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Texto 6A:
SCOTT, James C. “A domesticação do fogo, das plantas, dos animais e de nós mesmos”.
In: Against the Grain. Yale University Press, 2017, p.37-63 [traduzido por José Knust]
A Amazônia, por muito tempo, foi tida como uma Já no início da era cristã, aparecerem as primeiras
região apenas periférica e receptora de inovações oriundas aldeias notadamente duradouras, ocupando territórios
da Mesoamérica e dos Andes (...) [, imagem determinada relativamente grandes e densamente povoados: são os
por] por uma visão de que o ambiente amazônico, famosos cacicados amazônicos. As evidências
principalmente o solo, seria impróprio para sustentar o arqueológicas da formação dessas sociedades advêm da
desenvolvimento de populações humanas sedentárias e construção de aterros monumentais (...). É também notável
socialmente complexas. (...) a presença de grandes estruturas defensivas em antigas
No rastro dessa mesma lógica, [a arqueóloga norte- aldeias (...). Interessantemente, os primeiros exploradores
americana Betty] Meggers também defendia que a porção amazônicos a descerem os principais rios da região ainda
noroeste da América do Sul, com cerâmicas datadas em nos séculos XVI e XVII, relataram a presença de grandes
4.000 a.C., seria o único grande centro de origem das duas aldeias da ordem de milhares de pessoas. (...)
grandes inovações no continente: a agricultura e a Além da manipulação de plantas através da
cerâmica. Entretanto o cenário tornou-se mais complexo domesticação e diversificação de variedades, na
quando a arqueóloga norte-americana Anna C. Roosevelt, Amazônia – assim como em outros biomas do planeta –
da Universidade de Illinois (Estados Unidos), apresentou populações humanas têm também alterado de forma
aquelas que viriam a ser [identificadas como] as cerâmicas significativa as condições ambientais em que vivem. Tais
mais antigas do continente, datadas em 5.000 a.C. (....) e processos em geral, resultam em uma maior produtividade
7.000 a.C. (...), ambas [encontradas] no baixo rio dos ecossistemas para essas populações, bem como novas
Amazonas (Pará). (...) feições geográficas na paisagem, muitas vezes bastante
Além disso, hoje é sabido que a Amazônia é um centro distintas daquelas tidas como naturais. De fato, para
independente de domesticação no Novo Mundo. (...) muitos autores, (...) tais alterações ambientais configurar-
[Estima-se] em 138 o número de espécies botânicas sob se-iam como uma outra forma de domesticação, a da
algum grau de domesticação na região à época da chegada paisagem. (...)
dos colonizadores europeus no Novo Mundo. Nesse Na Amazônia, evidências de transformações antrópicas
cenário, a planta de maior importância dietética para as na paisagem remetem aos primórdios da ocupação
populações pretéritas parece ter sido a mandioca (...). Os ameríndia estendendo-se até o período histórico mais
estudos arqueológicos mostram que tanto a mandioca recente da região. Adicionalmente, a partir de estudos
quanto a pupunha, assim como o amendoim e a pimenta recentes, está cada vez mais claro que a Amazônia, há
Capsicum chinense, devem ter sido domesticadas no muito retratada como um “mar de florestas pristinas ou
sudoeste da Amazônia, na região do alto rio Madeira, onde intocadas”, seria, em parte, resultado da manipulação
hoje localiza-se o Estado de Rondônia. Interessantemente, humana ao longo de milênios. Paralelamente, também tem
essa também é a região da provável origem do tronco se considerado a hipótese de que as antigas populações
linguístico Tupi, além de ser uma das poucas áreas na humanas na região teriam investido tanto ou mais na
Amazônia com evidências claras de ocupação humana modificação de paisagens do que na própria manipulação
contínua ao longo de todo o Holoceno. (...) Quanto à de plantas e animais em particular. A “terra preta de índio”
antiguidade da domesticação, tanto a mandioca quanto o seria, para muito, um exemplo típico desse processo de
amendoim e a pimenta datam desde pelo menos 6.500 a.C. incremento do ambiente. Trata-se de um solo formado a
(...). partir do acúmulo de restos orgânicos de ocupações
O fato de as maiores populações pré-colombianas já humanas pretéritas (...).
registradas na Amazônia terem surgido bem depois, e em Além disso, formas mais sutis de alteração humana do
regiões distantes dos seus principais centros de ambiente também estão presentes, como é o caso da
domesticação, é também um dado interessante no contexto formação de matas secundárias, chamadas de “florestas
da arqueologia da região. Entretanto, a histórica das culturais” (...). Essas matas são resultado principalmente
sociedades amazônicas antigas parece não ter sido linear, de formas tradicionais de agricultura praticadas nos
mas cíclica, muitas vezes pendendo entre estruturas trópicos, como a de corte-e-queima (ou coivara) (...). O
sociais mais ou menos complexas ao longo de suas processo de ocupação humana da Amazônia também
trajetórias. (...) Adensamento populacional e maior legou ao seu ambiente alterações na distribuição natural de
complexidade social são algumas dessas mudanças, muitas espécies vegetais não domesticadas. (...)
observadas em várias regiões da Amazônia. (...) Em [Pesquisas] têm evidenciado cada vez mais verdadeiras
síntese, podemos constatar que desde aproximadamente “ilhas de recursos” em paisagens amazônicas associadas à
1.000 a.C. surgem as primeiras sociedades a ocupação humana histórica e pré-histórica da região. A
desenvolverem sistemas agrícolas de natureza intensiva na castanha do Pará e algumas palmeiras como o babaçu, a
região. Nesse processo, a entrada do milho, importado da pupunha, o tucumã e o açaí ilustram bem esse
Mesoamérica (ou dos Andes), pode ter representado um adensamento artificial de espécies conduzido pela mão
complemento importante no repertório dietético da região. humana.
(...).