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coleção comunicações e culturas

Cenas Musicais
Simone Pereira de Sá
Jeder Janotti Junior
(Orgs.)

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© 2013 Jader Janotti Junior
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Comunicações e territorialidades : Cenas Musicais/


Jader Janotti Junior (organizador) – Guararema, SP : Anadarco, 2013. –(Coleção comuni-
cações e cultura) 167p. : il

Bibliograia.
ISBN 978-85-60137-51-0

1. Comunicação e cultura – Cenas Musicais. 2. Mídia. 3. Redes. I. Título. II. Série.

CDD: 302.2098153
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Sumário

Apresentação....................................................................................... 05

Parte 1 - Enformando as Cenas

Cenas Culturais e as Consequências Imprevistas das Políticas Públicas 13


Will Straw

As cenas, as redes e o ciberespaço: sobre a (in) validade da utilização da


noção de cena musical virtual........................................................................ 29
Simone Pereira de Sá

Cenas, Circuitos e Territorialidades Sônico-Musicais........................... 41


Micael Herschmann

Cenas Musicais e Anglofonia: sobre os limites da noção de cena no


contexto brasileiro............................................................................... 63
Felipe Trotta

Parte 2 - Materializando as Cenas

Rock With The Devil: notas sobre gêneros e cenas musicais a partir
da performatização do feminino no heavy metal ................................ 85
Jeder Janotti Junior

Apontamentos Iniciais Sobre a Cena Witch House: a viralização de


um subgênero e suas apropriações...................................................... 103
Adriana Amaral

As Conveniências do Brega.................................................................. 123


Thiago Soares

Dinâmicas e Processos de Ressigniicação na Cidade do Rio: a cena jovem


no Arpoador........................................................................................ 147
Cíntia Sanmartin Fernandes

Sobre os autores................................................................................... 165

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Apresentação

Cena musical é um modo de construir cidades e músicas: mesmo que


essas sejam urbes imaginárias e as sonoridades agregados musicais disformes. A
noção de cena está diretamente relacionada aos modos como certos movimentos
culturais projetam mundos e rotulam afazeres musicais. Antes de ser um concei-
to, uma proposição acadêmica: para se entender a música em seus processos de
territorialização, as cenas surgiram das autorreferências que críticos, fãs, músi-
cos e produtores se valem para transformar espaços em lugares, sonoridades dis-
persas em uma noção de si tanto para quem circula nas cenas como para quem
as percebe de fora.
De uma maneira um pouco surpreendente, as cenas musicais, ao con-
trário do que poderia se pensar – quando a internet começava a tensionar os mo-
delos de produção e apropriação da música – não perderam sua energia. Se no
início do século XXI se imaginava que as cenas se transformariam em comunida-
des virtuais, o que se vê hoje, junto com vários processos de digitalização cultural,
é um aprofundamento das relações entre práticas da internet e presença da mú-
sica (e sociabilidades que gravitam em torno da mesma) na urbe.
Foi a partir destas questões e da solidiicação de uma rede nacional de
pesquisa – a qual trabalha com música e comunicação – que este livro começou
a emergir. Uma das grandes virtudes dos trabalhos aqui reunidos é que eles apon-
tam para um convívio próximo entre experiências musicais e o fazer acadêmico,
deixando de lado as velhas dicotomias entre teoria e prática ou entre academia e
produção cultural. Portanto, não há aqui concessões às totalidades acadêmicas
que, muitas vezes, apagam as contradições dos fenômenos culturais.
De modo geral, esta coletânea apresenta uma pequena mostra do quan-
to é multifacetado, plural e luído os contextos que envolvem cenas musicais. Nes-
te sentido, o pesquisador canadense Will Straw – grande responsável pelo modo
como o termo migrou do mundo do consumo da música para o universo dos
estudos culturais – sublinha que a noção de cena é bastante rica, tanto que é
largamente empregada pelos atores e especialistas, de modo circunstancial e bem
diversiicado.
Apesar de reconhecerem que o debate conceitual que envolve as cenas
musicais ainda se encontra em aberto, os autores que integram esta coletânea
aceitaram o desaio de participar desta publicação que certamente cativará os
interessados na dinâmica das cenas.

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Assim, na primeira parte, os textos dialogam entre si em prol de uma
relexão crítica que rejeita alguns lugares comuns. Assim, a oposição entre práti-
cas locais e materializações virtuais; os limites da aplicação do termo cena e sua
produtividade ampliada ao ser articulado a outras noções tais como gêneros mu-
sicais ou territórios urbanos são algumas das questões que permitem o aprofun-
damento do debate; enquanto que na segunda parte, predominam os estudos de
caso de cenas bastante distintas – tais como o feminino no heavy metal, a cyber-
cena witch house, o brega recifense e o espaço carioca do Arpoador. Cenas cujas
especiicidades também nos ajudam a problematizar os gêneros, sonoridades e
modos de circular na cidade.
Longe de uma divisão estanque, a divisão do livro em duas partes tem
como único motivo propor ao leitor uma chave de leitura, que obviamente pode
(e deve) ser subvertida, uma vez que todos os textos dialogam entre si em torno
de um mesmo problema, que é a utilização do conceito de cena nas pesquisa de
música e mídia. Parece então que antes de mais nada, as cenas são modos de
teatralizar o consumo cultural, territorializando espaços e identidades, a partir
de práticas estéticas, econômicas e sociais que, não fossem suas rotulações e au-
torreferenciações, poderiam passar por ruídos ou choques aos mais desavisados.
Claro que se uma das características mais marcantes das cenas musicais
são a produção de excessos de signiicação que funcionam como um efeito de
presença que destaca culturas sonoras de outros excessos. Pode-se pensar, pelo
menos dois pontos de entrada para os capítulos que se seguem:
a)As relações entre territorialidade e práticas culturais são modos inten-
sos de materializar a música no cotidiano contemporâneo.
b)Tal como as próprias cenas, as pesquisas só sobrevivem quando reco-
nhecem seus limites, ou seja, elas também são dinâmicas, lexíveis e em mutação.
Então como um mapa que é reescrito no próprio processo de leitura, os
textos aqui reunidos pretendem ser propulsores de diálogos críticos antes do que
deinições incontestes das cenas musicais. Caro leitor, sabemos que as possibilida-
des de leitura envolvem focos, interesse e, por que não, acasos. Só nos resta dese-
jar boa leitura, e boa viagem, diante de um livro que é fruto de um diálogo intenso
e profundo dos autores. E que esperamos que também envolva os leitores, tais
como as músicas que nos tocam.

Jeder Janotti Junior e Simone Pereira de Sá


25 de agosto de 2013

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Parte I

Enformando as Cenas

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Cenas Culturais e as consequências
imprevistas das políticas públicas1
Will Straw

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1
É importante observar que apesar da ideia de cenas culturais e seu aporte para compre-
ensão da circulação cultura no mundo contemporâneo ser extremamente atual, uma parte
dos exemplos e ilustrações podem causar estranhamento ao leitor, pois o projeto Culture
of Cities encerrou-se em 2005. Na época o professor Alan Blum, da York University era o
diretor do projeto de pesquisa. O relato do projeto fornecido aqui é inteiramente de minha
autoria.

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No espaço moderno, pessoas de diversas idades e origens se reúnem e
encontram uma espécie de álibi estético para estarem juntas em meio
ao conlito ou justaposição de estilos
AUGÉ, 1996, p. 177

Desde 2000, integro um projeto de pesquisa interdisciplinar que


estuda a cultura de quatro cidades. O projeto “The Culture of Cities” ( a
cultura das cidades) é inanciado pela Social Sciences and Humanities
Research Council of Canada (Conselho de Pesquisa das Ciências Sociais e
Humanidades do Canadá), sob a chancela do programa de Iniciativas de
Pesquisa Universitária Colaborativa (Major Collaborative Research Initia-
tives). Essencialmente, o projeto envolve acadêmicos de uma meia dúzia de
universidades canadenses e colaboradores de vários outros países. Durante
um período de cinco anos, nós nos dedicamos a análises comparativas entre
Toronto, Montreal, Dublin e Berlim. Em parte, as cidades foram escolhidas
com base no histórico da pesquisa e na qualiicação da equipe de pesqui-
sadores mas, sobretudo, porque elas partilham certas características que
incentivam a comparação. (Tanto Dublin, Montreal e Toronto, por exem-
plo, comprometeram-se com a revitalização das suas orlas marítimas nos
últimos anos).
O projeto está empenhado no diálogo interdisciplinar entre os seus
integrantes, que variam de acadêmicos claramente identiicados com as
humanidades (como historiadores da arte e pesquisadores de teatro) a so-
ciólogos que estudam questões como aglomerações urbanas. A capacidade
das cidades para manter a sua singularidade numa era marcada tanto pe-
los luxos culturais globais e pela ascensão dos modelos de desenvolvimento
cultural que ameaçam produzir uma nova uniformidade em cidades dife-
rentes é um interesse prioritário do projeto.
Uma série de conceitos tem servido como pontos de convergência
para as diversas atividades de pesquisa realizadas no projeto. Entre eles,
um dos mais produtivos é a noção de cena cultural. Cena é um termo que
prospera nas conversas diárias sobre as culturas urbanas mas que, até re-
centemente, permanecia à margem dos textos acadêmicos sobre as cidades.
Jornalistas, turistas e habitantes das cidades mencionarão a cena do Tem-
ple Bar em Dublin, a cena de música techno em Berlim ou a nova cena dos
bares de hotel em Montreal, contudo, a escala e o caráter do fenômeno ao
Will Straw

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qual se referem lutuará a cada uso. Cena constitui designa determinados
conjuntos de atividade social e cultural sem especiicação quanto à nature-
za das fronteiras que os circunscrevem. As cenas podem ser distinguidas de
acordo com a sua localização (como em a cena de St. Laurent em Montre-
al), o gênero da produção cultural que lhes dá coerência (um estilo musi-
cal, por exemplo, como nas referências à cena electroclash) ou da atividade
social vagamente deinida em torno da qual elas tomam forma (como nas
cenas urbanas de jogo de xadrez ao ar livre). Uma cena nos convida a ma-
pear o território da cidade de novas maneiras enquanto, ao mesmo tempo,
designa certos tipos de atividade cuja relação com o território não é facil-
mente demonstrada. (Por exemplo, como alguém poderia localizar a cena
de poesia anglófona de Montreal em um mapa?).
Em um dos primeiros trabalhos acadêmicos que discutiram o con-
ceito, Barry Shank (1994) sugeriu que uma cena pode ser deinida como
“uma comunidade excessivamente produtora de sentido” (p. 122). No inte-
rior de uma cena, airmou ele, “ produz-se muito mais informação semióti-
ca do que é possível analisar de modo racional” (p. 122).
As cenas adquirem a sua efervescência a partir da noção de que
a “informação” produzida dentro delas sempre constitui um excesso nas
pontas produtivas nas quais ela pode ser enquadrada, que a performativi-
dade característica de uma cena envolve a “demonstração de mais do que
Cenas Culturais e as Consequências Imprevistas das Políticas Públicas

é possível compreender” (p. 122). A tendência de uma cena a escapar à


compreensão não é (ou não é simplesmente) resultante da exclusividade
ou impermeabilidade que pode, em pontos diferentes, ser vista como aquilo
que a caracteriza. Uma cena resiste à decifração, em parte, porque ela mo-
biliza energias locais e aciona essas energias em múltiplas direções – para
frente, até as suas próprias reiterações mais recentes; para fora, até tipos
mais formais de atividade social ou empreendedora; para cima, até uma
coalescência mais ampla das energias culturais nas quais as identidades
coletivas tomam forma.
A noção de cena tem ressoado enfaticamente no projeto Cultura das
Cidades em função de uma variedade de perspectivas interdisciplinares que
ela consegue aproximar. Cena é um meio de falar da teatralidade da cidade
– da capacidade que a cidade tem para gerar imagens de pessoas ocupan-
do o espaço público de formas atraentes (ver, por exemplo, Blum, 2003,
pp. 165-167). Nesse aspecto, a cena captura o sentido da efervescência e

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exposição que são as características consagradas de uma estética urbana,
como tem sido elaborado na literatura, na música e no cinema. Aqueles
cujos principais interesses são as dimensões lúdicas ou experimentais da
cultura urbana se voltam para a cena como um conceito que expressa essas
dimensões em termos lexíveis. Cenas não são simplesmente o nome que
damos aos meios informais de organização do lazer, porém, como se fosse
possível entrar numa cena a partir de uma esfera de trabalho ou de transa-
ções comerciais radicalmente opostas. As cenas surgem a partir dos exces-
sos de sociabilidade que rodeiam a buscam de interesses, ou que fomenta
a inovação e a experimentação contínuas na vida cultural das cidades. O
desaio para a pesquisa é aquele de reconhecer o caráter esquivo e efêmero
das cenas, reconhecendo, ao mesmo tempo, o seu papel produtivo, e até
mesmo funcional, na vida urbana. As cenas são esquivas mas podem ser
consideradas, mais formalmente, como unidades de cultura urbana (como
subculturas ou mundos de arte), como uma das estruturas do evento por
meio das quais a vida cultural adquire a sua solidez. As cenas são uma das
infraestruturas da cidade para troca, interação e instrução.
As cenas artísticas, por exemplo, há muito interagem com estru-
turas tradicionais para a transmissão de interesses e habilidades criativas.
Antigamente, o ensino era transmitido por meio das relações mais formais
e hierárquicas entre mentor e aluno, mestre e aprendiz. O ensino formal
persiste no campo cultural, claro, institucionalizado nas faculdades de arte
ou nos planos de carreira que marcam as indústrias da música ou do cine-
ma. No entanto, os saberes exigidos para uma carreira no campo artístico
são cada vez mais adquiridos no movimento que adentra e atravessa uma
cena, conforme os indivíduos reúnem entre si os conjuntos de relações e
comportamentos que são pré-condições de aceitação. Aqui, como nas ce-
nas de maneira mais geral, as linhas entre as atividades proissionais e so-
ciais são borradas, pois cada tipo de atividade se torna o álibi para a outra.
Nas cenas, a relação “vertical” entre o mestre e o aluno é transformada
na relação espacial entre o fora e o dentro; o neóito avança “horizontal-
mente”, movendo-se das margens de uma cena em direção ao centro. Uma
variedade de mídias urbanas (dos jornais alternativos semanais aos círcu-
los de amizade on-line) agora funcionam como meios de orientação nesse
processo.
Por inúmeros motivos, as “cenas” mais comumente identiicadas
Will Straw

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são aquelas associadas à música. A produção e o consumo de música se
prestam com mais facilidade a uma sociabilidade urbana móvel do que o
envolvimento em outras formas culturais. Antoine Hennion observou a ín-
tima relação entre a música e múltiplas formas de mediação social: “ a ativi-
dade musical se inscreve nos corpos, nas coletividades, nas maneiras de se
fazer as coisas, no movimento (. . .)” (Hennion, 2000: 10; tradução minha).
A música oferece um pretexto para sair pela cidade, para consumir cultura
em momentos de interação coletiva que se enquadram na vida pública mais
difusa das cidades, nas mesas de bar e nas conversas públicas e coletivas.
Bruno Latour convidou aqueles que estudam a ciência a pararem
de perguntar como a sociedade “produz” ciência e, ao invés disso, começa-
rem a analisar as maneiras nas quais o trabalho cientíico produz relações e
texturas sociais especíicas (Latour, 2000). Do mesmo modo, podemos subs-
tituir a pergunta sobre como a cultura urbana “produz” cenas por como as
atividades que proliferam nas cenas produzem cultura urbana como um
conjunto de instituições e texturas. A cultura urbana exige investimentos
em espaço e outros recursos. Em contrapartida, esses investimentos envol-
vem uma ação transformadora em relação aos interesses econômicos, ten-
dências dominantes e múltiplas formas de políticas públicas e regulação.
Devemos aprender a ver essas ações como formas de experimentação cultu-
ral, por meio das quais o estado das coisas existente é testado e transforma-
Cenas Culturais e as Consequências Imprevistas das Políticas Públicas

do de maneira contínua.
A cena contemporânea de música pop-rock anglófona de Montreal,
por exemplo, louvada por sua vitalidade em uma série de relatos recentes da
imprensa (e.g., Perez, 2005; New York Times, 2005), estendeu-se espacial-
mente através do investimento de dinheiro e energias nos andares superio-
res até então escondidos dos bares ou casas noturnas da cidade ao longo do
Boulevard St. Laurent. Espaços alternativos como Jupiter Room, Korova,
Sala Rosa e o Mile End Cultural Centre constituem uma série de locais es-
pontaneamente associados para a atividade musical. Cada um desses esta-
belecimentos do piso superior, em compensação, é anexo a um bar ou casa
noturna que funciona próximo ao nível da rua e atrai uma clientela mais
variada demograicamente e comercialmente estável. A expansão contínua
dessa cena musical, para além dos bares com popularidade mais duradoura
rumo aos espaços subutilizados, tem produzido um espectro particular de
atividades nessa faixa urbana (Allor, 1997). Em alguns casos, a atividade

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comercial diária dos bares dos pisos inferiores serve para subvencionar o
uso mais regular dos espaços dos andares superiores para apresentações
ao vivo. Em outros, por meio do transbordamento de pessoas e consumo, a
organização regular de eventos especiais provoca o rejuvenescimento co-
mercial dos bares no térreo, que estavam à beira da obsolescência. O surgi-
mento do Sala Rosa como um espaço alternativo importante para a cultura
experimental em Montreal alterou o status do clube social e restaurante
espanhol situado logo no andar de baixo. Os eventos culturais do Sala Rosa
atraem uma nova clientela para uma faixa até então moribunda no Bou-
levard St. Laurent, além de ajudar a reconectar o clube espanhol com as
energias mais amplas da cidade. Os eventos culturais, por sua vez, adqui-
rem credibilidade a partir da associação com esse espaço comum de socia-
bilidade antigo e ligeiramente exótico.
Contudo, a música e outras formas culturais não são apenas álibis
para a interação social que ocorre nas cenas. A sua importância em relação
às cenas garante que o investimento comercial que produz novos espaços
ou rituais de socialização permaneça entrelaçada com uma história das
formas culturais, com as curvas de modismo e popularidade que concedem
à história cultural uma dinâmica particular. As cenas se deslocam de um
conjunto de lugares para outro, elas não se comprometem simplesmente
com o seu próprio movimento como fenômeno coletivo. No seu movimento
quase sempre agitado, as cenas inscrevem a história mais ampla das formas
sociais na geograia da cidade e em seus espaços.
Por um momento, podemos considerar o exemplo de Manchester
no Reino Unido. Grande parte do caráter cultural recente de Manchester
deriva do fato de que a cidade é habitada por uma das maiores populações
de estudantes entre todas as cidades na Europa. No decorrer dos anos 1980
e 1990, Manchester foi uma das cidades ocidentais mais importantes no
campo da música popular massiva, o berço altamente inluente dos hibri-
dismos entre o pós-punk e as formas de música dance. A relação entre essas
séries de conquistas pode parecer óbvia e direta, mas o caso não é bem esse.
Em qualquer lugar do mundo, as universidades criam formas de aprendi-
zagem e práticas expressivas que excedem a sua função planejada como
lugares para a transmissão de conhecimento formal e disciplinar. Previsi-
velmente, as universidades são locais importantes para a acumulação de
capital social e cultural. Nas cidades que circundam as universidades, essas
Will Straw

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formas de capital geralmente interagem de maneiras múltiplas com o que
Sarah Thornton (1995) denominou capital “subcultural”. O capital sub-
cultural agrega as habilidades interpretativas e a credibilidade garantida
pelo seu status de novidade, adquiridas pelas pessoas por meio do seu en-
volvimento com determinadas subculturas ( como aquela que gravitou em
torno das raves durante muitos anos).
O capital cultural das faculdades de belas artes, por exemplo, pode
ser revigorado pela proximidade permanente dessas faculdades em relação
aos centros de capital subcultural, a partir dos quais essas escolas atraem as
pessoas e as ideias que perpetuam o seu status de vanguardista (Goldsmiths
College em Londres, por exemplo). De maneira inversa, o capital subcul-
tural pode ser inluenciado (e intensiicado) por formas mais tradicionais
de capital cultural, como no caso quando a música local adquire um tom
cosmopolita e sagaz por meio do envolvimento de pessoas diversas com ní-
vel universitário (como tem sido o caso, em diferentes momentos, das cenas
musicais em Austin, Texas, Nova York ou Seattle, em Washington).
No caso de Manchester, não se tratou simplesmente da vida uni-
versitária produzida como um dos seus desdobramentos econômicos, mas
de níveis de consumo e gastos que permitiram o lorescimento das insti-
tuições de atividade musical local (bares, casas noturnas, lojas de discos,
etc.). Podemos perguntar, por exemplo, como as formas e sentidos da mú-
Cenas Culturais e as Consequências Imprevistas das Políticas Públicas

sica de Manchester tomaram forma em meio aos conlitos de classe social


e diferença educacional que a condição ambígua da cidade como capital
dos estudantes e centro industrial decadente ajudou a fomentar. Podemos
observar, também, que a copresença da atividade universitária e cultural
levou Manchester a se tornar uma das principais incubadoras das novas
políticas culturais urbanas da década de 1990. Os alunos e jovens acadê-
micos eram atraídos pela vida cultural da cidade. Em contrapartida, alguns
desses indivíduos ajudaram a transformar determinadas unidades acadê-
micas em centros inovadores de estudo sobre as novas políticas urbanas
(por exemplo, o Institute for Law and Culture da Manchester Metropolitan
University). A relexão sobre a atividade cultural que transbordava ao re-
dor deles foi reabsorvida pela comunidade de maneiras que intensiicaram
o valor daquela comunidade,contribuindo para a imagem mitológica de
Manchester tanto como um caso especial e um modelo mais amplamen-
te aplicável para a política urbana. Num sentido bastante real, a cidade se

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tornou uma “comunidade excessivamente produtora de sentido”, gerando
ideias e energias que, com o passar do tempo, ela mal foi capaz de conter.
Uma lição do exemplo de Manchester é que números altos de pesso-
as criativas em atividade nas bordas de instituições formais geram explosões
inesperadas de inovação criativa. Os historiadores fornecem múltiplos exem-
plos das maneiras como o excedente de população e oportunidades formais
limitadas têm desenvolvido importantes momentos culturais. Jerrold Siegel
sugere que um rápido aumento na taxa de natalidade entre a classe média
francesa do século XVIII expulsou um grande número de jovens das prois-
sões burguesas (que se tornaram superlotadas) rumo aos espaços marginais
da boemia parisiense. Nesses espaços, os jovens expressavam a sua margi-
nalidade com excêntricos estilos de vida e nas novas linguagens artísticas da
revolta (Siegel, 1986, p. 19). Philip Nord (1986) argumentou que os excessos
do nacionalismo anti-Dreyfuss na França, no inal do século XIX, deve parte
das suas energias a uma crise de superprodução da indústria de livros, que
impulsionou dúzias de escritores parisienses desempregados a se dedicarem
ao jornalismo para ganhar a vida, promovendo-se ao embarcar na onda de
sensacionalismo político da época. Richard Candida Smith (1995) localizou
as raízs da geração Beat numa “superprodução” de poetas e escritores nos
Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial, quando uma lei de 1944,
mais conhecida como G. I. Bill, estimulou ex-soldados a estudarem redação
criativa em números que excederam a capacidade dos mercados literários
para absorver a demanda. As cenas beatnik locais surgiram, em parte, como
respostas ao problema quanto a onde e como essas energias criativas pode-
riam encontrar um meio para se expressar.
Mais recentemente (e no contexto do projeto A Cultura das Ci-
dades), Geoff Stahl (2001) demarcou os modos como grande número de
jovens anglófonos, atraídos pelos aluguéis baratos da Montreal dos anos
1990 e a tranquilidade do estilo de vida boêmio, produziu uma cena musi-
cal cuja inluência é desproporcionalmente alta em comparação aos núme-
ros de pessoas envolvidas. Esses anglófonos, a maioria originária de outros
lugares e muitos dos quais não falam francês luentemente, habitam uma
cena que sobrevive, em parte, porque as empresas que mais provavelmente
lhes ofereceriam trabalho em inglês são de caráter cultural Essas empresas
incluem a Canadian Broadcasting Corporation (rede pública de emissoras
de rádio e TV), os jornais alternativos semanais Mirror e Hour, e as uni-
Will Straw

