel acusatório nas mãos do povo, a ser desempenha-
do por ele de forma imediata1.
O sistema acusatório grego subsistiu no direito romano, durante a Alta
República daquela civilização. O polo ativo da persecução era assumido es-
pontaneamente por um cidadão comum. Assim, o exercício da ação penal era
cometido a um órgão distinto do juiz, que nem sequer pertencia ao Estado,
mas sim consistia em um representante voluntário do povo2.
Tal sistema, tanto na Grécia quanto em Roma, qualificava-se, em linhas
gerais, pelas características básicas ainda hoje atribuídas ao sistema processual
acusatório: atuação passiva do juiz na atividade instrutória; separação orgânica
das atividades de acusar e julgar; existência do contraditório e da ampla defe-
sa; predominância da oralidade no procedimento; publicidade dos julgamen-
tos3.
Não obstante, o sistema acusatório deu margem a crescentes desconten-
tamentos por parte do povo, muito em razão da percepção de que os meios
adotados naquele sistema não estavam mais sendo suficientes à repressão dos
delitos. Entre as causas dessa percepção, estava a inatividade das partes que
muitas vezes assumiam a persecução penal, causando um senso de ineficácia

1 LOPES JÚNIOR, Aury. Fundamentos do Processo Penal: introdução crítica. 6. ed. São
Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 215.
2 Ibidem, p. 216.
3 Ibidem, p. 216.

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do procedimento e de impunidade dos acusados4.
Diante disso, percebeu-se uma gradual invasão dos órgãos julgadores es-
tatais nas atividades típicas da acusação e das partes, notadamente em relação
à produção probatória. Esse fenômeno paulatino também possibilitou a in-
trodução posterior da tortura no processo penal romano5.
A adoção formal, pela Igreja Católica, do sistema de inquisitivo favo-
receu a rápida disseminação desse novo modelo entre os ordenamentos jurí-
dicos de diversos países europeus. Como “combustível” ao sistema em apre-
ço, o combate à heresia ocupava a posição de justificativa máxima e legítima.
Nesse contexto, a “verdade absoluta” era perseguida a qualquer custo, o que
evidencia como a intolerância é a essencialidade da inquisição6.
No sistema inquisitório, o julgador deixa de ocupar posição de inércia
e imparcialidade, assumindo o protagonismo na acusação, o que envolve a
instauração de ofício das investigações, produção e gestão de provas e o julga-
mento final. Tudo desempenhado por um único órgão (o inquisidor). Nesse
contexto, o acusado jamais era visto como sujeito de direitos, transmutando-
se em mero objeto de investigação.
No clássico sistema inquisitório, a confissão era a prova máxima e ab-
soluta. O procedimento era escrito e secreto. Não havia qualquer observância
ao contraditório. Não se admitia a coisa julgada (o absolvido poderia ser rein-
quirido a qualquer momento). Ademais, o acusado, na maior parte das vezes,
era mantido encarcerado durante todo o processo7.
As revoluções liberais do fim do século XVIII, notadamente a Revolu-
ção Francesa, introduzem a paulatina transformação nesse campo jurídico-
social8. A elevação dos direitos individuais impõe o progressivo abandono do
sistema inquisitório.
Pode-se concluir pela existência plena do sistema inquisitório em países
e épocas em que o autoritarismo predominava, elevando a hegemonia estatal
em detrimento dos direito individuais e fundamentais. É exatamente isso que
a história é capaz de evidenciar.

O juiz e o sistema acusatório


O juiz é a figura processual responsável pela asseguração da eficácia de
todo o sistema de garantias, consagrado na própria Constituição.
A partir da superficial e breve comparação contextualizada dos sistemas
processuais inquisitório e acusatório, realizada acima, nota-se que a posição
do juiz é elemento fundamental para que se possa determinar a existência de
um ou outro sistema.
Sendo a parcialidade o princípio supremo do Processo Penal Constitu-
4 Ibidem, p. 217.
5 Ibidem, p. 217.
6 Ibidem, p. 224.
7 Ibidem, p. 222.
8 Ibidem, p. 227.

