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O controlo judicial do despacho de arquivamento

Uma abordagem do tema que nos foi proposto tem como pressuposto o
facto de o mesmo tocar, transversalmente, questões fundamentais de
processo penal e do próprio sistema de justiça
Na verdade, numa breve retrospectiva histórica, no domínio do direito
anterior, nomeadamente do Decreto Lei 35.007, já Figueiredo Dias
reconduzia a questão do controle judicial da decisão do Ministério Público
a um dos vectores fundamentais da sua actuação, imposto pelo principio da
legalidade, ou seja, pela necessidade de controlo da legalidade dos seus
actos.
Aquele principio emerge como um dos principio estruturantes, e
fundamento essencial do Estado de Direito, ligando-se, de forma indelével,
ao principio da igualdade, assegurando a preservação da acção penal de
qualquer influência externa, ou por outra razão, que não a da própria
observância da lei.
Porém, como mais tarde reconheceu o mesmo Autor,1 é evidente que o
"princípio da legalidade" processual que, então, se tinha em vista
representava o contraponto do "princípio da oportunidade" e queria, por
isso, significar exactamente, como paradigmaticamente se exprimia o art.
1º do CPP de 1929, que "a todo o crime corresponde uma acção penal".
Um princípio da legalidade que, por conseguinte, não se fundamentava

1
25 Anos de Estatuto do Ministério Público pag 82 e seg

1
numa exigência de responsabilização democrática perante a comunidade,
ligando a actuação dos magistrados do MP à lei, mas traduzia
simplesmente o dogma de "acção penal compulsória".Era este significado
de uma obrigatoriedade, sem referência aos valores legais, que permitia
contrapor o sistema predominantemente de raiz continental á
discricionariedade vigente nas legislações anglo-saxónicas.

Uma exacta compreensão dos pressupostos que então informavam o


intérprete da lei evocam na nossa memória uma justiça criminal que
2
raramente se aproximava do poder. Como referia Cunha Rodrigues as
razões eram várias e de diferente natureza: os crimes contra a segurança do
Estado eram investigados pela polícia política e julgados por tribunais
plenários; os crimes praticados por agentes da autoridade estavam sujeitos
a garantia administrativa; e a criminalidade económico-financeira
conotava-se com infracções bagatelares ou, muito episodicamente, com
um, ou outro, caso de maior relevância explicado por razões de dissidência.
Se a justiça parecia mais eficiente tal derivava da ausência do fenómeno da
massificação, que não tinha relevância, e o sistema penal estava calibrado
para uma delinquência de tipo essencialmente rural. Neste contexto, a
investigação criminal apenas sucedia nas grandes cidades, onde também
estava concentrada a criminalidade mais elaborada, e só esporadicamente
havia a necessidade de recorrer a meio mais elaborados noutros espaços.

2
Obra citada pagina 46

2
Os lugares de inspectores da Policia Judiciária eram preenchidos por
Magistrados, muitas vezes os melhores, que concentravam a actividade
investigatória com a decisão sobre o exercício da acção penal.
Era o tempo em que a instrução preparatória (equivalente ao inquérito) se
fazia praticamente sem investigação, pois ofendido, arguido e testemunhas
compareciam, na data marcada, apresentando versões dos acontecimentos
que, geralmente, eram susceptíveis de conduzir ao esclarecimento dos
factos.
O Ministério Público constituía uma magistratura vestibular da
magistratura judicial com uma estrutura rudimentar.

Reconduzindo-nos ao percurso encetado importa relembrar que já então,


no domínio do citado Decreto Lei 35.007, se organizou um sistema de
controle exclusivamente hierárquico em relação á não acusação que se
seguisse á instrução preparatória, mas, sentindo-se a necessidade de algo
mais em função de um principio da legalidade que obrigava uma
magistratura em que a independência não era um traço natural.
Como referia Figueiredo Dias “Também na perspectiva da defesa do
princípio da legalidade um tal sistema de fiscalização se revela de todo o
ponto insuficiente, por isso que, podendo a não-acusação do MP importar
uma lesão de direitos e legítimos interesses dos particulares, máxime do
ofendido, não pode admitir-se que a decisão sobre aquela seja tomada e
fiscalizada exclusivamente por uma magistratura que, como a do MP, não
goza da prerrogativa jurídico-constitucional da independência. Por isso é

3
que, como dissemos, a nossa jurisprudência consagrou um controlo
indirecto do princípio da legalidade, ao admitir a acusação dos assistentes
em caso de abstenção do MP. Mas também neste contexto se revela a
vantagem de um sistema que admita a possibilidade de controlo judicial
directo da abstenção de acusação do MP por um tribunal de recurso (v. g.
as Relações ou o Supremo, ao estilo do sistema alemão da
Klageerzwingung 46), ou por um juiz de instrução, diferente portanto
daquele a quem eventualmente viesse a caber o julgamento da infracção
cuja acusabilidade se discute”.
No nosso subconsciente estava, assim, inscrita, a ideia de um Ministério
Público menorizado o que, por alguma forma, transparecia na própria
dinâmica do processo penal onde o papel fulcral impendia sobre o Juiz.

II
É na Constituição de 1976 que o Ministério Público assume a sua
maioridade, expressa numa afirmação de emancipação, quer em relação á
Magistratura Judicial, quer em relação á tutela do Executivo. A questão da
autonomia, então consagrada, é indissociável do perfil da sua intervenção
em termos de processo penal, e assume um papel fundamental na
modelação da estrutura da acção penal.
Como refere Cunha Rodrigues3 é útil esclarecer que a questão da
autonomia do Ministério Público esteve, desde a origem, associada a uma
certa concepção sobre o processo penal. O Ministério Público que se

