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Maceió, 2020
Sumário
APRESENTAÇÃO ......................................................................................................... 3
O PRINCÍPIO “IN DUBIO PRO SOCIETATE”, SUA EVENTUAL
INCONSTITUCIONALIDADE E OS RISCOS ATINENTES À SUA APLICAÇÃO ............ 5
APLICABILIDADE DO JUIZ DAS GARANTIAS SEGUNDO A REFORMA DO
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL ......................................................................................... 19
CRIMINOLOGIA QUEER: ANÁLISE DA CONVENIÊNCIA POLÍTICA DA
CRIMINALIZAÇÃO DE CONDUTAS HOMOFÓBICAS .................................................... 33
CÁRCERE E MULHER: O ABANDONO AFETIVO PAUTADO NUMA CULTURA
MACHISTA ............................................................................................................................. 47
CRIMINALIZAÇÃO DA “MARCHA DAS VADIAS” E DIREITO DE EXPOSIÇÃO
DOS SEIOS .............................................................................................................................. 57
ENTRE A INJÚRIA E O RACISMO: A PROBLEMÁTICA DA TIPIFICAÇÃO DE
COMPORTAMENTOS DISCRIMINATÓRIOS E PRECONCEITUOSOS .......................... 74
CRIMINALIZAÇÃO DO DESVIO SOCIAL E DIREITOS HUMANOS: UM OLHAR
ANTROPOLÓGICO ................................................................................................................ 87
O FEMINICÍDIO COMO MECANISMO DE ENFRENTAMENTO A SUA ALTA
INCIDÊNCIA NA AMÉRICA LATINA ................................................................................. 99
A APLICABILIDADE DA ADPF Nº 347/DF EM RELAÇÃO À
RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO DE ALAGOAS: UM ESTUDO DE CASO
QUANTO ÀS INDENIZAÇÕES PROVENIENTES DAS MORTES NOS CÁRCERES
ALAGOANOS ENTRE 2012 E 2015 .................................................................................... 115
3
APRESENTAÇÃO
Era o mês de agosto do ano de 2013. Eu recém regressara de meus estudos doutorais em
Porto Alegre e estava fervilhando de ideias e vontades quando decidir encampar um novo
projeto de grupo de estudos. Colocando em miúdos, eis como surgiu o Grupo de Pesquisa
Biopolítica e Processo Penal, que com a presente obra registra sua relativamente breve
existência nos anais da história dos saberes criminais de Alagoas.
A proposta inicial era humilde: um grupo de livre participação no qual fosse possível
discutir ideias de matriz foucaultiana e relacioná-las com questões afetas à persecução criminal
com o objetivo de escrever resumos, apresentar trabalhos e, quem sabe, escrever um ou outro
artigo que pudesse capitanear as pesquisas principais do grupo.
Entretanto, após certo período de acomodamento inicial - inevitável ao se tentar
atravessar as fronteiras rígidas da zona de conforto - o grupo “deu liga” e de lá para cá foram
vários resumos, apresentações de trabalho, artigos publicados em anais, revistas, iniciações
científicas e eventos. Após alguns eventos pequenos, normalmente nas semanas de pesquisa do
Unit/AL, onde o grupo se sedia, planejamos nosso primeiro grande evento, o “Encontro
Nordestino de Pesquisa em Ciências Criminais”.
Começamos mirando alto, já em nossa primeira edição tivemos o enorme privilégio de
contar com as participações de Luciano Oliveira, Marília Montenegro, Elaine Pimentel,
Augusto Jobim do Amaral, Hugo Leonardo, Fernanda Martins, entre outros e outras
pesquisadoras renomadas. O evento também proporcionou Grupos de Trabalho, tendo como
eixos temáticos a criminologia, o direito processual penal e o sistema punitivo. Foi justamente
desses grupos que surgiram os artigos ora compendiados nos anais da primeira edição do
evento. Tratam-se de artigos variados de mestres, mestrandos, graduados e graduandos, todos
ávidos a desbravar o território selvagem da pesquisa, mormente em uma área tão refratária a
estudos não puramente teóricos, como a jurídica.
Espero que esta obra possa coroar o esforço de todos os autores que contribuíram com
esta edição, o do Grupo de Pesquisa Biopolítica e Processo Penal em elaborar um evento com
tanto esforço e esmero e represente, temporariamente, o sucesso que o grupo obteve em apenas
6 anos de existência.
André Sampaio.
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GT 1
5
O presente artigo visa demonstrar a importância da discussão acerca do “in dubio pro
societate” e analisar sua condição ou não de princípio perante o ordenamento jurídico brasileiro.
Por meio de uma análise jurisprudencial, através da verificação da aquiescência dos ministros
do STF e pesquisas bibliográficas, será demonstrada a aplicação e utilização prática de tal
“princípio”, como também as controvérsias acerca de seu emprego.
Serão investigadas, especialmente, as alegações doutrinárias de que o princípio “in
dubio pro societate” é inconstitucional, dado que este vai de encontro a diversos institutos,
como, exempli gratia, a justa causa para ação e o princípio da presunção de inocência.
Como bem enuncia Ingo Sarlet, o princípio da dignidade da pessoa humana sempre
prepondera no momento da ponderação de princípios. Deste modo, o aplicador do direito, no
momento de colisão entre os princípios do “in dubio pro reu”, e do “in dubio pro societate”,
deve preferir aplicar o primeiro, em razão da sua previsão constitucional no art. 5º, inciso LVII
e da liberdade ser o bem jurídico mais protegido em um Estado Democrático de Direito.
A presente pesquisa irá aprofundar ainda a discussão sobre os efeitos processuais para
a interpelação de uma denúncia sem munição suficiente, que é a absolvição, como também dos
efeitos extraprocessuais, visto que a inobservância rigorosa da justa causa para que se dê início
à Ação Penal poderá trazer consequências mais profundas e duradouras que se dão exatamente
no plano extraprocessual, afetando toda a vida pessoal do acusado, pois é fato notório entender
que a sociedade faz pré-julgamentos a partir do momento em que o indivíduo é acusado pela
prática de algum crime, mesmo que posteriormente este seja absolvido.
1. INTRODUÇÃO
1
Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Pesquisadora em Direito Público.
Integrante do Núcleo de Estudos em Direito Internacional e Meio Ambiente (NEDIMA).
2
Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
6
O sistema processual penal tem como fundamento a busca pela correta aplicação da
pena, ele vincula o Estado fazendo com que o Poder de Punir – “Jus Puniendi”, seja limitado e
preserve a liberdade individual e coletiva da sociedade. Portanto, é correto afirmar que o
processo é um direito de defesa do cidadão frente ao Estado. Segundo Norberto Bobbio, não há
crime e não há pena sem o processo.
A partir dessas considerações, constata-se a importância da discussão acerca do “in
dubio pro societate” e sua condição ou não de princípio perante o ordenamento jurídico
brasileiro. Diante da persecução por eficácia penal, muitos doutrinadores têm defendido o
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referido “in dubio pro societate” como sendo um princípio que deve ser aplicado dentro do
Direito Processual Penal. Essa concepção determinaria que o processo penal devesse ser regido
com fundamento no interesse da sociedade.
3. PONDERAÇÃO DE PRINCÍPIOS
superior, o que culmina na sua aplicação ao caso concreto. Tendo em vista que, o princípio da
dignidade da pessoa humana, que traz, entre outras garantias, o direito à manutenção do status
libertates de todas as pessoas, sempre prepondera no momento da ponderação de princípios.
Por conseguinte, o aplicador do direito, no momento de colisão entre os princípios do
in dubio pro reu e do in dubio pro societate, deve preferir aplicar o primeiro, em razão da sua
previsão constitucional no art. 5º, inciso LVII e da liberdade ser o bem jurídico mais protegido
perante à esfera de um Estado Democrático de Direito. Sendo assim, como positivado no art.
395, inciso III do CPP, na existência de dúvida, esta causada pela falta de justa causa para a
ação, deve o juiz rejeitar a denúncia. Muito diferente do que esclarece o princípio do “in dubio
pro societate”, que fala justamente o contrário, ou seja, se houver dúvidas o certo é iniciar a
ação, através do recebimento da denúncia.
Além disso, tal princípio não encontra fundamento em nenhum texto do ordenamento
jurídico, sendo apenas uma criação doutrinária e que será utilizado para cercear a dúvida da
sociedade, a qual não supera em nada a liberdade, já que esta está diretamente relacionada com
a dignidade humana. Sendo assim, a aplicação do princípio do in dubio pro reu não é apenas
uma preferência, que fica conforme o aval do juiz, mas sim uma obrigação de sua parte.
Para além do princípio da presunção de inocência, o in dubio pro societate atinge ainda
um dos basilares do direito penal, já que este se afirma como ultima ratio (DIVAN, 2015), ou
seja, só atua em situações que não podem ser suprimidas por nenhum outro meio, tendo em
vista que o bem jurídico protegido fora colocado em risco. Destarte, como o próprio direito
penal determina que só poderá intervir no último caso, é de se entender que se não há indícios
de autoria e de materialidade, também inexiste a necessidade de intervenção estatal. Outrossim,
essa não intervenção exacerbada vincula-se com a ideia de um direito penal de postura
fragmentária, como bem leciona Assis Toledo:
Mesmo em relação aos bens jurídico-penalmente protegidos, restringe, o
Direito Penal, sua tutela a certas espécies ou formas de lesão, real ou potencial.
Viver é um risco permanente, seja na selva, entre insetos e animais agressivos,
seja na cidade, por entre veículos, máquinas, e toda sorte de inventos da
técnica, que nos ameaçam de todos os lados. Não é missão do Direito Penal
afastar, de modo completo, todos esses riscos – o que seria, de resto,
impossível – paralisando ou impedindo o desenvolvimento da vida moderna,
tal como o homem, bem ou mal, a concebeu e construiu (TOLEDO, 1994).
acaba por querer justificar atitude abusiva do poder imperativo estatal, retirando das pessoas a
conservação de seus atributos mínimos, como a liberdade.
A justa causa para ação é definida, por muitos doutrinadores (BONFIM, 2012) como
um quarto elemento das condições da ação, quando esta for penal. Portanto, ao lado do interesse
de agir, da legitimidade das partes e da possibilidade jurídica do pedido, tem-se a justa causa
para a ação. Esta expressa a existência de uma causa jurídica, que autoriza e legitima o
processamento de uma ação penal e da sua consequente ativação da máquina jurisdicional. Para
tanto, a presença dos indícios de autoria e materialidade se mostram imprescindíveis, porquanto
estes apresentam-se como um controle processual e como um fundamento que demonstra a
obediência às garantias individuais.
Por indício de materialidade entende-se que, no momento do ajuizamento da ação, o
autor tenha consigo provas acerca da ocorrência de um delito. Já indício de autoria faz menção
aos elementos informativos que apontem para uma pessoa suspeita pela prática da infração
narrada. É a partir disso que é demostrada que há uma necessidade real de que os fatos narrados,
na petição acusatória, sejam averiguados e possivelmente punidos.
Como abordado ao longo da pesquisa, o princípio em xeque vai de encontro com o
ordenamento jurídico. E, como é bem sabido, as normas legais em face do direito penal não são
meras elaborações legislativas, mas sim uma das formas de defesa contra o arbítrio estatal e
para a devida aplicação das garantias inerentes a todo ser humano. Portanto, não se pode omitir
todas as ressalvas feitas ao longo de todo o sistema jurídico para que o interesse da coletividade
seja suprido e um indivíduo seja punido através de provas frágeis, às vezes, até mesmo
inexistentes.
Dentre as incompatibilidades para com o ordenamento aponta-se a justa causa para a
ação. Essa afirmação é feita porquanto o in dubio pro societate será aplicado quando não houver
indícios de autoria e de materialidade do crime, isto é, inexistência de justa causa para a ação
penal. Tendo em vista que, se há dúvidas quanto à existência de culpa para com o suposto réu,
é de se entender que não existem elementos informativos necessários para que a máquina
jurisdicional seja acionada. Sendo assim, como bem enunciado no art. 395, III do CPP, esse é
um dos fatores que ensejam na rejeição da denúncia ou da queixa. Além do que determina o
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art. 648, I, do CPP, que apresenta o remédio para a ação que foi iniciada sem justa causa, que é
a concessão de um habeas corpus.
Nas ações penais públicas o Estado atua de duas maneiras, acusando e julgando. Sendo
assim, há um múnus público inerente às figuras do promotor e do juiz, não podendo estes agirem
de forma arbitrária, já que estão representando o interesse estatal e, em decorrência, o interesse
dos cidadãos.
5.2.ATUAÇÃO DO JUIZ
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Alguns dos que defendem o “in dubio pro societate”, sustentam suas ideias na
possibilidade de o acusado ser absolvido por falta de provas ao fim da ação penal. Este, contudo,
não é um argumento aceitável, posto que, como afirma Francesco Carnelutti em seu livro “As
Misérias do Processo Penal”, a imputabilidade, que desaparece quando o réu é absolvido por
não ter cometido o crime, permanece quando o mesmo ocorre por falta de provas. Ou seja, a
possibilidade de atribuir a autoria do crime ao réu, a suspeita, não é afastada, “o acusado
continua a ser acusado por toda a vida” (CARNELUTTI, 2013).
Os efeitos do oferecimento de uma denúncia penal não se limitam ao âmbito
endoprocessual, isto é, àquilo que está dentro do processo. As consequências mais profundas e
duradouras se dão exatamente no plano extraprocessual, afetando toda a vida pessoal do
acusado. Apesar da existência do princípio da presunção de inocência, o simples oferecimento
da denúncia gera penalizações ao acusado, marcando para sempre a sua vida, ainda que tenha
sido absolvido, pois a repercussão negativa no âmbito pessoal não pode ser extinta junto com a
ação penal.
Com isto não se quer negar a importância da possibilidade da absolvição por falta de
provas. O Direito é falível e por isso necessita de institutos que permitam a reparação dos erros
cometidos durante seus processos. Contudo, é imprescindível a observação rigorosa da justa
causa para que se dê início à Ação Penal, posto que os indícios de autoria e materialidade dizem
respeito ao interesse de agir no processo penal, configurando, assim, uma das condições gerais
da ação, como já foi tratado anteriormente.
Hodiernamente, percebe-se a forte influência de um Direito Penal do Inimigo
introduzido na ciência processual penal. Tal teoria enxerga a sociedade em um estado de guerra
e o suspeito é tratado como inimigo do Estado e, por isso, não é preciso que lhe sejam
respeitados todos os direitos fundamentais. O direito penal do inimigo caracteriza-se,
principalmente, pelas punições demasiado altas e a supressão ou relativização das garantias
processuais.
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Destarte, quando o “in dubio pro societate” prevalece sobre o princípio do “in dubio
pro reo”, o suspeito é visto como um inimigo a ser “combatido” e não como um cidadão
protegido pelas garantias constitucionais que regem a República Brasileira e, portanto, o direito
processual penal.
É preciso recordar que a função do Direito Processual Penal é de garantir o jus
puniendi, ou seja, o direito de punir – que pertence somente ao Estado. Sua função não se
resume simplesmente a condenar os suspeitos. “A tarefa do processo penal está no saber se o
acusado é inocente ou culpado (…), se aconteceu ou não um fato” (CARNELUTTI, 2013).
Assim, é incompatível com a ciência processual penal como um todo e com o ordenamento
jurídico brasileiro as ideias que defendem o interesse da sociedade em conhecer o culpado de
um crime, em detrimento do Princípio da Presunção de Inocência, pois não se observa a função
básica do processo penal.
O autor, acima citado, defende ainda que há previsão legal de alternativas para evitar
o oferecimento de denúncias sem que exista viabilidade para a condenação do suspeito ao final
da ação penal, ou seja, sem que haja embasamento suficiente ao menos para uma possibilidade
de condenação. A principal delas corresponde a uma das funções institucionais do Ministério
Público, prevista constitucionalmente no art. 129, VIII, in verbis: “requisitar diligências
investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas
manifestações processuais”.
Pode, o Ministério Público, ao invés de oferecer denúncia sem indícios suficientes de
autoria e materialidade, requisitar novas diligências, a serem realizadas pela autoridade policial,
de modo a afastar totalmente a suspeita ou dar-lhe embasamento suficiente para o início de uma
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ação penal. Há ainda a possibilidade de solicitar o arquivamento do inquérito, uma vez que não
foram produzidas provas suficientes para fundamentar uma ação penal e não seja viável a
requisição de novas diligências.
Caso aja de modo arbitrário, oferecendo a denúncia ainda que diante da ausência de
indícios de autoria e materialidade, não há previsão de punições para membros do Ministério
Público. Apenas em casos mais graves é possível punir membros do órgão mencionado por
meio da aposentadoria compulsória: assunto de diversos debates que analisam se seria ela de
fato uma punição ou uma “premiação”. A justificativa para tal omissão da lei é que a prova é
sempre um ônus e não uma obrigação, e que, portanto, é interesse de quem alega provar seus
argumentos, sem que nada lhe obrigue.
Não se pretende questionar a grande importância do Ministério Público e da
independência em sua atuação, seja diante da ação penal, seja diante do papel fiscalizatório que
também exercem seus membros. Ao contrário, salienta-se a imprescindibilidade deste órgão
para a manutenção e proteção do Estado Democrático de Direito, porquanto é seu dever,
previsto na Constituição Federal de 1988 em seu artigo 127, “a defesa da ordem jurídica, do
regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.”
A criação do Ministério Público está estreitamente ligada ao Estado Democrático de
Direito e foi fundamental para a transição de um modelo inquisitorial de ação penal – em que a
função de acusar e julgar é exercida pelo mesmo órgão – para um modelo acusatório, em que
há a divisão das funções acusatória e julgadora. De modo simples e claro, Carnelutti consegue
resumir esta ideia ao afirmar que o defensor e o acusador são parciais para que o juiz possa ser
imparcial: cada um constrói seu raciocínio para que deles possa-se tirar o juízo.
A Constituição de 1988 definiu o Ministério Público dentro do Título IV, que trata
“Da organização dos Poderes”, “Capítulo III – Das Funções Essenciais À Justiça”, no já citado
artigo 127, como “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado” e
incumbindo-lhe a função de defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses
sociais e individuais indisponíveis.
É dever próprio do Ministério Público defender o ordenamento jurídico brasileiro e,
portanto, os princípios que o regem. Trata-se de pensamento contraditório aquele que afirma
que devem os membros do Ministério Público oferecer denúncias sem que haja embasamento
jurídico suficiente para tal, ainda que em defesa de um suposto direito da sociedade de conhecer
o culpado de um delito, pois é sua função fiscalizar o cumprimento da lei e, deste modo, dos
princípios que regem o ordenamento jurídico do Brasil.
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Ao fim de “As Misérias do Processo Penal”, Carnelutti faz uma importante afirmação
que parece beirar a radicalidade, mas que se mostra essencial para compreender a magnitude
do debate ora apresentado: ele chega à conclusão de que todo processo que termina em
absolvição é, antes, um erro, posto que um inocente teve de ser acusado por algo que não fez.
