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como gênero literário

O romance

A teoria dosgêneros como ciencia histórico-sistemati-


na filosofia das espécies e dos gêneros
zante deveria apoiar-se
intelizmente não temos filosofia
poéticos.' Contudo, uma

capaz de satisfazer às exigèncias do marxismo-leninismo e ao


estado atual da ciência da literatura, a toda a riqueza da ma-
téria histórica por ela acumulada. A filosofia hegeliana dos
gêneros não pode nos satisfazer, e não só por idealismo,
seu

mas também por suas limitações e pela decrepitude do ma-


terial histórico em que se baseia. Atualmente, em nossos es-

tudos da natureza dos gêneros carecemos de um apoio filo-


sófico sólido e bem-acabado. Isso dificulta muito o nosso tra-
balho e com frequência o obriga a desviar-se para a descrição
SIstemática e o registro de fatos heterogêneos e internamente
desconexos. Por essas razões, no presente ensaio, dedicado
aos fundamentos da teoria do gênero romanesco,
tivemos
dedicar um espaço muito grande à elaboração prévia de al-
de
gumas questões diretamente vinculadas ao campo da filosofia
dos gêneros.
A teoria do romance enquanto gênero distingue-se por
dihculdades peculiares, desconhecidas por outros gëneros.
Isso se deve à especificidade do próprio objeto: o romance e

Aristóteles usa como introdução à sua teoria dos gêneros uma fnlo-
Oa das espécies e gêneros
poéticos. Contudo, sua teoria não tinha cara-
et
historico-sistematizante, mas apenas sistematizant.

O
romance como
gênero literário 65
o único gênero em formaçao e ainda inacabado. Ao

que formam os gêneros agem diante dos nossos olhos


olhos: onas-
forças entre gêneros. E o único gênero em formação
há muito acabados e já parcialmente entre gêneros
concebido e alimentado por umamortos.2* Eo único gê-
cimento ea formação do genero romanesco realizam.
em nero
mundial, e por isso profundamente nova época da história
plena luz do dia histórico. A ossatura do gênero romaneseo

ainda está longe de ter enrijecido, e ainda não podemos pre, passo que os grandes generos consanguíneo dela, ao
ver todas as suas possibilidades plasticas. Os outros gêneros foram herdados por ela em sua
forma acabada, e apenas se
pior- às novas condições adaptam-
enquanto gêneros, isto é, enquanto moldes para a fundica uns melhor, outros
da experiencia artistica, ja os conhecemos em suas formas de existência. Em
comparação
acabadas. Seu antigo processo de formação está situado fora
com eles,
o romance se
apresenta como um ser de
outra es-
tirpe. Ele convive mal com Os outros
da observação historicamente documentada. Encontramos a gêneros. Luta por seu
domínio na literatura, e onde o romance
epopeia como um genero nao So ha muito tempo acabado triunfa
gêneros se desintegram e deformam-se. Não é à os velhos
como também já profundamente envelhecido. O mesmo se toa queo
melhor livro sobre a história do romance
pode dizer, com algumas ressalvas, de outros gêneros basila-
Erwin Rohdes- não se dedica
antigo-o livro de
tanto contar
res, até mesmo da tragédia. A sua vida histórica que pudemos mas a retratar
a sua
história,
conhecer é uma vida enquanto gêneros acabados, dotados de des gêneros elevados
o
processo
da
de
desintegração de todos os gran-
uma ossatura rígida e já pouco plástica. Cada um deles tem E muito
Antiguidade.
seu cânone, que age na literatura como uma força histórica
importante interessante o problema
e
da inte-
ração dos gêneros na unidade da literatura de um dado
real, quase semelhante às tormas da linguagem, que encon- do. Em certas épocas- no período clássico perío
tramos também já acabadas, cujo processo de formação está de ouro da literatura romana, na baixa e grego, na idade
mergulhado no passado pré-histórico, e que são eficazes co dieval, na época do Neoclassicismo, na média Idade Me-
mo normas e clichês de linguagem. Todos esses
gêneros seja, na literatura dos grande literatura (ou
grupos sociais
ou, em todo caso, os seus elementos basilares são bem Os
gêneros, até certo ponto, dominantes)- todos
de forma harmoniosa, e toda complementam outros uns aos
mais velhos do que a escrita e o livro, e até hoje conservam,
em maior ou menor grau, sua remota natureza oral e altisso- de é
a
generos, consideravelmente literatura, enquanto conjunto
nante. Dentre os grandes gêneros, só o romance é mais jovem superior. Mas um todo orgânico de ordem

algo peculiar: o romance nunca
do que a escrita e o livro, e só ele está organicamente adap se
todo, não integra es-
participa da harmonia dos gêneros. Nessas
tado as novas formas da percepção silenciosa, ou seja, á
lel cas o
romance leva uma épo-
existência não oficial, fora do limiar
da
tura. Mas há uma questão essencial-o romance, diferente grande literatura. O todo
Zada orgânico da literatura, organi-
dos outros gèneros, não tem um cânone: historicamente sao
encazes apenas alguns protótipos de romance, mas nao o a
hierarquicamente, é integrado apenas pelos gêneros aca-
none romanescO como tal.
teoria ao
O estudo dos
Assim se cria extraordinária dificuldade da
a
das
linguas gêneros (exceto o
romanesco) é análogo ao estudo
sên- mortas; o estudo do
romance como gênero. Com efeito, esta teoria tem,
em
esS gua viva
(e, além disso, mais gênero romanesco é o estudo de uma lin-
de
Cla, um objeto de estudo totalmente diferente das teoria Irata-se de
jovem).
Outros generos. O romance não é simplesmente um Ee
ênero

grego Der griechische Roman und seine


precursores], Leipzig, 1876. (N. do Vorläufer [O roman-
e
seus

1.)
Mikhail Bakhtin
romance como
66 gênero literário
67
definidas. Elas
bados, por personagens
estabelecidas e
podem ta entre os gëneros, a formaçao e o
crescimento do arcabou-
complementar umas ás outras, con- literários.
limitar-se mutuamente, ço de gêeneros
de gënero. São nidas e
aparentadas Observam-se fenómenos
servando sua
natureza
particularmente interessantes
entre si por
suas profundas
peculiaridades estruturais. naquelas épocas em que o romance se estabelece como gêne-
tratados poéticos org nicos do passado principal: toda a literatura è envolvida pelo processo de
Os grandes ro

Horácio e Boileau
são imbuídos de um pro-
-

formação e por uma especie de "crítica dos gêneros". Isto iá


Aristóteles, barmo.
do conjunto da literatura e da ocorrera em alguns periodos do Helenismo, na Idade Média
fundo sentimento
todos os generos nesse conjunto. E como rardia e no Renascimento, mas toi particularmente intenso e
da combinação de
concretamente essa
harmonia. Nisso reside a fo vívido na segunda metade do século X\VIII. Nessa época de
se ouvissem

ca, a plenitude integral e singular, o carater exaustivo desses domínio do romance, quase todos os outros gêneros "roman
Todos eles 1gnoram coerentemente o ro cizaram-se em maior ou menor grau: romancizou-se o dra-
tratados poéticos.
cientihcos do século XIX care ma (por exemplo, o drama de Ibsen, o de
mance. Os tratados poéticos Hauptmann, todo
cem dessa integralidade: são ecléticos, descritivos, não
aspi o drama naturalista), o poema narrativo
(como o Childe Ha-
ram a uma plenitude viva e organica, mas a algo abstrata- rold e, em particular, o Don Juan, de Byron), e até a lírica
não se voltam para a possibilidade real (um exemplo nítido é a lirica de Heine). Aqueles gêneros que
mente enciclopédico,

de coexistência de determinados gêneros


no conjunto vivo da conservaram com tenacidade sua natureza, seu
coexistência ter canonico, adquiriram um semblante
antigo cará-
literatura de uma dada época, para mas a sua
estilizado. De modo
maximamente plena. E claro que não ig- geral, a despeito da vontade artistica do autor, qualquer
numa crestomatia
inserem entre os ge meza rigorosa de fir
noram o romance, mas simplesmente gênero começa a dar sinais de estilização,
neros (um lugar de prestigio); assim, como um gê
existentes e até de
estilização paródica. Na presença do romance en-
nero entre gêneros, ele é incluso na
crestomatia. Contudo, o quanto gênero dominante, as linguagens convencionais dos
romance integra o conjunto vivo da
literatura de modo intei- generos estritamente canônicos começam a ressoar modo
diterente de como ressoavam nas
de
ramente distinto.
não existia
em oépocas que romance
com os outros
O romance, como dissemos, convive mal nagrande literatura.4*
generos. Não se pode falar de nenhuma harmonia baseada As estilizações
paródicas (de variados graus) dos gêne-
em mutua delimitação e mútua complementaridade. O ro ros e estilos
diretos ocupam um lugar essencial no romance.
mance parodia os outros gêneros (precisamente enquanto ge Mas característico
é
que o romance não deixe que estabilize-
neros), desvela o convencionalismo de suas formas e de Sua Se ou
canonize-se nenhuma de suas próprias variedades. Ao
linguagem, desloca alguns gêneros, incorpora outros a sua

propria construção, reinterpretando-os e reacentuando-o0S.


As vezes, os historiadores da literatura tendem a ver nissO Nas épocas da ascensão criativa do romance, sobretudo
apenas uma luta entre escolas e tendências literárias. Essa iu da preparação dessa nas épo-
ascensão, a literatura é inundada de paródias e
ta existe, é claro, mas é um fenômeno periférico e histore vestimentos de todos os gêneros elevados
(dos gêneros, precisamente, e
O de
alguns escritores e tendências),
mente insignificante. Por trás dela é preciso saber percebe paródias que fazem o papel de pre-
SOres acompanhantes do romance,
e
saio de romance. e por vezes são uma especie de en-
historicamente substancial,
" "
Outra luta, mais profunda e

68
Mikhail Bakhtin
Oromance como
gênero literário 69
longo de toda a história do romance,
estende-se uma
nua parodização travestimento das
e um
variedades contí- formação da própria realidade. Só o que está em formação
nantes e em voga do proprio genero, que
es domi- pode compreender a formação. O romance tornou-se o per-
tendemn a banal.
-se: paródias do romance de cavalaria (a conagem central do drama do desenvolvimento literário na
primeira paródia
romance aventuresco de cavalaria, Un dit Idade Moderna precisamente porque é quem melhor expres-
d'aventures e
-se no século XII), do romance barroco, do romance - sa as tendências da formação de um novo mundo, pois é o
ral (Le Berger extravagant, de Charles Sorel), do
pasto. único gênero concebido por esse mundo e em tudo consan-
romano
sentimental (em Henry Fielding, e em Grandison der 7a guíneo a ele. O romance antecipou em muito, e continua a
te antecipar, o futuro desenvolvimento de toda a literatura. Por
de Johann Karl August Mus us), etc. Essa
natureza autocri. isso, ao atingir a posição dominante ele contribui para a re-
tica do romance é seu magniñco traço enquanto gênero
formação.
em
novação de todos os outros generos, contamina-os pelo seu
Em que consiste a "romancizaçao dos outros gêneros caráter de formação e inacabamento. Ele os atrai imperiosa-
mente para a sua orbita
precisamente porque essa órbita
a que nos referimos? Eles se tomam mais livres e mais plás coincide com a tendência fundamental do desenvolvimento
ticos, sua linguagem se renova por conta do heterodiscurso
de toda a literatura. Nisso reside a excepcional
extraliterário e das camadas "romanescas" da linguagem li-
do romance tambem como objeto de estudo
importância
terária, eles se dialogizam, neles penetram amplamente o ri- para a teoria e
para a história da literatura.
so, a ironia, o hunor, os elementos de autoparodização, e
Infelizmente, os historiadores da literatura costumam
por últimno e isto é o mais importante o romance in- reduzir essa luta do romance com os outros
troduz neles a problenmaticidade, uma específica incomplete
dos, e todos os fenômenos da
gêneros acaba-
de semântica e o contato vivo com a atualidade inacabada, ta entre escolas e tendencias.
"romancização", à vida e à lu
em formação (como presente inacabado). Todos esses fenô- Por exemplo,
eles chamam um
"poema romancizado" de poema romântico
(o que é correto)
menos, como veremos adiante, se explicam pela transposi e
pensam que tudo está dito. Por trás da
de construção policromia superfi-
ção dos gêneros para uma nova zona específica cial e do tumulto do
processo literário, eles não enxergam os
das imagens artísticas (a zona de contato
com o presente em
grandes e essenciais destinos da literatura e da
seu inacabamento), zona essa que
é primeiro dominada pelo cujas personagens centrais linguagem,
são, antes de mais nada, os
rOs, enquanto
que as tendências e
gêne-
romance.
fenômeno da "ro- nagens de segunda ou terceira escolas são apenas
perso-
E claro que não se pode explicar o
ordem.
direta e imediata do prô A teoria da
mancização"
influência
pela literatura revela a sua total
apenas
Mesmo onde essa influência pode ser estabe relação ao romance. Com os incapacidade em
prio r o m a n c e .
precisão, ela se entrelaça indissoluvel
outrosgêneros
convicção e precisão: aí se trata de um ela
opera com
lecida e mostrada com
na própria realidaa
e
acabado, definidoe claro. Em todas as objeto amadurecido
mente com a ação direta das mudanças condicionaram o a0 épocas clássicas do
Seu desenvolvimento, esses
gêneros conservaram sua estabi-
e
também o romance

