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AFRORISMAS UTÓPICOS*

“Na mitologia popular, os primeiros anos do boom digital do final da década


de 1990 caracterizaram-se pelas histórias dos milionários ponto com, que
nasceram pobres e se tornaram ricos e pela promessa de um futuro próximo,
sem território, raça e corpo, possibilitado pelo progresso tecnológico.
Previsões de um futuro utópico (para alguns) livre da raça e pronunciamentos
da divisão digital distópica são os discursos predominantes na esfera pública
sobre negritude e tecnologia.
Para mim, o que menos importa é uma escolha entre essas duas narrativas,
que se enquadram nas estruturas convencionais como libertárias ou como
conservadoras, e sim o que elas têm em comum: a suposição de que raça é
um passivo no século XXI - é ou insignificante ou uma evidência de
negligência.
Nessas políticas do futuro, supostamente novos paradigmas para entender a
tecnologia, aparecem ideologias raciais antigas. Em cada cenário, a
identidade racial e a negritude em particular, é o anti-avatar da vida digital. A
negritude é construída sempre como oposta as crônicas de um progresso
orientado pela tecnologia.”
Introduction, FUTURE TEXT, Alondra Nelson 1998 ( tradução livre)

Sobre o desejo de moldar o futuro.

O Afrofuturismo é uma estética cultural, uma filosofia da arte e da história que


combina elementos de ficção científica, ficção histórica, fantasia, arte africana
e arte da diáspora africana, através cosmologias não-ocidentais para criticar
não só os dilemas atuais dos negrxs, mas também para revisar, interrogar e
reexaminar os eventos históricos do passado. O termo afro-futurismo foi
cunhado por Mark Dery em 1993 em uma ensaio/ entrevista com os críticos
culturais Tricia Rose e Greg Tate e o teórico e escritor de ficção científica
Samuel Delany , o termo foi amplamente explorado no final da década de
1990 através de conversas lideradas pela estudiosa Alondra Nelson através
do Afrofuturism list. O afrofuturismo aborda temas e preocupações da
diáspora africana através de uma lente de cultura digital e ficção científica,
abrangendo uma variedade de meios de comunicação e artistas com um
interesse compartilhado em imaginar futuros negros que decorrem de
experiências afrodiasporicas. Além disso, as contribuições, reunidas sob o
termo Afrofuturismo, oferecem uma cultura digital anti racista, que não cai na
armadilha dos que acham que o negro é o anti avatar da tecnologia ou dos
futuristas de cem anos passados.

Um pouco de história

Afrofuturismo é um termo de cisão, uma experiência que integra e ao mesmo


tempo nega o futurismo contido em seu termo. Em 1909, Filippo Tommaso
Marinetti, um artista italiano, publicou “A Fundação e o Manifesto Futurista”,
em que pedia uma nova estética que pudesse representar adequadamente a
sensação de viver num mundo em rápida modernização. Marinetti glorificou a
destruição criativa da guerra, exaltou a beleza da "velocidade eterna e
onipresente" e prometeu cantar o potencial revolucionário de fábricas,
estaleiros, locomotivas e aviões. Ele pediu o fim do antigo, proclamando:
“Mas nós não queremos fazer parte do passado, nós os jovens e fortes
futuristas!” Ao construir sua visão do futuro, Marinetti implicitamente evocou
uma subjetividade que era decididamente masculina, branca e jovem
, esculpida na sua relação com o passado, atrasado, negro e feminino.
Em seu manifesto sobre a guerra colonial da Etiópia, diz Marinetti: "Há vinte e
sete anos, nós futuristas contestamos a afirmação de que a guerra é
antiestética... Por isso, dizemos: ...a guerra é bela, porque graças às
máscaras de gás, aos megafones assustadores, aos lança-chamas e aos
tanques, funda a supremacia do homem sobre a máquina subjugara. A
guerra é bela, porque inaugura a metalização onífica do corpo humano. A
guerra é bela, porque enriquece um prado florido com as orquídeas de fogo
das metralhadoras. A guerra é bela, porque conjuga numa sinfonia os tiros de
fuzil, os canhoneios, as pausas entre duas batalhas, os perfumes e os odores
de decomposição. A guerra é bela, porque cria novas arquiteturas, como a
dos tanques, dos esquadrões aéreos em formação geométrica, das espirais
de fumaça pairando sobre aldeias incendia-las, e muitas outras. Poetas e
artistas do futurismo ... lembrai-vos desses princípios de uma estética da
guerra, para que eles iluminem vossa luta por uma nova poesia e uma nova
escultural"#. Nunca é demais lembrar que a guerra colonial na Etiópia é a
invasão do imperialismo fascista de Mussolini em 1935 para derrubar a
soberania um dos únicos países africanos livres ( o outro era a Libéria) até
então do julgo colonial, Haile Selassie, Imperador da Etiópia, chamado de
Leão de Judah, é exilado 1936, e só retoma ao país em 1941.

Imaginar o futuro

Só a partir da noção dos conteúdos que o termo carrega, e com a ciência e a


fricção arrebatadora, que faz moldar o tempo futuro é o termo se abre apara
sua dimensão libertadora. Afrofuturismo é uma ideia força cujo principal
objetivo é servir e proteger os corpos negrxs, criando um refúgio, um lugar
seguro para explorar futuros é uma TAZ, uma zona autônoma temporária, um
local de engajamento ativo para a criação de futuros negros livres da
biblioteca colonial. Um local onde não há cisão entre negritude e tecnologia.
Ou seja, Afrofuturismo é uma utopia ativa na qual os negros se libertam das
restrições do racismo; pois o passado e o presente racistas são distópicos.
Criando utopias sociais, que podem ser imaginadas, tanto na recriação e
reescritura do passado, quanto na abertura do presente para as
possibilidades do real mais amplo, que a realidade distópica, num esforço de
moldar o que imaginamos como um futuro positivo.
De maneira sincrônica, sem destituir os elos com o passado diásporico
africano, incorporando a memória da dor, mas não se reduzindo a ela como
sua única dimensão de existência, o termo é uma espécie de guarda-chuva
para a transmissão de uma contribuição africana no mundo no qual é
necessário inventar os recursos para criar o futuro. No seu já clássico “Os
Condenados da Terra”, Frantz Fanon, escrevem que –“Se quisermos que a
humanidade avance um passo adiante (...) então devemos inventar, devemos
fazer descobertas” O desafio é pensar fora da estrutura hegemônica e da
biblioteca colonial ajudando a mudar a consciência necessária para
manifestar futuros descolonizados.
Black to the Future.

Eugênio Lima.
Dj, Ator-Mc, Pesquisador da cultura diaspórica, Membro Fundador do Núcleo
Bartolomeu de Depoimentos e da Frente 3 de Fevereiro e Diretor do Coletivo
Legítima Defesa.

São Paulo 07/03/2020

* este texto é um diálogo com a Afrofuturism List e o Introduction, FUTURE TEXT de Alondra
Nelson 1998.

#A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica


Texto de Walter Benjamin publicado em 1955.

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