3
Obra citada pag 61

4
discutira nos trabalhos parlamentares relativos à Constituição de 1976 tinha
o seu fundo cultural numa experiência de muitos anos em que a instrução
criminal, como conceito, se descaracterizara, desdobrando-se em duas fases
(preparatória e contraditória) com a primeira atribuída ao Ministério
Público e a segunda, gradualmente desvalorizada, ao juiz.
Quando a Constituição de 1976 estabeleceu que toda a instrução é da
competência de um juiz e, paralelamente, criou um estatuto forte para o
Ministério Público, abriu-se uma intensa controvérsia em termos de
polémica doutrinal. Para uns, o caminho constitucional apontava para uma
garantia de intervenção jurisdicional, formatada num contexto meramente
garantístico, e não de definição da titularidade do processo; para outros, era
crucial a criação de estruturas, que nunca existiram, que possibilitassem
uma investigação criminal dominada pelo juiz de instrução á semelhança
do que acontecia noutras latitudes. Gradualmente, cimentou-se o
entendimento de que o pensamento do legislador constitucional deveria ser
reduzido á dimensão interpretativa segundo a qual a Constituição teria
querido dizer que, nos casos em que tivesse que haver instrução, e só
nesses, ela seria da competência de um juiz. O que não envolveria qualquer
compromisso sobre o modo de organizar a investigação criminal.
É o Código de Processo Penal de 1987 que vem colocar a pedra de toque
numa perspectiva funcional e formata uma intervenção do Ministério
Público que não era mais do que o culminar de um trajecto anunciado que,
necessariamente, deveria conduzir a um novo paradigma do processo penal.
Esse novo ambiente processual, propiciado por uma Constituição apostada

5
em erguer uma outra Magistratura do Ministério Público, não passou
despercebido á doutrina e, já em 1988, afirmava Anabela Rodrigues que,
com aquela mesma Constituição, tinha sido conferida à magistratura do
Ministério Público o grau de independência efectiva, nomeadamente
perante o Executivo, que faziam com que aquele assumisse, no exercício da
sua função atinente à fundamentação da acusação, o tão desejável estatuto
de autonomia, no qual vai implicada a obrigação de se mover por critérios
estritos de objectividade e imparcialidade. O que tudo faz com que se
possam remeter as coisas ao seu devido lugar: continua a defender-se a
figura do juiz de instrução, mas apenas na exacta medida em que se
defende a jurisdicionalização de todas as medidas investigatórias que
directamente contendem com os direitos" liberdades e garantias das
pessoas; e pode, sem medo do ápodo de reaccionarismo, reacentuar-se a
ideia do Ministério Público como "dominus" da fase de investigação por
excelência.
Com a solução preconizada - com um inquérito obrigatório no processo
comum, dirigido pela mesma entidade (o Ministério Público) que no final
decide da acusação ou não-acusação e com uma instrução judicial (a
cargo do juiz de instrução) facultativa contribui-se assim para uma
decisiva simplificação da estrutura do processo penal na fase preliminar,
essencial a uma eficaz política judiciária e criminal. Nesta via, em que no
inquérito se pode proceder a todos os actos necessários à fundamentação
cabal de uma decisão de acusação ou de não-acusação, mas sempre que se
torne necessária a prática de actos que directamente se prendam com a

6
esfera dos direitos, liberdades e garantias das pessoas, tais actos deverão
ser autorizados - e alguns deles mesmo praticados - pelo juiz de instrução,
não se esqueceu que o "Ministério Público" é independente: do que se
trata é de assegurar agora um outro princípio constitucional, segundo o
qual a totalidade das funções materialmente judiciais deve caber, e caber
só, aos juízes.4

Estavam, assim, traçados os pontos cardeais que, desde há cerca de duas


décadas, ditam as regras do nosso processo penal, e a desconfiança que
anteriormente se apontava a uma Magistratura do Ministério Público
menorizada, e na órbita do executivo, era agora substituída por uma
profissão de fé nas virtudes da autonomia em equação directa com o
principio da legalidade, quando não da própria igualdade.5

4
O inquérito no Novo Código de Processo Penal pag 77
5
Impõe-se aqui uma greve referência àquela que tem sido a evolução em termos de direito comparado
que avaliada em relação á Alemanha; Espanha;Itália ;Holanda Portugal Reino Unido e Suiça apresentam
como características principais:
1-O Ministério Publico tornou-se o principal actor da instrução assumindo um papel crescente no
processo criminal á excepção de Espanha (Em Espanha á excepção das infracções menores todas as
infracções são objecto de uma instrução que é realizada por um juiz de instrução auxiliado pela policia
judiciária.O Código de Processo Penal encarrega o Ministério Público, garante da legalidade, de controlar
a acção do juiz de instrução mas este assume, na prática, uma grande independência. Assim, é ele que
decide o encerramento da instrução logo que entende que a mesma está finda. A assunção da instrução
pelo Ministério Público é objecto de um debate recorrente-(confrontar La instrucion del processo penal
por El Ministério Fiscal Aspectos estruturales a la luz del derecho comparado-Juan Luiz Gomez
Colomer).
2-O Ministério Público desempenha um papel fundamental na instrução do processo penal mão somente
na Alemanha e Itália, onde o juiz de instrução foi suprimido, mas também na Holanda.
A Alemanha e a Itália suprimiram o juiz de instrução em 1975 e 1988 para confiar a direcção da instrução
ao Ministério Público.
Na Holanda o Ministério Público está no centro do processo penal. É ele que dirige o inquérito da policia
e que decide se deve abrir, ou não, uma informação judiciária dirigida por um juiz de instrução.Como o
Ministério Público e a policia obtiveram a possibilidade de recorrer a meios de investigação antes
reservados aos juízes a instrução “strictu sensu”, consecutiva ao inquérito policial tornou-se excepcional.

7
III
Neste novo enquadramento também o principio da legalidade vem a ser
objecto de uma actualização interpretativa, imposta pela própria evolução
da dogmática do processo penal, e a compulsariedade do exercício da acção
penal é quebrada com a aceitação de margens de actuação que visam a
desjudicialização, encontrado o seu lugar programas de política criminal
em que surgem como pontos centrais, e irrenunciáveis, os temas da
"mediação", da "desjudicialização"; da "justiça penal negociada", dando
foros de cidadania a uma decantada "justiça restaurativa"; e institutos
processuais penais como os do "arquivamento em caso de dispensa de
pena", da "suspensão provisória do processo", da "plea bargaining" e tantos
mais.