é o único E lidade
determinam
que
do em dada época. O romance
e seu
caráter canônico; suas variações ao longo das
minio romance
modo mais protunude pocas, correntes e
isso reflete de escolas literárias são
enrijecida ossatura de gênero. periféricas
nero em formação, por o processo
tam a
sua e não ate-
sensível e mais rápido
mais substancia mais
Em essência, até ho-
Mikhail Bakhtin O
romance como
gênero literário
70 71
teoria desses gêneros
acabados nao conseguiu adicin.
cionar nero; o romance e uma historia de
amor, ainda que
je já fora: feito por Aris-
os maio-
protótipos
a
àquilo que do romance
nada de substancial
como fundamen
res europeu sejam inteiramente des-
quase

tóreles. A Poética
de Aristóteles permanece orovidosdo elemento amoroso; o romance é um
gênero em
(embora às vezes
da teoria dos generos eja prosa, embora eXistam magniicos
romances em versos. Se-
to inabalável
sedimentado com tanta
profundidade que n o se deixa per melhantes "características do gênero romanesco", destruídas
nao diz respeito a n
bem enquanto a questao ressalva a elas
incorporadas com
dentemente ainda poderiam ser mencionadashonestidade,
uma
ceber). Tudo vai
por
r o m a n c i z a d o s já levam a teoria
evi-
ao
romance. Mas os generos em número na-
do romance, a teoria dos gêneros se de-
da desprezível.
impasse. Na questão
de u m a reconstrução radical. Bem mais interessantes e coerentes são
a necessidade
fronta com
aquelas defini-
Graças ao trabalho meticuloso dos pesquisadores, acu- cões normativas do romance dadas pelos próprios romancis-
mulou-se imenso material histórico, lançou-se luz sobre
um tas, que propõem uma determinada variedade de romance e
uma série de questões
ligadas à origem de algumas varieda- a explicam como a unica
correta, necessária e atual. Assim
des de romance, mas a questão genero
do em seu conjunto é, por exemplo, o célebre
prefácio de Rousseau a Julia, ou A
não encontrou uma solução principial minimamente satisfa- Heloisa, prefácio de Wieland a Agatão, de Johann
o

tória. Continua-se a considerá-lo


um gênero entre outros gê- Karl Wezel a Tobias Knauts; assim são as inúmeras
declara-
neros, tenta-se
fixar suas diferenças de gênero acabado em ções e manitestações dos românticos em torno de Wilhelmn
tenta-se desvendar o seu Meister e de Lucinde' etc. Tais declarações,
relação a outros gêneros acabados, que n o tentam
sistema de caracterís
cânone interno como um determinado abranger todas as variedades de romance em sua definição
imensa maioria dos ca- eclética, participam, em compensação, da formação viva do
ticas de gênero estáveis e sólidas. Na
reduzem-se à descrição e
sos, os trabalhos sobre o romance romance enquanto
gênero. Com frequência elas refletem de
ao registro mais completo das variedades romanescas, porém, forma profunda e correta a luta do romance com os
outros
como resultados de tais descrições, nunca se consegue pro- generos e consigo mesmo (outras variedades de romance do-
duzir uma fórmula dotada do mínimo de abrangência para minantes e em
voga) e numa dada etapa de seu desenvolvi-
o romance enquanto gênero. Além do mais, os pesquisadores mento. São elas
do
que mais seaproximam da compreensão da
nao conseguem apontar nenhum traço definido e sólido posiçãoespecífica do romance na literatura, impossível de
romance sem uma ressalva que anule inteiramente esse traço Comensurar pelos outros
gëneros.
enquanto traço de gênero. Eis alguns exemplos dessas carac Nesse sentido,
ganha importância específica uma série
teristicas de gênero "ressalvadas": gênero ae
o romance é um de
manifestaçõies que acompanham a criação de um novo ti-
múltiplos planos, embora também existam ótimos romance po de romance no fim do século XVIII. Abre-se essa série
s o plano; o romance é um gênero de enredo intenso
com as
reflexões de Fielding sobre o seu romance Tom Jones
dinamico, ainda que existam romanc que atingiram
um
e seu herói homônimo. Sua continução é o prefácio de Wie-
land
Agatão,
ro

descritivismo puro, limítrofe para a literatura de fhcçao; a


elo essencialíssimo é
o
mas o o Ensaio sobre o
mance e um genero que trata de problemas, embora a pro

dução de puro
romanesca em massa apresente um
protótipo ge
Romance de Friedrich Schlegel (1772-1829), publicado em 1799.
(N. do T.)
entretenimento e leviandade, inacessivel a qualquer outro

72 Mikhail Bakhtin
romance como gênero literário 73
romance de Blanckenburg.° A conclusão dessa série, ess crítico e autocritico que deve renovar
gênero
sen- iente como um
cialmente, é a teoria do romance que foi mais tarde apreses fundamentos da literariedade e da poeticidade
tada por Hegel. Em todas essas manifestações, que reflete os próprios
do romance com a epopeia (e a
o processo de formaçao do romance em uma de suas etapas
dominantes. A comparaçao
contraposição dos dois) é, por um lado, parte da crítica aos
essenciais (Tom Jones, Agatão, Wilhelm Meister), são ac- outros gêneros
literarios (particularmente do próprio tipo de
terísticas as seguintes exigencias apresentadas ao romance. heroificação épica) e, por outro, tem por objetivo hastear a
1) o romance não deve ser "poetico no sentido em que são
importância do romance como gênero determinante da lite-
poéticos os outros gêneros da literatura artistica: 2) a perso-
ratura moderna.
nagem do romance não deve ser heroica" nem no sentido
As afirmações e exigências que acabamos de apresentar
épico, nem no sentido trágico do termo: ela deve reunit em
são um dos pontos culminantes da autoconsciência do ro-
si tanto os traços positivos quanto os negativos, tanto os bai-
mance. Não constituem, evidentemente, uma teoria do ro-
xos quanto os elevados, tanto os cómicos quanto os sérios:
mance. Não se distinguem por grande profundidade filosóf-
3) a personagem não deve ser apresentada como acabada ou
ca. Mas ainda assim essas afrmações s o
para nós um teste
imutável, mas em formação, em mudança, sendo educada
munho da natureza do romance enquuanto gênero, e um tes-
pela vida; 4) o romance deve se tornar, para o mundo con- temunho não inferior-se não superior- às teorias do ro-
temporâneo, aquilo que era a epopeia para o mundo antigo mance vigentes. Na parte seguinte deste ensaio
tentarei abor-
(essa ideia foi enunciada com toda clareza por Blanckenburg dar o romance precisamente enquanto em gênero formação,
e depois repetida por Hegel). que encabeçaprocesso de desenvolvimento de toda a lite-
o
Todas essas afirmações têm um aspecto bastante funda- ratura da Idade Moderna. N ão
mental e proveitoso: uma crítica do ponto de vista do roman pretendo definir o cânone ro-
manesco vigente na literatura
à sua (em sua história) como um sis-
ce a todos os outros gêneros e relações com a realidade, tema de
traços estáveis do gênero. Contudo, tentarei tatear
heroificação empolada, ao seu convencionalismo, à sua poe as
peculiaridades estruturais basilares desse que é
ticidade estreita e irreal, à sua monotonalidade e abstração, tico de todos
o mais plás-
gêneros, peculiaridades essas
os
determi-
aos seus personagens já prontos e imutáveis.
No fundo, aqui nam a tendência de sua própria mutabilidade eque
a tendència
e à poeticidade
se faz uma crítica principial à literariedade
de sua
influência e ação sobre o resto da literatura.
variedades de
gêneros precederam as
Encontro três dessas
que
peculiaridades basilares, que por
inerente a outros
senti-
romance (ao romance heroico barroco e ao romance principio distinguemo
mental de Samuel Richardson). Essas manifestações sao sus todos
romance de gêneros:
os outros
1) a
tridimensionalidade estilística do romance, vinculada à
tentadas consideravelmente também pela prática desses r consciência
tanto a s u a prática
quanto a radical das plurilinguística que nele se realiza;
2) mudança
a
mancistas. Aqui o romance
direta econs
coordenadas temporais da
imagem literária no
teoria vinculada a ela- se manifesta de forma romance
no
3) a nova
zona de
construção da imagem literária
romance, precisamente a zona de contato máximo como
presente (a
6Versuch über den Roman (1774), escritor alemão
Christian

d. (N.
Frie-

lodas
atualidade) em sua inconclusibilidade.
drich von Blanckenburg (1744-1796), muito
admirado por Wielan
Camente
essas três
peculiaridades do romance estão orga-
do T.) interligadas, e todas elas são
condicionadas por
Mikhail Bakhtin O
romance como
14 gênero literário
75
da sociedade e fnteriluminação. O discurso, a linguagem passaram a ser sen-
um
momento
crucial na história
uropeia:fer sua ridos de modo diferente, e objetivamente deixaram de ser o
nacionalmente
saída de uma condição semipatriarcal
condiçoes da cconomia monetária
dos eram.Na: condições dessa interiluminação externa e in-
da para as novas que

vinculos e relações
internacionais e imterlinguisticos. Uma d: terna, cada lingua,
mesmo em condições
de absoluta imuta-
culturas e tenipoS apresentou-se nee bilidade de sua composição enquanto língua (fonética, voca-
versidade de linguas,
tornou-se o fator determinanta bular, morfológica, etc.), como que renasce, torna-se quali
te a sociedade
europeia e
de pensamento. tativamente outra para a consciência que nela cria.
sua vida e seu

A primeira peculiaridade romance, ligada


estilistica do Nesse universo ativamente plurilíngue, entre a língua e
de linguas da ldade Moderna, da ova seu objeto- ou seja, entre a lingua e o mundo real
à ativa pluralidade esta
consciencia artistic0-literária foi obieto belecem-se relações inteiramente novas, repletas de enormes
cultura e da nova
Menciono sucintamente apena consequências para todos os gêneros acabados que se forma-
de meu ensaio anterior. o

essencial. ram nas épocas do monolinguismo fechado e surdo. A dife-


Num universo ativamente plurilingue vive uma nova de
rença grandes gëneros, o romance formou-se e cres-
outros
artistico-literária.* O mundo se tor.
consciencia cultural e ceu precisamente nas condições de uma
aguda intensificação
nara assim de uma
vez por todas e de modo irreversível. Ter- do plurilinguismo externo e interno: esse é o seu elemento
surda e fechada das línguas familiar.
minara o período da coexistëncia Foi por isso que o romance se pôs à frente do pro-
nacionais. As linguas se interiluminam, pois uma língua só cesso de desenvolvimentoe renovação da literatura em ter-
pode ver a si mesma à luz de outra lingua. Terminara igual mos linguísticos e estilísticos.
e consolidada das várias "lin- Em minha exposição anterior tentei iluminar a
mente a coexistència ingênua

interior de uma dada lingua nacional, ou seja, da originalidade linguística do romance, determinada
profun-
guagens" no
por sua
a coexisténcia dos dialetos territoriais, dos dialetos e gêneros ligação com as condições do plurilinguismo. Por isso não re-
e de classe, dos jargões, da língua lite- tornarei
sociais, profissionais a essa questão.
rária, das linguagens dos gêneros no interior de uma lingua- Passo duas
a outras
elementos temáticos da estrutura do
peculiaridades, agora referentes a
gem literária, das épocas de uma língua, etc. Tudo isso entrou gênero romanesco. Es-
em açaoe passou a integrar o processo de ativa interação e sas
peculiaridades melhor se revelame se
da esclarecem por meio
comparação do romance com a
epopeia.
Do ponto de vista da nossa
O autor abordou essas questões tanto em "Sobre a pré-história do
to
genero definido caracteriza-se
questão, a epopeia enquan
discurso romanesco", incluído neste volume, quanto em Teoria do roman-
por três traços constitutivos:
1) o
objeto da
ce l: A estilistica. (N. do T.)
do
epopeia é o passado épico nacional, o "passa-
absoluto" segundo a
O plurilinguismo sempre existiu (é mais antigo que o
monoug a ronte da terminologia de Goethe e Schiller; 2)
mo canonico puro), mas não enquanto fator criativo; a escolha artis
epopeia é uma lenda naciomal (e não a
intencional não era o centro criador do processo linguístico-literano pessoal livre experiència
sentia tanto as várias "linguagens" quanto suas epocas O
e
invenção
mundo épico está
a
que cresce a partir dessa base); 3)
grego classico
separado da
empo do cantor (autor) de seus atualidade ou seja, do
cons-
dialetos literários regos: a tragédia é umn gênero pluriling
ingue),
a mas

clencia criadora se realizava em linguas fechadas e puras (ainda que ae fa- ouvintes- pela distancia
e
OS. nero epica absoluta.
to mescladas). O
plurilinguismo foi canonizado e ordenado em