Longe de ter a intenção de pôr fim ao Direito, o autor busca perceber que também este instituto
é passível de erro e pretende suscitar uma reflexão difícil, porém imprescindível para a
manutenção do Estado Democrático de Direito.
9. CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAI, Yasmin. Princípio do In Dubio “Pro Societate”: Formação da culpa no rito dos crimes
dolosos contra a vida – Júri. 2017. Disponível em:
https://yasminarai.jusbrasil.com.br/artigos/466104963/principio-do-in-dubio-pro-societate.
Acesso em: 10 de nov. de 2017.
ASSIS TOLEDO, Francisco de. Princípios básicos de Direito Penal. 5. ed. São Paulo:
Saraiva, 1994.
BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de processo penal. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
CARNELUTTI, Francesco. As Misérias do Processo Penal. São Paulo: Pillares LTDA. 2009.
DIVAN, Gabriel Antinolfi. Processo penal e política criminal: uma reconfiguração da justa
causa para a ação penal. Porto Alegre, RS: Elegantia Juris, 2015.
LOPES JR, Aury. Fundamentos do Processo Penal: Introdução Crítica. 2 ed. São Paulo:
Saraiva, 2016.
TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.
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1. INTRODUÇÃO
Tem-se atualmente como premissa base para aplicação de toda e qualquer legislação
sua conformidade com a Carta Constitucional, uma vez que esta estabelece limites para a
atuação do poder estatal e determina preceitos fundamentais que devem guiar o sistema jurídico
brasileiro.
No que tange ao Direito Processual Penal, destaca-se que deve ser inconcebível
quaisquer imposições de sanções penais fora dos marcos por ela estabelecidos, implícita ou
expressamente, a fim de resguardar as garantias convalidadas em suas normas. Nesse sentido,
o que legitima o poder punitivo estatal, bem como o Poder Judiciário como órgão independente
para exercê-lo, é seu comprometimento em transformar o processo penal em um instrumento
de validação dessas garantias, em respeito à Constituição e aos princípios nela alicerçados.
Dentre eles, estão os princípios considerados processuais, ou seja, aqueles relativos à
formação, desenvolvimento do processo e, consequentemente, à coleta de prova, à fase
investigativa, ao direito de defesa e à formação da convicção do julgador, o que engloba
aspectos tanto da fase pré-processual quanto da fase processual, após o início da ação penal. É
possível inferir, assim, que tais princípios não são limitados. O princípio maior da
jurisdicionalidade, por exemplo, refere-se não apenas à garantia da figura do juiz, mas também
à sua aptidão para julgar, à imparcialidade de seu julgamento e ao seu comprometimento com
a justiça, respeitando para além das regras impostas para a sua atuação, os valores
indispensáveis em cada fase do processo.
A falta de atenção a essas premissas básicas constitucionais, porém, vem sendo
questionada e criticada por alguns doutrinadores, que apontam uma ruptura do núcleo
sistemático acusatório para dar lugar a um sistema predominantemente inquisitório, gerado pela
atribuição de poderes investigativos ao juiz, o que o envolve de tal forma no processo que
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Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
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Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
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Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
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prejudica a neutralidade de sua decisão final. Essa é a premissa que dá base ao projeto de lei
Nº156/2009, que tem como uma de suas principais propostas a separação de funções do juiz, a
fim de evitar seu envolvimento na fase investigativa, pouco antes de julgar o processo.
processual, uma vez que a primeira ainda encontra traços de um sistema autoritário que outrora
reinou no país. Nesse contexto, na tentativa de solucionar tal conflito processual, surge o
conceito de juiz das garantias no processo penal brasileiro.
O juiz das garantias seria aquele responsável pelos desempenhos cabíveis durante a
fase pré-processual, investigativa do processo, tendo sua competência encerrada com o
oferecimento da denúncia e o início da ação penal. Assim, este ficaria impedido de atuar no
processo, limitado a lidar apenas com questões preliminares, como recebimento do auto de
prisão em flagrante, decisões relativas à necessidade de prisão preventiva, entre outras funções
da fase investigativa, de modo que os papeis desempenhados por ele não fossem prejudiciais
ao julgamento final de um outro juiz, denominado juiz do processo.
Defende-se que a atribuição de poderes investigatórios ao juiz o torna participante do
processo, não mais um espectador, o que seria uma característica do sistema inquisitório. Isso
é o que acreditam os redatores e seguidores do projeto de lei Nº 156/2009, que propõe a
aplicação desse juiz das garantias no processo brasileiro. Segundo Aury Lopes Jr. (2016), a
premissa de que nosso sistema é essencialmente acusatório perde o sentido quando se atribui
poderes instrutórios - atos da prova - ou investigatórios - atos de investigação - ao juiz, porque
essa gestão é contrária ao núcleo desse sistema. Assim, tem-se fim princípios supremos do
processo, como a imparcialidade, a estrutura dialética do processo penal, o contraditório e a
igualdade de condições.
Ao mesmo tempo, não se pode pensar em sistema acusatório dissociado do princípio
da imparcialidade e do contraditório. Logo, tais modelos apenas existirão quando, além da
separação inicial das funções de acusar e julgar, houver um afastamento do juiz da atividade
investigatória/instrutória. Não se pode separar em conceitos dissociados a complexidade que
existe no processo, ignorando o fato de que a posição do juiz é decisiva para o devido processo
legal, sendo o ativismo judicial completamente oposta à inércia característica de um terceiro
julgador imparcial.
Desse modo, o juiz não pode ser um sujeito meramente representativo, que apoia o
interesse da maioria. Ele tem uma atuação constitucional e, ainda que deva agir com sua livre
convicção para proferir decisões, sua legitimidade se baseia na democracia e na garantia de
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direitos fundamentais. Por isso, sua liberdade e arbitrariedade devem se limitar às provas
produzidas e fundamentadas no processo.
Tal entendimento, ainda que pareça inovador para alguns, não é pioneiro de
doutrinadores brasileiros. O Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) já consagrou a
aplicação desse conceito em alguns países da Europa, como na Itália e em Portugal,
determinando que se o juiz faz uso de seus poderes investigatórios na fase pré-processual, não
poderá julgar o processo na fase processual, estando prevento para, então, preservar a
imparcialidade subjetiva do juiz do processo, referente à sua convicção pessoal; e objetiva,
referente a uma situação que dissipe qualquer dúvida razoável.
Logo, seguindo essas instruções, alguns países passam a adotar a separação de funções
do juiz, adotando a ideia que o contato direto com os fatos e os dados podem gerar “pré-juízos”
que poderiam prejudicar alguma das partes no momento da sentença.
4. A PROBLEMÁTICA DA (IM)PARCIALIDADE
A Constituição Federal brasileira em seu art. 22, inciso I, que trata sobre as matérias
que são de competência privativa da União, determina que é de sua competência exclusiva
legislar sobre matéria de direito processual, a qual inclui processo penal (âmbito do projeto de
lei em questão) e civil, como também das matérias que envolvem direito civil, comercial, penal,
eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho.
Seguindo tal determinação, o projeto de lei que institui o Novo Código de Processo
Penal teve início no Senado Federal, sob a iniciativa do Senador José Sarney, senador do Estado
do Amapá à época. Posteriormente, passou pela fase de discussão e foi aprovado pelo Plenário
da Casa, tendo sido remetido à Câmara dos Deputados para ser discutido e votado. Entretanto,
esta é a situação atual em que se encontra o projeto desde o dia 23/03/2011. Ou seja, há quase
sete anos atrás.¹
Tão longo decurso de tempo pode ser encarado sob duas perspectivas: evita-se a
discussão sobre o assunto, como diversos outros projetos de lei de grande relevância que se
encontram parados no processo legislativo, porque tratam de temas complexos que envolvem
não só um ponto, mas várias modificações que trazem diversas consequências práticas no
ordenamento brasileiro; ou porque reflete certa apreensão de nossos representantes quanto a
saber se tais reformas de fato podem ter efetividade prática diante da realidade jurídica atual,
não sendo apenas mais uma letra morta em nosso código. Em ambas as perspectivas, a solução,
felizmente ou não, seria continuar com a discussão do projeto de lei e ouvir os argumentos
contra e a favor, a fim de que sejam implementadas modificações que estejam de acordo com
o sistema acusatório, porém, que também sejam reais e que tenham capacidade de aperfeiçoar
o sistema processual penal brasileiro.
de 1941 foi instituído. Diz-se que o atual Código foi superado, sendo necessária a modificação
do sistema processual penal para o acusatório, o qual está em conformidade com os preceitos e
direitos fundamentais encartados na Lei Maior.
Para se ter ideia, na Exposição de Motivos do Código vigente, o texto expõe que as
leis processuais penais asseguram aos réus uma série de garantias e “favores”, e por isso a
repressão se torna, necessariamente, defeituosa e retardatária, o que estimula a expansão da
criminalidade, ou seja, coloca-se as garantias dos sujeitos envolvidos no processo como favores,
o que é notadamente contrário ao que a própria Constituição Federal traz em seu núcleo
formador com os direitos fundamentais, os quais devem ser resguardados e que são
desdobramentos do princípio da dignidade humana.
Mesmo devendo ser feita uma leitura do Código de 1941 à luz da Constituição de 1988,
o que aparenta é que, ainda assim, aquele se mostra insuficiente e que deve ser implementado
outro texto com modificações de fato positivadas com vistas a compatibilizar tais dispositivos
com a Carta Magna.
Nesse mesmo sentido, ao defender o juiz das garantias, a Exposição faz referência ao
art. 4º da redação final do anteprojeto de Lei que delimita desde logo: “O processo penal terá
estrutura acusatória, nos limites definidos neste Código, vedada a iniciativa do juiz na fase de
investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”. Nessa perspectiva,
o juiz estará menos apto a se distanciar do seu dever de imparcialidade, sendo vedada sua
participação como membro do Ministério Público, já que estarão melhor divididas as funções
de julgar, acusar e defender.
O mesmo dispositivo também define as funções do juiz das garantias, quais sejam: a
otimização da atuação jurisdicional criminal, visto que o mesmo seria especializado no
procedimento típico de operação da fase pré-processual, além de manter o distanciamento do
processo, pois acredita-se que haveria maior imparcialidade do juiz do processo, já que este não
entraria em contato com elementos de convicção produzidos e dirigidos ao órgão da acusação.
Os artigos que tratam acerca da consolidação do juiz das garantias, na redação final do
referido projeto de lei, encontram-se no Livro I que trata sobre a persecução penal, Título II
(Da Investigação Criminal) e Capítulo II (Juiz das Garantias), indo do art.14 ao art.17. Estes
dispositivos delimitam a competência de tal juiz no âmbito da investigação criminal sendo, no
geral, responsável por todas as infrações penais, salvo as de menor potencial ofensivo, e tem
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cessada a sua competência com a propositura da ação penal. A partir da propositura da ação, a
competência para o caso passa a ser de outro juiz, o juiz do processo.
Vale ressaltar que tais artigos contidos na redação final do projeto de lei não são
amplamente aceitos. A Comissão de Acompanhamento Legislativo do Conselho Nacional de
Procuradores-Gerais de Justiça – CNPG, por exemplo, elaborou um conjunto de propostas de
emendas pontuais ao referido projeto.³ Quanto aos artigos que tratam diretamente sobre o tema
(arts.14 ao 17) foram fixadas algumas modificações e desde a apresentação, já há o
direcionamento contra o juiz das garantias ao apontar que este aparece no projeto de forma
deturpada.
Propõe-se que no art.14 do texto da redação final do projeto de lei sejam suprimidos
os seus incisos IX, X e XVI. Além de que se altere a redação do parágrafo único do mesmo
artigo que trata do prazo de quinze dias para a conclusão do inquérito policial, o que se mostra
inadequado principalmente nos crimes complexos e de organização criminosa. Tais
modificações são justificáveis pelo fato destes incisos suprimidos extrapolarem a competência
do modelo de juiz das garantias que é trazido pelo próprio projeto de lei, além de invadirem a
competência atribuída ao Ministério Público pela Constituição. A partir de sua leitura, fica claro
para a Comissão que se confunde a figura do juiz das garantias com o juiz da instrução,
interferindo no sistema acusatório e relativizando-se o papel de garantidor dos direitos
fundamentais do sujeito passivo.
Outra proposta de emenda ao projeto é que os arts. 15 e 16 da redação final também
sejam suprimidos, visto que tais artigos criam uma causa de impedimento ao juiz das garantias,
prevendo que a competência deste cessará com a propositura da ação penal. O art.748 do mesmo
diploma legal, no entanto, traz uma ressalva a tal regra, ao prescrever que este impedimento
não incidirá nas comarcas e seções judiciárias onde houver apenas um juiz, fato comum na
realidade jurídica brasileira, principalmente em cidades menores. Porém, o que deve ser
analisado é que, se o juiz das garantias preza pela imparcialidade, não há sentido em relativizar
esse impedimento em tais casos. A justificativa trazida coloca como equivocada a ideia de que
há a perda da imparcialidade, visto que o juiz da investigação se contamina com seu conteúdo
e que estará afetado em seu julgamento.
O que se extrai é o fato de que muitos magistrados designados para determinada área
jurídica poderão começar a jurisdicionar na área penal, enfraquecendo, deste modo, as
especializações firmadas nas varas criminais. É também possível acrescentar como ponto
negativo a circunstância de que aqueles juízes nomeados para atuarem como juízes das
garantias não manterão contato com a principal função do Estado-juiz, que é de julgar o
processo e proferir a sentença.
No que diz respeito à lesão do princípio da duração razoável do processo com a adesão
da figura do juiz das garantias, é possível afirmar que a referida ofensa é
contemporânea anteriormente à vigência do instituto, sendo este um argumento
adverso descartável. Ademais, com a implantação do instituto, o juiz das garantias será
nomeado apenas para a fase de investigação e o juiz do processo será designado apenas para
exercer jurisdição, portanto, cada um terá seu papel reduzido, proporcionando maior celeridade
processual. (CABRAL, FONTENELLE, 2016)
8. CONCLUSÃO
às decisões proferidas pelos juízes do processo, tendo em vista que estes se encontram muito
envolvidos nas atividades investigativas atualmente. Portanto, se faz imprescindível notar se
questões referentes à celeridade processual, investimentos orçamentários e deslocamentos de
magistrados ou processos entre uma comarca e outra não são apenas escusas para evitar a
aplicação da figura do juiz das garantias.
31
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOLLMANN, Vilian. Críticas Lógico-Jurídicas Contra o Juiz das garantias. nov. 2011.
Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2011-nov-10/criticas-logico-juridicas-
instituicao-juiz-garantias-sao-necessarias>. Acesso em: 18/12/2017
CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 23. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2016.
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 13. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2016.
MARCON, Adelino. O Princípio do Juiz Natural no Processo Penal. Curitiba, Juruá, 2004. p.
47. In: LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 13. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2016.
NOGUEIRA, Carlos Frederico Coelho. Juiz das Garantias do Novo CPP é Arbitrário. jun.
2011. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2011-jun-06/sistema-juiz-garantias-cpp-
arbitrario-inviavel>. Acesso em: 18/12/2017
NOTAS
[2] Texto na íntegra disponível no documento do texto inicial do projeto de lei. Disponível
em: <http://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=2966191&disposition=inline.>.
Acesso em: 20/10/2017.
GT 2
33
1. INTRODUÇÃO
1
Graduanda do 7º período de Direito da FDA/UFAL - Universidade Federal de Alagoas. E-mail:
larissapugliese@hotmail.com.
34
heterossexual, como uma forma natural de sexualidade, uma linha de conduta. Para este autor,
o heterossexismo é a discriminação e a opressão baseadas em uma distinção feita a propósito
de orientação sexual, promovendo de forma incessante a superioridade da heterossexualidade.
Já para Miskolci (2009), a heterormatividade é um conjunto de prescrições que fundamentam
processos sociais de regulação e controle.
Caroline Guimarães (2012), citando Daniel Borillo, expõe que o sexismo exprime a
dominação simbólica que o homem exerce sobre a mulher e sobre os homossexuais, que
reproduzem características tipicamente do sexo feminino.
Diante disso, surge a teoria queer, nos Estados Unidos, no final dos anos 80, com a
finalidade de desconstruir tais ideais e zonas de conforto culturais de heterossexismo e
heteronormatividade, “como um dispositivo de regulação e de controle social” (CARVALHO,
2017, p. 235). Inicialmente, a teoria queer entrelaçou alguns estranhamentos com a sociologia,
pois, a despeito das boas intenções desta, os estudos sobre as minorias terminavam por manter
e naturalizar a norma heterossexual (MISKOLCI , 2009).
Neste ínterim, a criminologia queer, a despeito do incipiente diálogo entre teoria
queer, direito penal e criminologia, surge como uma criminologia que visa possibilitar o diálogo
e a sintonia entre teoria queer e criminologia crítica, em sintonia com os movimentos sociais
em defesa dos direitos humanos e das camadas mais vulneráveis.
Insta salientar a importância dos movimentos sociais na busca pelo reconhecimento
dos direitos, bem como do respeito aos indivíduos que visam assegurar. Inclusive, ajudam a dar
visibilidade às demandas e necessidades dos grupos que, em regra, sofrem com discriminação
e preconceito.
Segundo Salo de Carvalho, precursor da criminologia queer no Brasil, esta caracteriza-
se por possuir dois campos de atuação, um teórico, que tem por objeto os impactos trazidos
pelos estudos queer na ciência jurídica em geral e, especificamente, no direito penal e na
criminologia, constituindo uma tendência acadêmica na construção de um sistema crítico; e um
campo político, sintonizado com as demandas de garantias de direitos e reconhecimento da
igualdade sustentadas pelo movimento social LGBT.
Ademais, o movimento queer converge com os movimentos feministas, à medida que,
ambos visam desconstruir o falocentrismo (ideal de macho) que provoca a opressão da mulher
(misoginia) e a anulação da diversidade sexual (homofobia) (CARVALHO, 2017, p. 208). Essa
relação se dá, segundo Welzer-Lang (2001, p. 465), pois, no masculino, as relações entre
homens são estruturadas na imagem hierarquizada das relações homens/mulheres, e aqueles
36
que não podem provar que têm a virilidade, são ameaçados de ser desclassificados e
considerados como os dominados, ou seja, como as mulheres.
Ante o exposto, podemos perceber que a teoria queer busca compreender a forma pela
qual as masculinidades são hierarquizadas e, com isso, como se desenvolve a misoginia e a
homofobia. Ademais, busca entender como esta (homofobia) busca, através de ameaças ou
violências, que os homens se calquem sobre os esquemas ditos normais de virilidade
(WELZER-LANG, 2001, p. 465). Assim, a crítica da normalização, proposta pela teoria queer,
“aposta na multiplicação das diferenças que podem subverter os discursos totalizantes,
hegemônicos ou autoritários”(MISKOLCI , 2009), bem como contesta os processos sociais que
se utilizam das diferenças como marcadores de hierarquia e opressão .