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versidades anglófonas — instituições que oferecem formas de apoio inan-
ceiro informal para uma cena musical experimental, servindo, através dos
seus mandatos culturais, para ampliar a relevância daquela cena. Não é
por acaso, sugere Stahl, que Brave New Waves, que o inluente programa
de música de vanguarda na madrugada da CBC Radio, esteja baseado em
Montreal.
Na maior parte do tempo, as cenas tomam forma nas bordas das
instituições culturais capazes de absorver e canalizar apenas parcialmen-
te os conjuntos de energia expressiva que se formam na vida urbana. Do
mesmo modo como baseiam-se no excesso de pessoas, as cenas podem ser
vistas como maneiras de “processar” a abundância de artefatos e espaços
que sedimentam as cidades no decorrer do tempo. As subculturas musicais
“exóticas” da segunda metade dos anos 1990 dedicaram-se à coletar e exi-
bir em público os discos de vinil de “música de elevador” (easy listening)
que se acumularam durante trinta ou quarenta anos nos brechós e lares.
Colecionadores e comerciantes participaram do deslocamento des-
ses discos de lugares onde o seu valor não era reconhecido para as casas
noturnas que organizavam noites temáticas onde esses discos eram toca-
dos, ou para lojas especializadas nas quais eram revendidos como objetos de
interesse para apreciadores e renovado valor econômico. Como as lojas de
roupas usadas ao longo da faixa de Mont-Royal em Montreal ou as lojas na
Cenas Culturais e as Consequências Imprevistas das Políticas Públicas

Rue Amherst que se especializou em utensílios domésticos do pós-guerra,


as cenas tomam forma quando interesses especializados estimulam formas
modestas de empreendedorismo e comunidades de interesse sociáveis. Des-
de a metade dos anos 1970, as cenas que cercavam a música disco e as for-
mas sucessoras de música dançante têm se organizado, em parte, em torno
da importação, venda, manufatura e exibição pública de um determinado
artefato especializado, o single de vinil de doze polegadas. Quanto a isso,
as cenas se formam em relação ao que Gaonkar & Povinelli chamaram de
“bordas das formas”, as reuniões de coisas, lugares, tecnologias e artefatos
onde as pessoas se deslocam (Gaonkar and Povenilli, 2003: 391).
Parte da minha própria pesquisa se concentra em uma cena musi-
cal mais antiga em Montreal, que loresceu na década de 1970 no interior
e no entorno da cultura das discotecas. Em meados dos anos 1970, o ramo
da discotecas expandiu signiicativamente em Montreal, como na maioria
das outras cidades em todo o mundo ocidental, uma consequência da popu-

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laridade dos novos estilos musicais híbridos (que se tornaram conhecidos
coletivamente sob o rótulo disco). Em Nova York, o crescimento da indústria
das casas noturnas durante o período foi considerado um fator preponde-
rante na revitalização da economia do centro da cidade (Billboard, 1979b).
Durante alguns anos, Montreal, foi considerada pela indústria fono-
gráica como um dos três maiores mercados e centros de produção de música
disco no mundo ocidental (depois de Nova York e Londres). O papel chave da
cidade nesse momento cultural foi o resultado de inúmeros fatores.
O primeiro fator foi o caráter francófono de Montreal que, segun-
do alegações, tornava a música rock menos predominante como forma de
música popular massiva em Toronto ou nas cidades norte-americanas (ver,
para vários relatos, Billboard, 1977a, 1977b, 1977c, 1979a). Como conse-
quência, os gostos musicais dos habitantes de Montreal eram considerados
mais tolerantes e diversiicados, tornando a cidade, portanto, mais aberta
aos estilos emergentes do tipo que se ouvia nas discotecas. Em segundo lu-
gar, a regulação menos rigorosa das vendas de álcool e os horários de fecha-
mento em Quebec (em comparação com o restante do Canadá e partes dos
Estados Unidos) há muito haviam transformado Montreal numa capital da
vida noturna. As discotecas dos anos 1970, assim, perpetuaram antigas
tradições e mitologias que deinem Montreal como um lugar privilegiado
para beber e dançar. Enim, a cultura disco em Montreal possuía raízes re-
levantes em inúmeras comunidades linguísticas e étnicas, atravessando a
fronteira entre o inglês e o francês e atraindo, em um grau signiicativo,
membros das populações nem anglófonas ou francófonas (tais como aque-
las de origem italiana).
Como uma forma cultural, a música disco estava menos obviamen-
te presa à linguagem falada como uma forma expressiva do que a músi-
ca rock ou as tradições da chanson. A música disco se caracterizou pelas
longas passagens instrumentais (sem letra) e pelas letras frequentemente
inconsequentes. As suas estruturas rítmicas misturavam elementos afro-
-caribenhos, latinos, das big bands e até formas musicais mediterrâneas.
Embora todas as formas musicais sejam capazes de gerar públicos de dife-
rentes coalizões de gosto e população, o público que cercava a música disco
era atipicamente complexo e singular no contexto de Montreal.
Bruce Willems-Braun (1994) escreveu que os festivais urbanos
marginais “desestabilizam e reformulam os múltiplos discursos que organi-
Will Straw

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zam a cidade” na mesma medida em que servem para reairmar os sentidos
mais duradouros de determinados locais urbanos (p. 91). As discotecas do
centro de Montreal na década de 1970 atraíram novas misturas de popu-
lação relativamente novas (proissionais francófonos por volta dos 30 anos
de idade ao lado de garotos anglófonos frequentadores das boates, gays
mesclados aos casais heterossexuais, imigrantes hispânicos e socialites de
Westmount) de maneiras que podemos considerar desestabilizadoras. Ao
mesmo tempo, como em Nova York e inúmeras outras cidades, as discote-
cas conirmaram uma antiga noção de que o centro urbano é um lugar de
prazeres quase ilícitos e promiscuidade social. O seu sucesso em meados dos
anos 1970 sedimentou a base para o que agora se percebe como uma cul-
tura de casas noturnas permanente na maioria das cidades ocidentais. A
persistência da cultura durante as duas últimas décadas pressionou aque-
les envolvidos na produção e reforço da política cultural urbana a reconhe-
cerem a importância das economias noturnas.
A cultura disco de Montreal da década de 1970 foi uma cena em
parte em virtude da intensa teatralidade do público que a rodeava; ela era
celebrada e comentada nas colunas especializadas sobre a vida noturna
nos jornais e programas de televisão. Sobretudo, no que nos interessa, a
cultura disco em Montreal produziu novas formas de intermediação cul-
tural, empreendedorismo em pequena escala e colaboração entre redes so-
Cenas Culturais e as Consequências Imprevistas das Políticas Públicas

ciais e proissionais que se formaram nas margens da indústria fonográica


predominante. No cerne desses processos havia a igura do disc jockey de
casa noturna — uma igura que mal existia uma década antes, mas que se
tornou central para a cultura da discoteca urbana. Numa deinição estrita
da proissão, os disc jockeys de casas noturnas eram aqueles indivíduos que
escolhiam os discos que seriam tocados nas boates e desenvolviam a habi-
lidade de trocar um disco pelo outro sutilmente. Com o passar do tempo,
porém, a aptidão dos disc jockeys para julgar a reação do público aos discos,
e a sua coniança nas gravações que circulavam no underground interna-
cional, transformaram-nos em intermediários em um conjunto complexo
de processos culturais e comerciais. Os disc jockeys se tornaram ativos na
importação de discos para Montreal, vendendo-os em lojas especializadas
(as quais, em muitos casos, eles mesmos abriam e administravam) e comen-
tando sobre eles em publicações proissionais. Por meio dessas atividades,
os disc jockeys se tornaram intermediários importantes entre as gravado-

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ras que buscavam capitalizar a febre da disco e os frequentadores de casas
noturnas que eram considerados compradores de discos em potencial, mas
cujos gostos eram difíceis de monitorar. Por volta do inal dos anos 1970,
as gravadoras contratavam disc jockeys para produzir versões remixadas
de canções que seriam executadas nas discotecas. Conforme desenvolviam
habilidades para remixar, os disc jockeys se encorajavam cada vez mais a
criar as suas próprias gravadoras, produzindo álbuns de música disco fora
das estruturas da indústria musical dominante. As mesmas redes que de-
ram acesso aos disc jockeys aos discos de outras partes do mundo (de Miami
ou Nova York, por exemplo) serviram para difundir os seus próprios discos
fora de Montreal. No inal da década de 1970, os discos de música dance de
Montreal eram vendidos em grande número em toda a América do Norte e
na Europa ocidental.
No inal dos anos 1970, a faceta pública da música disco de Mon-
treal – as casas noturnas e seus frequentadores – mudou mais ou menos
de acordo com os estilos internacionais que rapidamente se desenvolviam
quanto à decoração das boates e vestimentas dos frequentadores. Os ele-
mentos mais invisíveis dessa cena eram aqueles por meio dos quais os disc
jockeys entrelaçavam vários elementos do aparato da música disco: a aqui-
sição e adaptação de discos aos gostos locais, os relatos para as gravadoras
sobre o sucesso ou fracasso de discos entre os frequentadores, e a canali-
zação das suas próprias habilidades para a produção de novas gravações.
Ao agrupar os artefatos materiais e as informações necessárias para o seu
ofício, os disc jockeys traçaram linhas de conexão entre o local e o interna-
cional, e entre vários tipos de atividade comercial (importação de discos e
revenda, a imprensa especializada, emissoras de rádios, e assim em diante).
Talvez, de maneira mais relevante, os produtores de música dance radica-
dos em Montreal importaram faixas instrumentais de estúdios de gravação
no sul dos Estados Unidos e acrescentaram novos vocais, quase sempre em
francês. Ao fazê-lo, eles desenvolveram formas de colaboração internacio-
nal em uma indústria de escala muito pequena. Ao mesmo tempo, os disc
jockeys tinham participação ativa na transformação do seu próprio capital
subcultural em formas mais predominantes de veneração cultural.
Os disc jockeys de Montreal organizaram premiações de música
disco ou apresentavam programas semanais sobre música disco, todos eles
transmitidos pelas emissoras de televisão locais.
Will Straw

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Assim como as cenas locais de teatro ou skatismo, a cena de mú-
sica disco de Montreal da segunda metade do anos 1970 não foi o objeto
de qualquer política cultural formal, e sim desenvolvida por múltiplas for-
mas de regulação e incentivo público. No caso da disco, isso incluía: leis
para vendas de álcool, regulações de zonas municipais e regulações para
exibições públicas que controlavam o uso de gravações musicais como en-
tretenimento, as regulações canadenses de conteúdo para encorajar a exe-
cução de música canadense (ou música em francês), regulações de tarifas
de importação para os discos estrangeiros, acordos entre as casas noturnas
e sindicatos de músicos locais e assim em diante. Generalizando um pou-
co mais, a cultura disco de Montreal dependia de uma base demográica
que era ela mesma o produto de leis e tendências de imigração, regulação
linguística e políticas educacionais que transformaram Montreal na base
de quatro grandes universidades. Devemos somar a isso aquelas políticas e
tendências econômicas que tornaram o declínio da vida noturna no centro
de Montreal muito menos dramática nos anos 1970 do que para outras
cidades norte-americanas.
Embora seja verdade que talvez jamais sejamos capazes de traçar
um quadro analítico estável em torno de uma cena cultural, capturando-
-a com irmeza para subdivisão e análise, não é menos verdadeiro que as
políticas que coniguram as formas culturais urbanas quase nunca são en-
Cenas Culturais e as Consequências Imprevistas das Políticas Públicas

contradas exatamente onde se procura por elas. As discussões sobre polí-


tica cultural em Manchester mencionarão o luxo de estudantes como um
desaio à segurança pública, mas quase nunca perceberão o prédio das uni-
versidades (e a criação de um sistema uniforme de ensino para a União Eu-
ropeia) como uma intervenção altamente efetiva nas cenas musicais locais.
Do mesmo modo, ninguém imaginaria que o projeto de iniciativas locais do
governo canadense para o plano de emprego de jovens no início dos anos
1970 teria, como um dos seus efeitos mais duradouros, o desenvolvimento
da rede canadense das galerias de arte sem ins lucrativos administradas
pelos próprios artistas, instituições que ainda são âncoras importantes para
as cenas artísticas locais. As políticas públicas de todos os tipos ajudam a
formar os espaços nos quais as cenas culturais surgem como momentos da
vida coletiva de uma cidade. As cenas aproveitam esses espaços ativamente
na sua própria busca incansável e criativa por oportunidades.

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Referências:

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Will Straw

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As cenas, as redes e o ciberespaço:
sobre a (in)validade da utilização da noção de
cena musical virtual

Simone Pereira de Sá

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A noção de cena musical – popularizada a partir do trabalho de
Straw nos anos 90 – tem se demonstrado uma produtiva porta de entra-
da para a abordagem das dinâmicas de sociabilidade, afeto e gregarismo
que envolvem a música. Utilizada com diferentes acepções por aqueles que
compartilham laços e afetos a partir da paixão por um gênero musical, pe-
los jornalistas dos cadernos culturais ou por pesquisadores acadêmicos, ela
tornou-se uma lexível categoria para lidar com diferentes expressões das
redes musicais que se espalham pelo tecido urbano e que lidam com a mul-
tiplicidade de informações, com o dinamismo dos laços afetivos e com as
múltiplas alianças construídas em torno da música.
Tratando-se de uma metáfora espacial, sua articulação com as di-
mensões concretas das cidades; ao mesmo tempo que as dinâmicas entre
cenas locais e globais parece ser um de seus pontos fortes, tais como as
relexões em torno da cena do manguebeat (Lima; 2007); do metal nacio-
nal (Janotti: 2012; Santos; 2012), da música eletrônica brasileira (Sá et al;
2008; Garson;2009) – dentre tantos outros exemplos de estudos sobre o
tema nos revelam.
Entretanto, é fato de que parte importante da experiência de frui-
ção musical e da articulação dos afetos dos fãs de gêneros e estilos musicais
ocorre, na atualidade, nas redes digitais da internet, desaiando os pesqui-
sadores a deslocarem o uso da noção para este novo ambiente. É o caso de
Bennet e Peterson (2004), que propuseram uma tipologia das cenas a par-
tir da sua organização em cenas “locais, translocais e virtuais”.
Contudo, a relexão não me parece esgotada, uma vez que na ti-
pologia de Bennet e Peterson ocorre uma simpliicação do problema e dos
desaios que o ambiente virtual vai trazer para as cenas, conforme discuto
a seguir.
Buscando dar conta desta complexidade, propus anteriormente,
em diálogo com Straw, a seguinte deinição de cenas musicais:

“(...)entendemos que a noção de cena refere-se: a) A um ambiente local


ou global; b) Marcado pelo compartilhamento de referências estético-
-comportamentais; c) Que supõe o processamento de referências de um
ou mais gêneros musicais, podendo ou não dar origem a um novo gênero;
Simone Pereira de Sá

d) Apontando para as fronteiras móveis, luidas e metamóricas dos gru-


pamentos juvenis; e) Que supõem uma demarcação territorial a partir de
circuitos urbanos que deixam rastros concretos na vida da cidade e de cir-

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cuitos imateriais da cibercultura, que também deixam rastros e produzem
efeitos de sociabilidade; f) Marcadas fortemente pela dimensão midiática.
(Sá; 2011, pg.157)

Partindo deste contexto, a proposta deste texto é a de dar continui-


dade ao debate sobre a noção de cena musical virtual, buscando entender
a articulação entre os circuitos urbanos e os circuitos imateriais das cenas.
Minha premissa é a de que o diálogo com aspectos da Teoria das Materiali-
dades e da Teoria Ator-Rede pode contribuir para a discussão, avançando
para além da problemática tipologia de Bennet e Peterson.
Para tanto, torna-se obrigatória, primeiramente, a retomada do de-
bate de Will Straw em torno da noção, que funda a discussão; articulando-
-a ao trabalho de Bennet e Peterson e sua tipologia das cenas. Na segunda
parte, encaminho alguns argumentos sobre a forma como a noção de cena
virtual pode ser complexiicada – e talvez ultrapassada - à luz das teorias
supra mencionadas.

Cenas musicais: entre o local e o virtual

O contexto para o surgimento da noção de cena musical, propos-


ta por Will Straw, é o cenário dos anos 90, quando a noção de hibridismo
torna-se hegemônica para explicar agenciamentos culturais de ordens di-
versas; e onde a tensão entre movimentos localistas de resistência à ordem
global e outros de airmação da ordem cosmopolita complexiica-se. Apro-
priando-se do termo primeiro utilizado pelo jornalismo, Straw baseia-se em
Shanks para propor a noção em oposição à de comunidade musical. Assim,
se a comunidade deine tradicionalmente um grupo de composição rela-
tivamente estável, cujo envolvimento com a música toma a forma da ex-
ploração de idiomas musicais enraizados geográico-historicamente; a cena
nos remete a um grupo demarcado por um espaço cultural onde coexiste
uma diversidade de práticas musicais que interagem de formas múltiplas,
As cenas, as redes e o ciberespaço

através de diferentes trajetórias de troca e fertilização. (Straw; 1991)


Nesta direção, a noção atua como uma metáfora lexível que permi-
te ao pesquisador lidar com a multiplicidade de novas expressões musicais,
captando a forma como as comunidades de gosto lidam com o luxo e o
excesso informacional, sem a rigidez que a noção de subcultura, atrelada
a discussões de classe e cultura parental, apresenta; nem a excessiva le-

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xibilidade de conceitos pós-modernos tais como neo-tribos ou canais, que
se tornam pouco operativos por ignorarem a centralidade dos processos
de classiicação e suas disputas simbólicas como elementos de construção
identitária e de sociabilidade.(Sá et al; 2008; Garson; 2009)
Contudo, para seus críticos, esta mesma lexibilidade transforma-
-se no maior obstáculo à sua utilização, uma vez que a cena tanto pode ser
usada para descrever uma unidade mínima de análise, como um bar e seus
frequentadores, como referir-se a um cenário abstrato e global tal como a
cena mundial de heavy metal, por exemplo.
Buscando revisar e responder às críticas em seu segundo trabalho
sobre o tema, Straw (2006) nos dá pistas de que a dimensão espacial da
metáfora é que pode circunscrevê-la de maneira menos abstrata, reiterando
que cenas são espaços geográicos especíicos para a articulação de múltiplas
práticas musicais.
Explorando esta dimensão espacial, a noção torna-se útil para
o pesquisador cartografar as sociabilidades e regiões de uma cidade, ao
mesmo tempo que suas interconexões, apontando para a organização das
comunidades de gosto através dos espaços metropolitanos. Assim, a cena
pode envolver, segundo ele, desde a congregação de pessoas num lugar ou
o movimento destas pessoas entre este lugar e outro; até os espaços e ati-
vidades microeconômicas que permitem a sociabilidade e ligam esta cena
à cidade; ou ainda o fenômeno maior e mais disperso geograicamente do
qual este movimento é um exemplo local (2006;6) .
Nesta direção, ela sugere “os momentos em que a sociabilidade
a princípio subterrânea e sem objetivos, tal como um agrupamento num
café, se adensa, criando identidades de grupo a partir de conversas e objeti-
vos comuns; e sublinha a multiplicidade de atividades e a mobilidade de um
grupo, cujo movimento, a partir de articulações transversais, promove um
realinhamento das cartograias da cidade.” (Sá; 2011, pg. 155)
Além disto, a expressão lida bem com os luxos entre o local e o
global, circunscrevendo uma unidade local sem se esquecer de seus vasos
comunicantes com a esfera global. Assim, à noção de comunidade, a cena
acrescenta dinamismo; e à vida urbana cosmopolita, ela reconhece “uma
vida interior e secreta” constituída por movimentos microscópicos e locais
Simone Pereira de Sá

dos grupos que ainda não ganharam visibilidade espetacular ou midiática.


(Straw; 2006: pg.6)

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Um outro aspecto que também já apontei, a im de destacar a ren-
tabilidade espacial da noção é o fato de que as cenas apontam para espa-
ços praticados, no sentido proposto por Certeau (1994). Ou seja, elas apro-
priam-se de pedaços da cidade para suas práticas, criando circuitos con-
cretos marcados pelos rastros dos agrupamentos em movimento e assim,
enfatizando a efervescência das cidades enquanto espaços sociais vívidos e
produtivos.
Finalmente, também cabe destacar o fato de que as cenas não só se
apropriam de espaços da cidade mas são por eles moldadas. Assim, é o caso
de mútua afetação entre a geograia da cidade de Recife – sobretudo o man-
gue – e a cena manguebeat nos anos 90; ou das raves londrinas, que acon-
teceram em grandes galpões e fábricas nos subúrbios daquela cidade entre
inais dos anos da década de 1980 e início dos 90, uma vez que o perímetro
urbano da capital altamente ocupada tanto quanto sua rígida legislação
referente à ordem pública impedia este tipo de agregação.
Pelos argumentos acima explicitados, podemos perceber a clara
articulação da noção de cena com as territorialidades urbanas e com os
luxos das cidades globais.

Cenas locais, translocais e virtuais

Num esforço para atualizar a discussão sobre cenas para o contexto


dos anos 00, que se distingue do período anterior pelo crescimento da in-
ternet e da cultura musical experienciada através das redes digitais, Bennet
e Peterson organizaram uma coletânea sobre o tema, publicada em 2004.
Dividido em três seções, denominadas respectivamente cenas locais, cenas
translocais e cenas virtuais, o livro é aberto com uma apresentação dos au-
tores onde, além de contextualizarem a noção de cena a partir do trabalho
de Straw e defenderem seu uso para a compreensão de aspectos da sociabi-
lidade e da informalidade ligada aos grupamentos em torno da música, eles
propõem uma tipologia das cenas a partir de sua abrangência, chamando-
As cenas, as redes e o ciberespaço

-as de cenas locais, translocais e virtuais.


Na discussão, as cenas locais são deinidas como atividades sociais
ocorridas num espaço territorial e período de tempo delimitado, quando
um agrupamento de produtores, músicos e fãs se dão conta de seus gos-
tos musicais em comum, distinguindo-se a si mesmos de outros através do
uso da música e outros símbolos culturais. O foco do interesse musical pode

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ser um gênero “de fora”, porém apropriado, recombinado e desenvolvido
para representar a cena local. Além disto, embora focada na música, a cena
envolve outros aspectos de estilo de vida, tais como modos de se vestir, de
dançar, uso de drogas, política, etc.
As cenas translocais, por sua vez, seriam as cenas que se consti-
tuem a partir do contato regular dos membros de distintas cenas locais em
torno do mesmo interesse musical. “Estas nós chamamos de cenas trans-
locais, porque, ao mesmo tempo em que elas são locais, elas são também
conectadas com grupos de espíritos ains separados por milhas de distância
(2004:pgs.8/9)1. São pois, cena locais interconectadas, que “transcendem a
necessidade da interação face a face como requisito para o pertencimento”2
(pg.9) e que se comunicam através da troca de gravações, fanzines, ou pre-
sencialmente, nos festivais – tais como a cena de indie rock dos anos 80 ou
a dance music dos 90.
Finalmente, os autores deinem a cena virtual como aquela que se
utiliza da internet para sua existência. Assim, “tal como os participantes
das cenas translocais, os participantes das cenas virtuais estão separados
geograicamente; mas, à diferença deles, os participantes ao redor do mun-
do encontram-se reunidos em uma mesma cena possibilitada pela Inter-
net, tal como os fãs de Kate Bush ou de “alternative country music”3 (pg
10) estudados no volume em questão. Na discussão, os autores enfatizam a
importância dos fãs e sugerem que eles se mantém com maior controle da
cena através da internet, em salas de bate papo ou listas de discussão nas
quais o capital subcultural dos membros é exibido e medido por outros fãs.
A proposta de tipologia das cenas é uma das poucas tentativas de
sistematizar a discussão, incorporando o impacto da cultura digital no iní-
cio do novo século. Entretanto, construída antes da consolidação do modelo
da web 2.0 – baseado nas plataformas musicais e redes sociais – ela nos
parece pouco produtiva para lidar com a complexidade das articulações das
1
“These we call translocal scenes because, while they are local, they are also
connected with groups of kindred spirits many miles away”. Todas as traduções
são de minha autoria.
2
“[they} transcend the need for face-to-face interaction as a necessary require-
ment for scene membership.”
Simone Pereira de Sá

3
“Like the participantes in translocal scenes, participantes in virtual scenes are
widely separated geographycally, but unlike them, virtual scene participantes
around the world come together in a single scene-making conversation via the
Internet”.

