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Clive Ponting

UMA HISTORIA VERDE


/tl '°• Cfr £3 l DO MUNDO

Tradução de
Ana Zelma Campos

civilização brasileira
Noventa e Nove por Cento
da História Humana

Com exceção dos últimos poucos milénios de seus dois mi-


lhões de anos de existência, os seres humanos obtiveram
sua subsistência através de uma combinação de fatores, tais
como o acúmulo de géneros alimentícios e a caça de ani-
mais. Em quase todos os casos, as pessoas viviam em grupos
pequenos e nómades. Sem a menor dúvida, esse foi o meio
de vida mais flexível e bem-sucedido já adotadopelos seres
humanos, o que menos males causou aos ecossistemas
naturais. O nomadismo deu aos humanos a possibilidade
de se espalharem por todos os ecossistemas terrestres e a de
sobreviverem não somente em áreas favoráveis, com fácil
obtenção de alimentos, mas também nas condições rigoro-

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sãs do Ártico, da tundra da era glacial europeia e nas terras modernos, designados em um rasgo de imensa auto-lisonja
Secas e marginais da Austrália e do sul da África. de Homo sapiens, são encontrados no leste e no sul da África.
As origens e o desenvolvimento inicial dos seres huma- Já por volta de 30.000 anos passados, tipos humanos comple-
nos é de seus ancestrais imediatos têm que ser deduzidos de tamente modernos (Homo sapiens sapiens} estavam espa-
evidências muito escassas, geralmente de remanescentes fós- lhados por todo o mundo.
seis de partes de esqueletos, às vezes tão pequenas quanto Os mais antigos seres humanos parecem ter existido em
uma mandíbula ou um dente, sendo a interpretação conse- grande variedade de hábítats, localizados dentro de um cin-
qúentemente muito difícil O que não surpreende que esse turão de regiões tropicais e semitropicais, que se estendiam
tópico desperte grandes controvérsias entre especialistas e da Etiópia à África do Sul. A população era pequena, es-
que vários esquemas conflitantes tenham sido dispostos para cassamente espalhada, vivendo em grupos que provavel-
explicar a natureza de determinados fósseis e a relação exis- mente dependiam principalmente da colheita de nozes, se-
tente entre eles. O fato de que os vestígios tenham, até agora, mentes e plantas, que suplementariam com restos de animais
sido encontrados somente em poucas regiões do mundo, mortos por outros predadores e talvez pela caça de alguns
principalmente no leste e no sul da África, naturalmente in- mamíferos pequenos. E foi essa forma básica de subsistência
fluenciou as explicações da possível origem geográfica dos — colheita e caça — que iria durar como forma de vida dos
ancestrais humanos e seu desenvolvimento. seres humanos, até o desenvolvimento da agricultura há a-
Fósseis encontrados de aproximadamente um milhão e proximadamente 10.000 anos atrás.
meio ou dois milhões de anos, e chamados de Homo erectus, A colheita e a caça como meios de vida estão agora
foram reconhecidos como sendo os ancestrais diretos dos restritas a um pequeno número de grupos no mundo, tais
seres humanos modernos. Mas vestígios fósseis mais antigos como os boximanes do sudoeste da «wt__,—,^^,_.___
África, alguns erupos^~™-—
de
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revelam evidências de certas "características humanas", no- pigrnejis c^Jloxestas_equaton
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tadamente a postura ereta (por volta de 3,5 milhões de anos) ca oriental, alguns grupos da índia e do sudoeste da Ásia,
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e a feitura de ferramentas ligadas aos primeiros instrumentos


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alguns aboríginesjia AustráUa,..algunsJnuif do Ártico e ps


de pedra, de aproximadamente 2 milhões de anos. A ca- hãEnfãnfêFnãtiyos das florestas tropicais da América do Sul.
racterística peculiar do Homo erectus é um cérebro maior, de Atualmêrfte, esses grupos ocupam hábitats essencialmente
l.lOOg (mais ou menos três quartos dá capacidade do cérebro marginais, tendo sido gradualmente postos de lado pelo
humano atual). Surgiram possivelmente na África, embora se avanço da agricultura. Dois terços dos inuit viviam original-
o esqueleto encontrado em Java estiver corretamente datado, mente em um clima muito mais ameno no sul do Círculo
de aproximadamente 1,9 milhão de anos, essa teoria terá que Ártico, enquanto que os aborígines costumavam viver prin-
ser revista e possivelmente será descoberto que houve muito cipalmente nas regiões produtivas do leste da Austrália e não
menos quantidade de trabalho arqueológico sobre as origens nos desertos centrais e do norte. A visão comumente aceita
dos seres humanos no sudeste da Ásia do que na África da sobrevivência de colheita e caça é a de que elas produzem
oriental. As evidências arqueológicas disponíveis sugerem um tipo de vida que é, para citar Thomas Hobbes, "desagra-
que eles sobreviveram até aproximadamente 100.000 anos dável, irracional e curta". Novos estudos antropológicos fei-
passados, quando os primeiros esqueletos anatomicamente tos nos últimos trinta anos, sobre grupos existentes e que

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sobrevivem de colheita e caça, forneceram uma visão fas- vive com muito poucos recursos, porque suas necessidades
cinante de como os seres humanos viveram durante a maior são poucas e urna quantidade extra desses mesmos bens seria
parte de sua história e como estavam integrados no meio um estorvo para a sua forma nómade de vida. Itens como
ambiente. Esses estudos enfatizaram o meio relativamente ferramentas de caça e utensílios para cozinhar não têm o
fácil pelo qual poderia ser extraído o alimento suficiente do menor valor, porque podem ser facilmente substituíveis por
que teria sido um ecossistema muito mais produtivo do que materiais disponíveis no local. O padrão de vida varia duran-
os que são atuaímente ocupados por esses mesmos grupos. te o ano, dependendo da disponibilidade sazonal dos dife-
Paralelamente a essas descobertas, houve uma revolução no rentes tipos de alimentos. Vivem, na maior parte do tempo,
pensamento arqueológico e nas técnicas de investigação dos em pequenos grupos de mais ou menos 25 ou 30 pessoas,
vestígios dos seres humanos primitivos. Em lugar de coletar juntando-se em grupos maiores para a prática de rituais,
grandes números de instrumentos de pedra e tentar classifi- casamento e outras atividades sociais, no momento em que
cá-los dentro de "culturas" tendo como base as diferenças as fontes alimentares permitem a reunião de um grupo maior
marginais, na forma pela qual foram feitos ou pela compara- de pessoas em um mesmo lugar. Dentro do grupo não existe
ção dos diferentes tipos de instrumentos encontrados em o conceito de propriedade em relação aos alimentos, que são
locais diferentes, os arqueólogos resolveram adotar urna encarados como disponíveis a todos. Não existe a estocagem
abordagem muito mais sofisticada. Nesse caso, a ênfase é dos alimentos, porque isso interferiria na mobilidade do gru-
dada à tentativa de compreensão, usando frequentemente po e porque sua experiência ensina que alguns alimentos
grupos contemporâneos como exemplos, que instrumentos estarão sempre disponíveis, mesmo quando ocasionalmente
lhes seriam apropriados, que atividades eram realizadas nos certos itens estejam em falta.
diferentes locais, como os grupos humanos exploravam seu Os boximanes do sudoeste da África ilustram a facilida- J/
meio ambiente de formas diferentes para obter alimento e de que esses grupos de colheita e caça possuem na obtenção
como seus deslocamentos sazonais estavam integrados nesse de alimento suficiente. O prato forte de sua dieta é a noz do
padrão absoluto. mongongo, altamente nutritiva, obtida de uma árvore que
O que surge dessas novas abordagens é uma visão mui- resiste muito bem às secas. É uma fonte alimentícia muito
to mais positiva dos grupos que vivem da colheita e da caça. segura, que se mantém por mais de um ano. Contém 5 vezes
No geral, os colhedores e caçadores não vivem sob a ameaça as calorias e 10 vezes a quantidade de proteína de uma quan-
constante de morrer de fome. Pelo contrário, eles seguem tidade equivalente de cereais e 250g (aproximadamente 300
uma dieta adequada nutricionalmente, selecionada de um nozes) têm a mesma quantidade de calorias de 1.250g de
grande círculo de recursos alimentares disponíveis. Essa arroz cozido e as proteínas de quase 500g de carne de vaca,
grande variedade alimentar é, normalmente, somente uma Além disso, existem 84 espécies diferentes de plantas alimen-
pequena proporção da quantidade total de alimento dispo- tícias, enquanto que os boximanes normalmente usam so-
nível no meio ambiente. Conseguir a comida e outras formas mente 23 delas. Existem 54 espécies de animais comestíveis e
de trabalho ocupa somente uma pequena parte do dia, dei- somente 17 são caçados regularmente. Comparada com os
xando uma grande quantidade de tempo livre para o lazer e níveis recomendados de nutrição moderna, a dieta dos boxi-
para as atividades cerimoniais. A maioria dos grupos sobre- manes é mais do que adequada: o consumo de calorias é mais

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l elevado, o de proteínas é de um terço a mais e não existem
nem sinais de doenças causadas por deficiência alimentar. A
quantidade do esforço necessário para a obtenção desses ali-
mentos não é muito grande — em média, dois dias e meio
por semana. O trabalho envolvido mantém-se estável ao lon-
No início deste século, a tribo Siane da Nova Guiné resolveu
adotar machados modernos de aço em lugar de seus tradi-
cionais instrumentos de pedra. Isso reduziu a quantidade de
tempo necessário para a provisão de um nível adequado de
subsistência em um terço. O novo tempo extra não foi utili-
go do ano (diferentemente da agricultura) e exceto pela época zado para aumentar a produção, mas dedicado às cerimó-
do auge da estação seca, a busca do alimento raramente exige nias, lazer e operações militares. De forma semelhante, no
viagens de mais de 9km por dia. Mulheres e homens devotam Brasil do século dezesseis, os portugueses descobriram que
a mesma quantidade de tempo para obter os alimentos, mas as tribos indígenas, se não fossem escravizadas, trabalhariam
as mulheres, que são responsáveis pela colheita, coletam duas somente até ganhar o suficiente para comprar ferramentas
vezes mais alimentos do que os homens conseguem caçar. As de metal e depois queriam usufruir do seu lazer. , í
mulheres geralmente trabalham de uma a três horas por dia Geralmente, os grupos de colheita e de caça vivem prin-
e passam o resto do tempo em atividades de lazer. A caça, que cipalmente da colheita. A caça é uma atividade difícil e arris-
é realizada pelos homens, é mais intermitente, envolvendo cada, com poucas recompensas periódicas, na melhor das
talvez uma semana de caçadas, seguida por duas ou três hipóteses. Estudos sobre os principais carnívoros em ecossis-
semanas de ausência total de atividade. Aproximadamente temas (cujo papel o homem está tentando adotar quando
40 por cento do grupo não representa qualquer papel na caça) demonstram que eles só conseguem matar uma vez em
obtenção de comida. Uma entre dez pessoas tem mais de cada dez tentativas. Os seres humanos, mesmo quando têm
sessenta anos e é tratada como membro respeitado do grupo alguma ajuda da tecnologia, estão muito menos adaptados a
e não se espera que os jovens cacem antes de se casar, o que essa função do que os leões ou os tigres e têm possibilidades
acontece aos vinte anos para as mulheres e vinte e cinco para ainda menores de conseguir mesmo os níveis menores de
(N os homens. Os mesmos padrões foram encontrados entre os sucesso. Nos grupos primitivos que sobreviviam da colheita
Hadza da África oriental e os aborígines da Austrália. e da caça, que operavam com lanças razoavelmente primiti-
Todos esses grupos foram empurrados para áreas de vas, além dos arcos e das flechas, é provável que a maior parte
subsistência marginal e, portanto, podemos supor que, quan- da carne de sua dieta tenha vindo de restos de animais caça-
do grupos semelhantes podiam viver em lugares onde exis- dos por outros predadores. Nas regiões equatoriais e tropi-
tiam fontes mais abundantes, a colheita teria sido muito mais cais, a caça raramente contribui com mais de um terço da
fácil. Na verdade, muitos grupos contemporâneos deixam de dieta do grupo. Os ecossistemas que ficam mais afastados do
perceber as atrações da agricultura, com sua carga muito equador são menos produtivos e, conseqúentemente, a plan-
maior de trabalho. Como disse um boximano a um antropó- tação disponível para sua alimentação precisa ser suplemen-
logo, "Por que deveríamos plantar quando existem tantas tada frequentemente, através da tarefa que consome um tem-
nozes de mongongo pelo mundo?" O tempo de lazer é muito po muito maior, a pesca. Os grandes pastos apresentam
valorizado, os boximanes preferem-no a aumentar suas fon- problemas maiores para esses grupos conseguirem achar ali-
tes de suprimentos (que já são mais do que suficientes) ou em mentos, por causa da ausência de uma vegetação adequada
produzir mais bens materiais (que podem ser um estorvo). para o consumo humano, acrescida da dificuldade em caçar

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os grandes rebanhos de animais de pasto. A caça apresenta grandes grupos de pessoas que as colhem juntas durante esse
um fator preponderante na alimentação somente nas regiões período, para os cerimoniais e acontecimentos religiosos e
Articas, com sua quase que total falta de vegetação adequada sociais. Só existe um pequeno período de escassez real de
para o consumo humano. Não é nada fácil encontrar alimen- alimentos, o que acontece antes da estação chuvosa e quando
tos em quantidades suficientes nessas regiões e a sobrevivên- a subsistência depende de raízes e plantas menos favo-
cia exige muita habilidade e esforço, para que os recursos recidas. . —
limitados disponíveis possam ser usados. Um exemplo de forma extrema de adaptação a um meio" '-./
Para obter a subsistência necessária, os grupos de co- ambiente agreste que influencia todas as formas de vida eco-
lheita e de caça dependem de um conhecimento profundo nómica e social é fornecido pelos Netsiliklnuit, que vivem ao
de suas regiões e, em particular, de um conhecimento dos norte e a oeste da Baía do Hudson, no Canadá, e que foram
tipos de alimentos que estarão disponíveis em diferentes lu- estudados durante os anos 20, antes que tivessem qualquer
gares e épocas do ano. Seu modo de vida gira em torno das contato real com a tecnologia moderna. Seu modo de vida
grandes mudanças sazonais nos métodos de subsistência e dependia de uma exploração cuidadosa de cada parte de seu
os padrões da organização social são integrados a essas mu- meio ambiente. As casas e as instalações para armazenamen-
danças. Povos contemporâneos que ainda vivem da colheita to eram feitas de neve e gelo. As roupas, os caiaques, os trenós
e da caça ilustram, mais uma vez, como os grupos históricos e as tendas eram feitos com o pêlo dos animais caçados, cujos
teriam se adaptado às suas condições particulares. Os boxi- ossos forneciam os instrumentos e as armas. Os utensílios de
manes do sudoeste da África vivem em um meio ambiente cozinha eram feitos de pedra. O ciclo sazonal de atividades
relativamente homogéneo, mudando-se umas cinco ou seis relativas à subsistência era muito variado. Durante o inverno,
vezes por ano, mas nunca viajando além de quinze ou vinte os Netsilik eram totalmente dependentes da caça da foca. Um
quilómetros de cada vez, fazendo viagens mais longas so- grande número de caçadores ficava a postos nos numerosos
mente em ocasiões sociais, tais como os casamentos. Os abo- buracos feitos no gelo pelas focas para respirar, Consequen-
rígines Gidjingali, do norte da Austrália, têm um ciclo sazonal temente, era a época do ano em que imensos grupos sociais
de exploração nítido e variado. Na estação úmida, quando os juntavam-se em grandes comunidades que viviam em iglus
pântanos estão cheios, eles se alimentam de nenúfares —os e que participavam das atividades religiosas e cerimoniais
caules são comidos crus, as sementes são transformadas em mais importantes do ano. Os grandes acampamentos de in-
bolos não fermentados e os bulbos são cozidos. No início da verno fragmentavam-se em pequenos grupos que viviam em
estação seca, mudam-se para uma região onde podem ser tendas, a partir de junho, quando era possível caçar as focas
encontrados grandes inhames, pois os tubérculos são fáceis no gelo. Em julho, os grupos mudavam-se para o interior,
de se achar nessa época do ano, quando as gavinhas ainda pescavam e, ocasionalmente, caçavam o caribu. Em agosto,
estão verdes, Mais tarde, mudam-se para os limites das terras construíam barreiras de pedras nas correntezas, para reco-
úmidas, onde os homens caçam gansos e as mulheres arran- lher um abundante suprimento de salmão, que se movia
cam espigas de milho. No auge da estação seca, a subsistência nessa época rio acima, para desovar, No final do mês, junta-
depende de nozes da cicadácie que, apesar de difíceis de vam-se em grandes grupos, para a atividade comunitária de
serem preparadas, são muito abundantes, podendo sustentar caça em caiaques, quando o caribu cruzava os rios para sua