Vale ressaltar que a homossexualidade era vista, durantes os tempos passados, como
uma série de atos abomináveis, sendo, inclusive, uma conduta criminalizada até 1830, quando
o Código Penal do Império revogou o regime inquisitório das ordenações filipinas
(CARVALHO, 2017, p. 236). A despeito disso, o Código Penal Militar ainda estabelece, em
seu art. 235, que quem “Praticar, ou permitir o militar que com ele se pratique ato libidinoso,
homossexual ou não, em lugar sujeito à administração militar” está sujeito a pena de detenção,
de seis meses a um ano (BRASIL, Lei 1.001, 1969).
Ademais, durante muito tempo, a “homossexualidade era amplamente entendida como
doença mental, (...), tendo a patologização da sexualidade sido reforçada pela inclusão da
homossexualidade como uma desordem mental na America Psychiatric Association’s
Diagnostic and Statical Manual of Mental Disorders (DSM) desde o ano de 1952 até o ano de
1973” (OLIVEIRA, 2015). E, segundo Salo de Carvalho (2017, 236), apenas em 1990 a
Organização Mundial da Saúde excluiu a homossexualidade do catálogo de doenças mentais.
Ante tudo o que foi exposto, percebe-se que a sociedade como um todo, e sobretudo a
sociedade brasileira, que possui índices alarmantes de violência perpetrada contra a
comunidade LGBT, é ancorada no estigma e discriminação contra a homossexualidade (macro).
Segundo Goffman (1963, p. 6), o estigma surge quando deixamos de considerar determinada
pessoa como
criatura comum e total, reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída. Tal
característica é um estigma, especialmente quando o seu efeito de descrédito
é muito grande - algumas vezes ele também é considerado um defeito, uma
fraqueza, uma desvantagem - e constitui uma discrepância específica entre a
identidade social virtual e a identidade social real.
extensão penal, costuma ser o primeiro ao qual se recorre e se amplia” (GARCIA apud
MASIERO, 2013, p. 175).
Nas palavras de Silva Sanchéz (2001, p. 17), tal expansionismo decorre também da
institucionalização da insegurança e expõe que não vivemos nos melhores tempos para a
liberdade, pois, diante da menor ocasião, se eleva um clamor geral para que as coisas se
remediem com novas leis penais ou agravando as já existentes.
Por outro lado, conforme exposto por Freire e Cardinalli (2012), “se por um lado a
visibilidade adquirida após a constituição do movimento homossexual como sujeito político foi
fundamental na conquista de direitos, por outro ela foi responsável pelo aumento das
manifestações homofóbicas e recrudescimento do discurso discriminatório”.
Ademais, após a Constituição de 1988, cresceram os “clamores pela efetivação da
igualdade formal e material de tais grupos (vulneráveis) através, principalmente, das políticas
afirmativas” (COSTA, BARRETO e TEIXEIRA, 2015, p. 9).
Tal qual ocorreu com a Lei do Racismo, Estatuto da Criança e do Adolescente e
Estatuto do Idoso, houve um acréscimo de legislações penais que criminalizaram atos
discriminatórios, “coadunando-se ao preceito constitucional de vedação de quaisquer condutas
que impliquem discriminação atentatória da dignidade da pessoa humana”. Porém, ainda restam
sem nenhuma criminalização as condutas discriminatórias em decorrência de orientação sexual
e identidade de gênero, o que nos leva a questionar o porquê de tantos obstáculos (LANDO,
2012, p. 19).
Para Diego Lemos (2015, 89), em uma visão contrária à criminalização da LGBTfobia,
expõe que tal ideia “põe em contato, paradoxalmente e a um só tempo, dois violadores dos
direitos humanos: o sistema penal que criminaliza e a hetero e cisnormatividade que produzem
hostilidade contra pessoas LGBT e todo tipo de violência contra essas pessoas”. Ademais,
ressalta que há a necessidade de deixar de entender o sistema penal como aliado para atender
os objetivos políticos do movimento LGBT.
Com efeito, visando atender o clamor social, esteve em tramitação no Senado Federal
o Projeto de Lei Complementar 122/2006 com o objetivo de alterar a Lei nº 7.716/89, que define
originalmente os crimes raciais, para adicionar a comunidade LGBT como sujeitos passivos
nos crimes previstos nessa lei, bem como acrescer alguns dos tipos penais com novos núcleos.
Contudo, tal PL foi arquivado, sem decisão de mérito, por não ter sido aprovado em duas
legislaturas seguidas, ou seja, oito anos.
Tal projeto de lei visava alterar tipos previstos no Código Penal, relativamente aos
crimes de homicídio (art. 121), lesão corporal (art. 129), maus tratos (art. 136), injúria (art. 140)
41
e incitação ao crime (art. 286), agravando suas penas quando os crimes decorrem de
discriminação de orientação sexual e identidade de gênero. Além de tais mudanças, o PL
também inseriria novos verbos nucleares aos tipos previstos nos artigos 5º, 6º e 7º da “Lei do
Racismo” (MASIERO, 2013, p. 178), bem como estabeleceria a destinação dos recursos
provenientes das multas previstas na lei a campanhas educativas contra a discriminação (art. 16
do PL 122/06).
Ademais, em 2014, a deputada federal Maria do Rosário protocolou o projeto de lei
7.582/2014, que visa definir os crimes de ódio e intolerância contra LGBTs e outros grupos
vulneráveis, bem como criar mecanismos para coibi-los. Atualmente, se encontra pronto para
pauta na Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM).
Inclusive, tal projeto de lei apresenta definições importantes em relação à orientação
sexual, identidade de gênero e expressão de gênero (art. 1º, parágrafo único, V, VI e VII do PL
7.582/2014), do seguinte modo:
V. Orientação Sexual: a atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos
de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero; VI.
Identidade de Gênero: a percepção de si próprio que cada pessoa tem em
relação ao seu gênero, que pode, ou não, corresponder ao sexo atribuído no
nascimento, incluindo-se aí o sentimento pessoal do corpo; VII. Expressão de
Gênero: o modo de se vestir, falar e os maneirismos de cada pessoa que podem
ou não corresponder aos estereótipos sociais relacionados ao sexo atribuído
no nascimento;
Para mais, o Anteprojeto de Novo Código Penal (PLS 236/2012) trata do racismo e
outros crimes resultantes do preconceito e discriminação no Capítulo V do Título XVI, com
titulação “Crimes Contra os Direitos Humanos”, trazendo um aumento do rol de tipos penais
(LILDO, 2012, p. 49) bastante semelhante ao já previsto na Lei do Racismo (Lei 7.716/89) e
ao que se pretendia com o projeto de lei 122/2006.
O Projeto de Lei do Senado também traz a qualificadora para o crime de homicídio e
a majorante de pena nos crimes de lesão corporal (LANDO, 2012, p. 51), quando os atos de
violência forem praticados em decorrência de discriminação de orientação sexual e identidade
de gênero. Ademais, traz a circunstância agravante genérica, quando não constituir, qualificar
ou agravar a pena, quando o agente cometer o crime em razão de preconceito de raça, cor, etnia,
orientação sexual, identidade de gênero, deficiência, condição de vulnerabilidade social,
religião, procedência regional ou nacional (LANDO, 2012, p. 52).
Pois bem! A despeito do clamor da sociedade, há o “consenso nas ciências criminais
de que o sistema penal é um instrumento ineficaz aos fins que se propõe, isto é, em última
análise, de redução da criminalidade” (MASIERO, 2013, p. 07). Diante disso, nos propusemos
42
Nesta linha, concordamos com a ideia explanada por Campos e Carvalho (apud
CARVALHO, 2017, p. 243), quando aduzem que a especificação como violência homofóbica
para as “hipóteses de condutas já criminalizadas não produz o aumento da repressão penal,
sendo compatíveis, inclusive, com as pautas político-criminais minimalistas”.
Outrossim, conforme explicitado por Costa, Barreto e Teixeira (2015, p. 13), “seria
demasiado idealista exigir que o movimento LGBT negasse a via criminalizadora, quando
movimentos sociais análogos já trilharam o mesmo caminho”.
Assim, diante da cultura punitivista em que vivemos, onde a sociedade clama pela
apropriação pelo direito penal das mazelas que atingem todo o corpo social, é “indiscutível
perceber que a criminalização possui um importante efeito simbólico, dessa forma, a
ressignificação das normas se converteu em campo potencial para subversão” (CARVALHO,
2017, p. 251).
Não estamos blindados à percepção de que a criminalização não possui a capacidade
de reduzir as violências, porém, acreditamos, seguindo o pensamento de Baratta (000), que o
efeito simbólico propiciado pela criminalização da homofobia “representa um significado
político importante em uma determinada fase de lutas pela afirmação dos direitos humanos,
conduzidos por seus movimentos representativos”.
43
5. CONCLUSÃO
há muito que ser estudado e abordado relativamente ao direito penal simbólico e sua utilização
para atender às demandas político-sociais cada vez mais crescentes.
Após tal análise, chegamos à conclusão de que a solução para tal questão não deve ser
a criação de novos tipos penais, visto que o direito penal não tem o condão de reduzir
criminalidades, mas devem ser incluídas qualificadoras e agravantes nos crimes de homicídio,
lesão corporal, contra liberdade sexual, injúria e maus-tratos, bem como nominá-los como
crimes homofóbicos, viabilizando a sistematização e quantificação dos crimes perpetrados
contra a comunidade LGBT.
Tal proposta se mostra adequada às demandas dos movimentos sociais aos quais a
criminologia crítica se encontra atrelada, pois, ao escolher o bens jurídicos mais importantes de
determinada sociedade, é possível dar visibilidade às demandas daqueles grupos sociais mais
vulneráveis.
45
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COSTA, Daniela Carvalho Almeida da; BARRETO, Daniela Ramos Lima; TEIXEIRA, Livia
Biriba. Impressões do movimento LGBT em Aracaju sobre a criminalização da homofobia.
In: Diké - Mestrado em Direito, vol 4, no. 2. Aracaju: 2015.
FREIRE, Lucas; CARDINALI, Daniel. O ódio atrás das grades: da construção social da
discriminação por orientação sexual à criminalização da homofobia. In: Sexualidad, Salud y
Sociedad (versão On-line), no. 12, Rio de Janeiro, 2012.
LANDO, Ildo Luiz Junior. Homofobia no Direito Penal: Um breve estudo sobre a
criminalização da discriminação por orientação sexual e por identidade de gênero. Trabalho
de Conclusão de Curso, Porto Alegre: 2012.
MASIERO, Clara Moura. A tutela penal diante da homofobia e o PLC 122/2006: sobre a
legitimidade da demanda político-criminal do movimento LGBT. Dissertação de Mestrado em
Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: 2013.
1. INTRODUÇÃO
1
Amanda Assis Ferreira – Graduanda pelo Centro Universitário Tiradentes (UNIT/AL). E-mail:
amandaassisfz@hotmail.com.
2
Elizângela Conde Arnaiz – Graduanda pelo Centro Universitário Tirandentes (UNIT/AL). E-mail:
lilica_conde@hotmail.com.
48
social das mulheres, que é a relação existente entre cárcere e pós-cárcere. Não
se pode olvidar que a vivência dentro da prisão – inclusive experiências de
abandono afetivo, estigmatização e diversas expressões da violência – tem
repercussão direta na forma como mulheres condenadas vivenciarão o pós-
cárcere. (PIMENTEL, 2013, p.56).
É por esse motivo que até hoje o machismo está encrustado em todos os cantos de
todas as relações, inclusive no mundo do crime, e impede que as mulheres ocupem posições
elevadas e importantes, submetendo-as a atividades inferiores e mais fáceis de serem
detectadas. Logo, superlotam-se cadeias, como demonstrado pelos dados do INFOPEN,
sujeitando estas mulheres a vários tipos de abandono, incluindo o afetivo.
Homens e mulheres, desde períodos pré-históricos, têm papéis definidos para conviver
em sociedade. Essa polarização artificial, apesar de muito ter sido feito, ainda reflete na
organização de famílias, instituições religiosas e na forma geral como grupos sociais se
comportam e se relacionam.
Porém, quando se trata da instituição carcerária, o cenário repentinamente muda.
Mulheres e homens são tratados de maneira muito semelhante, ignorando suas particularidades,
como o fato de que mulheres são, muitas vezes, mães solteiras e mantedoras da casa. Quando
são detidas, suas crianças se espalham por entre familiares, vizinhos e casas de apoio, piorando
ainda mais a perspectiva de vida para os filhos. Além disso, mulheres menstruam e
consequentemente podem ficar grávidas, sofrem de tensões pré-menstruais e em meio a todos
os abalos físicos, precisam lidar com os abalos psicológicos frequentemente existentes.
É certo que homens e mulheres devem ser tratados de maneira igualitária quando se
encontram vivendo em sociedade, como afirma o feminismo. Porém, no âmbito prisional,
analisado no presente artigo, não é justo tratar igualmente pessoas com características diferentes
inerentes ao sexo com o qual nasceram. Porém, o que seria justiça nesse caso?
Como bem explica Michael J. Sandel, em seu livro “Justiça”,
Para Aristóteles, justiça significa dar às pessoas o que elas merecem, dando a
cada um o que lhe é devido. Mas o que uma pessoa merece? Quais são as
justificativas relevantes para o mérito? Isso depende do que está sendo
distribuído. A justiça envolve dois fatores: “as coisas e pessoas a quem elas
são destinadas”. E geralmente dizemos que “pessoas iguais devem receber
coisas também iguais”. No entanto, surge aí uma questão difícil. Iguais em
que sentido? Isso depende do que está sendo distribuído – e das virtudes
relevantes em cada caso. (SANDEL, p. 234, 2009).
50
O que está sendo distribuído, nesse caso, são penas. Então, partindo do pressuposto
que ninguém é igual a ninguém e levando em conta idiossincrasias inerentes ao ser humano –
mesmo que de sexos iguais – as penas deveriam ser muito mais singulares e individualizadas,
não sendo justo punir uma mulher grávida como se pune um homem que não tem a mesma
característica de poder gerar uma criança.
Todavia, o machismo estrutural impede que as mulheres sejam vistas em suas
minúcias, e consequentemente tratadas duplamente como as “homo sacer contemporâneas”
(AGAMBEN, 2002). São marginalizadas por serem consideras criminosas e são criminosas por
terem sido, em grande parte, marginalizadas pela sociedade que reluta em aceitar e incluir
mulheres, mulheres negras e mulheres pobres.
Nesse ínterim, Angela Davis, no livro “Mulheres, cultura e política”, (1990, p. 42)
aduz que “essas manifestações específicas de violência contra a mulher se situam em um
espectro mais amplo de violência produzida socialmente, que inclui violações sistemáticas
orquestradas contra os direitos econômicos e políticos femininos”. É assim que as mulheres
dentro da cadeia são tratadas: com uma hostilidade não necessariamente violenta, mas furtiva
e disfarçada que permeia os aspectos mais sublimes do que seria uma vida minimamente
adequada dentro do cárcere.
É sob o fundamento dessa polarização de papéis pré-histórica entre homens e mulheres
que se busca entender o machismo estruturado e enraizado na sociedade, o qual afeta
negativamente todas as mulheres (e também todos os homens).
Papéis designados previamente por um conjunto histórico complexo, que determinam
o local da mulher como sendo a esposa passiva, dona de casa, que cuida das crianças e espera
o marido voltar do trabalho, acabam por influenciar todo um espectro social, que passa a achar
inaceitável a mulher como criminosa e, portanto, não merecedora de visitas familiares quando
estão encarceradas, por exemplo.
O cenário se inverte quando o criminoso é do sexo masculino. Mães, pais, irmãs,
namoradas, esposas e avós vão às cadeias, enfrentam filas descomunais para visitar seus
respectivos parentes, pois já era esperado e razoável que homens se envolvam com tráfico,
roubos e demais atividades “masculinas”. Sobre o assunto, Drauzio Varella (2017, p.41) reflete:
“vi casos de irmãos detidos por tráfico, em que a mãe viajava horas para visitar o filho preso
no interior do estado, mas não se dava o trabalho de pegar o metrô para ir ver a filha na
Penitenciária da Capital”.
Ainda nesse contexto, alude que:
51
Destarte, além de todas as mazelas, são obrigadas a lidar também com o constante
empenho do Estado em despersonalizá-las, ou seja, fazer com que esqueçam de sua própria
personalidade e individualidade, coisificando suas originalidades. Interferem
indiscriminadamente na “bolha” em que cada uma vive, o espaço pessoal tão necessário para
que se identifiquem como seres humanos. Essa “bolha” contém intrínseca um pouco do espaço
íntimo, social, pessoal, político e cultural de cada uma.
A importância dessa bolha na vida não apenas de uma mulher, mas de qualquer pessoa
independentemente do sexo, é imensurável. Quem você é, o que você fez, quem você conhece:
está tudo inserido ali, de forma com que se torna impiedoso tentar penetrar essa bolha com fins
tão vis, no caso em tela, a tentativa altamente biopolitica de tentar controlar essas mulheres.
Não obstante, todas essas tentativas de despersonalização são frequentemente vãs.
Mulheres e homens são seres subjetivos. É muito difícil retirar sua subjetividade e moldá-los
arbitrariamente, pois todos chegam impregnadas de suas vivências obtidas do lado de fora da
cadeia. A despersonalização pode funcionar como forma de docilizar seus corpos, mas não para
o intuito de ressocializá-las, que deveria ser o principal propósito da pena, juntamente com a
retribuição.
A cultura machista que está enraizada no Brasil também pode ser refletida no sistema
penitenciário do país. Um direito regulamentado há muito para os homens só passou a ser
reconhecido também para as mulheres 20 anos depois. Por que o homem teria direito ao sexo,
diferente sendo o tratamento conferido às presas do sexo feminino?
A minguada ala mais jovem se restringe a maridos e namorados registrados
no Programa de Visitas Íntimas, ao qual as presidiárias só conseguiram acesso
em 2002, quase vinte anos depois da implantação nos presídios masculinos.
Ainda assim graças às pressões de grupos defensores dos direitos da mulher.
São poucas as que desfrutam desse privilégio, menos de 10% da população da
casa. (VARELLA, 2017, p. 39).
5. CONCLUSÃO
Por fim – mas não com o objetivo de esgotar o tema – percebe-se a complexidade que
permeia todos os temas que envolvem sociedade, principalmente quando se tratam de questões
relacionadas a gênero e sexo. É impossível decidir o que é ser mulher. Porém, é altamente
54
recomendável observar características inerentes a essa condição, para que a passagem pela
cadeia não seja um tormento maior do que – propositalmente – já é.
Esse abandono emocional sofrido pelas mulheres não pode ser remediado por leis.
