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Ciência&Cultura REPORTAGEM

(Fonte: “Cunhatain”, antropofagia musical, de Denilson Baniwa. 2018. Acrílica sobre tecido. Reprodução)

Cem anos após a Semana de Arte Moderna, novos nomes nas artes continuam buscando romper
paradigmas.

Modernismo, 100 anos depois


Antropofagia marginal continua ecoando nas periferias

* Chris Bueno

“Queremos a Revolução movimento modernista brasileiro Moderna não se limitou à São


Caraíba. Maior que a revolução — é possível perceber que a Paulo — tampouco a 1922. O
Francesa. A unificação de todas antropofagia se mantém atual e cenário artístico acompanhou
as revoltas eficazes na direção o modernismo, vivo. as mudanças que aconteciam
do homem”. Em seu “Manifesto Há cem anos, um grupo no mundo e o movimento
Antropófago”, publicado em de artistas considerados modernista persistiu — ou
1928, Oswald de Andrade “rebelde” organizava a melhor, se adaptou, deglutindo
propõe uma revolução cultural semana que foi fundamental todas as novas informações
e social. Hoje, nas celebrações para que um novo processo e influências e criando um
do Centenário da Semana de artístico se estabelecesse por novo movimento. O Novo
Arte Moderna — ápice do aqui. Mas a Semana de Arte Modernismo, como passou a ser
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chamado, é uma movimentação a possibilidade de usar esse poderia oferecer algo de valor
que coloca a negação das regras pronome tão enganoso quanto à civilização ocidental desde
academicistas ainda em maior sedutor: ‘nós’”. que seus artistas começassem
evidência, além de incluir em a (re)ver nosso passado com
seu escopo a criação periférica. Antropofagia renovado interesse”, explica
Se foi a elite paulista que Maria De Fátima Morethy Couto,
realizou a Semana de 22, hoje é Segundo o poeta e professora do Instituto de Artes
o inverso. É a periferia que está ensaísta Eucanaã Ferraz, (IA) da Unicamp.
dando a direção da cena artística, professor da Faculdade de Letras Quando Oswald lança a
com personalidades negras, da Universidade Federal do Rio ideia da antropofagia ela tem um
indígenas, LGBTQIA+, asiáticas de Janeiro (UFRJ), nós vivemos impacto grande e se converte
e mulheres promovendo o um tempo de globalização numa percepção interessante
debate. “Agora que estamos total, que fez desaparecer a do que seria a dinâmica cultural
passando por uma revalorização necessidade de delimitação das brasileira. “O que era tabu vira
das culturas ameríndias e culturas, ou ainda, a noção de totem, e aquilo que era tido
afrodiaspóricas, e sobretudo “diferença” como força. Apenas como uma herança maldita da
agora que artistas indígenas o pensamento ultraconservador civilização tropical e escravista
e negres estão produzindo suas e/ou extremista se mantém (a ascendência indígena e
próprias narrativas sobre o que interessado nas velhas africana de grande parte da
é pertencer a uma tradição noções de nacionalidade. “A população) se converte em algo
nacional ou regional, é possível, antropofagia nos termos de positivo. Há muitas idealizações
sim, dizer que ainda há fôlego Oswald teria muito a dizer e muitos silenciamentos nesse
para a antropofagia”, afirma acerca isso, sobre o ridículo e processo, mas a possibilidade
Pedro Meira Monteiro, professor a fragilidade das perspectivas de que as ideias europeias
de Espanhol e Português na totalitárias”, diz. O pesquisador fossem contorcidas, e que da
Princeton University. aponta ainda que é interessante sua distorção pudesse nascer
Segundo o pesquisador, pensar na proposta oswaldiana uma nova cultura, era nova e
essa aproximação pode provocar — que exige a deglutição, a é até hoje muito provocativa.
um desconforto em relação a digestão, a apreensão lenta, A metáfora de engolir o Outro
todos os lugares possíveis e a sensível, inteligente, e ainda, a que vem para ‘explicar’ o mundo
todas as explicações identitárias singularidade, a diversidade e a é sempre produtiva”, explica
fixas. A arte teria essa função de divergência — em um momento Monteiro.
“bagunçar” o mapa em que nos em que vigora a velocidade e a O conceito de antropofagia
reconhecemos, e que nos diz absorção imediata. determina a possibilidade de
quem somos e de onde viemos, O projeto da antropofagia questionar o sistema colonial e,
e o processo cultural se daria possui um largo espectro, ainda simultaneamente, abre caminho
nessa junção entre entendimento que pareça vago e inalcançável. para se pensar a identidade
e desentendimento. “Não Mais do que mera provocação brasileira em sua complexidade.
se produz nada de novo estética, é um chamamento “Sua ambição é abater as
ou interessante quando há à ação, à transformação, à perspectivas que julgavam as
plena compreensão. Mas a participação dos artistas e culturas não-europeias como
incompreensão absoluta é um intelectuais na vida social do simplesmente periféricas ou
caminho para a violência. E a país. “Ao cunhar o conceito de mesmo primitivas e bárbaras.
antropofagia pode ser uma antropofagia, Oswald tencionava Mas em vez de uma defesa
resposta para esse dilema, posicionar-se de outra maneira que mirasse um frágil e ilusório
porque ela pressupõe uma em relação à herança cultural nivelamento com a cultura
interpretação que é também europeia, não mais se servindo europeia, Oswald trouxe os mais
uma forma de aproximação- dela como modelo, rejeitando arraigados preconceitos para
limite, em que não se pretende fórmulas pré-estabelecidas o centro de suas provocações,
tomar o lugar do Outro. de composição poética e rindo deles e dando-lhes um
Sobretudo, a arte serve para proclamando a abolição de todo sinal positivo: em vez de negar
colocar em xeque e em suspenso eruditismo. A seu ver, o Brasil o atraso, ou o primitivismo,
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afirmou-os como poder
transformador e libertário”, diz
Ferraz. Segundo o pesquisador,
as máximas oswaldianas
ressaltaram pontos sensíveis da
realidade brasileira e foram um
motor poderoso num momento
em que parte expressiva dos
artistas, intelectuais, políticos
e mesmo da elite econômica,
empresarial e agrária buscava
definir os rumos de um Brasil
que se modernizava alheio
ao que permanecia fora do
quadro, ou seja, àquilo que o
progresso sacrificava. “Este era
o lado traumático do atraso,
que trazia no bojo fendas sociais
e econômicas gravíssimas, em
larga medida decorrentes da
escravatura e de um capitalismo
de coronéis mal disfarçados
em liberais. E as iluminações
de Oswald foram enormes”,
aponta.