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migração anual. Em outubro, grupos menores de inuit pes- nas e a expansão da colonização por todo o globo terrestre,
cavam novamente o salmão, antes de formarem grandes gru- nos diferentes meios ambientais, podem ter traçados a par-
pos para a caça à foca do inverno. Em cada uma dessas fases tir de quatro traços básicos, que distinguem os seres huma-
de caça comunitária, existia ainda a prática de costumes so- nos dos outros primatas. Um aumento do tamanho do cé-
ciais para garantir que todos estivessem alimentados e que rebro foi fundamental a todo esse progresso. Um cérebro
jjinguém sofresse pela falta de sorte ou de habilidade. maior parece ter sido importante para que se conseguisse
Esses exemplos modernos de grupos de colheita e caça conquistar o poder do pensamento abstrato, tão vital para
nos revelam muito sobre o modo pelo qual os grupos his- o desenvolvimento da tecnologia. Uma segunda ruptura
tóricos teriam agido, nos diversos meios ambientais queJia- vital (acontecida há três milhões e meio de anos) foi a capa-
bitavam por todo o mundo. Todos os grupos que vivem da cidade adquirida pelo homem de ficar totalmente ereto e
colheita e da caça, tanto contemporâneos quanto históricos, apoiado sobre os dois pés. Isso foi importante não só para o
parecem ter tentado de alguma forma controlar a quantidade aumento da mobilidade, como também para liberar as
dessas pessoas, de modo a não exigir demais das fontes de mãos, que podiam realizar outras tarefas, tais como fazer e
seu ecossistema. Isto foi realizado através de uma série de usar instrumentos. A terceira aquisição foi o uso da fala. Não
procedimentos sociais aceitos por todos, O mais difundido é surpreendente que não haja evidência alguma de quando
deles era o infanticídio, envolvendo a matança selecionada a fala teria sido adotada, mas presume-se que isso tenha
de determinadas categorias, como os gémeos, os incapazes e acontecido em uma época bastante precoce e que a capaci-
uma parte da prole feminina. (Estudos feitos durante os anos dade para se comunicar teria aberto o caminho para facilitar
30 demonstraram que os grupos inuit matavam aproxima- a cooperação do grupo e o fornecimento de uma organi-
damente 40 por cento das crianças do sexo feminino.) Além zação social mais elaborada, bem como para ajudar a expan-
disso, o desmame prolongado dos recém-nascidos possivel- são de diferentes progressos culturais. A quarta caracterís-
mente representou uma forma de controle da natalidade, tica foi fundamental para a colonização do mundo — a
assim como o abandono de pessoas idosas, quando estavam adoção de meios tecnológicos para superar as dificuldades
doentes, passando a ser uma carga para o grupo. Dessa ma- impostas pelos meios ambientes hostis. Embora outros ani-
neira, a necessidade de alimento e conseqúentemente a pres- mais usem ferramentas, os seres humanos são os únicos a
são feita pelos grupos de colheita'e caça sobre seu meio fazê-las. A feitura de instrumentos de pedra começou a-
ambiente eram reduzidas. As densidades populacionais ge- proximadamente há dois milhões de anos, com os primeiros
ralmente eram baixas (embora os números variassem segun- cutelos de pedra em estado natural, embora outros ins-
do o tipo de meio ambiente e seu nível natural de produtivi- trumentos menos duráveis e que por isso não sobreviveram.
dade). A melhor estimativa da população total do mundo por possivelmente possam ter existido antes.
volta de 100.000 anos atrás, pouco antes da adoção da agricul- Além dos instrumentos de pedra, os artefatos e tecnolo-
tura em umas poucas regiões, não ia além de quatro milhões gias usados pelos primeiros seres humanos foram as lanças
e,, em períodos anteriores, teria sido consideravelmente me- de madeira (aproximadamente há 400,000 anos), boleadeiras
nos do que isso. de pedra para derrubar animais (por volta de 80.000 anos
O desenvolvimento gradativo das sociedades huma- atrás), a madeira, as peles e também o fogo. Como o fogo

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também surge naturalmente, a época exata na qual começou
a ser de libe rada mente produzido é um assunto que causa
muita controvérsia, Existem algumas indicações ambíguas de
um sítio em Chesowanja, na África oriental, onde teria sido
produzido pela primeira vez em aproximadamente um mi-
lhão e meio de anos, mas a primeira evidência definitiva e
amplamente aceita surge há 500.000 anos. Os sinais do uso
do fogo são primeiramente encontrados em associação com
os locais de matança de animais, sugerindo que ele tenha sido
levado a esses locais com a finalidade de cozinhar a carne,
assim como também surgem em campos onde teria sido usa-
do para aquecer e iluminar e possivelmente proteger. Nesse.
estágio inicial, é bastante improvável que ele tenha sido usa-
do para encaminhar os animais aos locais de matança, embo-
ra essa técnica tenha sido certamente usada em épocas pos-
teriores. Mas pelo menos durante dois milhões de anos, a
tecnologia principal usada pelos seres humanos foi o ins-
trumento de pedra. Durante o primeiro milhão e meio de
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anos de feitura de ferramentas, os tipos dominantes eram
uma machadinha feita de seixo e um machado de mão com í
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uma lâmina que cercava quase todo o perímetro. Esses ins-


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trumentos eram relativamente fáceis de fazer e são encontra-
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dos em grandes quantidades. Por exemplo, o esqueleto de-
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sarticulado de um hipopótamo, que foi encontrado em
Oluivai Gorge no leste da África, estava rodeado por 459
machados grosseiros e machadinhas.

Foi com esse conjunto de ferramentas primitivas que os


primeiros seres humanos puderam mudar-se da África para
as regiões geladas do Oriente Médio, para a índia, o sul da
China e partes da Indonésia, apesar de também ter sido
necessário que usassem os vestuários feitos com peles de
animais. É difícil estabelecer a estrutura cronológica exata
por causa da ausência de uma pesquisa arqueológica em
muitas regiões, mas está bem claro que o Homo erectus tenha

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se espalhado a partir da África, há cerca de um milhão e estojo de instrumentos tão limitados. As condições exis-
meio de anos, logo depois de terem sido encontrados os tentes durante os períodos glaciais deterioraram-se quando
primeiros esqueletos desse ancestral direto dos seres huma- as grandes geleiras do norte avançaram e até mesmo o clima
nos modernos. Mas as áreas ocupadas ainda eram restritas. ameno do sul da França mudou, transformando em semi-
Com as habilidades que possuíam nesse período, os seres árticas vastas regiões, produzindo um tipo de tundra, onde
humanos só poderiam mesmo adaptar-se aos ecossistemas as condições de vida devem ter sido excepcionalmente ri-
encontrados em regiões semitropicais, onde havia uma gorosas.
variedade considerável de material vegetal, que podia ser Foi somente durante o longo e duradouro período glacial
facilmente colhido e de uma série ampla de pequenos ani- que teve início por volta de 80.000 anos passados e que durou
mais fáceis de caçar, para complementar esse regime ali- até uns 12.000 anos atrás que ocorreu a primeira ocupação
mentar. As florestas tropicais equatoriais não foram pene- permanente da Europa. Ela marcou um grande progresso da
tradas e a colonização da Europa apresentava dificuldades capacidade dos seres humanos em adaptar-se a um ecossis-
enormes. Esses problemas não foram solucionados durante tema agreste. Durante esse período, toda a Escandinávia, o
muito tempo e, portanto, a colonização da Europa foi um norte da Alemanha, a Polónia, o noroeste da União Soviética e
fenómeno comparativamente tardio na história humana, a maior parte da Inglaterra estavam cobertos de gelo e no auge
apesar do acesso relativamente fácil que apresentava para do período glacial, há uns 20.000 anos, as geleiras moveram-se
o Oriente Próximo e a África. Os ecossistemas europeus ainda mais para o sul. A região que ficava ao sul dessas geleiras
tornaram muito difícil, mesmo durante os períodos inter- era glacial e com vegetação do tipo tundra, só que essas tundras
glaciais, a extração de subsistência suficiente, com apenas eram mais ricas do que as que são encontradas atualmente ao
uma base tecnológica limitada: a vida vegetal era menos rica norte da Europa, por causa dos verões mais longos. Nelas
e o campo de ação para a colheita, mais limitado. Por esse existia uma grande variedade de vida animal, dominada por
motivo, a caça de animais de médio e grande porte era vital, grandes manadas de gamos, mamutes lanosos, bisões e cavalos
mas muito difícil. Mesmo se estivessem vivendo de restos selvagens, que conviviam com manadas menores de rinoce-
de animais mortos e eliminando os membros velhos e doen- rontes lanosos, alces gigantes e antílopes. Devido ao baixo nível
tes do rebanho, os grupos teriam a necessidade de mudar-se de vida vegetal e, portanto, do papel limitado representado
para regiões mais extensas, quando seguiam os movimen- pelo rebanho nas bases da subsistência, os seres humanos de-
tos sazonais dos animais e teria sido muito difícil manter pendiam dessas grandes manadas para sua existência. Esse
contato para a realização das atividades sociais e culturais. ambiente desafiador produziu uma cultura altamente desen-
A primeira evidência da ocupação humana data de a- volvida e sofisticada, capaz de controlar a quantidade existente
proximadamente uns 730.000 anos passados e a maior parte de alimentos e estimulou uma integração social maior do que
das regiões da Europa conheceram a colonização humana qualquer outro grupo humano já alcançara.
por volta de uns 350.000 anos atrás. Mas essa colonização O quadro convencional que temos dos habitantes da era
foi intermitente e confinada a períodos interglaciais, glacial europeia é o de caçadores que devastavam aleatoria-
quando o clima europeu deveria estar suficientemente uni- mente os rebanhos de gamos e de outros animais de grande
forme para fornecer a colheita e a caça, executadas com um porte. Mas a caçada pura e simples é uma estratégia de alto
X U-V
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risco: os índices de sucesso são muito pequenos e a caçada região, era possível para uma população moderadamente
contínua somente assusta os rebanhos, fazendo com que ca- densa conseguir um nível razoável de suprimentos sem pre-
da vez fique mais difícil segui-los e atacá-los. Na verdade, cisar empreender longas migrações para seguir as manadas.
uma abordagem muito mais sofisticada para a obtenção da Os povos poderiam utilizar as várias partes da área em dife-
subsistência de um ambiente hostil foi empregada. Baseava- rentes épocas do ano e o alimento advindo das manadas
se em conduzir as manadas com um mínimo de agitação. Na podia ser suplementado pela grande quantidade de salmão
Europa oriental e central, isto significava seguir manadas e outros peixes dos rios. Nessas condições de uma semicolo-
durante sua migração de inverno, no planalto húngaro e às nização emergiu uma sociedade altamente integrada, que
margens do Mar Negro, até suas pastagens de verão no Jura, produziu as numerosas pinturas nas cavernas, que foram
nos planaltos do sul da Alemanha e nos Cárpatos. Locais de encontradas em locais como Lascaux, no sudoeste da França
moradias humanas foram encontrados ao longo das rotas e em Altamira, no norte da Espanha (outras pinturas rudi-
naturais de migração em torno dos locais também naturais mentares contemporâneas e resquícios de arte nas pedras
de pastagem dos gamos. As manadas não eram dizimadas ao também foram encontrados na caverna de Apoio, no sul da
acaso, mas selecionadas, de forma a eliminar os animais mais África e na Austrália). A função exata e o significado dessas
velhos e enfermos. Um número suficiente de animais para pinturas das cavernas europeias ainda não são muito claras,
suprir a necessidade de carne dos humanos durante a estação mas não se pode discutir sua natureza religiosa e cerimonial,
era separado do grupo principal, conduzido para regiões assim como quase que podemos afirmar a existência de al-
como bacias naturais e devidamente mortos. No entanto, o gum elemento mágico, que buscaria o controle das manadas,
número de seres humanos que podiam ser alimentados dessa das quais dependia a subsistência da comunidade. Quando
maneira era muito pequeno. Uma manada com cerca de 1.500 as geleiras foram desaparecendo gradativamente, as mana-
gamos talvez fosse suficiente para alimentar somente umas das começaram a mover-se em direção ao norte. Diminuíram
três famílias ou uns quinze indivíduos. Esses grupos também em tamanho, pois a faixa da floresta também crescia para o
devem ter sido forçados a locornover-se muitas vezes, juntan- norte, eliminando a tundra, à medida que o clima melhorava.
do-se para formar grupos maiores, essenciais para as ativida- Toda a base de subsistência dos seres humanos da região
des cerimoniais e sociais, somente durante uns períodos mui- entrou em colapso e foi necessário o surgimento de uma série
to curtos do ano. de adaptações importantes, para a obtenção de alimentos em
Um modo de vida completamente diferente desenvol- um ambiente radicalmente diferente. Surgiu uma grande
veu-se no sudoeste da França e ao norte da Espanha, no auge ênfase na colheita feita em um ecossistema mais rico, produ-
da última era glacial, aproximadamente há 25-20.000 anos. zido por um clima mais ameno, assim como na utilização de
Quando o clima se manifestou de forma mais severa, o norte animais de menor porte que viviam em condições florestais,
da Europa parece ter sido parcialmente abandonado e uma da pesca e dos recursos marinhos, tais como os mariscos.
população relativamente densa desenvolveu-se mais para o A Europa foi também uma das regiões a assistir um
sul. Sua subsistência parece ter sido retirada das grandes desenvolvimento significativo da tecnologia humana, envol-
manadas de gamos comuns e vermelhos, que passavam pela vendo o surgimento de novas técnicas para a produção de
região de Dardanelos e no norte da Espanha. Dentro dessa ferramentas, como tambéma utilização de novos materiais.

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Esse fato representou uma das mudanças mais significativas na. Embora as roupas tenfem sido feitas de pele de animais
realizadas pelos seres humanos e foi a maior explosão inova- durante centenas de milhares de anos, a vida na Europa, no
dora, antes da invenção da cerâmica e do uso do metal. Isso auge da última era glacial, exigiu um maior desenvolvimento
começou há aproximadamente 40-30.000 anos e parece estar das técnicas de sobrevivência. Foram produzidos capuzes,
ligado ao desenvolvimento dos seres humanos completa- luvas e meias e há uns 20.000 anos agulhas perfuradas e fios
mente modernos, os Homo sapiens sapiens. A quantidade dos finos (um produto das armadilhas de peles) já eram usados.
diferentes tipos de utensílios feitos de pedra cresceu de seis A boa proteção fornecida pelas roupas quentes significava
para oitenta e a natureza desses instrumentos também mu- que o nível de ingestão de calorias necessárias para a sobre-
dou significativamente. Antes de uns 40.000 anos atrás, os vivência em condições severas seria suficientemente baixo
instrumentos tendiam a ser grandes — principalmente ma- para poder ser retirado do meio ambiente. O desenvolvimen-
chados de mão ou lâminas feitas de um núcleo preparado — to de novas técnicas possivelmente veio acompanhado de
necessitando somente de um mínimo de investimento de um maior grau de especialização entre os grupos de colheita,
tempo e esforço para sua execução. Depois dessa época, caça e pastoreio e o uso de materiais de qualidade cada vez
maior ênfase passou a ser dada à produção de lâminas muito mais elevada, que só poderiam ser encontrados em alguns
finas, de dupla face, feitas do núcleo das árvores e mais tarde poucos lugares, conduziu à criação de redes regionais de
ainda, aproximadamente há uns 20.000 anos, a lâminas pe- trocas.
quenas e leves, usadas como pontas para projéteis. Esses A colonização permanente da Europa, durante um pe-
novos instrumentos exigiam técnicas de fabricação diferentes ríodo de condições climáticas extremamente severas, repre-
e mais complicadas, envolvendo tratamento térmico e lapi- sentou uma importante conquista humana e um sinal de um
dação sob pressão. O domínio dessas técnicas necessitava não crescimento do controle do meio ambiente pelo homem. Isso
só de habilidades motoras e coordenação mais desenvolvi- foi possível graças à combinação da adoção de novas tecno-
das, como também uma maior capacidade mental para lidar logias com o domínio dos animais de maneira mais sofis-
com o grande número de diferentes estágios necessários para ticada. A colonização da Austrália não exigiu adaptações tão
a manufatura desses artefatos. elaboradas, devido ao clima relativamente benigno da região
Pela primeira vez, os materiais já existentes anterior- leste do continente e à facilidade que os grupos de caçadores
mente como o osso, o chifre e o marfim foram transformados e colhedores tinham para encontrar alimento. Mas isso tam-
em ferramentas, algumas delas de feitura extremamente bém só pôde acontecer após uma invenção da maior impor-
complexa, como os arpões com farpas. As lanças foram aper- tância — o barco —já que a Austrália, embora ligada à Nova
feiçoadas através da utilização das pontas feitas de osso ou Guiné durante o auge da Era Glacial, nunca esteve ligada ao
de marfim em lugar das de pedra e pelo uso do arremessador, continente asiático. A Austrália foi colonizada há cerca de
para aumentar seu alcance. A caça ficou ainda mais fácil e 40.000 anos, durante um período em que o nível do mar
exigindo um menor uso de força, a partir da invenção, há estava em seu mínimo e, para alcançá-la, uma viagem de
cerca de 23.000 anos, do arco e da flecha e do possível uso, aproximadamente sessenta milhas seria necessária. A Tasmâ-
nessa mesma época, de armadilhas, laços e redes, que teriam nia estava ligada à Austrália até uns 15.000 anos passados (foi
ampliado a base dos recursos disponíveis à exploração huma- colonizada há uns 20.000 anos) e a Nova Guiné tornou-se

62 63
uma ilha há uns 8.000 anos. A ocupação inicial foi feita pro- alguns milhares de anos espalhava-se até o alto da América
vavelmente por um grupo pequeno, de talvez umas vinte e do Sul.
cinco pessoas, mas a população cresceu rapidamente dentro Foi necessária uma série de adaptações para que o ser
de um ambiente imutável até alcançar uns 300.000 habitantes humano pudesse extrair alimento da enorme variedade de
— o mesmo nível apresentado pela Austrália, quando foi ecossistemas encontrados nas Amérícas. Nos vales da Amé-
alcançada pela primeira vez pelos europeus, A sociedade rica do Norte, devido à ausência de variedades de vegetação
desenvolvida na Austrália não levou ao desenvolvimento de para a colheita, a subsistência dependia da exploração das
organizações sociais mais complexas, como aconteceu em grandes manadas de bisões e de outros animais. De forma
quase todas as outras regiões do mundo. geral, eram abatidos de uma maneira muito violenta e des-
O povoamento da América foi quase que o último es- truidora, sendo conduzidos às estreitas gargantas ou por so-
tágio do movimento humano através do mundo. Isto acon- bre os penhascos. Em Gaspar, Wyoming, há mais ou menos
teceu porque esse deslocamento dependia da habilidade que 10.000 anos, uma simples matança envolvia pelo menos se-
os grupos humanos tivessem, primeiro para sobreviver no tenta e quatro animais e, em uma matança contemporânea
clima severo da Sibéria e depois avançar para o oriente, na no sudeste do Colorado, parece que os caçadores provocaram
direção do Estreito de Bering. A travessia para o Alasca foi um estouro dos animais na direção de um canyon, terminan-
realizada no auge da última Era Glacial, quando os níveis do com aproximadamente 200 cadáveres, cuja maioria difi-
reduzidos da água do mar transformaram o Estreito de Be- cilmente poderia ser aproveitada, pois teria sido esmagada
ring em uma ponte de terra. O clima, da região muito possi- sob uma pilha de corpos. Na região leste da América do
velmente seria menos severo do que atualmente, apresen- iNorte, o avanço da floresta, depois do recuo das placas de
tando oportunidades razoáveis para a caça e aprisionamento gelo, houve uma mudança no ecossistema, eliminando a
dos grandes animais da região. Mas o movimento em direção maior parte dos animais de grande porte, apropriados para
ao sul do Alasca só poderia acontecer durante um estágio a caça. As sociedades adaptaram-se a essas condições, muito
ligeiramente mais quente, quando as duas placas de gelo sernelhantes às existentes na Europa pós-glacial — caçando
mais importantes da América do Norte, centradas nas Monta- animais muito menores como o gamo, pescando e dedican-
nhas Rochosas e no Planalto Laurenciano, afastaram-se e do-se mais à colheita. Mais ao norte, nas regiões árticas, os
separaram-se o suficiente para abrir uma passagem para o colonizadores sentiram-se atraídos pela carne abundante dos
sudeste. Isso pode ter acontecido durante dois períodos — caribus, raposas árticas e lebres e só bem mais tarde começa-
ou 30-23.000 anos atrás ou aproximadamente há 13.000 anos. ram a explorar os recursos marinhos, especialmente as focas.
Embora este seja um tópico bastante controvertido da ar- Os desertos do sudoeste exigiam uma adaptação diferente,
queologia americana, a última data parece ser a mais prová- com a ênfase sendo dada à mobilidade, capacitando uma
vel. A partir do momento em que os primeiros exploradores exploração de uma grande variedade de recursos vegetais e
puderam atravessar as passagens na direção do sul, encon- animais eiri um ambiente difícil. Nas regiões tropicais das
traram um meio ambiente muito rico, que dava plenas opor- Américas Central e do Sul foi possível um modo de vida
tunidades para uma subsistência relativamente fácil. A popu- baseado nos variados recursos vegetais disponíveis, suple-
lação humana multiplicou-se rapidamente e dentro de mentado por uma pequena atividade de caça.