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cenas no ambiente das redes virtuais na atualidade, uma vez que estabe-
lece fronteiras estanques entre as cenas off-line e “online” que não fazem
nenhum sentido na contemporaneidade, uma vez que uma cena virtual
como a do heavy metal, por exemplo, também airma-se ao redor do mun-
do através de conexões diversiicadas, ao mesmo tempo que possui aspectos
translocais (cena nórdica, argentina brasileira, sueca, etc.) e locais (cena de
Belo Horizonte, de Recife, do Rio, de Buenos Aires, Belém, etc.).4 Além disto
– e este é o meu maior incômodo com a perspectiva – eles ignoram a mate-
rialidade do meio digital, desconsiderando a mediação que a cultura digital
produz. Dito de outra maneira, minha premissa é a de que, ao se transpor-
tar para o ambiente digital, qualquer cena vai ser convocada a considerar
as especiicidades – estéticas, técnicas, econômicas - deste novo ambiente.
Trata-se, assim, de um processo altamente complexo, que pode deixar mar-
cas e transformar de maneira deinitiva a própria identidade de uma cena
local ou translocal. E estas considerações merecem maior aprofundamento,
conforme encaminhamos a seguir.

Embaralhando a tipologia de cenas locais,


translocais e virtuais

Tomemos um exemplo que pode colaborar para a nossa relexão e


que analisei em trabalho anterior. (Sá; 2012).
Trata-se da Batalha do Passinho: “desaio” entre jovens oriundos
dos territórios do funk em torno de coreograias elaboradas – que mistu-
ram passos do próprio funk com outros de gêneros tais como frevo, tango
e cultura pop - dançadas nas ruas das favelas cariocas, ilmadas em celula-
res pelos próprios participantes e disseminadas no Youtube. E que tal como
tantos outros fenômenos musicais contemporâneos, ganharam visibilidade
e reconhecimento ampliado a partir da rede social constituída através do
YouTube e dos celulares.
Cabe observar que, ainda que os passos misturem gêneros distin-
As cenas, as redes e o ciberespaço

tos, o fenômeno tem sido identiicado, seja pelos próprios participantes, seja
pelos observadores externos5, como mais uma manifestação da cena funk
carioca. E alguns detalhes dos vídeos, tais como as vielas das favelas, o traje

4
Conforme já comentaram Janotti Jr e Pires (2011)
5
Como, por exemplo, o cineasta Emílio Domingues, autor e diretor do documentá-
rio “ A Batalha do Passinho – o ilme” (2012)

32

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dos garotos também reforçam os elementos locais do Passinho.
Desta maneira, a deinição de Bennet e Peterson de cena virtual
como aquela que “reúne participantes ao redor do mundo” não faz ne-
nhum sentido neste caso, onde há um claro diálogo entre o local e o virtual.
No exemplo, a cena do Passinho pode ser visto, por um lado, como um pro-
longamento da cena que se reúne presencialmente na favela para dançar
funk, reforçando seus elementos de territorialização. Entretanto, “prolon-
gamento” não é uma boa deinição da relação entre a cena local e virtual
do Passinho, uma vez que os elementos técnicos e estéticos dos celulares e
do Youtube também atual no processo; e os dançarinos do Passinho desen-
volvem suas performances para serem vistas no YouTube.
Um segundo aspecto a embaralhar as categorias é o de que, ao ga-
nhar visibilidade através do Youtube, esta cena articula-se com outras. É
o caso da “dança do Treme”, no Pará, que também se articula a partir de
coreograias ilmadas por celulares e postadas no YouTube; e que tem assu-
mida inluência da cena funk do Passinho, conforme analiso em detalhes
do trabalho mencionado. (Sá; 2012) Ou seja, temos aqui uma cena que, na
tipologia de Bennet e Peterson, poderia ser pensada como translocal, mas
cuja translocalidade se organiza através da Internet.
Partindo deste exemplo, podemos facilmente entender que a ti-
pologia que distingue cenas locais, translocais e virtuais não se sustenta
enquanto categorias substancialistas, que funcionem separadamente ou
como dados a priori.6 Ao contrário, torna-se necessário uma análise mais
detida sobre a movimentação das cenas em ação, cruzando os territórios off-
-line e online; para, com muito cuidado, identiicarmos, a posteriori, quais
são os aspectos locais e translocais acionados a cada momento; e ao mesmo
tempo percebendo a forma como o ciberespaço reorganiza estas fronteiras
caso a caso, uma vez que o ambiente das redes digitais pode trabalhar no
sentido de fortalecimento das cenas locais ou transversais – como é o caso
do exemplo supracitado.

Das cenas como redes sócio-técnicas

Sintetizando o argumento acima apontado, minha premissa é a


Simone Pereira de Sá

de que o ambiente das redes digitais é elemento central – ou, nos termos
6
Para mais um exemplo das articulações entre cenas locais e globais, ver minha
análise da cena do funk carioca, em Sá (2007)

33

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da Teoria Ator-Rede, é mais um ator - para a construção da própria cena.
Contudo, a delimitação entre cenas locais, translocais e virtuais contribui
muito pouco para a compreensão destas dinâmicas, uma vez que elementos
locais ou translocais podem alorar no próprio trabalho de consolidação das
cenas no ambiente das redes digitais. Assim, caberia aprofundar ainda a
discussão em torno no entendimento da noção da internet como ambiente,
a im de evitar uma abordagem determinista sobre a questão. Para tanto,
passo a discutir aspectos das perspectivas das Materialidades e Ator-Rede
que dialogam com a presente discussão.

Da história material dos meios

Segundo Gumbrecht, a materialidade diz respeito a “tudo aquilo


que participa da produção de sentido, sem ser ele mesmo sentido” (GUM-
BRECHT, 2010). Assim, cabe remeter o leitor, primeiramente, à discussão
proposta inauguralmente por McLuhan (1973) e retomada pelo círculo de
Gumbrecht, que desloca a relexão sobre a mediação tecnológica do campo
hermenêutico, político e/ou ideológico em favor da atenção à materialidade
ou concretude de cada um dos suportes, meios ou tecnologias de comuni-
cação. O argumento a destacar é o de que todo ato de comunicação exige
um suporte material que exerce inluência sobre a mensagem, e, portanto,
os meios de comunicação não são neutros. Ao contrário, eles são elementos
ativos na constituição das estruturas, da articulação e da circulação de sen-
tido, imprimindo-se ainda nas relações que as pessoas mantêm com seus
corpos, com sua consciência e com suas ações.(FELINTO; 2001; FELINTO;
ANDRADE; 2005; SÁ; 2004)
Longe de uma posição determinista, que supõe o domínio da téc-
nica sobre a cultura, o que está em jogo nesta discussão é o entendimento
das especiicidades comunicacionais de cada um dos meios e tecnologias
de comunicação, percebendo-os como sistemas culturais complexos. Nesta
direção, minha posição no debate aproxima-se mais de um autor “cultu-
As cenas, as redes e o ciberespaço

ralista” como Raymond Williams (1975), quando, no seu trabalho sobre a


televisão, por exemplo, propõe abordá-la enquanto um sistema cultural que
articula de maneira tensa as categorias de tecnologia e cultura; do que de
autores da vertente criticada por determinismo tecnológico.
Indagar, portanto, quais são os mediadores que intervêm na cons-
trução das cenas no ambiente digital é um dos pontos que defendo como

34

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central para este entendimento complexo, em diálogo com aspectos da Teo-
ria Ator-Rede a seguir detalhados.
Primeiramente, a crítica que esta corrente teórica faz à “sociolo-
gia do social” –referidas como as correntes sociológicas que transformam o
social na instância coercitiva e superior, acabada e anterior aos indivíduos
tanto quanto a dimensão explicativa de todos os outros eventos, ao invés
do fato a ser explicado; não nos permitindo apreender as maneiras como as
conigurações sociais são concretizadas de diferentes maneiras nas práticas
cotidianas dos agentes, múltiplos e heterogêneos, em diferentes contextos
ou condições (CALLON &LAW, 1997; LATOUR, 1991a, 1991b, 2005).
Em oposição, a proposta da TAR é a de retomar as premissas de uma
outra vertente da sociologia que busca entender como a sociedade se torna
sociedade – ou seja, como as associações se constroem e quais os vínculos
que se estabelecem entre os atores de uma rede sócio-técnica, enfatizando
assim o caráter processual e performático das associações tanto quanto a
ênfase na relação entre os atores que atuam e alteram um agrupamento a
cada momento.
Neste sentido, as redes sócio-técnicas são constituídas por mate-
riais heterogêneos; e os atores (ou actantes) são entendidos como qualquer
agente que produza diferença – seja este um ator humano ou não-humano
– na coletividade, atuando como mediador na rede e deixando rastros.7
O segundo ponto da TAR a destacar trata da apreensão das redes
sócio-técnicas como produto de uma construção coletiva que não estabe-
lece hierarquias entre humanos e não-humanos; e onde qualquer desvio
num dos pontos produz diferença em toda a rede. Este aspecto da discussão
é fundamental para nosso argumento, uma vez que anula a hierarquia en-
tre sujeitos e objetos e possibilita o reconhecimento dos artefatos técnicos
como co-atores em qualquer rede estabelecida com humanos, uma vez que
eles agem sobre o coletivo como mediadores. 8 Um exemplo oriundo da cul-

7
Conforme a TAR, mediadores distinguem-se de intermediários a partir dos efei-
tos da ação de cada um: intermediários não produzem diferença numa rede, ao
contrário dos mediadores.
8
Esta discussão sintetiza-se em quatro “princípios” apontados por Callon e Law (1997)
Simone Pereira de Sá

em torno da TAR: a)As redes são materialmente heterogêneas b) Os atores e as redes


se equivalem c) Os atores e as redes são sempre “efeitos” de relações constituídas den-
tro das redes. Desta maneira, sua forma, conteúdo e propriedades não são ixas; mas
emergem e transformam-se na interação dos atores. d) A despeito do luxo e indetermi-
nação, as redes podem tornar-se mais ou menos duráveis e atingirem graus de estabili-
dade, cristalizando processos e relações sociais chamadas pela TAR de “caixas-pretas”.
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tura da música é o fato de que a entrada de um novo instrumento musical
– tal como a guitarra elétrica – desaia o coletivo anteriormente constituído
a se redeinir (pois samba com guitarra deixa de ser chamado de samba,
conforme demonstrou Jorge Ben com seu “sambalanço” ou “sambarock”)
e gera controvérsias, conforme bem ilustra a famosa “passeata contra a
guitarra elétrica”, ocorrida no Brasil no ano de 1967, que levou às ruas
músicos e intérpretes da MPB.
Um terceiro ponto relevante da discussão da TAR gira em torno
da noção de delegação (1991b), quando Latour sugere uma sociologia da
técnica menos preocupada com a distinção de atores humanos e inumanos
nas redes sócio-técnicas, reconhecendo que estas são redes materialmente
heterogêneas; e mais interessada em discutir a distribuição ou delegação de
tarefas dentro do processo.
Na sua perspectiva, qualquer artefato técnico tem características
antropomóricas uma vez que é um delegado, que desempenha atividades
ou tarefas designadas por humanos. Mais do que isto, um artefato técnico é
primeiramente desenhado por humanos, passando num segundo momen-
to a substituir a ação de humanos, para inalmente prescrever a ação de hu-
manos de certa maneira – ressaltando que o processo se dá em via de mão
dupla uma vez que os objetos também têm agência. Por mais paradoxal que
pareça, é, pois, através da relação com objetos que nos tornamos humanos;
e as tecnologias cristalizam processo sociais.
Assim, cartografar os rastros dos atores no seu trabalho mediador
de constituição das redes sócio-técnicas constitui a tarefa primordial do
pesquisador; que se torna, ele mesmo, mais um mediador ao identiicar e
fazer falar, através de seus textos, os diversos atores de uma rede, multipli-
cando os pontos de vista e as controvérsias.9
À luz deste debate, podemos inalmente problematizar a tipologia
proposta por Bennet e Peterson em torno das noções de cenas locais,
translocais e virtuais; e apontar para a necessidade de levarmos em conta a
materialidade do ambiente digital, que reconigura as fronteiras entre cenas
As cenas, as redes e o ciberespaço

locais e translocais de maneiras diversas, que devem ser analisadas caso


a caso. Propomos, portanto, à luz das teorias das Materialidades e Ator-

9
Sobre o tema, ver as discussões de Bruno (2012) e de Lemos (2012) sobre os
rastros digitais.

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Rede, entender as cenas musicais como redes sócio-técnicas constituídas
por atores – humanos e não-humanos – em intensa atividade através de
diferentes ambientes, cujos rastros cabe ao pesquisador cartografar.

Considerações finais

O presente trabalho buscou problematizar a noção de cena musical


virtual, entendida por autores tais como Andy Bennet e Richard Peterson
enquanto uma categoria que delimita certos grupamentos de amantes de
um gênero ou estilo musical reunidos na internet e que se distinguem das
cenas locais e translocais, restritas ao mundo off-line. Em oposição a esta
perspectiva cuja tipologia pode ser criticada por seu engessamento das ce-
nas em categorias estanques, proponho um diálogo com aspectos da Teoria
das Materialidades e da Teoria Ator-Rede, a im de enfatizar a relevância do
ambiente das redes digitais para a constituição das cenas; ao mesmo tempo
que as múltiplas articulações entre os elementos locais, translocais e virtu-
ais.
Assim, defendi que as cenas musicais podem ser melhor entendidas
enquanto redes sócio-técnicas, constituída por múltiplos mediadores que
atravessam incessantemente as fronteiras do mundo off-line e online.
Buscar os rastros a im de identiicar quem são os atores humanos
e não-humanos que constituem os coletivos musicais, como eles constroem
alianças e como os mediadores atuam, caso a caso, é o desaio necessário a
im de multiplicarmos as controvérsias em torno das cenas, atualizando o
debate iniciado por Straw nos anos 90 na direção das redes da atualidade.
Simone Pereira de Sá

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Simone Pereira de Sá

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Cenas, Circuitos e Territorialidades
Sônico-Musicais

Micael Herschmann

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Inicialmente é importante ressaltar que este artigo não se propõe a
defender o emprego de um determinado conceito em detrimento de outro.
Parte-se da irme convicção de que todo pesquisador deve ter autonomia
para decidir qual arcabouço conceitual e instrumental de análise são mais
uteis para o desenvolvimento de um determinado estudo. É importante
sempre sublinhar a relevância da liberdade acadêmica, frente às pressões
dos novos modismos e do conservadorismo acadêmico. O objetivo deste tra-
balho é subsidiar o debate teórico-metodológico que envolve o conceito de
cena, o qual é empregado largamente pelos pesquisadores que atuam na
interface da comunicação e da música no Brasil.
Adverte-se aos leitores que não se analisará detalhadamente aqui
a trajetória deste conceito, o qual foi cunhado pelo jornalismo cultural na
década de 1940, mas que apenas ganhou envergadura acadêmica mais
recentemente, na década de 1990, a partir da conceituação e empregos
propostos por Straw (1991)1. Entretanto, aos interessados recomenda-se
a leitura da seguinte bibliograia especializada, a qual oferece um histórico
mais completo: Olson, 1998; Stahl, 2004; Freire Filho, Fernandes, 2006;
Sá, 2011; Janotti Jr., 2011, 2012a, 2012b e 2012c; Straw, 1991, 2006;
Bennet, Peterson, 2004; Hesmondhalgh, 2005; Bennett, Kahn-Harris,
2004.
Ainda a título introdutório, é preciso que se enalteça o quanto este
debate em torno da noção de cena - proposto para ser problematizado nes-
ta publicação - é extremamente oportuno, na medida em que um número
signiicativo dos trabalhos apresentados nos eventos do campo da comuni-
cação pelos pesquisadores de música empregam este conceito, de maneira
ocasional ou de forma sistemática2.

Entre cenas, circuitos e cadeias produtivas.

Apesar de não ser o aspecto mais valorizado pelos investigadores


de música - quando empregam atualmente a noção de cena -, no conjunto

1
O termo foi cunhado por Straw na conferência intitulada “The music industry in
a changing world” e posteriormente publicada na revista Cultural Studies (Straw,
Micael Herschmann

1991).
2
Levantamento realizado pelo autor em alguns dos principais eventos da área no
país (tais como INTERCOM, COMPÓS, MUSICOM, COMUSICA e MUSIMIDI) e que
estão disponíveis nos anais dos anos de 2011 e 2012.

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de pesquisas deste tipo que vêm sendo realizadas no Núcleo de Estudos e
Projetos em Comunicação (NEPCOM) da Escola de Comunicação da UFRJ,
sob minha supervisão, têm se privilegiado ligeiramente o aspecto processual
associado a este conceito. Em sua primeira deinição, Straw articulou as no-
ções de campo de Bourdieu (1983), lógicas das mercadorias de Miége (1989)
e de práticas cotidianas de De Certeau (1994), buscando assim também res-
saltar mais precisamente as dinâmicas e processos. Ele mesmo reconhece ao
airmar que, ao cunhar esta noção, ainda nos anos de 1990 “(...) estava
preocupado tanto com o movimento e o desenvolvimento de circuitos de
estilo [que incluem as etapas de produção, circulação e consumo], quanto
com os tipos de mundos nos quais as pessoas viviam sua relação com a mú-
sica” (Janotti Jr., 2012c, p. 9). Ou seja, na primeira deinição este autor pro-
pôs considerar a cena como um determinado “contexto”, no qual práticas
musicais coexistem, interagindo umas com as outras, dentro de uma varie-
dade de processos de diferenciação e ailiações, de acordo com trajetórias
variantes de mudança e fertilização mútua (Straw, 1991). Convergente a
estes argumentos, Freire Filho e Fernandes ressaltam que este autor estava
mais interessado em analisar as alianças e coalizões ativamente criadas e
mantidas através das quais “(...) são articuladas formas de comunicação
que contribuem para delinear fronteiras” (Freire Filho, Fernandes, 2006,
p. 30). Portanto, a ideia da cena como um “contexto” ou “espaço cultural”
já estava presente, mas não era propriamente enfatizada: Straw, como (ele
mesmo airma) discípulo de Bourdieu, estava mais preocupado com as di-
nâmicas do “campo” as quais envolviam os indivíduos em cada cena musi-
cal (assim buscava privilegiar a análise das tensões e articulações entre os
atores que gravitam na cena) e que garantem (ou não) a continuidade das
Cenas, Circuitos e Territorialidades Sônico-Musicais

mesmas (Straw, 1991, Janotti Jr., 2012)3.


Portanto, nas pesquisas desenvolvidas na primeira década do sécu-

3
Herschmann e Fernandes oferecem algumas pistas para se compreender que as-
pectos seriam importantes para que uma cena tenha capacidade de se reproduzir:
a) espaços signiicativos para os gêneros musicais e os atores envolvidos na mídia
tradicional; b) existência de blogosfera e redes sociais dando visibilidade as iniciati-
vas da cena; c) realização de concertos na rua e/ou em casas de espetáculo; d) para
além dos concertos, a existência de espaços para trocas interpessoais onde mani-
festam sociabilidades e afetos; e) presença de uma produção fonográica regular; f)
interesse da critica e do jornalismo cultural na sua divulgação; g) e a estruturação
de circuitos de festivais e eventos (Herschmann, Fernandes, 2012b).

44

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lo XXI (sob minha coordenação4), nas quais se privilegiou a dimensão eco-
nômica do universo da música – desenvolvendo-se estudos sobre a indús-
tria da música emergente (Herschmann, 2007 e 2010) – buscou-se reletir
sobre os processos da “velha e nova economia da música” que nos diferentes
contextos analisados variavam em seus níveis de luidez e informalidade.
Nas avaliações dos estudos de caso da indústria da música nacional realiza-
dos, chegou a ser elaborada uma tipologia precária que comparava o con-
ceito de cena, com o de “circuito” (Herschmann, 2007) e “cadeias produ-
tivas” (Throsby, 2000). Nas pesquisas, foi possível constatar que o conceito
de cadeia produtiva engessava boa parte dos casos analisados: não parecia
estar dando conta do que está acontecendo em diferentes localidades do
globo, tendo em vista especialmente as novas rotinas envolvendo os atores
no universo independente da música. Assim, aproximou-se o conceito de
cena ao de circuito, pois ambos sugeriam relações mais luidas, marcadas
por um cotidiano de informalidade, no qual o protagonismo é dos atores so-
ciais: sugeriam um contexto em que os laços e afetos (gostos e prazeres) são
tão importantes quanto a sustentabilidade, tendo mais peso que os contratos
e a formalidade.

(...) [É de grande relevância o estabelecimento de] (...) uma diferenciação


conceitual entre cenas, circuitos e cadeias produtivas, pois estas noções
são muito empregadas para qualiicar a dinâmica do universo da música.
(...) as cenas seriam mais instáveis e nelas seria possível atestar um maior
protagonismo dos atores sociais. As cenas dependeriam de gostos, praze-
res e afetividades construídas entre os atores (...) [poder-se-ia] airmar que
existiria nas cenas mais empenho de continuidade por parte dos atores
do que propriamente uma rebeldia subcultural. (...) no caso dos circuitos,
as alianças e afetos são igualmente importantes, mas estes seriam menos
luidos que as cenas. (...) Existiria nos circuitos culturais níveis de insti-
tucionalidade e monetarização dos objetivos traçados, isto é, a dinâmica
deles seria de certa forma hibrida: muitas vezes encontraríamos circuitos
4
A primeira vez que o termo cena apareceu em trabalhos publicados pelo NEPCOM
(sob minha supervisão) foi empregado de forma pouco precisa e no seu sentido
mais difuso na cultura contemporânea (inclusive isso gerou mal entendidos e uma
Micael Herschmann

interpretação errônea por parte de alguns estudiosos que trabalhavam com o con-
ceito de cena). Na realidade, o termo cena foi utilizado apenas para sublinhar a
enorme visibilidade alcançada pela cultura funk e hip hop nos anos de 1990, nos
veículos de comunicação do país (Herschmann, 2000).

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com graus expressivos de formalismo (...), contudo ainda assim é possível
se identiicar um razoável protagonismo dos atores sociais nas iniciativas,
dinâmicas e processos engendrados nos circuitos (...) [E nas cadeias produ-
tivas existe invariavelmente] uma dinâmica mais institucionalizada e uma
forte preocupação com a lucratividade (...). [Estas estariam organizadas]
(...) segundo boa parte da literatura de economia da cultura em: contratos
de trabalho; o protagonismo dos atores sociais encontra-se em articulação
e tensão com regras/normas impessoais e pré-estabelecidas; podem estar
construídas em várias escalas (locais, nacionais, transnacionais); e se dei-
nem como conjunto de atividades que se articula progressivamente, desde
os insumos básicos até o produto/serviço inal (...). [Portanto] buscando
compreender especialmente a dinâmica da indústria musical independen-
te, vem se empregando sistematicamente os conceitos de cenas e circuitos
(Herschmann, 2010, p. 40-41).

