Você está na página 1de 25

31/03/2022 08:55 Rompendo a cumplicidade entre o dispositivo estético e o colonial

Rompendo a cumplicidade entre o


dispositivo estético e o colonial: arte afro-
brasileira, arte negra afrodescendente
Através da retomada da obra de artistas e escritores de diversas áreas, autor analisa
narrativas acerca da história da arte negra afrodescendente brasileira, que envolve uma
série de repetições traumáticas ao longo do tempo
Por Márcio Seligmann-Silva - 24 de março de 2022

"Bahia de Sangue (Luanda)", de Abdias Nascimento, exposta em "Abdias Nascimento: um artista panamefricano", no
MASP. Foto: Acervo Ipeafro/ Cortesia MASP

Dedico este texto a João Pedro Mattos[1]

“A escravidão foi o corpo real da modernidade, sua carne, sua energia, uma tecnologia.
Sua herança define, certamente, muito de nossa atualidade, uma efetiva dialética da
colonização. […] Mas na minha carne crioula há horrores cravados. E esses horrores, não
os posso compartilhar. E, eu sei, horrores não se relativizam.”

José Fernando Peixoto de Azevedo, 2018, p. 17, 23.

N
ão existe violência física que não esteja acompanhada de violência simbólica.
Estudar a história da arte afro-brasileira implica se emaranhar em
continuidades centenárias de histórias de violência simbólica e física. Implica
também uma possibilidade de se vislumbrar de modo claro não só a “dialética da
colonização”, de que nos fala o dramaturgo e diretor teatral paulista José Fernando Peixoto
de Azevedo na epígrafe, mas a própria “dialética do esclarecimento”, que Theodor Adorno
https://artebrasileiros.com.br/arte/artigo/arte-negra-brasileira/ 1/25
31/03/2022 08:55 Rompendo a cumplicidade entre o dispositivo estético e o colonial
e Max Horkheimer procuraram descrever enquanto a Europa ardia em chamas na primeira
metade dos anos 1940 (Adorno & Horkheimer 1986). A história da arte negra
afrodescendente brasileira é uma história que envolve repetições traumáticas de violências
que muitas vezes se escamoteiam como “conquistas da civilização”. Nessa história, a
ciência, a academia e todo o campo cultural se apresentam como partes estruturantes do
sistema colonial.

O sistema de escravidão penetrou tão fundo nessa cultura que suas vítimas até hoje são
em grande parte submetidas a uma série de violências que dão continuidade à violência
escravocrata. A escravização como movimento de submissão do “outro” não se encerrou
em 1888 e, pelo contrário, hoje ganha uma nova força, a partir de novas ou não tão novas
biopolíticas. De dentro desse momento de retorno brutal das políticas coloniais no Brasil,
com a redução do sistema econômico à exportação de commodities, com a suspensão
dos direitos trabalhistas, com a imposição de um racismo descarado e oficial, com a
política de destruição das florestas e de suas populações originárias, com o desmonte do
sistema educacional que, finalmente, neste século havia se aberto às populações negras,
o governo atual do Brasil impõe uma revisão da história brasileira e, especificamente no
nosso caso, uma revisão da história da arte afrodescendente. Afinal, uma das pedras de
toque da campanha e do atual governo é a edulcoração da história colonial e do período da
ditadura de 1964-1985.

“Baía de Sangue (Luanda)”, de Abdias Nascimento, em cartaz no MASP. Foto: Acervo Ipeafro/ Cortesia MASP

Em nenhum outro país da América Latina ocorreu que políticos nostálgicos da escravidão
e da tortura conseguissem galgar os degraus mais altos da hierarquia estatal por meio do
voto. O que ocorre atualmente no Brasil é uma espécie de campo de provas para uma
política fascista radical que pretende devolver o país à era pré-República. Nunca o culto
dos bandeirantes foi tão longe junto com o desprezo e a violência policial e dos políticos
contra populações negras e indígenas. A pobreza, junto com esses grupos étnicos, é
criminalizada e um genocídio negro é produzido a cada dia nas cidades e no campo. É
nesse contexto que percebemos a história do Brasil agora. A história da arte negra deve

https://artebrasileiros.com.br/arte/artigo/arte-negra-brasileira/ 2/25
31/03/2022 08:55 Rompendo a cumplicidade entre o dispositivo estético e o colonial
ser revista dentro dessa macro história, como parte de um longo embate colonial que não
se fechou, muito pelo contrário.

Arte negra, afrodescendente ou afro-brasileira e o dispositivo estético

É bom começar com a questão dos conceitos de “arte negra”, afrodescendente ou afro-
brasileira. Considero esses três conceitos legítimos e eles são utilizados pelos
historiadores da arte muitas vezes de modo quase intercambiável. Mas esse debate
nominalista possui um aspecto que não podemos perder de vista. Existiu durante muito
tempo ao longo do século 20 e até bem recentemente, como veremos, uma tendência a
tratar de modo indiferenciado artistas afrodescendentes e artistas não afrodescendentes
como parte de uma “arte afro-brasileira”. Apenas a partir do final do século passado que
esse procedimento começou a ser questionado.

Nesse momento, que estará no centro deste artigo, surge uma nova arte “do corpo”, com
forte teor testemunhal (Seligmann-Silva 2016), que tornou impossível a separação entre os
artistas, a construção de sua subjetividade e de suas obras. Esses artistas atuam sobre o
que denomino “subjeto”, o sujeito que ao invés de tentar idealisticamente “representar” um
mundo exterior, dá forma ao mundo a partir de sua subjetividade constituída no contexto
de conflitos de classe e de raça. Não podemos esquecer que essa “virada subjetiva”
também foi uma virada étnica e, como teóricos da arte como Hal Foster o detectaram já
nos anos 1990, etnológica (Foster 1996). Nesse novo contexto das artes tornou-se
necessária a relação entre a produção artística e a identidade étnica racial, sobretudo
quando se tratava de um artista com origem afro. Pois as identidades afro se estabelecem
dentro e em combate à episteme e ao sistema colonial, “provincializando a Europa”, na
expressão já clássica de Dipesh Chakrabarty (2007).[2] Elas, desse modo, não puderam ou
podem aceitar mais a ideia de uma “universalidade da arte”, tal como fora formulada por
um platonismo na Antiguidade (com a sua doutrina dos Eide, os ideais transcendentes) e
reformulada por Kant na modernidade (com a sua ideia de arte como prazer “sem
interesse”, desprovido de envolvimento e volição). Por mais que Kant tenha sempre
enfatizado que o universal na arte é sempre subjetivo (Crítica do juízo §8), ele submete a
sua estética a uma epistemologia de cunho iluminista e eurocêntrico bem como a um
padrão de beleza clássico.[3]

Essa relação umbilical entre a doutrina do universalismo nas artes e o projeto colonial é
fundamental e muitas vezes foi deixada de lado pelos teóricos e historiadores da arte, isso
mesmo com relação à arte afro, o que é inadmissível. Para Kant, o artista é um meio de
construção do belo (ou do sublime), mas a sua subjetividade é na verdade apagada assim
como todo e qualquer contexto político o é: “Todo interesse vicia o juízo de gosto e tira-lhe
a imparcialidade” (Crítica do juízo, §13; 1959 p. 62). Com Kant estabeleceu-se o discurso
moderno da universalidade da arte que é indissociável de sua, apenas aparente,
“apoliticidade”. Digo apenas aparente, porque por detrás da universalidade existe uma
poderosa política de apagamento do “outro” e das diferenças. Admite-se como arte
apenas a “grande arte europeia”, da Grécia à modernidade.

O classicismo, que está na base do nascimento da história da arte, com Winckelmann, e


também sustenta a teoria estética da arte de Kant, impõe-se como uma poderosa máquina
ontotipológica (Lacoue-Labarthe & Nancy, 1991). Esse modelo clássico gera o “próprio”
eliminando o “outro” que é produzido nesse mesmo gesto de aniquilação. Estamos diante
de um dispositivo, o dispositivo estético, talvez o mais violento que a modernidade criou,
pois é a partir dele que se produz a linha divisória entre os dignos de direitos e de
compaixão e aqueles que são a “carne” da máquina colonial (Seligmann-Silva, 2019). O
dispositivo estético é um aliado do dispositivo colonial, ambos produzem e aniquilam os
seus “outros”. O “próprio” (europeu) para existir, necessita de seu não eu, o “outro”, seja a
https://artebrasileiros.com.br/arte/artigo/arte-negra-brasileira/ 3/25
31/03/2022 08:55 Rompendo a cumplicidade entre o dispositivo estético e o colonial
África ou o Oriente, como autores como Frantz Fanon (1952), Abdias Nascimento ([1976]
2016), Edward Said (1978), e Stuart Hall (2003) o constataram no século 20 e, mais
recentemente, toda uma série de autores pós-coloniais desenvolveram em seus trabalhos,
como Achille Mbembe (2017), Walter Mignolo (2011), Grada Kilomba (2019) ou Bell Hooks
(2014).

Podemos dizer que a luta que se dá no campo das artes afrodescendentes no Brasil é a
luta pelo reconhecimento do elemento violento, ideológico, de apagamento dos negros e
de uma miríade de culturas, no bojo dessa ideologia estética “universal” e universalizante,
antes de mais nada branca, eurocêntrica e racista. Portanto, quando se fala aqui em “arte
negra”, afrodescendente ou afro-brasileira, refiro-me à arte produzida por artistas que se
entendem como parte de uma continuidade daquelas populações submetidas à história da
violência e de sua resistência a ela. Mas, vale insistir: trata-se, para esses artistas, de uma
conquista dessa continuidade. Trata-se da superação de um apagamento imposto por
poderosas políticas de esquecimento que, no Brasil, procuram de modo ambíguo,
glamourizar nossa história na mesma medida em que negam qualquer continuidade entre
a violência do sistema escravocrata e as violências biopolíticas e raciais de hoje.

“Pontes sobre Abismos #17”, Aline Motta, Foto: Cortesia da artista

A história da arte negra é a história da construção de pontes e de veios de comunicação


com o passado (um passado traumático que não passa, que está em suspenso), é a
história de ruptura da camada de concreto com a qual a ideologia colonial branca procurou
enterrar a história da violência de classe e racial nesse país, bem como a história de lutas e
resistências. Basta ver nossos cemitérios negros, literalmente sob o concreto de nossas
cidades, seja no Valongo, no Rio de Janeiro, seja no bairro da Liberdade[4] em São Paulo.
Na medida em que o magma dessa história de violência jorrou, a virada na história da arte
negra levou também a uma ruptura radical com a ideologia do estético: a nova arte negra
que nasceu desse banho no líquido amniótico do horror mas também da luta resistente, é
eminentemente política e crítica do discurso do universalismo amnésico, assimilador e
destruidor da identidade negra, na mesma medida em que procura estabelecer as bases
de uma cultura afro-atlântica.

A luta negra também institui novos calendários e estabelece novas conexões com
passados instituidores de novos presentes. A arte negra brasileira manifesta essa irrupção
do passado recalcado que é libertado no curso de sua construção. Ela rompe com a falsa
narrativa da historiografia colonial que relega a história negra ao campo de trabalho ou aos
pelourinhos. Tratarei mais adiante dessas imagens que funcionam como verdadeiras
https://artebrasileiros.com.br/arte/artigo/arte-negra-brasileira/ 4/25
31/03/2022 08:55 Rompendo a cumplicidade entre o dispositivo estético e o colonial
imagens encobridoras (Deckerinnerungen, outro conceito de Freud, precioso aqui, como
veremos).