64 65
Mas talvez o desenvolvimento mais extraordinário te^ seu sustento através de uma forma primitiva de agricultura,
nhã acontecido na costa noroeste do Pacífico, com seus abun- apesar de ainda se utilizarem de ferramentas de pedras e de
dantes recursos marinhos, constituídos por focas, leões-ma- suplementarem seu regime alimentar com caçadas ocasio-
rinhos, lontra-do-mar e, em particular, o salmão que vinha nais. No Pacífico, os habitantes da Micronésia povoaram ilhas
desovar nos rios. Esse suprimento relativamente abundante como as Marshall e as Carolinas, mas foram os polinésios que
possivelmente exigia mais esforço para a estocagem do que empreenderam viagens mais longas. Por volta do ano
para a procura. Os vários tipos de animais eram então secos 1000 a.C, partiram da Nova Guiné e alcançaram Tonga e
durante o verão ou defumados no outono e sua gordura era Samoa e aproximadamente em 300 d.C. avançaram mais para
transformada em óleo, o que fornecia alimento suficiente o leste, chegando às Marquesas. Dali, navegaram para a Ilha
para o inverno. Apesar de existirem naturalmente flutua- da Páscoa e para o Havaí, cerca de um ou dois séculos mais
ções, esse suprimento alimentar era suficientemente confiá- tarde. As duas últimas maiores ilhas do mundo nos Oceanos
vel para que não houvesse a necessidade de deslocamento Pacífico e Índico foram colonizadas por volta de 800 d.C., na
das pessoas e essa região produziu, então, um dos poucos mesma época em que o império de Carlos Magno estava em
exemplos de uma sociedade estabelecida, não baseada na seu apogeu na Europa Oriental e os vikings iniciavam suas
agricultura. Os povos, então, desenvolveram aldeias, cada viagens épicas, na época em que o Islã dominava o Mediter-
uma com uma população de aproximadamente 1.000 pes- râneo e o Oriente Próximo, e a China era governada pela
soas, que viviam em grandes casas comunitárias, cada aldeia dinastia T'ang. Os polinésios alcançaram a Nova Zelândia e
tendo seu chefe, uma estratificação social e uma especia- os povos que partiam da Indonésia, dirigindo-se para o oeste,
lização do trabalho, juntamente com mecanismos complexos povoaram os pequenos grupos de ilhas do Oceano Índico,
de permuta e doação de alimentos como forma de obter juntamente com Madagáscar.
prestígio e a subsistência segura e adequada disponível a
todos. Essa sociedade complexa chegou a produzir uma casta Nesse momento, todas as regiões mais importantes do mun-
hereditária de escravos. Ter grande quantidade de alimento do (exceto a Antártica) já estavam povoadas. Durante cen-
estocado significava que o inverno passou a ser uma época tenas de milhares de anos, os grupos de colhedores e de
durante a qual o esforço exigido em prol da subsistência era caçadores adaptaram-se a todos os ambientes possíveis, des-
mínimo e as atividades cerimoniais elaboradas passaram a de as áreas semitropicais da África até a Europa que ainda se
ocupar a maior parte do tempo livre. Esse modo de vida encontrava na era glacial, do Ártico aos desertos do sudoeste
provou ser altamente estável e sobreviveu até a chegada dos da África. As técnicas de subsistência empregadas nesses am-
europeus à região. bientes, tão diversas, variavam desde a dependência à caça
Aproximadamente há 10.000 anos, com o deslocamento de pequenos animais, à criação de gamos, à caça do bisão, até
da fronteira humana através das Américas, quase todas as uma mistura bastante complexa de todas essas estratégias,
regiões da Terra tinham sido povoadas. A fase final da colo- que era necessária no Ártico. Acredita-se, geralmente, que
nização mundial aconteceu relativamente tarde nos Ocea- esses grupos viviam em estreita harmonia com o meio am-
nos Pacífico e Índico. Esse povoamento foi realizado não só' biente, provocando danos mínimos aos ecossistemas
por colhedores e caçadores, mas por grupos que obtinham naturais. A colheita de alimentos exigia um conhecimento

66 67
muito detalhado e uma compreensão considerável dos locais espécies de plantas em detrimento de outras de que não
onde esses alimentos poderiam ser encontrados, nas diferen- necessitavam no momento. Uma das maneiras mais eficazes
tes épocas do ano, para que o ciclo anual das atividades de de conseguir esse péssimo resultado é através das queimadas
subsistência fosse organizado de acordo. Da mesma forma, a e essa prática foi muito difundida entre esses grupos. O fogo
criação e caça dos animais exigiam um estudo apurado de altera significativamente o habitat, favorecendo o crescimen-
seus hábitos e movimentos. Encontramos também evidências to de plantas anuais que se desenvolvem bem em terrenos
de que alguns desses grupos chegaram a tentar conservar novos e aumentando a reciclagem dos nutrientes. Os aborí-
essas fontes de subsistência, com o interesse de mante-las por gines usavam regularmente o fogo para estimular o cres-
longos períodos. Restrições totêmicas sobre a caça de deter- cimento de uma samambaia comestível na Tasmânia e os
minadas espécies durante certos períodos do ano, ou a regra Maoris, da Nova Zelândia, usavam a mesmalecnlcTcom a
de caçar em determinada área somente durante uns poucos mesma'finalidade de facilitar o crescimento da samambaia,
anos, teria ajudado a manter o nível existente dos animais cujos rizomas representam uma parte substancial de sua die-
caçados. Alguns grupos mantinham áreas sagradas,- onde a ta alimentar. Na Nova' Guiné, há aproximadamente uns
caça era proibida e outros, como os Cree do Canadá, em- 30.000 anos, não muito "tempo depois de ter sido povoada
pregavam a técnica da caça rotativa, só voltando a um deter- pela primeira vez, temos muitas evidências de desmatamen-
minado local depois de um período considerável de tempo, to através de derrubadas, retirada da cortiça das árvores e
o que permitia uma recuperação do nível da vida animal queimadas. Essa abertura de clareiras nas florestas tinha a
depois da matança. Independentemente das restrições cul- finalidade de estimular o crescimento de plantas alimentícias,
turais específicas, um dos motivos principais pelos quais os como o inhame, a banana e a taioba, e para abrir espaço para
grupos de colheita e caça evitavam a exploração abusiva dos a árvore do sagueiro. Na era pós-glacial da Inglaterra, gran-
recursos naturais disponíveis era o de que eles existiam em des extensões de florestas foram destruídas pelo fogo, para
números muito pequenos e, consequentemente, a pressão encorajar o cultivo de pasto para os cervos. A maioria dos
exercida por eles sobre um determinado ambiente era limi- grupos também conservou as plantas nativas através do
tada. transplante e da semeadura em seus hábitats naturais e pela
No entanto, colhedores e caçadores não são absoluta- remoção das plantas que não interessavam e poderiam atra-
mente passivos em sua aceitação dos ecossistemas e muitas palhar o crescimento das outras. Alguns chegavam a usar
de suas atividades alteram consideravelmente o meio am- técnicas como a irrigação ern pequena escala, para favorecer
biente, causando muitos danos. Tem-se conhecimento de que o crescimento das plantas eleitas. Embora essas intervenções
os modernos Hadza, do leste da África, destroem enxames em um ecossistema natural estejam muito longe da agricul-
de abelhas nativas para obter uma pequena quantidade de tura, que implica na substituição do sistema natural por outro
mel e que outros grupos destroem com frequência a vegeta- artificial, elas revelam o homem modificando o ambiente,
ção nativa da qual dependem, por colher as plantas sem o mesmo que em pequena escala e em locais limitados.
menor cuidado e em grandes quantidades. Além disso, os No entanto, o impacto mais dramático causado em seu
grupos de colheita e caça alteram as condições de crescimento meio ambiente pelos grupos de colheita e caça foi através da
das "plantações" selvagens, intervindo em favor de algumas caça de animais. É muito mais fácil danificar essa parte de um

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ecossistema, porque os animais existem em menor número e muitos dos animais de maior porte, inclusive uma grande ave
alguns deles, principalmente os animais maiores ou carnívo- não voadora e um hipopótamo pigmeu, foram extintos. No
ros, que se encontram no topo da cadeia alimentar, levam Havaí, depois de milhares de anos de sua colonização, trinta
muito tempo para se recuperar de uma caçada em grandes e nove espécies de aves terrestres também estavam extintas.
proporções. Mesmo com as evidências encontradas de tenta- Na Nova Zelândia, os Maoris encontraram um ambiente tem-
tivas feitas por alguns grupos para não caçar indiscrimina- perado, onde não podiam crescer muitas de suas culturas
damente, existem muito mais sinais de caça descontrolada e tradicionais, como a banana, a fruta-pão e o coco, oriundos
até mesmo extinção de espécies. Já vimos como as grandes das ilhas subtropicais da Polinésia, e até mesmo o inhame e a
caçadas do bisão nasplamcJÊSJÍaAniMca_do^Norte_podiam taioba só podiam ser cultivados na Ilha do Norte. Isso levou-
, matar centenas de animais de uma só vez, apesar de somente os a uma transformação radical de seu padrão de subsistência
alguns serem aproveitados como alimento. A quantidade de normal, fazendo com que passassem a alimentar-se de plan-
bisões era enorme (perto de 50-60 milhões) e, portanto, mes- tas silvestres como a samambaia e as folhas do palmito, acres-
mo havendo várias matanças por ano nessa mesma escala, cido dos recursos marinhos. A caça tornou-se também mais
não reduzia significativamente seu número. Porém, as mana- importante para eles. Os numerosos pássaros não voadores
das menores podiam ser tremendamente afetadas. Os efeitos como o kiwi, o weka e as muitas espécies de moa (a maioria
das caçadas tornaram-se piores devido à tendência dos caça- deles com mais de Í,8Õm de altura, sendo que algumas es-
dores de concentrar-se em uma espécie em detrimento de pécies chegavam a alcançar 3,60m de altura) começaram a ser
outras. Nas Ilhas Aleutas^ no norte do Pacífico, a população caçados de maneira selvagem, comendo inclusive seus ovos.
concentrou-se na matança de lontra marinha durante mi- Depois de 600 anos da colonização inicial, vinte e quatro
lhares de anos, desde a colonização das ilhas, feita por volta espécies de .gamos haviam sido aniquiladas à extinção, jun-
do ano 500 a.C., até que o animal foi virtualmente extinto e a tamente com outras vinte espécies de aves.
base da subsistência da comunidade, destruída. Como con- Os grupos de colhedores e caçadores chegaram a pro-
sequência desse fato, os ilhotas tiveram que mudar subs- vocar impacto na população animal, até mesmo em uma
tancialmente seu modo de vida e aceitar um nível mais baixo escala continental Várias espécies foram extintas por volta da
de subsistência, a partir dos parcos recursos que sobraram. última era glacial, em um período em que as mudanças cli-
O impacto que o homem pode causar na quantidade de máticas e consequente variação dos tipos de vegetação, afe-
animais existentes está bem ilustrado pelos exemplos dados taram de forma adversa os mamíferos de grande porte, que
por Madagáscar, Havaí e Nova Zelândia, que inicialmente habitavam as tundras do norte e do centro da Europa. Na
eram ilhas isoladas, com uma fauna única e que subitamente Eurásia, cinco grandes animais — o mamute lanoso, o rino-
foi submetida a um stress. Como nenhum dos grandes mamí- ceronte peludo, o alce irlandês gigante, o boi almiscarado e o
feros podia alcançar aqueles locais tão isolados, grandes pás- bisão das estepes —juntamente com um grande número de
saros não voadores puderam evoluir, devido à ausência de carnívoros foram extintos em um período de poucos milhares
grandes predadores, tornando-se os animais dominantes de anos, à medida que as camadas de gelo retraíam-se e a
Mas eles eram indefesos contra a predação humana. Depoi: tundra era substituída pela floresta. Essa mudança no am-
de algumas centenas de' anos da colonização de Madagáscar, biente ameaçou grandemente esses animais de grande porte,

70 71
mas a caça praticada pelo homem teria provocado um impac- rica do Norte, devido ao seu isolamento), outros eram de
to devastador sobre uma população já em declínio e pode ter espécies gigantes, particularmente sensíveis às mudanças cli-
influído no equilíbrio entre a sobrevivência e a extinção. máticas e à caça predatória. As extinções atingiram ao todo
A extinção das espécies da Eurásia aconteceu em escala três géneros de elefantes, seis de desdentados gigantes (ar-
relativamente pequena. Em todas as outras partes do mundo madilhos, tamanduás e preguiças), quinze de ungulados e
foi maciçaf Na Austrália, durante os últimos 10.000 anos, fo- um grande número de roedores e carnívoros gigantes.
ram extintos 86 por cento dos animais de grande porte, em
uma área onde o impacto climático foi mínimo, conseqúen- Por volta de 10.000 anos atrás, os seres humanos haviam se
temente não afetando os hábitos animais das eras glaciais. A espalhado por um período aproximado de dois milhões de
explicação mais plausível para esse acontecimento foram as anos, partindo de sua região original do sul e do leste da
caçadas feitas pelos grupos aborígines, nos últimos 40.000 África para todos os continentes. A lenta expansão da coloni-
anos. Mesmo que os animais maiores não tenham sido caça- zação humana dependeu de vários desenvolvimentos inter-
dos em grandes escalas, o desequilíbrio do ecossistema como ligados. O crescimento do tamanho do cérebro possibilitou o
resultado da intervenção humana — destruindo habitais, ou aumento da capacidade para o pensamento abstrato, a con-
matando os pequenos herbívoros, dos quais os carnívoros ceitualização e uma habilitação crescente para encontrar,
dependiam — poderia facilmente ter levado à extinção. cada vez mais, soluções culturais e tecnológicas sofisticadas
Igualmente surpreendente é a perda de 80 por cento dos para os desafios impostos por uma série de dificuldades e até
animais de grande porte da América do Sul e de 73 por cento mesmo pelos ambientes hostis. Essas soluções incluíam o uso
ofrida no norte do continente. Diferentemente do que acon- do fogo e do vestuário, o que possibilitava ao homem viver
teceu na Eurásia, onde somente os animais das estepes de em climas mais severos e a adotar estratégias de subsistência
tundra foram afetados, as extinções nas Américas afetaram cada vez mais elaboradas. Nas regiões subtropicais benignas,
todos os tipos de ecossistemas. Apesar de terem ocorrido no os grupos de colheita e caça podiam contar com uma grande
final da última era glacial, as mudanças climáticas não provo- quantidade de plantas comestíveis à sua disposição, comple-
caram tal extinção em massa no passado e restam poucas mentada somente com uma pequena quantidade de caça. À
dúvidas de que tenham surgido em virtude da intervenção medida que o homem foi se afastando dos trópicos, esse'
do homem. Como os primeiros colonizadores da América modo de vida teve que ser modificado drasticamente, sendo
partiram para o sul, do Alasca e das Montanhas Rochosas, adotadas técnicas completamente diferentes. Isso englobou
teriam encontrado um ambiente rico e intocado e seu número desde a caça mais intensa à criação de animais de grande
deve ter aumentado rapidamente, graças aos recursos tão porte, até os ciclos de atividades sazonais altamente com-
facilmente obtidos. Esses primeiros colonizadores da Améri- plexas, praticadas pelos inuit do Ártico. Mudanças tecno-
ca deixaram atrás de si um rastro de destruição através do lógicas seriam vitais para permitir a colonização do globo
continente. Dois terços dos mamíferos de grande porte exis- terrestre pelos seres humanos e elas aconteceram em diversas
tentes por ocasião da chegada dos primeiros homens foram frentes, iniciando com a produção de instrumentos de pedra
condenados à extinção. Alguns deles eram de tipo arcaico, cada vez mais sofisticados e a introdução de novas armas,
como o camelo das planícies (encontrados somente na Amé- como o arco e a flecha, mas que incluía também o emprego