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cional, caracterizado pela observância dos direitos fundamentais do acusado,
é evidente que não há outra possibilidade senão a adoção do sistema penal
acusatório. Nesse, o juiz é mantido afastado da iniciativa e gestão da prova, de
modo a efetivar sua imparcialidade no desenrolar do processo e concretizar
esse princípio fundamental.
Dentro do sistema acusatório, o magistrado não deve atuar, em nenhu-
ma hipótese, com o objetivo de substituir as partes na resolução do litígio.
Ademais, apenas o sistema acusatório é capaz de assegurar o contraditó-
rio, princípio essencial à estrutura dialética do processo penal9. A separação
orgânica das funções desempenhadas no processo possibilita a existência da
verdadeira imparcialidade.
Diante disso, deve-se reconhecer que é inegável que a possibilidade de
gestão probatória pelo magistrado acarreta a perda da imparcialidade.
Nesse sentido, conforme ensina Aury Lopes Jr., é necessário que se en-
contre o “núcleo fundante” para o fim de se identificar com precisão a predo-
minância de um sistema ou de outro10.
Conforme leciona o mencionado autor, ainda que estudiosos se valham
da falaciosa alegação de que o Brasil possui um “sistema processual misto”, o
núcleo fundante de determinado sistema processual será sempre puro11: ex-
clusivamente acusatório ou exclusivamente inquisitório.
Nesse sentido, devem ser destacados os dispositivos legais que exacer-
bam o fato de que a gestão da prova está, predominantemente, nas mãos do
juiz, evidenciando o princípio inquisitivo na matriz processual brasileira – por
exemplo, art. 156, incisos I e II, do Código de Processo Penal12.
Assim, é forçoso reconhecer que o núcleo fundante do processo penal
brasileiro é inquisitório13. Meras características próprias do sistema acusatório
não são capazes de ilidir um núcleo essencial de caráter inquisitivo, pautado
pela instrução probatória de ofício, sob o pretexto de possibilitar ao juiz o
encontro da “verdade real”14.
No modelo acusatório, o juiz se limita a decidir, atribuindo tão somente
às partes a tarefa de colheita e produção das provas e consequentes interposi-
ções de pedidos.
É necessário que sejam instituídos e formalizados instrumentos hábeis
a assegurar o sistema acusatório e a promover o abandono do sistema inqui-
sitório, fundante de um processo penal que se escora em um diploma legal de
1941.

9 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva Educação,
2020, p. 107.
10 LOPES JÚNIOR, Aury. Fundamentos do Processo Penal: introdução crítica. 6. ed. São
Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 237.
11 Ibidem, p. 238.
12 Ibidem, p. 239.
13 Ibidem, p. 241.
14 Ibidem, p. 239.

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O juiz das garantias
A partir da análise realizada acima, o juiz das garantias se apresenta
como ferramenta essencial à efetivação do sistema acusatório. A criação do
instituto tem por objetivo reforçar a tutela das garantias individuais, dando
concretude à dimensão normativa do princípio do juiz natural, que se espera
seja imparcial e distante dos fatos15. Esse resultado tende a superar, parcial-
mente, o acalorado debate acerca da – evidente – influência que os atos deci-
sórios tomados nas investigações policiais podem exercer sobre a capacidade
cognitiva do juiz quando da condução do processo judicial propriamente dito.
Já consagrado formalmente no ordenamento jurídico de diversos países
latino-americanos e europeus (há tempos), o juiz das garantias (que recebe
também outras nomenclaturas em ordenamentos jurídicos estrangeiros) pode
ser considerado a mais notável inovação trazida pela lei n. 13.964/2019, co-
nhecida popularmente como “pacote anticrime”16.
É pressuposto elementar compreender que o instituto em apreço não
se trata de um “juizado de instrução” ou de um “juiz instrutor”, uma vez que
essa é uma figura arcaica e inquisitória17. O juiz das garantias não tem caráter
inquisitório, não produz prova de ofício e não investiga18.
A lei n. 13.964/19 extraiu do Projeto de Novo Código de Processo Pe-
nal (PL 8.045/10) a criação do juiz das garantias19. Ao magistrado em questão
(atuante na fase do inquérito policial), cabe o controle de legalidade da inves-
tigação e a adoção de medidas cautelares pessoais ou probatórias na referida
fase, sempre mediante requerimento ou representação da Polícia Judiciária e
Ministério Público20.
O recém inserido art. 3º-B, do Código de Processo Penal21, ao dispor
que cabe ao juiz das garantias a salvaguarda dos direitos individuais cuja fran-
quia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, refere-se à
utilização das cláusulas da reserva de jurisdição. Essas podem ser entendidas
como aquelas medidas que, implicando o envolvimento de direitos e garantias
individuais, são constitucionalmente protegidas com maior rigor.
Portanto, o papel do juiz das garantias se limita a receber e apreciar as
representações e requerimentos dos órgãos estranhos ao Poder Judiciário em
15 PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2020, p. 802.
16 BRASIL, lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019. Aperfeiçoa a legislação penal e
processual penal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 dez. 2019. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13964.htm>. Aces-
so em: 10 nov. 2020.
17 LOPES JÚNIOR, Aury. Fundamentos do Processo Penal: introdução crítica. 6. ed. São
Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 260.
18 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva Educação,
2020, p. 141.
19 PACELLI, op.cit., p. 802.
20 Ibidem, p. 802.
21 BRASIL, Decreto-lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Diá-
rio Oficial da União, Brasília, DF, 13 out. 1941. Disponível em: <http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm>. Acesso em: 10 nov. 2020.