16
Mikhail Bakhtin
Oromance como
gênero literário
Veiamos de modo mais
detalhado cada um desses tracos dual) signihca real1zar uma
transformação radical passar
-

constitutivos da epopeia. do mundo épico para o romanesco.10*


O mundo da epopeia é o passado heroico nacional Falamos da epopeia enquanto gênero definido real que
mundo dos "princípios" e do "apogeu" (arché e akmad chegou ao nosso tempo. Nos ja o encontramos um gênero
história nacional, o mundo dos pais e dos ancestrais, o mun- absolutamente acabado, ate enrijecido e quase necrosado.
do dos "primeiros" e "melhores. Não se trata de ser esse Sua perfeição, estabilidade, sua absoluta falta de ingenuidade
passado o conteúdoo da epopela.
O deslocamento do univer- artística dizem respeito a sua velhice enquanto gênero, ao seu
so representado para
o passado, sua participaç o no passado longo passado. No entanto, podemos apenas conjecturar so-
é um traço constitutivo formal
da epopeia enquanto gênero. bre esse passado, e é preciso dizer trancamente que
por en-
A nunca foi um poema
epopeia
sobre o presente, sobre sua
quanto ainda conjecturamos bem mal. Aqueles cantos hipo-
própria época (ou seja, um poema que apenas para as gera- teticamente primígenos que antecederam a formação da
epo-
passado). Enquan-
veio a se tornar sobre o peia e a criação da tradiç o do gênero épico, que seriam can-
ções descendentes
to gênero definido que conhecemos, epopeia afoi, desde o tos sobre os contemporäneos e um eco imediato dos aconte-
início, um poema sobre passado,
o e a posição do autor (isto cimentos que acabavam de ocorrer aqueles supostos can-
o discurso épico), imanente tos nós não conhecemos. Por isso, só
é, a posição de quem pronuncia podemos conjecturar
à epopeia e dela constitutiva, é posição do homem que fala sobre como eram esses cantos ou cantilenas
a
primígenos dos
de um passado inatingível para ele, a posição
reverente das aedos. E não temos quaisquer fundamentos para
pensar que
O discurso estilo, tom,
épico, seu fossem mais parecidos com os cantos épicos tardios
gerações descendentes. por (os que
caráter e imagística, é infinitamente distante do discurso do

contemporâneo sobre o contemporâneo, dirigido


aos con-

Nasceu nas mar- 10*


E claro que o "meu
temporâneos. ("Oniéguin, meu camarada,/ tempo" pode ser percebido como tempo epl
heroico do ponto de vista de sua
Onde você, leitor, quiçá/ tenha nascido e importância histórica, distanciado c o
co

gens do Nievá,/
imanentes
mo
que pela lonjura dos tempos (não de mim mesmo, o
fulgurado...").7Tanto o cantor quanto o ouvinte, mas à luz do
futuro),
contemporäneo,
e n c o n t r a m - s e num mesmo
tem- enquanto passado pode ser percebido de modo fa-
o

a epopeia enquanto gênero, milar (como o meu


presente). Contudo, assim percebemos não o presente
mas o uni-
po e num mesmo nível axiológico (hierárquico),
no
presente não o passado no
e
da zona do contato
passado; nós nos retiramos do meu tempo,
nível axiológi- familiar
comigo mesmo.
verso representado dos heróis se encontra em
No romance
histórico, autor leitor se colocam
co-temporal inteiramente distinto e inacessível, separado pe
o
ta do
e o no
ponto de vis-
lenda nacional. contemporâneo ("Oniéguin, meu camarada...").
la distância épica. O mediador entre eles é a Ea memória enãoo conhecimento que opera como
esteja a mesmo nivel dora ativa e como capacidade cria-
Kepresentar um acontecimento que força da literatura antiga.
axiologicO-temporal consigo e com seus contemporäneos (, O canto
heroico de Aquiles sobre si mesmo. A
auto-heroificação dos
por conseguinte, à base da experiência e da invenção indivi vagens. Uma dessas manifestações se verifica na
etapa pré-gënero do
desenvolvimento da literatura
(quando, por conseguinte, ainda nao se po
de
talar de
epopeia). Outras manifestações são o deslocamento regulare
Oganico para passado o
e a
familiarizaçãão hierárquica com ele, com a he-
Oncação de mim terceira manifestação é de caráter literário-
mesmo. A
Convencional (o poema de Cícero sobre si mesmo).
(N. do 1)
levguêni Oniéguin, capítulo 1, estrofe II.

Oromance
gênero literário
Mikhail Bakhtin
como
18 79
conhecemos) do que, porexemplo, o nosso folhetim atual
as nossas atuais tchástuchkas, " Aqueles cantos épicos here ou nas nesse passado.O passado épico absoluto é a única fonte
e princípio de tudo que é bom para os tempos pósteros. As-
ficantes sobre os contempor neos, aos quais
temos acesso sim afirma a
forma da epopeia.
que são plenamente reais, ja surgiram depois da formacão Não é por acaso que o passado épico é chamado de
das epopeias, já no solo da antiga e poderosa tradição épica passado absoluto"; por ser um passado também axiológico
Eles transferem para seus contemporaneos,
e para
aconteci. (hierárquico), ele carece de qualquer relatividade, ou seja, ca
mentos contemporaneos, uma
forma epica acabada, isto rece daquelas graduais transições puramente temporais ca-
transferem para eles a forma axiológico-temporal do passa pazes de ligá-lo ao presente. Ele é isolado de todos os tempos
do, introduzem-nos no universo dos antepassados, dos prin- posteriores por um limite absoluto, sobretudo do tempo em
cípios e do apogeu nacional, como se os canonizassem em
que se encontramo cantore seus ouvintes. Por conseguinte,
vida. Em certo sentido, nas condiçoes do regime patriarcal, limite é imanente à
esse própria forma da epopeia e se faz
semipatriarcal e teudal, os representantes dos grupos domi-
sentir em cada uma de suas palavras. Destruir esse limite sig-
nantes pertencem, como tais, ao universo dos "antepassa-
nifica destruir a forma da epopeia enquanto genero. Mas jus-
dos", estão separados dos outros por uma distância quase
tamente por estar isolado de todos os tempos
"épica". A introdução épica do herói contemporâneo no uni pósteros, o pas-
sado épico é absolutamente fechado e acabado. E fechado
verso dos ancestrais e fundadores é um tenömeno específico, como um circulo, e nele tudo está
pronto e concluído inte-
desenvolvido no terreno da tradição épica há muito formada,
gralmente. No universo épico não há lugar para nenhum ina-
e por isso explica tão mal as origens da epopeia, como é o
cabamento, para nenhuma irresolução, nenhuma problemá-
caso, por exemplo, da ode neoclássica. tica. Nele não há
quaisquer brechas para o futuro; ele se bas-
Qualquer que seja a sua origem, a epopeia real que che- ta a si mesmo, n o
precisa
dias é forma de gênero absolutamente nuidade.
e nem
pressupõe qualquer conti-
gou aos nossos uma
definições de tempo e valor est o aí fundidas
As
acabada e bastante perficiente, cujo traço constitutivo é o num todo
indissolúvel (como estão fundidas nas
deslocamento do universo por ela representado para o pas- semânticas da língua). Tudo o camadas
sado absoluto dos inícios e do apogeu nacionais. O passado que é introduzido nesse pas
sado é, desse
modo, introduzido em
absoluto é uma categoria axiológica (hierárquica) especihca. Signihcação, e ao mesmo tempo ganha plena essencialidade e
acabamento e conclu-
Para a cosmovisão épica, o "princípio", o "primeiro",
o

são
Sao,
privando-se, por assim dizer, de todos os direitos e
fundador", o "ancestral", o "antecessor", etc. não
ca-
sibilidades de uma pos-
continuação
techamento absolutos são um
real. A conclusibilidade e o
tegorias meramente temporais, mas axiológico-temporais,
traço notável do passado épico
um grau superlativo axiológico-temporal que se

em relação aos homens quanto em relação a


realiza tanto
todos os objetos
axiológico-temporal.
Passemos à lenda.
posteros por um limite passado épico, isolado dos tempos
O
e fenomenos do universo épico: nesse universo
tudo é bom,
e tudo o que é essencialmente bom ("o primeiro") existe ape apenas na forma da impenetrável, mantém-se e revela-se
lenda nacional. A
nas nessa
lenda. N o se trata de ser epopeia se baseia ape-
ela a fonte fatual da
bem-humor pela, que importa é que o
o
epo-
antigas populares
russas em formato de quadras Te a
própria forma da embasamento na lenda é imanen-
das. (N. do T.) epopeia, como lhe é imanente o
passa-
Mikhail Bakhtin O
romance
80
como
gênero literário
81
do absoluto. O discurso o
baseado na lenda épico é discurso é fechado em si mesmo e isolado dos tempos posteriores por
O universo épico do passado absoluto é por natureza naces
uma barreira
impenetravel, isolado sobretudo do presente
e

sivel à experiência e n o
pessoal
o ponto de
vista
avaliação pessoal-individual. Não pode ser visto, apalpado.
admite ea eternamente
continuo dos filhos e descendentes, n o qual se
e os ouvintes das epopeias, onde realiza-
encontram o cantor
tocado, para ele n o se pode olhar de nenhum ponto de vis- de suas vidas e onde concretiza-se ob
-se o acontecimento
ta, ele não pode ser experimentado, analisado, decomposto. skaz13 épico. Por outro lado, a lenda isola o mundo da epo-
penetrado em todo seu interior. Ele é dado apenas como len- peia da experiência pessoal, de quaisquer novas interações,
da sagrada e indiscutível que abarca uma avaliação univer- de qualquer iniciativa pessoal de entendê-lo e interpretá-lo
salmente válida e exige para consigo um tratamento reveren- sob novas avaliações e pontos de vista. O universo épico é
te. Repetimos e ressaltamos que não se trata das fontes fa- concluído do princípio ao fim não só enquanto acontecimen-
tuais da epopeia, nem de seu conteúdo, nem das declarações to real em um passado distante, mas também em seu sentido
de seus autores: tudo consiste no traço formal (ou melhor, e em seu valor: não se pode medi-lo, nem reinterpretá-lo, nem
formais e de conteúdo) constitutivo do gênero épico: o em- reavaliá-lo. Ele está pronto, concluído e é imutável tanto co-
basamento na lenda impessoal e indiscutível (coletivoereve- mo fato real quanto como sentido, como valor. E isso o
que
rente) e a signihcção universalmente válida de sua avaliação determina a distäncia épica absoluta. O universo épico pode
e de ponto de vista, significação essa que exclui
seu
qualquer ser apenas aceito de modo reverente, mas não se pode tocá-
possibilidade de outro enfoque-a reverência proftunda em -lo, ele está fora da área da atividade humana de mudar e
objeto da representação próprio discurso so reinterpretar. Repetimos e ressaltamos: essa distância existe
relação ao e ao

fosse discurso da lenda.12* não só em relação ao material


bre ele, como se o
épico, ou seja, aos aconteci-
objeto da epopeia lenda mentos e heróis
O passado absoluto como e a
representados, como também em às relaç o
indiscutiível como sua única fonte determinam também o ca- avaliações sobre eles e ao ponto de vista que os mostra: o
o terceiro traço construtivo
seja, ponto de vista e a avaliação são
ráter da distância épica, ou
integralmente consanguíneos
da epopeia como gênero. Como já dissemos, o passado épico do objeto; o discurso éépico inseparável do seu objeto, e sua
semantica se caracteriza pela absoluta coalescência dos ele-
mentos materiais
12 Filóstrato. espaço-temporais com os axiológicos (hie-
e