72 73
das peles e couros dos animais para a feitura de vestuários, a mudanças ainda era lento, mas muito mais rápido do que no
construção de abrigos a partir de uma grande variedade de passado. E as consequências foram muito mais radicais do
materiais e a adoção de técnicas de processamento de alimen- que qualquer outro fato ocorrido no passado e provocou a
tos mais apuradas — cozimento em buracos feitos na terra ao alteração mais fundamental da história humana — aquela
invés de em fogueiras ao ar livre e a moagem de nozes e que tornou possível todos os desenvolvimentos subsequen-
sementes. tes da sociedade humana.
O ritmo do desenvolvimento foi, naturalmente, lento e
também muito fragmentado. Somente quando chegamos
40.000 anos atrás, o passo da mudança tecnológica começou
a crescer rapidamente, pelo menos em comparação com ou-
tros períodos anteriores. Mas, vistos como um todo, esses
desenvolvimentos foram de importância fundamental para
a continuação da história da humanidade e o futuro da Terra.
Os seres humanos tornaram-se os únicos animais a dominar
e explorar todos os ecossistemas terrestres. Mas, mesmo nes-
se estágio, o impacto sobre o ambiente, provocado pelos gru-
pos de colhedores e caçadores, foi pequeno, porque a disse-
minação da população foi lenta, escassa e sua tecnologia
ainda era limitada. Mesmo assim, já faziam com que sua
presença fosse sentida, pelo número de animais caçados até
a extinção e a modificação, de forma sutil, do meio ambiente.
O modo de vida baseado na caça e na colheita era altamente
estável e de longa duração. Durante centenas de milhares de
anos, essa foi a única maneira através da qual os seres huma-
nos podiam extrair a subsistência necessária do meio ambien-
te. O número de pessoas que poderia sobreviver em qualquer
região era restrito, devido à sua posição no alto da cadeia
alimentar. Somente em casos excepcionais, como na costa do
Pacífico da América do Norte, os recursos eram tão abundan-
tes que as colónias podiam se desenvolver em aldeias de
tamanho razoável.
Então, há cerca de 10.000 anos, depois de dois milhões
de anos de uma vida estável e bem ajustada, os métodos
usados pelo homem para a obtenção de alimentos começa-
ram a mudar em diversas partes do mundo. O ritmo das

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74
era de aproximadamente quatro milhões de habitantes, au-
mentando muito lentamente até chegar a cinco milhões por
volta de 5.000 a.C, Depois/ no período crucial em que as
sociedades estabelecidas desenvolveram-se em escalas acele-
radas depois de 5.000 a.C., começou a dobrar a cada milénio,
até alcançar 50 milhões em 1.000 a.C,, passando a 100 milhões
nos 500 anos seguintes e a 200 milhões no ano 200 d.C, Essa
tendência ascendente continuou a partir de então, embora
não acontecesse em um ritmo estável, sendo frequentemente
interrompida pelas consequências da fome e de doenças,
sendo que, atualmente, a agricultura sustenta uma popu-
lação mundial de mais de cinco bilhões de habitantes.
A combinação de fenómenos como o da transição para
a agricultura, o crescimento das sociedades estáveis, a emer-
gência de cidades e de trabalho especializado e do surgimen-
A Primeira Grande Transição to de elites religiosas e políticas poderosas, é frequentemente
chamada de "Revolução Neolítica". No entanto, embora as
consequências de todas essas mudanças fossem claramente
revolucionárias — por seu impacto, tanto no modo de vida
como no meio ambiente — é um erro descrever-se esse pro-
Durante aproximadamente dois milhões de anos, os seres cesso como uma revolução. O período de tempo durante o
humanos viveram da colheita, do pastoreio e da caça. Depois, qual essas mudanças aconteceram foi longo, de pelo menos
no espaço de tempo de alguns milhares de anos, emergiram uns quatro a cinco mil anos, e a contribuição de cada geração
para um modo de vida radicalmente diferente, baseado em foi provavelmente muito pequena. Além disso, a ideia de
importante alteração de ecossistemas naturais, objetivando a uma revolução implica em uma ação executada com a finali-
produção de grãos e de pasto para os animais. Esse sistema dade de promover uma mudança e o que vemos em retros-
de produção de alimentos mais intensiva foi desenvolvido pecto como um "processo" não teria sido executado de ma-
separadamente em três regiões importantes do mundo — o neira deliberada e autoconsciente. As sociedades humanas
sudoeste da Ásia, a China e a América Central — e marcou a não partiram para inventar deliberadamente a "agricultura"
transição mais importante da história humana. Como esse e produzir colonizações permanentes. Na verdade, o que
sistema oferecia quantidades muito maiores de alimentos aconteceu foi uma série de mudanças marginais, que foram
tornou possível a evolução de sociedades estabelecidas, com- surgindo gradualmente, nos meios empregados para obter
plexas e hierarquizadas e um ritmo de crescimento muito alimentos/ como resultado das circunstâncias locais particu-
mais acelerado da população humana. Há cerca de 10.000 lares, O efeito cumulativo das várias alterações foi muito
anos, antes da evolução da agricultura, a população mundial importante, porque agiu como um freio. Os ajustes feitos nos

76 77
métodos de obtenção da subsistência, tornando-os mais m-, quais só podem propagar-se através da intervenção humana
tensivos, permitiram que populações maiores pudessem ser e, finalmente, da engenharia genética para criar novas es-
atendidas, mas esses ajustamentos levaram à impossibilidade pécies desconhecidas pela natureza. Os grupos de colheita e
de retornar ao modo de vida anterior, baseado na caça e na caça chegaram a praticar certas formas de cultivo (e alguns
coleta porque, como a população tinha aumentado, tornava- ainda o fazem): alteram os hábitats, queimando para limpar
se impossível alimentá-la. Durante esse longo período, não! o terreno e estimular a reciclagem dos nutrientes, empe-
houve uma linha definida de desenvolvimento que passasse i nhando-se em replantar e semear plantas em regiões deser-
4a "caça e coleta" para a "agricultura". Devem ter sido tenta- tas, arrancando as ervas daninhas e até praticando uma irri-
dos muitos meios diferentes para a obtenção de alimentos a gação em pequena escala. Preparar hábitats artificiais
partir de plantas e animais, através de várias permutas e com especificamente para o cultivo e a manutenção das plantas e
alterações de equilíbrio entre os alimentos vegetais e animais. para gradualmente selecionar e domesticar certas espécies, é
Algumas dessas estratégias não teriam dado certo e outras somente uma intensificação desse processo de intervenção.
podem ter sido parcialmente bem-sucedidas. Mas uma solu- Os grupos de coleta e de caça já haviam demonstrado,
ção radicalmente nova emergiu de uma forma lenta e cons- na Europa glacial, uma aptidão para utilizar rebanhos de
ciente, para o problema humano de extrair alimento dos di- renas e cervos de formas bastante sofisticadas, com a finali-
ferentes ecossistemas. dade da extração da subsistência de um ambiente hostil. Tal
Essa longa transição poderá ser melhor entendida se exploração relativamente intensa dos animais não exige co-
abandonarmos qualquer ideia de uma distinção nítida entre munidades agrícolas estabelecidas, como é demonstrado pe-
a colheita e a caça de um lado e a agricultura de outro. Elas los grupos atuais de pastores nómades, tais como os sami
devem ser consideradas como parte de um spectrum das ati- (gamos), os masai (gado), ou vários povos da Ásia central
vidades humanas, com diferentes graus de intensidade, des- (cavalos). Existem outros exemplos de variedades das técni-
tinadas à exploração dos ecossistemas. Os grupos de caçado- cas de exploração, que adotam alguns, mas não todos os
res e colhedores não eram passivos em sua aceitação do meio processos que podem ser encontrados na agricultura moder-
ambiente: eles executavam uma grande variedade de ativi- na. No Levante, já em 18.000 a.C, os seres humanos pas-
dades, que implicavam na interferência nos ecossistemas na- toreavam gazelas em um meio ambiente semidomesticado:
turais em benefício do homem; Em termos da exploração em locais como Abu Hureyra, na Síria e em Nahal Oren, em
animal, há uma clara gradação entre a caça aleatória das Israel, mais de 80 por cento dos ossos dos animais recupera-
manadas, a predação controlada, o seguir a manada por onde dos eram de gazelas, embora muitas outras espécies fossem
ela for, as manadas livres, as manadas controladas e, final- disponíveis tanto para o pastoreio quanto para a caça. Ao
mente, a criação intensiva moderna do gado como indústria. mesmo tempo, esses grupos também colheram formas selva-
Os grupos de caça e coleta desenvolveram os primeiros três gens de plantas, tais como o trigo mais primitivo de um só
ou quatro processos, mas não os dois últimos. Ao utilizar as núcleo, o trigo vermelho duro com dois núcleos e a cevada,
plantas, existe uma ordem de intensidade a partir do pasto que viriam a ser domesticados 10.000 anos mais tarde. O uso
em estado silvestre, das plantas silvestres cultivadas, da do- de grãos silvestres não era, necessariamente, uma forma in-
mesticação de grãos geneticamente distintos, alguns ferior de obter alimentos. Experiências recentes, usando foi-

78 79
!.

cês de pedra para colher grandes plantações de ancestrais Problemas similares surgem nas pesquisas feitas com ossos
silvestres dos grãos que existem na atualidade e que ainda de animais. É quase impossível identificar diretamente do
crescem no Oriente Próximo, demonstraram que tais técnicas registro arqueológico se os animais selvagens estavam sendo
poderiam ser altamente produtivas e que os grãos silvestres pastoreados, O melhor método indireto é procurar vestígios,
são, frequentemente, muito mais nutritivos do que as varie- como uma grande porcentagem de ossos de animais jovens,
dades domesticadas, O trigo vermelho selvagem, em Israel, que sugere quais as técnicas de predação altamente seletivas
produziu campos de l.lOOkg a l.SOOkg por acre, uma média estavam sendo usadas. As alterações morfológicas que acon-
tão boa quanto a do trigo na Inglaterra medieval. No México, teceram durante a domesticação estão sujeitas a discussões,
o teosinto, uma forma primitiva de milho, mostrou-se alta- embora seja geralmente aceito que os animais se tornaram
mente produtivo, pois, com três horas e meia de colheita, menores e que conservaram mais suas características juvenis.
fornecia alimento suficiente para uma pessoa durante dez , Mas esse processo, mais uma vez, só ocorre durante longos
dias, O esforço necessário para a obtenção de alimento a períodos de tempo, o que torna muito difícil a utilização das
partir desses "grãos" selvagens é, também, muito menor do mudanças ocasionadas nas características físicas para identi-
que com os grãos domesticados, pois não são necessários a ficar as modificações nas técnicas de domesticação animal a
semeadura, a capinagem e maiores cuidados. curto prazo.
A identificação de plantas e animais domesticados a Também não existe uma distinção nítida e uma grande
partir de vestígios arqueológicos é muito difícil. E, por exem- quantidade de continuidade entre os conjuntos de ferramen-
plo, impossível dizer quais as diferenças existentes entre os tas e artefatos dos grupos de coleta e caça e as primeiras
vestígios de plantas e grãos colhidos em sua forma selvagem comunidades agriculturais, particularmente no sudoeste da
e as mesmas plantas e grãos de campos onde teriam sido Ásia (região onde tiveram lugar os movimentos relacionados
plantados e cultivados pelo homem. Geralmente, é possível com a agricultura mais antigos). As primeiras placas e pedras
distinguir as características das plantas durante o processo de de moer foram encontradas no Oriente Próximo, possivel-
domesticação, na medida em que elas se diferenciam, grada- mente de 15.000 a.C, e seriam provavelmente usadas para
tivamente, de seus precursores selvagens até atingir, plena- moer nozes (principalmente os frutos do carvalho) e moran-
mente, variedades completamente domesticadas, mas as mu- gos, mas possivelmente também serviam para colher semen-
danças acontecem ao longo de um considerável período de tes. Outros instrumentos, como almofarizes^ segadeiras,"que
tempo. As dificuldades encontradas pelos arqueólogos são poderiam ser considerados "agrícolas", foram encontrados
constituídas pelos problemas associados a locais tropicais e entre os remanescentes de grupos que não praticavam a agri-
semitropicais, onde raramente os vestígios das plantas são cultura. Em contrapartida, muitos instrumentos associados
bem conservados, por causa do clima quente e úmido. Muitas aos grupos de coleta e caça (como os buris e os fustes) são
plantas, particularmente as raízes e tubérculos, como o inha- também encontrados nos depósitos de comunidades estabe-
me e a batata, e também árvores como o coqueiro e a palmei- lecidas que praticavam a agricultura. Os povoados não estão
ra, quase não apresentam mudanças quando domesticadas; somente associados à agricultura, como as colonizações indí-
assim, apresentam problemas enormes quando se tenta de- genas da costa noroeste da América do Norte demonstram,
terminar a data das mudanças nas técnicas de subsistência. .com suas comunidades de 1.000 pessoas, dependentes uni-
< <'. '-
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camente da pesca e de outros recursos marinhos. Nem a precisar despender grandes quantidades de tempo e de es-
cerâmica é limitada às sociedades agrícolas. A cultura Jomom, forço. Ao explorar uma ampla gama de recursos, puderam
do Japão, fez cerâmica durante milhares de anos antes da também reduzir os riscos envolvidos, quando se defendiam
adoção da agricultura. Qpt***'i contra a escassez de alguma planta ou animal. Definitiva-
, Esse quadro mais complexo reforça a visão de'que uma mente, a agricultura não é uma opção mais fácil do que colher
distinção fundamental entre agricultura e colheita', criação e e caçar. Ela exige muito mais esforços na limpeza do terreno,
caça não pode ser feita. Nem técnicas radicalmente novas, ou no cultivo, necessita de cuidados e da colheita da safra e do
relações entre seres humanos, plantas e animais que se de- tratamento dos animais domesticados. Não provê, necessa-
senvolveram no período iniciado há aproximadamente riamente, alimento mais nutritivo, nem oferece maior segu-
10.000 anos. Os seres humanos estiveram envolvidos em ob- rança, porque seleciona e depende de um número muito
ter a sua subsistência a partir dos variados ecossistemas ter- menor de plantas e animais. A única vantagem que a agricul-
restres por várias centenas de milhares de anos. Durante esse tura tem sobre outras formas de subsistência é que, em troca
tempo, os métodos adotados evoluíram. As técnicas dispo- de um grau maior de esforço, pode prover mais alimentos em
níveis para um grupo que viveu na Europa do fim da era uma área menor de terreno.
glacial, ou em um período semelhante no Oriente Próximo, Muitas das explicações mais antigas sobre a adoção da
eram muito mais adiantadas do que qualquer uma das utili- agricultura foram baseadas no fato de que ela oferecia vanta-
zadas pelos primitivos hominídeos da África Oriental. As gens tão óbvias que foi adotada logo que o conhecimento
estratégias de subsistência anteriores lançaram mão de solu- humano e as conquistas culturais atingiram um nível sufi-
ções diferentes, dependendo do que fosse economicamente cientemente adiantado. Essa abordagem, segundo uma pes-
favorável na época, incluindo a dependência intensiva de quisa recente sobre o modo como os grupos de coleta e de
plantas selecionadas a um tipo de animal ou do uso de um caça produziam e obtinham seu alimento, foi agora ampla-
amplo espectro de recursos, envolvendo a colheita e a caça. mente abandonada. Outra teoria ligou a adoção da agricul-
Cada um dos métodos que caracterizam a agricultura foi tura às mudanças climáticas que aconteceram no final da
adotado por um ou mais grupos, em algum momento do última glaciação. As melhorias climáticas certamente teriam
passado, embora geralmente de modo isolado. A novidade produzido mudanças importantes em faixas de vegetação e,
era a combinação e intensificação"de técnicas que começavam conseqúentemente, nos recursos disponíveis a serem explo-
a surgir em algumas regiões do mundo, por volta de 10.000 rados pelo homem. No noroeste da Europa, a substituição da
anos atrás. Foi nesse momento que os métodos adotados tundra pela floresta temperada destruiu completamente a
pelos seres humanos, para obter seu alimento, elevaram-se base de subsistência dos pastores de renas e forçou uma
lentamente a mais do que somente uma variação sobre o mudança para métodos radicalmente diferentes para a ob-
tema de colheita e caça. tenção dos alimentos. Mas mudanças climáticas aconteceram
E difícil explicar por que a agricultura foi adotada. Os ajntes, sem produzir alterações fundamentais nos padrões de
grupos de coleta e de caça tinham desenvolvido um vasto subsistência e se estenderam por milhares de nos, dando ao
repertório de métodos para obter a subsistência na maioria homem tempo suficiente para adotar estratégias alternativas
dos casos, e em todos, exceto nas regiões mais marginais, sem de colheita e caça. Os efeitos da mudança de clima nas três

82 83
regiões essenciais do sudoeste da Ásia, da China e da América atualmente é reconhecido como agricultura em larga escala.
Central, também teriam sido muito diferentes e, sendo assim, Logo que alguns desses grupos alcançaram um determinado
não seria provável que tivessem feito surgir uma resposta ponto, onde já se encontravam preparados ou que não tives-
semelhante. Além disso, as plantas e animais, que eventual- sem outra alternativa a não ser adotar as técnicas agrícolas,
mente foram sendo domesticados, existiram nessas mesmas estariam sujeitos a uma espécie de aprisionamento. A produ-
áreas durante milhares de anos e foram frequentemente uti- ção de alimentos aumentaria e mais pessoas poderiam ser
lizados sem uma domesticação plena. alimentadas. Na ausência de um controle populacional, essa
A explicação que melhor se adapta ao conhecimento população aumentada provocaria uma pressão maior em re-
moderno está baseada na pressão exercida pela população lação de um cultivo ainda mais intenso. As mudanças de uma
crescente. Embora os grupos de caça e colheita tomassem geração para a seguinte teriam sido muito pequenas, mas os
diversas medidas para limitar sua população a um nível que efeitos cumulativos teriam sido grandes.
o meio ambiente pudesse suportar sem sacrifícios, nem sem-
pre foram bem-sucedidos. A solução mais comum para o As mudanças agora reconhecidas, como o surgimento da
problema de excesso de população que não possa ser sus- agricultura, aconteceram inicialmente no sudoeste da Ásia,
tentada pelo território existente é a da divisão do grupo, na China e na América Central, durante um período de vários
formando novos grupos para explorar novas áreas. Se, no milhares de anos. As semelhanças entre essas três áreas são
caso dos grupos pré-históricos, esse processo continuasse du- tantas que podemos identificar um processo comum, sendo
rante um longo período, então eventualmente todos os ter- que os resultados finais mostrassem diferenças significativas.
ritórios adequados seriam ocupados. É bem possível que uma Ás safras que podiam ser cultivadas e os animais que seriam
população humana de aproximadamente quatro milhões de domesticáveis eram determinados pelos ecossistemas locais
pessoas (o nível alcançado por volta de 10.000 anos atrás) ou que, por sua vez, eram determinados pelo clima e pela forma
mesmo de menos, fosse mais ou menos o máximo que pu- como a divisão continental separou os diversos continentes,
desse ser sustentado, sem esforço, por uma forma de vida de permitindo que as plantas e os animais evoluíssem isolada-
caça e coleta. Se o crescimento continuasse além desse limite, mente. As diferentes formas de agricultura que surgiram
especialmente em regiões que já estavam relativamente po- causariam um efeito profundo no desenvolvimento das
voadas, os grupos seriam empurrados para hábitats cada vez soledades humanas nessas regiões tão diferentes e, con-
menos favoráveis, onde teriam que depender de plantas e seqúentemente, no curso da história mundial.
animais de qualidade inferior, ou onde os ecossistemas fos- A primeira região a experimentar essas mudanças foi o
sem menos ricos e, portanto, seria exigido um esforço muito sudoeste da Ásia, uma área em forma de crescente que es-
maior para a obtenção de alimento suficiente. Durante mi- tendia-se do trecho onde atualmente está a Palestina e a Síria,
lhares de anos, uma continuação desse processo de desloca- através das partes meridionais da Anatólia, até as montanhas
mento e a necessidade de despender mais esforços na obten- de Zagros, no Ira. Essa área vinha sendo ocupada há muito
ção de alimentos fizeram com que esses grupos se voltassem tempo por grupos de coleta e caça, não existindo uma conti-
para formas de exploração do meio ambiente, muito mais nuidade importante entre eles e as comunidades agrícolas
intensivas e demoradas, o que finalmente resultou no que posteriores. Os antecessores silvestres das safras que foram