Uma história da arte pacificadora

No entanto, é essencial, antes de nos aproximarmos de alguns exemplos dessa nova arte
negra brasileira, que frequentemos a história de sua história, ou seja: como os
construtores de narrativas da história da arte afro-brasileira se localizam nesse embate
político-epistemológico entre a história da arte dita “central”, eurocêntrica, e a construção
da especificidade da arte negra, seja ela vista como brasileira ou ocupando seu lugar no
espaço afro-Atlântico como local multi-tópico da diáspora. Não nos surpreende que boa
parte dessa história reafirmou um local excepcional, ou seja, marginal, dessa história da
arte negra, reproduzindo uma série de padrões do modelo colonial da narrativa histórica. A
força monstruosa do dispositivo estético em sua versão colonial não pode ser desprezada.
Esse dispositivo também é reforçado por boa parte da história que narra a arte negra
brasileira.

A mão Afro-Brasileira

Assim, mesmo em uma obra fundamental no processo de autoafirmação da arte negra


brasileira, como foi o volume A mão Afro-Brasileira. Significado da Contribuição Artística e
Histórica, organizado por ninguém menos que o artista, colecionador e fundador do
Museu Afro Brasil, Emanoel Araújo (1988), podemos detectar esse fato. Esse catálogo veio
à luz junto com a exposição no MAM com o mesmo nome e que, em 1988, aos 100 da Lei
de Abolição, pretendia resgatar o papel dos negros na história da arte nacional. Mas já no
título percebemos que a visão dominante na exposição e no catálogo reproduzia a ideia de
que temos uma história da arte única, como um grande rio que flui, com seus afluentes
secundários o alimentando, um deles sendo a “contribuição” da mão afro-brasileira. Temos
aqui o poderoso modelo historicista de uma formação orgânica composta por partes,
sendo que caberia agora reconhecer essa “contribuição” específica até agora pouco
destacada. O organizador do volume recorda o longo processo de pesquisa para a
construção desse importante volume e exposição visando recuperar “ao menos
parcialmente, a participação do homem negro e mestiço na formação da cultura nacional”
(1988, p. 9) A ideia de uma “cultura nacional” em formação reproduz um modelo colonial
de formação da nação a partir de suas contribuições das diferentes etnias ou raças.

É importante que Araújo destaque já no título do livro a questão do afrodescendente e não


da arte afro-brasileira, mas os textos não manterão essa fidelidade ao título, já que, em sua
maioria, misturam análises de contribuições de artistas afrodescendentes ou não, mas que
estariam todos valorizando a contribuição de uma certa origem africana, que havia sido até
então pouco valorizada. Araújo escreve: “Não existe hoje uma arte legitimamente
brasileira sem a criativa e poderosa influência do negro”. Nem vou discutir aqui a questão
de gênero que perpassa essas colocações, já que sempre fala-se no “negro”, no
masculino, a saber, ocorre o apagamento daquelas mãos afro-brasileiras que não seriam
de homens, mas destaco novamente a ideia de um veio principal de uma arte
legitimamente brasileira (o que seria isso?) que em sua formação recebe “influências” do
“negro”. Araújo também elogia em sua apresentação a contribuição do médico psiquiatra e
eugenista Nina Rodrigues: “Pioneiro dos estudos antropológicos no Brasil, foi quem
primeiro chamou a atenção para arte dos colonos africanos” (1988, p. 10), referindo-se ao
ensaio de 1904 de Rodrigues, que também faz parte da coletânea de 1988.

Arte, documento, testemunho: a crise do estético

https://artebrasileiros.com.br/arte/artigo/arte-negra-brasileira/ 5/25
31/03/2022 08:55 Rompendo a cumplicidade entre o dispositivo estético e o colonial
A noção de arte como documento etnográfico, colocada por Nina Rodrigues, tem
produzido muita confusão no debate estético dos últimos anos e é bom não deixar passar
a oportunidade de tentar lançar luz nessa questão. Como me referi acima ao mencionar
Hal Foster, ele detectara uma virada etnológica na produção artística no final do século 20.
Essa virada tem a ver com o que denominei de virada testemunhal na produção cultural.
(Seligmann-Silva, 2019, p. 28) Esse movimento em direção ao “documentário” (daí, aliás, a
alta valorização nesse gênero desde então e que só aumentou em prestígio até hoje) levou
a uma relação cada vez mais estreita da produção e da recepção de obras de arte com o
campo da etnologia.

Para voltarmos a Benjamin, podemos ver essas suas teses redigidas em plena guerra
como um marco na construção dessa sensibilidade da leitura documental das obras de
arte. Na sua sétima tese ele escreveu de modo lapidar: “Não há um documento da cultura
que não seja ao mesmo tempo um documento da barbárie.” (2020, p. 74; “Es ist niemals
ein Dokument der Kultur, ohne zugleich ein solches der Barbarei zu sein”, 2010, p. 86).
Trata-se aqui, portanto, de um aprendizado que implica perceber por detrás de qualquer
obra cultural uma violência estrutural que sustentou a sociedade e que permitiu que nela
se produzisse seus documentos de cultura. Com isso rompe-se com o mencionado
esteticismo pretensamente inofensivo (que tanto mal faz) que pretendeu cortar os laços
das obras de arte com a história e a política. Existe, portanto, algo de crítico e
emancipador tanto na virada subjetiva-etnológica das artes no final do século 20 como
nessa teoria benjaminiana da cultura como documento. Aprender a ler o teor testemunhal
das artes implica abrir-se a essa leitura a contrapelo da história, cuja narrativa tradicional
procurou sempre, em suas grandes construções teleológicas e triunfais, ocultar esse
elemento de barbárie.

Ou seja, para deixar claro, ao falar-se do teor testemunhal de uma obra, não se está
“reduzindo-a” ao seu “mero” elemento histórico e etnológico. Antes, está se rompendo
com a hegemonia da ideologia do estético-colonial que ocultava esse elemento
testemunhal da inscrição cultural.

“Não existe na arte brasileira contemporânea uma arte negra…”

Mas voltemos à construção histórica da arte negra brasileira. Aracy Amaral, ainda na
coletânea de 1988, uma das mais destacadas críticas de arte do país, propõe-se a refletir
em seu ensaio A busca da Forma de Expressão na Arte Contemporânea sobre essa busca
“na arte contemporânea por parte de artistas epidermicamente não tão brancos” (1988:
247). Ou seja, de um modo um tanto atravessado, ela coloca a questão da
afrodescendência como importante em sua proposta, mas acaba, ao longo de seu
trabalho, mencionando também artistas que trataram de modo apenas “temático” de
questões associadas à cultura afro-brasileira. Ela recorda com razão que:

Se no período colonial a maior parte de nossos tesouros artísticos vem de mãos


escravas ou libertas – mestiços de índios, negros ou mulatos – por evidente tradição
preconceituosa por parte dos portugueses brancos, muito recessivos no dedicar-se a
atividades manuais, e se sobretudo aos artistas e artífices de origem africana devemos,
por essa mesma razão, em grande parte do país, nosso patrimônio artístico, vemos que
a situação parece alterar-se no século 19. (Id., 1988).

Com a Academia Imperial de Belas Artes durante o primeiro e segundo impérios, com a
pintura de paisagens e naturezas mortas e sobretudo a partir do indigenismo (o culto
romântico das populações originais da América), introduz-se também o negro e o caipira
como temas nas telas dos pintores acadêmicos, como Almeida Junior, Abigail de Andrade
e mesmo do espanhol Modesto Brocos, que com sua tela “A Maldição de Cã” (1895)
https://artebrasileiros.com.br/arte/artigo/arte-negra-brasileira/ 6/25
31/03/2022 08:55 Rompendo a cumplicidade entre o dispositivo estético e o colonial
comemora o branqueamento da população brasileira, um tema caro ao mencionado
médico Nina Rodrigues. Amaral recorda dois acadêmicos que foram discriminados por
sua origem étnica, Estevão Roberto da Silva e Antônio Rafael Pinto Bandeira, sendo que
este último foi levado ao suicídio por conta desse constrangimento. Não cabe aqui refazer
o percurso desse ensaio, mas apontar como ele encontra-se ainda antes da mencionada
virada testemunhal na concepção das obras de artistas que, no contexto da história da
produção de arte afrodescendente equivale também à virada decolonial. Isso mesmo
Aracy Amaral ressaltando a violência a que os negros foram submetidos no século 19 e
recordando a relação entre as políticas de branqueamento, o apagamento e esquecimento.
Após apresentar em uma sequência rápida os nomes de artistas como Antônio Bandeira,
Rubem Valentim, Almir Mavignier, Edival Ramosa, Genilson Soares, Maria Lidia Magliani,
Octávio Araújo, entre outros, Amaral escreve: “Na apreciação da obra desses artistas, bem
como de seus percursos, pode-se afirmar que, salvo exceções, não existe na arte brasileira
contemporânea uma arte negra, com uma preocupação de afirmação como tal, pois
tendências as mais diversas se assinalam nestes artistas de cor ou naqueles que nem
sequer essa característica fora definidora em suas carreiras.” (1988, 248).

Até aqui, portanto, estamos muito longe do que logo aconteceria com o boom da arte
negra no início do século seguinte. A autora acha inclusive questionável fazer uma
“exposição da produção plástica de artistas pela exclusiva razão da cor de sua pele ser
mais morena”. Estar-se-ia apenas apontando para algo esquecido, ou seja, a origem
desses artistas, já que “o avançado […] estágio de branqueamento faz com que no Brasil
nem atentemos para a sua origem”. (1988, 272) Desse ponto de vista, o projeto eugenista
de branqueamento teria triunfado e não haveria lugar para se pensar uma arte negra no
Brasil. Mas Aracy Amaral acrescenta algo em seu raciocínio que deixa antever uma virada,
ainda que siga não distinguindo artistas afrodescendentes daqueles que se inspiram na
cultura afro:

As exceções, por isso mesmo do maior interesse, são artistas que deixam em suas
criações transpirar a ancestralidade do rito afro-brasileiro, em afirmação de busca de
identidade, como no caso de Rubem Valentim, ou no barroquismo generoso em sua
construção acumulativa de um Emanoel Araújo, no misticismo da gravura de Hélio
Oliveira, e na cerâmica e pintura de Miguel dos Santos (1988, 248).

Vejamos a contribuição intelectual de Rubem Valentim que nos anos 1970 formulou de
modo claro uma proposta de revisão do campo estético e da colonialidade a partir da arte
negra.

https://artebrasileiros.com.br/arte/artigo/arte-negra-brasileira/ 7/25
31/03/2022 08:55 Rompendo a cumplicidade entre o dispositivo estético e o colonial

“Brasília”, 1970, de Rubem Valentim. Foto: Sergio Guerini |


Cortesia Almeida e Dale Galeria de Arte.