Seus pais, parceiros e famílias não se verão obrigados de uma hora para outra a visita-las, por
exemplo. Esse abandono é estrutural e compõe uma cultura patriarcal e machista instalada e
legitimada pela história de nossos antepassados e, portanto, muito difícil de ser interrompida.
Todavia, esforços nesse sentido estão sendo realizados, e mulheres começam a ocupar
locais jamais permitidos anteriormente, inclusive no mundo do crime, como apontam as
estatísticas. De fato, os últimos dados, de junho de 2014, revelam que apenas no período de
2000 a 2014 houve um crescimento de 567,4% da população prisional feminina, enquanto que
o crescimento dos homens foi de 220,20%. (INFOPEN, 2014).
Porém, é possível mudar a violência de gênero aos poucos, abrindo mais espaço para
o sexo feminino dentro da sociedade. Como as cadeias estão inseridas nessa mesma sociedade,
as mulheres também serão mais notadas e cuidadas, ainda que seja um espaço naturalmente
opressor para pessoas no geral. Como afirma KARAM,
o enfrentamento da violência de gênero, a superação dos resquícios
patriarcais, o fim desta ou de qualquer outra forma de discriminação, vale
sempre repetir, não se darão através da sempre enganosa, dolorosa e danosa
intervenção do sistema penal. É preciso buscar instrumentos mais eficazes e
menos nocivos do que o fácil, simplista e meramente simbólico apelo à
intervenção do sistema penal, que, além de não realizar suas funções explícitas
de proteção de bens jurídicos e evitação de condutas danosas, além de não
solucionar conflitos, ainda produz, paralelamente à injustiça decorrente da
seletividade inerente à sua operacionalidade, um grande volume de sofrimento
e de dor, estigmatizando, privando da liberdade e alimentando diversas formas
de violência. (KARAM, 2016).
Desse modo, por serem mulheres, estão sujeitas a um abandono que não estava incluso
quando a pena foi delimitada pelos juízes. Estão submetidas a uma vida que ficará marcada
para sempre em suas memórias, cheias de vazios emocionais e feridas psicológicas muito
difíceis de serem apaziguadas.
Laços afetivos que existiam antes na vida dessas mulheres muito dificilmente serão
recuperados, por falta de projetos sociais nesse sentido. Pelo contrário, o cenário político atual
conta apenas com leis cada vez mais opressoras para os encarcerados, fazendo com que a
esperança de recuperação de uma vida minimamente normal seja minguada. Finalizando esta
conclusão, Elaine Pimentel alude:
A ausência de políticas sociais voltadas para a recomposição dos laços
afetivos e de incentivo ao trabalho/emprego situa as mulheres apenadas em
uma condição de extrema fragilidade diante do devir. Assim, o sofrimento da
prisão não se limita ao período encarceramento, mas se estende ao longo da
55
REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Trad. Henrique Burigo,
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
DAVIS, Angela. Mulheres, cultura e política: 1ed. São Paulo – SP: Boitempo, 1990. 42 p.
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VARELLA, Drauzio. Prisioneiras. 1 ed. São Paulo, SP: Companhia Das Letras, 2017.
57
1. INTRODUÇÃO
Os movimentos sociais são ações coletivas de âmbito popular cujo objetivo é fortalecer
a democracia, possibilitando inclusão social e conquista de direitos visando o bem comum. A
“Marcha das Vadias” se enquadra nessa característica, que por meio do uso do corpo como
instrumento de luta político-democrático confronta o patriarcado, o controle do Estado e a
heteronormatividade.
Esse assunto tem relevância porque a pesquisa tem como foco estudar a posição
feminina diante do Estado de Direito. A mulher ao assumir o papel de sujeito político na
“Marcha das Vadias” e exibir os seios como forma simbólica de protestar contra as normas de
gênero imposta pelo sistema machista e conservador, causa uma fissura social, cujo impacto
desconstrói um personagem predeterminado – calma, do lar, dócil, paciente, submissa – e
assume uma postura crítica, ativa e libertária. A exposição dessa parte do corpo feminino
apresenta uma conotação sexual para a sociedade, como consequência esse comportamento é
censurado pelo poder coercitivo do Estado.
Diante do exposto, dividimos nosso artigo em cinco capítulos. No primeiro capítulo
fundamentamos o marco teórico a partir do livro “História da Sexualidade I – A Vontade de
Saber” de Michel Foucault que descreve a relação entre o sujeito e o Estado, tendo como objeto
de disputa o corpo e a sexualidade.
O segundo capítulo trata da liberdade de reunião prevista no art. 5°, XVI da
Constituição Federal, assegurando que todos podem reunir-se pacificamente em locais abertos
ao público, ressaltando o caráter de direito público subjetivo.
O terceiro capítulo trata da importância dos movimentos sociais, no qual os
protagonistas podem transformar a realidade sócio-histórica em que estão inseridos.
No quarto capítulo falamos sobre a criminalização da “Marcha das Vadias”, cuja luta
é sustentada pelo discurso da autonomia do corpo por meio da exibição dos seios na rua e as
consequências dessa prática.
1
Graduanda do Curso de Direito do Centro Universitário – CESMAC; membro do grupo de estudos Gênero e
Direito.
58
A seguir, o quinto capítulo diz respeito à metodologia que foi construída a partir de
um estudo de caso investigando abusos policiais, através de noticiários da imprensa brasileira
e uma sentença criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Por fim, trataremos da relevância do trabalho para o meio acadêmico.
Para Morais (2015) a manifestação da “Marcha das Vadias” tem como propósito
questionar a heteronormatividade que regula os corpos e limita suas formas de expressão. Entre
as diversas maneiras de utilizar o corpo como instrumento para escapar desse controle,
destacamos o ato de mostrar os seios nus, que está relacionado a uma das bandeiras mais caras
da manifestação: “Meu corpo, minhas regras”, ou seja, exibir os seios é uma tentativa de romper
com o moralismo que condena esta forma de expressão.
Essa demanda pode ser compreendida a partir dos mecanismos de poder que regulam
os corpos e a sexualidade, com fundamento no livro “História da Sexualidade I – A vontade de
saber” de Foucault (1999), apud Morais (2015), em que mostra como a sexualidade está ligada
a recentes dispositivos de poder que tiveram sua expansão a partir do século XVII, cuja origem
estava centrada na aliança da família, que tem como expressão máxima o casal heterossexual.
Essa articulação em nada se relaciona com a função reprodutiva. De fato, essa
articulação se vinculou a uma “intensificação do corpo, à sua valorização como objeto de saber
e como elementos nas relações de poder” (FOUCAULT, 1999, p. 102, apud MORAIS, 2015,
p. 108), passando de uma problemática da relação para uma problemática do corpo, da sensação
e do prazer.
Para Foucault, a sociedade ocidental tem permanecido atada à tarefa de dizer tudo
sobre seu sexo, e espera-se que esse discurso provoque efeitos múltiplos de deslocamento, de
intensificação, de reorientação, de modificação sobre o próprio desejo. Falar do sexo não como
algo a ser simplesmente condenado ou tolerado, e sim gerir, inserir em sistemas de utilidade,
fazendo funcionar segundo um padrão ótimo (MORAIS, 2015).
A conduta da população passa a ser alvo de análise e intervenção, na qual o Estado
quer saber tudo o que se passa com o sexo do cidadão e o uso que dele se faz, e também que
cada um seja capaz de controlar sua prática. Essa análise em termos de poder não está associada,
a princípio, à soberania do Estado, pois o poder está em toda parte, não porque englobe tudo e,
59
sim, porque provém de todos os lugares, exerce-se a partir de inúmeros pontos e em meio a
relações desiguais e móveis (MORAIS, 2015).
Além disso, as relações de poder não estão em posição de superestrutura, com um
simples papel de interdição, possuem, onde atuam, um papel diretamente produtor. Dessa
forma, segundo Foucault, a função do poder aí exercido não é o da interdição, há outras
operações diferentes da simples proibição. “Esta nova caça às sexualidades periféricas provoca
a incorporação das perversões e nova especificação dos indivíduos” (FOUCAULT, 1999, p. 43,
apud MORAIS, 2015, p. 109).
As perversões são produto da interferência de um tipo de poder sobre os corpos e seus
prazeres. Como sugere Foucault (1999), nesse processo de dizer tudo sobre nós mesmos,
dizemos a verdade sobre o sexo, decifrando o que ele nos diz, e o sexo nos diz a nossa verdade,
liberando o que estava oculto. Foi nesse jogo que se constituiu um saber do sujeito, “saber não
tanto sobre sua forma, porém daquilo que o cinde; daquilo que o determina, talvez, e sobretudo
o faz escapar a si mesmo”. Ele ainda acrescenta que “o projeto de uma ciência do sujeito
começou a gravitar em torno da questão do sexo” (FOUCAULT, 1999, p. 68, apud MORAIS,
p. 109).
Uma sociedade normalizadora, segundo Foucault (1999), é o efeito histórico de uma
tecnologia de poder centrada na vida. E contra esse poder, as forças que resistem se apoiaram
exatamente naquilo que ele investe: a vida. O que é reivindicado e “serve de objetivo é a vida,
entendida como as necessidades fundamentais, a essência concreta do homem, a realização de
suas virtualidades, a plenitude do possível” (FOUCAULT, 1999, p. 136, apud MORAIS, 2015,
p. 110). A vida como objeto político foi utilizada contra o sistema que a tentava controlar.
Assim, na manifestação da Marcha das Vadias, o corpo aparece como corpo-bandeira,
e as temáticas que envolvem o controle dos corpos, sejam pelo Estado, instâncias religiosas ou
pela família são o foco desse movimento feminista, exatamente porque as manifestantes sentem
em seus próprios corpos a força desse poder, que delimita o que é permitido e aceitável
socialmente (MORAIS, 2015). Por tais razões assim expostas, seguiremos com a previsão
constitucional da Liberdade de reunião.
anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade
competente”.
O Direito de reunião é um direito público subjetivo que assegura aos indivíduos a
prerrogativa de se reunir em lugares abertos e fechados sem impedimentos ou intromissões dos
órgãos governamentais (BULOS, 2014).
Tratando-se de um direito fundamental, ele investe as pessoas de poderes jurídicos de
se agruparem em lugares abertos ao público para, juntas e conscientemente, independente de
autorização do poder público, protestarem, reivindicarem ou exprimirem ideias, pouco
importando digam respeito a aspectos religiosos, culturais ou políticos. É a expressão coletiva
da liberdade de manifestação do pensamento (JÚNIOR, 2012).
É por meio de reuniões que o exercício coletivo da liberdade de expressão e
manifestação do pensamento pode servir como instrumento eficiente para a luta política e
assegurar a possibilidade de influenciar o processo político, de tal sorte que a liberdade de
reunião representa um elemento de democracia direta, como também fortalece o direito de
expressão das minorias e o exercício da oposição no embate político-democrático (SARLET,
et al, 2014).
Podendo ser exercido de diversas formas, seja através de comícios, seja por meio de
desfiles, passeatas ou procissões. Pode ser silenciosamente ou acompanhado de carros,
aparelhos e objetos sonoros. Também não há restrição quanto ao lugar, podendo ser praticado
em praças, avenidas, ruas ou qualquer outro local aberto ao público (ibidem).
A liberdade de reunião guarda uma forte relação com a liberdade de expressão,
destacando sua relevância para uma ordem jurídico-constitucional democrática, porque a
formação da opinião e mesmo a formação da vontade política pressupõe uma comunicação que
em grande parte se processa mediante reuniões, integrando o conjunto dos assim chamados
direitos fundamentais democráticos (SARLET, et al, 2014).
Prosseguindo, falaremos sobre os movimentos sociais que concretizam a liberdade de
reunião prevista na Constituição Federal Brasileira.
4. OS MOVIMENTOS SOCIAIS
Para Galinkin e Zauli (2011) as lutas políticas das minorias sociais são meios de buscar
reconhecimento, conquistar direitos iguais, afirmar e valorizar identidades discriminadas.
Em pleno século XXI, surge um movimento feminista multifacetado que tem se
propagado pela internet, através das redes sociais e se intensificado no Brasil. Esse perfil de
militante brasileira cresceu e foi educada na era digital e ainda continua lutando pela igualdade
dos gêneros, formando um grupo plural, bem diferente do que ocorria no passado, no qual este
segmento era singular. Agora cada uma tem uma visão de feminismo e utiliza de diversas
estratégias para lutar por suas causas. “Essa movimentação feminista do século XXI foi
chamada por alguns especialistas de quarta onda feminista” (Silva, et al, 2017, p. 7).
As novas feministas têm formas diferentes de protestar, umas usam a nudez para
chamar a atenção da mídia, por acreditarem que o corpo é um instrumento eficaz para passar
uma mensagem, outras se manifestam pela internet, realizando enquetes sobre feminismo;
movimentando as redes sociais em defesa da liberdade sexual, a igualdade dos gêneros;
criticando a forma como a mulher é retratada pela publicidade e mídia (Silva, et al, 2017).
Essa “nova onda” do movimento de mulheres incentiva outras mulheres a perceberem
que a desigualdade em que se encontram no mundo atual é um problema coletivo e que precisa
de soluções políticas que combatam todas as formas de discriminação em todos os âmbitos. A
Marcha das Vadias é um movimento social recente cuja luta é em prol dos direitos humanos,
no qual busca garantir e conquistar direitos para as mulheres na sociedade contemporânea, esses
que tanto foram negados e violados no decorrer da história da humanidade (ibidem).
Entre os movimentos sociais que escolhemos como foco do nosso estudo está a Marcha
da Vadias, cujo assunto desenvolvido refere-se à criminalização pela exposição dos seios que
falaremos a seguir.
manifestantes. Esse controle estatal alimenta a expectativa de que a mulher deve ser silenciada
e recolhida ao âmbito privado. Os seios têm uma forte simbologia cultural cujo sentido é
reservá-los por trás da roupa. A exposição pública dessa parte do corpo feminino é uma tentativa
de desconstruir valores tradicionais visando uma luta pelo direito das mulheres.
Quando o Estado exacerba o punitivismo com o intuito de reprimir os excessos nos
movimentos de rua, isso significa criminalizar simbolicamente os integrantes de uma
manifestação específica. A criminalização desses movimentos representa um grande risco para
a própria democracia brasileira (PIMENTEL, 2016).
A rua é considerada um espaço de construção democrática, pois é nela que está a
possibilidade de encontro de todos os interesses sociais ignorados pelo Estado e, por isso, a luta
deve ser na rua e pela rua (VASSALO, 2016). Ordenar a desobstrução das ruas com o uso da
força impede que a pessoa se converta num sujeito político, que imediatamente é tachado de
vândalo, de baderneiro, de preguiçoso (LIMA, 2016).
Os abusos policiais na Marcha das Vadias serão descritos a seguir através de um estudo
caso, no qual analisaremos fontes documentais por meio notícias publicadas pela Imprensa
brasileira e uma Sentença que trata de ação penal do Tribunal Justiça do Estado de São Paulo.
Morais (2015) cita uma pessoa que se destacou na organização da Marcha das Vadias
em 2013, realizada no Rio de Janeiro. Trata-se da trans Idianara Siqueira. Ela é considerada um
ícone na discussão do que é permitido ao corpo feminino e masculino. Ao sair em vários
protestos com os seios desnudos, isso gerou uma “confusão” no que é permitido por lei. A
militante chegou a afirmar:
Dia 13 de junho as 10h30, local Rua Humberto de Campos 315/2° andar -
Jecrim do Leblon. Eu, Idianara Siqueira, serei julgada por Ultraje Público ao
Pudor. Depois das “confusões” criadas na Marcha Das Vadias e criar o
protesto “Meu Peito, Minha Bandeira, Meu Direito” onde algumas trans me
seguiram, policiais ficaram atentos até conseguirem me deter. Após receber
voz de prisão por desacato ao me negar a assinar o B.O. e liberada após
pagamento de fiança feito por companheirxs Vadixs, recebi a intimação do
julgamento. Independente do resultado do julgamento e mais que uma pessoa
ou um coletivo, o que estará sendo julgado é o gênero, a imagem do feminino
que não tem o mesmo direito que o masculino. A justiça criará também um
dilema. Se me condenar estará reconhecendo legalmente que socialmente sou
mulher e o que vale é minha identidade de gênero e não o sexo declarado em
meus documentos e isso então criará jurisprudência para todas xs pessoas trans
serem respeitadxs pela sua identidade de gênero e não pelo sexo declarado ao
nascer. Se reconhecer que sou homem como consta nos documentos estará me
dando o direito de caminhar com os seios desnudos em qualquer lugar público
63
onde homens assim o façam, mas também estará dizendo que homens e
mulheres não são iguais em direito. To be or not to be (Iconoclastia
Incendiária) (MORAIS, 2015, p. 120).
Esse discurso na fala de Idianara toca exatamente no ponto em que corpos masculinos
e femininos são tratados de modo diferenciado social e institucionalmente, criando uma fissura
no sistema que não sabe como categorizá-la (MORAIS, 2015).
Com relação à metodologia da nossa pesquisa, esta será desenvolvida a partir de busca
de fontes documentais da imprensa brasileira e de processo judicial que tratem da
criminalização da Marcha das Vadias por exibirem os seios durante a manifestação. Optamos
por essa metodologia por se tratar de documentos de domínio público.
Os documentos de domínio público são produtos sociais tornados públicos.
Eticamente estão abertos para análise por pertencerem ao espaço público, por
terem sido tornados públicos de uma forma que permite a responsabilização.
Podem refletir as transformações lentas em posições e posturas institucionais
assumidas pelos aparelhos simbólicos que permeiam o dia a dia ou, no âmbito
das redes sociais pelos agrupamentos e coletivos que dão forma ao informal,
refletindo o ir e vir de versões circulantes assumidas ou advogadas. (...)
Enquanto práticas discursivas, os documentos de domínio público assumem
formas diferentes. Arquivos diversos, diários oficiais e registros, jornais e
revistas, anúncios, publicidade, manuais de instruções e relatórios anuais são
algumas das possibilidades. Tudo tem algo a contar, o problema maior é
aprender a ouvir (SPINK, P., 2013, p. 112).
FIGURA 1:
FONTE: Google
As figuras 2 e 3 apresentam conteúdo jornalístico idêntico, em que a mesma ativista
que participou da Marcha das Vadias em 2013 aguarda “novo julgamento”. A figura 2 é de
autoria do “Correio da Cidadania”, e a figura 3 é de autoria do site “Artigo 19”. Ambas as
notícias foram publicadas no mês de maio de 2017.
FIGURA 2:
FONTE: Google
65
FIGURA 3:
FONTE: Google
A partir do que foi exposto nas notícias selecionadas, podemos afirmar que o corpo
feminino é delimitado pelo poder, cujo objetivo é controlar e disciplinar, por isso que resta
evidente a demanda do direito ao corpo realizada pela manifestação. Quando essas mulheres
vão às ruas e utilizam seus corpos da maneira que lhes agrada e convém, elas estão se re-
apropriando e ressignificando o que é possível a esse corpo feminino, buscando
viver/usar/sentir/ser esse corpo em sua plenitude, sem pudores e regras (MORAIS, 2015).