84 85
domesticadas na região já foram claramente identificados. O úmidas e secas. Produziam grandes sementes, germinavam
trigo teve a sua origem em duas formas silvestres ainda en- com facilidade, cresciam rapidamente e sobreviviam aos ve-
contradas na região—o emmer, trigo vermelho e duro de dois rões secos—características todas muito úteis aos cultivadores
núcleos, e o einkorn, trigo primitivo de um só núcleo — e a humanos. A colheita constante selecionaria, inconsciente-
cevada vem de uma forma silvestre de planta. Formas selva- mente, as sementes que possuíam mecanismos de dispersão
gens de legumes, tais como lentilhas, grão de bico e ervilhas, menos eficazes, porque seriam mais fácil de colher, o que
também foram encontradas. Essas plantas selvagens ainda conduziria a uma perda lenta da capacidade de dispersão
existem na região em grandes áreas e sua distribuição dá uma natural. A semeadura intencional de sementes especialmente
boa indicação do provável local onde a domesticação tenha selecionadas aumentaria essa pressão seletiva. Tanto o trigo
acontecido. Embora suas áreas se sobrepusessem, o trigo ver- e a cevada silvestres quanto os cultivados são, predominan-
melho tinha uma distribuição muito limitada no agreste (am- temente, autopolinizadores (diferente da maioria das espé-
plamente confinada no vale superior do Jordão), enquanto cies de plantas, que são de polinização cruzada). A vantagem
que o trigo de um núcleo e o grão-de- bico são encontrados dessa característica para os agricultores humanos era que as
no sudoeste da Anatólia e a cevada silvestre está amplamente formas cultivadas tornar-se-iam facilmente independentes e
distribuída na Palestina e nas montanhas Zagros. Experiên- não sujeitas ao atolamento provocado pelas plantas silves-
cias recentes demonstraram que o trigo vermelho e cevada tres, mais numerosas. A polinização cruzada ocasional pro-
silvestre podem ser facilmente cultivados, mas estudos gené- veria a quantidade suficiente de flexibilidade genética, para
ticos sugerem que o trigo, a ervilha e a lentilha atuais são que as formas cultivadas pudessem espalhar-se, adaptar-se e
originários de uma parte muito limitada do estoque silvestre produzir novas características.
e que a domesticação pode consequentemente ter ocorrido Paralelamente com o cultivo e a domesticação crescen-
em apenas algumas poucas ocasiões. A explicação do motivo tes das plantas silvestres, a relação entre os seres humanos
pelo qual as características selvagens, tais como os mecanis- e os animais também se tornava mais intensa. O primeiro
mos da dispersão das sementes, desapareceram aponta para animal completamente domesticado foi o cachorro. Os abo-
um número limitado de domesticações. Essas considerações rígines da Austrália e da Nova Guiné possivelmente o
biológicas sugerem que a domesticação pode ter acontecido domesticaram antes de qualquer outro povo do mundo e o
somente porque um número limitado de grupos foi forçado mesmo processo aconteceu na maior parte do hemisfério
a explorar o que era visto na ocasião como locais de recursos norte, da América do Norte ao Japão, no final da era glacial
menos favoráveis. e no início dos períodos pós-glaciais, embora o Oriente Pró-
Outras características dessas plantas cultivadas primiti- ximo estivesse comparativamente atrasado nesse desenvol-
vamente influenciaram o curso da domesticação. Os ances- vimento. Seu significado agrícola foi sem maior importância
trais silvestres das plantas domesticadas por suas sementes -r- e a domesticação parece ter sido feita, principalmente,
tendem a ser de tipos agrestes, bem adaptados para crescer por razões de companheirismo e, possivelmente, por pró-
em sítios abertos e agitados. Antes do cultivo, essas plantas teção, mais do que acrescentar carne de cachorro à sua dieta.
sobreviviam em solos pobres e inconsistentes em regiões de- O primeiro animal a ser domesticado e explorado economi-
ficientes de competição e sujeitas a estações acentuadamente camente foi a ovelha e isso ocorreu no sudoeste da Ásia,

86 87
aproximadamente uns 1,000 anos antes que os primeiros Sudoeste da Ásia
grãos de trigo de um núcleo, o trigo vermelho e a cevada
estivessem plenamente domesticados e isso desperta a dú-
vida intrigante de que algumas das primeiras sementes das
plantas foram colhidas como alimento para animais e so-
mente mais tarde transformadas em alimento para os seres
humanos. Possivelmente, as lentilhas silvestres cresciam em
extensões pequenas e reduzidas, tendo um número baixo
de sementes por planta, o que as tornariam pouco econó-
micas para o seu cultivo, mas se a planta fosse colhida intei-
ra, poderiam ainda ser adequadas para a alimentação dos
animais. A grande vantagem de animais como a ovelha e a
cabra (que foram domesticadas por volta de 8000 a.C) e,
mais tarde, o gado, é que esses animais não competem di-
retamente com os seres humanos na busca do alimento. Na
verdade, eles convertiam o que normalmente seria material
inadequado para o consumo humano, como o capim, em
produtos utilizáveis como a carne e, por esse motivo, expan-
diram enormemente a amplitude de alimento disponível
para os seres humanos. Certos animais, como o porco, com- caça (principalmente de gazelas e onagros), da criação de
petem diretamente pelas fontes de alimento humano e pos- cabras e de algumas ovelhas, e da colheita intensa de uma
sivelmente por esse motivo não foram domesticados até grande variedade de plantas silvestres. Esse padrão susten-
6500 a.C., no mínimo, quando o abastecimento de alimentos tou uma grande mistura de povoamentos — pequenas al-
provavelmente teria sido mais amplo. deias de aproximadamente 100 pessoas (não necessariamen-
À medida que eram adotadas novas técnicas, é perfeita- te ocupadas o tempo todo) que exploravam os cereais e
mente possível traçar a transformação gradual da subsistên- legumes silvestres, juntamente com os acampamentos e ca-
cia humana e, como consequência, da sociedade humana, vernas sazonais, que eram usadas para a caça. Na fase seguin-
através das regiões do sudoeste da Ásia. Mais uma vez não te, a colheita de plantas tornou-se menos importante e foi
existe uma demarcação clara ou um desvio súbito da caça e superada pelo cultivo de cereais em combinação com a cria-
colheita para a agricultura e, sim, urna mistura de estratégias ção de cabras. Esse sistema mais intenso permitiu a cons-
em evolução, com uma transição lenta em direção de formas trução de casas e aldeias maiores. Por volta de 8500 a.C., nas
de exploração mais intensas, por um longo período de tempo montanhas de Zagros, as ovelhas estavam sendo criadas (que
de 3.500 anos, depois de 10000 a.C.i No Cazaquistão, nas possivelmente não seriam domesticadas nessa região), grãos
fraldas das montanhas Zagros, no início da fase semi-agríco- silvestres eram colhidos e a caça continuava sendo importan-
la, as populações alimentavam-se de uma combinação de te. Por volta de 7500 a.C., os habitantes de Jarmo, um povoado

88 89
com cerca de 25 casas, dependiam de um sistema bastante trigo e de outros cereais, juntamente com a criação de ovelhas
intenso de cultura mista, cultivo de cevada domesticada, tri- e de cabras domesticadas, embora a caça de javalis, porcos-
go vermelho de dois núcleos e ervilhas, juntamente com a do-mato e gamos continuasse sendo importante. A maioria
criação de ovelhas e cabras, enquanto que caça fornecia so- desses povoados tinha algumas poucas centenas de habitan-
'r jnente uns 5 por cento de sua alimentação total|Na Palestina tes, com talvez um pequeno punhado de artesãos especia-
e na Síria, a cultura Natufi, que floresceu nos 1.500 anos que lizados, mas ainda com muito pouca diferenciação social. A
se seguiram a 9000 a.C, baseava-se originalmente em uma cerâmica foi inventada aproximadamente no ano 6000 a.C.,
combinação de colheita de grãos nativos e a criação de gazelas mas as populações continuaram a se utilizar da tecnologia,
e cabras, sem uma domesticação completa, mas, uma vez pois os grupos de colheita e caça, baseadas em ferramentas
mais, com a caça desempenhando um papel menos impor- de pedra com metal, como o cobre, eram utilizados somente
tante. A domesticação do trigo vermelho e do trigo de um só com finalidades ornamentais. Nem Jericó nem Catai Húyúk
núcleo e de alguns legumes capacitou-os a produzir mais eram cidades na verdadeira acepção da palavra, visto que não
alimentos, conduzindo à primeira grande colonização de possuíam uma estratificação social significativa e que ambas
aproximadamente umas 2.000 pessoas em Tell-es-Sultan, re- dependiam de condições locais particulares — o poço de
gião que possivelmente seria habitada somente durante parte Jericó e a exploração de depósitos de obsidiana em Catai
do ano, na época das colheitas. No final dessa longa transição, Húyúk, que era negociada em uma área muito extensa —
uma mudança fundamental rinha ocorrido — a subsistência para sua expansão. O desenvolvimento de cidades verdadei-
passara a depender do cultivo de várias espécies de plantas ras começou somente uns 1.500 anos mais tarde.
domesticadas, em campos especiais e das manadas controla- Por volta de 6000 a.C., completou-se o primeiro estágio
das de animais domesticados. da transformação da sociedade humana no sudoeste da Ásia
Por volta de 7000 a.C., à medida que a agricultura per- e a vida estabelecida transformava-se em norma. Todos os
manente foi sendo adotada, surgiram pequenos povoados cultivos mais importantes e a domesticação dos animais da
agrícolas espalhados por toda a região do sudoeste da Ásia. região estavam completos e não surgiu qualquer outro tipo
Essas comunidades foram se tornando cada vez mais seden- de modificação importante por mais alguns milhares de anos.
tárias, a partir do momento em que a exploração intensa de O cultivo e os animais domesticados nessa região eram de
pequenas áreas para o cultivo e a criação de animais signifi- uma importância crucial, visto que formavam a base para a
cavam que o rodízio sazonal dos acampamentos não era mais adoção da agricultura em outras regiões. Uma grande transi-
necessário. Então, quando a produção de alimentos em algu- ção ocorrida no sudoeste da Ásia transferiu-se para outras
mas áreas se tornou suficiente para o sustento de populações regiões, expandindo-se através de uma combinação de novos
maiores e permanentes surgiram as primeiras cidades. Por grupos que adotavam a agricultura e de colonizadores que já
volta de 6500 a.C., começou a desenvolver-se em Jericó, uma a praticavam, deslocando-se para novas áreas. Uma forma de
pequena aldeia, cercada de muralhas e ocupando aproxima- vida baseada no trigo e na cevada domesticados e na criação
damente uns dez acres. Uma cidade maior, ocupando possi- de cabras e ovelhas (e mais tarde, o gado) espalhou-se para a
velmente uns trinta e dois acres, foi construída em Catai Ásia central e para o vale do Nilo, praticamente inalterada e
Hiiyúk, no sul da Anatólia, que era dependente do cultivo de depois também para a Europa, onde foram necessárias algu-

90 91
mas adaptações complicadas. Fora um tipo de trigo de um só parte das florestas temperadas, que era ainda uma tarefa difícil
núcleo, todas as plantas usadas nos estágios formativos da de ser executada com os recursos disponíveis — machados de
agricultura europeia vieram do sudoeste da Ásia, assim como pedra e queimadas. (No Oriente Próximo, grande parte da
os animais — as ovelhas e as cabras não eram nativas da terra deveria estar coberta por um tipo de vegetação mais
Europa pós-glacial. Até mesmo a faca de segar europeia e a aberta.) Depois de derrubarem as árvores, os grãos eram plan-
pedra de moer (moinho manual) tinham o mesmo formato tados na clareira recém-aberta, com o solo enriquecido com
que as da Ásia. Apesar desse feitio comum não se torna ne- cinzas, até que a produção começou a decair. Na base de "corte
cessário visualizar uma onda de colonizadores agrícolas es- e queima", novas áreas foram abertas e os locais abandonados
palhando-se pela Europa. Em muitos lugares, a agricultura puderam converter-se em grama, através de uma sucessão
era claramente empregada pelos colhedores e caçadores exis- secundária, em espinheiros, arbustos e matas, para serem der-
tentes, embora a Europa Central tenha sido, sem sombra de rubadas novamente, décadas mais tarde. Devido à dificuldade
dúvida, colonizada por novos grupos de agricultores. No de conservar a fertilidade dentro das quantidades limitadas de
Mediterrâneo oriental, a adoção da agricultura apresentou adubos disponíveis, os campos e pastagens permanentes se-
poucos problemas, pois o clima não era muito diferente do riam formados e mantidos somente com a pressão da popula-
sudoeste da Ásia e entre 6000 e 5000 a.C. a Grécia e o sul dos ção que crescia ainda mais. Outras mudanças também foram
Balcãs trocaram a base de sua subsistência, passando a usar provocadas pelas condições diferentes da Europa. O clima
a agricultura. O gado deve ter sido primeiramente domes- forçou uma mudança no cultivo. A aveia e o arroz inicialmente
ticado aqui, nessa época, espalhando-se depois para o su- cresciam como erva daninha nos primeiros campos cultivados
doeste asiático (embora não tenham sido ordenhados por do sudoeste da Ásia, mas floresceram no clima mais frio e
aproximadamente mais uns 3.000 anos). úmido do noroeste da Europa, transformando-se em grãos.
O avanço da agricultura para o centro e o norte da Europa Independente de tais mudanças, os primeiros agricultores da
levou quase três milénios, depois de ter sido adotada pela Europa adotaram quase que o mesmo padrão do sudoeste da
Grécia e esse longo período indica as dificuldades envolvidas Ásia—pequenos povoados de agricultores, que obtinham sua
na adaptação do que originariamente eram grãos e técnicas subsistência pelo cultivo misto.
adequadas para os verões secos, tendo que passar a ecossis- Alguns produtos e^ animais extras foram domesticados
temas de climas diferentes encontrados na região. Por volta de no Sul da Europa e da Ásia, depois de cerca de 6000 a.C. No
4000 a.C., a agricultura era predominante nas regiões costeiras Mediterrâneo, eram cultivados azeitonas, uvas e figos, em
do Mediterrâneo, apesar de não apresentar-se de maneira con- torno de 4000 a.C., mas somente as videiras foram levadas
tínua, transferindo-se para as terras mais facilmente traba- para o norte da Europa, sendo muito mais tarde introduzidas
lháveis da Europa central, nas áreas do Reno/Danúbio e do pelos romanos em várias áreas, nos primeiros séculos depois
Vístula/Drava. Entre 3000 e 2000 a.C., a agricultura foi adotada de Cristo. O dromedário e o camelo bactriano foram domes-
no noroeste da Europa e mil anos depois chegou à Dinamarca ticados entre 2000 e 1500 a.C., mas o animal mais importante
e o sul da Suécia. Além dessas áreas, os colhedores e caçadores a ser introduzido foi o cavalo, logo depois de 3000 a.C. O uso
continuavam com seu velho estilo de vida, A maioria dos cam- do cavalo, além de revolucionar os assuntos de guerra no
pos e pastos da Europa só pôde ser criada pela derrubada de Oriente Próximo, mudando o papel do carro e desenvolven-