O contato c o m o ciclo troiano e


seus heróis duranteo período
hele-
rarquicos). Essa coalescência absoluta
e a falta de liberdade
nistico (transtormando-o em romance).
A questão geral da
transtormaçao do objeto a ela relacionada puderam ser
do material epico em romanesco, sua transposição para
a zona de
contato
meira vez superadas pela pri-
apenas nas condições do
(conduzindo-o pelos estágios do riso e do familiar). plurilinguismo ativoe da
conhecimento, mas sim a
memória. A Expe interiluminação das línguas (e então a epopeia tornou-se um
Nao a experiencia e o
o romance genero semiconvencional e
Tiencia, o conhecimento e a prática definem (futuramente) semimorto).
dominante, a teoria do conhecimen Graças à distância épica, que exclui
atividade e mudança, o universo qualquer possibili-
Quando o romance se torna ogênero
to se torna a teoria filosótica dominante. dade de
ASSim aconteceu, e nada pode mudá-lo (a lenda sagrada
do passad0). épico ganhou sua
consciência da relatividade de todo o passado
nao a
"R
Ainda existe
"Idade Média",o termo
XISte um inicio primevo absoluto:
absoluto, um
a
de russo skaz
discurso oral vivo,
tem uma variedade de sentidos, entre eles o
nascimento", a "ldade Moderna". quase fotográfico. (N. do T
Mikhail Bakhtin O
romance como
82 gênero literário
83
lenda também man
acabados, a
condições da
elevados

conclusibilidade do ponto de vista não Nos gêneros papel nas


excepcional embora seu
só d
signihcado, convencional
conteúdo como também do sentidoe do valor. O univereso rém o
seu
a se tornar mais
criação erta venha
pessoal abert

épico se constrói na zona da imagem absoluta e


distante. fa.
realidade e m f. grande literatura da épo
epopeia.
contato com a na
ra do campo de um possivel do que o universo da
Em linhas gerais, distante da m e -
mação, inacabada e, por isso,
reinterpretante e reavaliadora no passado, no plano

Os três traços constitutivos da epopela que caracteriza ca


clássica projeta-se relativo real, vinculado ao
e m u m passado
mos são, em maior ou menor grau, Inerentes também aos de- m a s não
mória, e sim n o passa-
continuas transiçoes temporais,
mais gêneros elevados da Antiguidade Clássica e da ldade presente por do apogeu. O passado é dis-
axiológico dos principios
e
Média. Na base de todos esses gêneros elevados e prontos do como um circulo. Isso,
eviden-
concluídoe fechado
residem a mesma avaliaçao dos tempos, o mesmo papel da tanciado,
significa que nele mesmo não haja nenhum m o -
análoga distäncia hierárquica. Para nenhum ge temente, não
lenda, uma
as categorias temporais relativas e m
vimento. Ao contrário,
nero elevado a realidade contemporânea
como tal é um ob-
são elaboradas de forma sutil e rica (os matizes
jeto válido da representação.
A realidade contemporânea no seu interior
de integrar gêneros elevados apenas
os
em suas camadas hie-
rárquicas superiores, já
distanciadas por sua posição nessa e contato. No gênero do "monumento", O poeta constrói sua imagem n o
os epitátios dos déspotas a n -
mesma realidade. Entretanto, ao passarem a integrar os gê-
plano distante das gerações futuras; vejam-se
neros elevados (por exemplo, nas odes de Píndaro, em Simo- tigos e os epitáfios Augusto. universo da memória, um fenômeno
de No

acontecimentos, vencedores e heróis aparece num contexto inteiramente diferente- nas condições de uma lei
nides), é como se esses
absolutamente especíhca- daquele que ocorria no universo da visão e do
da "alta" atualidade se passado,
familiarizassem com o en-
contato prático e familiar. O passado épico é uma forma específica de
mediado- per-
diversos elos e vinculos
trelaçassem-se, através de cepção artistica dos homens e dos acontecimentos. Essa forma envolvia
único do passado heroico e da lenda.
Eles ga- quaseinteiramente a percepção artísticaea representação em geral. A re-
res, no tecido
meio de sua presentação artística é uma representaç o sub specie aeterni- do ponto
nham seu valor e sua elevação precisamente
por
de vista da eternidade. Só se
fonte de todo valor e de to- pode e se deve representar, perpetuar pelo
introdução no passado enquanto discurso artístico aquilo que é
digno de ser percebido, aquilo que deve ser
assim dizer, retiram-se
da essencialidade genuínos. Eles, por conservado na memória dos
descendentes; cria-se uma imagem para os
inconcluso, irresolvido,
da atualidade e de seu caráter aberto, herdeiros, e esta se forma no plano distante e
antecipável dos descenden-
retiram-se da possibilidade de
reinterpretações e reavaliações. tes. A atualidade
para a atualidade (que não tem
pretensão à memória) é
do passado e nele adqui
inscrita em argila, a
atualidade para o futuro (para os
Eles se projetam ao nível axiológico cobre e mármore. E importante a correlação dos descendentes), em
o "passado ab
rem completude. Não se pode
esquecer que
e preciso
logico não se situa no tempos: o aspecto axio-
futuro, não é a ele que servem, não é diante dele
sentido limitado se
postam os méritos
soluto" não é um tempo em nosso
(estes estão diante de uma que
categoria hierárquica
axiologico mas estes servem à eternidade atemporal),
certa memória futura sobre
do termo, mas uma uo
universo do
passado absoluto,
o
passado, servem à
ampliação
-temporal.14. gens do
universo (às custas do
ao seu
enriquecimento com novas ima-
opoe a todo tempo atual), que sempre e
qualquer
e
por principio
Os cantos heroicospresente transitório.
se
a grandeza sen
próprio tempo, sobre
autobiografia (biografia) contemporâneos.
N a o se pode ser grande
em seu ao da os
passado (surge A ideia
os descendentes, para
os quais se
t o r n a
de
vis Aqui Cíceroem
de heroifica-
e não objeto
se
trata do e outros.
pre apela para
um distante);
plano
ela se torna objeto
da memória
problema da autobiograha.
Mikhail Bakhtin
romance como
gênero literário
84
85
de antes" e
"depois", a sucessão dos realidade
acontecimentos, contemporänea era a
realidade

pidez, duração, etc.); está presente uma alta passado épico,


a
ponto de
a a ra a0 ainda
técnica
como
servir menos
baixos. Podia
ca do
tempo. Entretanto, todos os pontos de vista artísti. dos níveis artísticas. O foco
desse tem. interpretaçãoe a avaliação
po concluído e fechado em um circulo partida para a
maneira do tempo
distanciam-se de igual de tal interpretaçãoe
de tal avaliação só poderia estar n o pas-
da atualidade, real e em O presente é algo passageiro, é fluidez, unma
seu conjunto, aquele tempo não esta localizado movimento;
em sado absoluto.
no eterna sem início n e m fim; a ele falta completu-
histórico real, n o está correlacionado com o processo prolongação
presente e O futuro era concebido o u
com de genuínae, por 1sso, essencia.
o futuro, ele contém em si,
por assim dizer, toda a do presente, essencialmente idêntica
dos tempos. Disso resulta que todos esses plenitude como uma prolongação
tempos elevados a ele, ou conmo final, a morte final, a catástrofe. As categorias
da época clássica, isto é, toda a grande literatura se
na zona da imagem distante,
nenhum contato sem
constrói axiológico-temporais do início absoluto e do fim absoluto
possível têm importância extrema para a sensação do tempo também
com o presente em sua inconclusibilidade.15* nas ideologias do passado. O início é idealizado, o fim é obs-
A realidade contemporänea como tal, isto é, a curecido (a catátrofe, a "morte do deus"). Essa sensação do
preserva-
ção da personalidade própria, n o podia, como já dissemos, tempo-assim como a hierarquia dos tempos, por ela defi-
ser objeto da representação nos gëneros altos. Comparada nida penetra todos os gêneros elevados da
Antiguidade e
da Idade Média. E penetrou tão a fundo a
própria base dos
gêneros que continuou a viver neles mesmo nas épocas se-
15O caráter oficial da idealização do passado nos gêneros elevados.
Todas as expressões externas da força dominante e da verdade (de tudo guintes-até o século XIX, e mesmo depois
disso.
A realidade contemporânea, fluida, passageira
que está concluído) são formuladas na categoria axiológico-hierárquica de "bai-
e
xa", o
presente, essa *vida sem
passado, na imagem distante e r e m o t a (desde os gestos e as vestes até
o

jeto da
princípio nem fim" eram ob-
estilo, tudo é símbolo de poder). CO vínculo do romance com o elemento
representação só dos
gêneros baixos.
eternamente vivo do discurso não oficial e do pensamento não oficial (a era o objeto de representaç o principal no Mas, sobretudo,
forma festiva, o discurso familiar). A profanação. quissimo campo de criação do riso vastíssimoe ri-
anterior, procurei mostrar a enormepopular. Em meu ensaio
retirados da esfera
Ama-se aos m o r t o s de modo diferente, eles estão
falar apenas em outro estilo. Do
no mundo antigo quantoimportância
do contato, sobre eles pode-se e deve-se desse cam-
ponto de vista estilístico, o
discurso sobre os mortos é profundamente
di-
po-tanto na Idade
Média- pa-
discurso sobre os vivos. Todo poder
e todo privilégio, toda im- ra o
nascimento e a formação do
ferente do
convívio familiar para plano
o teve igual importância discurso romanesco. Ele
portancia e toda elevação s a e m da z o n a do para todos os outros
elementos do gê-
do discurso
a etiqueta, o estilo
de seu discurso e o estilo nero
romanesco na fase de seu
(a veste,
formação. E precisamente nosurgimento
distante
na e de sua
sobre eles).
problematicidade contemporânea
na tragedia (so-
curar as riso popular primige-
O com a
Ivan Tolsto. autênticas raízes que cabe pro-
folclóricas
contato

romancização. Cf.
bretudo em Esquilo). Eurípides e a
não romanescos.
A atirude
a
atualidade tal,
como "eu
do romance. O
presente,
A natureza clássica de todos o s gêneros
mesmo", "meu tempo"
Contemporâneos" foram objeto e "meus
em relação ao acabamento.
etc.) e s u a naturea
a0 mesnmo inicial do
o

O estilo da etiqueta social e da


polidez ("vós",
hierárquico)
como a
do pal,
* Se
torma uma tempo alegre e ambivalente
riso
destruidor. E justamente
Classica (o deslocamento o passado
para
com o mundo, como relação principialmente nova
aí que
senhor.
objeto, e uma nova
com a
realidade,
O estilo familiar.
O
relação com a lin-
Mikhail Bakhtin
romance como
gênero literário
86
87
isto é.
discurso. Ao lado da representação ridiesl naepoca do barroco,
guagem, com o exatamente

europeu
ula- romance
começava a elaboração
da teoria
rizante direta da atualidade, florescem a parodização
eo tra. usto no
momento em que
quando ganhava precisão
vestimento de todos os gèneros elevados e de todas asi (do abade Huet), e
do romance
E por isso que
gens elevadas do mito nacional. O "passado absoluto" do
termo "romance".
consolidava-se o proprio
e
r o m a n e s c a s da Antiguidade
esse t e r m o
deuses, semideuses e herois-nas paródias e especialmento todas as obras
dentre
grego. Entretanto, os
nos
travestimentos "atualiza-se": é rebaixado, repTesen n- se
consolidou apenas no "romance
ainda que des-
tado no nível
da
atualidade, na situação cotidiana da sério-cómico que mencionamos,
atuali. gêneros do
dade, na linguagenm baixa da atualidade. sólido arcabouço de composição e enredo
providos daquele
Desse elemento do riso popular
em terreno
clássico me. que costumamos
exigir do gènero romanesco, antecipam os