Dessa forma, ao se apropriar do próprio corpo, essas mulheres criam distensões no que
é culturalmente inteligível, a partir de contextos possíveis para suas existências dentro do poder
que lhes dizem que elas não têm direitos sobre seus corpos. Essa atitude pode ser encarada
como uma forma de resistência dentro desse poder normatizador, para Foucault “onde há poder
há resistência” (MORAIS, 2015, p. 118).
6.2.SENTENÇA CONDENATÓRIA
2
Sentença: Processo nº 3020103-33.2013.8.26.0224. ARTIGO 19 – Centro de Referência Legal. Caso Roberta:
Marcha das Vadias. Disponível em: <http://artigo19.org/centro/caso/marcha-das-vadias/>. Acesso: 13 de
novembro de 2017.
66
instituição. A resistência está ligada aos processos entre instituído e instituinte. Entende-se por
instituído a ordem estabelecida aquilo que é considerado normal frente à sociedade. Instituinte
se aproxima da capacidade de contestação frente a esses “hábitos” sociais. Esse binômio
instituído e instituinte não podem ser separados, pois eles são importantes para criar oposições.
O conceito de resistência está atrelado à analítica do poder, cuja contribuição vem do
pensamento de Michel Foucault relacionado ao discurso de verdade, relações de poder,
subjetividade, biopolítica e governamentalidade. Quando Foucault aborda a noção de poder,
busca mostrar que o poder não existe enquanto unilateral, mas implica liberdade de resistir. A
resistência não estaria, portanto, em oposição ao poder, mas imbricada nessa relação
(DELL’AGLIO, 2015).
Segundo Dell’Aglio (2015), dentro dessa relação, a resistência terá como foco, talvez,
a recusa de forma a contrapor normas das instituições que nos constroem e nos modelam.
Instituições essas que a partir de tecnologias e dispositivos estão atreladas ao controle de nossas
subjetividades. Tecnologias, que são constituídas por saberes e técnicas, presentes nas lógicas
do Estado, do governo e de controle. Com isso, o Estado desenvolveu uma prática
governamental com o fim de intensificar seu poder de influência:
Isso foi conquistado através do advento de um novo instrumento tecnológico,
a polícia. A esta nova tecnologia de poder estatal foi atribuído o encargo de
regulamentar as práticas e os comportamentos dos indivíduos em todos os
níveis de sua vida social: seja cuidando do que concerne à religião, oferecendo
condições de alimentação, proporcionando saúde, mantendo as construções e
estradas, zelando pelo conhecimento científico, controlando os vagabundos e
bandidos, tomando os pobres sob sua responsabilidade, etc. Nada deve escapar
aos olhares da polícia. Ela deve ser o instrumento concreto de um governo
estatal que almeja cada vez mais governar, pois nunca se governa demais
(SANTOS, 2010, apud, DELL’AGLIO, 2015, p. 11).
Para Foucault (1988), apud Dell’Aglio (2015), o chamado “cuidado” da vida dos
indivíduos é um dever do Estado. E a forma para que o Estado se mantenha será através das
técnicas de governo – exército, função pública, polícia, burocracia e assim por diante. Ao se
referir à polícia, Foucault não se limita apenas enquanto instituição, mas a todas as outras
formas de controle que estão relacionadas às práticas estatais, incluindo as políticas públicas de
saúde e de assistência no qual estamos cotidianamente inseridos.
Esse processo, de ocupação do Estado com relação à vida, é chamado de Biopolítica,
em que os processos biológicos relacionados ao homem-espécie (inclui-se também mulher-
espécie) acabam por ser um objeto de controle estatal, estabelecendo diversas formas de
regulamentações através de técnicas como controles de natalidade, mortalidade, estatística,
70
medicina sanitária e outros campos dos saberes (FOUCAULT, 2008, apud DELL’AGLIO,
2015).
Esse controle da vida acaba por produzir normatividades. Foucault (1979), apud
Dell’Aglio (2015) ao problematizar essa forma onipresente e onipotente do Estado traz o
conceito de governamentalidade. Esse campo estatal seria uma técnica de controle que modula
os corpos através de uma lógica de hierarquia e de leis. Com isso, o Estado passa, não apenas
diretamente, mas em nome dele — em suas políticas e práticas — se responsabilizando por
técnicas que acabam por produzir subjetividades, produzir estilos de vida, produzir aquilo que
é esperado ou não para determinados corpos. Produzindo assim, aquilo que é negado,
marginalizado, abjeto.
O que se busca com essas reflexões não é negar o Estado, pois estamos inseridos nesse
processo político. Busca-se, sim, a partir de um conhecimento situado e localizado, analisar
essas relações de poder imbricadas no sistema em que conhecemos. Se o poder é definido como
dominação, a partir de uma perspectiva teórica mais ligada ao marxismo, ele pode e deve ser
combatido, mas se é definido como estando em todos os lugares, como parte integrante de todas
as sociedades, não pode ser eliminado – pelo menos não diretamente. O feminismo funciona
enquanto uma luta que busca questionar essas hierarquizações de poder imbricadas ao gênero
(DELL’AGLIO, 2015).
Galetti (2016) afirma que o corpo feminino é retomado de forma performática pelas
“vadias”, sendo posto como instrumento de luta, e o espaço público passa a ser tomado por
mulheres seminuas e nuas. Esses corpos são utilizados como outdoors e carregam frases de
cunho feminista, ressaltando a necessidade das mulheres serem donas de seus próprios corpos.
Gomes e Sorj (2014), apud Galetti (2016), acrescentam que a nudez é um importante
instrumento de impacto nas marchas, porque permite condensar a um só tempo a capacidade de
criticar as normas de gênero e de expressar de modo subjetivo a “libertação” do corpo.
“O corpo em marcha confronta símbolos religiosos, confronta moralidades e padrões
hegemônicos de beleza” (GALETTI, 2016, p. 50-51). A exposição do corpo nu como
instrumento de luta é vista com escândalo no espaço público. Essa prática corporal é tratada
como algo a ser observado, vigiado e, quando não se enquadrar nos padrões vigentes,
devidamente punidos.
Essa relação entre o corpo e a rua é uma é uma problemática atual, porque o corpo à
mostra na cidade causa tensões e, quando vários corpos ocupam o espaço urbano em uma
manifestação denominada de Marcha das Vadias, o mal estar é generalizado, frente às regras
da ordem patriarcal (GALETTI, 2016).
71
7. CONCLUSÃO
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73
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74
1. INTRODUÇÃO
É certo que a história do Brasil possui uma grande mácula com a escravidão e, por esse
motivo, nos dias atuais ainda é preciso implantar medidas em diversas áreas, as quais tenham
como objetivo dirimir as consequências da discriminação de raça. Além disso, é importante
ressaltar que o conceito de raça não abrange somente o aspecto da cor mais escura, como Arthur
de Gobineau preconizava. Este conde francês, em uma das suas viagens ao Brasil, ficou
conhecido por sua repulsa com a população negra e mestiça e, em função disso e de sua posição
como um aristocrata e influente pensador do racialismo, foi um dos principais articuladores das
ideias de degenerescência e racismo (SOUZA, 2010).
Por consequência, aqui, também, não se eximirá do conceito da conduta tipificada
neste crime todos aqueles que possuem uma etnia própria e por ela são apartados. Assim, não
se considera que esta marginalização somente se deu pela escravidão, mas compreender-se-á
que este foi o principal motivo de hoje haver uma sociedade capaz de impor respeito e dignidade
a quaisquer minorias, ganhando relevância jurídica para medidas desconformes.
Neste contexto, as ideias de combate ao racismo e toda essa cultura de discriminação,
começaram a produzir resultados efetivos com a sua institucionalização, isto é, a partir da
Constituição de 1988, quando a prática racista foi estabelecida como crime, elevando o amparo
a esse comportamento a um status de direito constitucional: uma cláusula pétrea. Tal medida
associadada à grande carga protetiva aos direitos humanos desta constituinte, coincidiu com o
centenário de comemoração da abolição da escravatura, acontecimento este que impulsionou o
movimento negro a buscar uma mudança de tratamento para além da questão espacial e de
qualificação, já que a legislação desta época - Lei Afonso Arinos – o considerava uma
contravenção penal, a qual não possuía uma efetividade formal e servia mais para uma questão
social do que jurídica (SANTOS, 2013).
Dessa maneira, ainda em meados da Constituinte, o então deputado Carlos Alberto
Oliveira, antigo presidente da asssociação brasileira de imprensa (AIB) e ativista do PDT,
apresentou o Projeto de Lei de número 668 de 1988, que conseguiu, ainda no mesmo ano, ser
aprovado e transformado na Lei nº. 7.716, sancionada e publicada no início de 1989. Com isso,
apesar da ingressão de tal lei no Código Penal Brasileiro, o rascimo era punido apenas em um
aspecto local, onde era praticada a conduta criminosa, contanto que ficasse elucidada a intenção
preconceituosa de realizá-la. Já distante desses espaços, continuava a não ser penalizado.
Apenas na década de 1990 surgiram alterações na lei e aumentou-se a margem de penalização
do preconceito para incluir a procedência nacional e, assim, avançar (SANTOS, 2013).
Dando continuidade a esse processo, a Lei nº. 9.459, ampliou a abrangência da Lei nº.
7.716/89, estabelecendo que os critérios para considerar a discriminação no crime de racismo
76
2013). Induzir é causar a ideia, fazer nascer na mente de outrem, enquanto incitar trata-se de
estimular, instigar alguém a praticar determinada conduta.
Faz-se necessário, também, conceituar outros dois termos presentes no artigo: o
preconceito e a discriminação. Este consiste no ato de “estabelecer diferença entre seres e
coisas, com prejudicialidade para a parte inferiorizada” (NUCCI, 2008), já aquele trata-se de
uma opinião formada de algo ou alguém, sem cautela, provocando aversão a determinadas
pessoas ou situações, por meio de julgamentos precipitados (NUCCI, 2008).
Dessa forma, o crime de racismo caracteriza-se pela prática de conduta que promova,
diretamente ou por meio de instigação ou incitação, a diferença entre os seres humanos
(discriminação) ou o julgamento precipitado e equivocado de determinadas pessoas
(preconceito), decorrente de sua raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Nas palavras de Guilherme de Souza Nucci, a ideia inicial de racismo está relacionada
à forma de pensamento que defende a existência de seres humanos divididos em “raças”, de
acordo com características em comum, sendo algumas raças superiores a outras (NUCCI,
2008). Convém destacar, porém, que o termo “raça” não é apropriado, uma vez que traz
diversos questionamentos e ambiguidades, devendo não mais falar em raças no plural, mas
somente na raça humana.
De todo modo, a prática do racismo consiste em segregar, discriminar determinados
grupos de pessoas; sejam eles determinados pela cor (preto, branco), etnia (indígenas,
portugueses), religião (judaísmo, catolicismo) ou procedência nacional (gaúcho, paulista).
O racismo, portanto, fere diretamente o princípio da igualdade presente em todo
ordenamento jurídico. A Constituição Federal de 1988 deixa claro que todos os indivíduos são
iguais perante a lei, devendo haver tratamento sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV, CF/88).
Com base nesses corolários, a Constituição estabeleceu, como visto acima, que o crime
de racismo se trata de um crime inafiançável e imprescritível, ou seja, não é possível a
concessão de liberdade provisória por meio da fiança, como também não pode ser alegada a
prescrição (perda do direito de punir pelo decurso do tempo).
O crime de racismo, contudo, não foi capaz de solucionar todos os problemas
referentes ao assunto, uma vez que muitas condutas estavam sendo classificadas como meras
injúrias previstas no caput do art. 140 do Código Penal. Para entendimento de alguns, o autor
do delito, em alguns casos, apenas feriu a honra subjetiva do indivíduo, sem praticar
necessariamente uma segregação ou discriminação de um determinado grupo de pessoas.
78
Dessa maneira, diversos infratores foram absolvidos ou tiveram sua pena bastante
reduzida – ou até mesmo prescrita. Foi assim que no dia 13 de maio de 1997, o antigo Presidente
da República, Fernando Henrique Cardoso, sancionou o Projeto de Lei nº 9.459/97, de autoria
do Senador Paulo Paim, que teve como objetivo, dentre tantos outros, a criação de um novo
tipo penal: a injúria racial – acrescentando o §3º ao art. 140 do Código Penal.
No que tange à injúria, o art. 140, caput, preconiza: “injuriar alguém, ofendendo-lhe a
dignidade ou o decoro: pena – detenção, de um a seis meses, ou multa”. Diferentemente da
calúnia e difamação – que são outros crimes contra a honra, que ferem a honra objetiva –, a
injúria ofende a honra subjetiva, ou seja, o respeito ou julgamento que o indivíduo tem sobre si
mesmo.
Trata-se, portanto, de uma ofensa realizada a outra pessoa, ferindo sua dignidade ou
decoro, que estão relacionados a atributos físicos, morais e intelectuais. A primeira, segundo
Bitencourt, se trata do sentimento da própria honra ou valor social do indivíduo. Já o decoro se
refere à “própria respeitabilidade social” (BITENCOURT, 2017). A título de exemplo,
Damásio de Jesus deixa mais clara a distinção ao afirmar: “se chamo alguém de cafajeste, estou
ofendendo a sua honra-dignidade; se o chamo de analfabeto, ofendo-lhe a honra-decoro
(JESUS, 2013).
É por isso que o legislador entendeu necessária a criação da injúria racial, posto que
os tribunais, em alguns casos, acreditavam que a conduta realizada ou as palavras proferidas
pelo autor do delito apenas feriam a honra subjetiva do ofendido, não sendo necessário um
tratamento mais rigoroso, como se trata o crime de racismo. Sendo assim, se antes da Lei nº
9.459/97, alguém, por exemplo, chamasse outro de “preto burro” por conta de sua cor, alguns
tribunais poderiam entender que o autor do crime apenas tinha o animus injuriandi, ou seja, a
vontade de ofender a dignidade ou decoro do indivíduo, sem, no entanto, segregá-lo ou
discriminá-lo, e assim imputariam o crime de injúria previsto no caput do art. 140.
Com a Lei nº. 9.459/97, a mesma atitude também pode ser considerada, para alguns,
como uma ofensa apenas à dignidade ou decoro da vítima. Porém, por se tratar do uso de
elementos que remetam à raça, cor, etnia, religião, origem ou à condição de pessoa idosa ou
portadora de deficiência (estes dois últimos acrescidos pela lei nº. 10.741, de 2003), o autor do
delito sofrerá um tratamento mais rigoroso, tendo sua pena aumentada de um a três anos e o
regime mudado de detenção para reclusão. É o que prevê o § 3º do mesmo artigo: “se a injúria
consiste na utilização de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição
de pessoa idosa ou portadora de deficiência: pena – reclusão de um a três anos e multa”.
79
O senador Paulo Paim, criador do Projeto de Lei, em uma de suas obras, explica o
motivo da criação do novo tipo penal:
Na prática, o que mudou foi a aplicação da lei. Antes, se um cidadão negro
fosse chamado de “negro sujo” e um branco de “branquejo sujo”, o réu
invariavelmente era absolvido, porque a ofensa caracterizava-se apenas como
crime de injúria e não de racismo. [...] “a amplitude dessa lei protege todo
cidadão: o negro, o branco, o palestino, o judeu, o africano, o italiano...”
(PAIM, 20016).
Para que a injúria seja qualificada, é necessário que, além do dolo de dano (vontade
livre e consciente de injuriar o ofendido), também haja o elemento subjetivo especial do tipo,
que é a consciência de que está ofendendo a honra alheia por conta de sua raça, cor, etnia,
religião, origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência (BITENCOURT,
2017).
Por mais que a margem de cominação das penas seja igual entre os dois crimes, há
características que o diferem no momento de sua aplicação. No que concerne à ação penal, com
base na regra geral (art. 100, CP), o crime de racismo (art. 20, Lei nº 7.716/89) é considerado
crime de ação penal pública incondicionada, ou seja, não é necessário que haja representação
de alguém para que o Ministério Público possa entrar com uma ação contra o autor do delito.
No que se refere à injúria racial, quando inserida no ordenamento jurídico, a ação penal
era considerada privada (devendo ser promovida mediante queixa do ofendido ou de quem
tenha qualidade para representá-lo – art. 100, § 2º, CP). Depois de diversas críticas doutrinárias,
a injúria racial passou a ser de ação penal pública condicionada à representação da vítima,
através da Lei nº 12.033, de 29 de setembro de 2009, alterando a redação do parágrafo único
do art. 145 do Código Penal.
Além disso, uma característica deveras importante que diferencia os dois crimes é que
o crime de racismo, previsto também constitucionalmente, trata-se de um crime inafiançável e
imprescritível, como vimos acima, uma exceção à regra da prescritibilidade dos delitos.
Contudo, a injúria racial – por mais que haja pensamentos contrários – é desprovida dessas
características, sendo suscetível de prescrição (art. 107, IV, CP) e de concessão de liberdade
provisória. Essa característica produz grandes efeitos no caso concreto, causando confusão no
momento da aplicação da pena, pois diversos casos sofrem prescrição, quando, na verdade,
tratavam-se de crimes de racismo (imprescritíveis) e vice-versa.
O autor Ivair dos Santos toca nessa problemática bastante discutida:
A desinformação e a falta de recursos transformaram-se em grandes
obstáculos para a maioria das vítimas que registraram seus casos em boletins
de ocorrência nas delegacias de polícia. A ação penal poderia ser enquadrada
no art. 20 da Lei no 7.716, mas é frequentemente desclassificada, por decisão
80
judicial. A ação pode iniciar-se como uma ação pública penal de prática de
racismo, mas, ao término do processo, há desclassificação seguida do
reconhecimento da extinção da punibilidade do agente, por conta da
decadência, conforme o art. 107, IV, do Código Penal (SANTOS, 2013).
Cumpre, agora, destacar os critérios utilizados para diferenciar os dois termos no caso
concreto. Para alguns, o grande critério diferenciador do crime de racismo (art. 20, Lei nº.
7.716/97) e do crime de injúria racial (art. 140, § 3º), é que o primeiro se refere a uma ofensa
por elementos racistas cometida a um grupo de pessoas, ou seja, é dirigida a uma coletividade,
podendo, contudo, ser dirigida a uma pessoa, mas com objetivo de segregá-la. Enquanto isso, a
injúria racial, para essa corrente, ofende uma única pessoa, “embora valendo-se de instrumentos
relacionados a um grupo de pessoas” (NUCCI, 2008), sem contudo, segregá-la.
Todavia, na doutrina já se encontram divergências a essa diferença, uma vez que
alguns autores consideram que a injúria racial pode ser realizada a uma determinada
coletividade quando equiparada à pessoa indeterminada, descaracterizando, assim, a ideia de
que a injúria racial só é cometida contra pessoa determinada. É assim que pensa Cezar Roberto
Bitencourt (BITENCOURT, 2017).
