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(Fonte: “Cunhatain”, antropofagia musical, de Denilson Baniwa. 2018. Acrílica sobre tecido. Reprodução)
Cem anos após a Semana de Arte Moderna, novos nomes nas artes continuam buscando romper
paradigmas.
* Chris Bueno
Tropicália
A antropofagia se (Fonte: Capa do álbum “Tropicália ou Panis et Circencis”. Divulgação)
difundiu e acabou repercutindo
e reverberando. O conceito Figura 1. A Tropicália era um movimento de inovações estéticas
adquire um sentido mais que propunha reinventar a música brasileira através da mistura
radical com a chamada geração de expressões.
tropicalista, no final dos anos
1960. Herdeiros do Concretismo
e do Neoconcretismo, esses
artistas consolidaram a “Se a antropofagia de
transformação no modo de ver “Hoje é a periferia que Oswald não se tornou vitoriosa
sobre as outras propostas
e sentir a arte propondo novas está dando a direção modernistas de interpretação
estruturas que possibilitassem
uma “posição crítica realmente da cena artística, da especificidade cultural
brasileira no momento de
universal, profundamente com personalidades sua elaboração ou nos anos
revolucionária, ao campo
das artes, do conhecimento, negras, indígenas, imediatamente seguintes, ela
foi talvez a proposta que mais
do comportamento”, como LGBTQIA+, asiáticas e impactou afirmativamente as
apontou Hélio Oiticica em artigo
escrito para o Correio da Manhã mulheres promovendo gerações futuras e o debate
artístico nacional, em especial
em setembro de 1968 (Figura 1). o debate.”
Ciência&Cultura REPORTAGEM
a partir dos anos 1960”, aponta “Esses artistas
Couto. “Os poetas concretos,
Periferia
por exemplo, fizeram amplo Por muito tempo o enfoque criticam o conflito
uso da noção de antropofagia do modernismo se manteve na dos espaços
cultural, criada por Oswald de Semana de 22 e em São Paulo.
Andrade, e acabaram servindo Porém, pesquisas recentes urbanos socialmente
de ponte entre o trabalho vêm mudando esse quadro e excluídos e
deste e os tropicalistas, como mostrando a importância de
Caetano Veloso e Gilberto tudo o que o grande evento oprimidos, que,
Gil. Foi também retomada paulistano acabou deixando de portanto, os
por Hélio Oiticica em seu fora. Estudiosos, como Mônica
texto ‘Esquema Geral da Pimenta Velloso, historiadora e mantém afastados
Nova Objetividade’ (1967). No pesquisadora na Fundação Casa dos centros
teatro, a apresentação do ‘Rei de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro,
da vela’ no Teatro Oficina, apontam quem as relações entre artísticos.”
por José Celso Martinez centro e periferia eram mais
Corrêa, também foi um marco complexas do que se pensava por outros que também estão
na retomada das ideias de e que autores considerados de marginalizados e anunciam
Oswald”, conclui. menor importância também sua arte independentemente
Assim como o tiveram participação significativa de classe social, raça ou opção
modernismo buscou romper no desenvolvimento do sexual. Assim, constroem seus
com o “passadismo”, a modernismo no Brasil. próprios espaços, e concretizam
Tropicália pretendia romper com Como prova disso, em o que os primeiros modernistas
o “ufanismo” que dominava a novembro de 2007, diversas apenas idealizaram.
produção artística no auge da iniciativas periféricas paulistanas E hoje? Cem anos depois
ditadura militar. O movimento se reuniram em uma mostra da Semana de Arte Moderna,
propunha uma ruptura com o cultural coletiva intitulada novos nomes nas artes
que era feito até o momento, “Semana de Arte Moderna também têm buscado romper
especialmente na música, e um da Periferia”. Segundo seus paradigmas. Eles são de diversas
novo processo para a construção organizadores, o evento contou regiões do país, de diversos
das canções, repleto de com a participação de cerca gêneros e raças, e marcam sua
singularidades e complexidade. de 300 artistas e coletivos das presença com uma arte ousada.
A Tropicália era um movimento áreas de literatura, teatro, dança, Este é o caso do rapper indígena
de inovações estéticas que música e cinema, e contou Kunumi MC, do cineasta,
propunha reinventar a música até com a publicação de um roteirista e compositor Marco
brasileira através da mistura de “Manifesto da Antropofagia Dutra, da artista visual e bailarina
expressões — ou seja, criar algo Periférica”. Mais do que uma gaúcha Élle de Bernardini, do
novo a partir de algo já existente, referência à Semana de 1922, o artista indígena Denilson Baniwa,
como propõe a antropofagia. evento buscou rever discursos e da escritora paulista Aline Bei,
“A força e a originalidade de e atualizar o debate, trazendo a cujo estilo chama atenção pela
sua antropofagia — o Manifesto periferia para o centro (Figura 2). junção de prosa e poesia. Eles
e o que se produziu mais Através da arte, esses se contrapõem aos pintores Di
imediatamente em torno dela artistas criticam o conflito dos Cavalcanti e Anita Malfatti, ao
— produziram algo muito raro: espaços urbanos socialmente maestro Heitor Villa-Lobos e aos
uma irradiação de pensamentos, excluídos e oprimidos, que, escritores Menotti Del Picchia,
imagens, intuições, sugestões, portanto, os mantém afastados Mário de Andrade e Oswald
temas. A Tropicália é o exemplo dos centros artísticos. Desta de Andrade, que fundaram a
mais flagrante e mais conhecido forma, colocam em evidência Semana de 22, ao mesmo tempo
de ‘deglutição’ do muito que se todos os que estão “à que levam adiante seu legado
irradiou da palavra de Oswald de margem”, que são ouvidos de fazer arte legitimamente
Andrade”, aponta Ferraz.
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