Portanto, naquele momento os aspectos espaciais eram ainda rela-


tivamente secundários: não eram exatamente o foco principal das pesqui-
sas desenvolvidas na década passada, ainda que a articulação da produção
musical indie com os territórios fosse uma questão presente e relevante nes-
tes estudos. Naquele momento, buscava-se compreender de que forma a in-
dústria da música – nos seus circuitos e cenas – poderia construir caminhos
alternativos de sustentabilidade num contexto de crise e desvalorização dos
fonogramas: investigava-se a relevância dos afetos, das estesias e das expe-
riências musicais (ao vivo) para o êxito de algumas iniciativas (comerciais e
outras não inteiramente comerciais).
Aliás, curiosamente, no que se refere à espacialidade, tanto as cenas
quanto os circuitos são portadores de uma ambiguidade que diiculta uma
Cenas, Circuitos e Territorialidades Sônico-Musicais

utilização mais precisa: ainal, de forma bastante similar às cenas (Bennett,


Peterson, 2004), tem sido possível atestar nas pesquisas, que há circuitos
que se desenvolvem no âmbito local, nacional ou mesmo global.
Alguns autores como Jameson (1997) postulam que as categorias
espaciais hoje são mais importantes hoje que as categorias temporais (que ca-
racterizariam de forma emblemática a modernidade) e estaríamos acompa-
nhando nas ciências humanas a emergência de interpretações que constro-
em uma espécie de “geograia cultural” (bastaria se avaliar a relevância da
espacialidade e dos mapeamentos hoje). Ainda que se possam questionar
estas airmações do autor, estas nos levam a reletir sobre possíveis tendên-

46

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cias no meio acadêmico na atualidade5.
Em certo sentido, seguindo esta tendência, Straw em 2006 redei-
ne o conceito de cena, enfatizando mais claramente a metáfora espacial – a
noção de “cena como espaço cultural” – e colocando os aspectos processuais
em segundo plano (Straw, 2006). Para ele, nas análises das cenas é preciso
“(...) considerar a circulação de bens e a variedade de pontos – geográicos,
institucionais, econômicos e afetivos – nos quais esses bens encontram usu-
ários e consumidores” (Janotti Jr, 2012c, p. 4). Ao analisar a redeinição
conceitual proposta por Straw em 2006, Sá identiica que a noção passa
a sugerir mais claramente: “(...) a) congregação de pessoas num lugar; b)
o movimento destas pessoas entre este lugar e outros; c) as ruas onde se
dá este movimento; d) todos os espaços e atividades que rodeiam e nutrem
uma preferência cultural particular; e) o fenômeno maior e mais disperso
geograicamente do qual este movimento é um exemplo local; f) as redes
de atividades microeconômicas que permitem a sociabilidade e ligam esta
cena à cidade (Sá, 2011, p. 152)”.
O próprio Straw ressalta que a noção de cena (especialmente a re-
deinição que enfatizou os aspectos espaciais) não só aproximou os novos
estudos de música popular da geograia e da antropologia cultural, mas tam-
bém afastou estes pesquisadores da agenda mais tradicional da etnomusico-
5
Apesar de não se concordar com Jameson - de que seja possível separar as catego-
rias temporais das espaciais (pois estas estão interligadas) - reconhece-se aqui um
investimento crescente dos atores na dimensão espacial. Como ressalta este autor,
em seu livro intitulado Pós-Modernismo, atualmente as categorias temporais vêm
perdendo importância frente às noções espaciais. Para Jameson: a) a distância es-
pacial é, agora, a da simultaneidade temporal; b) as sociedades hoje têm uma clara
percepção da efemeridade de seu passado; c) em geral não se acredita na trans-
formação da sociedade de longo prazo (frequentemente, o presente é um instante,
o passado uma idealização e, o futuro, é visto como desastroso). Para este autor,
a política pós-moderna é basicamente um investimento na “tomada dos territó-
rios”. Para ele, na pós-modernidade a política contemporânea é a política do “vivi-
do agora” (intensamente e afetivamente) nos territórios (Jameson, 1997). Se, por
um lado, é possível identiicar uma continuidade da importância da temporalidade
mesmo hoje (atestável, por exemplo, na relevância da tradição e autenticidade para
os atores sociais); por outro lado, reconhece-se o grande investimento nos agen-
ciamentos dos territórios, praticado por diferentes segmentos sociais. Poder-se-ia
airmar que a explosão do “neotribalismo” (Maffesoli, 1987), das cenas juvenis
Micael Herschmann

(musicais) e, de modo geral, os processos de reterritorialização urbanos: emergem


como práticas de cunho político do início do século XXI: capazes de construir resis-
tências, alternativas ou, ao menos, signiicativas “linhas de fuga” (Deleuze, Guat-
tari, 1995).

47

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logia. As preocupações com autenticidade e identidade6, que marcaram a
onda inicial dos estudos de música popular, cederam espaço para pesquisas
mais empenhadas em analisar a dinâmica da música e dos atores envolvi-
dos no espaço, especialmente urbano (Janotti Jr., 2012c).
Buscando evitar possíveis mal entendidos sobre os apontamentos
apresentados: vale ressaltar que não se busca avaliar aqui se o conceito de
cena é mais preciso do que o de circuito para se repensar a espacialidade que
se constrói no universo da música7. Aliás, vale a pena reiterar a relevân-
cia do conceito de cena para o desenvolvimento dos estudos de comuni-
cação e música no Brasil: seu largo emprego, de forma bastante profícua,
nos últimos anos vem permitindo avançar o conhecimento a respeito de
dinâmicas socioculturais e políticas importantes, de grande vitalidade na
cultura musical urbana atual. Sem oferecer uma lista completa, poder-se
ia mencionar: Amaral, 2007; Bezerra e outros, 2011, Garson, 2009; Eu-
gênio e Lemos, 2007; Silveira, 2010; Janotti Jr., 2011, 2012a, 2012b; Sá,
2011; Herschmann e Fernandes, 2012b; Freire Filho, 2007; Freire Filho e
Fernandes, 2006, Borelli e outros, 2009. Infelizmente, apesar do intenso
emprego desta noção pela academia, chega a ser surpreende que exista tão
pouco debate e relexão teórica a este respeito no Brasil.
Sá, em um pioneiro trabalho publicado em 2011, analisa a trajetó-
ria do conceito de cena e considera como oportuna a crescente utilização
deste conceito como uma alternativa a conceitos tradicionalmente em-
pregados nas ciências humanas, tais como “subcultura” (Hebdige, 1979;
Hall, Jeferson, 1976, Bennett, Kahn-Harris, 2004), “comunidade” (Straw,
1991, Grossberg, 1997) e “neotribalismo” (Maffesoli, 1987; Hesmondhal-
gh, 2005). Em seu trabalho esta autora justiica acertadamente o emprego
Cenas, Circuitos e Territorialidades Sônico-Musicais

desta noção, na medida em que a mesma permite compreender – em inú-


meros casos – a complexa dinâmica dos vínculos transitórios, a espaciali-

6
O próprio Straw cunhou a noção de cena como uma alternativa ao conceito de
“comunidade”, que possuía uma composição bem mais estável. O autor buscava
um conceito que, em algum medida, desse conta dos processos de identiicação
transitórias que vinha se rotinizando na sociedade contemporânea. A noção cena
para ele remeteria a um grupo demarcado por um espaço cultural, no qual coexiste
uma diversidade de práticas musicais e sociabilidades que interagem de formas
múltiplas (Straw, 1991 e 2006).
7
Entretanto, é preciso reconhecer que o conceito de circuito remeteria mais di-
retamente aos processos de produção, circulação e distribuição e todos os outros
realizados em um determinado contexto (Hall, 2003; Du Gay, 1997).

48

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dade luida e tensões que, com frequência, os atores constroem no mundo
contemporâneo.
Entretanto, ainda que a aplicação destes conceitos possa vir a ser
problemática, dependendo do contexto especíico no qual os objetos de es-
tudo estejam inseridos, é importante salientar que estes não devem ser des-
cartados de antemão: isto é, estas noções foram e podem continuar sendo
de alguma utilidade para o desenvolvimento das pesquisas. Cabe sublinhar
que, não só que emprego da noção de cena não é universal, mas também que
esta pode ser utilizada de forma articulada a alguns destes conceitos mais
recorrentemente utilizados no meio acadêmico8.

Analisando as territorialidades
sônico-musicais nas cidades

Analisando as últimas considerações sobre a noção de cena elabo-


rada por Straw, poder-se-ia airmar que esta sublinha relações de todo tipo
que são construídas no espaço, sejam aquelas negociadas em âmbito lo-
cal, nacional e/ou global. No entanto, nesta valorização da espacialidade,
é preciso que se atente para o fato de que as apropriações e agenciamen-
tos que se produzem em diferentes localidades – que transformam espaços
em “lugares” (Santos, 1996 e 2005) – podem não ser exclusivos dos atores
pesquisados. Em razão disso, é que se postula que o termo “territorialida-
de” e não de “território”: aliás, a noção de territorialidade ou até multiterri-
torialidade (Haesbaert, 2002, 2010 e 2012) parecem ser mais adequadas
para analisar as dinâmicas que envolvem de modo geral os agrupamentos
sociais – a maior parte deles “juvenis” (Martín-Barbero, 2008; Canclini e
outros, 2012; Borelli e outros, 2009; Margulis e outros, 1998) – em um
mundo contemporâneo marcado por nomadismos e luxos intensos (Ma-
ffesoli, 2001).

8
Tomando-se os devidos cuidados teórico-metodológicos, em alguns casos os con-
ceitos de subcultura e de neotribalismo podem ser empregados articulados ao de
cena, contribuindo para uma compreensão mais profunda da complexidade dos
objetos estudados (cf. Bennet, Peterson, 2004; Hesmondhalgh, 2005). O próprio
Straw reconhece que a cena é: “(...) uma série lexical que inclui subcultura, tribo e
Micael Herschmann

outras unidades socioculturais nas quais se supõe que a música exista. Neste senti-
do, recomendo a leitura dos trabalhos de Andy Bennett e David Hesmondhalgh, os
quais se preocuparam em determinar qual dessas unidades é mais útil nos estudos
de música” (Janotti Jr., 2012c, p. 3).

49

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Reitero mais uma vez que não há uma intenção de condenar ou
mesmo de recomendar o uso da noção de cena ou de outra qualquer. Busca-
-se neste artigo apenas contribuir com a relexão conceitual, tendo em vista
o peso que a dimensão espacial passou a ter no debate cientíico. Analisando
retrospectivamente os estudos de música coordenados por mim nas últimas
duas décadas, é possível constatar que há dois conjuntos: a) no primeiro, a
ênfase das pesquisas era nos vínculos sociais entre os atores (identidades,
sociabilidades, etc.) e nos processos de produção, circulação e consumo de
música (que redundam em processos de comercial e não comercial)9; b) e,
no segundo, claramente a dimensão espacial é central para a organização
do trabalho cientíico, pois se tem partido da premissa de que a música,
quando agenciada pelos agrupamentos sociais na ocupação do espaço pú-
blico, é um recurso capaz de resigniicar em algum grau os territórios.
Assim, na década atual, nas últimas pesquisas desenvolvidas, têm-
-se utilizado com frequência a noção de territorialidade sônico-musical, arti-
culada a outros conceitos que enfatizam mais diretamente os aspectos espa-
ciais relacionados aos objetos de estudo e que já eram utilizados, tais como
“mapa noturno” (Martín-Barbero, 2004) e “paisagens sonoras” (Schafer,
1969), “desterritorializações e reterritorializações” (Deleuze, Guattari,
1995): nestes estudos mais recentes vêm se buscando compreender a dinâ-
mica dos agrupamentos sociais (a maioria protagonizada por jovens), que
giram em torno de gêneros musicais os quais vêm resigniicando (e recon-
igurando) - mais ou menos temporariamente – os espaços, especialmente
das cidades contemporâneas (Herschmann, Fernandes, 2012a, 2012b).
Poder-se-ia airmar que estes atores sociais pesquisados vêm construindo
territorialidades, espacialidades que afetam o ritmo e o cotidiano das cidades,
Cenas, Circuitos e Territorialidades Sônico-Musicais

em diferentes localidades, tais como: ruas, praças, galerias, praias, jardins,


etc.
Estes “agenciamentos” (Deleuze, Guattari, 1995) – territorialida-
des, espacialidades - remetem a processos de subjetivações dos atores que
constroem referenciais que não são ixos, isto é, as fronteiras estão sempre
mudando, tendo em vista o constante luxo dos interesses e demandas ne-

9
Evidentemente, a questão da espacialidade (do território, do espaço cultural) esta-
va em alguma medida presente nos trabalhos de pesquisa supervisionados por mim
e se traduzia em tentativas de mapeamento (“mapas noturnos”), de identiicação
de “paisagens sonoras” ou na análise de patamares de “desenvolvimento local” nos
territórios (Herschmann, 2007 e 2010).

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gociados entre os envolvidos direta e indiretamente. A sociedade contem-
porânea se caracteriza pela circulação, por intensos luxos, pelo seu noma-
dismo (Maffesoli, 2001). Assim, as espacialidades - como um palimpsesto
de territorialidades ou, como sugere Haesbaert, como multiterritorialida-
des presentes num território (Haesbaert 2010 e 2012) - constroem uma
polissemia de sentidos e signiicados que são resultado das constantes in-
terações sociais. Assim, a ideia, por exemplo, de periferia e centro são atra-
vessados pelos constantes agenciamentos, pelos diferentes sentidos e signi-
icados construídos ininterruptamente pelos indivíduos. Vale lembrar que
estas categorias são oriundas da geograia, mas quando são empregadas
na interface deste campo disciplinar com o âmbito sociocultural devem ser
utilizadas com cautela, evitando sentidos fechados e universais. Poder-se-ia
tomar como exemplo a noção de periferia utilizada para analisar algumas
produções musicais ou culturais. Uma territorialidade sônico-musical ou cena
pode ser periférica quando vista sob determinado prisma ou em alguns con-
textos10.
Portanto, é preciso - para que seja possível construir um arcabou-
ço instrumental mais consistente - que se procure dar conta dos intensos
luxos da sociedade contemporânea: que se enfrente o desaio de trabalhar
com noções mais abstratas, tais como: “territorialidade” (Santos, 1996 e
2005; Deleuze, Guattari, 1995), “mutiterritorialidade” (Haesbaert, 2012)
e “espacialidade” (Santos, 1996, 2005). Pois, do contrário, não consegui-
remos compreender em profundidade o nomadismo bastante presente hoje,
isto é, os complexos processos de “desterritorialização” e “reterritorializa-
ção” (as práticas sociais efêmeras e plurais) envolvendo os atores (Deleuze,
Guattari, 1995), os quais ocorrem constantemente no cotidiano das cultu-
ras contemporâneas.

10
Poder-se-ia tomar como exemplo o trabalho e trajetória da cantora Gaby Ama-
rantos: quando inserido na cena do tecnobrega pode ser visto como periférico em
relação a outros gêneros musicais, tais como a MPB e o samba. Entretanto, o mes-
mo trabalho quando inserido como trilha de uma telenovela da Rede Globo - como é
o caso da música “Ex mai Love” que tocava na novela intitulada Cheias de charme,
que alcançou grande popularidade em 2012 - ocupa uma posição de centralidade
Micael Herschmann

em relação a boa parte da musical nacional, independente do seu gênero musical.


A condição periférica, portanto, é relacional, particular, não se pode empregá-la
de forma universal. Evidentemente, pode ser usada também como uma categoria
nativa, mas deve ser empregada com muita cautela.

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Considerações finais

Estes são alguns dos obstáculos conceituais não inteiramente re-


solvidos pelos pesquisadores de comunicação e música no Brasil. Aliás, es-
tes também são alguns dos desaios enfrentados nos estudos que têm sido
realizados no centro da cidade do Rio de Janeiro com grupos musicais que
atuam especialmente nas ruas do Centro da cidade. Desaios estimulantes
que tem sido enfrentado no desenvolvimento de alguns estudos de caso, tais
como o do Jazz na Pedra do Sal na Zona Portuária, o Samba da Ouvidor ou do
Grupo Antigamente que se apresentam na esquina das Ruas do Ouvidor e do
Mercado, bem como o da Orquestra Voadora, que se apresenta nos jardins do
Museu de Arte Moderna, no Aterro do Flamengo (Herschmann, Fernan-
des, 2012a).
Tomando como alicerce todos estes estudos que vêm sendo reali-
zados no Centro do Rio de Janeiro, poder-se-ia airmar que nem todos estes
grupos musicais fazem parte necessariamente de circuitos ou cenas mu-
sicais. Contudo, poder-se-ia argumentar que são casos de agenciamentos
que, sem dúvida, promovem territorialidades sônico-musicais, as quais resig-
niicam (temporariamente e/ou com regularidade) a cidade do Rio de Janei-
ro. Nos casos estudados, áreas consideradas anteriormente como “perigo-
sas” ou “esvaziadas” são agora apropriadas (“ocupadas”), agenciadas pelos
atores. Nestas territorialidades se “compartilha uma intensa experiência
sensível e estética” (Rancière, 2009) e se constroem identidades e socia-
bilidades que gravitam em torno da música e modiicam o ritmo e o coti-
diano urbano: seja no plano físico (com resultados signiicativos culturais,
econômicos e sociais) ou do imaginário urbano (Herschmann, Fernandes,
Cenas, Circuitos e Territorialidades Sônico-Musicais

2012b).
Antes de concluir, é preciso salientar que muitas vezes os conceitos
nos remetem a questões espaciais, mas estes tendem a ser diluídos em certos
trabalhos, especialmente alguns desenvolvidos no campo da comunicação.
O intenso emprego das novas tecnologias de informação e comunicação
vem afetando nas últimas décadas a vida social e a “equação espaço-tem-
po”, mas deve-se tomar cuidado com interpretações reducionistas da reali-
dade social. No conjunto de pesquisas já mencionado aqui anteriormente, o
espaço continua sendo um vetor importante para a construção desta socia-
bilidade (especialmente juvenil) que gravita em torno da música. O sucesso
da música no centro do Rio de Janeiro não é fortuito e/ou gratuito.

52

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Nos trabalhos elaborados em parceria com Fernandes nos últimos
dois anos, vêm se trabalhando com a hipótese de que a geograia e a arqui-
tetura são vetores condicionantes do que ela denominou de “musicabilida-
de”: cada vez mais este tipo de sociabilidade vem adquirindo visibilidade nas
praças, jardins e “ruas-galerias” desta região (Fernandes, 2011 e 2012).
Em outras palavras, o êxito da música de rua no Centro da cidade – seja na
área portuária, no Polo da Praça XV ou nos gramados do MAM - está re-
lacionado à importância do peril dos espaços, da beleza estética e a rele-
vância histórica das construções desta área central da urbe (Herschmann,
Fernandes, 2012b). Reiterando argumentos desenvolvidos em trabalhos
anteriores: no seu conjunto, estes elementos articulados a música constro-
em uma “paisagem sonora” (Schafer, 1969) atraente, capaz de mobilizar
segmentos sociais signiicativos e que vem proporcionando uma série de
benefícios diretos e indiretos aos atores locais (Herschmann, 2007).
Para inalizar recomenda-se que os pesquisadores mantenham-se
inquietos e críticos, ainda que se expondo à alguns riscos: portanto, é cru-
cial que os especialistas continuem a questionar as teorias estabelecidas e os
modismos novidadeiros que emergem com frequência no meio acadêmico.
Evidentemente, é preciso ter sempre em vista que os conceitos e no-
ções são mais ou menos provisórios: devem atender necessidades de pesqui-
sa, do contrário se convertem em “camisas de forças”, as quais engessam
invariavelmente as interpretações. Vale lembrar que os pesquisadores que
atuam na interface da comunicação e da música, especialmente no contex-
to atual, lidam com um conjunto de objetos de estudo de grande complexi-
dade e luidez, os quais, cada vez mais, vêm exigindo protocolos de pesquisa
arrojados e renovados.

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Cenas musicais e anglofonia:
Sobre os Limites da Noção de Cena no
Contexto Brasileiro.

Felipe Trotta

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É difícil se opor à pertinência e validade da noção de cena musical.
O termo se refere a uma instigante articulação entre gênero musical e terri-
tório, entrecortada por apropriações culturais que incluem indumentária,
hábitos, gestos, gírias, e um peculiar sentimento de pertencimento. “A ideia
de cena foi pensada para tentar dar conta de uma série de práticas sociais,
econômicas, tecnológicas e estéticas ligadas aos modos como a música se
faz presente nos espaços urbanos” (Jantotti Jr. e Pires, 2011, p. 11).
A metáfora teatral aproxima a noção de cena à ideia de performance,
vivenciada coletivamente em espaços públicos das cidades. Também apon-
ta para uma ambiência social, onde os objetos, ruas, clubes, bares, equipa-
mentos, aparelhos, prédios e palcos formam um contexto material para as
interações culturais entre indivíduos e grupos. A cena pode ser, assim, uma
porta de entrada para um determinado conjunto de questões que gravitam
em torno da música, não restrita à sonoridade, mas também incluindo toda
a ambientação e os aparatos que a cercam.
Para Sá, a deinição de cena é eicaz porque aponta “para a luidez
das práticas contemporâneas”, evocando “ao mesmo tempo a intimidade
de uma comunidade e o luido cosmopolitismo da vida urbana, podendo
assim ser utilizada para descrever unidades culturais cujos limites são in-
visíveis e elásticos” (Sá, 2011, p.152). Adicionalmente, a autora salienta
que a noção de cena revelou-se “apta a um produtivo diálogo com outras
discussões em torno da noção de valor e gênero musical” (idem, p. 153).
Em entrevista recente concedida a Janotti Junior, o pesquisador canadense
Will Straw, pioneiro no uso do termo “cena” na relexão acadêmica, deine
com bom humor a amplitude e a sensação inconclusiva da noção de cena:
“eu hoje deiniria cena como as esferas circunscritas de sociabilidade, cria-
tividade e conexão que tomam forma em torno de certos tipos de objetos
culturais no transcurso da vida social desses objetos. Contudo, isto não re-
solve nada!” (Straw, 2012). Ainda segundo Straw, a cena pode se referir a:
1) Congregação de pessoas num lugar; 2) O movimento destas pes-
soas entre este lugar e outro; 3) As ruas onde se dá este movimento; 4) To-
dos os espaços e atividades que rodeiam e nutrem uma preferência cultural
particular; 5) O fenômeno maior e mais disperso geograicamente do qual
este movimento é um exemplo local; 6) As redes de atividades microeco-
nômicas que permitem a sociabilidade e ligam esta cena à cidade. (Straw,
2006, p. 6)
Felipe Trotta

A partir dessa deinição, é difícil pensar em práticas musicais que

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não poderiam, a princípio, serem associadas à noção de cena. Porém, a for-
ça que brota da amplitude do vocábulo é também sua principal fragilidade.
Se “cena” é um termo que fala sobre uma determinada prática musical vi-
venciada em um território, que pode ou não se articular com outras práti-
cas distantes, que agrega pessoas em torno da música e que aciona modos
de compartilhar a experiência urbana e humana, temos aí uma ideia que
pode ser colada a praticamente todas as práticas musicais do mundo con-
temporâneo. Mas não é bem isso que ocorre.
A ideia de cena não parece se adequar muito bem, por exemplo, ao
contexto do samba de roda do Recôncavo baiano, patrimônio imaterial da
humanidade. Também pode parecer estranho falar em uma cena de frevo
(para icarmos apenas nos exemplos de músicas patrimonializadas) ou a
cena do samba, a cena do forró, a cena da música sertaneja. Essas músi-
cas, apesar de se estruturarem de modo bastante próximo às características
apresentadas nas várias deinições teóricas sobre “cena”, parecem de algu-
ma forma refratárias à aplicação do termo.
Tomemos como exemplo o caso do frevo. Trata-se de uma música
de carnaval com ligação estreita com as cidades de Recife e Olinda, que pro-
duz uma ocupação da cidade em larga escala e que altera o próprio uso do
espaço urbano. Está relacionado a um conjunto de predisposições estéticas
e éticas, a certos comportamentos especíicos, a indumentárias particula-
res e a um repertório compartilhado. É música de dança, de bebida, de festa,
música para estar junto no verão pernambucano (exportado para a Bahia
na década de 1960 e a partir de então para todo o país) e que conigura
um conjunto de pensamentos sobre a vida, sobre a temporalidade, sobre
a cidade. Talvez sua excessiva sazonalidade seja um empecilho para que o
famoso ritmo carnavalesco seja pensado como articulador de uma “cena”,
pois esse termo está completamente ausente de toda a relexão (pequena, é
verdade) sobre o frevo.
Mas no caso do samba carioca, a situação não é muito diferente. Na
cidade do Rio de Janeiro (e em várias outras em todo o mundo) há circuitos
de rodas e shows, que se articulam em rede, inclusive com acionamento de
Cenas Musicais e Anglofonia

canais na internet e de mídias variadas. O samba é uma música que está as-
sociada a um certo grupo social, a uma sonoridade, a um conjunto relativa-
mente fechado de ideias sobre música e sociedade, a uma memória compa-
rilhada (Herschmann e Trotta, 2007). No Rio, o samba é uma prática musi-
cal que circula em um conjunto de espaços físicos da cidade, casas de shows

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e bairros míticos, como a Lapa, a Saúde, Madureira, Mangueira, Estácio,
entre outros. Ao mesmo tempo esse movimento urbano está relacionado e
articulado com um circuito nacional de samba, que agrega várias cidades,
lugares nas cidades, espaços e grupos sociais. Há um repertório referencial,
um mercado consolidado, artistas de destaque. Ao contrário do frevo, a bi-
bliograia sobre samba é bastante expressiva, formada tanto por trabalhos
jornalísticos sobre sambistas e épocas, quanto por aqueles de enfoque mais
acadêmico, realizado em várias disciplinas há mais de quatro décadas. Em
toda essa bibliograia, o termo “cena” encontra-se praticamente ausente.
Apenas para citar um exemplo recente, em seu livro sobre o bairro
da Lapa, Micael Herschmann discute em detalhes o universo musical do
samba e choro, sublinhando aspectos comerciais, culturais, identitários,
musicais e políticos desse território recheado de música (Herschmann,
2007). Trata-se de um livro sobre música e território, que aciona debates
sobre gêneros musicais, espaços urbanos, políticas públicas e redes de so-
ciabilidade. No entanto, o autor não fala em “cena”. Prefere associar o con-
texto do samba e do choro na Lapa a ideias menos congestionadas como
“circuito cultural” ou “nicho de mercado”. Antes de ser uma prerrogativa
pessoal de Herschmann, a diiculdade de aplicar o termo “cena” à prática
musical do samba percorre diversos autores. Em meu trabalho sobre o pa-
gode romântico na década de 1990, usei muitas vezes a palavra “mercado”
para isolar aspectos comerciais e um termo nativo (um tanto hiperbólico),
“mundo do samba”, para sublinhar aspectos mais amplos do contexto do
gênero (Trotta, 2011). Mas não “cena”. De alguma forma, o samba é um
gênero musical em que, por algum motivo, a noção de cena não parece ade-
quar-se muito bem. Porque?