Entendemos, portanto, que esse critério não é suficiente para distinguir completamente
esses dois termos, pois se torna bastante laborioso compreender até que ponto a conduta do
indivíduo visava ferir apenas um indivíduo ou todo o grupo de pessoas que possui determinadas
características ou atributos.
Desse modo, a doutrina ainda falha em critérios que possam diferenciar esses dois
institutos, cabendo ao juiz, no caso concreto, analisar a situação e encontrar a real intenção do
indivíduo, observando se estão presentes o dolo de dano, o elemento subjetivo especial do tipo
(intenção e consciência de que está ofendendo a honra alheia por questão de raça, cor, etnia,
religião, origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência). Caso contrário, se o
indivíduo pretender ferir, não a honra subjetiva de um indivíduo, mas sim segregá-lo ou
segregar e discriminar todo um grupo de pessoas, já estaríamos falando do crime de racismo
(art. 20, Lei nº 7.716).
Com isso, percebe-se que há uma linha muito tênue entre a conceituação e
diferenciação desses dois institutos tão confundidos por alguns, como trocados por outros,
sendo considerado um trabalho árduo para o judiciário analisar esses termos no caso concreto.
De tal sorte que nos cumpre avaliar, a partir da diferenciação aqui traçada, a prática
jurisprudencial sobre a temática, com o objetivo de proporcionar um parâmetro
dogmaticamente objetivo para a efetivação dos tipos em espécie adequados à situação concreta.
81
No mesmo sentido, o STJ (AgRg no AREsp 686965/DF, sexta turma, Rel. Min. Ericson
Maranho – convocado do TJ-SP –, julgado em 18/08/2015, DJe 31/08/2015) confirmou a
equiparação de regimes entre a injúria racial e os demais delitos de racismo. Não obstante, o
próprio ministro relator, em decisão monocrática proferida em 18/06/2015, ao referir-se à
jurisprudência daquele tribunal, confirmou a diferenciação entre os delitos em debate:
(...) o crime do art. 20, da Lei nº 7.716/89, na modalidade de praticar ou incitar
a discriminação ou preconceito de procedência nacional, não se confunde com
o crime de injúria preconceituosa (art. 140, §3º, do CP). Este tutela a honra
subjetiva da pessoa. Aquele, por sua vez, é um sentimento em relação a toda
82
uma coletividade (...) (ut, RHC 19.166/RJ, Rel. Ministro Felix Fischer, Quinta
Turma, DJ 20/11/2006).
Quanto à constatação da injúria racial frente ao crime de racismo, vê-se que é este que
expressa um maior desvalor da ação e do resultado frente àquele, pois sua prática possui
amplitude bem maior do que o crime do art. 140, §3º do Código Penal (maior desvalor da ação),
84
e o bem jurídico que é atingido não pertence a um sujeito determinado, mas fere, como já dito,
"um sentimento em relação a toda uma coletividade", que ao nosso ver é o próprio direito de
igualdade do grupo discriminado racialmente.
Decorrente dessas diferenciações quanto à forma da conduta e seu malefício ao bem,
é que se mostra mais razoável a maior punibilidade (com os efeitos constitucionais da
imprescritibilidade e inafiançabilidade) dos crimes de racismo, de modo que a extensão dessas
consequências à injúria qualificada é ato desproporcional e irrazoável, que pune paritariamente
comportamentos expressos de formas diversas (em graus de danosidade diferentes) e que ferem
valores jurídicos diferentes.
Destarte, é a partir dessas diferenças que pensamos que se deva estabelecer um
parâmetro mínimo de aplicação de tais delitos que observe os limites do princípio da legalidade
e dos postulados dogmáticos da interpretação penal. A desclassificação da injúria racial (art.
140, §3º, do Código Penal) para o crime de racismo (art. 20 da Lei nº. 7.716/89) só pode se dar
em face de uma conduta que em seu modo de expressão, ou seu conteúdo, tenha amplitude capaz
de se generalizar a todo um grupo social, e não a um sujeito determinado, como também tenha
força de atacar danosamente o sentimento desta coletividade, para além da honra subjetiva de
um sujeito passivo.
A título de exemplo de uma correta desclassificação de injúria racial para o crime de
racismo, colacionamos o voto do desembargador do TJ-SP, Tristão Ribeiro, proferido nos autos
da Apelação 990.10.154240-4, 5º C. Crim., 02/12/2010, registro em 02/12/2010, onde foi
afirmado que:
(...) a denúncia descreve claramente que a ré ofendeu não apenas a honra
subjetiva do ofendido, mas toda a raça negra, ao dizer que 'negro fede
naturalmente e fumando fede mais ainda', de modo que os fatos não
caracterizam o crime previsto no artigo 140, § 3º, do Código Penal, conforme
alega a zelosa Defesa, pois para a tipificação da chamada injúria qualificada
é imprescindível que a ofensa à honra, consistente na utilização de elementos
racistas e discriminatórios, seja direcionada a pessoa determinada, o que,
evidentemente, não é a hipótese dos autos.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
maneira, objetivou-se buscar nas entrelinhas desses estudos um critério suficiente para
distinguir a incidência das duas normas frente às especificidades do caso concreto.
Para tanto, partiu-se de uma compreensão historiográfica dos fatos e motivações
sociais e políticas que levaram à necessária tipificação das condutas racistas no contexto
nacional. Viu-se que a base constitucional foi a mola propulsora da proteção da igualdade que
confronta os comportamentos preconceituosos, que a partir dela considerou-se o crime de
racismo um delito imprescritível e inafiançável, como também foi dela a decorrente necessidade
de criação da injúria preconceituosa, pois, como alertado, a desclassificação do tipo de racismo
para o crime contra a honra, sob o argumento de que o fato criminoso atingiu somente o sujeito
individualmente considerado, passou a gerar a impunidade de uma conduta tão reprovada.
No mais, doravante ao estudo dogmático e doutrinário de diferenciação dos crimes do
art. 140, §3º do Código Penal e art. 20 da Lei nº. 7.716/89, analisou-se a prática jurisprudencial
na tipificação dos comportamentos discriminatórios cuja motivação envolvia a questão racial.
Viu-se que é vacilante a aplicação e até mesmo as bases de discriminação dos delitos, de modo
que se torna necessário o estabelecimento de uma diferença de natureza legal e dogmática, pois
a partir dos postulados interpretativos do direito penal e do princípio da legalidade, percebeu-
se que o desvalor, seja da ação, ou do resultado, justificava a maior reprovabilidade do crime
de racismo e que a extensão de suas consequências para a injúria preconceituosa seria uma
atitude irrazoável e fora dos parâmetros legítimos do direito penal.
Assim, com a distinção traçada no segundo tópico e início do terceiro, nasceu a
possibilidade de estabelecimento de um parâmetro mínimo de aplicação de tais tipos, sendo
este traçado a partir da identificação dos meios e formas de efetivação da conduta, bem como
no reconhecimento do bem jurídico lesado por ela. A maneira de concretização do
comportamento racista e preconceituoso está diretamente ligada ao valor jurídico afetado, de
modo que a desclassificação do crime de racismo para a injúria qualificada, ou vice-versa, só
se legitima e valida dentro da análise fática de sua prática e amplidão a um sujeito ou a um
grupo. Ademais, o debate, para além do direito posto, não se encerra, seja em virtude da
complexidade do problema, ou em relação à delicadeza que envolve a compreensão do direito
penal, principalmente em casos de tipos criminais com verossimilhança aparente e diferentes
(demasiadamente) em suas consequências, o que demanda ainda mais o estudo e debate
acadêmico e doutrinário.
86
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan,
1996.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 20. ed. rev. ampl. e atu
al. São Paulo: Saraiva, 2014.
______. Tratado de direito penal: parte especial 2: crimes contra a pessoa. 16. ed. rev. ampl.
e atual. São Paulo: Saraiva, 2016.
______. Tratado de Direito Penal: Parte Especial: Crimes contra a pessoa. 17. ed. São Paulo:
Saraiva, 2017.
JESUS, Damásio de. Direito Penal: Parte Especial. 33. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. v. 2.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2017.
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 3. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
SANTOS, Ivair Augusto Alves dos. Direitos Humanos e as práticas de racismo. Brasília:
Edições Câmara, 2013.
SOUZA, Valéria Alves de. A raça em questão: de onde vêm as ideias raciais que
predominam na sociedade brasileira?, São Paulo, 2010. Disponivel em:
http://ensinosociologia.fflch.usp.br/sites/ensinosociologia.fflch.usp.br/files/2010-1-
Valeria%20Alves-A%20Raca%20em%20Questao-1-texto.pdf. Acesso em: 29 de dezembro
de 2017.
ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasilei
ro: parte geral. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.
87
1. INTRODUÇÃO
sociais distintas. O reflexo disto é que a própria noção de configuração familiar e os conceitos
e definições sobre as juventudes também compõem um padrão relacional que, com auxílio da
mídia, se enraíza e se naturaliza na sociedade (Brito, 2013; Scott, 2011).
Isto dito de outra forma, significa dizer que o Estado se vale de seu aparato legal e
institucional de forma diferente quando trata de classes médias e pobres. Este mecanismo se
evidencia claramente através da mídia quando, por exemplo, repetidamente se refere às classes
pobres de tal forma que seus comportamentos cheguem a ser identificados como “desviantes”
(Becker, 2008) sendo, muitas vezes, inclusive, criminalizados (Schuch, 2009).
No universo da discussão sobre as intervenções estatais, este trabalho se propõe a
discutir como as tecnologias de poder e administração das juventudes desviantes estão
estreitamente relacionadas a proposições sobre o papel do Estado, contextos políticos e valores
socioculturais que transbordam aqueles expressos nos códigos legais.
A discussão e as reflexões aqui presentes se mostram pertinentes neste importante
momento político brasileiro, no bojo do acirramento das contradições e os consequentes frontais
ataques a nossa tão jovem democracia. Em momentos como este, são desferidos os mais duros
golpes às minorias sociais, às populações desviantes.
Nesse contexto, já entraram em pauta a retirada de direitos políticos e sociais, como a
redução da maioridade penal e a negativa de aborto às mulheres vítimas de estupro ou gravidez
de alto risco materno2, sem contar a consolidação das reformas trabalhista e previdenciária no
contexto do radical cerceamento de Direitos Fundamentais como liberdade de expressão, de ir
e vir, entre outros.
É nesse viés que a discussão sobre direitos humanos é juntada ao trabalho, por não se
desvincular, neste momento, da questão do desvio, e por transcender, no nosso entendimento,
às reflexões essencialmente legalistas.
2. A QUESTÃO DO DESVIO
2 Me refiro aqui à PEC 181, votada em novembro do corrente ano. Não me atenho aos detalhes do Projeto
por não ser o escopo do texto e assim, apenas servir como ilustração do atual momento político brasileiro.
89
certo ato desviante pode, em dado momento histórico, despertar reações muito mais lenientes
que em outro.
De acordo com Becker (2008), “todos os grupos sociais fazem regras e tentam, em
certos momentos e em algumas circunstâncias, impô-las. Regras sociais definem situações e
tipos de comportamento a elas apropriados, especificando algumas ações como ‘certas’ e
proibindo outras como ‘erradas’.” (2008: 15). Deste modo, dada uma regra imposta, o indivíduo
que a infringiu poderá ser considerado um outsider, ou seja, um desviante.
Entretanto, o desvio é relacional e circunstancial: é necessário que haja uma regra ou
norma imposta e alguém que a descumpra. Considerando que a regra pode mudar entre os
diversos grupos sociais, “de nada serviria o comportamento desviante sem a sanção a qual o
corrobora e, taxativamente, o identifica como tal” (2008: 15):
Nesse caso, quem está definindo que tipos de atividades como criminosas e
com quais consequências? Numa outra direção, certos comportamentos serão
considerados incorretos, mas nenhuma lei se aplica a eles e nem há qualquer
sistema organizado para detectar os que infringem a regra informal. Alguns
desses comportamentos, em aparência triviais, poderiam ser vistos como
infrações de regras de etiqueta (2008: 17).
Nossa sociedade é dinâmica e, por isto há que se considerar o fator temporal. Brito
(2013) assinala uma preocupação no que diz respeito à existência de um atraso crônico do
direito em relação às ciências sociais no que concerne à abordagem de novos desafios da família
e da sociedade.
Neste contexto, um indivíduo praticante de certo ato desviante pode em dado momento
histórico despertar reações muito mais lenientes do que em algum outro – saliente-se que o
oposto é também verdadeiro (Becker, 2008).
Retomando o exemplo das reportagens apresentadas anteriormente, pode-se pontuar
que a noção dos vários tipos de desvio – sejam hábitos, a reprodução de comportamentos etc. –
se constrói através do respaldo da sociedade. Ou seja, não existe comportamento desviante sem
julgamento moral que o defina como tal, visto que
[...] o desvio não é uma qualidade simples, presente em alguns tipos de
comportamento e ausente em outros. É antes o produto de um processo que
envolve reações de outras pessoas ao comportamento. O mesmo
comportamento pode ser uma infração das regras num momento e não em
outro; pede ser uma infração quando cometido por uma pessoa, mas não
quando cometido por outra; algumas regras são infringidas com impunidade,
outras não. Em suma, se um dado ato é desviante ou não, depende em parte da
natureza do ato (isto é, se ele viola ou não alguma regra) e em parte do que
outras pessoas fazem acerca dele (Becker, 2008: 26).
90
Neste sentido, Becker (2008) nos traz mais uma reflexão, quando assinala que usa o
“termo ‘outsiders’ para designar aquelas pessoas que são consideradas desviantes por outras,
situando-se por isso fora do círculo dos membros ‘normais’ do grupo” (2008: 27, grifos nossos).
Entretanto, outsiders ou desviantes – como tem sido amplamente utilizada a tradução
do termo para a língua portuguesa – contém um segundo significado, cuja análise leva a um
outro importante conjunto de problemas sociais, a saber, os desviantes ou outsiders, “do ponto
de vista da pessoa rotulada de desviante, podem ser aquelas que fazem as regras de cuja violação
ela foi considerada culpada” (Becker, 2008: 29).
Nesta linha de raciocínio, percebe-se que as relações de poder estão intimamente
conectadas ao papel do Estado, contextos políticos e valores socioculturais construídos em
processos relacionais de mais amplo espectro que os expressos nos códigos legais.
como padrão internacional que todo menor de 18 anos é considerado criança sendo, portanto,
possível a compatibilidade com o ordenamento jurídico brasileiro (Schuch, 2009).
Vale ressaltar que a Convenção sobre os Direitos da Criança é o instrumento de direitos
humanos mais aceito na história, sendo ratificada por 193 países. A doutrina da proteção
integral, juntamente aos princípios do Melhor interesse do menor e da Absoluta prioridade, faz
parte da tríade principiológica que forma o ECA (Francischini e Campos, 2005).
Desta forma, o termo adolescente adotado no ECA refere-se somente aos indivíduos
com idade entre 12 e 18 anos, os quais podem, então, arcar com as consequências de suas
próprias atitudes. Estas consequências, a saber, as transgressões das normas juridicamente
estabelecidas, são tecnicamente chamadas de atos infracionais, visto que, em consonância com
o conceito tripartido de crime, a inimputabilidade é excludente de culpabilidade e,
consequentemente, não haverá caracterização de crime e sim de ato infracional (Bittencourt,
2017).
Nesse contexto, não haverá, portanto, responsabilização penal, mas sim a aplicação de
medidas socioeducativas. Estas diferem daquelas em seu caráter de sanção: ao passo que menos
punitivas, as medidas socioeducativas prezam pela “reinserção social e o fortalecimento dos
vínculos familiares e comunitários” (Francischini e Campos, 2005: 268).
É importante frisar que as medidas de privação de liberdade são utilizadas como último
recurso das medidas socioeducativas. Como expresso no ECA, Lei nº 8069/90, em seu artigo
112, incisos I ao VII, diante da constatação do ato infracional, é cabível a aplicação das
seguintes medidas pela autoridade competente: (I) advertência, (II) obrigação de reparar o dano
causado, (III) prestação de serviços à comunidade, (IV) a liberdade assistida, (V) a inserção em
regime de semiliberdade, (VI) a internação em estabelecimento educacional e, ainda, (VII) as
previstas no art. 101, incisos I a VI (Brasil, 1990).
O art. 101 também traz medidas protetivas cabíveis de aplicação pela autoridade
competente, mas deixa margem para inserção de outras. Em verdade, as medidas elencadas no
referido artigo, aplicar-se-ão no caso da violação ou ameaça aos direitos reconhecidos no
Estatuto, elencadas, por sua vez, no art. 98, a saber, quando da ação ou omissão da sociedade
ou do Estado, por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável e, por fim, em razão da
conduta do tutelado (Brasil, 1990).
Neste prisma, caso haja qualquer violação ou ameaça já referidos no art. 98, invocar-
se-á o art. 101, incisos I ao VI, os quais versam sobre (I) encaminhamento aos pais ou
responsável, mediante termo de responsabilidade, (II) a orientação, apoio e acompanhamento
temporários, (III) a matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino
92
A adolescência é vista pelo senso comum como uma fase inerentemente turbulenta da
vida humana. Isto nos leva a lugares comuns como o entendimento tácito de que todo
adolescente é naturalmente vocacionado à transgressão, ao desvio. Esta análise
antropologicamente desbalizada, incorre em alguns erros graves como, por exemplo, uma
associação determinista entre juventude, desvio e crime (Becker, 2008).
Pode-se ir além: associar juventude pobre, desvio e crime. Isto dito de outra forma,
implica em associar as famílias pobres – a pobreza em si – ao crime. É nessa confusão
conceitual que associações de estereótipos são abraçadas como dotadas de verdade e
naturalizam-se, configurando-se assim, a criminalização tanto do desvio quanto da pobreza.
Para melhor entendimento do tema, há que se primar por uma análise historicamente
contextualizada. É neste sentido que Souza (2017) traz à baila a discussão sobre o fenômeno da
urbanização brasileira, em vias do séc. XIX, no bojo de uma sociedade escravocrata e
paternalista. É este o cenário no qual os estratos sociais mais baixos têm uma piora em suas
condições de vida.
Este momento histórico tem sua importância em razão de ser o berço de muitas
contradições vividas ainda hoje em nossa sociedade com suas raízes ainda paternalistas e
escravocratas. Assim, nas palavras de Souza,
a urbanização apresentou uma piora nas condições de vida dos negros livres e
de muitos mestiços pobres das cidades. O nível de vida baixou, a comida ficou
pior e a casa também. Seu abandono os fez, então, perigosos, criminosos,
maconheiros, capoeiras etc. Os sobrados senhoris, também nenhuma obra-
prima em termos de condições de moradia, por serem escuros e anti-
higiênicos, tornaram-se com o tempo prisões defensivas do perigo da rua, dos
moleques, dos capoeiras etc. Uma lógica de convivência naturalizada com a
desigualdade social que também veio para ficar, como sabemos, hoje em dia,
na sociedade dos condomínios fechados (2017: 61, grifo nosso).
constituindo como sujeitos particulares, ao mesmo tempo em que autoridades para sua
administração” (Schuch, 2009: 106).