dra imediatamente um campo bastante amplo e diverso da mais substanciais do desenvolvimento do romance
elementos
aos diá-
literatura antiga. que os próprios antigos designavam ex nos novos tempos. sso diz respeito particularmente
pressamente como spoudaiogeloion (onouõaioyélo1ov), ou logos socráticos que, paratraseando Friedrich Schlegel,
seja, o campo do *sério-cómico".° Aqui se situam os mi
podem ser chamados de "romance daquele tempo"- e em
mos de enredo breve de Sofrônio, toda a poesia bucólica, a seguida à sáira menipeia (incluindo nela também o Satiricon
fábula, a literatura memorialística primígena-o Epidimiai de Petrônio), cujo papel na história do romance é imenso e
(ETTÑNLía1) de lon de Quios, o Homiliai ('OuiAía1), de Cri- nem de longe foi suficientemente apreciado pelos estudiosos.
tias os panfletos; aqui os próprios antigos situavam tam- Todos esses gêneros do sério-cômico foram a autêntica etapa
bém os diálogos socráticos" (como gênero), aqui se situam primeira e essencial do desenvolvimento do romance como
posteriormente a sátira romana (Lucílio, Horácio, Pérsio, Ju- genero em formação.8*
venal) e a vasta literatura dos symposia e, por fim, situam-se Em que consiste o espírito desses
gêneros do sério-cômi-
a sátira menipeia" (como gênero) e os diálogos
de tipo lu- funda
co, que em
se a sua
inmportância como primeira etapa
de do processo de
cianicos. Todos esses gêneros, abrangidos pelo conceito
formação do romance? Seu objeto e, o que é
alémn ainda mais importante, seu
sério-cômico, são os autênticos precursores do romance; ponto de partida para compreen-
disso, alguns são gêneros de tipo puramente romanesco,
que der, avaliar e enformar é a realidade
forma desen- primeira vez o objeto de uma contemporânea. Pela
contêm em forma embrionária, e às vezes representação literária séria (e,
em
é
volvida, os elementos basilares das
variedades mais inmpor- verdade, ao mesmo tempo cômica) é dado sem
autëntico espl- distância, nível da qualquer
tantes e mais tardias do romance europeu. O
no
atualidade, na zona do contato imedia-
rito do romance como gènero em formação está presente nes
to e
grosseiro.19* Mesmo quando o objeto da representação
do que nos
$as variedades emn grau incomparavelmente maior
antigo digno
chamados *romances gregos" (único gênero Traité de l'origine des romans
forte influencia
no
cel, publicado em 1670 por [Tratado sobre a
origem do roman-
Pierre-Daniel
exerceu
nome). O romance grego
Huet (1630-1721).
desse
18
comédiaA (N. do T.)
romance. e o

O
questões em "Pecula plano da
aborda de forma mais ampla
essas
nco tanto em representação cômica (pelo riso) é um
plano especí-
Bakhtin

da composição das obras de Dostolev>


termos de
d e
minimo: tempo quanto de
memória e a lenda nada espaço. Aqui o papel da memó-
ridades do género, do enredoe
1) a
Dostoiévski. (N. do
capitulo V de Problemas da poética de têm a fazer no universo cómico;
O
Mikhail Bakhtin
romance como
gènero literário
88
89
reverência
medo e a
destroi
O
objeto de
riso conta-

experimentá-lo. torna-o

desses gêneros são o passado e o mito, a distäncia épica está tee diante do mundo, absolutamen-

do objeto, investigação

ausente, pois o ponto de vista e dado pela atualidade,Nece diante


familiare
assim prepara
a sua
essencial na
consciên-

t a t o r mais
processo de
da distância cabe u m
destruição papel especifc to
sobre ele.
O riso é o
senm a qual é imposível
te livre de intrepidez
ao princípio do
riso, haurido do tolclore (do riso popular). É e familia-
daquela premissa Ao aproximar
destroi a distância épica e em geral cia mundo.
realista do
precisamente o riso que percepção t r a n s t e r e para a s
mãos in-
- e l e atasta a axiologia. Na ima- 1uma
que o
toda distância hierárquica
como
o riso
rizar o objeto, t a n t o científica quan-
não pode ser risivel; é necessário apro- investigativa-
gem distante, objeto trépidas da
experiëncia
o
experiência
objetivos dessa
nova

ximá-lo para torná-lo risivel.


Tudo
o que é risível é próximo: servindo aos

aproximacão
na da máxima toartística experimental. A
familiarização cômica e
toda criação cômica opera
zona
invenção
o objeto, introduz de livre etapa excepcionalmen-
de do mundo é
Oriso tem a notável força aprox1imar uma
linguístico-popular da
do contato grosseiro onde se pode apalpá- indispensável no processo de formação
o objeto na zona importante
e
colocá-lo no avesso, observá- te artístico-realista da civili-
-lo de todos os lados, revirá-lo, livre criação cientifico-cognitiva e
o envoltório externo,
-lo de baixo para cima, quebrar-lhe zação europeia.
duvidar dele, decompô-lo, des- excelente documento que reflete o n a s -
olhar para as suas entranhas, Dispomos de um
estudá-lo livremen- científica e da n o v a ima-
membrá-lo, desnudá-lo e desmascará-lo, cimento simultâneo da concepção
do romance. Trata-se dos diálogos so-
gem artístico-prosaica
Trata-se da zona do contato maximamente
cráticos. Tudo é peculiar nesse magnífico gènero, nascido n o
ridiculariza-se para esquecer.
riso-insulto-espancamento. No fundamental,
trata-se final da Antiguidade peculiar que ele surja c o m o
Clássica. E
familiar e grosseir0:
de umadesentronização, isto é, precisamente,
da retirada do objeto do
apomnemoneumata, isto é, como gênero de tipo memorialíis-
épica, do assalto e destruiç o do
plano distante, da destruição
da distância tico, como registro de conversas reais entre contemporâneos
deliberada o u o desvelamento das
plano distante em geral (a destruição o más- baseado na memória pessoal20* e mais, é peculiar que a ima-
românticos, surginmento de heróis sem
aparéncias nos dramas dos meio a o público, etc.). A pa- gem central do gênero seja constituída por um homem que
seu aparecimento em
caras nem maquiagem,
tala palestra; é peculiar
rábase. Nesse plano (no plano do riso)
o objeto pode ser desrespeitosa-
traseiro do
e a combinaç o-
imagem de Só- na

mente contornado de
todos os lados; além disso, as costas, o
ganham
crates, como personagem central desse gênero- da máscara
não suscetíveis de exibição)
objeto (e também suas entranhas, popular do tolo que não
compreende,
nesse plano u m significado específico.
O objeto é espancado, desnudado
com traços de um sábio de tipo
quase um
*Margites,
hierárquica); o objeto nu é risível, o "traje
vazio
elevado (no espírito das len-
(retira-se decoração
a uma das sobre os sete sábios da
retirado eseparado da pessoa é
risível. O
desmembramento como

forma do plano
Grécia); o resultado dessa com-
da seriedade e do medo na
operaçao cômica. O
elemento

distante. plano
"aproximação". "Ele aproximou de si" (no O caráter
específico da "memória" nas obras
familiarização e

hierárquico) ou "separou de si".


atualização). O simbolismo
ar
autobiográfhicas, seja, o caráter da memria de seu
ou memorialísticas e
A representação
cômica (ou seja, a
frente, o traseiro S mesmo. Não é a memória contemporâneo e de
tistico inicial do espaço e do tempo- alto,
o o baixo, a
o breve (ins egistro (não monumental). Aheroificada. O elemento da
mecanicidade do
aOs limites da vida pessoal (nãomemória pessoal
o presente,
último, o passado,
o antes, o depois, o primeiro,
o

A lógica artística da
análise, do desmembrd há
sem
continuidade, restrita
próprio do gênero do pais nem gerações). O caráter memo-
duradouro, etc. tlalistico já é
tantanco), o

mento, da trucidação. diálogo socrático.


O
Mikhail Bakhtin romance como
90
gênero literário
91
posigaoca magem ambivalente da "sabia ignorância" da investigaça0,
realiza-seorientação no mun-
a
amda peeuhar, c canoncO nesse gCncro, diálogo narrado cia pessoale absoluto" da lenda).
o
(inclusive no "passado
tempo
cmoldutado por uma narTAçao dialogizada; é do e no
do diálogo
imediato
peculiar a ne Mesmo o ponto de partida externoe

simmdadc. maximamente possivel para a Grécia u m pretexto fortuito e insignificante (o

lnguagcm desse genero com a linguagem popular


Clássica, da costuma
s e r v i r - s e de
ressaltado o dia de
falada: é canónico do genero): n i s s o fhca
que era
Ctremamente peculiar que csses diálogos tenham inaues ugur: hoje e sua conjuntura
casual (o encontro casual, etc.).
do a
que estivessem igados a uma
prosa ática,
renovação Nos generos serio-comicos encontraremos outros
outros
substancial da linguagem literária da prosa, a uma
de linguagens; peculiar que esse genero seja ao
mudanca aspectos, matizes consequencias
e daquele mesmo desloca-
mesmo tem- mento radical
do centro axiológico-temporal da orientação
po um sistema bastante complexO de estilos e até de
dialetos artística, daquela mesma reviravolta na hierarquia dos tem-
que passam a integrá-lo
imagens de estilos
como
de lingua- sobre a sátira menipeia. Suas
pos. Agora, algumas palavras
e

gens dotadas de diterentes graus de parodicidade (consequen- raízes folclóricas säo as mesmas do diálogo socrático ao qual
temente, temos diante de nos um genero
pluriestilístico, como ela está geneticamente ligada (é habitual considerá-la produ-
um autentico romance); ainda e peculiar a própria to da desagregação do diálogo socrático). Nela, o papel fa-
de Socrates como um prototipo notavel de
imagem
heroihicação pro- miliarizador do riso é muito mais torte, incisivo e grosseiro.
saico-romanesca (tão diferente daheroihcação épica); por As vezes, a liberdade nos rebaixamentos grosseiros e no virar
último, profundameme pecul1ar- e Isto é o mais impor-
é
ao avesso os elementos e as concepções elevados do mundo
tante para nos a combinação do riso, da ironia e
de todo pode chocar. Porém, nessa excepcional familiaridade do riso
o de rebaixamentos socráticos com uma investigação
sistema combinam-se uma aguda problematicidade e uma fantastici-
séria, elevada e - pela primeira
vez-livre,
uma investiga- dade utópica. Nada restou da distante imagem épica do pas-
sobre mundo, sobre homeme sobre o pensamento
ção o o

humano. O riso socrático (abafado a ponto de ser irônico) e


sado
absoluto;
o mundo inteiro e tudo o
que nele havia de
mais sagrado são dados sem quaisquer distâncias, na zona de
os rebaixamentos socráticos (todo um sistema de metáforas
contato grosseiro, tudo pode agarrar com as mãos. Nesse
se

e de
comparações herdadas das baixas esferas da vida-dos mundo inteiramente familiarizado, o enredo se movimenta
oficios, da vida cotidiana, etc.) aproximam o mundo, tor com uma liberdade fantástica excepcional: do céu à terra, da
nam-no familiar para que se possa examiná-lo livremente
e terra ao inferno, do presente ao passado, do passado ao fu-
é a atualidade, homens turo. Nas visões cômicas de
sem partida
medo.1* O ponto de os
além-túmulo da sátira menipeia,
os heróis do
VIvos do entorno e as suas opiniões. A partir daí, dessa atua passado absoluto, os homens públicos de dife-
hdade dissonante e heterodiscursiva, e por meio da experien rentes épocas do
passado histórico (por exempo, Alexandre
Magno) e os
contemporâneos
vivos encontram-se familiar-
mente para
conversas e até para contendas; esse choque dos
A ambivalencia do autoelogio nos diálogos socráticos:
"Souo
tempos sob a ótica da atualidade é sumamente
mais sabio de todos porque sei que nada se enredos desenfreadamente peculiar. Os
imagem de socra tao
fantásticos da sátira menipeia es-
tipo de heroificação prosaica subordinados a um objetivo: pôr à prova e desmascarar
na
TAal ar o novo
lendas carnavalescas
em
lenda carnavalesca sobre ele (Xantipa), as Ideias e
tcs.