Seguindo pistas: underground e jovem

A sensação de inadequação do termo cena ao contexto do samba


não é privilégio do gênero musical símbolo da identidade nacional. De um
modo geral, as práticas musicais de ampla circulação (efetiva ou potencial)
encaixam-se de modo mais precário na ideia de cena. É difícil pensar em
“cena” associada, por exemplo, à música sertaneja. Chitãozinho e Xororó,
Zezé Di Camargo e Luciano, Jorge e Mateus, Paula Fernandes ou Michel
Teló produzem uma música que percorre territórios exageradamente am-
Felipe Trotta

plos, em experiências musicais que agregam milhares de pessoas em pra-

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ças, palcos gigantescos e festas grandiosas. São repertórios e artistas lo-
calizados na esfera do chamado “luxo principal” ou, em bom português:
“mainstream”. Num circuito mercantil medido em milhões, a magnitude da
música sertaneja se afasta de algo particularmente importante e obliterado
nas deinições de cena, que é a caracterização de um público mais restrito.
Boa parte do uso do termo cena em trabalhos acadêmicos e na crítica espe-
cializada alimenta-se de um posicionamento ideológico contrário à lógica
dos milhões. A noção de “cena” vincula-se com mais facilidade quando se
identiica uma posição ideológica que nega a circulação em larga escala,
o “underground”. Mainstream e underground são termos que evocam tanto
um conjunto numérico de pessoas que determinada música (ou prática
cultural) agrega quanto estabelecem posicionamentos políticos frente a
um mercado cultural. Entendidos como espaços opostos de circulação
mercadológica, os termos prestam-se ainda a uma hierarquização de valor,
no qual a circulação restrita torna-se elemento de prestígio. Numa deinição
particularmente inspirada das diferenciações entre os dois termos, Janotti
Junior e Cardoso Filho apontam que

o fator que permite uma diferenciação a mais de ambos é o grau de distan-


ciamento entre condições de produção e reconhecimento identiicados no
produto, pois uma boa parcela do que é chamado de independente ou un-
derground no terreno musical está diretamente relacionado a uma aproxi-
mação entre suas condições de produção e reconhecimento, ao passo que
o mainstream se caracteriza por possuir uma exacerbada distância entre
essas condições. Não obstante essa diferenciação, tanto underground
quanto mainstream são estratégias de posicionamento frente ao mercado
fonográico e ao público (2006, p. 19)

Assim, ainda que determinados gêneros musicais que utilizam a


noção de cena – como o heavy metal, por exemplo – atinjam público mas-
sivo extremamente numeroso no mundo todo, parte do valor das bandas
permanece associado à sua relação de proximidade entre as condições de
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produção e reconhecimento. A maior desqualiicação de uma banda de he-


avy metal é ser chamada de “pop”, termo que indica ao mesmo tempo um
esvaziamento estético e uma alteração nesse posicionamento estratégico,
aproximando-se do modus operandi da grande indústria musical.
A circulação restrita – relativamente restrita, é sempre bom subli-

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nhar – é um vetor relacionado a uma estratégia distintiva. Como apon-
ta Simon Frith, a música popular é experimentada a partir de adesões de
gosto, que separa predileções e pertencimentos (1998). Ao analisar o rock
alternativo, Will Straw aponta que a sua unidade está fundada basicamen-
te na “maneira através da qual a atividade musical estabiliza uma relação
distintiva com o tempo histórico e com o local geográico” (1991, p. 375)
onde ela é praticada. São estratégias de distinção através do conhecimento
adquirido, do repertório compartilhado e da estruturação de cânones que
conferem ao rock alternativo no EUA e no Canadá um sentido político que
atravessa a ideia de cena.
Mais do que um espaço dinâmico de elaboração de mudanças,
a ideia de “cena” refere-se a um espaço onde “gostos e hábitos minori-
tários são perpetuados, apoiados por redes de instituições de pequena
escala, como lojas de discos e bares especializados” (Straw 2006, p. 13,
grifo meu). Através desses encontros, nas ruas e bares, ocorre uma “lenta
elaboração de protocolos éticos que devem ser seguidos por aqueles que
se movem por esses espaços” (idem). A ideia de cena opera, então, como
agente da conformação de um espaço relativamente fechado de repertórios
compartilhados e de circuitos de gostos que se tornam distintivos.
Janotti Jr. e Pires (2011) sugerem que o termo “cena” funciona
como vetor de auto-relexão de determinados grupos sociais sobre as práti-
cas musicais de sua predileção. A crítica especializada, os jornais, revistas
e os trabalhos acadêmicos formam parte de um conjunto de elaboração es-
tética sobre os “protocolos” que estruturam determinada prática musical.
Nesses lugares de debates, o termo cena se consolida como vocábulo que se
refere a uma relexão sobre as práticas musicais. Essa auto-relexão é pro-
cessada fundamentalmente em mercados musicais de nicho, nos quais as
informações sobre lançamentos fonográicos, shows e eventos circulam de
modo mais restrito e o próprio acesso a tais informações depende de redes
diretas de pertencimento e gosto: sites, blogues, certos veículos de mídia,
certos peris no Twitter, certas comunidades no Facebook, etc.
O universo de circulação de ideias na crítica especializada, na vida
noturna e em redes sociais nos leva a um outro aspecto que aproxima as
práticas musicais associadas à ideia de cena: o mundo jovem. Juventude é
um termo escorregadio e deinir qualquer prática humana como associada
à ideia de juventude é manobra quase sempre arriscada. O termo é vasto
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e ambíguo o suiciente para confundir mais do que explicar. A categoria

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“jovem” agrega, contudo, algumas ideias recorrentes ligadas à tecnologia,
à velocidade, à energia (dança, erotismo, sedução, distorção), a uma certa
revolta, a um uso particular da música na dinâmica de sociabilidade (musi-
cabilidade à lor da pele). Em artigo sobre jovens de classes subalternas na
Colômbia, Martín-Barbero reconhece que a música é a prática cultural por
excelência dos jovens, que adminstram através da música sua temporalida-
de juvenil, vinculada a um “tempo de espera” na “ila do emprego” e a um
“excesso de tempo livre” (2008, p.16).
Mas é evidente que não é qualquer tipo de música. Certos gêneros
musicais se enquadram melhor na categoria jovem do que outros, apoiados
quase sempre por sonoridades e ideias compartilhadas que negociam refe-
rências a um imaginário de juventude. O uso da tecnologia, a intensidade
corporal da dança, da sedução e da sexualidade, o volume, o formato can-
ção, as “batidas” e todo um aparato de circulação musical funcionam como
agentes de “juvenilização” de musicalidades. Essas referências agregam
signiicados compartilhados sobre o que é ser jovem, estabelecendo meca-
nismos de exclusão. O pop é jovem, assim o como o rock, o axé ou o funk. O
jovem é o público que faz as “cenas”, é, em certa medida, seu protagonista,
seu modelo e seu estereótipo. É a sociabilidade jovem que é o tema de Will
Straw quando ele fala na cena de dance ou de rock alternativo nos Estados
Unidos e no Canadá (1991). Por outro lado, a música clássica deinitiva-
mente não é jovem, o samba não é jovem e o forró pé de serra também não.
Nessas músicas, é mais difícil falar em “cena”.
Porém, associar o uso do termo “cena” a contextos jovens de cir-
culação restrita nos quais o vocábulo está associado a uma lógica de auto-
-relexão ainda é insuiciente. Isso porque se parece relativamente confor-
tável a airmativa de que o forró pé de serra ou o samba não são práticas
musicais estreitamente conectadas ao universo jovem, é inegável que am-
bas acionam de algum modo um sentido distintivo ligada à sua própria
circulação em nichos. A valorização do samba e do forró em suas versões
mais tradicionais está intimamente relacionada com a ideia de uma circu-
lação restrita, que inclui até mesmo uma crítica especializada que elabora
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sua auto-relexão. Por outro lado, práticas musicais como o sertanejo ou o


axé podem ser perfeitamente classiicadas como músicas “jovens”, incor-
porando em seus procedimentos sonoros, comportamentais, empresariais
e estéticos toda uma gama de elementos que buscam atrelar identiicações
com o mundo urbano cosmopolita, a tecnologia, a energia, a sedução e a

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vibração estereotípicas do “mundo jovem”. Se a música clássica é restrita
e auto-relexiva, e o forró eletrônico é jovem e cosmopolita e nenhuma das
duas parece icar confortável com o termo “cena”, precisamos ultrapassar
essas pistas iniciais para procurar outras razões para essa sensação de ina-
dequação. Para falar de “cena”, as práticas musicais devem se aproximar
também do mundo anglófono.
O mundo anglófono
Não é necessário fazer uma lista muito exaustiva para identiicar
a conexão estreita entre as práticas musicais que se adequam mais facil-
mente ao termo “cena” e a utilização do inglês. É o rock alternativo, o jazz de
New Orleans ou os estilos ancorados em cidades mencionados por Straw ao
analisar a dance music: “Detroit ‘techno’ music, Miami ‘bass’ styles, Los An-
geles ‘swingbeat’, etc.” (1991, p. 381). Em sua pesquisa sobre música ele-
trônica no Brasil, Simone Sá menciona as variantes de estilo que compõem
a(s) “cena(s)”: “o electro, o disco-punk, o minimal, o retro-rock, o new rave,
numa lista classiicatória inindável, que se multiplica a cada dia a partir de
desdobramentos e fusões e misturas dos subgêneros mais consolidados da
eletrônica tais como o house, o techno, o drum & bass e o garage e o trance”
(Sá, 2011, p. 154, grifos meus).
Seria extermamente redutor pensar sobre essa apropriação do in-
glês apenas como um sintoma do imperialismo cultural norte-americano,
que impõe estilos de vida, hábitos de consumo, artefatos cotidianos e produ-
tos culturais. Por outro lado, é também ingênuo ignorar que a linguagem
é um instrumento de poder e que essa profusão de termos em inglês que
orientam e classiicam determinada produção musical está ligada a estraté-
gias de hierarquização e legitimação simbólica. Como aponta Renato Ortiz
em seu brilhante livro A diversidade dos sotaques, “uma segunda língua é
aprendida unicamente quando o falante estima que pode obter vantagens”
(2008, p. 67). Para além de se referir a rotulações produzidas em ambientes
anglófonos, termos como heavy metal, trash metal, doom metal, noise, techno,
hip hop ou funk associam essas práticas musicais a uma certa ideia compar-
tilhada de cosmopolitismo. Ser cosmopolita se torna um valor comparti-
lhado mundialmente, que matiza uma forma de pertencimento que “faz do
mundo um lar, uma casa, concretamente construída a partir de múltiplos
vínculos” (Lopes, 2012, p.81). Está ligado, portanto, a uma produção de
familiaridade que tem na música e na produção audiovisual seus maiores
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vetores de popularização e difusão. Músicas e ilmes que falam inglês e que

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estabelecem um referencial para esse cosmopolitismo, reconhecidamente
tomado como algo positivo e legítimo.
Will Straw identiica dois tipos de pressões que cercam a ativida-
de musical: uma que força na direção da “estabilização das continuidades
históricas locais e outra que trabalha no sentido de romper essas continui-
dades, que as cosmopolitiniza e relativiza” (Straw, 1991, p.373). A tensão
entre tendências locais e cosmopolitas é um aspecto interessante das nego-
ciações que cercam as várias práticas musicais em todo o mundo. Porém,
os elementos de cosmopolismo possivelmente acionados por indivíduos em
Detroit ou Nova York são radicalmente distintos do conjunto de possibilida-
des de performances cosmopolitas nas periferias de São Paulo ou em Ma-
naus. O uso cotidiano do inglês como primeira língua posiciona os falantes
nativos mais próximos do ideal cosmopolita do que aqueles que absorvem
o inglês como língua estrangeira e vivem cercados de hamburgers, shopping
centers, mouses e freezers cujo estrangeirismo é evidente. O predomínio do
inglês, ao mesmo tempo em que produz uma aproximação de luxos, sono-
ridades e ideias mundiais, produz o que Ortiz aponta como uma “sensação
incômoda de subalternidade”.

A presença do inglês introduz uma tensão permanente no mercado de


bens linguísticos da modernidade-mundo; ao se espalhar, da ciêcia às con-
versas cotidianas, da aviação às bandas de rock, dos ilmes à informática,
ele pressiona as outras línguas coninando-as ao limite de suas identida-
des. (Ortiz, 2008, p.33)

É como se, em países não-anglófonos, o inglês assumisse o


monopólio do cosmopolitismo, colocando em posições hierarquicamente
vantajosas as práticas culturais que empregam a língua universal. A
proximidade simbólica com a língua de maior prestígio não circunscreve-se
ao universo da música, mas produz uma efetiva substituição de termos em
língua nativa por nomenclaturas em inglês, que traduzem de modo mais
nítido um desejo cosmopolita e o valor atribuído a esse desejo.
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No Brasil, é bastante fácil notar esse prestígio linguístico na no-


menclatura utilizada na publicidade, nas vitrines de lojas, em “trailers” ou
“teasers” de ilmes ou em “outdoors”. A intensidade de utilização de termos
em inglês gera reações xenófobas, que associam diretamente a língua com
a dominação cultural e reagem contra usos exagerados do inglês. Mas o

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que nos interessa aqui não são as manifestações entrincheiradas de defesa
da língua nacional como sinônimo da própria identidade nacional (e não
como apenas um dos elementos de sua construção), mas sim o processo de
tensão mencionado por Straw entre as práticas associadas a um contexto
propriamente local e aquelas que tendem a um universo cosmopolita.
No caso do Brasil, um caso interessante é o do tecnobrega paraense
que, a partir do repertório consolidado da música romântica (brega) local,
reprocessa elementos dessa identiicação e inclui sonoridades, performances
e atitudes que tendem a um desejável cosmopolitismo. Essa pressão rumo a
um universo mundial é concomitante a uma tensão com o estigma valorati-
vo do “brega” e de uma produção musical protagonizada por jovens de seto-
res de menor poder aquisitivo. A tensão entre os estigmas classistas, étnicos
e culturais e o cosmopolitismo processado nas sonoridades eletrônicas e no
vocabulário anglófono é estruturante da rede de símbolos e da divulgação
do tecnobrega em Belém (Guerreiro do Amaral, 2009). Ao mesmo tempo,
o circuito cultural do tecnobrega processa uma via dupla que oscila entre
seu forte localismo (a cidade, as casas de show, a tradição do brega) e seus
impulsos cosmopolitas (a tecnologia, os samplers, o mundo jovem, as lu-
zes e paredões de som, o formato do baile, a igura do DJ, as aparelhagens),
conciliando luxos locais (o brega) e globais (o techno). A relexão sobre o
tecnobrega emprega com certa naturalidade a noção de “cena”.
Por outro lado, outras práticas musicais nacionais como o serta-
nejo, o forró eletrônico e o pagode romântico também processam de forma
semelhante a tensão entre cosmopolitismo e localismo mas não parecem
se ajustar muito bem à ideia de cena. Talvez porque nesses casos, a matriz
“local” (na verdade nacional ou regional) seja um referencial primordial
do qual os protagonistas não desejam se afastar. A continuidade entre o
forró eletrônico e o tradicional funciona como uma garantia de negociação
sobre referenciais de nordestinidade, funcionando como uma elaboração
dos elementos que a constituem (Trotta, 2012). No caso do sertanejo, a in-
tensa referência a repertórios “tradicionais” da música caipira (sobretudo
de sucessos de modas de viola das décadas de 1960 e 1970) fornece o mes-
mo discurso de permanência e de herança das duplas atuais com relação à
história do próprio gênero (Alonso, 2011). No pagode, a utilização de um
instrumental característico do samba e a ênfase nas referências comunitá-
rias funcionam de modo semelhante (Trotta, 2011). Todas essas músicas
Felipe Trotta

agregam público exageradamente numeroso, o que parece produzir um

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empecilho para a relexão sobre “cena”.
Os termos empregados nas interpretações sobre as práticas cultu-
rais revelam processos e pensamentos atrelados aos contextos nos quais
eles foram produzidos. Nesse sentido, o vocábulo “cena” está moldado de
alguma forma pela relexão sobre música relacionada a certos estilos e gê-
neros musicais, que se aproximam das ideias de cosmopolitismo tal como
experimentadas em ambiente anglófonos. A centralidade do inglês nas
ciências sociais facilita a difusão dessa terminologia e suas tentativas de
adaptação e tradução a contextos locais similares. Nao é difícil observar
que tal tradução tende a ser mais eicaz quando as práticas locais guardam
semelhanças formais e simbólicas com os contextos “originais” de irrupção
dos termos anglófonos. Por isso que é bem mais fácil falar de “cena” ao refe-
rir-se à música eletrônica do que ao samba da Lapa. O inglês e o próprio ter-
mo demarcam estratégias conceituais, simbólicas, sociais e linguísticas de
valorização das práticas musicais, hierarquizando inclusive gostos e ideias.
Lembro-me de uma experiência que vivi quando atuava como mú-
sico proissional que exprime bem essas estratégias. Familiarizado e perten-
cente ao contexto do samba tradicional no Rio de Janeiro, fui convidado
para tocar em um show com repertório mais eclético e com músicos oriun-
dos de outros universos musicais. Nos primeiros ensaios, fui surpreendido
com todo um vocabulário que desconhecia. Meus companheiros de traba-
lho falavam em acelerar o beat, nos ataques de hi-hat e na manutenção dos
riffs. Naquele contexto, o desconhecimento das palavras em inglês eviden-
ciavam não somente minha imaturidade musical, mas sobretudo os espa-
ços simbólicos relacionados às práticas musicais de cada um de nós. Riffs,
beats e hi-hats são termos do pop-rock anglófono, ausentes no contexto do
samba. São outros palcos, outras cenas.

Cenas finais

A metáfora da “cena” aplicada à música tem sido comemorada


como estratégia retórica capaz de dar conta de uma ampla gama de aspec-
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tos que circundam a circulação musical pela sociedade. No entanto, me pa-


rece que tem sido obscurecido o fato de que a própria nomeação e as nuan-
ces de circulação de termos e categorias estão relacionadas a processos am-
plos de diferenciação, que hierarquizam músicas, pessoas, lugares e gostos.
Ao contrário dessa corrente, busquei apontar que o termo cena é bastante

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relevante e interessante para sublinhar determinados aspectos de algumas
práticas musicais, mas está muito longe de ser uma palavra capaz de ser
incorporada ao vocabulário musical de forma tão ampla. Como categoria
nativa, o termo tem sido aplicado a músicas que processam valores cosmo-
politinizantes através de conexões internacionais declinadas em inglês. A
valorização do cosmopolita é simultânea à desvalorização do local-nacio-
nal, e essa tensão opera de modos distintos nas várias práticas musicais que
experimentamos cotidianamente.
O que é proposto aqui é que, talvez, em alguns casos, estejamos
imersos numa utilização abusiva da noção de cena. Apontar os seus limi-
tes pode contribuir para uma utilização mais precisa da noção, sem perder
sua força como “signiicante lutuante” (Straw, 2012). De certo modo, essa
posição é contrária à posição do próprio Will Straw, que, em entrevista re-
cente, airmou:

Na verdade, acho que o trabalho mais interessante sobre as cenas pode


ser o que trate de formas e práticas não habitualmente consideradas como
estando dentro do marco da “cena”: Música clássica, por exemplo, ou os
revivals da música swing dos anos 1940, ou música de igreja. A noção de
cena é enriquecida quando os exemplos servem para derrubar os precon-
ceitos (sobre o que é cool ou subcultural ou “tipo cena”) que presidiram aos
estudos de música popular (Straw, 2012)

Preconceitos? É fato também que temos predileção na academia pelo


estudo de práticas musicais de circulação restrita. Sem cair numa homologia
de classe redutora, os círculos intelectualizados que frequentamos produzem
certas preferências que direcionam esforços de pesquisa para as músicas
que gostamos. Mais bossa nova, jazz ou choro, se caminharmos pelos
departamentos de Música; mais samba e MPB, se entrarmos nos corredores
de Letras, Antropologia ou Sociologia; mais funk, música eletrônica, heavy
metal ou pop rock, se cairmos nos programas de Comunicação. As preferências
evidenciam estratégias de valorização e integram um ambiente de disputas e
de hierarquias de gostos. E revelam também preconceitos que diminuem o
“local” e sobrevalorizam o “global”. É bem mais legítimo pesquisar a música
eletrônica produzida em pubs, raves ou bares obscuros de grandes cidades do
que a produção de artistas como Alexandre Pires, Michel Teló ou Reginaldo
Felipe Trotta

Rossi. Mas isso é assunto para outra discussão.

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Referências:

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Cenas Musicais e Anglofonia

pós, v.15 n. 2, 2012.


TROTTA, Felipe. O samba e suas fronteiras: samba de raiz e pagode romântico nos
anos 1990. Rio de Janeiro: ed.UFRJ, 2011
______. “Forró eletrônico: a sonoridade de uma música periférica de massa”. In:
GOULART RIBEIRO, Ana P. E outros (orgs.). Entretenimento, felicidade e memó-
ria. (orgs.). Guararema: Anadarco, 2012.