O Manifesto Tardio de Rubem Valentim: a luta “contra o colonialismo cultural”

Surpreende na coletânea de 1988 de Emanoel Araújo o pequeno e contundente Manifesto


Tardio que veio justamente da pena de Rubem Valentim, uma das exceções destacadas por
Aracy Amaral, como um dos poucos representantes de uma arte negra. Esse manifesto de
1976 é adjetivado como sendo “tardio” por seu autor e de fato o é, se pensarmos na longa
história da produção artística negra no país. Não podemos esquecer que o tempo, quando
estamos no campo dos traumas, é o tempo do “tarde demais”, do despertar “atrasado”,
après coup. Mas ele também se adianta em muitos aspectos à virada étnica que viria a
acontecer apenas após 1988, com a nova constituição pós-ditadura e com suas cláusulas
de reconhecimento das culturas indígena e quilombola, incluindo o direito à demarcação
de suas terras. Cláusulas estas, é sempre importante destacar, conquistadas por conta de
muita luta por parte dos indígenas e dos movimentos negros. Valentim abre seu manifesto
afirmando:

Minha linguagem plástico-visual-signográfica está ligada aos valores míticos


profundos de uma cultura afro-brasileira (mestiça-animista-fetichista). Com o peso da
Bahia sobre mim – a cultura vivenciada; com o sangue negro nas veias – o atavismo;
com os olhos abertos para o que se faz no mundo – a contemporaneidade; criando os
meus signos-símbolos procuro transformar em linguagem visual o mundo encantado,
mágico, provavelmente místico que flui continuamente dentro de mim (1988, 294).

Em diálogo com os concretistas paulistas, seus contemporâneos, Valentim busca fazer


dessa linguagem a referida ponte entre o mundo da africanidade recalcado e o seu
presente. Ele vê no seu projeto uma luta política: “A arte é tanto uma arma poética para
lutar contra a violência, como um exercício de liberdade contra as forças repressivas: o
https://artebrasileiros.com.br/arte/artigo/arte-negra-brasileira/ 8/25
31/03/2022 08:55 Rompendo a cumplicidade entre o dispositivo estético e o colonial
verdadeiro criador é um ser que vive dialeticamente entre a repressão e a liberdade.” (Id.,
1988) Essas palavras, escritas em meio à repressão da ditadura militar, e sob o signo da
luta “contra o colonialismo cultural” (Id., 1988), voltam a ecoar nas lutas que se organizam
hoje, em 2020, quando esse campo da resistência negra, armada pelas artes e que se
desenvolveu nos últimos 20 anos, está sendo novamente assediado por poderosas forças
aniquiladoras. Note-se de passagem que o fato dessas palavras de Valentim não serem
mais reproduzidas e recordadas é um sintoma de que essas forças aniquiladoras estão
vencendo a batalha.

Por fim, não posso deixar de destacar no catálogo de Araújo de 1988 o capítulo da
fotógrafa e crítica de arte Stefania Bril sobre o Olhar Fotográfico em preto e branco, que
retoma o trabalho de fotógrafos como José Medeiros (1921-1990), Januário Garcia (1943),
e Walter Firmo (1937). Esses fotógrafos também dão prova de uma nova arte negra feita
por artistas negros e voltada para redesenhar as geopolíticas, permitindo se imaginar
outras constelações de vida em comum. Os artistas negros destacados por Aracy Amaral
e esses fotógrafos levantados por Stefania Bril são a prova de que ao longo do século 20
foi se constituindo uma arte negra feita por negros no Brasil voltada para uma política da
negritude, que emanciparam os artistas afrodescendentes dos modelos acadêmicos e
também libertaram o corpo negro do papel de objetos de representação.

Abdias Nascimento

Um autor-chave nesse processo foi Abdias Nascimento. Em 1944 ele criou o Teatro
Experimental do Negro, que marcou gerações de artistas, produziu uma importante obra
como artista plástico e foi um dos primeiros a formular de modo claro a importância de
uma resistência negra, contra a necropolítica, por meio da arte. Seu livro O genocídio
negro brasileiro: Processo de um racismo mascarado foi publicado em 1976 em inglês,
próximo, portanto, do manifesto de Rubem Valentim. Como ocorre com este último,
também Nascimento reconhece seu “lugar de fala” como constituinte de seu saber, como
se passara também em Frantz Fanon no seu primeiro e revolucionário livro, Pele negra,
máscaras brancas. Escreve Abdias Nascimento:

Quanto a mim, considero-me parte da matéria investigada. Somente da minha própria


experiência e situação no grupo étnico-cultural a que pertenço, interagindo no
contexto global da sociedade brasileira, é que eu posso surpreender a realidade que
condiciona o meu ser e o define. Situação que me envolve qual um cinturão histórico de
onde não posso escapar conscientemente sem praticar a mentira, a traição, ou a
distorção da minha personalidade. (Nascimento 2016, p. 47)

“A Criação n. 2: Obatalá e Exu”,


1973, de Abdias
Nascimento. Coleção Museu de Arte

https://artebrasileiros.com.br/arte/artigo/arte-negra-brasileira/ 9/25
31/03/2022 08:55 Rompendo a cumplicidade entre o dispositivo estético e o colonial
Negra | IPEAFRO. Foto: Fabio
Souza / MAM Rio.

Esse passo fundamental permitiu a ele repaginar a história do Brasil do ponto de vista do
“genocídio”, um termo criado por Rafael Lemkin em 1944 no contexto das descobertas do
que se passava com a população judaica na Europa nazista, mas que aos poucos foi
empregado para outros assassinatos em massa de etnias, como a dos armênios durante a
Primeira Guerra Mundial. O livro de Nascimento se abre com duas definições de genocídio
extraídas de dicionários, um em inglês, outro em português. Ele, no capítulo “O
embranquecimento cultural: outra estratégia de genocídio”, analisou criticamente o mito
da “democracia racial” no Brasil destacando o compromisso entre racismo e capitalismo:
“A palavra-senha desse imperialismo da brancura, e do capitalismo que lhe é inerente,
responde a apelidos bastardos como assimilação, aculturação, miscigenação; mas
sabemos que embaixo da superfície teórica permanece intocada a crença na inferioridade
do africano e seus descendentes.” (2016, p.111)[5] Nessa mesma linha de pensamento,
ele recorda a criação dos museus etnográficos ao longo do século 19 como parte do
projeto colonial: “Essas instituições se mancomunaram aos cientistas, teóricos de toda
espécie, e scholars na manipulação cabalística de teoremas baseados no suposto
exoticismo e pitoresquismo dos povos selvagens, primitivos e inferiores que habitavam a
África.” (2016, p.197) As ciências e dentre elas também a etnologia colonial, como afirmei
acima, e os museus andaram inicialmente de mãos dadas com o projeto colonial genocida.
Abdias do Nascimento nos anos 1970 denunciava ainda a estratégia de controle da
população negra por meio da “redução da cultura africana à condição de vazio folclore” (a
acima mencionada “cultura popular”), o que revelaria ao mesmo tempo desprezo e
avareza, pois do estereótipo passa-se à comercialização das peças de cultura
desinvestidas de força vital e fossilizadas, prática que descreveu corretamente como
sendo de etnocídio. Daí o passo seguinte que foi dado já no final do século 20, como
vimos, no sentido de se criticar a própria ideologia e máquina biopolítica da estética.

Apesar de não utilizar o conceito psicanalítico de Unheimlich (o estranho, familiar e não-


familiar ao mesmo tempo), Abdias do Nascimento percebe a necessidade de se tratar
desse conceito psíquico e utiliza termos que traduzem esse conceito freudiano para tratar
da situação do negro: “O negro e sua cultura sempre tinham sido mantidos como
estranhos dentro da sociedade brasileira vigente, cujo único propósito, como o do próprio
[Waldir Freitas] Oliveira, é que as populações afro-brasileiras desapareçam, sem deixar
rastro, do mapa demográfico do país.” (2016, p.115; eu grifo) Ele cita também o verbete
“negro” de um dicionário inglês – português de A. Houaiss e C. Avery de 1967: “negro, -
gra (negru, -gra). I. a., black (also fig.); dark; (anthropol.) Negro; somber, gloomy, funeral;
shadowy, tenebrous; sinister, threatening; cloudy, obscure, stormy; ominous, [eu grifo]
portentous; horrible, frightening; adverse, hostile; wretched, odious, detestable.” (Houaiss
e Avery apud Nascimento, 2016, p.55). O “negro” surge como o protoelemento recalcado
da cultura colonial moderna, que ainda é a nossa cultura. Como “horrible” ele representa o
oposto do corpo clássico a que as belas-artes classicizantes se dedicam em dar forma.
Mais adiante reencontraremos esse tema.

Seu livro também trata especificamente da arte negra brasileira. Em uma passagem cheia
de significado, lemos:

Na concepção de meu colega Olabiyi Babalola Yai, da Universidade de Ifé, o


candomblé, cuja mensagem no Brasil é essencialmente a mesma, como na África,
significa: “Uma religião na qual nem o inferno nem o diabo têm lugar e que não aflige a
vida do homem com um pecado original do qual se deve purificar, mas que convida o
homem a sobrepujar suas imperfeições graças ao seu esforço, aos esforços da
comunidade dos orixás.” Constituindo a fonte e a principal trincheira da resistência

https://artebrasileiros.com.br/arte/artigo/arte-negra-brasileira/ 10/25
31/03/2022 08:55 Rompendo a cumplicidade entre o dispositivo estético e o colonial
cultural do africano, bem como o ventre gerador da arte afro-brasileira,[6] o candomblé
teve que procurar refúgio em lugares ocultos, de difícil acesso, a fim de suavizar sua
longa história de sofrimentos às mãos da polícia (2016, p. 125).

Ele também já formulava palavras de ordem fortes com relação ao tema da arte negra
roubada por instituições policiais e mantidas também em instituições de psiquiatria,
história e etnografia. Sua ideia era a de criar um Museu de Arte Negra para valorizar a
cultura afro-brasileira. (2016, p. 173) No capítulo “Arte Afro-Brasileira: Um espírito
Libertador” ele pensa essa arte a partir do genocídio de africanos nas três Américas,
rompendo, portanto, com as fronteiras nacionais e com a narrativa tradicional da formação
da arte brasileira que reservava à arte afro-brasileira apenas um papel secundário de fonte
de influência.

É verdade que Abdias algumas vezes (2016, p. 197) mostra estar ainda vinculado a um
projeto de valorização estética da produção artística afro, não percebendo o colapso dessa
tradição estética, o compromisso entre o estético e o colonial, e que na verdade é a arte
estetizada que está se dirigindo ao leito da arte afro, LGBTQIA+, feminista etc., produzida
por artistas agentes autoconscientes, que não “representam” mais mundos externos,
pacificados, com geografias sempre vistas a partir de instrumentos eurocêntricos, a
começar pela técnica da perspectiva e passando pelos gêneros clássicos que dominaram
a história da arte do século 15 ao 19. Antes, esses novos agentes produzem uma arte que
rompe com a divisão entre o sujeito e seu objeto, gerando uma fusão, como afirmei no
início, um “subjeto”, com o perdão do neologismo. Mas Abdias também procurou romper
com a “definição elitista de ‘belas-artes’ que envolve exclusivamente a arte branco-
ocidental” (2016, p. 201) no que ele tinha razão, pois se tratava e se trata de “desoutrizar”
as artes e culturas tendencialmente “outrificadas” pelo Ocidente (Ndikung 2019;
Seligmann-Silva 2019). Romper com essa definição elitista de belas-artes significa
desmascarar a cumplicidade entre o dispositivo estético e o colonial.