92 93
China partículas, formado pelo vento, muito fácil de ser trabalhado,
mesmo com a utilização de ferramentas primitivas para cavar.
Fronteira do ,Os solos dessa área eram espessos, não sofrendo a ação de
mundo
clássico chinês ventos fortes, o que permitia a existência de altos teores de
minerais. Existia somente uma ténue cobertura de árvores e,
embora a área seja semi-árida, a chuva na maioria das vezes
acontece no verão, o que torna possível o cultivo de grãos. A
região continha originariamente grandes quantidades de
grama silvestre, algumas das quais poderiam servir para o
cultivo e domesticação. Os grãos domesticados na China di-
ferem grandemente dos do sudoeste da Ásia. O trigo e a
cevada não são nativos (precisam de um pouco de chuva no
inverno): o trigo não foi introduzido antes de 1300 a.C. e a
cevada, ligeiramente mais tarde. Pelo contrário, a agricultura
estava baseada no milho miúdo e no arroz, que crescia como
grão de terras secas e não em campos especialmente inunda-
dos. Durante um longo período, o milho miúdo foi o grão
principal e a base para a agricultura do lavrador e o arroz, um
alimento de luxo para as elites. Somente mais tarde o arroz
foi adaptado para crescer mais ao sul, em campos molhados.
Os primeiros milénios da agricultura chinesa diferiam em um
aspecto muito importante, tanto da do sudoeste da Ásia,
do a cavalaria, permitiu também o desenvolvimento de uma quanto da da América Central. Foi desenvolvido nas duas
nova cultura nas planícies da Ásia Central. Daí por diante, outras regiões um regime agricultural nutricionalmente equi-
durante milhares de anos, a história do Oriente Próximo, da librado, baseado em uma semente de cereal forte e legumes
China, da índia e da Europa seria grandemente influenciada ricos em proteínas. Embora a soja seja nativa, ela foi domes-
por ondas sucessivas de cavaleiros nómades, como os hunos ticada muito mais tarde — em torno de 1100 a.C., nas planí-
e os mongóis, que surgiam e se estabeleciam sobre as socie- cies do norte da China—espalhando-se depois rapidamente,
dades já existentes. mas, até então, a agricultura chinesa era dominada pela pro-
A segunda área fundamental que viu o desenvolvimen- dução de sementes de grãos. Os porcos e as galinhas foram
to da agricultura foi a China. O quadro moderno da agricul- os primeiros animais a ser domesticados, seguidos muito
tura na China é o cultivo do arroz encharcado em campos mais tarde pelas ovelhas e cabras.
inundados, mas a origem da agricultura repousa em um am- Os primeiros locais de moradia são encontrados, não às
biente muito diferente, entre as planícies semi-áridas do nor- margens do rio Amarelo, uma área densamente povoada
te do país. Loess é o nome de um solo constituído por finas posteriormente, mas em terraços e plataformas elevados ao

94 95
América Central
principais a desenvolver a agricultura. A maioria das evidên-
cias sobre o processo procede das terras altas do México —
Tehucan e Oaxaca — onde o clima é seco o bastante para a
conservação de remanescentes vegetais. Por volta de
6000 a.C. (quando a agricultura já se espalhara por todo o
sudoeste da Ásia), a região ainda estava ocupada por grupos
que dependiam de uma grande variedade de recursos ali-
mentares. Caçavam pequenos animais, como o coelho e a
corça, colhiam nozes e feijões e apanhavam grama silvestre,
uma espécie primitiva de milho e várias espécies de abóbora.
Esses grupos ainda levavam uma vida nómade, utilizando
recursos sazonais e uma grande variedade de animais como
gafanhotos, lesmas, micos-, lagartos e cobras. Durante a es-
tação seca viviam em grupos pequenos, mas se juntavam em
longo dos tributários do rio. O milho miúdo foi primeiramen- grandes grupos de cerca de uma centena na estação da chu-
te domesticado por volta do ano 6000 a.C. e as primeiras va, quando o alimento era mais abundante. Por volta dessa
comunidades estabelecidas desenvolveram-se aproximada- mesma época, ou um pouco antes, foram dados os primeiros
mente no mesmo período. No intervalo de mil anos, peque- passos para o estabelecimento da agricultura, não através do
nos povoados desenvolveram-se utilizando a mesma prática cultivo de cereais silvestres, mas pela criação de pequenos
agrícola das usadas no sudoeste da Ásia, mas o processo levou jardins para o cultivo de grande variedade de plantas que
de três a quatro mil anos para ser implantado, desenvolven- foram inicialmente colhidas na mata (contudo, o trabalho
do-se independentemente. O cultivo mais ao sul, no vale do feito para manter esses canteiros não impedia que continuas-
Yang-tse, usando o arroz e abrindo clareiras através do sis- sem com sua vida nómade). Foram cultivadas perto de trinta
tema "swidden", começou pouco depois de 5000 a.C. e, mais plantas, não apenas para alimento, mas também para tintu-
uma vez, foi logo seguido pelo desenvolvimento de peque- ras, remédios e (como no caso da cabaça) para recipientes. A
nos povoados. A China não foi a única área onde o arroz foi lista incluía a pimenta chili, os tomates, abacates, mamões,
domesticado. Ao que parece, sofreu várias domesticações goiabas, cinco tipos de abóbora, cabaças e feijões. Algumas
(mais de um tipo) na índia e através do sudoeste asiático num das primeiras dessas plantas podem ter sido domesticadas
largo cinturão, que vai do sopé do lado sul do Himalaia, por volta de 7000 a.C., mas muitas, como a piteira, a opúncia
cruzando o alto Burma e o norte da Tailândia, chegando ao e a algarobeira, não mostram alterações em sua domesticação
Vietnã e ao extremo sul da China. e, portanto, datá-las é particularmente difícil. O uso das plan-
A América Central (numa área que compreende os mo- tas também mudou com o decorrer do tempo. As abóboras
dernos estados da Guatemala, de Belize, parte de Honduras cresciam, originariamente, através das sementes, mas o cul-
e São Salvador e, mais importante de todos, o México, ao sul tivo alterou gradativamente o paladar de sua polpa amarga,
e ao leste do paralelo 24 graus norte) foi a última das três áreas para uma variedade doce, mais saborosa.

96 97
O desenvolvimento em grande escala da agricultura na rapidamente através da América Central Mas essa longa
América Central atrasou-se devido a dois fatores. O primeiro transição/ no sentido de comunidades estabelecidas, teve um
foi a ausência de animais adequados à domesricação. O iso- efeito profundo sobre a história do mundo. Significou que a
lamento geográfico das Américas significava que, diferente- evolução das sociedades complexas na América Central co-
mente da Europa e Ásia, lá não existiam ovelhas, cabras ou meçou uns 4.000 anos após a Europa e a Ásia. Assim, quando
gado. Isso significava também que a caça de animais era uma os primeiros europeus chegaram nas Américas, no século
• •
atividade vital para o fornecimento de carne suficiente para dezesseis, encontraram uma sociedade que era, em muitos
a dieta alimentar. De importância maior, no entanto, foi o aspectos, comparável à da Mesopotâmia, cerca do ano
papel representado pelo milho, o grão mais importante a ser 2000 a.C
domesticado. A origem exata do milho permanece sendo um Uma área subsidiária da América Central no desenvol-
assunto bastante controvertido, especialmente sua relação a vimento da agricultura foi o Peru que, em termos arqueoló-
uma grama silvestre chamada teosinto. O milho pode ter tido gicos, incluiu grandes partes da Bolívia e do Equador. O
as suas origens no teosinto ou em um seu ancestral diferente,
porém desconhecido, ou pode ainda ser de origem híbrida,
l milho espalhou-se em direção do Sul, a partir da América
Central, para alcançar os cumes andinos por volta de
possivelmente envolvendo o teosinto. O milho vinha sendo 1000 a.C. e nas regiões costeiras perto de 150 anos depois.
cultivado desde 5000 a.C., mas ainda era um grão muito Outras plantas como as pimentas chili e os feijões foram do-
pequeno. As primeiras espigas não eram maiores que o dedo mesticados em ambas as áreas, mas de diferentes progenito-
polegar e, pelo menos durante 2.000 anos, eram mascadas, ao res silvestres. Um cultivo importante do Peru, que existia
invés de transformadas em farinha. Por motivos genéticos, unicamente para os habitantes das terras altas dos Andes até
era difícil cruzar-se o milho com outras espécies, para produ- o século XVI d.C, foi a batata. A data exata da domesricação
zir variedades com melhor produção. Os primeiros pés de é desconhecida, mas só pode ter ocorrido quando a seleção
milho cultivados eram, virtualmente, semelhantes ao produ- dos tubérculos reduziu os níveis, naturalmente altos, de ve-
to silvestre e era somente ligeiramente maior, devido às me- neno e de glicoalcalóides. A seleção dos tubérculos silvestres
lhores condições de crescimento. As primeiras variedades com a intenção de aumentar-lhes o tamanho parece ter aju-
mais produtivas surgiram por volta do ano 2000 a.C. e as dado. Nas terras altas dos Andes, o elemento central do com-
espigas de milho atuais são cerca de nove vezes maiores do plexo alimentar era a batata, incluindo também a oca, o ullu-
que as primeiras variedades domesticadas. Essa baixa produ- co, o anu e um grão — a quinoa.
tividade dos primeiros tempos do desenvolvimento agrícola O desenvolvimento da agricultura nas outras partes do
da América Central significou que, por um longo tempo, era mundo é muito mais difícil de acompanhar, em parte porque
mais económico colher o alimento diretamente das plantas foram feitas muito menos pesquisas arqueológicas, mas tam-,
silvestres do que depender do milho. Mesmo depois de 2.000 bem pelo fato de que os remanescentes das plantas não foram
anos de domesticação, as plantas cultivadas faziam parte de bem preservados nos locais e, ainda, porque muitas das plan^
somente um quarto da dieta alimentar. E antes de 2000 a.C. a tas apresentam poucas modificações quando domesticadas.
produtividade não era grande o suficiente para sustentar a A domesricação de tubérculos e raízes pode ter ocorrido no
vida nos povoados que, depois, se desenvolveram bastante sudoeste da Ásia e na Nova Guiné por volta de 7000 a.C.,

98 99
usando a taioba e o inhame, que teriam necessitado de pouco ciedades estabelecidas, como também mudou radicalmente
mais do que o cultivo de variedades silvestres em lotes es- a própria sociedade. Os grupos de caça e de colheita eram
pecialmente cuidados, A taioba e o inhame formavam a base essencialmente igualitários, mas as comunidades sedentá-
da agricultura nessas regiões, sendo normalmente combina- rias, quase que desde o início, resultaram em uma especia-
das com outras plantas como a fruta-pão, o bambu, o coco, as lização crescente dentro da sociedade e o surgimento de elites
bananas e as palmeiras e em associação com animais como as religiosas, políticas e militares e um estado com o poder de
galinhas e os porcos, que eram domesticados indepen- dirigir o resto da sociedade. Na raiz dessas mudanças sociais
dentemente na região. Esse complexo agrícola formava a base encontrava-se uma nova atitude em relação à posse do ali-
agrícola dos habitantes da Polinésia, à medida que se espa- mento. Os grupos de caça e de colheita geralmente conside-
lhavam pelo Pacífico, O inhame também foi domesticado nas ravam as plantas e os animais não como coisas ''possuídas"
áreas tropicais do oeste da África, mas a época é desco- por indivíduos e sim disponíveis para todos. As plantas e os
nhecida. No período compreendido entre 7000 e 3000 a.C, as animais são retirados da selva e, normalmente, existem fortes
terras baixas do leste dos Andes produziram um complexo convenções sociais em relação à forma como o alimento deve
tropical diferente, a partir das plantas existentes na região — ser compartilhado com todos os membros do grupo. A agri-
a mandioca, a batata-doce e a araruta (e possivelmente tam- cultura introduziu a ideia de posse do alimento, tanto para
bém os amendoins). Estes se espalharam, depois, para outras indivíduos como por organizações maiores. A mudança para
áreas tropicais do sul e do centro da América e do Caribe. o plantio em campos e a prática da criação de manada de
Por volta de 2000 a.C., todas as atividades agrícolas mais animais abriu o caminho para considerar os recursos usados
importantes, assim como os animais que formam os sistemas e os alimentos como "propriedade" e o maior tempo e esforço
agrícolas contemporâneos mundiais, já tinham sido domes- despendidos, em comparação com a colheita e a caça, re-
ticados. Contudo, durante milhares de anos, aconteceram forçaram essa tendência.
correntes de desenvolvimento agrícola diferente, como resul- A principal vantagem da agricultura, em contraposição
tado da falta de contato entre a Eurásia e as Américas e até à caça e à coíeta, é que, para compensar o grande trabalho,
mesmo entre as diferentes partes da Europa e da Ásia. Então, ela permite uma produção maior de alimentos em área me-
em duas etapas, os vários sistemas, separados, juntaram-se. nor. Uma vez que esse esforço maior é despendido, existe
A partir do século VII d.C., os comerciantes islâmicos trouxe- normalmente uma produção que excede as necessidades
ram muitos dos produtos agrícolas semitropicais do sudeste imediatas da família do lavrador. Esse excesso pode, então,
asiático para o Oriente Próximo e o Mediterrâneo. Depois, ser usado para alimentar e sustentar os indivíduos não envol-
muito mais tarde, no século dezesseis, os produtos agrícolas vidos na produção de alimentos. Os primeiros não-lavrado-
americanos foram levados para a Europa (e, por conseguinte, res foram, provavelmente, os artesãos que faziam a cerâmica,
para a Ásia) e as plantas e animais europeus foram levados as ferramentas e outros artigos especializados, para a comu-
para a América e a Australásia. nidade. Mas os grupos governantes, provavelmente religio-'
sós primeiro e políticos depois, encarregaram-se rapidamen-
A adoção da agricultura foi a mudança mais fundamental da te da distribuição de funções. Surgiram então sociedades com
história humana. Não só produziu pela primeira vez as so- grandes elites administrativas, religiosas e militares, capazes

100 101
A PRIMEIRA GRANDE TRANSIÇÃO de estimular os agricultores à produção de alimentos e orga-
nizar sua distribuição para as outras partes da sociedade.
DATA SUDOESTE DA
a.C. ASIA/MESOPOTÁMIA
CHINA AMÉRICA CENTRAL Paralelamente, a posse desigual da terra e, por conseguinte/
9000 Domes ticação de ovelhas do alimento, emergiu rapidamente.
8500 Primeiras colónias No seu sentido mais amplo/ a história humana nos 8.000
semipermanentes anos ou mais, a partir do surgimento das sociedades agrícolas
8000 Einkorn/emmer/cevada
completamente estabelecidas, tem sido a da aquisição e distribuição do exce-
domesticados dente da produção de alimentos e do seu uso. A quantidade
Domestica cão das cabras
7500 Florescimento da Aldeia de dos excedentes de alimentos disponíveis em uma sociedade
Jarmo particular determinava o número e a extensão de outras fun-
7000 Florescimento das cidades de ções —religiosas/ militares, industriais, administrativas e cul-
Jerícó/Çatal Hiiyuk
6500 Domestícação dos porcos turais — que a sociedade poderia manter. Sem um excedente
6000 Domesticação do gado na Domesticação do Domesticação das de alimentos, teria sido impossível alimentar padres, um
Europa milhete pimentas/tomates
Primeiras cerâmicas • • abóbora/cabaça exército, trabalhadores da indústria, administradores e inte-
5500 Primeira irrigação em Desenvolvimento lectuais. O elo poderia ser mais óbvio em sociedades primiti-
Khuzistan 'das primeiras
aldeias da região vas mais simples, mas ainda está presente nas sociedades
do Rio Amarelo contemporâneas. Na Europa medieval e em muitas outras
5000 Primeiras colonizações na Arroz domesticado/ Cultivo do milho
Mesopotâmia primeiras aldeias
sociedades feudais e quase-feudais havia uma relação direta
da área do entre a quantidade de terra possuída e provisão de serviço
Yangtse militar e a Igreja obtinha o alimento tanto pela posse direta
4500 Construção de templos alta
escala na Suméria da terra ou através da coleta de dízimos. A redistribuição de
Uso da roda alimentos ocorreu tanto dentro das sociedades individuais
4000
3500 Primeira inscrição na Suméria como entre as sociedades. Todas as sociedades deveriam dis-
3000 Grandes cidades/ por de um mecanismo para a alocação dos excedentes de
sociedade estratificada/
governadores seculares na alimentos para os não-lavradores. Isso poderia ser através da
Suméria posse direta de terras pelos governantes, das elites e das
2500 Império Akadiano na Suméria
2000 Primeiras cidades/ Primeiras variedades
organizações religiosas, como na maioria das sociedades pré-
sociedade de milho industriais, por um mecanismo de mercado (ajudado por
estratificada Desenvolvimento das grandes subsídios), como nas modernas sociedades indus-
primeiras aldeias
1500 triais do oeste, por mecanismos religiosos, provavelmente
1000 Primeiros centros respaldados por uma ameaça de força, como em muitas so-
cerimoniais
500 Cultura Olmec ciedades antigas, ou pelo uso da força bruta como demons-
a.C/ Desenvolvimento de trado pela União Soviética no princípio de 1930, durante o
d.C cidade importanter
em Teotihuacan
movimento coletivista e industrial. Õ desenvolvimento de
maiores estados e impérios tornou possível extrair um exce-

102 103
dente de alimentos de territórios dependentes, induzindo- de muito maior de alimento possa ser obtida de uma área
os, através de vários métodos, a cultivar safras destinadas ao ainda menor. Entre 7000 e 6000 a.C., a população agricultu-
poder dominante. O Império Romano conseguiu isso nas ral do sudoeste da Ásia ficou confinada principalmente nas
regiões mediterrâneas, transformando o Egito e o Norte da zonas mais elevadas, mas nos mil anos que se seguiram, a
África em áreas produtoras de grãos para a Itália e para Roma população parece ter aumentado rapidamente, de modo
em particular. Os estados europeus empregaram a mesma que cada área adequada à lavoura seca foi ocupada. Foi
política, a partir do século dezasseis, nas suas colónias e em nesse momento que algumas comunidades foram obriga-
suas esferas de influência, introduzindo o cultivo de novos das a explorar os meios ambientais mais difíceis da Meso-
grãos e novos métodos de produção, fazendo com que os potãmia — uma área que não possuía uma quantidade su-
territórios dependentes mudassem de cultivo de subsistência ficiente de chuva, de pedras e de madeira e que exigia a
para a produção de grande escala destinada ao mercado eu- adoção de técnicas de irrigação. No início, os povoados
ropeu. ficaram restritos às áreas que podiam ser mais facilmente
O desenvolvimento de mecanismos eficazes e ampla- trabalhadas, do norte da Mesopotâmia, e só muito lenta-
mente utilizados para a extração de excedente de alimento mente foram avançando para o sul, onde eram necessários
levou algum tempo para aparecer. As primeiras comunidades trabalhos mais intensivos de irrigação. A terra era inicial-
estabelecidas no sudoeste da Ásia, na China e na América mente fértil e produzia colheitas abundantes, com níveis
Central, eram pequenos povoados constituídos quase que elevados de um excedente alimentar. No entanto, somente
inteiramente de pequenos lavradores com especializações uma pequena parte da terra disponível podia ser irrigada,
muito limitadas. Mas a pressão das populações em expansão, por causa dos problemas técnicos existentes na construção
que foi lentamente forçando a adoção de uma produção mais e manutenção dos canais, sendo conseqúentemente neces-
intensa de alimentos, não acabou com a evolução da agricul- sários uma organização e um controle consideráveis, que
tura e das comunidades estabelecidas; muito pelo contrário, assegurasse o uso mais produtivo das fontes limitadas. Com
intensificou-se. Isto provocou o desenvolvimento ainda mais o contínuo crescimento da população/ os estabelecimentos
intensivo das formas de produção de alimento em meios tornaram-se mais densos, por causa do espaço limitado exis-
menos favoráveis, à medida que os grupos de pessoas eram tente para a expansão. Todos esses fatores tiveram efeitos
empurrados para áreas ainda mais marginais. importantes nos desenvolvimentos da Mesopotâmia.
A agricultura primitiva no sudoeste da Ásia era a da No período posterior a 5000 a.C., a Mesopotâmia foi ocu-
lavoura seca —que dependia da chuva para a produção das pada por comunidades que apresentavam uma cultura mais
colheitas. O surgimento da irrigação, em torno de 5500 a.C, uniforme; as pessoas estabeleciam suas colónias ao longo dos
no sudoeste de Khuzistan (nos limites orientais da Mesopo- rios, para que a irrigação ficasse confinada a uma escala relati-
tâmia), é outra ilustração da mesma combinação das pres- vamente pequena, a esquemas simples. Quase todos esses
sões que produziam a agricultura. A grande vantagem da povoados eram constituídos de pequenas cidades ou aldeias,
irrigação é que, como retorno de um esforço ainda maior espalhadas pelo terreno, a distâncias praticamente iguais. Mes-
que o feito para a lavoura seca (quando cavavam e manti- mo a agricultura sendo vital para a subsistência básica, a caça
nham os canais de irrigação), possibilita que uma quantida- e a pesca, exercidas nos charcos das cercanias, continuavam