Em Inglaterra, e no País de Gales, o inquérito é realizado pela polícia que goza de grande independência.
O Serviço Nacional que pode assimilar-se a um Ministério Público, mesmo sem todos os seus atributos,
foi criado em 1986 para assegurar a unidade no exercício da acção penal. Assume nesta altura uma
importância crescente no processo penal, em particular na fase preliminar, coopera com a polícia desde o
início do inquérito, dando o necessário apoio jurídico.
O papel do Ministério Público na Suiça também foi objecto de um alargamento. Actualmente, o órgão
encarregado da instrução depende da circunstância de a infracção estar pendente a nível da jurisdição
federal ou cantonal.Segundo a hipótese a instrução é confiada ou a um juiz de instrução ou ao Ministério
Público.O novo Código de Processo Penal, adoptado em 2007, e que entrará em vigor em 1 de Janeiro de
2011, unifica o processo penal outorgando a sua direcção ao Ministério Público.
Como o juiz de instrução o Ministério Público tem a obrigação de instruir “á charge et decharge”.Esta
obrigação figura expressamente nos Códigos de Processo Penal Alemão e Suíço.
Genericamente, pode-se afirmar que, não obstante a tutela do Ministério Público a realização ou
prescrição de actos de instrução que afectem as liberdades, em particular a prisão preventiva ou as escutas
telefónicas requerem a intervenção de um juiz da instrução na Alemanha; juiz das investigações
preliminares em Itália:juiz de instrução em Portugal e na Holanda; magistrate na Inglatera e País de
Gales.
Pode-se afirmar que, genericamente este Juiz das liberdades e garantias é hoje o paradigma da
generalidade dos processos penais europeus, com o abandono do paradigma do juiz de instrução,
incluindo a própria França na qual em 7 de Janeiro de 2009 o Presidente da República anunciou a
supressão substituído pelo Ministério Público na direcção da instrução

8
Assim, quando hoje se coloca a questão da uma acção penal inscrita no
principio da legalidade terá mais sentido falar-se de uma "acção penal
orientada pelo princípio do legalidade" num duplo sentido:- sublinhando
que a ligação do MP à lei também (e sobretudo) no momento da promoção
processual e que a sua decisão de promover, ou não promover, um processo
não pode em caso algum ser comandada pela discricionariedade.

Não obstante, e porque seria manifesto o excesso de não prever qualquer


controle da decisão de acusar, bem como na de não acusar, autonomizou-se
uma instrução dirigida pelo juiz de instrução a quem se pretendeu ligar a tarefa
de fiscalização e controle da actividade do Ministério Público. Como referia a
Autora citada quer a decisão de acusação (artigo 283 do CPP) quer a de
arquivamento (artigo 277 do CPP) devem ser passíveis de controlo judicial,
possibilidade que o novo Código assegura aos interessados - arguido e
assistente - através do direito que lhes confere de requererem a abertura da
instrução, da competência do juiz de instrução: ao arguido, no caso de
acusação (art. 287.°, nº 1 do CPP alínea a) relativamente a factos pelos quais o
Ministério Público, ou o assistente em caso de procedimento dependente de
acusação particular, e ao assistente, para os crimes públicos e semi-públicos,
no caso de não-acusação (art. 287.°, nº 1, alínea b do CPP), relativamente a
factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação. Nos
exactos termos do artigo 286.°, nº1 do Código de Processo Penal a instrução
"visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em
ordem a submeter ou não a causa a julgamento".

9
Para além deste controlo judicial está, ainda, consagrada a possibilidade, no
caso de arquivamento, de um controlo hierárquico (art. 278.°), que se quer
que funcione, não como modo normal de controlo da legalidade da abstenção
de acusação, mas cujo sentido é o de assegurar uma "válvula de segurança" no
sistema, para a sindicância de casos escandalosos em que não haja partes
interessadas, e face à impossibilidade do exercício dos poderes gerais de
avocação após o encerramento do inquérito.

IV
.
No “terminus” do inquérito o Ministério Público elabora, assim, um juízo
de prognose assente na suficiência de indícios e a que não é alheio o
principio in dubio. Tal juízo, que se reconduz á probabilidade, ou
improbabilidade, de condenação abrange apenas a problemática do
eventual comportamento futuro dos indícios recolhidos: formulando uma
convicção sobre a suficiência de indícios deduz acusação. No caso
contrário, profere despacho arquivamento6
Tal decisão, nuclear na vida do processo, pode ser sujeita ao escrutínio do
juiz de instrução, nas diversas conformações que pode assumir, o que nos
reconduz a uma questão nuclear no processo penal de um Estado de
Direito, ou seja, ao principio da garantia judiciária expresso na intervenção
judicial. Como refere Mouraz Lopes 7 Toda a construção doutrinal do

6
Conf João Conde Correia “Questões práticas relativas ao arquivamento e á acusação e á sua
impugnação”
7
Garantia Judiciária em processo penal

10
sistema garantístico como fundamento da actividade jurisdicional acaba
por terminar na própria concepção legitimadora da independência do
poder judicial. Afinal, a concretização da defesa dos direitos fundamentais
só pode fundamentar a existência de um poder totalmente independente de
todos os outros que, também eles, em concreto, acabam por sustentar, em
determinadas circunstâncias, essas violações de direitos.
A estrutura típica do processo penal, adoptada em 1987, que não foi
alterada pela reforma de 1998, onde o Ministério Público, detentor da
acção penal, embora sujeito a critérios de legalidade na sua actuação, não
deixa por isso de representar o Estado no exercício da acção penal, coloca
por isso, de uma forma bem clara a necessidade de ser o juiz o garante das
liberdades do cidadão quando este se vê confrontado com a máquina
estatal da investigação criminal. Já para não falar da própria intervenção
do Estado na prevenção criminal, onde, para além das competências
próprias dos órgãos de polícia criminal nesta matéria, também o
Ministério Público vem vendo reforçados os seus poderes.
A compreensibilidade e mesmo a adequação constitucional da actual
estrutura do processo penal se só é compreensível tendo por certa a
natureza de magistratura que assume o Ministério Público, não pode
omitir, no entanto, alguns equívocos decorrentes do próprio estatuto
constitucional e legal do Ministério Público