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relação a medidas que necessariamente estão protegidas pela reserva de juris-
dição, as quais exigem a determinação judicial para suas efetivações. Ao lado
disso, o juiz das garantias também pelo controle da legalidade de todos os
atos praticados no âmbito da investigação.
O juiz das garantias, em regra, atuará da fase pré-processual - de investi-
gação policial - até o recebimento da denúncia. Realizado esse ato processual
em questão, os autos devem ser encaminhados a outro juiz, o qual será res-
ponsável pela instrução processual e julgamento da causa. Desse modo, esse
último (juiz de instrução e julgamento) não se contaminará com os elementos
informativos colhidos durante a fase pré-processual.
Pontue-se, contudo, que o “recebimento da denúncia”, enquanto marco
para a cessação da atuação do juiz das garantias, compreende o ato citatório, a
apresentação da defesa preliminar e, inclusive, decisão acerca de eventual ab-
solvição sumária22. Todos esses atos procedimentais se incluem no âmbito de
atuação do juiz da investigação.
Assim, como é de se desejar em um sistema acusatório, o juiz das ga-
rantias é inerte, atuando mediante provocação e efetivando a imparcialidade
judicial desde a fase investigativa da persecução penal, em que ele delibera,
somente quando invocado, sobre medidas restritivas de direitos fundamentais
e como garantidor da legalidade dos atos de investigação23.

Por que um mesmo juiz não pode “fazer tudo”?


Inúmeros argumentos se prestam a demonstrar a viabilidade da adoção
do instituto do “juiz das garantias” e, simultaneamente, o desacerto em man-
ter um único juiz durante todas as fases da persecução penal. Abaixo, encon-
tram-se os mais pertinentes e sólidos argumentos favoráveis à adoção do juiz
das garantias.
Primeiramente, impõe-se reconhecer um fator de ordem eminentemen-
te empírica e histórica. É da essência do sistema inquisitório a aglutinação de
funções em um único juiz, assim como a atribuição de poderes de produção
de provas ao julgador24.
O acúmulo de funções, em um mesmo juiz, primeiramente, aproximaria
a atuação do magistrado, no processo penal atual, à atuação do juiz inquisidor.
Isso, porque o acúmulo de funções é característico do sistema inquisitivo, no
qual o juiz detém uma anormal soberania no processo, acumulando poderes
de investigação, acusação, instrução e, por fim, de julgamento.
Dessa forma, seria prudente e viável a formalização de instrumentos
que rompessem por completo a atual estrutura do Processo Penal com as ar-
caicas raízes de caráter inquisitivo.
Como segundo argumento favorável, têm-se as inúmeras decisões do
22 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva Educação,
2020, p. 146.
23 Ibidem, p. 142.
24 Ibidem, p. 142.