Portanto, suas palavras são extremamente válidas ainda hoje no contexto dos movimentos
artísticos negros contemporâneos, não só no Brasil. Sua concepção, como a de Rubem
Valentim, é da arte como parte de uma técnica de luta. Indo mais longe, ele formula uma
arte negra da diáspora:

Pois a arte africana é precisamente a prática da libertação negra – reflexão e ação/ação


e reflexão – em todos os níveis e instantes da existência humana. […] A arte dos povos
negros na diáspora objetifica o mundo que os rodeia, fornecendo-lhes uma imagem
crítica desse mundo. E assim essa arte preenche uma necessidade de total relevância:
a de criticamente historicizar as estruturas de dominação, violência e opressão,
características da civilização ocidental-capitalista. Nossa arte negra é aquela
comprometida na luta pela humanização da existência humana, pois assumimos com
Paulo Freire ser esta “a grande tarefa humanística e histórica do oprimido – libertar-se
a si mesmo e aos opressores” (2016, p. 203-204).

Não por acaso, no início da mencionada encenação da peça Black Brecht – E se Brecht
fosse negro, lia-se em um estandarte com desenhos de obás e de formas geométricas
inspiradas em um imaginário afro as letras garrafais: “RE-EXISTÊNCIA NEGRX”.

https://artebrasileiros.com.br/arte/artigo/arte-negra-brasileira/ 11/25
31/03/2022 08:55 Rompendo a cumplicidade entre o dispositivo estético e o colonial

“Quarteto ritual nº6”, de Abdias Nascimento, exposta em “Abdias Nascimento um artista panamefricano” no MASP. Foto:
Acervo Ipeafro Cortesia MASP

Essa luta é calcada também na desconstrução daquilo que Abdias denomina de “mito do
‘africano livre’” (2016, 79):

Depois de sete anos de trabalho, o velho, o doente, o aleijado e o mutilado, aqueles que
sobreviveram aos horrores da escravidão e não podiam continuar mantendo
satisfatória capacidade produtiva – eram atirados à rua, à sua própria sorte, qual lixo
humano indesejável; estes eram chamados de “africanos livres.” (Id.)

Ou seja, essa libertação era um gesto genocida, a última etapa no processo: e o mesmo o
foi a chamada abolição ou Lei Áurea de 1888: “Não passou de um assassinato em massa,
ou seja, a multiplicação do crime, em menor escala, dos ‘africanos livres.’” (Id.) As artes
afro-brasileiras aos poucos se entenderam como esse espaço de luta pela efetiva
liberdade, revertendo esse gesto genocida cujas consequências se desdobram mais de
cem anos depois daquele teatro da libertação sintomaticamente aclamado ainda hoje por
nossos políticos bandeirantes, a saber, a edição da Lei Áurea.

Musa Michelle Mattiuzzi: Habitar as ruínas da colonialidade

Impossível apresentar aqui outras tentativas de se construir a narrativa acerca da história


da arte negra no Brasil. Em termos de conceituação, nenhuma no século 20 foi tão radical
quanto as formulações de Abdias Nascimento, ainda que algumas vezes seu trato do tema
caia para uma espécie de hagiografia condescendente de artistas. Menciono apenas mais
duas obras.

O historiador da arte Roberto Conduru tem um livro de caráter introdutório voltado para a
escola, mas nem por isso menos interessante e cheio de informações, o seu Arte afro-
brasileira, de 2007. Ele não se limita a artistas afrodescendentes e tampouco se alinha a
uma leitura decolonial da questão, contentando-se em fazer uma história da arte mais
escolar. Já o livro de 2013 de Kimberly L. Cleveland, Black art in Brazil. Expressions of
Identity, apesar de não romper com a tradição brasileira, que tem sua origem na ideologia
da “democracia racial”, de tratar sob o conceito de arte negra e afro-brasileira artistas que
não são afrodescendentes, discute com muita ponderação esse tema trazendo o enorme

https://artebrasileiros.com.br/arte/artigo/arte-negra-brasileira/ 12/25
31/03/2022 08:55 Rompendo a cumplicidade entre o dispositivo estético e o colonial
aporte dessa discussão nos Estados Unidos. Sua obra é uma importante contribuição e
deveria ser traduzida no Brasil para poder enriquecer o debate sobre esse tema. A autora
trata explicitamente em capítulos das obras dos seguintes artistas: Abdias Nascimento,
Ronaldo Rego, Eustáquio Neves, Ayrson Heráclito e Rosana Paulino.

Por sua vez, o volume de textos críticos fruto da exposição ocorrida em São Paulo, em
2018, Histórias afro-atlânticas, nos capítulos introdutórios de Adriano Pedrosa, Heitor
Martins, Amanda Carneiro e André Mesquita localizam a tarefa de repensar a arte
brasileira a partir do prisma decolonial. Além disso, o catálogo contém textos de Achille
Mbembe (p. 125-144) e a contribuição de Okwui Enwezor (p.145-158), que também
nascem dentro do atual debate de reconstrução pós-colonial do campo estético. Mas nem
todos os textos do catálogo seguem essa perspectiva, pois a intenção era mostrar também
um panorama do debate sobre as histórias afro-atlânticas no Brasil. O antropólogo
Kabengele Munanga, em Arte afro-brasileira: o que é afinal?, inclusive localiza a sua leitura
da arte afro-brasileira na chave do belo, do “universal e necessário” (2018, p. 113, 120) e
comemora o “trabalho pioneiro de Nina Rodrigues” na fundação da história da arte afro-
brasileira (2018, p. 118). Ele se distancia da expressão “arte negra no Brasil” por
desconfiar de existir aí um “certo biologismo” e defende que seria a partir de uma noção
“mais ampla, não biologizada, não etnicizada e não politizada, que se pode operar para
identificar a africanidade escondida numa obra” (2018, 122). Por que a africanidade se
esconderia numa obra? Estamos a quilômetros, aqui, do manifesto de Rubem Valentim e
da postura combatente e abertamente política também defendida por Abdias Nascimento.
Nessa linhagem desses dois autores, o pequeno texto da artista performática Musa
Michelle Mattiuzzi, ao final do catálogo, tem um caráter quase de manifesto decolonial. Ela
escreve:

Na história contada pela branquitude – que ainda hoje apresenta facetas de um Brasil
colonial – a noção compulsória sobre o “outro” é o que qualifico de mirada folclórica
branca sobre aspectos da estética negra e indígena. É um olhar e uma prática
construídos a partir do uso de signos que engendram a necropolítica como
possibilidade de inclusão e de representatividade, em um jogo perverso da linguagem
branca de captura e visibilidade. Penso isso quando investigo as narrativas que fazem
parte desse imaginário supremacista. Penso isso de Tarsila do Amaral (1886-1973),
artista que pintou a obra A negra que, se analisada friamente, é de cunho racista,
embora tenha conseguido fazer-se creditada por uma falsa narrativa de que a
representatividade importa e tenha sustentado durante muito tempo o mito da
diversidade racial e cultural desse país. Há uma tecnologia política dos colonos
herdeiros de criar soterramentos. […] A “arte” destas terras que nunca deixaram de ser
colônia, uma “arte” instituída aqui com o violento processo de inserção na
modernidade ocidental. “Arte” como o meio privilegiado por onde circulam as ideias
escritas e a criação visual realizadas por colonos herdeiros, estes que fazem parte de
uma classe social abastada, que operam os signos na onda de apropriação e tratam as
suas ideias como universais. Na representação do discurso de que somos todos iguais
eles nos expropriam. Vejo a etnografia como parte e como exemplo de agenciamento
do poder dessas elites aplicado por meio de um método científico. […] Se não vamos
mudar nada, que ao menos possamos habitar as ruínas da colonialidade e sobreviver
de alguns encontros. […] Escurecer com o meu negrume. […] Saber habitar e reviver as
ruínas dessa pluralidade afro-atlântica (2018, 607-609).

Podemos pensar nessas palavras finais do texto de Mattiuzzi como um acompanhamento


e trilha epistêmica das obras de afrodescendentes que têm sido feitas nos últimos 20 anos
no âmbito afro-atlântico, brasileiro ou não. Sua coragem de desconstruir a famosa obra de
Tarsila é um gesto que felizmente encontramos em outras artistas. Na arte deste século no
Brasil, artistas e agentes do mundo das artes estão se dando cada vez mais conta da
https://artebrasileiros.com.br/arte/artigo/arte-negra-brasileira/ 13/25
31/03/2022 08:55 Rompendo a cumplicidade entre o dispositivo estético e o colonial
relação entre modernidade, modernismo e colonialismo. O “cubo branco” modernista é
uma prisão higienista que corresponde ao modelo da propalada “autonomia” das artes.
Lembro aqui apenas dos trabalhos das artistas Clara Ianni e Lais Myhrra, que tem
mostrado a violência do projeto modernista brasileiro em algumas de suas obras dos
últimos anos: O instante interminável (2015) e Projeto Gameleira, 1971 (2014), de Myhrra e
Forma livre (2013) e Do figurativismo ao abstracionismo (2017), de Ianni. Que fique claro,
essas duas artistas não fazem parte da produção de arte afrodescendente, mas suas obras
incidem criticamente sobre o dispositivo colonial. A virada política decolonial não está de
modo algum restrita a artistas afrodescendentes.