11
Sendo uma magistratura autónoma, que goza de estatuto próprio, os seus
agentes são, ao contrário dos juízes, responsáveis e hierarquicamente
subordinados. 8

É, pois, em face deste arquivamento que se posicionam algumas das


questões mais delicadas pelo tema proposto e que desde logo radicam no
polimorfismo que tal despacho pode apresentar.
Na verdade,
O artigo. 277.°, nº 1 do Código de Processo Penal consubstancia três causas
de arquivamento distintas: a primeira hipótese ocorre quando durante o
inquérito for recolhida prova bastante de não se ter verificado crime
(arquivamento por razões de facto e/ou por razões materiais). É uma forma
de certeza da inexistência. Não está em causa a mera ausência de indícios
suficientes mas, muito mais do que isso, a constatação e a afirmação de que
não há crime. Dito por outra forma, inexistem factos que possam
fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança.
São esses factos que sustentam a acusação e é a sua inexistência

8
Conforme refere o mesmo autor É preciso lembrar que a hierarquização do Ministério Público
assumindo a configuração de vértice, tem no seu topo a figura do Procurador-Geral da República.
Cabendo a sua nomeação e exoneração ao Presidente da República, sob proposta do Governo, com uma
limitação de mandato estabelecida na Constituição pela Revisão de 1997 de seis anos, a conclusão de
que existe uma conexão entre o exercício da acção penal e o poder político é inevitável. lnevitabilidade
que não traz em si qualquer captio diminutis relativamente ao estatuto do Ministério Público bem como
ao exercício das suas funções.
A política criminal é uma das vertentes fundamentais da acção dos órgãos de soberania no exercício
pleno dos seus poderes constitucionais de condução da política geral do País.
Cabendo ao Governo esse poder, sempre sustentado pela Assembleia da República, no que diz respeito à
elaboração de legislação sobre restrições de direitos liberdades e garantias e à definição de crimes,
penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem como do processo criminal, caber-lhe-á
sem dúvida essa parcela de controlo sobre o Ministério Público decorrente do exercício da acção penal.

12
(devidamente comprovada) que, por maioria de razão, sustentará o
despacho de arquivamento previsto no art. 277.°, n.o 1, primeira parte, do
Código de Processo Penal 9
A segunda hipótese de arquivamento tem lugar quando, durante o
inquérito, for recolhida prova bastante de que o arguido não praticou
aqueles factos a qualquer título (arquivamento por razões de facto). Existe
a certeza de um crime e, em simultâneo, a necessária certeza de que o
arguido não o cometeu. Não está em causa a existência de crime, ou a sua
qualificação jurídica, mas somente a participação subjectiva e individual na
sua prática, seja como autor, seja apenas como cúmplice.
A terceira hipótese de arquivamento, nos termos do art. 277.°, nº 1, do
Código de Processo Penal, abrange um amplo campo polifacetado em que
o procedimento criminal é legalmente inadmissível (essencialmente por
razões processuais). O normativo aplica-se a situações de proveniência
diversa, geralmente classificadas como pressupostos, ou impedimentos
processuais, sendo muitas vezes discutida a sua origem processual, material
ou mista. É o caso do ne his in idem (art. 29.°, nº5, da CRP), da prescrição
(art.s 118 e ss. do CP), da amnistia (art. 127.° do CP), da falta de queixa

9
Na opinião de Conde Correia “o mesmo acontece quando, apesar de serem típicos, os factos forem
praticados a coberto de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa. A verificação da sua existência
preclude a possibilidade de aplicação de uma pena ou medida de segurança ao arguido. Se os factos
foram cometidos, por exemplo, em legítima defesa (art. 32.° do CP) ou ao abrigo do direito de
necessidade (art. 34.° do CP), apesar de típicos não são punidos. Aqueles factos não determinam a
aplicação de uma pena ou medida de segurança ao arguido (art. 31.° do CP)”.Não se perfilha tal
entendimento que, a nosso ver interpreta o artigo em causa com uma amplitude que não é permitida nem
pela letra nem pelo espírito da lei.
Por tal forma se amplia a intervenção do Ministério Público atribuindo-lhe a competência para uma
decisão que é jurisdicional que não se prende com a existência de prova mas com a responsabilização
criminal que a mesma implica

13
(art. 49.° do CPP), da falta de constituição como assistente (art. 50.° do
CPP), das imunidades parlamentares (art. 157.° da CRP), da despenalização
da conduta (art. 2.°, nº 2, do CP) ou mesmo da incompetência (art. 33.°,
nº4, do CPP).10 Nesta hipótese, mesmo que porventura existam indícios
suficientes da prática de um crime e de quem foi o seu agente, o Ministério
Público não pode promover a acção penal, devendo decidir-se pelo
arquivamento.

O arquivamento então decidido pelo Ministério Público pode ser objecto


de uma adequada reacção, solicitando a intervenção hierárquica por parte
do assistente, ou do denunciante, com a faculdade de se constituir
assistente, ao abrigo do citado artigo 278 do Código de Processo Penal, ou
de um pedido de controle judicial, formulado pelo assistente, requerendo a
abertura de instrução nos termos do artigo 286 do mesmo diploma

Aqui, duas perplexidades se suscitam, desafiando uma interpretação á luz


dos próprios normativos constitucionais
A primeira questão cinge-se ao próprio controlo da decisão que incide
sobre o pedido de reabertura de inquérito que foi arquivado. Na verdade, se
é certo que os mecanismos estabelecidos nos artigos 277.°, 278.° e 279.° do
Código de Processo Penal permitem, em geral, um controlo directo, e
indirecto, por parte dos interessados sobre a actuação do Ministério Público
quando termina o inquérito, igualmente é exacto a detecção de
10
Conde Correia obra citada pag 35 e Ricardo Casdoso O Controlo jurisdicional do despaco de
arquivamento em O Processo Penal em revisão pag 187

14
disfuncionalidades, deixando sem controlo a actuação do Ministério
Público. Tal sucede com a inadmissibilidade de controlo judicial do
despacho que denega a reabertura do processo, nos termos do artigo 279.°,
n.º 2 do mesmo diploma.
Regressando á estrutura da decisão de arquivamento salienta-se que apenas
é possível a reabertura do inquérito, depois de proferido o despacho de
arquivamento, quando, e se surgirem, novos elementos de prova, que
infirmem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho
que arquivou o inquérito. Do despacho que recusar a reabertura do
inquérito apenas é possível reclamar para um superior hierárquico do
Magistrado do Ministério Público que proferiu o mesmo despacho, não
existindo recurso de tal decisão.
Como acentua Mouraz Lopes11 é uma situação que numa perspectiva
garantística se imporia que fosse alterada, sob pena de se ver encerrado
um inquérito pelo Ministério Público sem que alguém com interesse possa
sindicar esse despacho.