104 105
Mesopotâmia
zações religiosas. Por voíta de 3500 a. C., Uruk já era um centro
cerimonial bastante importante, com apenas pequenas coloni-
zações nas regiões adjacentes. Quinhentos anos rnais tarde, a
população de Uruk tinha crescido rapidamente para uns
50.000 habitantes e o número de estabelecimentos locais caíra
de 146 para 24, no que parece ter sido um processo de aumento
do controle político, o que forçou um restabelecimento na
cidade principal da região. Podem ser detectados processos
semelhantes, apesar de acontecerem em uma escala menos;
drástica, em outras cidades da região, tais como em Ur, Kish,
Lagash e Umma, todas apresentando populações de aproxi-
madamente 10 ou 20.000 habitantes. Paralelamente com essa
grande explosão de urbanização, os trabalhos de irrigação tor-
naram-se mais extensos, complexos e distantes dos rios; nas
grandes áreas onde não existiam cursos de água naturais, fo-
ram construídos canais, para possibilitar o aumento da área
disponível para a produção de alimentos, ao mesmo tempo
que a população continuava a crescer.
Aproximadamente em 3000 a. C, a região do sul da
sendo fontes importantes de alimento suplementar. As pesqui- Mesopotâmia, conhecida como Sumária, estava dominada
sas arqueológicas das primeiras cidades revelaram um grau por oito grandes cidades. Dentro dessas cidades começavam
considerável de organização social interna, desde o início do a surgir mudanças sociais muito importantes. A produção de
povoamento da área. Quase todas tinham grandes templos uma quantidade extra de alimentos envolve muito mais do
como centro da vida urbana, representando uma parte funda- que simplesmente o cultivo de um excesso sobre as necessi-
mental na redistribuição dos recursos entre os fazendeiros, a dades do cultivador. O excedente tem que ser transportado,
elite religiosa e os trabalhadores especializados, através do armazenado e redistribuído, o que requer instituições capa-
controle da produção de alimentos e da distribuição de rações zes de organizar o processo. O controle do excedente também
a todos os membros da comunidade. Uma intensificação desse exige determinação de quem.possui e quem trabalha a terra
processo de controle do desenvolvimento ocorreu no sul da e de quem tem direito aos alimentos. Desde o início, o templo
Mesopotâmia, a partir de aproximadamente 4500 a.C. Foram representava um papel principal na organização da socieda-
construídos templos enormes em Uruk (inclusive um de 74 de da Mesopotâmia. Nas colonizações primitivas, parece que
metros de comprimento, 66 de largura e 13 metros de altura), o templo possuía toda a terra e que seus sacerdotes e adminis-
que eram periodicamente reconstruídos. Isso naturalmente tradores eram responsáveis pela colheita, a estocagem e sub-
exigia a organização de quantidades elevadas de trabalho, ilus- sequente distribuição dos alimentos, frequentemente feita
trando o grau de controle já exercido pelas principais organi- em rações uniformes. Outras fontes agricultoras também

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eram mantidas de maneira central — em Shuruppak, o tem- terra não era mais que uma posse do templo ou da cidade,
plo possuía e cuidava de 9.660 burros — e a lavoura era mas de indivíduos particulares, completando dessa maneira
organizada através de grupos de trabalho. A quantidade do o total desenvolvimento de uma sociedade de classes, com as
poder exercido pela elite religiosa não era estática e mecanis- famílias dominantes manejando a força política e controlan-
mos de realimentação em larga escala eram operados. Os que do as grandes propriedades, com sua força de trabalho de-
possuíam a autoridade procuravam aumentar o controle e pendente Em uma escala mais ampla, em 1800 a.C., quando
extrair um excedente ainda maior, adquirindo mais força atra- o sul da Mesopotâmia fazia parte do império babilónico, exis-
vés de sua capacidade para dirigir mais recursos. Um exce- tiam classes legalmente separadas de nobres, plebeus e es-
dente maior criava a capacidade de manter mais não-fazen- cravos.
deiros e, com a continuação desse processo, maior era o grau Paralelamente a esses desenvolvimentos e à pressão
de diferenciação social, até o surgimento de classes distintas, crescente para a existência de maior especialização e estra-
com acesso definitivamente diferente à riqueza e ao poder. tificação dentro da sociedade, surgiram vários avanços tecno-
Essa estrutura estatal mais poderosa oferecia benefícios reli- lógicos, que ocorreram nos primeiros estágios da colonização
giosos à explosão populacional, fornecendo alimento, traba- da Mesopotâmia. A fundição do cobre começara na Anatólia
lho e um eventual serviço militar proporcional ao crescimen- pouco antes de 6000 a.C., e já estava em uso na Mesopotâmia
to da rivalidade entre os estados da cidade. aproximadamente uns mil anos mais tarde e a roda foi desen-
Nas cidades da Suméria, por volta de 3000 a.C, desen- volvida pela primeira vez para fazer a cerâmica, em torno de
volveram-se sociedades de classe fortemente estratificadas: 4500 a.C. Esses dois processos requeriam especialistas treina-
havia os escravos na parte mais baixa da hierarquia, a massa dos, que tinham que ser alimentados por outros membros da
da população era constituída de agricultores e, acima dela, sociedade. Apesar dos instrumentos de metal serem mais
estavam os artesãos e, depois, uma elite administrativa, reli- duráveis do que os de pedra, grande parte dos primeiros
giosa e militar. O surgimento da rivalidade entre as cidades trabalhos feitos em metal tomaram a forma de itens de luxo
levou a um militarismo crescente, às fortificações e à organi- para a elite. Em seguida, a roda foi adaptada para veículos
zação de milícias. Uruk construiu uma enorme muralha for- puxados por animais domesticados. Mas o desenvolvimento
tificando sua cidade, de 9,5 quilómetros de circunferência, de mais importante de todos foi a invenção da escrita, estimu-
4 a 5 metros de espessura, com grandes torres de defesa, A lada pela necessidade que os templos tinham de registrar
crescente importância da guerra levou a emergência de líde- todas as transações complexas envolvidas na obtenção, na
res militares temporários, que rapidamente se transforma- estocagem e na redistribuição dos excedentes alimentares. As
ram em governadores permanentes, hereditários e seculares. primeiras tábuas de barro cozido usando uma escrita total-
Grandes palácios com staff de vários milhares de pessoas mente desenvolvida vieram de Eanna, o recinto sagrado de
(mais um grande número de escravos) surgiram ao lado de e Uruk, onde foram encontradas umas 4.000, datando de apro-
depois substituíram os templos como os principais edifícios ximadamente 3100 a.C. Essas tábuas fazem parte dos arqui-
da cidade. A importância crescente dos negócios de guerra vos administrativos do templo e 85 por cento delas tratam de
reforçou as tendências em direção a um maior controle e assuntos económicos, como a distribuição de recursos para a
direção internos sobre a sociedade. Em torno de 2500 a,C, a agricultura e a provisão de alimento para a população, em

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um sistema de racionamento bastante estrito. Essas tábuas o plantio em solo recentemente irrigado nos limites da pla-
ilustram mais uma vez a importância surpreendente de con- nície inundada e o cultivo de uma segunda colheita em lotes
troles centralizados, dentro de uma tentativa da sociedade de intensivamente plantados.
extração de subsistência de um meio ambiente difícil. O Egito desenvolveu-se de maneira diferente da Meso-
potâmia. Seu meio ambiente mais fácil e sua menor intensi-
Os primeiros passos dados na direção de sociedades estra- dade de irrigação significavam a existência de uma menor
tificadas, hierárquicas, com um grau elevado de controle pressão sobre a terra em comparação com a Mesopotâmia e,
estatal, aconteceram na Mesopotâmia a partir de aproxima- consequentemente, não houve o surgimento de cidades alta-
damente 5000 a.C. Desenvolvimentos semelhantes, mas in- mente estruturadas. As duas grandes cidades egípcias de
dependentes, aconteceram no Egito, ligeiramente mais tar- Memphis e Karnak-Luxor eram essencialmente mercados lo-
de do que na Mesopotâmia e em seguida se repetiram no cais, centros de culto e residência de oficiais, diferentemente
vale do Indus, na China, na América Central e no Peru. Da das cidades populosas na escala de Uruk (que possuía uma
mesma forma que a Mesopotâmia, o vale do Nilo não foi população residente de aproximadamente 50.000 habitan-
uma das áreas originais para a domesticação de plantas e tes). A maior parte dos egípcios era constituída de campo-
animais: ambos serviram-se do sistema agricultural que neses que viviam em aldeias, e o sistema que regulava a
evoluíra no sudoeste da Ásia, adaptando-o para servir as enchente anual do rio Nilo permaneceu sendo uma respon-
suas condições locais. O vale do Nilo fora ocupado por sabilidade local e não central do estado. Mesmo assim, surgiu
grupos de colheita e de caça, que subsistiam da grande uma classe de elite de sacerdotes, administradores, guerrei-
quantidade de alimentos silvestres e de caça durante uns ros e governadores, como na Mesopotâmia, através da apro-
20.000 anos antes do surgimento das primeiras colonizações priação dos excedentes agriculturais. Essa estrutura política
agriculturais, por volta de 5500 a.C. A agricultura baseada fortemente centralizada continuou no entanto a depender de
em cordeiros, gado e trigo "emmer" estabelecera-se perfei- uma administração muito mais descentralizada da agricultu-
tamente bem no norte da África durante centenas de anos ra e do controle das enchentes baseada nas antigas nomar-
antes que os fazendeiros surgissem no vale do Nilo. O vale quias ou divisões do vale. A unificação do Egito em um único
longo, estreito e fértil fornecia um excelente ambiente para estado data convencionalmente de aproximadamente
a agricultura — muito melhor que o da Mesopotâmia. A 2950 a.C., com o surgimento da Primeira Dinastia. Isto acon-
enchente anual acontecia na mesma época do ano em que tece contemporaneamente com o período em que os gover-
crescia a colheita, que chegava a cobrir mais de dois terços nadores seculares se tornaram dominantes na Mesopotâmia,
da região imediata do vale. A irrigação artificial era ne- apesar do Egito possivelmente ter sido unificado por aproxi-
cessária somente em pequena escala, o que era fornecido madamente uns dez governadores antes da Primeira Dinas-
pela dragagem dos canais das enchentes naturais do rio, tia. Essa dinastia parece ser um início radicalmente novo, só
fazendo pequenos desvios nas barragens naturais e criando porque é contemporânea do surgimento da escrita, inventa-
pequenas represas de terra para reter a água. Essas medidas da independentemente da Mesopotâmia, algumas centenas
ajudavam a estabilizar os níveis da enchente natural, re- de anos mais tarde. Aqui, também, a função da escrita é
tendo a água em bacias para seu uso posterior, permitindo essencialmente administrativa — a alocação de recursos e

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alimentos — e não surge em um texto contínuo por mais 300 desenvolvimento dos sistemas de irrigação e do período con-
sequentemente mais longo antes do surgimento dos exce-
anos, dentes alimentares. As sequências e cronologia exatas das
O vale do Indus foi colonizado por migrações de fa-
zendeiros, que possivelmente avançavam para o leste vin- culturas primitivas chinesas são muito difíceis de serem es-
dos do sudoeste da Ásia, por volta de 3500 a.C, que cultiva- tabelecidas. As primeiras comunidades fazendeiras, que se-
vam o trigo e a cevada no clima comparativamente seco da guiram à domesticação do miíhete, o que ocorreu aproxima-
região e criando ovelhas e cabras domesticadas, juntamente damente em 6000 a,C, foram pequenas aldeias de mais ou
com algum gado. Como no Egito, o sistema de controle da menos 200 habitantes, que apresentavam uma estratificação
água era em escala essencialmente pequena, mas a apro- social muito limitada e os fazendeiros seguindo um sistema
priação do excedente de alimentos para os não-produtores limitado de cultivo, abrindo terreno por alguns anos, aban-
levou ao surgimento de uma sociedade altamente estra- donando-os em seguida, quando os níveis de fertilidade de-
tificada por volta de 2300 a.C. A principal característica da clinavam. Com o crescimento da população e o declínio das
sociedade do vale do Indus era sua uniformidade cultural terras não utilizadas, as colonizações tornaram-se permanen-
sobre uma região muito extensa. Existe muito pouca evidên- tes, com os fazendeiros adotando uma forma de rotação e de
cia do tipo de crescimento orgânico das colonizações e da manter a terra inativa, numa tentativa de manter a fertilida-
evolução das cidades, como aconteceu na Mesopotâmia. As de. O uso da roda de torno e outras técnicas de ofícios indu-
duas cidades principais — Harappa e Mohenjo-Daro —, ziram lentamente a uma sociedade mais estratificada. No
apesar de estarem distantes uns 65 quilómetros uma da entanto, a irrigação continuava sendo feita em uma escala
outra, foram construídas segundo planificações semelhan- muito reduzida e a cultura do miíhete continuava sendo
tes, sendo dominadas por cidadelas enormes (de 400 metros muito mais importante do que a do trigo ou do arroz. A
de comprimento e 200 de largura, construídas sobre plata- primeira sociedade urbana, estratificada, emergiu desse am-
formas artificiais-, de 13 metros acima do nível das enchen- biente por volta de 1750 a.C., no início do período Shang,
tes), onde ficavam situados todos os edifícios públicos im- quando toda a planície do norte da China estava sob um
portantes. Todas as cidades possuíam espaçosos celeiros único governante secular. Nas duas cidades principais —
centrais para estocagem e redistribuição de alimentos. Não Cheng-Chou e AnYang — uma área social e administrativa
temos conhecimento se a autoridade central da sociedade central estava circundada por uma muralha defensiva de
era religiosa ou secular, mas sabemos com certeza que ela terra maciça. Diferentemente, os governantes seculares da
era autoritária e capaz de mobilizar uma grande quantidade Mesopotâmia parecem ter dominado desde o início das co-
de trabalho e impor'uma uniformidade mais rígida dentro munidades estabelecidas, apesar de serem fortemente apoia-
de uma região maior do que as duas primeiras sociedades das pela elite religiosa, cujas funções ajudavam a integrar a
mais complexas a surgir no mundo. sociedade. Tanto os relatórios escritos como as investigações
O desenvolvimento do mesmo tipo de sociedades na arqueológicas confirmam que o período Shang assistiu ao
China foi um processo muito mais lento do que o da Meso- desenvolvimento de classes distintas. Os funerais demons-
potâmia, do Egito e do vale do Indus. Os motivos exatos não tram uma grande diferenciação de riqueza entre as diferentes
são muito claros, mas podem estar relacionados com o lento partes da sociedade e enquanto os governadores viviam em

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grandes palácios, os camponeses viviam em cabanas semi- mente por toda a metade ocidental do Japão, que passou a
subterrâneas. Como nas várias sociedades complexas seme- haver uma base para uma produção alimentar em níveis mais
lhantes encontradas na Mesopotâmia, no Egito e no vale do elevados, O aumento do suprimento de alimentos promoveu
Indus existiam mecanismos centrais para a estocagem dos uma maior especialização dos ofícios, inclusive da cerâmica
grãos (neste caso, em covas enormes) e a redistribuição dos (que agora era feita com o uso de rodas) e da produção de
mesmos. Havia também um forte controle central do traba- bronze. Com um cultivo mais intenso, uma sociedade mais
lho, não somente para a agricultura, mas também para outros complexa poderia ser mantida, apesar do desenvolvimento
trabalhos estatais, como a construção de palácios e templos. ter permanecido lento até o surgimento de um governo ja-
O desenvolvimento de uma sociedade altamente orga- ponês reconhecido, o que aconteceu depois da adoção da
nizada no Japão surgiu extremamente tarde em termos mun- escrita, introduzida pela China, no século VI d.C.
diais. O Japão era parcialmente dependente dos desenvolvi- Nas Américas, o desenvolvimento histórico desse tipo
mentos externos da China, mas a história de suas mudanças de sociedade foi fortemente influenciado por vários fatores
sociais demonstra claramente como foram necessárias as mu- ambientais. A dificuldade encontrada, por motivos genéti-
danças na produção dos alimentos para o surgimento das cos, na produção de variedades de milho de alta renda, em
sociedades estratificadas, especializadas. Apesar do início da comparação com a relativa facilidade com que o trigo e a
manufatura de cerâmica ter ocorrido em torno do ano cevada domesticados podiam ser cruzados com outros tipos
10000 a.C. (a mais antiga do mundo), durante um longo pe- para uma melhora na produção, significou que as comuni-
ríodo, as colónias eram pequenas, de umas quinze cabanas, dades estabelecidas só tinham surgido na América Central
sendo que a população dependia da caça de gamos, porcos e em 2000 a.C. As Américas também não tinham muitos ani-
da pesca. Mas foi somente em 1400 a.C. que os japoneses mais que pudessem ser domesticados (além do lhama e da
começaram a cultivar suas primeiras safras (a cevada e o alpaca no Peru). Apesar do princípio da roda já ser conhe-
arroz, possivelmente vindos da Coreia, que, por sua vez, os cido, ela não era usada para o transporte, porque não exis-
obteve da China). Mesmo assim, o objetivo de uma agricul- tiam animais de tração disponíveis. Os trabalhos em metais
tura em grande escala no Japão foi muito limitado, porque também estavam restritos principalmente a materiais em
mais de três quartos de terra eram inadequados ao cultivo. ouro e prata para a elite, por causa da ausência de depósitos
'Em sua forma primitiva, a agricultura, como em muitas facilmente utilizáveis e, assim, os instrumentos de pedra
outras regiões do mundo, estava baseada em um sistema continuaram a ser um padrão até a conquista europeia.
swiâden e as densidades populacionais eram muito baixas. Os Apesar desses inconvenientes, as sociedades hieráticas, so-
animais representavam uma parte muito pequena nessa so- fisticadas, se desenvolveram e alcançaram um progresso
ciedade, porque como a quantidade de terra era menor, isto cultural significativo igual e, em algumas áreas, maior do
significava que a prioridade deveria ser dada à produção da que os desenvolvimentos em sociedades semelhantes, em
colheita e, conseqúentemente, o peixe continuava sendo a qualquer outro lugar do mundo. Sem dúvida alguma, os
fonte mais importante de proteína. E foi somente quando o conhecimentos astronómicos e os sistemas de calendários
arroz tornou-se a base principal para a subsistência, no norte dos maias do século VI ao VIII d.C. foram provavelmente
de Kyushu, por volta de 300 a.C., espalhando-se gradativa- os mais adiantados do mundo, na época.