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Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), especialmente aquelas exa-
radas na década de oitenta, que consolidam o entendimento de que o juiz com
atribuições de cunho investigatório é incompatível com a função judicante do
Poder Judiciário25. Nesse sentido, os atos decisórios tendentes a balizar as in-
vestigações consubstanciam impedimento ao juiz na condição de julgador, no
processo propriamente dito. Isso ocorre pela inevitável contaminação do jul-
gador com os fatos e elementos apresentados ainda na fase investigativa26. O
TEDH também desempenhou relevante papel na formação doo conceito bi-
partido da imparcialidade, dividindo-a em subjetiva (em relação ao caso con-
creto, objeto do processo) e subjetiva (em relação aos sujeitos envolvidos)27,
de modo a enfatizar que ambas devem ser mantidas íntegras e preservadas
para que se possa assegurar a existência de um juiz imparcial.
Para o fim de deslindar o terceiro argumento, utiliza-se, aqui, uma ex-
pressão designada por Aury Lopes Jr., consistente na garantia da “originalida-
de cognitiva”28. Tal garantia consiste no fato de o juiz da instrução processual
– e do julgamento, consequentemente – somente ter algum conhecimento em
relação à causa a ser apreciada no momento em que o contraditório judicial
esteja em sua plenitude, na fase processual. Desse modo, seu convencimento
motivado será formado exclusivamente pelas provas colhidas sob o crivo do
contraditório e da ampla defesa.
De outro lado, ignorando-se a premissa da originalidade cognitiva, ter-
se-ia um julgador cuja cognição seria indevidamente contaminada por todos
os elementos informativos presentes na fase pré-processual. Esse julgador in-
gressaria na fase processual, em que seria formado o contraditório judicial,
com a “imagem” dos fatos, conhecidos ainda no inquérito, já formada em sua
mente.
Conforme explica o citado autor29:
Do contrário, o modelo brasileiro que se quer abandonar faz com que
o juiz já entre na fase processual “sabendo demais”, excessivamente
contaminado, já “sabedor” e, portanto, jamais haverá a mesma qua-
lidade cognitiva com a versão antagônica (da defesa, por elementar).
Não existe igualdade de condições cognitivas, não existe contraditório
real (pois impossível o mesmo tratamento) e, portanto, jamais haverá
um devido processo frente a um juiz verdadeiramente imparcial. Não
podemos ter um juiz que já formou sua imagem mental sobre o caso
e que entra na instrução apenas para confirmar as hipóteses previa-
mente estabelecidas pela acusação e tomadas como verdadeiras por
ele (e estamos falando de inconsciente, não controlável), tanto que
decretou a busca e apreensão, a interceptação telefônica, a prisão pre-
25 LOPES JÚNIOR, Aury. Fundamentos do Processo Penal: introdução crítica. 6. ed. São
Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 108.
26 LOPES JÚNIOR, op. cit., p. 73.
27 Ibidem, p. 73.
28 Ibidem, p. 143.
29 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva Educação,
2020, p. 143.

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ventiva, etc. e ainda recebeu a denúncia. É óbvio que outro juiz deve
entrar para que exista um devido processo. Do contrário, a manter o
mesmo juiz, a instrução é apenas confirmatória e simbólica de uma
decisão previamente tomada.

A partir dessa compreensão, fica muito clara a necessidade de se ter um


diferente juiz para cada fase que compõe a persecução penal. É apenas com
a existência de um juiz das garantias, cuja atividade se encerre quando do iní-
cio da fase judicial, que se impedirá que o julgador (juiz do processo) tenha o
indevido contato com as informações, diligências e elementos pertencentes à
fase pré-processual.

A importância da separação dos autos do inquérito dos autos pro-


cessuais
O § 3º do art. 3º-C, do Código de Processo Penal, igualmente inserido
no diploma em questão por meio da lei n. 13.964/1930, consagra a exclusão
física dos autos do inquérito.
Abaixo, é transcrito o teor literal do dispositivo em comento:
Os autos que compõem as matérias de competência do juiz das ga-
rantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo, à disposição do
Ministério Público e da defesa, e não serão apensados aos autos do
processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os
documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de
provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para
apensamento em apartado.

A medida em apreço representa valiosa evolução no sentido de se evitar


a contaminação do juiz do processo (de instrução e julgamento) com os ele-
mentos produzidos no âmbito da investigação criminal31.
Como bem se sabe, o inquérito policial se presta a possibilitar a colheita
e a reunião de elementos informativos que demonstrem a materialidade do
fato e os indícios de autoria, de modo que seja constituída a justa causa para a
propositura da eventual ação penal32.
Desse modo, fica claro que o inquérito policial (ou qualquer outra in-
vestigação preliminar) serve ao órgão público incumbido do oferecimento da
denúncia, não configurando fonte de elementos de prova para os fins de for-
mação do convencimento do julgador, na fase processual.
Portanto, é de rigor que haja medidas que assegurem o “isolamento” da
30 BRASIL, lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019. Aperfeiçoa a legislação penal e
processual penal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 dez. 2019. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13964.htm>. Aces-
so em: 13 nov. 2020.
31 LOPES JÚNIOR, op. cit., p. 198.
32 BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal. 13. ed. São Paulo: Saraiva
Educação, 2019, p. 172.