Num outro ponto encontramos uma potencial linha de fractura, caso se


perfilhe o entendimento de que arquivamento processual por
inadmissibilidade legal de procedimento não é susceptível de controlo
jurisdicional. Como refere Ricardo Cardoso12, a posição de que o
arquivamento efectuado pelo Ministério Público, em casos de
inadmissibilidade legal de procedimento criminal, nos termos do artigo
11
Obra citada pag 67
12
Obra citada em nota supra

15
277. °, n.º1, in fine, não sendo susceptível de controlo jurisdicional quando
se trate de situações de "verificação de obstáculos de natureza substantiva"
(como é o caso da amnistia) ou "situações de interpretação extensiva do
referido arquivamento por inadmissibilidade de procedimento, atinentes a
razões adjectivas de ordem processual", carece de adequada
compatibilização constitucional.

V
Aqui chegados assalta-nos a sensação de que o que foi exposto sugere um
modelo que colide com a realidade dos tempos que se vivem.
Na verdade, decorridos cerca de vinte anos sobre a entrada em vigor do
Código de Processo Penal, devemos questionar se o mesmo se
compatibiliza com a evolução entretanto verificada ou se, pelo contrário, é
tempo de equacionar a mudança de paradigma. Sem ter o atrevimento de
uma ponderação dogmática á luz dos novos valores diremos, todavia, que
hoje as realidades mudaram, pelo menos em parte, e tal exige uma
reponderação do significado que devem assumir os princípios que
informaram, inicialmente, o legislador.

16
Uma dessas realidades são as novas formas de delinquência que se
desenham com contornos próprios, que distam da criminalidade
tradicionalmente reflectida num Direito Penal de “sangue e lágrimas”,
espelho do drama da vida. O refinamento no “modus operandi” das novas
modalidades criminosas desafia as estratégias de combate que lhe são
direccionadas. A complexidade na investigação das condutas criminosas
está muito além da elevada danosidade/lesividade desses delitos. A sua
visibilidade escassa, a vitimização difusa e certa imperceptibilidade da
prática destas infracções, além das dificuldades de aplicação de técnicas
legislativas adequadas quando do sancionamento das condutas são
exemplos da alta problemática envolvente do tema.
Nesta sequência, podemos afirmar que o direito penal clássico está
desfasado de algumas exigências de combate reclamadas pelas modernas
configurações penais, nomeadamente quanto aos crimes de “colarinho
branco”, porque foi concebido para o Estado Liberal do século XIX,
construído a partir de uma realidade sócio-cultural inteiramente diversa da
actual.13

13
, SILVA SANCHEZ, La expansión dei Derecho Penal, p. 22. afirma que o Direito Penal
contemporâneo não pode ignorar «a existência no nosso âmbito cultural de uma verdadeira demanda
social de mais protecção» e logo em seguida adverte que esta se não deve confundir com exigências
irracionais de punição, motivadas por sentimentos gerais de insegurança, e estimuladas pela intervenção
de «opinion makers» e por uma política criminal oficial pouco esclarecida, que frequentemente se serve
do instrumento penal com desígnios políticos, quer de condução social ou de reforço sancionatório de
políticas sociais, quer de conquista eleitoral. A distinção entre expectativas legítimas de mais e melhor
protecção e pretensões irracionais de mais Direito Penal, apresentada por SILVA SANCHEZ, é útil para a
delimitação das formas e dos limites de expansão racional do Direito Penal de combate aos novos riscos
(conf. Augusto Silva Dias “Delicta in Se Delicta mera prohibita” pag 639

17
Como acentua Diez Ripolles14 entrámos numa dinâmica que tende a
superar o, até há pouco tempo, indiscutido modelo penal garantista e a
substituí-lo por outro que pode denominar de modelo penal da segurança
cidadã. Nesse movimento, outros modelos penais disponíveis, como o
ressocializador, ou o da justiça restaurativa, começam a ser questionados
como alternativas dignas de consideração.
As exigências de um debate entre as exigências securitárias e as pulsões
garantisticas atingem o seu ponto mais elevado perante realidades novas
como os fenómenos de uma criminalidade organizada, e muitas vezes
transnacional, quando não global, ou uma criminalidade económica que
atinge dimensões preocupantes, evidenciando uma captura do Estado ou
uma privatização ilegítima do interesse público.

Na verdade, também aqui o redimensionamento das estruturas de protecção


inerente á sociedade de risco importa, ou deve importar, uma dinâmica
associativa e solidária da sociedade civil. A densificação subjectiva de direitos
que visam proteger o bem comum deve ter repercussões práticas importantes
ao nível da respectiva tutela jurisdicional e regime processual. A noção de
interesse colectivo, assumindo uma componente substantiva, pode, e deve,
assumir uma consequência em termos de configuração dos meios de tutela
jurisdicional. A atribuição de um “direito de acção” a um cidadão, ou a um
conjunto de cidadãos, implica a consagração de um universo de cidadania.
Neste aspecto se cumpre também a dimensão de solidariedade ética. Sobre
cada um de nós, cidadãos recai um indeclinável dever na preservação de
14
Da sociedade de risco á segurança cidadã RPDC Ano 17 nº4

18
valores que são a essência do próprio Estado, cuidando da sua manutenção e
evitando, sobretudo, o seu dano a fim de que os restantes co-titulares e as
gerações vindouras possam dele beneficiar também.