torno
A

de Dante, Púchkin, etc. Transformação do


herói em histriao. ideólogos. Trata-se de enredos provocativo-experi-
Mikhail Bakhtin
Oromance como gener literario 93
coloca o

a r t í s t i c a , que
mentais. E significativo nesse orientação mes-

utópico, embora, é verdao genero surgimento


no
o al da r e p r e s e n t a d o s

to
do ele. ele
do centro temporal

inseguro por torna


os
men-
começa a sentir-se mais superficial: pre-
mundo

e o nível, q u e
sente inacabado to
seus
leitores
e
no
m e s m o

familia-
próximo do amigos, que
axiológico-temporal,

que do passado, começa a


autor,

do futuro conhecidos,
des-
procurar no futuro plano possiveis princípio
axiológicos, mesmo que por ora esse futuro
mo o
os vez
s contemporâneos, mais
uma

permite
na forma de um retorno à
Era de
ainda se d relações
(menciono

do O n i é g u i n ) ,
Saturno (neOuro de riza suas
acentuadamente
r o m a n e s c o

mover-se
com
reno romano, a sátira menipeia estava e aspectos,
velada
ligada
e

da forma mais
máscaras
suas esse
todas
estreita às saturnais e à liberdade do riso
as
em representado, campo
autor,

dialógica, repleta paródiassaturnal). A sátira


a0
do universo

menipeia é de liberdade n o
campo
inacessível e
fechado.23*

pluriestilística, não teme nem mesmo os travestimentos


absolutamente
e era
na epopeia
assumindo
da r e p r e s e n t a ç ã o
elementos do bilin- que
no campo
guismo (como em Marcus Varro e sobretudo Ele pode aparecer
representar os
momentos

da filosofia, de Boécio). O Satiricon de


na
Consolacäo qualquer postura
autoral, pode
eles, pode
intrometer-se
Petrônio é o testemi. vida ou fazer alusões a
nho de que a sátira menipeia pode reais de sua abertamente
avolumar-se numa enorme das personagens, pode polemizar
tela, oferecendo um reflexo realista do mundo na conversa
etc. Não se t r a t a apenas
do apa-
multiforme e heterodiscursivo da atualidade 22* socialmente com seus inimigos literários,
de autor no campo da representação
recimento da imagem
Quase todos os referidos gêneros do campo do sério- formal, o autor primá-
trata-se de que o autor autëntico,
-cômico se caracterizam pela presença de um elemento
-

inten- e m n o v a s relações
cionalmente rio (o autor da imagem de autor) aparece
autobiográficoe memorialístico. O deslocamen- mútuas com o mundo representado: agora estas se encontram
nas mesmas dimensões axiológico-temporais, o discurso re-
presentativo do autor se encontra no mesmo plano com o
22 Gógol e a sátira menipeia. Para ele, Almas mortas se afigurava discurso representado do herói e pode entrar (ou melhor, não
como uma epopeia, a sua Divina Comédia- nessa forma ele
entrevia a tem como deixar de
entrar) em relações
grandeza de seu trabalho, mas acabou produzindo uma sátira menipeia. e combi- dialógicas
nações híbridas com ele. E exatamente essa nova
Uma vez inserido na esfera do contato familiar, ele não conseguiu deixá-la posição do
nem transferir para essa esfera as imagens positivas
distanciadas; ima-
as autor
primário, do autor formal na zona de
contato com o
gens distanciadas da epopeia e as imagens do contato familiar não podiam, mundo representado,
em hipótese nenhuma, encontrar-se n o mesmo campo da representaçao;
o
que torna
imagem de autor no campo da
possível o
aparecimento da
patético irrompeu no universo da sátira menipeia como um corpo estra-
representação. Essa nova c o
nho; o pathos positivo tornou-se abstrato e ainda assim escapou desse cor
naquela obra, GogOl nao
po. Com aquelas mesmas personagens e mesma

tragédia de Go-
*O campo da representação do mundo. Ele
conseguiu passar do inferno ao purgatório
e ao paraíso. A
(entendendo-se o gênero num
dança desse
campo pelos gêneros e
períodos do desenvolvimento
A mu- écronotópico.
gole, em certa medida, a tragédia do gênero aa ratura. Como esse
campo é organizado e da lite-
Sentido não tormalista, c o m o uma
zona e um campo
da percepçao e A zona
do médio e limitado no espaço e no
de vista, 0u
são. A tática e a zona
do grande. As limitações do tempo.
perdeu a Rússia
representação axiológica do mundo). Gógol
a sua percepção e
representação,
enredou-Se
cu O
a
estratégia.
romance entra em
campo real da vi-
Seja, perdeu o plano para d0, e esse contato com o
conseguiu encoa
m e m ó r i a e o c o n t a t o familiar (grosso
modo, n o elemento n ão o deixa elemento do presente
que enrijecer. romancista tende parainacaba-
tre a
ainda não está O
campo do enredoacabado
o devido foco em seu binóculo). O
(e não na imagem distante (para o
que está nascendo e tudo o
de
romance. desagregaçao).
A ideia na zona contato no em

Mikhail Bakhtin O
romance como
94 gênero literário
e n f o r m n a -

ideias

p r i n c i p a i s t r a n s -

das peculiar
a
é
locação do
uma

do autor é um dos mais se


t o r n o u l a m b e m

traços

importantes resultados.
superação da distância épica (hierárquica).
Dosteriormente

r o m a n c e
e u r o p e u .

extremamente
aberta
dos

Dispensa esclarda
participa-
novo
do que
cimentos o quão imenso e o doras e

Signiicado do grande
X e n o t o n t e ,

de
compositivo-formal
i n t e n c i o n a l

e estilístico dessa
nova colocaçao do autor feréncia imagem
a
c o n t e m p o r á n e o

para a
especifici
-para

dade do gênero romanesco.


c o n t e m p o r â n e o

Ciro-jovem- c a m p a n h a s

outro
de suas de obra
atualidade, enquanto novo ponto de
na
de
i n t l u ê n c i a

insere
A
uma
a
ra também
Assim se

tação artística, de modo algum exclui a partida da orien- Ciro;


sente-se
X e n o f o n t e -
Sócrates.

último, é
também a

sado heroico, e o faz sem representação do Das. próximo


de Peculiar, por
pela
narração.
qualquer travestimento. Um exem.
m e m o r i a l í s t i c o .

o
e m o l d u r a d o s

de
plo Ciropedia
elemento
é de Xenotonte, que diálogos
obra-os
a n- são o ponto
pertence
evidentemente jánão forma da sua
problemática

ao
campo do sério-cômico, mas se situa modo, a
atualidade e
e da ava-

em suas
artistico-ideológica

fronteiras (elementos do diálogo Desse


ní-
presentação é o passado, o herói é o grande Ciro.
socrático).
O objeto de
re partida e o
centro

Esse passado
da apreensão
é dado s e m
distância, n o

o ponto de
partida da representaç o é a realidade de Xeno-
Contudo iação do passado. verdade que não é dado n o s
é
segmentoos

atualidade; ní-
vel da e l e v a d o s dessa
atualidade, n o
fonte: é justamente ela que tornece os pontos de
vista e os baixos, mas
nos segmentos
Observamos um
certo ma-
pontos de referência axiológicos. E peculiar que o passado vel da problemática avançada.
sua
heroico escolhido pelo autor não seja o nacional, mas o um movimento
leve (e inseguro) r e -
es- tiz utópico nessa obra,
trangeiro, o bárbaro. O mundo já se tornara aberto; o mun- do passado em direção a o
fletido da atualidade, que parte
do monolítico e fechado dos seus (como era na no sentido substancial
da
epopeia) de- futuro. A Ciropedia é u m r o m a n c e
ra lugar a um mundo
grande e aberto tanto dos seus como
palavra.
dos outros. Essa escolha do heroísmo dos outros é determi- A representação do passado no romance não pressupõe
nada por um elevado interesse pelo Oriente-característico absolutamente a modernizaç o desse passado (sem dúvida
da época de Xenofonte-, pela cultura, pela ideologia, pelas há em Xenofonte elementos dessa modernização). Pelo con-
formas sociais e políticas orientais; do Oriente esperava-se a trário, representação autenticamente objetiva do passado
a

luz. Já começara a interiluminação das culturas, ideologiase enquanto passado só é possível no romance. A atualidade,
linguas. Além disso, é peculiar a idealização do déspota orien- com suas novas
experiências, persiste na própria forma dda
tal: também aí ressoa a atualidade de Xenofonte com sua VIsão, profundidade, na agudeza, na amplitude e na viva-
na

círculo considerável de seus contem- Cidade dessa


ideia (partilhada por um visão, mas de modo algum deve
poraneos) de renovação das formas políticas gregas num es proprio conteúdo penetrar no
da autocracia oriental. Essa idealização do derniza deforma a
representado como uma força que mo-
pirito próximo e
singularidade do
autocrata oriental era, sem dúvida, profundamente estranha atualidade grande e séria
carece de uma
toda passado. Porque
a todo o espírito da lenda nacional helenística. E peculia passado, de uma imagem autêntica do
autêntica linguagem alheia e de
homem, quc do alheio. um
ainda, a ideia então atualíssima da educação do passa-
A
reviravolta
zamos hierarquia dos tempos que caracteri-
determina também
na

caracterizam pela plena au


lodos os géneros do sério-cômico se Tura da
imagem artística. O
uma
reviravolta radical na estru-
sencia dos temas eróticos.
presente em seu, por assim
O
dizer,
Mikhail Bakhtin romance como
96 gênero literário
97
que não seja
exatamente um todo) não está de nós que ele esteja no tempo, está vinculado
todo" (ainda toda esoên-
te
ao nosso
e no essen ial: a sua
presente inacabado por continuas transições
com
concluido em principio
direção
temporais, ga-
cia exige uma
continuidade, avança em ao turo e, nha uma relação com a nossa inconclusibilidade, com o nos-
mais ativa conscientemente avança para esse futu- So presente, enquanto o nosso presente caminha
e
para um fu
quanto
ro, mais sensível e
mais substancial
e a sua natureza incon- PrO inacabado. Nesse contexto inacabado perde-se a imuta-
clusivel. Por isso, quando
o presente se torna o centro da bilidade semântica do objeto: seu sentido e significado se re-
tempoe no mundo, o tempo e o mun.
novam e aumentam na medida do contínuo desdobramernto
orientação humana
no

seu carater
conclusivel tanto em seu todo como do contexto. Isso leva a mudanças radicais na estrutura da
do perdemo
Muda radicalmente o modela imagemartística. Esta ganha uma atualidade específica. Ga-
em cada uma de suas partes.

temporal de mundo: este se torna um mundo onde não exis- nha um vínculo nessa ou naquela torma e
em grau maior

te a primeira palavra
(o principio ideal) e a ültima ainda não ou menor- com o acontecimento
presentemente contínuo
consciència artístico-ideológica. da vida, com o qual nós - autor e leitores -
foi pronunciada. Para a estamos em
tempo e o mundo se tornam historicos pela primeira vez: re- comunhão substancial. Assim toi criada uma zona radical-
velam-se, mesmo que de modo inicialmente obscuro e con- mente nova de construção das imagens no romance, uma zo-
fuso, como uma formação, como um contínuo movimento na de contato maXimamente
próximo do objeto da represen-
um processo uno e inacabado que
para o futuro real, c o m o tação com o presente em seu inacabamento e, por conseguin-
tudo abrange.25+ Todo acontecimento, qualquer que seja ele, te, com o futuro.26*
todo fenômeno, toda coisa, em geral, todo objeto de repre- Tratarei de
algumas particularidades
ligadas a essas ques-
sentação artística perde aquela natureza conclusível, aquela toes. A ausência de acabamento e arremate internos leva a
insolúvel conclusibilidade e imutabilidade que lhe eram ine uma forte
intensificação das exigências de acabamento e ar-
rentes no mundo do "passado absoluto" da epopeia, prote-
remate externos e formais, particularmente do enredo. Colo-
gido do presente contínuo e inacabado por uma fronteira ca-sede maneira nova o problema do princípio, do fim e da
inexpugnável. Através do contato com o presente, o objeto é completude. A epopeia é indiferente ao princípio formal, ela
envolvido pelo processo inacabado de formação do mundo, pode ser incompleta (ou seja, não abranger o acontecimento
recebendo a marca da inconclusibibilidade. Por mais distan- inteiro) e pode não ter um final rigoroso (isto é, pode ganhar

25 O centro da atividade que interpreta e justifica o passado e trans- A profecia na epopeia e a prediç ão no romance. A profecia épica
ferido para o futuro. realiza integralmente no âmbito do passado absoluto (se não numa da-
O modernismo indestrutível do romance, que faz fronteira com uma
se
apreciação injusta dos tempos. A reapreciação do passado na RenasCenga
da
epopeia, ao menos âmbito da lenda que a envolve), e não diz respei-
no
TO ao
leitor e seu tempo real. Já o romance quer prever os fatos, predi-
ao

(as "trevas do século gótico"), no século XVII (Voltaire) e no


(o desmascaramento do mito, da lenda, da heroificação), a ideia
positivismo Zer e
influenciar futuro real, o futuro do autor dos leitores.
o e

de "pro
gresso", o salto dos últimos quatro séculos, a "consciência primitiva ao
Um capítulo específico sobre os nomes e epítetos na epopeia e no ro
ance. O nome na ficção. O pseudônimo e a época dos pseudônimos.
folclorismo, máximo afastamento da memória e o máximo estreitamen
o Uma penetração mais profunda e mais renovadora na estrutura da
todo conceito de "conhecimento" (até o empirismo), o "progressivismo agem fccional. A especificidade da nova problemática do romance. A
mecanico como critério superior. Categoria da reinterpretação da
e reapreciação perpetuas.