70

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Parte II

Materializando as Cenas

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Rock with the devil:
Notas Sobre Gêneros e Cenas Musicais
a Partir da Performatização
do Feminino no Heavy Metal

Jeder Janotti Junior

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Dos Gêneros às Cenas Musicais

Entre as inúmeras deinições de cenas musicais que circulam no


mundo acadêmico e na crítica musical, destaca-se aqui que uma das carac-
terísticas marcantes das cenas é a transformação dos espaços (geográicos
e virtuais) em lugares signiicantes marcados pelo consumo de música. De
acordo com o sociólogo Anthony Giddens (2002), lugar é um espaço parti-
cular, signiicativo, porque torna familiar para seus participantes algumas
referências para sentir e partilhar o mundo, ou seja, lugar é a própria refe-
rência que usamos para entender o que envolve a ideia de mundo. Seguindo
essas indicações, acredito que nomear um espaço como cena musical é um
modo de transformá-lo em articulador de experiências sensíveis, jogos iden-
titários, práticas mercadológicas e sociais.
Mas uma cena musical não é só um modo de tornar signiicantes
certas territorialidades, ou seja, formas especíicas de habitar o mundo atra-
vés de práticas musicais autorreferenciadas, pois essas práticas pressupõem
relações com sonoridades e gêneros musicais. Assim, antes de trabalhar as
socialidades presentes nas cenas, este artigo procura articular essas práti-
cas com o agenciamento dos gêneros musicais a partir da observação da
emersão da performatividade do feminino no heavy metal. Levando-se em
consideração as palavras de Simone Pereira de Sá, é possível notar como
esse circuito que envolve gênero musical e cena permite uma compreensão
mais abrangente das cenas e dos próprios aspectos identitários que marcam
esses espaços:

[...] entendemos que a noção de cena refere-se: a) A um ambiente local e glo-


bal; b) Marcado pelo compartilhamento de referências estético-comporta-
mentais; c) Que supõe o processamento de referências de um ou mais gêne-
ros musicais, podendo ou não dar origem a um novo gênero; d) Apontando
para as fronteiras móveis, luidas e metamóricas dos grupamentos juvenis;
e) Que supõem uma demarcação territorial a partir de circuitos urbanos que
deixam rastros concretos na vida da cidade e de circuitos imateriais da ciber-
cultura, que também deixam rastros e produzem efeitos de sociabilidade; f)
Marcados fortemente pela dimensão midiática (2011, p. 157).
Jeder Janotti Junior

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Se as cenas musicais aparecem como processos de territorializa-
ção do espaço urbano, os gêneros servem como conectores, e, no caso de
gêneros globalizados, como o heavy metal, pode-se pressupor um processo
de agenciamento coletivo em que sonoridades desterritorializadas são ter-
ritorializadas, ganhando corpo através de performances que materializam
aspectos sensíveis e sociais da música, em um jogo de apropriações diversas
que envolvem conexões entre local-global, masculino-feminino, estética-
-mercado, tecnologias coletivo-individuais, dispositivos-subjetividades, etc.
Tanto para os gêneros musicais como para as cenas, ou melhor,
para esse agenciamento em espiral que envolve práticas em torno da mú-
sica, toma-se como ponto de partida a ideia de processos de autorreferen-
ciação, nos quais sujeitos que articulam cenas e gêneros musicais se reco-
nhecem como participantes de uma comunidade de gosto que opera como
lugar de discussão e airmações valorativas, o que nos aproxima da dei-
nição de identidade em Giddens como “noção de si” (2002). Assim, uma
das balizas adotadas neste artigo é a de que “O delineamento de grupos é
não apenas uma das ocupações dos cientistas sociais, mas também a tarefa
constante dos próprios atores. Estes fazem sociologia para os sociólogos, e
os sociólogos aprendem deles o que compõe seu conjunto de associações”
(LATOUR, 2012, p. 56).
Seguindo essas indicações, a proposta é observar, a partir de ele-
mentos autorreferenciados por duas bandas de mulheres de lugares distin-
tos  a sueca Cruciied Barbara e o grupo paranaense Panndora , como a
presença do feminino no fazer musical aponta para a emergência de fricções
em uma zona de conforto tradicionalmente marcada por performances
masculinas: o heavy metal. Desse modo, antes de ser lugar de dicotomias
simplistas ou embates entre posições opostas, essas performances apontam
para negociações, apropriações diversas e conlitivas que ora possibilitam
mudanças no modo de se pensar os valores identitários de gênero no heavy
metal, ora reiteram, mesmo que através de corpos femininos, marcas sexis-
tas do heavy metal.
Usualmente, tal como a maioria das formações rock, o heavy metal
evoca tanto na sonoridade como nas práticas comportamentais performan-
ces associadas ao corpo masculino. Assim, além do bangear (bater cabeça)
Rock With The Devil

e da sonoridade dura, também são marcas do heavy metal referências às


guerras, aos guerreiros e às batalhas, universos de hegemonia masculina.
Como já apontei em outro texto (2004), nos shows os homens costumam

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tomar a frente, carregando as mulheres pelas mãos, airmando a predomi-
nância do masculino. Outro fator importante para a compreensão da hege-
monia masculina são as referências às motos e à liberdade associada à velo-
cidade, imaginário que é reforçado também pelas intermináveis práticas de
reconhecimento da genealogia metal, principais bandas e discos, práticas
de saber que muitas vezes excluem não só os não iniciados, como também o
feminino. Mas o elemento mais forte nesse contexto são os modos de escuta;
tanto o bangear quanto o tocar (seja guitarra, baixo ou bateria) enformam,
na maioria dos casos, mesmo quando performado por mulheres, a personi-
icação de traços masculinos.
O termo performance, que a princípio parece demarcar o modo
como músicos atuam ao interpretar em estúdio e ao vivo suas canções ou
os modos como os corpos transitam nas cenas, é entendido neste trabalho
de maneira ampla, como um modo de enformar materialmente experiên-
cias sensíveis e valores culturais presentes nos processos de “corporiica-
ção” da música.
As cenas e os gêneros musicais são corporiicados através de agen-
ciamentos performáticos autorreferenciados que transformam lugares/so-
noridades em territorialidades afetivas e socioculturais. Antes de ser uma
espécie de ocupação sentimental ou emocional da urbe ou de espaços virtu-
ais, as cenas pressupõem agenciamentos de sujeitos e objetos que afetam e
são afetados mutuamente por essas conexões. Nesse caso, essa corporiica-
ção é um efeito de presença que se materializa nos gêneros e cenas musicais.
Seguindo as proposições de Will Straw (2006), é possível pensar
que uma das marcas das cenas musicais é sua capacidade de teatralizar, de
colocar em cena (no sentido de mise-en-scène) afetos, artefatos, sensibilida-
des e valores culturais. Dessa forma, as apropriações dos gêneros nas cenas
musicais tanto podem funcionar como lugares de contenção do novo ou do
“estranho”, como podem fomentar curtos-circuitos em que a emersão do
novo transforma modos de habitar e escutar urbes e territórios midiáticos.

Rock Me Like The Devil: Whip Your Tail And Turn Me On

Ao pensar a ideia de performance, Paul Zumthor airma que “o


Jeder Janotti Junior

corpo é o peso sentido na experiência que faço dos textos. Meu corpo é a
materialização daquilo que me é próprio, realidade vivida e que determina
minha relação com o mundo” (2007, p. 23). Assim, a presença das bandas

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de mulheres no metal atual aponta para um tensionamento da hegemonia
do masculino como sujeito do fazer musical no heavy metal. Essa presença
obrigou a crítica a nomear o que antes era da ordem do não dito, como
se pode perceber em trecho da crítica do álbum Midnight Chase, da banda
sueca Cruciied Barbara:

O heavy metal é um estilo machista. Desde seus primórdios, as bandas de


música pesada são formadas quase que 99% por homens, assim como a
grande maioria dos fãs do estilo são do sexo masculino. Assim, sempre
que uma banda que contenha mulheres aparece, muitas pessoas tendem
a torcer o nariz e criticar sem sequer ouvir sua sonoridade, por puro pre-
conceito. Assim, se você tiver esse tipo de pensamento, acabará perden-
do a oportunidade de conhecer ótimas bandas do cenário metálico atual,
dentre as quais se enquadram as suecas do CRUCIFIED BARBARA, que
chegam agora ao seu terceiro disco (FRASCÁ, 2012).

Ao se pensar identidade (e sua valoração), percebe-se ao longo da


crítica que, além de ser julgada pelos parâmetros característicos do heavy
metal, como peso e agressividade, a questão do feminino continua a ser um
ponto central mesmo quando airmada como algo a ser adicionado ao que
seriam características negativas quando posicionadas dentro do universo
metálico: “O Cruciied Barbara volta com um novo álbum cheio de peso e
agressividade, e, para aqueles que julgam pela capa ou pela banda ser for-
mada apenas por mulheres, imaginando que a música será voltada para
garotinhas indefesas, posso dizer que irão torcer o nariz” (FRASCÁ, 2012).
Como airma a crítica, dentro do gênero a canção possui intensi-
dade, sendo considerada um exemplo de heavy metal feito com qualidade.
“Com ótimos riffs de guitarra, uma cozinha correta e um vocal agressivo e
muito bem encaixado, o quarteto se mostra maduro, criando faixas dire-
tas, mas empolgantes, e que chamam o ouvinte a bangear e a cantar jun-
to” (FRASCÁ, 2012). Mas é possível notar uma tensão que envolve o re-
conhecimento da qualidade musical das bandas femininas e que parece se
espraiar em torno das negociações identitárias que envolvem o julgamento
de valor positivo em torno da sonoridade. Ser “uma boa banda de heavy
Rock With The Devil

metal”, para além das questões de gênero e da lembrança, evocada a todo


momento, de que essa “é uma banda de mulheres”, mostra como é comple-
xa essa rede de agenciamentos.

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O que está em jogo é o fato de que os agenciamentos ultrapassam
as dicotomias entre gênero masculino e feminino, pois não basta a uma
“banda de garotas” airmar-se como uma banda de peso. Ser mulher no
universo do metal é fazer emergir o feminino, mas um feminino que se cor-
poriica em meio à distorção e à autenticidade que a intensidade sonora
do heavy metal evoca. Para desenvolver melhor esse ponto talvez seja inte-
ressante analisar o último videoclipe oicial da banda, no qual as músicas
interpretam a canção Rock Me Like The Devil1.
A canção pode ser descrita como um hard rock em sentido tradi-
cional, ou seja, heavy metal estruturado de modo usual, com introdução
(riff)/estrofe/ponte/refrão/introdução/estrofe/ponte/refrão/solo/refrão.
Em relação à sonoridade, o grupo mostra inluências perceptíveis de bandas
como AC/DC e Motorhead, cujas temáticas abordam usualmente sexuali-
dade e referências ao universo do rock pela visão masculina. Não há sobres-
saltos ou surpresas nesse percurso. Rock Me Like The Devil ilia-se a uma
tradição rock de músicas em compasso 4x4, cuja voz e solo se destacam e
interpelam ouvintes a cantar junto o refrão, a bater as cabeças (bangear)
junto à marcação dos compassos fortes do baixo e da bateria. Há um des-
taque na voz que se sobressai e acentua as referências sexuais da letra, em
um híbrido que mistura lascívia e força, intensiicadas pela agressividade
presente nos modos de tocar os instrumentos musicais.
No início do clipe, vê-se uma alusão às referências sexuais expres-
sas na canção, materializadas na ritmação de uma cadeira de balanço que
remete ao ato sexual, mas logo ica claro que não se trata de “menininhas”,
e sim de mulheres no heavy metal, como evidenciam os codinomes das mú-
sicas da banda, que são apresentadas individualmente (Ida Evileye, Klara
Force, Mia Coldheart e Nick Wicked). Nomear envolve uma noção de si em
torno da apresentação ao outro que pressupõe intersubjetividades. No caso
da Cruciied Barbara, destaca-se o fato de que não é só o feminino que emer-
ge, ou que negocia essa emersão em meio aos aspectos gramaticais e sensí-
veis do heavy metal, e sim de que a emergência do feminino aparece como
“metálica”, ou seja, pressupõe um “metal feminino”, com todas as contra-
dições que isso comporta. O afeto, aqui, é articulado através de elementos
Jeder Janotti Junior

1
Disponível em: <http://www.youtube.com/results?search_query=rock+me+lik
e+the+devil&oq=rock+me+like+the+&gs_l=youtube.1.0.0.906.5204.0.8384.1
7.11.0.0.0.0.893.2438.1j0j1j5-1j2.5.0...0.0...1ac.1.11.youtube.-ISbl5AxRHc>.
Acesso em: 03/03/2013.

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associados ao lado pesado, energético e sem “adoçamentos”. Voltando ao
videoclipe e à canção, é possível notar algumas pistas que mostram que essa
fricção imposta pela articulação do feminino não é de uma simples troca,
mulheres que assumem valores normalmente associados ao masculino,
pois esse trânsito gera curtos-circuitos que materializam de modo complexo
essas inter-relações.
O vídeo mostra a banda tocando em um galpão, o que o conecta a
outros tradicionais de rock em que tocar os instrumentos, ou seja, a inter-
pretação da música é o ponto central. A própria edição apresenta detalhes
das músicas, dos instrumentos e de um balcão de bar onde só elas estão
presentes  um lugar comum nos audiovisuais de promoção dos músicos
heavy metal , mas, nesse caso, os detalhes são meia arrastão, bocas com
batom, unhas pintadas de vermelho. Nesse tensionamento entre o usual
e o diferencial de um protagonismo feminino, os detalhes não deixam ne-
cessariamente de ser usuais, desde que reinterpretados pelo feminino, pois
quem está bebendo, preparando o jogo ou, parafraseando a letra da canção,
quem está “queimando” são as mulheres da banda Cruciied Barbara, e nes-
se ponto não se esconde que os apelos libidinosos são protagonizados por
mulheres que estão em lugares tradicionalmente ocupados por homens. A
performance da banda mescla, então, agressividade e posições tipicamente
masculinas com meias, batons, unhas pintadas; há uma tensão entre pos-
síveis transformações da sensibilidade heavy metal e imagens que parecem
atender aos horizontes de expectativa hegemônicos masculinos.
As imagens das botas de salto vermelhas e a preparação da ponte
que antecede o refrão e o ápice da canção são apresentadas na edição por
poses sugestivas e uma alusão aos aspectos fálicos da guitarra no modo de
acariciá-la que reforçam a complexidade dos agenciamentos entre o heavy
metal e o feminino, reiterados na letra da canção: “(ponte) Everytime you
touch me, I shiver to the bone/ As a part of the game, that you can’t play
alone (pausa>refrão) Rock me like the Devil/ Whip your tail and turn me
on/ You turn me to eleven/ Leave me burning when you’re done”2.
O agenciamento do feminino se dá, então, não como um elemen-
to que transforma o heavy metal, mesmo porque, como já foi dito, há um
Rock With The Devil

2
Em tradução livre e mantendo as evocações sexuais da faixa: “Toda vez que você
me toca eu tremo até os ossos/ Como parte do jogo em que não se joga sozinho/
Balance-me como o Demônio/ Chicotei sua cauda e me excite/ Você me eleva a
onze/ Deixe-me em chamas quando acabar”.

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complexo jogo pressuposto na encenação e na sonoridade que é travado
dentro do espaço do gênero musical. A banda Cruciied Barbara se apresen-
ta e quer ser reconhecida como uma banda que circula dentro do universo
do rock pesado, são mulheres que se airmam como heavy metal, incluindo
as contradições e o sexismo desse universo, mas que, ao mesmo tempo, são
mulheres e músicas. Essas negociações perpassam o próprio universo do
heavy metal.

O heavy metal fundamenta-se profundamente nos efeitos da tecnologia,


não menos importante para a pureza de seu volume de som, impossível
até algumas décadas atrás. Mas o reverb e as unidades de eco, bem como
as soisticadas técnicas de overdubbing, tornaram-se importantes para as
gravações e performances de metal. Esse processo expandiu o espaço au-
ral, fazendo parecer que o poder da música se estende indeinidamente.
Essa espacialidade complementa a intensa isicalidade do que é comu-
mente chamado heavy metal, uma materialidade paradoxalmente criada
pelo som, mas um som tão alto e convincente que confunde as realidades
externas e internas da audiência. Ambos, volume extremo e produção de
indicadores artiicialmente aurais de espaço, permitem à música transfor-
mar a atual localização do ouvinte; a música afeta tanto a experiência do
espaço, bem como do tempo (WALSER, 1993, p. 45).

Surgem assim agenciamentos entre a rotulação como uma “banda


de qualidade” e um “grupo formado só por mulheres”. O feminino negocia e
emerge em meio a um espaço sonoro de intensidade extrema, de alto volu-
me e marcações graves reiterativas, características que não são usualmente
associadas às performances femininas no mundo da música, o que não sig-
niica que elas não podem ser feminilizadas.
No trecho da letra de Rock Me Like The Devil, aparece uma dupla
articulação que a vincula aos afetos do mundo metálico, evocando a igura
do demônio e a libido como referências de energia e sexualidade, ao mesmo
tempo que há um posicionamento do feminino na evocação dessas igu-
ras. Não há a típica associação entre um amor romantizado e sexualida-
de, um lugar batido do contraponto sexismo masculino versus feminilida-
Jeder Janotti Junior

de romântica, pois esses feixes de valores vão sendo negociados em uma


“hipersensualização metálica”. Como a canção demonstra, não se trata de
mulheres que simplesmente assumem o lugar do masculino, e sim do femi-

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nino, que, como os mediadores “[...] transformam, traduzem, distorcem e
modiicam o signiicado ou os elementos que supostamente veiculam” (LA-
TOUR, 2012, p. 65).
Ao contrário da obviedade visual de vários videoclipes de canções
heavy metal, em que há uma profusão de mulheres-objeto, no caso de Rock
Me Like the Devil o masculino é interpelado sem aparecer, é uma forma que
não se materializa de maneira explícita. Há os chifres, as evocações na le-
tra, mas não o corpo explícito. Mesmo porque lugares do masculino, como
tocar um instrumento e o balcão de bar, são ocupados pelo feminino. Mas
há uma sutileza que não pode deixar de ser notada, dado que estamos em
um cenário de posicionamentos bastante explícitos e que fricciona lugares-
-comuns: ao inal do vídeo, a vocalista, Mia Coldheart, berra “Rising Devil”,
numa preiguração do êxtase inal, característico desse tipo de canção, mas
que pode remeter tanto a Raise, no sentido de elevar-se, endurecer, quan-
to a Arise, surgir, aparecer; de qualquer modo, ambos os sentidos parecem
interconectados nos aspectos sensíveis da música que se materializam no
videoclipe.

My Heretic Lips

Criada nos anos 2000 em Maringá, no Paraná, a banda Panndora


possui uma trajetória que mistura lugares tradicionais das histórias de for-
mação de bandas de heavy metal pelo mundo: “um grupo de amigas que
frequentavam os shows de rock pesado em Maringá e resolveram formar
uma banda”3, ao mesmo tempo que apresenta singularidades, pois, como o
próprio nome escolhido sugere, Pandora é, tal como Eva, a primeira mulher
a ser criada no universo mítico grego, responsável por desestabilizar o mun-
do dos homens ao abrir a caixa que libertou os males humanos. A julgar
pelos 13 anos de existência da banda e pelo pouco número de lançamentos
musicais, pode-se imaginar que não deve ter sido fácil ser, talvez, a primeira
banda de garotas em uma cidade do interior do Paraná. Ao longo de uma
trajetória de mais de 10 anos, a Panndora lançou uma demo, dois EPs e,
recentemente, em 2011, seu primeiro trabalho dito “oicial”, o CD Heretic
Box’s.
Rock With The Devil

A sonoridade da banda é referenciada pelo chamado “heavy metal”


3
Todas as informações biográicas sobre a banda estão disponíveis em seu site
oicial: <http://www.panndora.net/panndorabio.html>. Acesso em: 03/03/2013.

82

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ou seja, bandas ligadas à New Wave of Heavy Metal4 nos anos 1980 que
acabaram por encetar uma gramática sonora, visual e comportamental
responsável pelo ressurgimento do gênero no inal do século XX e por sua
permanência até os dias atuais. Entre suas inluências, são citadas, entre
outras, Grave Digger, Judas Priest, Running Wild, Twisted Sister e Mano-
war. A formação atual tem Adrismith (bateria), Luana Bomb (guitarra),
Renata Paschoa (vocais), Taise Bijora (baixo). Reforçando o agenciamen-
to como banda feminina no metal, o grupo recrutou a guitarrista Paula
Carregosa como sua quinta integrante, em 2012. Agora, em vez de serem
garotas oriundas de Maringá, a entrada de Carregosa marca mais ainda a
denominação “banda de mulheres”, já que Paula é uma conhecida guitar-
rista do universo metal, com vários views de seus covers de rock no YouTu-
be, além do trabalho na banda paulista Detonator e nas Musas do Metal, do
ex-Hermes e Renato5 Bruno Sutter.
O videoclipe de promoção do primeiro disco da banda foi produzido
a partir da faixa Cold Eyes, uma canção que lembra o universo de referên-
cias da Panndora. A estrutura da música segue a gramática metálica estru-
turada em introdução (com riffs de guitarra)/estrofe/ponte vocal/refrão/
riff/ponte/refrão/solo de guitarras dobradas/refrão (repetido quatro vezes)/
Ponte Instrumental/Final. Na canção, é possível notar várias inluências
da banda britânica Iron Maiden, desde as guitarras dobradas6, a melodia
vocal, que segue as ritmações de baixo/bateria, a guitarra, que alterna en-
tre um solo cadenciado, melódico, e outro mais rápido, além da letra, que
evoca um universo medieval, mas não histórico, e sim mítico, calcado em
batalhas, guerras, universo tipicamente masculino.
A letra da canção Cold Eyes, de autoria da baterista, Adrismith7,

4
New Wave of Heavy Metal refere-se ao (re)surgimento do heavy metal nos anos
1980 liderado por bandas como Iron Maiden e Saxon, responsáveis pelo sucesso
comercial e pela formação estética do que hoje é conhecido pelos fãs como metal.
5
Programa humorístico da MTV que produziu paródias de diversos gêneros
musicais, como a música axé e o heavy metal.
6
Guitarras dobradas é a execução conjunta de duas guitarras com variantes de
notas de acordo com seus intervalos, usualmente no heavy metal usa-se a guitarra
dobrada em terça ou quinta.
Jeder Janotti Junior

7
Incialmente pensei que seu apelido é uma homenagem ao guitarrista do Iron
Maiden Adrian Smith mas na posteriormente, a baterista me corrigiu via e-mail
contando que seu codinome é uma referencia a sua antiga paixão roqueira, a
banda Aerosmith.

83

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também segue referências tradicionais do heavy metal. O eu lírico assume
o ponto de vista de identidade masculina, que normalmente serve às letras
do gênero musical. O refrão diz: “Ready for Boarding/Raise my sword/And
open the hell’s gate/ The specters will catch you/ Don’t cry for mercy/ From
your own castaway”, “Satan’s eye looking for you/ Fight like a brave and
don’t weaken/ Until your return/ The suffering will intense”8. Até aqui po-
demos supor que o próprio reconhecimento da qualidade musical da banda
passa pela não articulação do feminino, mas a audição e a visualização do
videoclipe apontam para um tensionamento desse caminho, já que antes
de mais nada a voz é feminina e a performance visual reitera aspectos da
feminilidade da banda9.
Logo no início do clipe, temos os instrumentos, entremeados por
imagens esmaecidas de uma mulher em um vestido longo que se dirige a
uma espécie de enseada. Então veem-se as botas e calças de couro das pes-
soas que vão tocar os instrumentos; aqui já se nota que são mulheres. Ape-
sar dessa licença poética das cenas da mulher em frente ao mar, o que mais
marca visualmente é um lugar característico dos vídeos de metal, inclusive
do Iron Maiden, que envolve cenas de palco, onde as garotas aparecem to-
cando, e cenas de ruínas em uma loresta, que evocam o espaço mítico do
heavy metal. As músicas assumem na performance a destreza e a técnica
musical, que são associadas à autenticidade do heavy metal. Logo no início,
percebe-se que, com exceção da guitarrista, que usa um casaco de couro, as
músicas usam vestimentas que lembram as das bandas de heavy metal, mas
que são friccionadas por corpetes de couro e camisetas em que os seios se
destacam. Aqui não se está diante de um agenciamento em primeiro plano
da libido, como observado no clipe da Cruciied Barbara, mas de um outro
tipo de interseção em que o vestuário é partilhado com o masculino: calças
de couro, botas, muitas tachas. No entanto, há, nos corpetes, nas camise-
tas, nas calças justas, na voz e nos closes das unhas e lábios com batons,
a airmação do feminino, que não se coloca diretamente por referências à
intensidade da libido, mas não deixa de emergir como um diferencial que

8
Refrão em tradução livre: Aio minha espada/ E abro a porta do inferno/ Os
espectros te pegarão/ Não chore por misericórdia/ Para o seu pior pesadelo”.
Rock With The Devil

Estrofe: “Os olhos de Satanás estão procurando você/ Lute como homem e não
enfraqueça até retornar/ O sofrimento intenso”.
9
Videoclipe “Cold Eyes” disponível em: <http://www.youtube.com/
watch?v=43tKKZXCgtM>. Acesso em: 03/03/2013.

84

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parece airmar que há um entrecruzamento entre produzir música metal de
qualidade e, ao mesmo tempo, agenciar traços de sexualidade feminina que
não são escondidos, e sim reiterados na performance, como detalhes que
friccionam diferenças.