O processo penal, depositário dos valores constitucionais, tem de reflectir


tal evolução e não é possível, no dealbar do século XXI a manutenção de
fórmulas processuais que já mostraram a sua desadequação aos sinais dos
tempos. A dúvida que, eventualmente, ainda nos pudesse assistir tem uma
resposta elucidativa na evolução e resultado dos processos que, nas últimas
décadas, tocam a criminalidade económica financeira.

É inevitável que as próprias necessidades inerentes á gestão racional do


sistema penal imponham a existência de tipos de processos diferentes
adaptados á criminalidade que se pretende julgar. Estamos em crer que a
um processo penal modelado de forma uniforme, com o pressuposto de um
objecto não diferenciado, irá suceder um processo penal de várias
velocidades, consoante o seu objectivo se situe no patamar de uma
criminalidade clássica, de estrutura linear, ou tenha por objecto uma
criminalidade elaborada, e organizada, com outro tipo de exigência
investigatória e de julgamento.
Um dos campos onde tal evolução se evidenciará é, como se afirmou, a
criminalidade económica e financeira onde, mais do que em qualquer outro
ponto do direito penal, são acrescidas as exigências de transparência das
decisões e a possibilidade de as mesmas serem valoradas pela opinião da
comunidade.

19
As implicações que tal postulado tem em relação ao tema do controle
jurisdicional da actuação do Ministério Público resultam desde logo na
forma como deve ser equacionado o principio da legalidade pois que,
conforme refere Figueiredo Dias15, a decisão de promover, ou não
promover, um processo não pode em caso algum - logo em nome do
princípio democrático-constitucional da igualdade, que se julgava vincular
à máxima da acção penal compulsória - ser comandado pela
discricionariedade livre ou pelas convicções, ou mesmo por (reais ou
pretensos) comandos da sua consciência ética; mas pode e deve ser
comandado pela sua discricionariedade vinculada, isto é ainda, pela sua
obediência à lei, aos juízos de valor legais e, sobretudo, aos programas
político-criminais democraticamente definidos e aos quais o Ministério
Público deve obediência estrita e pelos quais tem de prestar contas. Nesta
perspectiva, a legalidade que, deste modo, abarca a própria oportunidade,
discricionariamente vinculada, geradora de uma autonomia que não deve
ser ensombrada ou, ainda menos, limitada por interferência de outros
órgãos de administração da justiça penal. Mas uma legalidade substancial
por cuja realização o Ministério Público tem de comunitariamente se
responsabilizar, de prestar contas numa medida muito maior do que face a
uma legalidade puramente formal e, aliás, de cumprimento impossível

15
RPDC Ano 17 nº2 Abril Junho de 2007.

20
Temos, assim, por adquirido uma exigência acrescida da responsabilização
do Ministério Público em face da comunidade, também patente pela forma
como a sua decisão de arquivamento é controlada judicialmente.

A questão é, então, a de compatibilizar tal responsabilização democrática


com o controle judicial, o que gera algumas dessintonias. Na verdade, no
domínio do actual Código de Processo Penal, o exercício de tal controle
passa, essencialmente, por uma instrução, tutelada pelo respectivo juiz, cuja
finalidade é a de comprovar a decisão de arquivar o inquérito em ordem a
submeter, ou não a causa a julgamento-artigo 286 do Código de Processo
Penal.
Porém, o tempo encarregou-se de demonstrar a inutilidade desta fase
processual, reconduzida a um pré-julgamento, com o inevitável recurso a
todos os meios possíveis para prolongar a sua duração, ou como alavanca
de uma desejada prescrição, ou como instrumento de uma dilação que
transforma a celeridade processual numa palavra sem sentido. A instrução,
tal como está hoje configurada no Código de Processo Penal não tem
sentido ou propósito funcional.
Como refere Figueiredo Dias16 Á luz desta concepção fundante, analisar a
estrutura do processo penal português vigente, não se me deparam razões
para supor a necessidade de, no curto prazo, introduzir naquela alterações
radicais, nem no que respeita à fase do inquérito, nem à da audiência de
discussão e julgamento.

16
Que futuro para o processo penal Estudos em Homenagem a Figueredo dias

21
Prevejo sim que o dia virá em que (como, in thesi, desde há muito defendo
no plano do direito a constituir) a fase intermediária da instrução será
eliminada como fase processual penal autónoma. Consequência.
sobretudo, de o modelo preconizado pelo código português para esta fase -
como simples comprovação por um juiz de instrução da decisão do
Ministério Público de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito - não
ter podido ser até hoje minimamente cumprido pela praxis; antes ter sido
desvirtuado em direcção a um simulacro de julgamento, antecipado e
provisório, inadmissível à luz dos princípios gerais e de um mínimo de
eficiência, jurídica e socialmente exigível, do processo penal. Questão será
então só saber se uma tal fase autónoma deve ser substituída, à maneira
alemã, por uma simples decisão do tribunal de julgamento de abrir a
audiência ou ordenar o arquivamento; ou deverá ainda admitir, à maneira
da preliminary hearing norte-americana, um debate instrutório. Com a
reserva evidente de que todos os actos de inquérito que contendam
directamente com os direitos, liberdades e garantias das pessoas devem -
porventura ainda em maior número de casos do que os agora
contemplados nos arts. 268.° e 269.° do Código de Processo Penal - ser
autorizados, ou eventualmente praticados, pelo juiz das liberdades (ou, se
assim se preferir chamar-lhe, pelo juiz de instrução).
Assim, reconduzindo-nos á palavra do Mestre estamos em crer que em
lugar da instrução deverá existir uma audiência preliminar, em que apenas
será permitido o debate a que alude o artigo 297 do código de Processo
Penal e com as finalidades a que alude o artigo 286 do mesmo diploma.