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fase preliminar da persecução penal da fase judicial. A exclusão dos autos do
inquérito é capaz de evitar a contaminação do juiz do processo (aquele que
irá julgar a causa) pelos elementos colhidos no âmbito do inquérito, os quais
são produzidos sem o rigor garantista inerente ao processo penal e imposto
expressamente pelos princípios constitucionais correlatos33.
Ademais, a medida em apreço constitui também primordial instrumento
pelo qual a já mencionada “originalidade cognitiva” é efetivada e assegurada34.
Afinal, não havendo o indevido contato do juiz da instrução com os elemen-
tos formados em tempo no qual sequer havia um processo judicial, garante-se
que esse julgador terá conhecimento de cada nuance fático e probatório so-
mente na fase processual da persecução.
Também nesse sentido, percebe-se que a exclusão dos auto do inquérito
é instrumento intimamente vinculado com a própria essência do juiz das ga-
rantias. Afinal, com ambas as medias se busca separar rigorosamente a cogni-
ção em relação às fases pré-processual e processual: o juiz das garantias atua
exclusivamente na fase preliminar, cujos autos e documentações não se comu-
nicarão com os autos do processo judicial, fase em que o magistrado atuante
será necessariamente distinto daquele primeiro.
Portanto, conclui-se que a exclusão dos autos do inquérito e o juiz das
garantias são instrumentos complementares e interdependentes na busca pela
efetivação da imparcialidade do julgador e da garantia do devido processo le-
gal.
Por fim, fica registrado que, nos termos, do § 4º do mesmo art. 3º-C, é
assegurado às partes (acusação e defesa) o amplo acesso aos autos exclusivos
do inquérito policial, os quais devem se manter acautelados na secretaria do
juízo das garantias.

A suspensão cautelar da eficácia do “juiz das garantias”


Com a promulgação e publicação da lei n. 13.964/2019, diversas Ações
Diretas de Inconstitucionalidade foram ajuizadas perante o Supremo Tribunal
Federal.
Diante disso, no dia 22/01/2020, o ministro Luiz Fux, relator das ADI’s
n. 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, deferiu medida liminar nos autos das mencio-
nadas ações35, para o fim de se suspender a eficácia “da implantação do juiz
das garantias e seus consectários”, o que abrange os artigos 3º-A, 3º-B, 3º-C,
3º-D, 3ª-E, 3º-F, do Código de Processo Penal36. A suspensão de eficácia, por-
33 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva Educação,
2020, p. 198.
34 Ibidem, p. 198.
35 Supremo Tribunal Federal. Ministro Luiz Fux suspende criação de juiz das garan-
tias por tempo indeterminado. 2020. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/
verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=435253&ori=1. Acesso em: 14 nov. 2020.
36 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstituciona-
lidade 6.298 Distrito Federal. Relator: Min. Luiz Fux. Brasília, DF, 22 de janeiro de 2020.
Supremo Tribunal Federal. Brasília, DF.

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tanto, alcança inclusive o mandamento legal relativo à separação dos autos do
inquérito e dos autos processuais.
Para o ministro Fux, em sede de análise perfunctória, os dispositivos
referentes ao juiz das garantias supostamente feririam a autonomia organiza-
cional e financeira do Poder Judiciário.
Primeiramente, teria havido inconstitucionalidade formal por vício de
iniciativa legislativa da proposta de lei se tornou o “pacote anticrime” efetiva-
mente promulgado. Sendo a proposta legislativa tendente a operar modifica-
ções substanciais na organização do Judiciário e da estrutura de seus órgãos,
a iniciativa legislativa privativa do Poder Judiciário (art. 96, II, da Constituição
Federal37) deveria ter sido observada.
O ministro vislumbrou também violação à autonomia financeira do Ju-
diciário, em decorrência das naturais e inevitáveis despesas que sucederiam da
concretização das medidas impostas. Conforme o seu entendimento38:
O juízo das garantias e sua implementação causam impacto financeiro
relevante ao Poder Judiciário, especialmente com as necessárias rees-
truturações e redistribuições de recursos humanos e materiais, bem
como com o incremento dos sistemas processuais e das soluções de
tecnologia da informação correlatas.