Foto da banda Panndora com a formação que atua no videoclipe Cold Eyes

Uma leitura das letras de duas outras canções que fazem parte do
primeiro álbum da banda mostra que há também um tensionamento do
eu lírico tradicional do heavy metal, já que o deslocamento do masculi-
no passa a ocorrer a partir do corpo feminino. Na letra de Devil’s Man, a
banda canta: “Spreading love to all the corners/ When we roll on the loor
to the sound of a vinyl/ Smiling and being ironic with their tattooed lies/
The morning comes and he disappears when turns to the corner/ He gave
me love the whole night/ This man is the devil/ Night master thought’s
devourer”10. Há uma reterritorialização da libido, que é materializada em

10
“Espalhando amor por todos os cantos/ Quando rolamos no chão ao som de um
vinil/ sorrindo e sendo irônico com suas mentiras tatuadas/ A manhã chega, e ele
Jeder Janotti Junior

desaparece quando vira a esquina/ Ele me amou a noite toda/ Esse homem é um
demônio/ Mestre noturno de pensamentos devoradores”. Disponível em: <https://
myspace.com/panndoraband/music/album/heretic-39-s-box-16920151>.
Acesso em: 03/03/2013.

85

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um jogo entre identidades masculinas e femininas, podendo ser comparada
também às referências demoníacas do masculino na canção Rock Me Like
The Devil, da Cruciied Barbara. Antes de apontar para uma suposta “de-
monização” do masculino, é bom lembrar que a igurativização do demônio
como intensidade energética é tradicional no mundo do metal, mas o que
aparece como diferente é o modo como essas bandas femininas performa-
tizam essa igurativização, que passa a carregar alguns traços diferenciais
quando articulados pelo feminino.
Em outra canção, My Heretic Lips, é possível notar agenciamentos
diferenciados. O trecho descrito a seguir mostra outras camadas que colo-
cam interpelações em que a performance feminina airma-se de modo mais
contundente: “Now I know how to deal with him/ And when he comes to
me/ I just make him run away/ And he doesn’t come back ‘till he’s horny
again/ Don’t be afraid that cause me suffering”11. Nesse caso, estamos dian-
te de performatizações que envolvem ao mesmo tempo uma interpelação
do corpo no heavy metal, tradicionalmente irmado no masculino, e sua
fricção através da emersão do feminino. Não se trata de uma relação dual
em que se observaria a sobreposição do feminino ao masculino, e sim uma
rearticulação da performance no heavy metal através do tensionamento de
lugares marcadamente masculinos pelo agenciamento feminino. A inter-
pelação da excitação masculina como uma exigência do corpo feminino é
um elemento estranho aos códigos tradicionais do heavy metal.
Em entrevista publicada no site Whiplash, nota-se como a postura
sexista da cena heavy metal é encarada como algo que, ao mesmo tempo
que é enunciado, faz parte da coniguração dessa “teatralização do heavy
metal”. Pois, como é possível observar, a baterista, Adrismith, territorializa
a cena metálica como lugar machista, sem grandes concessões a esse fato.

O Metal sempre foi uma cena essencialmente machista. Vocês acham que
ainda continua dessa forma ou nunca enfrentaram problemas com rela-
ção a isso?
Adrismith: Sim, o metal sempre foi e sempre será machista, mas a diferen-
ça está na forma como você encara tudo isso e a maneira como se impõe.
Obviamente o número de fãs masculinos são maiores que os femininos,
Rock With The Devil

11
“Agora eu sei como lidar com ele/ E quando ele vem para mim/ Eu o coloco para
correr/ E ele não volta até que esteja excitado.” Disponível em: <http://www.
panndora.net/myheretic_lips.htm>. Acesso em: 03/03/2013.

86

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mas isso não é barreira quando você lida com algo sério e tem uma propos-
ta honesta! Já enfrentamos esse tipo de problema, sim, mas nada tão grave
a ponto de nos calar (RECKZIEGEL, 2012).

De modo complexo, vê-se articular o contraponto feminino não


como valorações opositivas, e sim como uma espécie de sobreposição, pois,
como já se airmou, a colocação do feminino em cena ocorre como uma
performance articulada através de valores tradicionais dos quadros axioló-
gicos do heavy metal, ou seja, autenticidade12, corroborada pela valoração
positiva da seriedade/honestidade. Assim, não se trata de contraposição,
mas de uma rearticulação desses valores, antes masculinos, através da me-
diação do feminino; reverberando a autonomia, elemento caro ao metal, a
partir de uma dupla negociação. Se é difícil manter-se no mundo da música
fazendo heavy metal, no caso da presença de bandas de mulheres na cena
há a emersão de um duplo obstáculo: ser mulher em um universo usual-
mente masculinizado. Para se airmar como autênticas no heavy metal, as
mulheres têm de negociar esses valores através do agenciamento do femini-
no em condições diversas e adversas: “Os grupos não são coisas silenciosas,
mas produto provisório de um rumor constante feito por milhões de vozes
contraditórias sobre o que vem a ser um grupo e quem pertence a ele” (LA-
TOUR, 2012, p. 55).
Não há fórmula mágica ou maneira homogênea de observar os
agenciamentos do feminino nas sonoridades do heavy metal em suas arti-
culações com os corpos que transitam nas cenas musicais. A presença das
mulheres nas bandas de heavy metal por si só já gera fricções e curtos-cir-
cuitos no marcado mundo do rock pesado. Mas essas articulações não são
simples nem duais, pois estão conectadas à presença de identidades femini-
nas não só no mundo da música, mas também na cultura contemporânea.
Essas articulações se apresentam de formas contraditórias e complexas,
podendo incorporar valores sexistas, bem como tensionar esses mesmos
valores de modo performativo.
Retornando à ideia de identidade como noção de si, o que pressu-
põe a performatização autorrelexiva, ver-se-á que o heavy metal está se
transformando. Não é mais a mesma cena e a mesma música, apesar de
Jeder Janotti Junior

12
Autenticidade, como procurei mostrar em outros textos (2004, 2012), não á algo
essencial, e sim uma articulação de valor que segue alguns padrões do universo
heavy metal.

87

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também o ser, pois está claro que outros atores, ou melhor, outras atrizes,
entraram em cena. E colocar-se em cena é da ordem de construção do pró-
prio espaço de representação, transformando espaços em lugares, desejos
em sonoridades.

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Apontamentos iniciais
sobre a cena Witch House:
A Viralização de um Subgênero
e suas Apropriações
Adriana Amaral

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A partir da disseminação das tecnologias de comunicação é notó-
ria a problematização de conceitos como subcultura, cena, movimento e
mesmo de comunidade em um contexto diferente do qual eles foram origi-
nalmente formulados, uma vez que tais práticas necessitam ser compreen-
didas no âmbito das formações sociais luidas e complexas que se apresen-
tam desde a teatralidade urbana dos clubs, das lojas de discos, das casas de
shows, da mídia especializada, até os sites de redes sociais, os aplicativos de
geolocalização e uma série de outras tecnologias nos quais a sociabilidade
urbana apresenta uma riqueza de fenômenos empíricos. As alianças for-
madas por ainidades de gosto continuam pautando os debates e as práticas
relacionadas à música e a auto-apresentação1 das mesmas através de uma
mediação tecnológica.
No presente artigo tomamos como ponto inicial um breve de um
resgate sobre a problematização do conceito de “cena” apresentada por
Straw (1997 [1991], 2006) e sua rediscussão por autores como Hersch-
mann (2007), Sá (2011), Janotti Jr (2012) e Trotta (2013) além da dis-
cussão da noção de cybersubcultura (Bell, 2000; Caspary & Manzenreiter,
2003) para propor uma análise introdutória das práticas de categorização
musical geradas a partir do subgênero de música eletrônica Witch House.
Nesse sentido, algumas questões emergem do objeto empírico e
guiam nossa observação. Seria possível então que as redes de relaciona-
mento do ciberespaço re-elaborem as hierarquias dos participantes em
uma cybersubcultura? De que forma a fala dos participantes faz eco aos
conceitos? Como a prática de recomendação e social tagging2 reconigura a
tradição da categorização da crítica musical e a participação dos atores nas
cenas musicais transnacionais? De que forma a fragmentação dos nichos
de mercado e dos gêneros musicais e a expansão e a popularização das pla-
taformas de música online operam na construção e reconiguração de um
subgênero “viral” como o Witch House?

1
De acordo com Caspary & Manzenreiter (2003, p. 71) “auto-promoção e auto-
apresentação são traços característicos da comunicação intencional mediada
por computador.” Tradução da autora: “Self-promotion and self-presentation are
characteristic traits of computer-mediated conscious communication”(Caspary &
Manzenreiter, 2003, p. 71).
Adriana Amaral

2
Os conceitos de Social Tagging e de sistemas de recomendação tem sido discutidos
por uma série de autores como Amaral (2007), Sá (2009), entre outros.

93

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Re-adentrando brevemente a noção de cena e
as relações subculturais com as tecnologias

Cena é um dos termos mais discutidos nos estudos sobre música e


comunicação (assim como em suas relações com a sociologia, antropolo-
gia, musicologia, etc). Sua proposição inicial, herança do jornalismo e da
crítica musical para tratar do jazz3 centralizava-se primeiramente na re-
lação das práticas sociais de grupos de pessoas em torno da música e sua
relação com a questão urbana. “Vale lembrar que o termo “cena” foi utili-
zado inicialmente para tentar dar conta de uma série de práticas sociais e
estéticas ligadas ao consumo de música nos territórios urbanos” (Janotti Jr,
2012, p.255).
Janotti Jr (2012, p. 255) enfatiza sua posição de que cena não deve
ser pensada como um “conceito com contornos precisos”, mas sim uma
“ideia que permite nomear experiências e atravessamentos estéticos, eco-
nômicos e identitários relacionados aos processos comunicacionais da mú-
sica popular massiva”. Em suas pesquisas, Herschmann (2007) alterna a
utilização do termo cena com a noção de circuito cultural, mais focado na
relação entre os espaços geográicos, simbólicos e as lógicas comerciais e de
consumo e os processos de sociabilidade.
Mesmo Will Straw, cujo trabalho discutiu e disseminou intensa-
mente a noção de cena, em entrevista recente a Janotti Jr (2012, Online)
diz acreditar na ampliação do mesmo, sendo não só restrito à música, mas
a certos tipos de objetos culturais “em esferas circunscritas de sociabilidade,
criatividade”. Assim, poderíamos pensar em uma “cena cosplay” (Amaral
& Duarte, 2008), por exemplo. Sá (2011, p. 152) também comenta essa
elasticidade do termo por tratar das relações e práticas em luxo entre uma
Apontamentos Iniciais Sobre a Cena Witch House

comunidade especíica e o ambiente das grandes cidades.


Nos debates durante o III Co-Música em Recife em 20134, Janotti
Jr.5 também salientou a questão de que o uso do termo enquanto categoria
de análise deve ser utilizado quando emergir da nomeação dos próprios ato-

3
O termo cena vinculado ao jazz e aos chamados “grupos desviantes” aparece em
estudos de autores vinculados de alguma forma à Escola de Chicago e a Robert Park
por exemplo.
4
O tema do evento foi cenas musicais.
5
Destaco que ambos os artigos, o de Janotti Jr e o de Trotta encontram-se nesta
coletânea em suas versões inais.

94

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res sociais e não ser dado como a priori. No mesmo evento, Trotta (2013)6
novamente problematizou o uso do termo cena citando o samba e o forró
como gêneros que não se adequariam a essa perspectiva. O autor propõe
então três pistas que poderiam cirscunscrever e indicar os tipos de análises
feitas sob o guarda-chuva cena. “O termo vai se referir a universos musicais
de (1) circulação restrita [ideia de underground] que estabelecem de algu-
ma forma uma conexão com praticas musicais do (2) mundo anglofono, e
que agrega (3) certo peril jovem”.
Tal proposição é polêmica e posiciona a língua inglesa, sobretudo,
como um item de distinção para cenas transnacionais e globalizadas. Além
disso, também tensiona os entornos de nicho e/ou subculturas que se rela-
cionam à circulação e ao consumo de gêneros mais restritos. Todavia, há
de se pensar uma série de complexidades circunscritas a essas observações
iniciais como o questionamento da própria noção de visibilidade/invisibili-
dade da circulação musical, sobretudo com a popularização dos sites de re-
des sociais e de plataformas como o You Tube. Dado esse contexto, será que
ainda podemos falar de “underground” ou essa seria uma percepção hips-
terizada7 (KINZEY, 2012) que ainda tenta buscar certa “autenticidade”?
Também é importante a rediscussão das noções de culturas juve-
nis (Borelli e Freire Filho, 2008) que o autor perspicazmente desvincula da
questão da faixa etária. A noção de envelhecimento nas culturas juvenis
é um tema recente na bibliograia sobre o tema e tem sido trabalhado por
Hodkinson (2011) no contexto das cenas e subculturas musicais britâni-
cas cuja pesquisa analisou como se dá o processo de envelhecimento em
subculturas como o punk e o gótico e que tipos práticas, de inserção e com-
portamentos de consumo os atores mantém ou não. Percebe-se então que
cenas e subculturas estão intrinsicamente relacionadas sejam nas articula-
ções com as culturas juvenis, as cenas musicais ou estudos sobre fãs. Assim,
é importante retomar, mesmo que brevemente, essas discussões.

6
Parto das minhas anotações sobre o evento e também de uma versão inicial do
texto de Felipe Trotta que foi enviada por e-mail em junho de 2013. A versão inal
do paper encontra-se nesta coletânea.
7
Adriana Amaral

Grifo da autora. Para Jake Kinzey,(2012) a atitude de busca pelo autêntico e pelo
novo juntamente com a ironia em torno do mesmo é uma marca distintiva do
“ethos” hipster.

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As relações entre cenas e subculturas

As tensões e críticas no que diz respeito ao legado dos estudos sub-


culturais britânicos da década de 80 têm ocupado espaço nas discussões
dos chamados estudos pós-subculturais dos anos 908.

A partir do esforço revisionista dos pós-subculturalistas proliferam novas


terminologias (canais, subcanais; redes temporárias de subcorrentes, ce-
nas; comunidades emocionais; culturas club; estilos de vida; neotribos),
em substituição ao conceito de subcultura, cujo valor heurístico – alega-se
– solapa diante das mutáveis sensibilidades e múltiplas estratiicações e in-
terações das culturas juvenis do pós-punk (FREIRE FILHO, 2005, p. 141).

Tais terminologias fornecem pistas valiosas para o entendimento


dos estudos pós-subculturais, mas não creio que substituam o conceito de
subcultura. Compreendo a utilização dessas terminologias enquanto parte
do próprio léxico da gramática subcultural. Interessa-me descrevê-las no
contexto da comunicação mediada por computador, e de que formas as
transformações terminológicas podem apontar para mudanças ou não nas
práticas sociais dos seus participantes.
Enfatizo também a utilização indistinta do conceito de cena e sua
migração para os espaços e ambientes digitais. Segundo Will Straw (2006),
o termo cena tem sido usado para designar fenômenos e locais tão distin-
tos quanto bares, movimentos musicais, globais ou locais, entre outros.
Cena parece, por exemplo, caber na lexibilidade de exemplos como a cena
psychobilly ou às movimentações subculturais localizadas (“a cena cario-
ca” por exemplo) ou globais. A questão do global versus local aparece, ain-
Apontamentos Iniciais Sobre a Cena Witch House

da segundo Straw (1997, p. 494) como “o modo no qual práticas musicais


dentro de uma cena se conectam aos processos de mudança histórica acon-
tecendo dentro de uma cultura musical internacional mais ampla e que
também será uma base signiicante da maneira na qual essas formas estão
posicionadas dentro da cena em nível local”9.

8
Thornton (1996), Muggleton (2000), Muggleton & Weinzerl (2004), Gelder &
Thornton (1997), Hodkinson (2011), entre outros são alguns dos representantes
dos estudos pós-subculturais.
9
Tradução da Autora: ““the manner in which musical practices within a scene tie
themselves to processes of historical change occurring within a larger international

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Percebemos essa utilização intensa de “cena” mesmo na fala dos
seus participantes. São habituais as discussões sobre a “cena” de tal cidade
ou se “Fulano ou Beltrana” participam da “cena”. Músicos e produtores
também endereçam suas falas ou entrevistas a essa “audiência invisível”
(boyd10, 2008)11
Em relação especíica à questão da cena musical, Straw (1997) des-
taca a importância da comunicação na construção de práticas e de alianças
musicais.

Uma cena musical é um espaço cultural no qual uma variedade de práticas


musicais coexiste, interagindo umas com as outras dentro de uma varie-
dade de processos de diferenciação, e, de acordo com amplas e variáveis
trajetórias de mudança e fertlização cruzada (Straw, 1997, p.494)12.

Alguns anos mais tarde, Straw (2006) rediscute essa con-


cepção, airmando que as cenas são vividas enquanto efervescência que
proporciona práticas e espaços organizados, sejam eles a favor ou contra
as mudanças. Percebe-se então que o conceito de cena, embora elástico,
ainda guarda alguma relação com a noção de espaço dentro dos centros
urbanos. Mas e quando as noções geográicas, sociais e culturais de espaço
se alteram em função do ciberespaço? De que maneira o conceito de cena
acompanha ou não tais rupturas e continuidades?
music culture will also be a signiicant basis of the way in which such forms are
positioned within that scene at the local level”. (STRAW, 1997, p. 494)

10
Saliento que a graia do sobrenome da autora é em letra minúscula. A própria
autora o escreve dessa forma.
11
Tomo de empréstimo aqui a noção de audiência invisível que a pesquisadora
danah boyd (2008) utiliza ao se referir às audiências da internet e dos sites de
redes sociais. Embora seja um tanto problemático fazer essa associação entre uma
consciência de audiência projetada nesses ambientes– ela existe mas pode atingir,
através da viralização, uma série de outros atores inesperados – e os atores de uma
cena, que normalmente mantém laços sociais e até mesmo se conhecem, creio ser
interessante para pensar nos casos especíicos em que a maior parte da mediação
da cena musical se dá online, como no caso da cena brasileira de industrial ou na
cena novaiorquina de witch house.
12
Tradução da Autora: “A musical scene is a cultural space in which a range of
Adriana Amaral

musical practices coexist, interacting with each other within a variety of processes
of differentiation, and according to widely varying trajectories of change and
cross-fertilization”. (Straw, 1997, p.494).

97

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A partir de inserções iniciais de nossa pesquisa anterior13, obser-
vamos que essa concepção ligada ao espaço e às práticas, por um lado se
mantém tanto discursivamente (na fala dos participantes e no discurso das
mídias jornalísticas especializadas) quanto nas trocas ofline (no espaço dos
clubs, lojas de roupas/ discos, etc) ou online (nos websites, fóruns, e-zines,
blogs, sites de redes sociais). Salientamos novamente que nossa análise cen-
tra-se num âmbito especíico em relação aos subgêneros de música eletrô-
nica industrial, uma vez que as cenas são as apropriações locais dos gêneros
e têm características próprias.

“Na verdade, hoje, eu acho que não dá mais pra falar nem mesmo na cena
de uma cidade como um todo – mas sim nas cenas diversas do Rio (de hou-
se, de D&B, de electro); de SP, etc...mas seria leviano eu traçar aqui as dife-
renças, rapidamente.Tem mesmo que analisar caso a caso – como algumas
cenas são mais fortes ou voláteis, quais os hábitos e valores de cada um dos
grupos, etc (SÁ, 2006, online).14

A cena “acontece” ou é construída, a partir do espaço onde ocor-


rem as trocas, hábitos e práticas sócio-comunicacionais, tanto em nível
macro (global) como em nível micro (local). É pertinente falarmos então,
em cenas, uma vez que, elas ocorrem ou de forma simultânea ou de forma
distribuída e contígua. A virtualização das cenas é um fator dependente do
crescimento e da consolidação, tanto dos estilos e subestilos musicais quan-
to das próprias subculturas.
As diferentes cenas parecem ser mais um entre os tantos elementos
e terminologias da complexa gramática subcultural, não sendo uma substi-
tuta conceitual da mesma. O uso do termo subcultura aqui pode apresentar
Apontamentos Iniciais Sobre a Cena Witch House

uma determinada ambigüidade, contudo tendo a concordar parcialmente


com a revisão do mesmo feita pelos estudiosos pós-subculturalistas, e é nes-
se contexto que o utilizo
Para enfatizar as especiicidades da cena nos ambientes digitais al-
13
O projeto de pesquisa Plataformas de Música On-line. Fandom, consumo,
classiicação e distribuição de música nos sites de redes sociais foi desenvolvido no
período de março de 2010 a fevereiro de 2013, com o apoio do CNPq.
14
Entrevista concedida por Simone de Sá ao portal de música eletrônica PoaBeat.
Pense e dance: a experiência estética da música eletrônica. 10.Ago.2006.
Disponível em: <http://www.poabeat.com.br/modules/eNoticias/article.
php?articleID=291> Acesso em 10/08/2007.

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guns autores como Bell (2000)15 e Caspary & Manzenreiter (2003) utili-
zam o termo cybersubcultura. David Bell airma que as cybersubculturas
são “formações sociais que tanto sinalizam um relacionamento expressivo
com as tecnologias digitais (…) ou fazem uso delas para aprofundarem um
projeto particular” (Bell, 2000, p. 205)16. Em seu estudo sobre as raves, Mc-
Call (2001) aponta essa apropriação das tecnologias pela subcultura raver
nos anos 1990 e início dos 2000.

O relacionamento das raves com a tecnologias é muito mais profunda do


que a Internet. Com sua relação inerente à digitalização e aos computado-
res, a música eletrônica não é apenas o hino da rave, mas frequentemente
é equiparada com uma estética cyber de forma mais ampla. (McCall, 2001,
p.127).17

Os fortes laços entre tecnologia e a própria subcultura aparecem


também na análise da cena Noise Japonesa feita por Caspary e Manzenrei-
ter (2003, p. 62). Para os autores, o fato de que o gênero noise18 “depende
profundamente de um trabalho de produção digitalizado (também chama-
do “música industrial”) tanto quanto nos usos de computadores pessoais e
de redes de computadores para disseminar os seus produtos, a deliberada
“ciborgização” parece ser inevitável.”19
No entanto, a noção de Bell sobre cybersubcultura é criticada por
Caspary e Manzenreiter (2003, p. 63) como demasiadamente ampla, tendo
15
Bell (2000, p.04) cita como exemplos de cybersubculturas os MUDders, osneo-
luditas, os hackers, os cyberpunks, entre outros. Esses exemplos são de subculturas
fortemente centradas na tecnologia enquanto leit-motif de suas existências.
16
Tradução da Autora: “social formations that either signal an expressive
relationship to digital technologies (...) or make use of it to further their particular
project” (Bell, 2000, p. 205).
17
Tradução da Autora: “Rave´s relationship with technology spreads much further
than the Internet. With its inherent relation to digitalization and computers,
electronica is not only the anthem of rave, but is often equated with a wider cyber
aesthetic” (McCall, 2001, p.127).
18
Sobre noise ver Pereira, Castanheira e Sarpa (2010), Pereira e Castanheira
(2011), Goddard, Halligan & Hegarty (2012), entre outros.
19
Tradução da Autora: “relies heavily on digitalized production work (so-called
Adriana Amaral

“industrial music”) as well as personal computer usage and computer networks to


disseminate its products, the deliberate “cyborgization” of the subculture seems to
be inevitable.” (Caspary e Manzenreiter, 2003, p. 62)

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perdido o io condutor que distingue uma formação subcultural do chamado
mainstream. Para os autores, essa categoria indeinida pode ser aplicada à

formações sociais cujos membros buscam projetos não-comerciais, sub-


culturais que são essencialmente dependentes das tecnologias de comu-
nicação para a sua existência. Nós reconhecemos uma cybersubcultura
quando o relacionamento entre tecnologia, estruturas sociais e processos
comunicativos que constituem a comunidade são tão íntimos, que sem a
tecnologia essa subcultura cessaria sua existência. (Caspary e Manzenrei-
ter, 2003, p. 63).20

A deinição dos autores parece esclarecer a questão da mera trans-


posição de uma subcultura para o contexto das redes digitais e de uma sub-
cultura na qual as tecnologias já são em si mesmas um fator essencial para
o seu nascimento e disseminação. Assim como no caso da cena noise japo-
nesa, estilos como o Industrial, o Synthpop, entre outros também possuem
sua produção dependente de instrumentos digitais como computadores,
samplers, baterias eletrônicas, etc, mesmo que, muitas vezes, em sua visua-
lidade/sonoridades próprias tais estilos sejam associados – principalmente
por parte dos membros de outras subculturas dentro da música eletrônica
como o techno ou o house, por exemplo – à chamada “low-tech” (tecnolo-
gias dos anos 80, mais simples de utilizar que se tornam cultuadas à medida
em que sua sonoridade demarca um determinado período histórico).
Além disso, nessas cenas, a própria temática “tecnologia” por vezes
aparece no discurso dos produtores, DJs, bandas; ou em capas de álbuns,
letras, entrevistas, itens de moda, etc. Embora, uma de suas matrizes sub-
culturais seja o gótico/darkwave21 dos anos 80 – cujo foco estava centra-
Apontamentos Iniciais Sobre a Cena Witch House

do mais no rock pós-punk – a subcultura electro-goth/industrial, assumiu


também sua inluência advinda da música eletrônica como o techno e o
20
Tradução da Autora: “Social formations whose members pursue a noncommercial,
subcultural project that is essentially dependent on communication technology
for its existence. We recognize a cybersubculture when the relationship between
technology, on the one side, and the social structures and communicative processes
that constitute the community, on the other, are so intimate that without technology,
this subculture would cease to exist” (Caspary e Manzenreiter, 2003, p. 63).
21
Para um maior entendimento do gótico/darkwave indicamos, entre outros,
Mercer (1997), Hodkinson (2002), Thompson (2002) e Baddeley (2005).