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O desenvolvimento de variedades mais produtivas de cidade foi totalmente planejada, possivelmente não exis-
milho aproximadamente em 2000 a.C. foi a base das primeiras tindo uma distinção nítida entre a autoridade política e
comunidades estabelecidas na América Central. Mas tudo religiosa e a população vivendo em áreas estritamente se-
isso ainda acontecia em pequena escala, e os povos depen- paradas. A elite vivia próxima dos templos e as áreas adja-
diam da colheita de plantas silvestres e da caça para sua centes eram ocupadas por artesãos e negociantes, que pro-
alimentação. Dentro dos mil anos seguintes, as primeiras duziam ou negociavam com objetos para a elite. Um
pequenas cidades e centros cerimoniais surgiram quando o número elevado de camp'oneses vivia em conjuntos densa-
milho foi se tornando uma parte importante da dieta alimen- mente habitados, provavelmente organizados sob a base de
tar. Da mesma forma que na Mesopotâmia, os grandes tem- clãs, dentro da cidade. Essa população altamente concen-
plos foram, desde o início, uma característica dessas colónias, trada recebia seus alimentos (frutas e vegetais, assim como
representando os centros de ré distribuição do excedente ali- o milho ubíquo) de diversas fontes. Um intenso sistema de
mentar para um número cada vez maior de artesãos, sacer- agricultura era fornecido pela irrigação feita no vale e por
dotes e administradores. Houve o desenvolvimento de gran- um sistema altamente produtivo de chinampas, ou jardins
des centros cerimoniais como o La Venta na costa do Golfo "flutuantes", nos pântanos ou nos lagos. Mais distante da
do México (importante centro olmec), com pirâmides de 130 cidade, mas ainda sob seu controle político, mais campone-
metros de comprimento, 60 metros de largura e 30 metros de ses produziam ainda mais alimento de plantações feitas nas
altura. Tais projetos, altamente ambiciosos, teriam exigido a encostas dos planaltos, em forma de terraços, em um sis-
mobilização de grande quantidade de trabalho humano. O tema semí-intenso, enquanto que nas fronteiras do territó-
avanço do desenvolvimento foi muito influenciado por um rio fazendeiros continuavam a depender da agricultura
salto da produção do milho, ocorrido em 400 ou 300 a.C., swiàâen, de baixa intensidade. A impressão surpreendente
quando duplicou a produção das espigas, que formou a base que temos de Teotihuacan é a de um imenso poder central,
do crescimento da complexidade social e da organização en- capaz de desenvolver e dominar uma cidade altamente uni-
contrada no período clássico na América Central, que durou ficada e ao mesmo tempo desfrutar dos fortes poderes de
de 300 a 900 d.C direção sobre o topo de uma sociedade rigidamente organi-
O centro desse desenvolvimento foi a cidade de Teoti- zada. O império Teotihuacan, que, no seu auge, influenciou
huacan. Situada no vale do México, que cobria uma área de toda a América Central, caiu por volta de 700 d.C. Foi subs-
aproximadamente dezesseis quilómetros quadrados, com tituído, quase que da mesma forma que a Suméria que foi
uma população de uns 100.000 habitantes e com suas enor- conquistada pelos acadianos, pelo império militar dos
mes pirâmides, avenidas cerimoniais e grandes praças, era Toltecs, que estavam baseados em Tuia (que também ficava
de uma concepção muito mais imponente do que qualquer no Vale Mexicano) que, por sua vez, foram suplantados
cidade da Mesopotâmia. Seu crescimento ilustra, mais uma pelos astecas, que tinham sua capital em Tenochtitlan (a
vez, o fato de como um aumento na produção alimentar atual cidade do México). Essas sociedades posteriores de-
propicia a formação de sociedades altamente estruturadas, pendiam do mesmo tipo de agricultura, especialmente dos
organizadas em torno de fortes instituições centrais, res- chinampas, e estruturalmente, tirando seu elemento militar
ponsáveis pela produção e distribuição dos alimentos. A que era maior, eram surpreendentemente semelhantes a

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Teotihuacan e exercendo igualmente um forte controle cen- os membros descontentes das famílias principais liderando
tral. revoltas populares.
E o modo pelo qual, por todo o mundo, o aumento da- A reação a esses crescentes problemas sociais e políticos,
produção de alimentos e o crescimento da população deu exacerbados pelo fracasso das colheitas, quando a agricultura
qrigem a sociedades altamente organizadas, é ilustrado em foi obrigada a estender-se por terras mais marginais, com a
uma menor escala pelas ilhas do Havaí. Como as ilhas foram jpopulação crescendo para 300.000 no final do século XVIII,
colonizadas comparativamente tarde, os desenvolvimentos foi aumentar o controle central. Por volta de 1440, na ilha de
sociais ainda se encontravam em um estágio primitivo, quan- O'ahu, as tribos individuais foram substituídas por um único
do os europeus chegaram, no século XVIII, e registravam o governador e as outras ilhas acompanharam rapidamente
que acontecia, anotando as tradições orais sobre o passado essa mudança. Esse controle político central trouxe mudan-
recente. Essas anotações dão uma ideia de como as outras ças sociais, com o afastamento dos chefes do resto da socie-
sociedades estariam se desenvolvendo no mundo, em seus dade (casando-se somente com filhas das famílias de chefes
estágios primitivos. As ilhas havaianas foram habitadas ini- de outras ilhas),, reforçando as honrarias para si mesmo, no
cialmente em 500 d.C, pelos polinésios, possivelmente por lugar dos deuses tradicionais, apossando-se da terra, que
um grupo de não mais de cinquenta pessoas, que levaram anteriormente era um bem comum e transformando os cam-
com elas a organização social polinésia normal, baseada em poneses em seus arrendatários. Surgiram então os conflitos
chefes hereditários, que monopolizavam os rituais religiosos armados, quando os chefes tentavam controlar mais territó-
e recebiam oferendas dos que estavam sob sua autoridade. rios com a finalidade de receber mais tributos. O resultado foi
No Havaí, houve uma mudança na posição dos chefes, à uma luta interna crescente, até que em 1795 as ilhas foram
medida que a população crescia a sociedade tornava-se mais conquistadas por um único chefe. Não muito tempo depois,
complexa. Por volta de 1100, todas as ilhas do grupo tinham a sociedade e a cultura começaram a desintegrar-se, quando
sido colonizadas, apesar das aldeias ficarem confinadas junto os europeus iniciaram a exploração do Pacífico.
à costa e da população ter crescido para 20.000 pessoas. Mas O desenvolvimento da agricultura, trazendo com ele for-
a sociedade continuava simples e praticamente não-estra- mas intensivas de produção de alimentos e sociedades es-
tificada. A situação começou a mudar depois de 1100, com os tabelecidas, apresentou quase que o mesmo efeito no mundo
níveis de crescimento populacional mais rápidos, acompa- inteiro. O excedente alimentar foi usado para prover uma elite
nhados pela expansão da colonização do interior e, assim, por religiosa e política cada vez mais crescente e a uma classe de
volta de 1400 toda a terra disponível nas ilhas fora ocupada artesãos, cuja função principal passou a ser fornecer serviços a
e estava sob controle de vários chefes. Essa situação produziu essa elite. A redistribuição do excedente alimentar exigia me-
canismos de controle intensos para o transporte, a estocagem
problemas sociais maiores. No passado, o conflito entre as
e entrega, conduzindo a instituições centrais poderosas dentro
linhagens principais eram resolvidos quando os filhos mais da sociedade. Esses processos tornaram-se autoconsolidantes,
jovens se separavam do grupo principal e estabeleciam seus quando as elites que dominavam o poder político e social
.próprios grupos nas áreas ainda não colonizadas. Mas isso já assumiram um grau ainda maior do controle, impondo uma
não era mais possível e os conflitos foram aumentando, com maior disciplina, através de trabalhos e serviços forçados, ini-

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cialmente em grupos de trabalho para projetos sociais mais também, rapidamente, um conhecimento astronómico gran-
importantes, tais como templos ou trabalhos de irrigação e, dioso, entre os babilónicos e os maias e muitos locais, desde
depois, nos exércitos que cresciam rapidamente. As sociedades a América Central até à China e a Grã-Bretanha, na idade do
que eram amplamente igualitárias foram substituídas por ou- bronze, disputavam a descoberta de posições significativas /
tras apresentando classes distintas e diferenças enormes de do sol, das estrelas e da lua. Nenhuma das grandes conquistas í
riqueza. Essas mudanças tiveram duas consequências poste- culturais e intelectuais dos seres humanos teriam sido possí- V
riores de grande significado, uma, geralmente vista como sen- veis sem o desenvolvimento da agricultura e de um exceden- f
do positiva, e a outra, como negativa, mas ambas ajudaram a te alimentar capaz de sustentar os artistas, construtores, ar- /
moldar o resto da história humana. quitetos, sacerdotes, filósofos e cientistas. /
O desenvolvimento de sociedades organizadas e sua O outro lado da moeda é o desenvolvimento paralelo
crescente capacidade, como decorrência do lento aumento da crescente coerção dentro da sociedade e das revoltas. Os
de produção da agricultura, para sustentar um número cada grandes edifícios e monumentos das sociedades antigas só
vez maior de pessoas não ligadas à produção direta de ali- podiam ser construídos com uma grande quantidade de tra-
mento, formaram as bases de todos os progressos humanos balho humano. A capacidade de mobilizar o trabalho nessa
subsequentes, culturais e científicos. As exigências das elites escala gigantesca demonstra claramente o enorme poder e
religiosas e seculares produziram os grandes templos, palá- autoridade mantidos pelas elites religiosas e seculares. Em-
cios, edifícios públicos, teatros e outras estruturas que com- bora possa ter havido, especialmente nas fases iniciais das
põem os locais importantes do mundo antigo e são os maiores sociedades organizadas, um grau de participação voluntária
monumentos das sociedades passadas. Ao mesmo tempo, os em uma obra comum, isto foi rapidamente substituído pela
artesãos produziram obras de arte exóticas, que ainda hoje coerção. Uma das razões do crescimento da organização in-
são admiradas. As sociedades estabelecidas também torna- terna e da disciplina dentro da sociedade foi o desenvolvi-
ram possível os grandes desenvolvimentos do pensamento mento das ameaças externas e das lutas crescentes. O lugar
religioso e espiritual. Os grupos de coleta e caça, possivel- das lutas nas primeiras fases da história humana é bastante
mente em seus estágios mais recentes, parecem ter organiza- controverso, mas existem evidências de disputas entre os
do sistemas de crenças religiosas para integrar os seres hu- grupos de colheita e de caça há uns 20.000 anos, com o de-
manos ao seu ambiente — como ainda acontece com os senvolvimento do arco e flecha, arma muito mais eficiente
aborígines da Austrália, por exemplo. E, realmente, a religião que a lança. Algumas pinturas das cavernas da França e da
atuou como uma das principais forças de motivação e orga- Espanha, do período da última glaciação, parece mostrar se-
nização, por trás do desenvolvimento de sociedades comple- res humanos sob ataque e remanescentes do cemitério 117
xas, particularmente em regiões como a Mesopotâmia, quan- em Jebel Sahaba, na Núbia, da cultura pré-neolítica Qadan,
do os seres humanos partiram para a exploração de dá uma ideia de como poderiam ser essas lutas. Dos cinquen-
ambientes novos e difíceis. O desenvolvimento da escrita e ta e nove enterrados, mais de quarenta por cento apresenta-
sua evolução para os inscritos modernos, altamente flexíveis, vam sérios ferimentos causados por flechas, sendo que uma
foi fundamental para todas as futuras aquisições do conhe- mulher adulta foi encontrada com vinte e uma flechas em seu
cimento humano. As sociedades mais antigas desenvolveram corpo, inclusive várias atiradas em sua boca.

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O desenvolvimento das sociedades estabelecidas, sem a 300 anos do império militar assírio, aproximadamente uns qua-
menor dúvida, estimulou os motivos e o potencial para a luta, tro milhões e meio de habitantes foram deportados à força no
instituindo territórios definidos e a clara propriedade dos re- Oriente Próximo, numa tentativa de estabelecimento do con-
cursos. Desde o início, as primeiras comunidades estabelecidas trole político. Tal desumanidade foi facilmente suplantada pelo
tiveram que se defender. Por volta de 7500 a.C., Jericó estava recorde apavorante feito pelos astecas da América Central, que
cercada por um muro de quase 800 metros de comprimento, 3 assassinaram ritualística mente números fabulosos de prisio-
metros de espessura e mais de 4 metros de altura, com pelo neiros de guerra (às vezes 20.000 de cada vez), arrancando seus
menos uma torre de dez metros de diâmetro e nove metros de corações que ainda batiam nas escadarias do grande templo
altura. Catai Húyúk, na Anatólia, foi construída como uma em Tenochtitlan.
série de casas interligadas, com muros comuns, acessíveis so-
mente através de um buraco no teto e uma série de muros lisos Aproximadamente em 3000 a.C., na Mesopotâmia e no Egito,
que davam para o lado de fora da aldeia, com a finalidade de algumas centenas de anos mais tarde no vale do Indus, um
lhe dar proteção. Hacilar também foi construída sobre princí- milénio mais ou menos mais tarde na China e mais outros
pios semelhantes, também com um muro externo. As socieda- dois milénios depois nas Américas, foram estabelecidas so-
des em breve tornaram-se militarizadas e formavam seus pró- ciedades militaristas hierárquicas, governadas pelas elites re-
prios exércitos. No Egito pré-dinástico, existia uma luta eterna ligiosas e políticas, com imenso poder de controle sobre suas
entre as cidades, e a unificação do Egito superior com o Egito populações. Apesar do aprimoramento de tecnologias mais
inferior foi feita pela força. Na Mesopotâmia, as batalhas entre sofisticadas para lidar com o metal na Eurásia, não houve
Lagash e Umma duraram 150 anos, sobre uma disputa a res- qualquer mudança fundamental no modo de vida humano,
peito dos terrenos que percorriam as fronteiras entre as duas durante vários milhares de anos. O grosso da massa da popu-
cidades. O desenvolvimento de tecnologias com metais foi lação continuava sendo formado por camponeses, trabalha-
rapidamente acompanhado pelo uso de machados de batalha dores sem terra e escravos, que eram sujeitos a uma extensa
de metal, pontas de lança, armaduras e elmos também de apropriação de sua produção, de trabalhos forçados e dos
metal. A invenção da roda levou ao desenvolvimento da car- riscos de uma guerra altamente destrutiva. Somente uma
ruagem em 2800 a.C., na Mesopotâmia, originalmente puxada pequena minoria dentro de cada sociedade poderia ser sus-
por burros até a domesticação do cavalo. Os exércitos e as tentada de uma maneira mais satisfatória e intelectualmente
milícias aumentaram em tamanho e por volta de 1285 a.C, o gratificante. Vários estados s impérios surgiram e caíram (fre-
Egito podia dispor de um exército de 20.000 soldados (maior quentemente como resultado de uma mudança da sorte du-
do que muitos da Europa antes do final do século XVffl), na rante uma luta, revoltas ou da morte inesperada dos gover-
batalha de Kadesh. O desenvolvimento de armas de ferro, que nantes, mas também por causa de importantes mudanças nas
foram primeiro usadas pelos assírios na parte inicial do primei- bases de sua agricultura vital), sem alterar fundamentalmen-
ro milénio a.C., só colaborou com esses esforços em direção a te seu modo de vida.
lutas cada vez mais extensas e destrutivas. Essas lutas frequen- Apesar das variações nas aquisições culturais, nenhum
temente compreendiam assassinatos em massa e também a desses impérios alterou o modo pelo qual os seres humanos
destruição de colheitas, animais, aldeias e cidades. Durante os obtinham sua subsistência, uma vez que a agricultura assen-

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tada foi adotada. No entanto, seu impacto em seu ambiente
imediato foi frequentemente avassalador. Com esses casos,
temos os primeiros exemplos da alteração humana intensiva
sobre o ambiente e de seu grande impacto destrutivo, forne-
cendo-nos também os primeiros exemplos de sociedade que
danificavam o ambiente a tal ponto que conseguiam provo-
car seu próprio colapso.

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