Tropicália
A antropofagia se (Fonte: Capa do álbum “Tropicália ou Panis et Circencis”. Divulgação)
difundiu e acabou repercutindo
e reverberando. O conceito Figura 1. A Tropicália era um movimento de inovações estéticas
adquire um sentido mais que propunha reinventar a música brasileira através da mistura
radical com a chamada geração de expressões.
tropicalista, no final dos anos
1960. Herdeiros do Concretismo
e do Neoconcretismo, esses
artistas consolidaram a “Se a antropofagia de
transformação no modo de ver “Hoje é a periferia que Oswald não se tornou vitoriosa
sobre as outras propostas
e sentir a arte propondo novas está dando a direção modernistas de interpretação
estruturas que possibilitassem
uma “posição crítica realmente da cena artística, da especificidade cultural
brasileira no momento de
universal, profundamente com personalidades sua elaboração ou nos anos
revolucionária, ao campo
das artes, do conhecimento, negras, indígenas, imediatamente seguintes, ela
foi talvez a proposta que mais
do comportamento”, como LGBTQIA+, asiáticas e impactou afirmativamente as
apontou Hélio Oiticica em artigo
escrito para o Correio da Manhã mulheres promovendo gerações futuras e o debate
artístico nacional, em especial
em setembro de 1968 (Figura 1). o debate.”
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a partir dos anos 1960”, aponta “Esses artistas
Couto. “Os poetas concretos,
Periferia
por exemplo, fizeram amplo Por muito tempo o enfoque criticam o conflito
uso da noção de antropofagia do modernismo se manteve na dos espaços
cultural, criada por Oswald de Semana de 22 e em São Paulo.
Andrade, e acabaram servindo Porém, pesquisas recentes urbanos socialmente
de ponte entre o trabalho vêm mudando esse quadro e excluídos e
deste e os tropicalistas, como mostrando a importância de
Caetano Veloso e Gilberto tudo o que o grande evento oprimidos, que,
Gil. Foi também retomada paulistano acabou deixando de portanto, os
por Hélio Oiticica em seu fora. Estudiosos, como Mônica
texto ‘Esquema Geral da Pimenta Velloso, historiadora e mantém afastados
Nova Objetividade’ (1967). No pesquisadora na Fundação Casa dos centros
teatro, a apresentação do ‘Rei de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro,
da vela’  no Teatro Oficina, apontam quem as relações entre artísticos.”
por José Celso Martinez centro e periferia eram mais
Corrêa, também foi um marco complexas do que se pensava por outros que também estão
na retomada das ideias de e que autores considerados de marginalizados e anunciam
Oswald”, conclui. menor importância também sua arte independentemente
Assim como o tiveram participação significativa de classe social, raça ou opção
modernismo buscou romper no desenvolvimento do sexual. Assim, constroem seus
com o “passadismo”, a modernismo no Brasil. próprios espaços, e concretizam
Tropicália pretendia romper com Como prova disso, em o que os primeiros modernistas
o “ufanismo” que dominava a novembro de 2007, diversas apenas idealizaram.
produção artística no auge da iniciativas periféricas paulistanas E hoje? Cem anos depois
ditadura militar. O movimento se reuniram em uma mostra da Semana de Arte Moderna,
propunha uma ruptura com o cultural coletiva intitulada novos nomes nas artes