Neste sentido, no Brasil, a partir do século XX, com a constituição do que a se chamou
de justiça de menores, a família perde seu caráter de instituição de direito privado e assume a
função moral de formação de corpos e almas (Ariès, 1981).
Isto dito, convém trazer ao debate Elizabeth Bott (1976), que explica a noção de
“família normal”, mostrando que “normal” pode significar o comportamento tido como
“moralmente correto ou, pelo menos, esperado e habitual” (p. 192). Ou seja, a ideia de família
enquanto instituição, mostra sua importância como referência simbólica de comportamento na
“apropriação das normas enquanto valores pessoais e sociais, em especial para a população
pobre, que ordena o lugar dos indivíduos no mundo social como um todo, dentro e fora da
família” (1976: 195).
Adicione-se a isso o quinhão de contribuição do Estado na definição do que seria esta
“normalidade” das famílias: no universo das casas com administração estatal que recebiam
crianças e jovens – os internatos – já na década de 1950, se trabalhava com a noção de
“desvalidos”, que eram os jovens que não possuíam responsáveis por suas vidas (Sarti, 2004).
Fonseca (1995) mostra que a demanda pelas vagas de internato se configurava como
demanda social, visto que as mães empregadas domésticas e que criavam seus filhos sem um
companheiro e os próprios menores eram os principais mandatários dos pedidos de
internamento.
Intrinsecamente relacionado à juventude periférica das grandes cidades, o termo
“menor”, que traz a conotação de crianças desvalidas e ganhou dimensão de uso pela sociedade
lato senso, é oriundo da prática policial. Nas palavras de Schuch (2009):
O “menor” era definido primordialmente em torno sua situação de
subordinação social pela pobreza. As medidas jurídico-estatais dirigiam-se à
população carente da sociedade brasileira, objetos privilegiados das medidas
de reforma populacional e alvos de um esforço classificatório de
reordenamento social, algo particularmente relevante em um momento de
recente fim da escravidão (p. 112).
desviante. São situações decorrentes uma da outra, visto que o CM considerava em situação
irregular3 o menor
I – Privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução
obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de: a) falta, ação ou omissão
dos pais ou responsável; b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável
para provê-las (BRASIL, 1979).
este lapso temporal parece diminuir. Assim, ao passo que a França de meados de 1800 discutia
o pauperismo e as condições dos ‘menores’, esta realidade se apresentou no Brasil quase um
século depois.
Inclusive, dada a atual conjuntura política e social brasileira de 2017, de acirramento
das contradições, pode-se, ainda, encontrar mais similitudes com a França do século XIX do
que se imagina. Nas palavras de Donzelot, citando o Ensaio sobre a pobreza das nações, livro
de E. Fodéré, de 1825, diz que
foi-se o tempo em que se podia, até certo ponto, deixar de se levarem conta o
que acontecia nas classes inferiores e ater-se ao recurso de esmaga-las, caso
fosse necessário, quando se agitavam; essas classes, agora, pensam,
raciocinam, falam e agem. Portanto, é muito mais sabido e mais prudente, sem
qualquer dúvida, pensar em tomar medidas legislativas, algumas protegendo
os costumes e prevenindo contra um novo desenvolvimento de abandonos e,
outras, tendentes a tornar realmente úteis todos esses seres abandonados e a
dar-lhes a capacidade de desempenhar um papel ativo” (Fodéré, 1825: 556
apud Donzelot, 1981: 61).
5. CONCLUSÃO
um discurso embasado em noções como moradia digna, relações e afetos familiares, sem um
prévio conhecimento destas opções?
Em sentido conclusivo, mais uma fundamental reflexão se faz necessária. Com o
suporte das palavras de Bazílio e Kramer (2003), indaga-se “como é possível pensar em
processo de reinserção, falar em reeducar, em estabelecimentos cujo objetivo é precisamente a
tutela, o controle dos tempos e corpos?” (p. 46).
97
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Zahar. 2008.
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relações de gênero e violência em grupos populares. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004,
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São Paulo: Cortez Editora, 2011, p.55-86.
98
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família e gênero 17, FAGES. Recife: Editora Universitária, 2011, p. 13-50.
SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya. 2017.
99
1. INTRODUÇÃO
2. ANTECEDENTES HISTÓRICOS
1 Natasha Atanasov Suruagy, advogada, graduada em Direito pelo Centro Universitário CESMAC, especialista
em Direito Processual Penal pela Universidade Anhanguera-Uniderp e especialista em Justiça Constitucional e
Tutela Jurisdicional dos Direitos Humanos pela Universidade de Pisa. Mestranda em direto pela Universidade
Católica de Pernambuco. E-mail para contato: natasha_suruagy@hotmail.com.
100
É neste cenário que, ainda nos anos 90, frente a uma aterradora realidade deflagrada
pela cidade mexicana de Juarez — na região da fronteira com os EUA —, que um profícuo
debate começou a ser desenvolvido sobre a figura do feminicídio na América Latina.
O posteriormente conhecido “Caso Algodonero” teve o começo da sua história traçada
após o desaparecimento de três mulheres entre setembro e outubro de 2001. Em novembro do
mesmo ano, os corpos de Laura Monárrez, Claudia González e Esmeralda Monreal, até então
desparecidas, foram encontradas assassinadas em um campo de algodão. As evidências
demonstram que foram vítimas de abusos sexuais e requintes de extrema crueldade; no entanto,
as investigações, desde o desaparecimento das jovens até as que sucederam suas mortes,
denunciavam graves inconsistências que comprometiam a elucidação dos casos.
O mais antigo, e, também, o mais conhecido caso de feminicídio, ganhou ainda mais
força e visibilidade após centenas de outras denúncias de desaparecimentos e assassinatos
vitimando mulheres virem à tona — de forma brutal, em grande parte dos casos — e não
receberem a devida atenção e tratamento por parte dos Estados Unidos Mexicano.
Em novembro de 2009, a comoção, pressão e repercussão internacional do caso
González e outras (“Campo Algodonero”) vs. México, culminou na sentença condenatória deste
Estado perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, alegando em seu teor que a
comissão estatal estava a contribuir com a cultura de violência de gênero e discriminação em
desfavor da mulher, com condutas ineficientes frente aos vários desaparecimentos e de forma
indiferente as investigações das vítimas dos crimes já consumados, violando, assim, diversos
dispositivos da “Convenção de Belém do Pará”.
A corte concluiu que desde 1993 existia em Ciudad Juárez um aumento de
homicídios de mulheres, havendo pelo menos 264 vítimas até o ano 2001 e
379 até 2005. Ainda assim, para além das cifras, sobre as quais a Corte observa
não haver firmeza, é preocupante o fato de alguns desses crimes parecerem
apresentar altos graus de violência, incluindo sexual, e que em geral foram
influenciados, tal como aceita o Estado, por uma cultura de discriminação
contra a mulher, que, segundo diversas fontes probatórias, incidiu tanto nos
motivos como na modalidade dos crimes, assim como na resposta às
autoridades diante deles (MELLO, 2016, p.49).
É importante destacar que a decisão proferida pela Corte Interamericana foi a primeira
a empregar oficialmente o termo feminicídio e, ainda, muito embora à demanda fosse
contenciosa, as partes convergiram no tocante a sua designação como forma de se referir à
produção de mortes de mulheres (PASSOS, 2015, p. 72). Vejamos:
Os representantes disseram que “os homicídios e desaparecimentos de
meninas e mulheres na Cidade de Juarez, são a máxima expressão da violência
misógina”, razão pela qual alegaram que esta violência se conceitua como
102
Neste mesmo contexto, Vera Andrade expõe que a sociedade patriarcal foi a grande
responsável por condicionar o sistema penal, para incorporar, reproduzir e, ainda, legitimar as
desigualdades relativas ao gênero feminino na sociedade, de modo que, tanto a estrutura quanto
o simbolismo do gênero passaram a atuar perante o sistema de justiça criminal.
Em seguida, com o advento da Constituição Federal de 1988 a luta em prol das
mulheres tem uma importante vitória formal, haja vista que a Carta Magna além de restaurar a
Democracia brasileira consagrou a tão desejada igualdade de gêneros, garantindo direitos
igualitários para homens e mulheres. Porém, em que pese essa conquista da figura feminina na
sociedade, posteriormente, a realidade mostrou-se bem diferente e distante do idealizado e
garantido no diploma legal.
Através da criação da Lei n.º 9.099, em 1995, que regulamentou os Juizados Especiais
Cíveis e Criminais, ficou evidenciado, por intermédio deste último e de indicadores oficiais
utilizados por ele, que 70% (setenta por cento) dos processos julgados eram de crimes de
violência em desfavor da mulher (CAMPOS; CARVALHO, 2006, p. 413).
Nesta esteira, ano a ano, os índices de casos de agressão às mulheres aumentavam
significativamente, o que não tardou a gerar críticas aos JECrims. Os Juizados Especiais
Criminais foram tachados de ineficazes, sob o argumento de que a aterradora realidade devia-
se ao tratamento leniente da lei com os agressores.
Neste ínterim, a violência contra mulher também passou a ter foco maior na mídia,
projetando crimes bárbaros de forma sensacionalista, vendendo o crime e, consequentemente,
produzindo um discurso legitimador do sistema penal, pois fomentava a necessidade de um
maior rigor punitivo para, assim, conter e reverter esse contexto social.
Desta feita, com a grande pressão política, principalmente das organizações feministas
e após cobranças internacionais por violações aos direitos humanos, e com o objetivo de
combater a desigualdade de gênero que desencadeia a violência doméstica e familiar do Brasil,
sancionou-se a Lei Maria da Penha.
A farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes foi mais uma vítima da violência
doméstica no país: o próprio marido tentou assassiná-la, primeiro com um tiro enquanto ela
dormia, deixando-a paraplégica e, depois de alguns dias, foi eletrocutada enquanto tomava
104
banho. Seu caso desencadeou uma comoção internacional não apenas em face da sua história,
mas, principalmente, pelo descaso ocorrido por parte do Governo Brasileiro. Nas palavras de
Dias (2008, p.14):
Essa é a história de Maria da Penha. A repercussão foi de tal ordem que o
Centro pela Justiça e o Direito Internacional – CEJIL e o Comitê Latino-
Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher – CLADEM
formalizaram denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da
Organização dos Estados Americanos. Apesar de, por quatro vezes, a
Comissão ter solicitado informações ao governo brasileiro, nunca recebeu
nenhuma resposta. O Brasil foi condenado internacionalmente em 2001. O
Relatório da OEA, além de impor o pagamento de indenização no valor 20
mil dólares em favor de Maria da Penha, responsabilizou o Estado brasileiro
por negligência e omissão em relação à violência doméstica, recomendando a
adoção de várias medidas, entre elas simplificar os procedimentos judiciais
penais a fim de que possa ser reduzido o tempo processual.
É dessa forma que o Brasil chegou a ocupar a 7ª posição das nações que mais matam
suas mulheres — 15,52 por dia, ou uma morte a cada 1h30 min (WAISELFISZ, 2012).
Então, nessa vereda de estatísticas alarmantes, com o intuito de aplacar os anseios
midiáticos e sociais, mais uma vez o Direito Penal é acionado dando origem à Lei n.º
13.104/2015, que em 09 de março de 2015 alterou o artigo 121 do Código Penal, enquadrando
no rol dos homicídios qualificados (pena de reclusão de 12 a 30 anos) a figura do feminicídio,
crime praticado contra a mulher por razões de gênero.
A tipificação da Lei do Feminicídio foi proposta pela Comissão Parlamentar Mista de
Inquérito (CPMI) da Violência contra a Mulher (2005), que:
105
A proposta originária da CPMI visava a uma política criminal que mais se aproximava
à demanda feminista de nominar a violência extrema contra mulheres, proporcionando os
menores danos decorrentes do acionamento do sistema penal. Contudo, o aumento de pena
contrariou o intento de apenas visibilizar a violência feminicida e ampliou a incidência do
sistema punitivo.
Para Larrauri (2008) é contraditório que se acuse o direito penal de ser um meio
patriarcal e se recorra a ele, pois, ao invés de contribuir para exintigui-lo, se contribui
diretamente para engrandecê-lo. Sendo assim, desconfiando da eficácia instrumental destes
novos ilícitos penais, outros grupos de mulheres atribuem a tal estratégia um uso simbólico do
direito penal.
Esta utilização simbólica termina por produzir vítimas reais. Nas palavras de Larrauri:
Finalmente, la utilización simbólica del derecho penal produce víctimas
reales. Pues las mujeres también saben perfectamente que sólo determinados
hombres son “clientes” del sistema penal. También en este ámbito el derecho
penal opera de forma seletiva y no castiga a “los” hombres sino,
fundamentalmente, a los hombres que no pertenecen a una determinada raza
y clase social.
[...]
Finalmente, no estimo necessário sugerir laintroducción de nuevos tipos
penales. Pienso que lasolución que se pretende conseguir puedealcanzarse
mediante otros médios alternativos. Tampoco considero adecuado que se
108
Ademais, apesar de novo, o referido diploma legal não é inovador, tendo em vista que
os crimes praticados contra a mulher, nas circunstâncias de ódio ao seu gênero, já eram
qualificados por motivo torpe e hediondo. Cabette (2015, p. 14):
O grande problema, que torna a lei enfocada mais um triste exemplo de um
Direito Penal meramente simbólico, totalmente inútil e demagógico, é o fato
de que o homicídio de uma mulher nessas circunstâncias sempre foi, desde
1940 com a edição do Código Penal Brasileiro, uma espécie de homicídio
qualificado. Nessa situação a qualificadora do “motivo torpe” estaria
obviamente configurada e a pena é exatamente a mesma, ou seja, reclusão, de
12 a 30 anos (vide artigo 121, § 2º, I, “in fine”, CP).
Insta esclarecer que o motivo torpe configura-se com a natureza vil, desprezível e
repugnante da conduta, uma motivação moralmente reprovável, o que por certo,
indubitavelmente, já se enquadrava no homicídio praticado por ódio de gênero. Em suma, o
crime que já era qualificado com base na torpeza e considerado hediondo continua o sendo,
possuindo, inclusive, a mesma pena em relação ao "novo" feminicídio.
109
Neste diapasão, Marília Montenegro aduz que o Direito Penal aparece sempre como
"a primeira grande solução", na qual se torna preciso penalizar, criar leis para acabar com a
impunidade. Idealizando-se no Direito Penal uma fórmula mágica, em que a criação de um tipo
penal fosse, ingenuamente, a solução de todos os males sociais. Contudo, a tipificação penal de
certas condutas aparece como uma forma de remendo para problemas arraigados na sociedade.
Tais alterações penais legislativas, perante os aumentos dos índices de criminalidade,
com o tempo demonstram-se meras medidas políticas inócuas. Este fenômeno, identificado pela
doutrina como Direito Penal Simbólico, surge como uma inflação legislativa que cria figuras
penais desnecessárias ou, então, recrudesce significativamente penas existentes. A esse
respeito, Marcelo Neves (1994, p. 37-39) afirma:
no Direito Penal, as reformas legislativas surgem muitas vezes como reações
simbólicas à pressão pública por uma atitude estatal mais drástica contra
determinados crimes. [...] Também em relação à escalada da criminalidade no
Brasil das duas últimas décadas, a discussão em torno de uma legislação penal
mais rigorosa apresenta-se como um álibi, eis que o problema não decorre da
falta de legislação tipificadora, mas sim, fundamentalmente, da inexistência
dos pressupostos socioeconômicos e políticos para a efetivação da legislação
penal em vigor. [...]A legislação-álibi decorre da tentativa de dar a aparência
de uma solução dos respectivos problemas sociais ou, no mínimo, da
pretensão de convencer o público das boas intenções do legislador. Como se
tem observado, ela não apenas deixa os problemas sem solução, mas, além
disso, obstrui o caminho para que eles sejam resolvidos.
Como bem observa Alessandro Baratta (1994, p. 22), vive-se um tempo da tecnocracia,
em que os poderes, a fim de se manter, costumam buscar agradar tal pretensamente opinião
pública, ao revés de solucionar, efetivamente, os problemas.
110
5. CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ONU. Declaração para a eliminação da violência contra mulheres. 1993. Disponível em:
<www.onu.org.br/>Acesso em: 11 nov. 2017.
GT 3
115
1. INTRODUÇÃO
1
Estudante de graduação do Centro Universitário Tiradentes (UNIT/AL).
2
Estudante de graduação do Centro Universitário Tiradentes (UNIT/AL). Membro do Grupo de Pesquisa
Biopolítica e Processo Penal. E-mail: laurabnepomuceno@gmail.com
116
É notório que, nos últimos anos, o rigor punitivista tem tomado forma no direito penal.
A criação de tipos penais que visam proteger a figura da vítima, como a Lei de Crimes
Hediondos, Lei Maria da Penha e Lei Carolina Dieckmann3 é “utilizada para fundamentar a
necessidade de mais rigor punitivo” (CIFALI; SANTOS, 2015, p. 273).
No Brasil, o senso comum que se tem do preso é de que ele é um ser indigno de
assistência, de atenção por parte do restante da população, visto que, se ele está na
penitenciária é porque mereceu e deve sofrer o máximo possível. Sobre essa visão punitivista
da população, Ana Claudia Cifali e Mariana Chies Santiago Santos exprimem que
verifica-se que os condenados são considerados merecedores do mal imposto
pela pena privativa de liberdade, ainda que conhecidas as condições
degradantes e os efeitos nocivos de nosso sistema carcerário (que permite a
consolidação das facções criminosas, a disseminação de doenças, etc.), e,
inclusive, prefeririam estar na prisão, caso esta oferecesse melhores condições
3
Não faz parte do objetivo do presente artigo analisar o mérito desses tipos penais, cabendo somente
utilizá-los como exemplos de um maior rigor punitivo utilizando a justificativa de proteção da vítima
117
Por fim, quanto à mortalidade, no primeiro semestre de 2014 foram registradas 565
mortes, sem contar com os dados de São Paulo e Rio de Janeiro (INFOPEN, 2014). O referido
estudo, discorrendo acerca do fato, profere que
cerca de metade dessas mortes podem ser consideradas mortes violentas
intencionais – excluídos os óbitos por motivo de saúde. As mortes por causas
naturais dentro das unidades devem ser analisadas de maneira diferenciada
da população em geral, pois os indivíduos estão sob custódia do Estado e
dependem deste para obtenção de qualquer espécie de atendimento de saúde.