Artistas afrodescendentes decoloniais

A referida exposição que ocorreu no MASP e no Instituto Tomie Ohtake em São Paulo em
2018, Histórias Afro-Atlânticas, com curadoria de Adriano Pedrosa, Ayrson Heráclito,
Hélio Menezes, Lilia Schwarcz e Tomás Toledo, foi uma das mais importantes sobre o tema
da negritude já feitas no Brasil, mas é importante ver como ela faz parte de um percurso
que pode ser traçado desde a exposição A mão afro-brasileira, de 1988, passando por
muitas outras também essenciais. Inspirado no levantamento feito por Hélio Menezes para
seu texto no catálogo de Histórias Afro-Atlânticas eu destaco as seguintes exposições:
Incorporações – Arte afro-brasileira contemporânea (2011/2012), no International Arts
Festival Europalia, Bruxelas, curadoria de Roberto Conduru; Afro como ascendência, arte
como procedência (2013-2014), no Sesc Pinheiros, São Paulo, com curadoria de
Alexandre Araújo Bispo; Histórias Mestiças (2014), no Instituto Tomie Ohtake, com
curadoria de Adriano Pedrosa e Lilia Schwarcz; Territórios: artistas afrodescendentes no
acervo da Pinacoteca (2015-2016), na Pinacoteca de São Paulo, com curadoria de Tadeu
Chiarelli; A cor do Brasil (2016-2017), no Museu de Arte do Rio, com curadoria de Paulo
Herkenhoff e Marcelo Campos; Diálogos ausentes (2016-2017), no Instituto Itaú Cultural,
São Paulo, com curadoria de Rosana Paulino e Diane Lima; Agora somos todxs Negrxs?
(2017), no Galpão VideoBrasil, com curadoria de Daniel Lima; PretAtitude (2018), no Sesc
Ribeirão Preto, com curadoria de Claudinei Roberto (Menezes 2018, p.591-592); e
acrescento a exposição mais recente de Rosana Paulino, A costura da memória (2018-
2019), ocorrida na Pinacoteca de São Paulo, com curadoria de Valéria Piccoli e Pedro Nery.
Também incluiria nesse hall de exposições as Bienais Videobrasil, com curadoria de
Solange Farkas, e a exposição A empresa colonial (2015-2016). Farkas é curadora geral do
Festival de Arte Contemporânea Videobrasil que acontece desde 1983. Sua perspectiva
voltada para o eixo sul-sul tem participado de modo muito importante na afirmação de
uma arte mais comprometida com os temas da decolonialidade. Em 2000 ela foi curadora,
ao lado do crítico sul-africano Clive Kellner, da exposição Mostra Africana de arte
contemporânea, que ocorreu no Sesc Pompeia, em São Paulo. A exposição A empresa
colonial, ocorrida na Caixa Cultural São Paulo, com curadoria de Tomás Toledo, apesar de
não ser uma exposição com proposta curatorial étnica, tratou com muita propriedade do
tema da continuidade do poder colonial no Brasil contemporâneo.

https://artebrasileiros.com.br/arte/artigo/arte-negra-brasileira/ 14/25
31/03/2022 08:55 Rompendo a cumplicidade entre o dispositivo estético e o colonial

“República (democracia racial)”, 2015, de Jaime Lauriano. Foto: Divulgação

Jaime Lauriano, um dos mais importantes artistas negros no Brasil hoje, emprega em uma
de suas obras dessa última exposição uma “pemba branca”, giz utilizado em rituais de
umbanda, sobre “algodão preto”. Com esse material, Lauriano retraçou o mapa do Brasil,
essa linha política, como parte de uma política do corpo e de autoafirmação. Usurpando o
poder de traçamento dos agentes cartógrafos a serviço do poder, ele inscreve com pemba
branca limites ressignificados: o branco da pemba vira agente de inscrição das
populações historicamente oprimidas. Seu título estampa em tom irônico: República
(democracia racial) (2015). E, tensionando a imagem com um texto, Lauriano inscreve ao
pé do mapa do Brasil uma estrofe do “Hino à Proclamação da República”, um verdadeiro
monumento ao esquecimento, já que suas palavras (de autoria de Medeiros de
Albuquerque) perpetram: “Nós nem cremos que escravos outrora/ Tenha havido em tão
nobre País…/ Hoje o rubro lampejo da aurora/ Acha irmãos, não tiranos hostis”. Esse texto
foi escrito em 1889, apenas um ano, portanto, após a “abolição” oficial do sistema de
escravidão. A abolição revela-se, como lemos com Abdias Nascimento (2016), um modo
de aniquilamento, de morte e de política do esquecimento. Lauriano tem outras
importantes obras feitas com pemba sobre fundo negro que traçam os contornos do mapa
do Brasil para repensar esses limites do ponto de vista decolonial. Recordo aqui seu
impressionante Invasão, etnocídio, democracia racial e apropriação cultural, de 2017, que
esteve na mencionada exposição Agora somos todxs Negrxs?

O que corre nessas exposições, curadorias e com essa multiplicação de artistas negrxs?
Antes de mais nada, a ruptura da cumplicidade entre o dispositivo estético e o colonial.
Não se pode mais falar de modo inocente de “democracia racial” ou comemorar nossa
cultura “sincrética” e a “miscigenação” sem perceber o trauma que está na origem dessa
hibridização. Com as mudanças profundas ocorridas no campo das artes nas últimas
décadas do século XX ocorreu uma ascensão, como vimos, do sujeito, do agente da arte,
que antes estava em parte submetido ainda ao campo da representação. Uma série de
artistas afrodescendentes, quase todos formados em artes visuais, e coletivos artísticos
passaram a interagir na cena cultural brasileira desse ponto de vista da virada decolonial.
Eles vão imaginar a negritude nos espaços da diáspora. Imaginar no sentido de criar
imagens, mas também de criar um campo de ação lúdico e político.[7] Com a entronização

https://artebrasileiros.com.br/arte/artigo/arte-negra-brasileira/ 15/25
31/03/2022 08:55 Rompendo a cumplicidade entre o dispositivo estético e o colonial
do sujeito e o deslocamento do campo estético em direção à política e micropolíticas, essa
repolitização da arte implicou novas costuras da memória, para jogar com o título da
exposição de Rosana Paulino na Pinacoteca. O elemento testemunhal se torna central. Ao
mesmo tempo, no Brasil ocorre na primeira década deste século um aumento do apoio às
artes, com mais prêmios, bolsas e opções de espaços expositivos, fruto de uma expansão
econômica acompanhada de uma democratização que se refletiu também nas
Universidades e na cultura como um todo. Esse movimento começou a oscilar de volta em
direção à crise econômica e política a partir de 2013. Mas nem por isso as exposições
deixaram de ocorrer: o campo estético já estava por demais ocupado por essas novas
políticas e modos de imaginar e costurar a memória. O programa do atual governo (2020)
visa, via censura e cortes profundos no investimento na área cultural, asfixiar esse boom
de arte crítica no qual a arte negra se inseriu. Teremos que acompanhar que tipo de efeito
essas políticas de opressão vão ter.

Para finalizar esse painel reflexivo sobre a arte negra contemporânea no Brasil me deterei
na produção de duas artistas, mesmo que de modo breve, para indicar a força dessa
produção.

Rosana Paulino: anarquivando o arquivo da colonialidade

Rosana Paulino é reconhecida como uma pioneira na nova arte negra brasileira. Sua obra
Parede da memória, de 1994, é uma referência dentro dessa produção. Essa obra é
composta por 11 fotografias de sua família que se repetem atingindo diferentes números,
chegando a atingir 1500 dessas fotos, que são impressas sobre tecido em tamanho de
cerca de 8x8x3cm cada, formando patuás, ou seja, um elemento da religiosidade afro que
tem um valor de amuleto no candomblé. Cada patuá leva cores específicas, associadas a
Orixás que irão então proteger aquele que porta o talismã. Lembremos do que Abdias
Nascimento escreveu sobre o candomblé como “o ventre gerador da arte afro-brasileira”. É
importante pensar que a própria Rosana Paulino narra a sua carreira a partir dessa obra
emblemática que esteve também presente na sua recente exposição na Pinacoteca de São
Paulo de 2018-2019.

Parede da memória, na sua apresentação aparentemente simples, sintetiza na verdade o


encontro de vários gestos: o fotográfico, o da costura, o da rememoração tanto da família
como de uma origem afro. A obra também alude aos universos da religiosidade, do jogo
(jogo de memória) e da montagem, já que se trata de um arranjo que está sempre em
movimento, sendo remontado, sem nunca deixar de ser a Parede da Memória. Essa parede
com uma série de patuás, não deixa de ser uma versão contemporânea afro dos loci
memoriai, os lugares de memória da mnemotécnica. Nessa tradição une-se a memoria
rerum, memória das coisas, com a memoria verborum, memória das palavras. Os
imagnines agentes, ou seja, agentes da memória, são colocados em certos locais para se
narrar imageticamente histórias (Yates 1966). Existe um movimento nessa obra de Paulino
de apropriação de elementos da memória, de uma memória próxima, familiar, mas também
distante, associada a uma ruptura, a uma deriva, de um saber e de um modo de estar no
mundo o qual, de certa forma, a artista reconhece como seu. Como nas palavras de Musa
Michelle Mattiuzzi, Rosana Paulino parece de fato “habitar as ruínas da colonialidade”, ela
se apresenta como alguém que sabe “habitar e reviver as ruínas dessa pluralidade afro-
atlântica”.

https://artebrasileiros.com.br/arte/artigo/arte-negra-brasileira/ 16/25
31/03/2022 08:55 Rompendo a cumplicidade entre o dispositivo estético e o colonial

“Parede da memória”, 1994, de Rosana Paulino. Foto: Isabella Matheus/ Acervo Pinacoteca do Estado

A fotografia se tornou uma metáfora fundamental na arte contemporânea e no Brasil tem


estado na base da produção de artistas que lidam com a memória e, mais ainda com o
esquecimento. Recordo Hélio Oiticica, com seu Bólide Caixa 18 “Homenagem a Cara e
Cavalo, de 1966 ou o seu famoso seja herói, seja marginal de 1968.[8] A fotografia,
sobretudo a analógica, tem um momento de “impressão” (vale lembrar que Rosana Paulino
é bacharel e especialista em gravura; Lopes 2018, p. 171). A fotografia reatualiza outras
metáforas da memória, como a escritura, metáfora também fundamental na referida
tradição da arte da memória com sua ideia de inscrições mnemônicas. Afinal, a fotografia
é literalmente uma escrita de luz. Mas ela também remete à concepção psicanalítica de
nossa memória como camadas, umas mais outras menos conscientes. A inscrição do
trauma também já foi comparada ao flash fotográfico. A fotografia enquanto retrato tem
também um elemento corpóreo e fantasmático: o retrato fotográfico literaliza
ambiguamente o aparecer e o desaparecer, a presença e a ausência, o desejo de ver e o
evanescer da imagem. Paulino se torna também nessa sua obra/jogo quem dá as cartas na
cena da apresentação dos corpos negros. Como Eustáquio Neves e seus retratos, ela
afirma-se como agente de suas imagens e não mais como objeto representado e sem fala
própria. A obra consegue ser ao mesmo tempo extremamente contemporânea e citar
passados mais ou menos próximos. Ela é um buraco no tempo, cria uma
metaespacialidade e outros cronotopoi. A fotografia é tratada como fragmento, escombro,
sobrevivência de um naufrágio e é em torno de fotografias apropriadas, suas cópias,
recortes e inversões, que boa parte da obra de Paulino se constrói. Isso sem, no entanto,
romancear alguma origem perdida, ou estabelecer alguma ontologia identitária. Antes, a
reprodução técnica das fotografias desconstrói qualquer visada essencialista. Trata-se de
abrir espaço para se imaginar origens e narrativas alternativas às construídas pelos
discursos coloniais.