que era feito até o momento, “Semana de Arte Moderna também têm buscado romper
especialmente na música, e um da Periferia”. Segundo seus paradigmas. Eles são de diversas
novo processo para a construção organizadores, o evento contou regiões do país, de diversos
das canções, repleto de com a participação de cerca gêneros e raças, e marcam sua
singularidades e complexidade. de 300 artistas e coletivos das presença com uma arte ousada.
A Tropicália era um movimento áreas de literatura, teatro, dança, Este é o caso do rapper indígena
de inovações estéticas que música e cinema, e contou Kunumi MC, do cineasta,
propunha reinventar a música até com a publicação de um roteirista e compositor Marco
brasileira através da mistura de “Manifesto da Antropofagia Dutra, da artista visual e bailarina
expressões — ou seja, criar algo Periférica”. Mais do que uma gaúcha Élle de Bernardini, do
novo a partir de algo já existente, referência à Semana de 1922, o artista indígena Denilson Baniwa,
como propõe a antropofagia. evento buscou rever discursos e da escritora paulista Aline Bei,
“A força e a originalidade de e atualizar o debate, trazendo a cujo estilo chama atenção pela
sua antropofagia — o Manifesto periferia para o centro (Figura 2). junção de prosa e poesia. Eles
e o que se produziu mais Através da arte, esses se contrapõem aos pintores Di
imediatamente em torno dela artistas criticam o conflito dos Cavalcanti e Anita Malfatti, ao
— produziram algo muito raro: espaços urbanos socialmente maestro Heitor Villa-Lobos e aos
uma irradiação de pensamentos, excluídos e oprimidos, que, escritores Menotti Del Picchia,
imagens, intuições, sugestões, portanto, os mantém afastados Mário de Andrade e Oswald
temas. A Tropicália é o exemplo dos centros artísticos. Desta de Andrade, que fundaram a
mais flagrante e mais conhecido forma, colocam em evidência Semana de 22, ao mesmo tempo
de ‘deglutição’ do muito que se todos os que estão “à que levam adiante seu legado
irradiou da palavra de Oswald de margem”, que são ouvidos de fazer arte legitimamente
Andrade”, aponta Ferraz.
Ciência&Cultura REPORTAGEM

* Chris Bueno é jornalista, escritora,


divulgadora de ciências, editora-
executiva da Revista Ciência & Cultura,
e mãe apaixonada por escrever
(especialmente sobre ciência).

(Fonte: Cartazes da Semana da Arte Moderna de 1922 e da Semana de Arte


Moderna da Periferia de 2007. Reprodução)

Figura 2. “Semana de Arte Moderna da Periferia” buscou rever


discursos e atualizar o debate, trazendo a periferia para o centro.

brasileira, rompendo com os


uma nação — mais diversa, mais
padrões e as tradições.
justa. Como escreve Oswald de
A antropofagia, enquanto
Andrade no primeiro aforismo
“revolução caraíba”, inverte o
do “Manifesto Antropófago”:
vetor colonial, valorizando o
“Só a antropofagia nos une.
que temos de mais brasileiro e
Socialmente. Economicamente.
original. Rumo ao centenário
Filosoficamente”. E o “Manifesto
da Semana de 22, ela ainda
da Antropofagia Periférica”
nos une na busca por essa
ecoa: “A Periferia nos une pelo
nacionalidade e construção de
amor, pela dor e pela cor.”

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