A análise da mortalidade intencional permite uma comparação mais adequada
com os valores totais da população. A taxa de mortes intencionais no sistema
prisional é de 8,4 mortes para cada dez mil pessoas presas em um semestre, o
que corresponderia a 167,5 mortes intencionais para cada cem mil pessoas
privadas de liberdade em um ano. Esse valor é mais do que seis vezes maior
do que a taxa de crimes letais intencionais verificada no Brasil em 2013.
(INFOPEN, 2014, p. 115)
Como foi demonstrado no item anterior, o cárcere, desde uma perspectiva nacional,
encontra-se em uma situação degradante — superlotação, mortes violentas, epidemias de
doenças, entre outras enfermidades que assolam os presídios — e no Estado de Alagoas não
seria de modo distinto.
O sistema prisional Alagoano tem o total de 9 unidades (Penitenciária Masculina
Baldomero Cavalcante de Oliveira, Presídio de Segurança Média Professor Cyridião Durval e
Silva, Presídio do Agreste, Núcleo Ressocializador da Capital; Casa de Custódia da Capital,
Estabelecimento Prisional Feminino Santa Luzia, Centro Psiquiátrico Judiciário Pedro Marinho
Suruagy, Presídio de Segurança Máxima e a Penitenciária de Segurança Máxima) com uma
capacidade de 3.502 presas e presos.
119
população carcerária do Brasil foi reduzida para 622.202 (seiscentos e vinte e dois mil
duzentos e dois) presos.
O relatório mostra também que, à época da arguição, 41% (quarenta e um por
cento) dos presos eram provisórios, ou seja, pessoas que em sua maioria seriam absolvidas
ou teriam decretadas medidas cautelares diversas da prisão. Isso evidencia que quase a
metade dos encarcerados sequer são condenados por sentença que transitou em julgado,
e ainda assim submetem-se à tratamento degradante naquilo que o Ministro da Justiça,
José Eduardo Cardoso, comparou com "masmorras medievais".
A responsabilidade por essa situação não está concentrada em um só poder, e
por isso, para que seja solucionada é necessário uma atuação conjunta do Legislativo,
Executivo e do Judiciário. É importante salientar que, como afirma o Ministro Marco
Aurélio em sua fala como relator "Há dificuldades, no entanto, quanto a necessidade de
o supremo exercer função atípica, excepcional, que é a de interferir em políticas públicas
e escolhas orçamentárias. Controvérsias teóricas não são aptas a afastar o convencimento
no sentido de que o reconhecimento de estarem atendidos os pressupostos do estado de
coisas inconstitucional resulta na possibilidade de o Tribunal tomar parte, na adequada
medida, em decisões primariamente políticas sem que se possa cogitar de afronta ao
princípio democrático e da separação de poderes."
Nesta senda, aduz que, em se tratando de presidiários, há duas razões pelas quais
se explicam a intervenção do Supremo Tribunal Federal no que diz respeito à exigir
diligências dos outros poderes. A primeira é que o condenado por sentença penal
condenatória transitada em julgado perde seus direitos políticos, não podendo votar nem
ser votado, o que faz com que este perca sua a representação política direta, ficando
dependente da população votante para que escolha políticos que realmente se importem
com essa situação.
O segundo problema é que conforme apontou Ana Paula de Barcellos, os
cidadãos livres acreditam, recusando a dimensão ontológica da dignidade humana, que o
criminoso perde o direito à vida digna ou mesmo à condição humana, não sendo titular
de quaisquer direitos fundamentais (BARCELLOS, Ana Paula de. Violência urbana,
condições das prisões e dignidade humana. Revista de Direito Administrativo nº 254,
2010 [Biblioteca Digital Fórum de Direito Público]).
O ministro, no entanto, faz a ressalva de que essa intervenção deve ser moderada,
não cabendo ao Supremo definir o conteúdo das políticas públicas, por exemplo, nem
detalhar os meios que serão empregados, pois a capacidade dos poderes legislativo e
123
executivo deverão ser respeitadas, cabendo somente a coordenação para que estes saiam
da inércia que torna o Estado deficiente.
A discussão foi importante para que se debatesse acerca da dignidade humana
dos presidiários e da situação calamitosa em que se encontra o sistema carcerário,
contornando a triste realidade de que esse tema é um "ponto cego legislativo", ou seja, os
políticos evitam debatê-lo pelo receio de enfrentar as consequências de assumir um
posicionamento de preocupação em relação àqueles que cumprem suas penas.
Além da ADPF nº 347, o STF, no julgamento do Recurso Extraordinário com
Agravo nº 638.467 RS, em que teve como relator o Ministro Luiz Fux, e figuram como
partes: Vandrey Jardim de Quevedo (representado por Simone Jardim) e advogado Pedro
Paulo da Silva Fraga, reconheceu a existência de Repercussão Geral, afirmando que nos
casos em que há morte do presidiário, a responsabilidade do estado é OBJETIVA,
preceituando que: "o Estado tem o dever de zelar pela incolumidade dos detentos sob sua
custódia, cabendo a ele o ônus de indenizar a quem de direito pela morte de um
custodiado, ainda que decorrente de suicídio."
Ou seja, já que o Estado é o detentor do poder de punir, este deve oferecer todos
os meios para que o indivíduo que tem sua liberdade cerceada por um período de tempo
124
tenha garantida a sua condição de pessoa humana, com todos os direitos a ela inerentes,
como integridade física e moral, que engloba a saúde e segurança do reeducando.
Ressalte-se que há dois tipos de morte que acometem os encarcerados: morte
natural e morte violenta. A natural é decorrente de fatores endógenos, ou seja, do próprio
corpo, como consequência de doença ou velhice. Já a morte violenta é aquela que
acontece por fatores externos, como o homicídio ou um acidente de carro.
Vale salientar que para que o Estado seja responsabilizado pela morte do agente,
não é necessário que esta tenha sido violenta, ocasião em que o preso é assassinado por
algum companheiro de cela ou por algum agente do Estado, pois mesmo nos casos em
que o encarcerado vai a óbito pelo acometimento de alguma enfermidade, tem-se a
conclusão de que houve uma omissão estatal, ao precarizar o acesso à saúde, direito
fundamental desse.
Além da indenização a título de danos morais, em alguns casos a família do
falecido requer também que seja reconhecido o lucro cessante, ou seja, que lhe seja pago
mensalmente o valor que este auferia antes de ser preso, e que caso não tivesse sua vida
interrompida precocemente, poderia continuar a contribuir com o sustento de sua família
após obter novamente sua liberdade.
O Poder Judiciário do Estado de Alagoas tem se pronunciado nesse sentido, a
partir dos julgados que passaremos a analisar:
Em junho de 2013, nos autos do processo nº 0716939-
92.2013.8.02.0001, a Sra. Andreia Oliveira da Silva pleiteou
indenização pela morte de seu companheiro, Sr. Jaime Alexandre
Barboza Filho, que faleceu por ter sido eletrocutado por um fio
desencapado que estava dentro de sua cela. É importante salientar que
antes da prisão este era o responsável pelo sustento do lar, e que, após
ter progredido de regime (do regime fechado para o semiaberto) estava
trabalhando e estudando, razão pela qual gerou expectativa na autora de
que este voltasse ao convívio familiar e pudesse novamente trabalhar e
contribuir com o sustento da família. (GOVERNO DE ALAGOAS,
2013)
aproximadamente 2/3 de um salário mínimo, que era revertido para o sustento de sua
família. Por esta razão, a autora pleiteou, além da indenização por danos morais, uma
indenização mensal na quantia equivalente ao que o custodiado auferia antes de ser preso
até que este completasse 65 anos de idade.
Em sede de contestação, o Estado, na pessoa de seu procurador, afirmou culpa
exclusiva da vítima e responsabilidade subjetiva do Estado, bem como ausência de
comprovação da dependência econômica da Sra. Andreia em relação ao seu companheiro.
O magistrado julgou parcialmente procedentes os pedidos autorais, concedendo
a indenização à título de indenização por danos morais no montante equivalente a R$
30.000,00 (trinta mil reais), e julgando improcedente o pedido à indenização por danos
materiais, no caso em tela, os lucros cessantes (que é o que a vítima deixou de receber)
pois o magistrado entendeu que não havia comprovação de que este contribuía para o
sustento de sua prole. O processo está em fase recursal, razão pela qual não há, ainda,
sentença transitada em julgado.
O segundo processo a ser analisado é do ano de 2017, após o deferimento de
algumas das medidas liminares pleiteadas pelo PSOL. Por meio dos autos nº 0702956-
21.2017.8.02.0001, a Sra. Maria Madalena dos Santos e seu filho Manoel Lopes
Nascimento Filho, ajuizaram ação pleiteando indenização por danos morais em
decorrência da morte do menor Walisson Lopes do Nascimento, filho e irmão mais novo
dos autores, respectivamente.
No caso de Walisson, a 1º Vara de da Infância e Juventude de Maceió decidiu
que este deveria ficar internado provisoriamente durante 45 (quarenta e cinco) dias pela
suspeita de porte de substâncias ilícitas. Ocorre que a unidade em que se recolhem esses
menores estava superlotada, o que fez com que o menor fosse entregue ao secretário da
SEPREV (Secretaria de Estado de Prevenção à Violência) para que esse tomasse as
devidas providências, com a ressalva de que Walisson deveria ficar em acautelamento
especial.
Como consequência, este foi levado à unidade de internação masculina, prédio
que hoje não funciona mais devido à precariedade de sua estrutura. Após 40 (quarenta)
dias de internamento lá, no dia 16 de Junho de 2016 este foi transferido para o Complexo
de Unidades de Internação Masculina da Capital, que havia sido inaugurado no mesmo
ano.
Uma semana após ter sido posto neste local pelo próprio Estado, na data de 24
de junho de 2016, enquanto almoçava o menor foi capturado por outros internos e levado
126
até uma cela, ocasião em que fora covardemente espancado por várias pessoas e sem
interferência dos agentes penitenciários, que demoraram a perceber o que ocorria. Ao ser
levado ao HGE - Hospital Geral do Estado, constatou-se que este havia sofrido
traumatismo craniano e facial, bem como lesões na coluna que poderiam levá-lo à
tetraplegia.
Após semanas na UTI, o menor permaneceu internado porém em estado
vegetativo, sem falar, se locomover e se alimentar. Em virtude do longo tempo em que
ficou deitado, sem que recebesse o devido tratamento, este desenvolveu escara sacral, que
é uma lesão na pele pela falta de irrigação no sangue. O que evidencia a deficiência de
assistência do Estado não só na promoção à saúde e segurança dentro dos presídios, como
também no tratamento de pessoas que sofrem graves danos nesses locais.
O sofrimento da família aumentou quando recebeu a notícia de que seria
realizada a cirurgia de gastrostomia e logo após este receberia alta, pois não havia mais
nada que o hospital pudesse fazer, ficando todos os cuidados a encargo da família, que
não possuía condições de manter-se e custear o tratamento deste. Ocorre que, em 10 de
outubro do mesmo ano o menor, Walisson faleceu, vítima do evidente descuido estatal
com as vidas que estão sob sua tutela.
Em sentença, a primeira parte enfrentada foi a questão da legitimidade ativa da
ação, senão vejamos: O artigo 12, parágrafo único do Código Civil, aduz, in litteris:
Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da
personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras
sanções previstas em lei.
Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para
requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou
qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau. (BRASIL,
2002)
Neste ínterim, o juiz entendeu que a expressão OU indica uma hierarquia entre
as pessoas indicadas no parágrafo único do referido artigo, ou seja, os parentes de linha
reta ou colaterais até o quarto grau são subsidiários ao cônjuge sobrevivente, não há
cumulatividade das pessoas elencadas naquele. Sendo assim, excluiu o irmão do falecido
do polo ativo da ação, razão pela qual permaneceu somente a Sra. Andreia, que obteve
sentença favorável à sua pretensão, sendo deferido o pedido de indenização por danos
morais no montante equivalente à R$ 30.000,00 (trinta mil reais).
Vale salientar que tanto a parte autora quanto a parte ré apelaram da referida
sentença, a primeira por acreditar ter sofrido dano cuja indenização deveria ser deferida
em valor maior ao arbitrado, e o segundo (Estado) por acreditar que a responsabilidade
127
nesses casos é subjetiva e não ter havido a comprovação de culpa sobre a morte do
menor.
Ao analisar o aspecto material e processual dos processos acima indicados,
percebe-se que a grande discussão gira em torno da natureza da responsabilidade do
Estado nos casos em que há morte de algum indivíduo que está sob sua tutela.
A parte autora baseia-se no Art. 37, § 6 da Constituição Federal, aduzindo que a
responsabilidade estatal é OBJETIVA, com fulcro também ao posicionamento do
Supremo Tribunal Federal (Recurso Extraordinário nº 590939) e do Superior Tribunal
de Justiça:
PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE
INDENIZAÇÃO AJUIZADA PELA GENITORA DA VÍTIMA
MENOR DE IDADE FALECIDA EM DELEGACIA POLICIAL.
DANOS MATERIAIS E MORAIS. RESPONSABILIDADE CIVIL E
OBJETIVA DO ESTADO – ART. 37, § 6º DA CF/88.
RESPONSABILIDADE SUBJETIVA DA POLICIAL MILITAR –
CONDENADO O ESTADO DO AMAZONAS AO PAGAMENTO
DA PENSÃO MENSAL DE UM SALÁRIO MÍNIMO MENSAL,
ATÉ A DATA EM QUE A VÍTIMA ALCANÇARIA A
PROVÁVEL IDADE DE 65 (SESSENTA E CINCO)
ANOS.CONDENAÇÃO EM QUANTUM RAZOÁVEIS DANOS
MORAIS. RAZOABILIDADE NA FIXAÇÃO DE HONORÁRIO
ADVOCATÍCIOS EM 10% (DEZ POR CENTO).
RECONHECIMENTO DA PROCEDÊNCIA DE DENUNCIAÇÃO À
LIDE. MANTIDO OS DEMAIS TERMOS DA R. DECISÃO DE 1º
GRAU” (fl. 255). [...] Não merece prosperar a irresignação, uma vez
que a jurisprudência desta Corte firmou entendimento de que o
Estado tem o dever objetivo de zelar pela integridade física e moral
do preso sob sua custódia, atraindo então a responsabilidade civil
objetiva , razão pela qual é devida a indenização por danos morais e
materiais decorrentes da morte do detento. (Grifo nosso)
causalidade entre o dano e a omissão estatal, alegando que no caso do menor Walison, a
morte se deu por ação de terceiros, que nada tem a ver com o Estado.
Em que pese as sentenças que dizem respeito ao deferimento do pleito por danos
morais tenham sido, em sua maioria, procedentes, no que concerne ao pedido de danos
materiais, em que não raras vezes são fixados valores a serem pagos mensalmente até a
data em que o falecido completaria 65 (sessenta e cinco) anos de idade, o juízo cível do
Estado de Alagoas exige uma carga probatória maior. Neste caso, tem-se a necessidade
da demonstração de efetiva dependência econômica do falecido, não sendo suficiente a
expectativa dos valores que este poderia vir a auferir quando estivesse em liberdade.
Além da responsabilidade de garantir a integridade física do agente, o Art. 5º,
inciso XLIV da Constituição Federal protege também a integridade moral. É importante
mencionar que em decorrência das condições insalubres e de extrema desídia com que os
encarcerados são tratados resultam em danos psicológicos sérios, o que, se não for
devidamente tratado, pode acarretar suicídio. Neste sentido, o Superior Tribunal de
Justiça tratou acerca do tema no julgamento do RESP 847.687/GO, ao firmar que mesmo
nos casos de suicídio, não se pode ser afastada a responsabilidade objetiva do Estado,
conforme anexo:
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. ACLARATÓRIOS NO
RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO
ESTADO. DETENTO MORTO APÓS SER RECOLHIDO AO
ESTABELECIMENTO PRISIONAL. SUICÍDIO. OMISSÃO
RECONHECIDA. EXISTÊNCIA DE NEXO DE CAUSALIDADE.
PRECEDENTES DO STJ E DO STF. EMBARGOS DE
DECLARAÇÃO ACOLHIDOS SEM EFEITOS MODIFICATIVOS.
[...] é de se ressaltar que, no caso em concreto, a relação que deve ser
estabelecida é entre o fato de ele estar preso sob a custódia do Estado.
Conforme muito bem ressaltado pela Exmo. Senhor Ministro TEORI
ALBINO ZAVASCKI em seu voto relativo ao recurso especial nº
847.687/GO, "o Estado tem o dever de proteger os detentos,
inclusive contra si mesmos. Não se justifica que tenha tido acesso a
meios aptos a praticar um atentado contra sua própria vida. Os
estabelecimentos carcerários são, de modo geral, feitos para
impedir esse tipo de evento.Se o Estado não consegue impedir o
evento, ele é o responsável".(REsp 847.687/GO, Rel. Ministro JOSÉ
DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 17/10/2006, DJ
25/06/2007). Precedentes do STJ e do STF. 3. Portanto, no caso em
concreto, embora afastada pelo Tribunal a quo, é inegável a presença
do nexo de causalidade a autorizar a responsabilização civil do ente
público pela morte do detento em virtude de suicídio. [...] (Grifo
Nosso).
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sabe-se que ainda há um longo caminho a se percorrer para impedir que esse
tipo de morte aconteça, e que o primordial é diagnosticar a causa da superlotação dos
presídios, pois este é um dos principais problemas que assolam o sistema penitenciário
brasileiro, tendo em vista que, decorrente dele, há a disseminação de doenças, bem como,
a grande quantidade de integrantes de gangues rivais dividindo um mesmo módulo, uma
mesma cela, nas penitenciárias.
O investimento em educação e políticas públicas é extremamente importante
para impedir que mais indivíduos sejam criminalizados, de mesmo modo, a utilização de
mecanismos como as medidas alternativas à pena privativa de liberdade ou, até mesmo,
a descriminalização de determinados crimes, sejam possibilidades viáveis para a
diminuição do encarceramento em massa que está ocorrendo atualmente no cenário
brasileiro.
Ademais, concomitantemente à instauração desses mecanismos, faz -se
necessário que o judiciário se posicione no sentido de punir o Estado por sua omissão em
relação aos indivíduos que estão sob sua tutela, o que (se espera) trará um maior cuidado
por parte deste em relação aos seres humanos que tem direito de cumprir sua pena de
forma digna e tendo seus direitos fundamentais respeitados.
Ressalta-se que esse esforço analítico não busca esgotar o tema abordado, que
precisa ser explorado e debatido por todos, devido às proporções que tanto o
encarceramento em massa quanto as mortes ocorridas dentro das penitenciárias geram
não só para quem está aprisionado como também para seus familiares e à população em
geral.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BITENCOURT, CEZAR ROBERTO. Tratado de direito penal : parte geral 1. 23. ed.
re.v, ampl. e atual. – São Paulo : SaraiavA, 2017.
<https://www.academia.edu/33429506/MORTOS_NOS_C%C3%81RCERES_DE_AL
A
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%A3o_de_morte_no_Biopoder>. Acesso em: 02 jul 2017