98 Mikhail Bakhtin
romance 99
como gênero literário
O passado absoluto é fechado e
um final quase arbitrário). nade carecer de problematicidade. Tomemos, por
exemplo
concluído tanto no conjunto quanto
em qualquer
uma de o romance vulgar de aventuras. Nele não há problemática f-
parte pode ser enformada
Por isso, qualquer e losófica nem sociopolitica, nao ha psicologia; por
suas partes.

apresentada como um todo. E impoSsivel abranger o univer te.


conseguin
através de nenhuma dessas esteras é possível um
absoluto (e ele e u n o até no enredo) e m contato
so inteiro do passado com um acontecimento inacabado da vida atual
e da nossa
u m a única epopeia
(isto signiicaria narrar de novo todaa wida, A ausência de distäncia e de uma zona
ate um segmento minima- de contato éaqui
lenda nacional), é diticil abranger
E não há mal nisso. oi
empregada de maneira diferente: em vez da nossa vida enfa-
mente significativo
desse universo.
donha, nos oferecem, é verdade,
do conjunto se repete em
cada parte, e cada par
de umavida interessante e brilhante. E
um
sucedâneo, mas trata-se
a estrutura
como um todo. Pode-se
posível covivenciar
te é concluída e redonda começar a essas aventuras, autoidentiicar-se com
essas
de qualquer momento e pode- personagens;
narração praticamente partir tais romances quase podem tornar-se substitutos da
a
nossa
em qualquer momento. A Ilíada
-se concluí-la praticamente própria vida. Nada de semelhante é possível em relação à
da guerra de Troia. Seu final (o se-
é um segmento aleatório epopeia e outros gêneros distanciados. Aqui se revela tam-
modo algum pode ser considerado bém um perigo especihco desta zona romanesca de contato:
pultamento de Heitor) de
final do ponto de vista romanesco. Mas isto não causa no romance pode-se entrar por conta
um
própria (o que jamais
nenhum prejuízo ao acabamento épico. O específico "inte- seria possível na epopeia e nos outros gêneros
como terminará a guerra?, quem vencerá?, Daí a possibilidade de fenômenos como a
distanciados).
resse pelo fim". substituição da
Aquiles, - é coisa absolutamente excluída própria vida pela leitura incontida de romances ou por so-
que será de
o etc.

relação material por motivos tanto internos


épico, nhos à maneira romanesca (como o
em ao
de antemão o enredo
protagonista de Noites
quanto externos (todo mundo conhecia brancas,Dostoiévski), como o bovarismo,4 como o apa-
de
da lenda). O específico "interesse pela continuidade" (o que recimento, na própria vida, de heróis romanescos da moda
e o "interesse pelo fim" (como vai terminar?)
depois?) os
desiludidos, os demoníacos, etc. Outros gêneros são
-

vem

são caraterísticos apenas do romance e possíveis apenas na


capazes de gerar semelhantes manifestações apenas quando
z o n a de proximidade e de contato (são impossíveis na zona
romancizados, ou seja, transpostos para a zona de contato
da imagem distante).27* romanesca (porexemplo, os poemas de Byron).
As peculiaridades da zona romanesca nas suas diversas A nova
orientação temporal e à zona de contato está
variedades se manifestam de diferentes modos. O romance Vinculado outro fenômeno sumamente
importante na histô-
ria do romance: suas
relações específicas com os gêneros ex-
N a imagem distante apresenta-se o acontecimento inteiro,
eo traliteráriosgêneros ideológicos e cotidianos/de costumes.
Ja no período de seu
interesse pelo enredo (o desconhecimento) é impossível. A categoria espe surgimento, o romance e os gêneros que
culativa de desconhecimento. O antecipam se baseavam em diversas formas extrahccionais
Formas e métodos de emprego dos excedentes do autor (daquilo que Vida
o herói não sabe nem ve). O emprego do excedente (externo) no enc
da
pessoal e social, particularmente nos gêneros retóri
do
O emprego do excedente para um acabamento substancial da imagem
homem. O problema da exteriorização romanesca. Ou
Gustave
seja, como a heroína de Madame Bovary (1856), romance de
A questão de uma possibilidade diferente. Flaubert. (N. do T.)

Mikhail Bakhtin O
100 romance como 101
gênero literärio
cos até uma teoria segundo
(existe
a qual o romance deriva do homem na literatura. Entretanto, no âmbito do presente
ultimas epocas de seu desenvolvi ensaio, só posso tratar de passagem e superficialmente dessa
da retórica). Também nas
mento, o romance empregava ampla e substancialmente as e complexa questão.
grande
formas das cartas, dos diarios, das confissões, as formas e o homem dos gèneros distantes e elevados é o homem
métodos da nova retórica forense, etc. Ao construir-se na zo- da imagem absoluta e distante. Como tal, ele está totalmen-
acontecimento inacabado da atualidade te acabado e pronto. E acabado em um nível heroico elevado,
na de contato como

o romance frequentemente cruza as fronteiras da especifici mas é acabado e irremediavelmente pronto, está todo ali, do
transtormando-se ora em confissão principio ao fim, coincide consigo mesmo, é absolutamente
dade artístico-literária,
ora em manifestação fran- igual a si mesmo. Ademais, ele é totalmente exteriorizado.
moral, o r a em tratado filosóhco,
ora degenerando n u m a sinceridade de con- Entre sua autëntica essencia e sua manitestação externa não
camente política,
em "grito da alma" há a mínima divergência. Todas as suas potencialidades, to-
fissão crua e desanuviada pela forma,
etc.29* Todos esses fenômenos sao peculiarissimos ao roman- das as suas possibilidades foram realizadas até o fim em sua
em formação. Porque as fronteiras entre posição social externa, em todo o seu destino, até em sua
ce enquanto gênero

o artístico e o extraliterário, entre a literatura ea não litera- aparência: fora de seu destino determinado e de sua posição
tura, n o foram estabelecidas pelos deuses de uma vez por determinada não sobra nada dele. Ele é tudo o que poderia
todas. Toda especificidade é histórica. A formação da litera- ser, e só poderia ser aquilo em que se transformou. Ele é to-
não é apenaso seu crescimentoe a
sua
mudança noâm- do exteriorizado também no sentido mais elementar,
tura quase
bito das fronteiras inabaláveis do specificum;
ela afeta até literal: nele tudo é aberto e dito de forma altissonante, seu
essas m e s m a s fronteiras.
O processo de mudança das fron- mundo interior e todos os seus traços externos, suas mani-
teiras das regiões da cultura (inclusive
da literatura) é um festações e ações estão no mesmo plano. Seu ponto de vista
complexo. Algumas violações sobre si mesmo coincide
processo
extremamente lento e
plenamente com o ponto de vista
das fronteiras do specificum (como as mencionadas acima) dos outros, da sociedade (do seu
grupo), do cantor, dos ou-
transcorre em gran- vintes.0* Ele vê e sabe a seu respeito só aquilo
são apenas sintomas desse processo, que que os outros
em formação
de profundidade. No r o m a n c e enquanto gênero
manifestam de
esses sintomas da mudança
do specificum se
são significativos, uma A
questão da autoglorificação em Plutarco e outros.
modo muito mais frequente, agudo, e Nas condi-
romance po oes do plano distante, o "eu mesmo" existe não em mim e para mim, mas
e s s a s mudanças. O
vez que o r o m a n c e encabeça para os descendentes, na memória
os grandes e
ain- antecipável da posteridade. Tomo cons-
de servir c o m o documento para conjecturar Ciencia de mim, de minha
da literatura. imagem no
plano distanciado do longinquo; mi-
da distantes destinos do desenvolvimento nha autoconsciência está alienada de mim nesse plano distante da memó-
Contudo, a da orientação
mudança temporal e da zona rla; vejo a mim mesmo pelos olhos do outro. Essa
coincidencia das formas
manifesta de maneira ou
melhor, do ponto de vista sobre mim mesmoe sobre o
de construção das imagens em nada se natureza outro-é de
da imagem ingênua e
integral, entre elas n o há divergência. Ainda não exis-
tão profunda e substancial c o m o na reconstrução te a
confissão, autodesmascaramento.
o

coincidência do que representa


A
com o que é representado. A orien-
taçao mútua da
O domínio da problemática filosófica
e científica (violação dos imagem com o contemplador.
As buscas de um novo ponto de vista sobre mim mesmo (sem as mar-
limites do specificunn).

Mikhail Bakhtin
Oromance como gênero literário 103
102
veem e sabem sobre ele. Tudo o que o outro, o autor pode
dizer sobre ele, ele mesmo pode dizer de si, e vice-versa. Ne-
A da
destruição distäncia
épica e a passagem da imagem
do homem do plano distante para a zona de contato com os
le não há nada a procurar, nada a conjecturar, ele não pode acontecimentos inacabados do presente (e, consequentemen-
ser desmascarado, n o pode ser provocado: é todo externo te, do futuro) leva a uma reconstrução radical da imagem do
não há carapaça nem nucleo. Alem disso, o homem épico (as homem no romance (tanto na literatura subsequente como
sim como o autor) é desprovido de qualquer iniciativa ideo- em toda a literatura).
E nesse processo
desempenharam umm
lógica. O universo épico conhece apenas a cosmovisão una
totalmente acabada, igualmente obrigatória e indubitável
imenso papel as tontes folclóricas e cômico-populares do ro-
mance. A etapa primeira e muito substancial da formação do
tanto para os heróis quanto para o autor e os ouvintes. O romance foi a tamiliarização cômica da imagem do homem.
homem épico é desprovido tambem de iniciativa linguística: O riso destruiu a distäncia epica, passou a estudar o homem
o universo épico conhece apenas uma linguagem una e aca- de forma livre e familiar: colocou-o do avesso, desvelou a
bada. Por isso, nem a cosmovis o, nem a linguagem podem discrepância entre sua aparencia externa e seu interior, entre
servir como fatores de delimitação e enformação das imagens a possibilidade e sua realização. Na imagem do homem foi
dos homens, de sua individuação. Aqui os homens estão de- introduzida uma dinämica essencial, a dinâmica da incoinci-
limitados, enformados e individualizados por diferentes po- dência e da discrepância entre diferentes elementos dessa ima-
diferentes "verdades". Nem homem deixou de coincidir consigo
sições e destinos, mas não por gem; o mesmo e, por
os deuses estão separados
dos honens por u m a verdade es- conseguinte, o enredo também deixou de esgotar o homem
eles têm linguagem, a mesma cosmovisão, o até o fim. De todas essas incoincidências e discrepâncias o ri-
pecial: a mesma

mesmo destino, a mesma exterioridade total. so haure, antes de tudo, efeitos cômicos (mas não só cômi-
Essas peculiaridades do homem épico, partilhadas no cos), e nos gêneros do sério-cômico da Antiguidade delas se
fundamental também por outros gêneros elevados e distan- projetavam também imagens já de outra ordem, por exem-
uma integridade e uma plo, a grandiosa imagem integral e heroica de Sócrates, cons-
ciados, criam u m a beleza excepcional,
clareza cristalina, um acabamento artístico dessa imagem truída de maneira nova e complexa.
tanmbém sua limita- E peculiar a estrutura artística da
do homem; mas a o m e s m o tempo geram imagem das máscaras
de existência da populares estáveis, que exerceram uma imensa influência na
ção e certa irrealidade nas novas condições
humanidade. tormação da imagem do homem no romance e nas fases mais
importantes do seu desenvolvimento (nos gêneros do sério-
comico da Antiguidade, em Rabelais e Cervantes).31* O he
roi epico ou
trágico
não são nada fora de seu destino e do
e do nao enredo por este condicionado: não podem se tornar heróis de
reconhecimento
cas do ponto de vista dos outros). A questão do
reconhecimento.
outro
destino, de outro enredo. As máscaras popularesde
de alcova no
A teoria do gesto romanesco expressivo (o gesto íntimo
e seus equívocos
desvelam justamente
drama). Seu atastamento da forma
sua signihcação subjetiva.
depois a problemat A realidade do romance é das possíveis realidades, não ë
A subjetividade: primeiro o desvio da norma, uma
ccessaria, casual. A questão de
cidade da própria norma. A "psicologia".
mas
outra possibilidade.