Ademais, o ministro Fux também entendeu que as medidas contempla-


das pela reforma legislativa causariam impacto orçamentário, o que violaria o
novo regime fiscal da União, instituído pela Emenda Constitucional 95/2016.
Nesse sentido, também é transcrito abaixo o fundamento exarado pelo minis-
tro relator39:
Outrossim, a criação do juiz das garantias viola o Novo Regime Fiscal
da União, instituído pela Emenda Constitucional n. 95/2016. O arti-
go 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, acres-
centado por essa emenda constitucional, determina que “[a] propo-
sição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de
receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orça-
mentário e financeiro.” Não há notícia de que a discussão legislativa
dessa nova política processual criminal que tanto impacta a estrutura
do Poder Judiciário tenha observado esse requisito constitucional.

Em suma, esses foram os fundamentos utilizados para o fim de se, la-


mentavelmente, suspender a eficácia dos dispositivos que haviam instituído o
juiz das garantias e os demais institutos dele decorrentes.

37 BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.


Brasília, DF: Presidência da República, [2020]. Disponível em: <http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 14 nov. 2020.
38 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstituciona-
lidade 6.298 Distrito Federal. Relator: Min. Luiz Fux. Brasília, DF, 22 de janeiro de 2020.
Supremo Tribunal Federal. Brasília, DF.
39 Ibidem.

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Considerações finais
O presente trabalho se prestou a evidenciar a imensurável importância
do instituto central do “juiz das garantias”, formalizado finalmente no orde-
namento jurídico brasileiro pela recente reforma operada pela lei nº 13.964,
de 2019.
Para tanto, foi inicialmente preciso tecer o devido cotejo histórico entre
os sistemas acusatório e inquisitório, de modo a demonstrar suas raízes, fun-
damentos, motivações e discrepâncias.
Posteriormente, foi de suma importância situar a posição do juiz para
o fim de se determinar o sistema processual como inquisitório ou acusatório.
Ficou claro que o âmbito de real atuação do magistrado no desenrolar do
processo é o que pode revelar o “núcleo fundante” do sistema processual.
Nesse sentido, a gestão da prova nas mãos do julgador é suficiente para que
se conclua que se está diante de um sistema de matriz inquisitória, em que a
imparcialidade fatalmente é comprometida em face da posição ativa do julga-
dor.
Demonstrado que o sistema processual brasileiro possui, como alicer-
ces, normas e postulados de raízes inquisitórias, passou-se então a demonstrar
os potenciais e inegáveis prejuízos decorrentes da presença de um único ma-
gistrado atuante durante toda a persecução penal. Entre os sólidos argumen-
tos expostos, destacou-se a contaminação cognitiva do julgador que se comu-
nica com os diversos elementos informativos colhidos exclusivamente na fase
pré-processual, o que acarreta na inutilidade da tentativa de se estabelecer o
contraditório na fase processual. Isso, porque o julgador, antecipadamente,
terá formado sua íntima convicção com base no conhecimento dos elementos
produzidos na investigação preliminar.
Também foi destacada a grande importância da exclusão dos autos do
inquérito em relação aos autos processuais, os quais serão manejados pelo juiz
da instrução e julgamento. Evidenciou-se que a separação dos autos é essen-
cial à própria concretização do instituto do juiz das garantias e, consequente-
mente, à manutenção da imparcialidade do juiz que decidirá a causa.
Em sede conclusiva, foi analisada a decisão do ministro Luiz Fux, que,
nos autos de diversas Ações Diretas de Inconstitucionalidade, ajuizadas pe-
rante o Supremo Tribunal Federal em face da lei nº 13.964/2019, deferiu me-
dida cautelar para o fim de suspender a eficácia dos dispositivos normativos
que haviam tratado acerca do juiz das garantias. É evidente que tal medida
adotada pelo ministro é lamentável e só tende a perpetuar um problema no-
civo ao Processo Penal brasileiro. Em razão disso, espera-se que a decisão do
atual presidente do STF seja revista, o quanto antes, para o fim de se, final-
mente, atribuir efetividade e concretude ao instituto do juiz das garantias.

Referências
BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal. 13. ed. São Paulo:

Anais de Artigos Completos - VOLUME 5 | 35


Saraiva Educação, 2019.
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2020.
BRASIL, lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019. Aperfeiçoa a legislação penal
e processual penal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 dez. 2019. Disponível
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BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil
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LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva
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PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2020, p.
802.
Supremo Tribunal Federal. Ministro Luiz Fux suspende criação de juiz das
garantias por tempo indeterminado. 2020. Disponível em: https://portal.stf.
jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=435253&ori=1. Acesso em: 14
nov. 2020.

36 | V Congresso Internacional de Direitos Humanos de Coimbra

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