22
Encontradas duas referências que devem orientar o legislador em termos do
quadro que deve pautar o controle jurisdicional da decisão de arquivamento
subsiste o ponto crucial de saber como é que tal exercício se deve
desencadear, ou seja, saber se deve permanecer o assistente como único
detentor do poder de desencadear a instrução ou se, pelo contrário, deverá
ser admitida a possibilidade de tal controle ser exercido oficiosa e
obrigatóriamente, pelo menos em relação a determinados tipos de crime,
nomeadamente aqueles em que existe uma expectativa acrescida da
comunidade na tutela do interesse público.17

17
A possibilidade deste tipo de intervenção está prevista na legislação italiana. Quando da revisão do
código de processo penal, o legislador desejou separar o inquérito preliminar do julgamento : as provas
devem ser estabelecidas frente a um juiz que ignora os actos do processo, e o inquérito preliminar
efectuado pelo ministério público não tem nenhum valor probatório.
Por conseguinte, o juiz que decide da abertura do processo não pode ter participado no inquérito
preliminar e não deve participar no julgamento, enquanto o juiz do inquérito preliminar também não pode
participar no julgamento. Por último, o julgamento deve, em princípio, basear-se nos únicos elementos de
prova recolhidos durante a audiência.
Na sequência da fase de inquérito, o ministério público pede a determinação no sentido de precisar se as
condições de exercício da acção penal não forem preenchidas (denúncia infundada, impossibilidade de
identificar o autor da infracção, etc.). Se o juiz das investigações preliminares considera que o pedido de
classificação formulado pelo ministério público não é justificado, pode determinar que o inquérito
prossiga fixando um prazo para esse efeito ou impondo ao ministério público a formulação de uma
acusação no prazo de dez dias.
Se o ministério público considera que é conveniente prosseguir o procedimento criminal, entrega ao juiz
da audiência preliminar (giudice dell' udienza preliminare) um pedido de envio para julgamento. Tem
então lugar o debate contraditório entre o ministério público e a defesa em presença do juiz da audiência
preliminar, que decide o lugar ou a abertura do processo. O juiz da audiência preliminar não pode ser a
mesma pessoa que o juiz das investigações preliminares. Com efeito, o juiz das investigações
preliminares, embora não participe directamente no inquérito preliminar, tem conhecimento de certos
elementos, por exemplo se autorizar escutas telefónicas ou autorizar uma colocação em detenção
provisória. É apenas quando o papel do juiz das investigações preliminares no inquérito preliminar se
limitou a actos sobre o procedimento stricto sensu ou sobre elementos “neutros” que este último pode
tutelar a audiência preliminar e desempenhar o papel do juiz da audiência preliminar.
O código de processo penal exclui que o juiz da audiência preliminar e o juiz das investigações
preliminares possam fazer parte do órgão jurisdicional de julgamento. É apenas no caso, previamente

23
Não se ignora a resposta a resposta determinada que, num preciso contexto
histórico foi dada a tal questão e, já em 1999, referia Noronha do
Nascimento “O que os juízes querem é bem pouco. Querem o controlo
jurisdiscional dos arquivamentos nos inquéritos criminais e das
prorrogações do prazo de investigação quando esses inquéritos se
prolongam muito para além dos limites legais, querem uma diminuição no
tempo do segredo de justiça e querem - quando os prazos do inquérito
estão largamente excedidos - um maior acesso dos advogados ao inquérito.
A investigação criminal não pode ser feita com juízes e advogados
permanentemente à sua margem; porque só com o cumprimento daqueles
pressupostos mínimos será possível evitar que as prescrições criminais
ocorram com frequência ou que a investigação venha a ser uma arma de
arremesso no jogo político-partidário.
O sistema português de investigação criminal não tem similitude com o dos
países que nos estão mais próximos. Em Espanha e França quem a faz são
juízes de instrução cujos actos são recorríveis; em Itália quem a faz é o
MºPº po mas com o controlo jurisdicional pelos juízes nos arquivamentos
dos inquéritos.

evocado, onde o papel do juiz das investigações preliminares no inquérito preliminar foi limitado que
uma excepção à esta regra é possível e que o juiz das investigações preliminares pode tomar parte ao
julgamento.
Como o julgamento deve basear-se nos elementos de prova recolhidos durante a audiência, aquando do
envio em julgamento, dois processos são formados: o processo para os debates, comunicado ao órgão
jurisdicional de julgamento, e o processo do ministério público, transmitido às partes, mas cujo órgão
jurisdicional de julgamento não tem conhecimento. Este dispositivo impede os órgãos jurisdicionais de
julgamento encontrar-se numa situação “de prejuízo”. Os processos verbais dos actos do inquérito
preliminar devem por conseguinte permanecer no processo do ministério público.

24
Baltazar Garzon quem é senão um juiz de instrução da Audiência Nacional
de Espanha ? E não consta que nesses países a eficácia da investigação
tenha sido atingida ou apoucada ao contrário daquilo que alguns
pretendem sugerir”18
.
Estamos em crer que a resposta á questão equacionada emerge, neste
momento, de pressupostos incontornáveis vigentes no nosso processo penal
como é o facto de o mesmo se estruturar segundo o princípio do acusatório,
detendo o Ministério Público o monopólio do exercício da acção penal. A
possibilidade, concebível em abstracto, de uma comprovação judicial e
oficiosa da decisão de arquivamento é o desenvolvimento de um corolário
que não foi pretendido pelo legislador ao desenhar o modelo de processo
penal que nos rege. Aliás, tal poderia implicar a sujeição a julgamento o
arguido de uma pronúncia em relação á qual ninguém está em condições de
exercer a acção penal: o Ministério Público porquanto entendeu que não
devia acusar e o assistente, existindo, porquanto entendeu pela mesma
forma.