Mikhail Bakhtin ) romance


104
como
gênero literário 105
máscaras e sua (a estrutura consigo
incoincidència
Fssas
Arlequim ao contrário, podem as.
cada:situaç o dadao alegre excedente, a ines-
Maccus,32 Polichinelo, situações (o
em
m e s m a

e x e r c e r a m enorme influência
aotabilidade, etc.), repetimos,
em quaisquer
destino ehgurar
tuciar qualquer
m e s m a peça), mas elas mesmas nun- da imagem romanesca do homem. Essa
que às
vezes tazem numa

destino ou por situações, e


essas
no desenvolvimento tambem no romance, porém numa for-
conserva
ca são esgotadas por esse
estrutura se
conservam sempre seu
excedente alegre sobre qualquer situa- complexa, aprofundada em termos de conteúdo e
mais
sempre sua feição huma-
ma
destino, conservam
séria (ou sério-cômica).
ção qualquer
e
Por isso, essas máscaras podem
na simples,
mas inesgotável. Um dos temas internos basilares do romance é precisaa-
é precisamente em destino
do enredo; além disso, o tema da inadequaçao
da personagem ao
agir e falar fora
seu
mente
e n r e d o - é nas tricae33 atellanas, é maior do que o destino
suas manifestações fora do à sua situação. O homem ou seu
elas revelam melhor a e

nas lazzi34 da comédia italiana - q u e ou menor


do que a sua humanidade. A personagem não po-
Nem herói épico nem o trágico podem, por sua sendo funcionário, um fazendei
sua feição. o
e num intervalo fora do
de permanecer ate
o fim um

natureza,
manifestar-se numa pausa
ro, um comerciante,
um genro, um ciumento, um pai, etc. E
têm feição, nem gesto, nem pala-
enredo; para isso eles não residem as suas quando a personagem assim, ou seja,
do romance vem a ser

vra; nisso
reside a sua torça e n i s s o m e s m o
suas próprias quando enquadra-se plenamente em sua situação e em seu
limitações. O herói épico e o herói trágico, por
destino (como o herói do gënero de costumes, ou a maioria
naturezas, estão
fadados à morte. As máscaras populares, ao
enredo das atellanas, das das personagens secundárias do romance), ent o o exceden-
contrário, nunca m o r r e m : nenhum
te de humanidade pode ser realizado na imagem da persona-
comédias italianas das comédias francesas italianizadas
ou
realiza na diretriz for-
Polichinelo gem central; esse excedente sempre se
prevê o u pode prever a efetiva morte de Maccus, mal e de conteúdo do autor, nos métodos de sua visão e de
o u Arlequim; por outro lado,
muitas prevêm as suas fictícias
Trata-se de sua representação do homem.35 A própria zona de contato
mortes cômicas (e seu posterior renascimento).
não de heróis da lenda; trata- com o presente inacabado e, por conseguinte, com o futuro,
heróis de improvisações livres e
cria a necessidade dessa incoincidência do homem consigo
processo renovador indestrutível
e eter-
-se de heróis de um
heróis do mesmo. Nele sempre restam potencialidades não realizadas
no, de um processo vital sempre atual, e não de
passado absoluto.

3O homem não pode ser personificado até o fim no corpo sócio-


-histórico existente. Não há formas capazes de personificar até o fim todas
* Personagem característico das atellanae, farsas de origem osca que
as capacidades e
exigências do homem, não há formas nas quais ele possa
esgotar a si mesmo até a última palavra (como o herói trágico ou épico),
tiveram grande sucesso na Roma antiga. O Maccus tem papel análogo 20 nao ha capacidades e exigências que ele poderia preencher até as bordas
de Polichinelo na commedia dell'arte. (N. do T.)
33
Do latim: "intrigas". Trata-se da primeira cena das farsas atela Sm taze-las transbordar. Sempre restará excedente não realizado de
um

nas, que dá inicio aos eventos da peça. (N. do T.) hunanidade, sempre restarão a necessidade de futuro e um espaço neces-
para esse futuro. Todas as vestes existentes são justas demais (e por
D o italiano: "rotinas". Na commedia dell'arte, trata-se ae ay hcam cômicas em quem as veste). Contudo, essa excedente humani
comicas improvisadas ou previamente ensaiadas que correm em paraleo
ae impersonificável pode realizar-se não na personagem, mas no ponto
a açao central da peça, em seus intervalos. (N. do T.) VIsta do autor
(como acontece em Gógol, por exemplo).

106 Mikhail Bakhtin O


romance como genero literário 107
e exigências não atendidas. Ex1ste o futuro, e esse futuro não iá no novo mundo, iSso se deu na ldade Média
tardia e no
pode deixar de afetar a imagem do homem, não pode deixar Renascimento. Nessas epocas assentam-se as bases do gêne-
de ter raízes nela. ro romanesco,
embora os seus elementos já tivessem
sido pre-
A integralidade épica do homem desintegra-se no ro- narados muito antes, e embora suas raízes remontem ao ter-
mance também por outras linhas: surge uma discrepância reno do folclore. Nessas épocas, todos os outros grandes gê-
substancial entre o homem externo e interno, resultando daí neros já estavam prontos havia muito, eram gêneros velhos,
que a subjetiridade do homenm passa a ser objeto da experiên- quase petrificados. Todos estavam penetrados de cima a bai-
cia e da representação, inicialmente situada no plano cômico xo pela velha hierarquia dos tempos. Quanto ao romance
e familiarizante: surge uma especifica discrepância de aspec enquanto gênero, desde o inicio ele se formou e se desenvol
t o s - o homem para si mesmo e o homem aos olhos dos ou- veu no terreno de uma nOva sensação do tempo. O passadob
tros. Essa desintegraç o da integridade épica (e trágica) do absoluto, a lenda, a distância hierárquica não desempenha-
homem no romance combina-se ao mesmo tempo com a pre- ram nenhum papel no processo de sua formação como
gêne-
ro (desempenharam um papel menor apenas em
paração de sua nova e complexa integralidade em um novo alguns pe-
humano. ríodos de desenvolvimento do romance, quando ele estava
grau do desenvolvimento
Por último, no romance o homem adquire uma iniciati- sujeito a uma certa epificação, como, por exemplo, no ro
va ideológica e linguística que muda o caráter da sua imagem mance barroco); o
justamente no proces-
romance se formou

(um tipo novo e superior de individualização da imagem). Já so de destruição da distância épica, no processo de familia-
na fase antiga de formação do romance, surgem ótimos pro- rização cômica do mundo e do homem, de rebaixamento do
de heróis-ideólogos: assim é imagem de Sócrates, objeto da representação artística ao nível de uma realidade
tótipos a

do ridente Epicuro chamado Romance contemporânea fluidae não acabada. O romance, desdeo
assim é a imagem no
seu início, foi construído não na
de Hipócrates, assim é a inmagem profundamente
romanesca imagem distante do passado
de Diógenes na vasta literatura dialógica dos cínicos e na sá- absoluto, mas na zona de contato imediato com essa atuali-

dade inacabada. Seu fundamento forama experiència pessoal


tira menipeia (aqui ele se aproxima acentuadamente da
ima-
a imagem de
e a livre invenção criadora. A nova imagem romanesca, ar-
gem da máscara paródica), assim é, por fim,
Menipo em Luciano. Via de regra, o herói do romance é ao
tistico-prosaica sensata, e a nova concepç o científica críti-
e

Ca, fundada na experiência, formaram-se paralela e simulta-


mesmo tempo um herói-ideólogo.
de re- neamente. Desse modo, o romance foi desde o início feito de
esquema u m tanto abstrato grosseiro
Assim é o e
matéria diferente da dos outros gêneros acabados; é, em cer-
construção da imagem do homem no
romance.
ta medida, de outra natureza, e com ele e nele nasceu o futu-
Façamos alguns resumos do exposto.
de ro de toda literatura. Por isso, ao nascer ele não poderia
a
O presente em suainconclusibilidade, como ponto
é uma TOrnar-se simplesmente um gênero entre gêneros nem poderia
partida e centro da orientação artístico-ideológica,
homem. No construir as suas interrelações com eles na ordem de uma coe
grandiosa reviravolta na consciência criadora do
mundo europeu, reorientação e a destruição
essa
da velha XIstencia pacífica e harmoniosa. Na presença do romance,
todos os gêneros começam a soar de modo diferente. Inicia-
substancial expressao
hierarquia dos tempos ganharam u m a
de genero no limite da Antiguidade Clássica
e do Helenismo;
va-se uma
longa luta pela romancização dos outros gêneros,

Mikhail Bakhtin
romance como gênero literário 109
108
o presente inacabado começa a sentir-se mais próximo do f
sua incorporação à realidade ina-
zona de contato com a
por turo que do passado. Entretanto, no terreno do antigo regi-
cabada. O caminho dessa luta foi complexo sinuoso.
e
me escravista, carente de perspectivas, esse processo de reo-
da literatura não é, em hipótese nenhu-
A romancização rientação num tuturo real não podia concluir-se: esse futuro
de um canone de gênerob
a outros generos
ma, a imposição
romance tal canone não existe, real não existia. Essa reorientaçao ocorreu pela primeira vez
alheio a eles. Pois mesmo no
n a época do RenascimentO. Nessa epoca, o
Por sua natureza, o romance
nao e canónico. E a própria presente, a atua-
em eterna procura, que está em
lidade, fez-se sentir pela primeira vez não só como uma con-
plasticidade. E um genero tinuação inacabada do passado, mas também como um co
eterno estudo de si mesmo, sempre redehinindo todas as suas
meço novo e heroico. Perceber as coisas no nível da atuali-
formas constituídas. Apenas um genero construído na zona
de contato imediato com uma real1dade em formação pode dade significava não só rebaixá-las como também elevá-las a
ma nova esfera heroica. Na época do Renascimento, o pre-
ser assim. Por isso, a romancizaç o dos outros
gêneros não sente, pela primeira
é uma subordinação a gèneros estranhos; ao con-
canônicos foi sentido com toda nitidez e
vez,
ciência incomparavelmente mais próximo e familiar do futu-
cons
desses gêneros de tudo
trário, é a libertação que era conven-
ro que do passado.
cional, necrosado, empoladoe irreal, e que lhes inibia o pró-
de tudoo que os trans- O processo de formação do romance não chegou ao fim.
prio desenvolvimento, uma libertação Está entrando numa fase nova e magnifica. Nas condições da
formava em certas estilizações de formas obsoletas.
Desenvolvi de forma um tanto abstrata as teses do pre- sociedade de classes aparece inevitavelnmente em primeiro pla-
sente ensaio. Ilustrei-as com apenas alguns exemplos toma- no o
processo de desintegração do velho acabamento épico
e da integralidade do mundo e do homem. Esse processo foi
dos da etapa antiga de formação do romance. Minha escolha
necessário e profundamente eficaz: foi acompanhado de uma
foi determinada pelo fato de que em nosso país subestima-se
complicação e um aprofundamento singulares do mundo, de
acentuadamente aimportância dessa etapa. E característico
um crescimento inusual da demanda humana por sensatez e
que no artigo amplamente famoso da Enciclopédia Literá-
entra- criticismo. Contudo, a criação de uma integralidade nova,
ria,0 o romance antigo seja mencionado apenas numa
da adicional. Quando falam da etapa antiga do romance, por complexae em formação, que conserva todas as riquezas des-
A etapa sa demanda e dessa sensatez, é impossível na sociedade de
tradição têm em vista apenas o "romance grego".
classes. Essa tarefa já fica por nossa conta. O romance e o
antiga do romance é de e n o r m e importäncia na conmpreensao
da natureza desse gênero. Mas, no terreno da Antiguidade, realismo romanesco entraram na nova etapa socialista de sua
o romance efetivamente não pôde desenvolver todas aquelas formação.
Moderna.
possibilidades que foram descobertas na Idade
Ressaltamos que, em algumas manifestações da Antiguidade,

S6 Literatúrnaia Entsiklopédia, editada anualmente em Moscou en


tre 1929 e 1939, importante órgão de publicaç o de assuntos básicOs, te

mas e conceitos vinculados à literatura, bem como de informações biogra-


ficas essenciais de escritores. (N. do T.)

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Mikhail Bakhtin O romance como
gênero literário 111

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