Na sua série de 1997 de Bastidores, ela costura os olhos, a garganta, a boca e a fronte de
retratos fotográficos de mulheres negras colecionadas por ela nos álbuns de sua família.
Como em muitas obras da mencionada Rosangela Rennó, essas fotografias são
precarizadas, para indicar apagamentos, perdas, subtrações, mas também para indicar
que essas mulheres são ao mesmo tempo um indivíduo singular e todas aquelas que se

https://artebrasileiros.com.br/arte/artigo/arte-negra-brasileira/ 17/25
31/03/2022 08:55 Rompendo a cumplicidade entre o dispositivo estético e o colonial
identificam com elas. O ato da artista é sempre duplo: ao costurar a boca e o pescoço ela
se assume como agente da fala, descosturando a sua boca e a de quem admira o seu
trabalho. Ao costurar os olhos ela se institui como agente na construção das imagens e do
imaginário contracolonial, descosturando os seus olhos e os dos que veem sua obra. Ao
costurar a fronte ela se assume como agente pensante e não como objeto pensado,
dissecado pela ciência e esmagado pelo trabalho servil, descosturando o seu cérebro e do
seu espectador. Em uma palavra, ela afirma: sou dona do meu corpo, a mulher negra
manda em seu corpo, isso em uma sociedade ainda colonial, falocêntrica e racista que
oprime tanto corpos negros como femininos ou que não correspondam ao padrão
cisgênero. Ao denominar sua obra Bastidores ela joga com o significado múltiplo do
termo: por um lado, ela explicita os bastidores dessa sociedade com seu gesto de costurar
nos rostos desses retratos. Mas, bastidor remete aqui também ao suporte da tecelagem
que é onde essas fotografias foram impressas. Ao invés de costurar “comportadamente” e
fazer as suas tecelagens cumprindo o papel “feminino” que a sociedade impõe às
mulheres, Paulino desloca o bastidor, rompe com seu papel de instrumento de controle de
gênero e transforma-o em dispositivo de sua arte eminentemente política.

Mais recentemente a artista tem trabalhado com a costura de fragmentos de tecido, que
chamarei de “retalhos” para enfatizar o seu elemento de fragmentação e de precarização,
nos quais se vê impressas algumas das fotografias e gravuras mais icônicas realizadas por
fotógrafos e artistas, na sua maioria viajantes ou emigrados, feitas no Brasil no século 19.
Em alguns desses “retalhos” estão impressas imagens de azulejos, representativos da
arquitetura e da cidade colonial portuguesa (como ocorrem também em muitas obras de
outra importante artista brasileira que tematiza a violência colonial, Adriana Varejão). A
obra de Paulino Musa paradisíaca, de 2018, reproduz três vezes a mesma fotografia de
Marc Ferrez (“o mais importante dos fotógrafos atuantes no Brasil no século 19”; Lago,
2001, p.14), conhecida como “Uma vendedora de banana” (Ermakoff 2004, p. 116), ao lado
de reproduções de três representações “científicas” de temas da botânica, uma radiografia
de uma bacia e um retalho branco com inscrições em letras maiúsculas em vermelho, de
diferentes tamanhos, citando a conhecida marchinha de carnaval “YES, NÓS TEMOS
BANANA”. Aqui vemos um traço irônico na obra de Paulino. Irônico, mas sarcástico
também, com relação aos clichês que constituem a “brasilidade”. Ao costurar esses
“retalhos”, cacos da história montados pela artista, novamente ela descostura as
estruturas do imaginário colonial realizando o que eu gostaria de chamar de um
anarquivamento do arquivo colonial. As fotografias e imagens coloniais dos negros os
enquadram em um imaginário que busca reproduzir a opressão. Essas imagens são
imagens encobridoras, Deckerinnerungen, nos termos de Freud. Essa mulher anônima
fotografada por Marc Ferrez em torno de 1885 também foi enquadrada por ele em uma
moldura dupla, ao lado de outra negra vestida como “baiana”. Estamos, portanto, da
baiana à “mulata do samba”, em pleno nascedouro de uma poderosa construção da
imagem da mulher brasileira negra, de seu corpo e de seu comportamento. Esse clichê
(fotográfico e de papel social) vai aos ares com a montagem costurada por Paulino.

Outra obra com recursos semelhantes é A ciência é luz da verdade 3?, de 2016. Ela é
composta por três “retalhos” costurados um ao lado do outro. Os dois da ponta
reproduzem com as mesmas letras vermelhas da obra anteriormente comentada a frase
que dá título a esta obra: A ciência é luz da verdade? No centro vemos uma fotomontagem
que sobrepõe a uma imagem de azulejo duas caveiras, uma acima da outra. O tema da
ciência é recorrente na obra de Paulino e remete em grande parte às doutrinas eugenistas
(defendidas por Nina Rodrigues, assim como por alguns dos fotógrafos e artistas que
circularam no Brasil no século 19). Assim, sua obra Atlântico vermelho, de 2017, monta 11
pedaços de tecido, sendo que no do canto superior esquerdo temos uma das famosas
fotografias antropométricas realizadas por August Stahl.

https://artebrasileiros.com.br/arte/artigo/arte-negra-brasileira/ 18/25
31/03/2022 08:55 Rompendo a cumplicidade entre o dispositivo estético e o colonial
Stahl foi um fotógrafo de origem alemã que chegou a Recife em 1853, tendo se instalado a
partir de 1870 no Rio de Janeiro. Em 1865 chegou ao Brasil a Expedição Thayer, financiada
por um milionário norte-americano Nathaniel Thayer, e que tinha por função fazer
fotografia de negros, indígenas e asiáticos tendo em vista alimentar as pesquisas do
professor suíço naturalizado norte-americano Louis Agassiz. Posteriormente Agassiz fará
referência a esse trabalho fotográfico de Stahl em seu livro onde apresenta a sua visão
antropométrica das raças humanas e que deveria revelar como falsa a teoria de Darwin
sobre a origem das espécies, mas sem imprimir no livro as fotografias feitas por Stahl.
Esse livro, redigido junto com a sua esposa, se chamava Permanence of characteristics in
Different Human Species. Segundo nos conta Sérgio Burgi em sua apresentação das
fotografias de Stahl, como Agassiz havia solicitado as fotos a Stahl no ano da abolição da
escravidão nos Estados Unidos, essas imagens depois não puderam ser aproveitadas, pois
depois da Guerra Civil Americana “não permitiram mais especulações antropométricas
que tivessem um caráter discricionário, como mostram as imagens comparativas
encontradas nos álbuns [com as fotografias de Stahl], provavelmente inseridas por
Agassiz, comparando a estatuária greco-romana clássica com os retratos produzidos por
Stahl, para fins de comparações de raças.” (Lago 2001, p. 11) D. Pedro II, o imperador do
Brasil então, apoiou com entusiasmo essa expedição de Agassiz.

1 de 2  

Obra da série "Bastidores", de Rosana Paulino. Foto: Cortesia da artist

Voltando ao Atlântico vermelho de Paulino, além da mencionada foto de Stahl para


Agassiz, com um negro de perfil nu, vemos nessa obra também uma fotografia de João
Gaston (um fotógrafo da Bahia), Negra posando em estúdio, de 1870 (Ermakoff, 2004, p.
158), que apresenta uma negra com um barril na cabeça. E ainda temos três azulejos
impressos em tecido, um deles com o título da obra inscrito em vermelho, um “retalho”
com a imagem de um fêmur humano, dois com imagens de embarcações que lembram
caravelas e um último com escravizados trabalhando no canavial. As fotografias de Gaston
são reveladas uma de modo padrão, positivo, outra com a luminosidade de um negativo,
invertendo os preto e branco, o mesmo ocorrendo com as imagens das “caravelas”. Os
rostos de uma das fotos da negra com um barril na cabeça e a da mulher na imagem na
plantação de cana de açúcar estão vazados.

Esse procedimento de retirar os rostos das imagens apropriadas acontece em outros de


seus trabalhos a partir do relativamente vasto acervo da fotografia de escravizados e
“negros libertos” do século 19. Isso acontece com a fotografia, também de August Stahl,
https://artebrasileiros.com.br/arte/artigo/arte-negra-brasileira/ 19/25
31/03/2022 08:55 Rompendo a cumplicidade entre o dispositivo estético e o colonial
Mina Ondo, de 1885 (Ermakoff 2004, p. 240), parte central da prancha As gentes, do livro-
obra ¿História natural?, 2016. Nessa mesma prancha, Paulino reproduz flanqueando a
Mina Ondo a imagem famosa do indígena Muxuruna do volume de 1823, Reise in Brasilien,
de Johann Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius. O indígena também está sem rosto. O
mesmo acontece na série Paraíso tropical, de 2017, com fotografias de Marc Ferrez, com a
mesma vendedora de bananas que vimos acima; ocorre ainda com uma foto de Albert
Henschel, de 1870, de uma “negra posando em ateliê” (Ermakoff 2004, p. 117) e com outra
de August Stahl de Mina Bari, de 1865, de uma mãe com o filho às costas (Ermakoff 2004,
p. 233), entre outras. Em Paraíso tropical essas imagens são associadas a caveiras e
imagens de tipo representação botânica “científica” dos viajantes. Esses rostos ausentes
podem ser lidos tanto como uma metáfora do vazio, como o faz Juliana Ribeiro da Silva
Bevilaqua no catálogo da exposição na Pinacoteca de 2018, como também podem
remeter ao processo de desumanização pelo qual essas pessoas fotografadas passaram,
do qual fez parte e foi cúmplice o próprio dispositivo fotográfico. Esse dispositivo estava
aliado aos dispositivos colonial e ao estético. A fotografia sempre esteve, como qualquer
aparelho técnico, eivada de ambiguidades; serviu à arte, à memória, mas também aos
órgãos de polícia, aos projetos de eugenia e de genocídio, como na Alemanha nazista, no
Camboja de Pol Pot e nos cárceres das ditaduras latino-americanas, como nas conhecidas
fotografias da ESMA, em Buenos Aires. Paulino explora essa ambiguidade da fotografia,
como, por exemplo, Harun Farocki o fez em muitas de suas obras, apontando a
cumplicidade entre fotografia e guerra, destruição. Assim, como lemos no catálogo sobre
as fotografias antropométricas de Stahl, essas imagens foram colocadas pelo cientista
Agassiz em um álbum ao lado de representações da beleza clássica. Os rostos deveriam
ser confrontados, para provar a suposta superioridade de uma raça sobre as demais.
Estamos em plena cena não só de eugenia, mas de genocídio, como o formulou Abdias
Nascimento.

Essa ausência de rosto significa também o tornar-se anônimo dessas pessoas


objetificadas por um trabalho que as matava e por uma fotografia que as reduzia a peças
de um teatro macabro da ciência. O rosto, para o filósofo Lèvinas, vale lembrar, é a nossa
parte mais exposta e mais frágil e também a portadora do nosso ser para o outro. “A
epifania do rosto é ética”, ele escreveu. (1988, p. 178) E ainda: “O rosto onde se apresenta
o Outro – absolutamente outro – não nega o Mesmo, não o violenta […]. Fica à medida de
quem o acolhe, mantém-se terrestre. Essa apresentação é a não violência por excelência,
porque em vez de ferir a minha liberdade, chama-a à responsabilidade e implanta-a.”
(1988, p. 181) O trabalho escravo, a violência de ser reduzido a corpo-instrumento, corpo
carregador de fardos, corpo torturado, corpo fotografado, destitui o indivíduo dessa
outridade que institui a ética a partir da outridade absoluta do rosto. Ao retirar o rosto
dessas mulheres ou do indígena, Paulino apaga o rosto para mostrar que esses grupos de
pessoas tiveram seus rostos anulados. Ao invés do infinito que todo rosto guarda, eles
eram reduzidos a fachadas de seres sem outridade e sem ipseidade. Paulino nos chama
novamente à responsabilidade diante dos rostos na medida em que ela os apaga para os
restituir.