O caminho a percorrer tem de ser outro, alargando a possibilidade de


intervenção dos particulares, aumentando o leque da possibilidade de
18
Investigação Criminal O Direito e o Avesso Boletim da Associação Sindical dos Juízes II Série º6
Novembro de 1999

25
intervenção como assistente. Ponto é que, como refere Damião da Cunha,
se aceite que a legitimidade para a constituição de assistente assente no
conjunto de entidades – pessoas colectivas ou singulares-que tenham
interesse na defesa e promoção de determinados bens e interesses
assumidos pela lei penal.
Efectivamente, se é certo que a regra geral é a de que o ofendido se pode
constituir assistente nos tipos legais de crime de natureza particular, e nos
de natureza semi-publica, igualmente é exacto que a alínea e do artigo 68
do Código de Processo Penal vem a enunciar um catalogo de crimes em
elação aos quais, e não obstante a sua natureza pública, qualquer pessoa se
pode constituir como assistente (crimes contra a paz; corrupção etc). Existe
aqui uma certa ideia de identidade substancial entre a legitimação dos
ofendidos e a da decorrente dos pressupostos de um «direito de acção
popular» - a necessidade de se poderem configurar, num e noutro caso,
como portadores do bem jurídico protegido pela norma penal. Mas, como
refere o mesmo Autor, importa realçar o facto de que o assistente goza de
uma certa autonomia em relação à actividade do MP. Ora, esta autonomia
implica uma diferenciação de interesses e sobretudo uma diferenciação de
corporização de interesses - pelo que, eventualmente, além das pessoas
(físicas ou colectivas) de carácter privado, dever, pelo menos, em tese,
poder ainda constituir-se como assistentes pessoas colectivas de direito
público, que gozem de autonomia, em razão de um especial substracto
territorial, institucional ou empresarial.

26
A admissibilidade- inscrita no próprio CPP- de admitir que qualquer
pessoa, ou associação, se possa constituir como assistente por crime de
peculato e de corrupção tem subjacente um propósito de garantir e
maximizar, neste âmbito de crimes, um possível controlo judicial sobre a
actuação do MP sem que tal desiderato possa constituir uma distorção dos
princípios.
Efectivamente, a potenciação da possibilidade de intervenção da figura do
assistente quando esteja em causa qualquer interesse colectivo é o caminho
a percorrer. Aliás, quando a actuação da pessoa singular, ou colectiva, seja
pautada única e exclusivamente pelo interesse público, e não por qualquer
interesse pessoal directa ou indirectamente atingido, não podem impender
sobre o assistente ónus financeiros de qualquer tipo e os encargos da
própria representação judiciária deverão ser assumidos pelo erário público.
Na verdade, se é certo que fazemos profissão de fé nas virtualidades do
principio do acusatório e no perfil autonómico do Ministério Público não é
menos exacto a consciência de que tais pressupostos constituem um entrave
a qualquer solução que passe por um controle jurisdicional oficioso do
despacho de arquivamento.19

19 De acordo com a recomendação de 2000 do Comité de Ministros do Conselho da Europa dirigido aos
Estados Membro relativo ao papel do Ministério Público no sistema de Justiça penal: As partes
interessadas no processo, logo que como tal reconhecidas ou identificáveis, em particular as vítimas,
devem poder impugnar as decisões do MP de não proceder criminalmente; uma tal impugnação pode
fazer-se no próprio processo depois de fiscalização hierárquica, quer através de controlo jurisdicional,
quer autorizando as partes a deduzir acusação particular. Em todos os sistemas jurídicos, em particular
aqueles em que o MP dispõe de poderes de oportunidade, a decisão de arquivamento em que uma
infracção foi claramente cometida – sendo que muitas decisões semelhantes são acompanhadas de
propostas de alternativa para o procedimento criminal (como, por exemplo, uma transacção, mediação,
uma advertência ou aviso, condições...) - representa um sério problema se for contestada pelas pessoas
envolvidas e/ou os seus fundamentos forem discutíveis.Além de recomendar - no ponto 13e - que as
instruções do governo para proceder ao arquivamento do processo devem ser proibidas, o Comité

27
Concluímos, assim, pela necessidade de atribuição de um estatuto alargado
de intervenção aos cidadão que a título individual, ou associados, se
proponham coadjuvar o Estado na prossecução da acção penal em qualquer
um a das suas modalidades. Como negar uma obrigação de participação
colectiva que impende sobre cada um de nós?

procurou ajudar a reforçar todo o sistema de controlos e equilíbrios concebido para assegurar que o
sistema penal não seja desviado dos seus objectivos, tudo sem prejuízo de outros direitos das partes,
segundo a legislação vigente.
O Comité deparou-se com dois tipos de dificuldades. No primeiro, embora a grande maioria das
infracções cause vítimas directas (ou grupos de vítimas) identificáveis, noutras - tais como, os crimes de
corrupção ou ofensa aos interesses financeiros do Estado ou de uma autoridade regional ou local - não
ocorrem. Criar um direito apenas aplicável às vítimas, seria aceitar a ausência de controlo democrático
sobre as actividades do MP num número de áreas particularmente sensíveis. Por outro lado, permitir
indiscriminadamente que qualquer pessoa que se considere vítima de crimes, impugne a decisão de não
proceder criminalmente, ocasionaria uma paragem da máquina do MP e aumentaria o número de
recursos interpostos como estratégia dilatória.
Assim, o Comité pretendeu reconhecer não apenas os direitos das vítimas, mas também os direitos das
"partes interessadas no processo logo que reconhecidas ou identificáveis" como, por exemplo, alguém
que tenha comunicado factos a uma autoridade judicial (sujeita a certas condições) ou associações com
legitimidade ou autorizadas em circunstâncias excepcionais a defender um interesse público.
A segunda dificuldade diz respeito aos mecanismos de controlo necessários, dado que não devem ter
efeitos negativos, tais como, paralisar o sistema ou introduzir um controlo judicial de todas as decisões
do MP. Por outro lado, o controlo ou reclamação hierárquicos não têm sido sempre adequados,
particularmente em casos de decisões tomadas por membros do MP sobre instruções dos seus superiores.
Com base na Recomendação Nº R (87) 18 respeitante à simplificação da justiça penal, o Comité
recomendou a introdução, quer de controlo jurisdicional - consciente de que este conceito pode variar de
país para país - , quer autorizando as partes, tal como é definido anteriormente, a exercerem a acção
penal. Tal autorização pode ser dada de um modo geral ou caso a caso.
Em alguns países, embora existam remédios tais como os descritos neste ponto da Recomendação, o seu
âmbito é limitado.

28

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