A cena retratada em Atlântico vermelho é uma poderosa síntese das narrativas da arte
afrodescendente contemporânea brasileira. Dessa obra pendem ainda fios vermelhos, que
extravasam os “azulejos” e escorrem pela parede como sangue. Esses corpos sem rosto,
mas que sangram remetem também à obra anterior de Paulino, em nanquim sobre papel,
Autorretrato com máscara para comedores de terra, de 1997. Nela, uma mulher “posa”
como as escravas fotografadas no século 19, portando essa máscara tão emblemática da
violência colonial. Debret, entre outros artistas que passaram pelo Brasil naquele século,
registrou imagens do emprego dessas máscaras. Comer terra era um meio de se suicidar,
buscando a liberdade da escravidão na morte. O acima mencionado artista mineiro Paulo
Nazareth, na sua série Para venda, realizou um autorretrato de perfil portando uma caveira

https://artebrasileiros.com.br/arte/artigo/arte-negra-brasileira/ 20/25
31/03/2022 08:55 Rompendo a cumplicidade entre o dispositivo estético e o colonial
bovina que faz às vezes de uma máscara para comedor de terra (2011). Nessa
performance de Paulo Nazareth ele coloca a máscara para que consigamos finalmente ver
aquilo que parece estar para além do visível e nos cega diante da violência que essas
imagens friamente descritivas de Debret apresentam.

A série Assentamento, de 2013, de Paulino, retoma um dos grupos de fotografias de Stahl


de 1865 para o projeto de Agassiz que se encontra hoje no Peabody Museum of
Archeology and Ethnology de Harvard (em um bairro de Cambridge, aliás, que se chama
Agassiz). (Ermakoff 2004, p. 252) As três fotografias, em tamanho natural, recuperando a
sua dimensão humana, foram recortadas cada uma em cinco tiras e recosturadas de modo
irregular. Na fotografia frontal da mulher nua, Paulino insere um coração pintado, como um
órgão externo, do qual escorrem, novamente, fios vermelhos “de sangue”. Na fotografia de
perfil, ela introduz uma gravura de um nenê no útero, mas, novamente, como algo externo,
transparente. Na fotografia da mesma personagem, sempre nua, de costas, a artista não
remenda a parte de baixo da fotografia, correspondente ao final da perna e aos pés, e em
seu lugar costura um tecido que possui uma costura de veios que lembram raízes que se
ramificam, como se a retratada estivesse criando raízes. Essas três fotografias constituem
uma instalação da qual fazem parte também pedaços de lenha empilhadas, como se
fossem para uma fogueira. Ao chão, do lado das duas “fogueiras”, dois pequenos
monitores apresentam ondas em um oceano se quebrando na praia. É importante lembrar
aqui também o duplo sentido do título da obra: assentamento, entre outras coisas, é o ato
de se assentar azulejos ou ladrilhos, ato de construção, portanto, que remete ao corpo dos
que constroem no Brasil desde o século 16 – que assentaram, entre outros, os azulejos aos
quais algumas das obras de Paulino se referem. Por outro lado, assentamento pode ser
também um local que recebe os sem-terra, categoria de muitos negros expelidos da força
de trabalho no Brasil, herdeiros do fardo da “libertação” dos escravizados de 1888. No
candomblé, por fim, assentamento é um conjunto de objetos colocados em um lugar
específico para homenagear um Orixá. Nesse local assenta-se a força do Orixá. Podemos
pensar como em Assentamento circulam esses significados. Essa obra, de modo explícito,
trata dos traumas, das feridas abertas pela escravidão. Feridas que não se fecham. Trauma
vem do grego e significa ferida. Não existe suturação possível para quatro séculos de
regime escravocrata ou para a violência do tráfico de pessoas escravizadas. Paulino nos
fala dessa violência, no entanto, não reproduzindo as famosas imagens de Rugendas e
Debret que retrataram os gestos de tortura dos colonizadores e de seus algozes sobre os
corpos negros, que povoam os livros didáticos no Brasil (produzindo uma associação que
naturaliza a relação entre “corpo negro” e “corpo violentado”). Antes, ela opta pela costura
inexata, por mostrar a fragilidade desse corpo de pessoas que foram objetificadas pela
escravidão, pela fotografia, pela ciência e pelo voyeurismo.[9] As imagens dos “corpos
escravizados” no século 19 colocam-nos apenas nesses dois lugares: do trabalho ou do
sofrimento. Rosana Paulino opta por fazer um assentamento, um ritual de homenagem, de
religadura, impossível, mas necessária, com o passado que não passa. Coração, útero e
raízes não restituem a vida ou curam as feridas, mas servem para deslocar nosso modo de
nos aproximar dessas imagens fantasmáticas do passado, permite iniciar um diálogo com
os mortos, abre uma varanda sobre o oceano, contextualizando a escravidão no mundo
afro-atlântico. Restituir raízes aos que foram cortados delas, dar-lhes descendência e vida,
mesmo que uma sobrevida, é um trabalho delicado ao qual a arte de Paulino tem se
dedicado de modo original e poderoso.

https://artebrasileiros.com.br/arte/artigo/arte-negra-brasileira/ 21/25
31/03/2022 08:55 Rompendo a cumplicidade entre o dispositivo estético e o colonial

Cena de “(Outros) Fundamentos #1”, de Aline Motta. Foto: Cortesia da artista

Aline Motta: reflexos de um (des)encontro

Estabelecer uma corrente de memória que ao mesmo tempo costure com sua nervura o
território brasileiro na sua longa história de escravidão e nunca realizada libertação e, ao
mesmo tempo, abra uma varanda sobre o oceano são partes de um mesmo projeto mais
ou menos explícito dentro da produção da arte afrodescendente. No caso da artista
niteroiense Aline Motta, por exemplo, com sua trilogia de videoinstalações, isso fica
evidente. Suas obras Pontes sobre Abismos (2017), Se o mar tivesse varandas (2017) e
(Outros) Fundamentos (2017-2019) apresentam, a partir de uma narrativa em off da
autora, com imagens captadas em Serra Leoa, na Nigéria e em diversos locais de sua
origem no Brasil, a história de uma busca por fragmentos de passado visando instituir um
“assentamento” (para retomarmos a imagem de Paulino) no presente. Suas obras nascem
a partir de um momento de ruptura, de quebra de um “segredo”, de uma camada de
silêncio dura que manteve na penumbra a sua origem, ainda no século 19, na prática de
um filho de aristocrata que violou a sua bisavó. Sua avó porta em sua certidão de
nascimento apenas o nome de sua mãe e a qualificação de “filha natural”. A partir dessa
descoberta, da violência recalcada, dessa origem negativa, a obra de Aline se desdobra
como um enorme rio caudaloso que jorra, repleto também de fotografias de família que,
em seus vídeos, navegam literalmente boiando pelas águas do oceano Atlântico e por rios
do Brasil e da África. Nessas obras plenas de transparência, de água e de espelhos, de
superfícies que (se) refletem para nós refletirmos, a artista busca os caminhos que podem
religar os fios quebrados, de sua história de família e os que ligam, também, os continentes
das duas margens do Atlântico sul.

No final de sua obra (Outros) Fundamentos assistimos a cenas na cidade de Lagos com
pessoas sobre canoas e à beira do rio portando pequenos espelhos em suas mãos. A
narradora fala: “Se pertencer é uma ficção, posso apontar um espelho para a Nigéria e ver
o Brasil? O inverso também é possível? Para além do oceano, um aponta o dedo para o
outro e pergunta: é você mesmo? Por que demorou tanto?”.

Palavras finais

Como no Manifesto Tardio, de Rubem Valentim, também Aline Motta pontua essa
temporalidade do “demorar”, o après coup que, como vimos, não é nada mais do que a
temporalidade do trauma, com o seu retardamento característico. O tempo do trauma é
um tempo que nos atravessa, que faz com que o tráfico negreiro, a violência de quase
https://artebrasileiros.com.br/arte/artigo/arte-negra-brasileira/ 22/25
31/03/2022 08:55 Rompendo a cumplicidade entre o dispositivo estético e o colonial
quatro séculos de escravidão e as políticas eugenistas e genocidas contra os negros que
existem até hoje sejam parte de um mesmo presente. Trata-se de um passado que não
passa. A arte negra contemporânea brasileira, que procurei apresentar aqui a partir de seu
difícil nascimento, que se ergueu contra tantos apagamentos, recalcamentos e tantas
mortes e violência, essa arte de certa forma mora nesse “demorar” de que Aline nos fala.
Habitar a demora implica sempre uma urgência de falar, de inscrever infinitas histórias não
simbolizadas, não imaginadas, ainda não traduzidas em imagens. As obras de tantos
artistas aqui mencionados e dos não mencionados são verdadeiras construções híbridas,
marcadas pela montagem, pela costura, por serem coletas de cacos e escombros, por
serem instalações, impressões gráficas ou fotográficas, performances e cenas teatrais. A
força desses dispositivos artísticos consiste em serem trabalhos de memória que lançam e
abrem diante de nós novos territórios, ajudam a erguer novas casas para habitarmos para
além do desabrigo e do mal-estar. Esses dispositivos rompem como picaretas muros de
esquecimento e de silenciamento forçado. Como afirmei na abertura deste texto, a
impressionante força e originalidade da arte negra brasileira contemporânea também
responde à terrível ascensão de neo-fascismos que repetem hoje seus desígnios
genocidas.

A arte negra existe apenas em um devir, em um construir-se que é paralelo ao devir negro.
Para ela existir, artistas, críticos e curadores precisaram desvencilhar-se de séculos de
uma historiografia brancocêntrica que invisibiliza a arte negra. Curadores precisaram
desvencilhar-se de sua cegueira colonial para perceber que a arte negra não é apenas um
afluente da “arte brasileira”, mas constitui um campo cultural e simbólico que, pelo
contrário, deve ser lido no contexto da diáspora negra, para além da máquina trituradora
das diferenças do dispositivo da nacionalidade. Pensar em uma arte afro-brasileira só tem
sentido se o termo “brasileira” servir para localizar o espaço da diáspora, o seu contexto, e
não para impor limites nacionais no sentido da construção de uma ilusória grande “arte
brasileira”. A arte negra transcende as fronteiras da colonialidade, ela explode o código
usual da história da arte com suas histórias nacionais, lineares e ascendentes, pontuada
por seus “grandes vultos”. Ao construir seus teatros de memória que possibilitam a
imaginação de outros espaços de ação lúdica, essa arte negra aqui tratada nos instiga a
repensar o próprio sentido da arte e de suas fronteiras.

Bibliografia

Adorno, Theodor W. e Horkheimer, Max, Dialektik der Aufklärung, Frankfurt a.M.: Fischer V., 1986.

Araújo, Emanoel (org.). A mão Afro-Brasileira. Signi cado da Contribuição Artística e Histórica, São Paulo: Tenenge, 1988.

Azevedo, José Fernando Peixoto de. Eu, um crioulo, São Paulo: n-1, 2018.

Benjamin, Walter, Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 8aed. revista. Sérgio Paulo
Rouanet (trad.), Márcio Seligmann-Silva (revisão técnica) Brasiliense, São Paulo, 2012.

Benjamin, W. Werke und Nachlaß. Kritische Gesamtausgabe. Über den Begriff der Geschichte. Ed. Gérard Raulet. Frankfurt-am-
Main: Suhrkamp Verlag, 2010, Vol. 19.

Benjamin, Walter. Sobre o conceito de história. Edição crítica. Organização e tradução, Adalberto Müller e Márcio Seligmann-
Silva, São Paulo: Alameda, 2020.

Chakrabarty, Dipesh. Provincializing Europe: Postcolonial Thought and Historical Difference. Princeton University Press, 2007.

Cleveland, Kimberly. Black Art in Brazil. Expressions of Identity, Gainsville, Fl.: University Press of Florida, 2013.

Conduru, Roberto. Arte afro-brasileira, Belo Horizonte: C / Arte, 2007.

Couto, Maria de Fátima Morethy. “A recepção da obra de Antônio Bandeira no exterior (1946-1967)”, in: Revista de História da
Arte e Arqueologia. Campinas/ São Paulo, nº 11.

Diegues, Isabel; Ortega, Eduardo (org.). Fotogra a na arte brasileira séc. XXI. Rio de Janeiro: Cobogó, 2013.

https://artebrasileiros.com.br/arte/artigo/arte-negra-brasileira/ 23/25
31/03/2022 08:55 Rompendo a cumplicidade entre o dispositivo estético e o colonial
Empresa Colonial, curadoria e texto Tomás Toledo, São Paulo: T. Toledo, 2016.

Ermakoff, George. O negro na fotogra a brasileira do século XIX, Rio de Janeiro: George Ermakoff Casa Editorial, 2004.

Fanon, Frantz. Peau noire, masques blancs, Paris: Seuil, 1952.

Foster, Hal, The Return of the Real, MIT Press, 1996.

Said, Edward. Orientalism, New York: Pantheon Book, 1978.

Hall, Stuart. Da diaspora. Identidades e mediações Culturais, Belo Horizonte: Humanistas, 2003.

Hidalgo, Luciana. Arthur Bispo do Rosário. O Senhor do Labirinto, Rio de Janeiro: Rocco. 1996.

Histórias afro-atlânticas: [vol. 2] antologia, org. Adriano Pedrosa, Amanda Carneiro, André Mesquita, São Paulo: MASP, 2018.

Hooks, Bell. Black Looks: Race and Representation, Routledge, 2014.

Hollier, Denis. “O valor de uso do impossível”, in: Bataille, Georges, Documents: Georges Bataille, trad. J.C. Penna e M. J. Moraes,
Desterro: Cultura e Barbárie, 2018, pp. 3-35.

Kant, Immanuel, Kritik der Urteilskraft, Hamburg: Felix Meiner, 1959.

Kilomba, Grada. Plantation Memories. Episodes of Everyday Racism, Münster: Unrast-Verlag, 5. edição, 2019.

Lacoue-Labarthe, Philippe; Nancy, Jean-Luc. Le mythe nazi, Éditions e l’Aube, 1991.

Lago, Bia Corrêa do. August Stahl: Obra completa em Pernambuco e Rio de Janeiro, apresentação Sergio Burgi, Rio de Janeiro:
Contra Capa Livraria, 2001.

Lévi-Strauss, Claude, Anthropologie structurale, Paris: Plon, 1958.

Lèvinas, Emmanuel. Totalidade e in nito, trad. J. P. Ribeiro, Lisboa: Edições 70, 1988.

Mbembe, Achille. Crítica da Razão negra. Tradução Marta Lança, Lisboa: Antígona Editores Refractários, 2a edição, 2017.

Mignolo, Walter. The Darker Side of Western Modernity: Global Futures, Decolonial Options. Durham/London: Duke University
Press, 2011.

Nascimento, Abdias. O genocídio negro. Processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva, 2016.

Ndikung, Bonaventure Soh Bejeng. “Des-outrização como método (Leh zo, a me ken de za)”, in: 21ª Bienal de Arte
Contemporânea Sesc_Videobrasil: Comunidades imaginadas. São Paulo: Videobrasil; Edições Sesc, 2019. (Catálogo de
exposição). [Disothering as a Method: Leh zo, a me ken de za]

Rosana Paulino: a costura da memória, curadoria Valéria Piccoli, Pedro Neri, textos Juliana Ribeiro da Silva Bevilaqua, Fabiana
Lopes, Adriano Dolci Palma, São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2018.

Savoy, Bénédicte, Afrikas Kampf um seine Kunst: Geschichte einer postkolonialen Niederlage, C.H. Beck, 2021.

Seidel, Christine (org.), Beyond Compare. Art from Africa in the Bode Museum, Berlin: Staatliches Museen zu Berlin, Preußischer
Kulturbesitz, 2017.

Seligmann-Silva, M. (org.). História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes, Campinas: Editora da UNICAMP,
3a. Impressão, 2016.

Seligmann-Silva, M. Decolonial, des-outrização: imaginando uma política pós-nacional e instituidora de novas subjetividades, in:
21a Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil: Comunidades Imaginadas: Leituras / organização: Luisa Duarte;
coordenação editorial: Teté Martinho. São Paulo: Sesc: Associação Cultural Videobrasil, 2019. Pp. 20-44.

Seligmann-Silva, M. “Do museu-arquivo às inscrições de si”, in: Acervo: Revista do Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, v. 32, n.3,
set/dez. 2019a, pp. 21-36.

Yates, Francis A., Art of Memory, University of Chicago Press, 1966.

______________________________________________________________

[1] Adolescente de 14 anos baleado por forças policiais em meio a uma ação realizada, contra qualquer razoabilidade, durante a
quarentena devido à pandemia de covid-19. O crime cometido por forças do Estado se deu no dia 18/05/2020 no município de
São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro, quando João Pedro brincava dentro de sua casa com outras crianças.

[2] No contexto dos estudos subalternos, Chakrabarty repensou a história do ponto de vista dos grupos subalternos,
procurando redimi-la da visão colonial. Com ele, os agentes passaram a ser reconhecidos nesses grupos subalternizados. Esse
ponto de vista encontra um antecessor em Walter Benjamin que em suas teses “Sobre o conceito da história”, de 1940 a rmou:
“O sujeito do conhecimento histórico é a própria classe oprimida combatente. Em Marx, ela aparece como a última classe
escravizada, como aquela que se vinga, que vai consumar o trabalho de libertação em nome de gerações [inteiras] de
massacrados.” (2020, p. 46) Mas, além dessa virada copernicana do conhecimento e da ação históricas, Chakrabarty pensa
criticamente a estrutura de dominação na Índia moderna, com suas camadas de domínio político nacional associado ao uso de
códigos e instituições britânicos. Ele propõe desconstruir a teleologia do historicismo (também presente em Marx e nos
https://artebrasileiros.com.br/arte/artigo/arte-negra-brasileira/ 24/25
31/03/2022 08:55 Rompendo a cumplicidade entre o dispositivo estético e o colonial
marxismos) e a ideia de Modernismo como modelo universal. Sua proposta dá-se no contexto não apenas a virada
epistemológica do ponto de vista subalterno, mas também do pós-colonial. Ele propõe escovar a história a contrapelo,
restituindo elementos empoderadores de memórias coletivas que são heterogêneos ao modelo europeu, passando-se a
valorizar passados subalternos. Trata-se de uma veemente recusa do modelo colonizador da episteme iluminista,
universalizante e que se considera o único capaz de portar a “objetividade”. Trata-se também de uma denúncia da violência das
práticas coloniais, tanto em termos da violência física como da simbólica. Seu apelo por um mundo plural e não monolíngue é
fundamental em nossos dias de fundamentalismo supremacista.

[3] Evidentemente não se trata aqui de criticar Kant por ter sido “eurocêntrico”, posto que não existia outra possibilidade na sua
Königsberg do século 18, mas, antes, devemos criticar o uso não re etido e acrítico de sua obra estética hoje.

[4] Trata-se de um bairro central de São Paulo, mas que até meados do século 19 era ainda periférico e onde se concentrava o
terror a que os escravos vindos da África eram submetidos: o pelourinho e a forca. O nome do bairro aparentemente é uma
homenagem à abolição da escravidão o cialmente ocorrida em 1888.

[5] No seu artigo do catálogo da exposição de 1988, Aracy Amaral escrevia ainda de modo não crítico com relação à
cumplicidade entre os dispositivos estético e o colonial: “os países novos da América se apresentam como uma real fonte de
miscigenação e nova realidade. A identidade passa a ser baseada, assim, a partir de nosso meio-ambiente, ou melhor, de
nossos processos tumultuados de deculturação, ou aculturação segundo os modelos dos centros hegemônicos de arte
ocidental.” (1988, 272) Assim a rma-se a máquina colonial com seu trabalho de destruição do “outro”. A autora ainda enfatiza o
mito da “ausência de memória” (1988, 272) dos brasileiros, quando se trata na verdade de reconhecer uma luta pelas
memórias, na qual as histórias da violência contra os negros e da resistência negra são sistematicamente sufocadas.

[6] Com relação a essa origem da arte negra brasileira no candomblé é essencial lembrarmos da gura de Arthur Bispo do
Rosário (1909 – 1989), um dos mais aclamados artistas negros brasileiros, com obras expostas nas Bienais de São Paulo e
Veneza. Seu trabalho, marcado pelo colecionismo, pela montagem, pela costura, construção de narrativas e por serializações
utilizava muitos códigos claramente derivados dos cultos afro-brasileiros. Na fusão de religiosidade e trabalho artístico ele
criou um caminho original e incomparável no cenário da arte do país que ao mesmo tempo forçou e desconstruiu o dispositivo
estético. (Hidalgo, 1996) As performances do artista Ayrson Heráclito, que unem religiosidade, rito e o campo estético
deslocado, desdobram essa trilha aberta por Bispo do Rosário.

[7] Além dos aqui já mencionados artistas, poderíamos lembrar de Sidney Amaral, Charlene Bicalho, Dalton Paula, Janaína
Barros, Antônio Obá, Juliana Santos, Priscila Rezende, Lídia Lisboa, Renata Felinto, o curador e artista Daniel Lima, Tiago
Gualberto, Janaina Barros, Moisés Patrício, Marcio Marianno, Peter de Brito, Ana Lira, Ayrson Heráclito, Jota Mombaça, o
bailarino e performer Luiz de Abreu, o quadrinista Marcelo D’Salete e a Frente 3 de Fevereiro.

[8] Recordo também de Eustáquio Neves, outro importante precursor da arte negra contemporânea, recordo Paulo Nazareth,
gura chave na arte negra atual também e das fotogra as de Ayrson Heráclito. A fotogra a é igualmente fundamental nas
obras de Rosângela Rennó, de Claudia Andujar, de Paula Trope, Miguel Rio Branco, entre tantos outros artistas contemporâneos
não diretamente relacionados com a arte afrodescendente. (Diegues & Ortega 2013)

[9] É importante confrontar essa obra de Paulino com a obra impactante da artista norte-americana Carrie Mae Weems, From
Here I Saw What Happened and I Cried, 1995-6, que também é feita a partir da apropriação de fotogra as de negros do século
XIX, submetidos por dispositivos cientí cos, fotográ cos, sexistas, ao exército, como ama de leite etc. Isso mostra como as
histórias afro-atlânticas se repetem para além das fronteiras nacionais. O sistema colonial era e é global.

Textfield

https://artebrasileiros.com.br/arte/artigo/arte-negra-brasileira/ 25/25

Você também pode gostar