100

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electro. Sob esses aspectos, pode-se considerar esses gêneros no contexto de
uma cybersubcultura, uma vez que, sem os elementos tecnológicos ela não
teria como surgir nem como se disseminar e ganhar novos adeptos. Nesse
sentido, o Witch-House, poderia ser pensado a partir dessa deinição, uma
vez que a categorização do subgênero foi conigurada, em certa medida, a
partir da própria materialidade tecnológica que lehe é inerente (a produção
digitalizada, e a consequente construção do “nome” do gênero em seu ta-
ggeamento nos sites de redes sociais, como veremos a seguir). No entanto,
é preciso ainda problematizar melhor tais deinições e suas operacionaliza-
ção em relação à própria análise.

“Isto é contracultura do underground./ Revolução eterna, esse é o nosso


som” (KMFDM, Megalomaniac)22

“Por onde anda o underground?


Um beijo pro underground”23

Contudo, ainda assim, essa terminologia levanta contradi-


ções discursivas bastante problemáticas de serem delineadas, seja pelo as-
pecto de idealização e distinção do “underground” e da autenticidade ou
da circulação restrita, conforme apontada na crítica de Trotta (2013) e por
outro lado agregando o preixo cyber ela se vincula a uma ideia que remete
a uma separação entre as instâncias digitais e os ambientes urbanos que
não parece fazer sentido no contexto atual. Assim, apesar de sua extrema
dependência tecnológica em termos de softwares e hardwares, a música
eletrônica alternativa não se limita apenas aos ambientes digitais. Mesmo
o contexto brasileiro que por uma série de atravessamentos (econômicos,
sociais, estéticos, etc) não é tão propício aos shows, festas e as performances
22
Trecho da letra da música Megalomaniac da banda alemã de industrial KMFDM.
Tradução da autora: “This is counter-culture from the underground. / Eternal
revolution, this is our sound” (KMFDM, Megalomaniac)
23
Para muitos atores inseridos em cenas e subculturas, uma discussão preiódica
é a da suposta “morte do underground”, que teria acontecido, de acordo com
o discurso de muitos, devido a intensa visibilidade que a internet daria a essas
mesmas cenas e gêneros. Nesse subtítulo faço uma brincadeira com um meme
da apresentadora de TV brasileira Claudete Trojano que se referiu e mandou um
Adriana Amaral

beijo em um programa de TV ao vivo para uma atriz morta, Leila Lopes, que havia
morrido anos antes. Assim, entendo essa noção de “underground” como uma
espécie de zumbi que volta para atormentar as cenas.

101

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ao vivo dessa cena, possui também os seus pontos de encontro em algumas
capitais do país.
No entanto, também é preciso relativizar a conotação que o termo
não-comercial possui dentro da própria linguagem subcultural, na qual o
termo parece não excluir o comércio em si, principalmente no quesito de
estimular os fãs a irem aos shows e a comprarem o material produzido pelas
bandas – focado em um segmento de fãs que apreciam os estilos – mas sim,
que o projeto não foi feito com o objetivo de agradar a “públicos maiores” e
às grandes gravadoras. Essa é uma possibilidade de entendimento do termo
dentro do próprio universo da subcultura em questão.
Se o termo “não-comercial” for substituído pelo não menos con-
troverso termo underground, ainda estaríamos no campo das oposições
simplistas que não dão conta do complexo fenômeno da “cooptação” e vi-
sibilidade dos estilos subculturais pelo mainstream, como Caspary & Man-
zenreiter (2003) mesmo indicam.

Atualmente, parece que um sistema binário estrito de culturas musicais


underground versus mainstream (e ao mesmo tempo grupos que podem
ser mapeados unicamente por estilos ou gêneros) desapareceu completa-
mente. A questão é se um estilo musical, um grupo de fãs ou um grupo de
músicos, está articulando algo diferente, novo ou inovador que assinala
esse local , precisa ser mapeado de uma forma mais sensível. (CASPARY &
MANZENREITER, 2003, p. 63).24

De volta à questão da cybersubcultura, percebemos que a noção


pode ser pertinente para dar conta de subculturas que têm na tecnologia
sua principal ênfase desde sua constituição – como o caso dos hackers ou os
Apontamentos Iniciais Sobre a Cena Witch House

clubbers - bem como todos as subculturas surgidas a partir da sociabilidade


proporcionada pela música eletrônica –na qual a tecnologia é uma de suas
forças constituintes centrais – até a produção (no caso da música eletrônica
no qual os instrumentos são tecnológicos), divulgação, distribuição e disse-
24
Tradução da Autora: “Nowadays, it seems that a strict binary system of
underground versus mainstream music cultures (and at the same time groups that
can be mapped solely by styles or genres) has vanished completely. ThE question
of whether a musical style, a group of fans or a group of musicians is articulating
something different, new or innovative, something that points out of this place,
needs to be mapped in a much more sensitive way” (CASPARY & MANZENREITER,
2003, p. 63).

102

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minação de seus conteúdos através da internet, dos celulares, das platafor-
mas/redes sociais, do qual elas não podem ser excluídas. Contudo, o termo
parece carecer de sentido quando aplicado às subculturas que não possuem
uma vinculação direta com a tecnologia, mas que meramente transpõem
seus dados físicos e os seus relacionamentos ofline para o online.
Um ponto importante a ser demarcado aqui é deinir o que seria a
“ênfase na tecnologia”, uma vez que a maior parte da música popular mas-
siva produzida atualmente passa por processos de digitalização e/ou se uti-
liza de instrumentos eletrônicos. O sentido de “centralidade da tecnologia”
utilizado aqui é o do papel intenso das tecnologias como uma das mediações
mais importantes na relação entre músicos e audiência, tratada de forma
mais explícita a partir de uma problematização e de práticas de visibilidade
e transparência das mesmas, sobretudo nos sites de redes sociais.
Nossa concepção de “ênfase na tecnologia” pode abranger várias
questões, contudo destacamos as três que nos parecem mais relacionadas
a esse papel mediador: 1) a tematização da tecnologia em si pelo gênero,
seja através de títulos de álbuns ou canções e letras que remetem/citam
tecnologias especíicas ou em aspectos estético-visuais-sonoros; 2) os ins-
trumentos eletrônicos como softwares de produção, sintetizadores, etc, ga-
nhando o centro da sonoridade e melodia - na maior parte do tempo, mais
do que os instrumentos analógicos - e muitas vezes essa sonoridade pode
ser problematizada nas próprias músicas ou álbuns ou em entrevistas ou
nas falas dos atores da cena; 3) os processos técnicos de produção, remixa-
gem, masterização, etc, que utilizam tecnologias variadas são amplamente
divulgados pelos próprios artistas, e são consequentemente, comentados
por fãs e por outros artistas. Com a popularização dos sites de redes sociais,
essa prática que já era realizada - sobretudo através das revistas e da mídia
impressa, fanzies e webzines – se reconigura e ganha um espaço central.
Um exemplo disso é a publicação do post de Trent Reznor, líder do Nine Inch
Nails (NIN) no Tumblr oicial da banda no dia 28/08/201325 no qual ele
escreve detalhadamente a respeito de especiicações técnicas e os diferentes
formatos de áudio (CD, vinil, mp3, etc) do lançamento mais recente álbum
da banda Hesitation Marks. Alan Moulder, que fez a mixagem do álbum
entra em detalhes como volume, baixo, etc para explicar o processo aos
fãs. Apesar de ainda controverso, acredito que esses três pontos esclareçam
Adriana Amaral

25
Disponível em: <http://nineinchnails.tumblr.com/post/59587808317/
hesitation-marks-was-mastered-in-two-different>. Acesso em 28/08/2013.

103

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que a “ênfase nas tecnologias” se dá sobretudo em um plano discursivo, de
busca por distinção e autenticidade, que está na própria concepção desses
gêneros musicais. Portanto, mesmo que a música pop em geral também se
utilize da tecnologia para sua produção e para o relacionamento com os fãs,
ela é pouco ou quase nada problematizada e/ou tematizada seja no plano
dos processos ou dos discursos.
Enquanto o termo cybersubcultura abrange as relaçõs implícitas
numa subcultura, ou seja, as implicações da mesma com os aspectos tecno-
lógicos, sua moção ou força essencial de criação; a noção de cena nos ajuda
a compreender de que maneira os participantes fazem uso de suas práticas
e em quais espaços, hierarquias e níveis (micro/macro,online/ofline). As-
sim, as duas terminologias podem ser utilizadas, não como sinônimos, nem
como oposições, mas como elementos complementares para o entendimen-
to basilar da sociabilidade pós-subcultural.
Conforme nos apontam nossas primeiras aproximações com o cam-
po, ao contrário de subcultura – que se desdobrou no termo cibersubcultu-
ra – e que surgiu a partir de ruminações teóricas emergentes do empírico;
o termo cena foi transposto para os espaços virtuais, adotado tanto pelos
veículos especializados – no caso dos estilos musicais ou de vida – quanto
pelos próprios integrantes - produtores e audiência, que muitas vezes são
os mesmos – dessas subculturas. Talvez por sua lexibilidade e sensibilida-
de (apontada por Straw), e/ou mesmo por seu uso jornalístico, a noção de
cena permanece nos ambientes digitais e parece repercutir com mais resso-
nância como um vocábulo “coringa”, ou seja utilizado extensivamente por
analistas e por participantes da cena.
Após esses breves apontamentos - que não pretendem esgotar os
termos e suas relações - passamos então à discussão de um caso que articu-
Apontamentos Iniciais Sobre a Cena Witch House

la negociações de diferentes ordens ao mesmo tempo: de um lado a questão


das plataformas online de música e os luxos entre a categorização musical,
os atores da cena e a crítica.
“Não creio em bruxas, mas que elas escutam house, escutam”:
cena Witchhouse e a categorização de gêneros na internet
O caso que trago para discussão começou a me intrigar em 2011
e é um dos desdobramentos das minhas pesquisas sobre cenas e a música
industrial e os subgêneros da música eletrônica alternativa (Amaral, 2005;
2006; 2007; 2008) Nascida no começo da década de 1980, a subcultu-
ra em torno da música industrial ganhou mais força nos anos 1990, com

104

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a disseminação e a popularização das tecnologias de comunicação, assim
como os softwares de produção musical e equipamentos como baterias ele-
trônicas, samplers, etc.
No início dos anos 90, os fãs e participantes acabaram se subdividindo
entre diversos grupos e segmentando sonoridades, constituindo novos
subgêneros e até mesmo separando as cenas. Nesse período, a dicotomia da
produção eletrônica “pura” (número de Batidas Por Minuto, BPMs) X Uso e
velocidade das guitarras produziu um efeito que Monroe (1999) chama de
grungeicação e criou uma amplitude de formas de consumo, além é claro,
de disputas simbólicas entre os adeptos das sonoridades mais relacionadas
ao rock e aquelas mais eletrônicas – que acabam se relacionando ao techno,
house e outras vertentes que não utilizam guitarras.
As disputas entre participantes mais antigos e participantes mais
novos na cena (tensão usual nas subculturas) aumentam, ao que se
percebe que as noções de hierarquia de ordem social, da qual nos falam
Caspary e Manzenreiter (2003) continuam a existir de forma sutil, mesmo
que dentro de um domínio, aparente e discursivamente de maior liberdade
como é o caso da internet e seus fóruns de discussão, sites de redes sociais,
etc. Tais disputas simbólicas inluenciam até mesmo as maneiras estéticas e
estilísticas de autoapresentação e auto-promoção dos participantes da cena,
seja na construção dos seus peris e avatares online, seja nas discussões em
fóruns, e na produção e compartilhamento de conteúdo.
Com a extrema segmentação das cenas dentro da categoria maior
chamada música eletrônica (a partir da década de 90 surgiram muitos
estilos e subestilos criando cenas paralelas), não é mais possível falar da
cena da música eletrônica de forma generalizada, pois perdem-se nuances,
muitas vezes sutis, das diferentes noções de alteridade e subjetividades,
dos hábitos, comportamentos, usos e práticas que cada segmento faz dos
artefatos tecnológicos26.
A observação inicial do Witch House como um caso a ser
explorado mais detalhadamente aconteceu ainda enquanto eu pesquisava
essa cena a partir de sua aparição nas plataformas de música online como
26
Apesar da noção de artefato cultural ser central para minha abordagem sobre
os fenômenos da cultura digital, é importante destacar que essa proposição sobre
a especiicidade do gênero estar relacionada a padrões de identidade constituído
Adriana Amaral

nos ambientes digitais se relaciona a um enfoque que alguns autores chamam


de culturas da internet. (ESPINOSA, 2007). Para mais detalhes sobre o tema ver
Fragoso, Recuero & Amaral (2011, p. 41)

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Last.fm, Sound Cloud e até mesmo o You Tube. Reparei então que havia
uma incidência e um crescimento dessa palavra-chave na categorização
de um tipo de música que soava como um cruzamento do trip-hop com o
dubstep, gêneros menos vinculados à cultura industrial e mais vinculados
à cena global da música eletrônica. Contudo, muitos peris que escutavam
Witch House tinham na sua nuvem de tags (tagcloud) gêneros como o in-
dustrial, o EBM e o synthpop, entre outros. Essa similaridade entre os peris
foi observada inicialmente a partir do Last.fm e nas recomendações que o
próprio You Tube enviava para o meu peril (na aba ao lado da busca).
Num segundo momento, comecei a ler e observar publicações
online sobre música e tendências como o site Pitchfork27 e a revista Side-
-Line28, entre outros. Assim, comecei a perceber que o gênero não só era
interessante devido as suas experimentações sonoras e tecnológicas, mas
sim pela forma como a própria nomeação do mesmo havia sido produzida,
praticamente a partir dos sites de redes sociais, reconigurando um papel
tradicionalmente assumido pelos produtores da cena e/ou pelos críticos e
jornalistas.
Assim, a partir de uma observação exploratória do Witch House
nos sites de redes sociais levantei quatro questões que pretendo debater
acerca desse gênero: 1) o papel das plataformas de música online no con-
sumo de subgêneros de nicho e na reconiguração das cenas; 2) as práti-
cas de categorização musical – sejam elas humanas ou via algoritmos - que
surgem e/ou se intensiicam através das mesmas na constituição do que
alguns críticos musicais chamaram de “gênero viral” ou de gênero típico da
internet.; 3) o papel dos “mediadores” das cenas ; 4) a performatização de
elementos extra-musicais como o cinema, a moda e a “magia negra”, entre
outros, e a hibridização de sonoridades.
Apontamentos Iniciais Sobre a Cena Witch House

Saliento que no presente artigo, apenas discutirei as três primeiras


questões, uma vez que a quarta sairia do escopo do debate texto, mais fo-
cado na questão da categorização do gênero; no entanto, está sendo levada
em consideração para próximos artigos.
Arqueologia do Witch House: artefatos tecnológicos e a constitui-
ção do gênero
Conforme falado anteriormente, para pensarmos a constituição do
Witch House é preciso pensar em três matrizes sonoras: a música indus-
27
Disponível em: <http://pitchfork.com>. Acesso: 03/08/2013.
28
Disponível em: <http://www.side-line.com>. Acesso: 03/08/2013.

106

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trial29, o rap (sobretudo o rap da cena de Houston nos Estados Unidos) e o
dubsteb. Da música industrial, o WH parece “herdar” a predisposição aos
excessos avant-garde e experimentações cheias de barulhos, ruídos e caos
sonoro – sobretudo se pensarmos nos pioneiros Throbbing Gristle, Test De-
partment entre outros. Do rap, as batidas mais lentas, algumas técnicas de
mixagem e elementos visuais como o as roupas com capuzes. Do dubsteb30
as batidas mais lentas, a bateria sincopada e os padrões de percussão com
graves e linhas de baixo contendo frequências destacadas de subgraves.

Mapeando o DNA bruxulesco do Witch House

O termo WitchHouse surgiu em 2009 a partir da proposição do


produtor musical e designer novaiorquino Todd Pendu que escreveu uma
espécie de manifesto em defesa do gênero em seu blog31. Em linhas gerais,
podemos observar as características do estilo a partir de elementos musicais
e elementos extra-musicais.Em termos musicais podemos elencar: os vocais
sussurrados; as batidas mais lentas ao estilo dubstep; a inluência melódica
do EBM (Electronic Body Music); a experimentação do industrial; o uso de
samples de ilmes e produtos audiovisuais de horror (com predileção por
ilmes de estilo found footage32). Segundo Colly (2010, Online): “O hip-hop
de Houston ainda é central, mas eles [os artistas de witch house] também
estão btincando com dub, gótico, electro atual, ambient house ao estilo do
29
Uma série de autores tem discutido a música e a cena industrial a partir de
diversas abordagens como estética, política, social, etc. Alguns deles são Toth
(1997), Monroe (1999, 2005), Amaral (2006, 2012), Goddard (2008), Brill
(2008), Shekhovtsov (2009), Zuin (2011), Amaral (2012), Reed (2013), entre
outros.
30
Dubstep é um subgênero de música eletrônica que emerge a partir do inal dos
anos 90 no sul de Londres e é um desenvolvimento de vários estilos relacionados
como o garage, drum n bass, jungle, dub e reggae.
31
Disponível em: http://www.toddpendu.com/the-genesis-of-naming-a-genre-
witch-house>. Acesso: 02/09/2013.
32
Uma tradução literal seriam “ilmes perdidos”. É um gênero de ilmes,
especialmente de horror, no qual uma parte substancial ou o ilme todo pe
apresentado como se fosse um ilme descoberto ou gravações de vídeo perdidas ou
deixadas para trás por protagonistas desaparecidos ou mortos, geralmente gravado
com uma câmera trêmula. O início do gênero se dá em 1980 com o ilme Canibal
Adriana Amaral

Holocausto de Ruggero Deodato, mas ganhou popularidade a partir do inal dos


anos 90 após A Bruxa de Blair (1999) e no começo de 2000 com ilmes como
Atividade Paranormal (2007), REC (2007) e Cloverield (2008), entre outros.

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álbum do KLF Chill Out e até mesmo o pop das paradas de sucesso”.33
De acordo com o Last.fm, “o Witch House (também designado por
drag, rape gaze, screw gaze ou crunk shoegaze) é um termo utilizado para
descrever um gênero de fusão da música industrial, que apresenta inluên-
cias do hip-hop, especiicamente do DJ Screw, de Houston, anos 1990, que
consiste na aplicação de técnicas enraizadas no hip-hop - diminuição drás-
tica dos tempos e saltos - mas neste caso, com uso signiicante de noise,
drone, ou shoegaze, o gênero recontextualiza seus antepassados em uma
atmosfera sinistra”. Ou como airma o produtor Todd Penddu: “De um lado
do espectro existem as inluências do industrial e do EBM altamente ener-
géticos. Por outro lado há a inluência das músicas de baixo e graves mais
lentas; ambas encorporam uma estética sombria e uma atmosfera pesada”
(PENDU, 2009, Online)34.
Em termos extra-musicais, a “aura de mistério” sobre a identida-
de dos músicos, que normalmente aparecem encapuzados, os nomes das
bandas/projetos que se constituem por caracteres ilegíveis como †‡† ou
escritas típicas da internet como S4lem35, a relação com a moda de rua (a
publicação de editoriais de moda em revistas utilizando elementos como
os capuzes e as cruzes)36 e as temáticas de ocultismo, bruxaria, misticis-
mo combinadas trazem alguns dos elementos constitutivos do gênero. Esse
relacionamento do gênero com a moda e calcado em uma forte estética
visual – capas de álbuns, vestimentas, etc – também traz apontamentos e

33
Tradução da autora: “Houston hip-hop is still central, but they’re also toying with
dub, goth, current electro, ambient house á la KLF’s Chill Out, and even chart pop.”
34
“On one side of the spectrum there´s the high energy EBM/industrial inluences.
On the other side there´s the slowed-down bass music inluences; both embodied a
dark aesthetic and heavy atmosphere” (Penddu, 2009, Online)
Apontamentos Iniciais Sobre a Cena Witch House

35
Essa utilização de caracteres ilegíveis também não é novidade no mundo pop.
Em 1993, Prince decidiu mudar seu nome para um símbolo impronunciável – que
icou conhecido como “O símbolo do amor”, por juntar os símbolos de masculino
e feminino em um só. Essa atitude aconteceu devido a uma briga judicial com a
Warner Bros, sua gravadora. Como o nome era impronunciável, ele preferia ser
chamado “o artista anteriormente conhecido como Prince” ou simplesmente “o
Artista”.
36
A banda Salem – a mais conhecida do gênero - virou trilha do desile da marca
Givenchy na Semana de Moda de Paris em 2010, além de ter saído em uma série
de editoriais de moda em diversas revistas (Disponível em: <http://www1.folha.
uol.com.br/ilustrada/841967-com-influencia-da-magia-negra-witch-house-
conquista-as-pistas.shtml>. Acesso em: 12/09/2013.

108

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problematizações manifestadas pelos próprios apreciadores/simpatizantes
do gênero.
Em uma postagem recente no Facebook (31/08/2013), F.W, fã e
participante da cena industrial, comenta:
“Infelizmente, a estética do Witch House é muito mais bacana que o som.
Música para os olhos”.
Na sucessão de 16 comentários, alguns outros atores se manifes-
tam como R.A.:

Sim, as bandas de witch house têm nomes bisonhos e eu também gosto


disso. Também gosto do fato da maioria das musicas serem bem simples,
nada muito complexo, e beirando o inaudível. Sei la, é um movimento in-
teressante, numa era que as pessoas parecem ter uma crise de criatividade.
(…) essa faixa do modern witch é muito foda. Parece trilha sonora de ilme
de horror do john carpenter que passava de madrugada na bandeirantes
nos anos 90. Adoro esse clima, soturno, synths antigos... maneirão”.

É importante destacar que nenhum desses elementos é exatamente


novo: o punk rock e música eletrônica, por exemplo, já se utilizavam des-
sas estratégias de anonimato vide a cultura dos “white labels”; os aspectos
sombrios e místicos permeiam desde o Black Metal e o gothic rock. Mas a
recombinação desses elementos e o acréscimo da cultura visual do hip-hop
é que traz um certo ar de novidade à pervasividade obscura do gênero.
Após a criação do termo por Todd Pendu, os produtores Travis Ege-
dy (Pictureplane) e Jonathan Coward (Shams) nomearam o som produzido
por eles na cena de New York City como Witch House, ou segundo eles,
“dance music com vibrações ocultistas e bruxulescas” e publicaram o texto
no site Pitchfork, que, através da sua comunidade votou no projeto de Ege-
dy para a lista dos melhores do ano de 2010 em termos de música eletrô-
nica alternativa. Em janeiro de 2010, um usuário após a leitura do texto,
categorizou 14 artistas como Witch House no Last.fm. Dentre esses artistas
iguravam S4lem, Mater Suspiria e oOoOO. Em novembro do mesmo ano,
528 artistas iguravam sob o mesmo termo na plataforma. Em uma busca
mais recente (junho de 2013), localizei mais de 1.100 artistas/projetos.
Alguns jornalistas, atores e produtores da cena, incomodados com
Adriana Amaral

a especiicidade do termo tentaram criar alternativas como Ghost Drone,


Zombie Rave, Spooky Core, Drag e Rape Gaze, entre outros. Nenhum desses

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ganhou tanta aderência e popularização quanto a proposta de Witch Hou-
se. Em 24 de maio de 2010, Joe Colly, colaborador do Pitchfork, escreveu
um artigo sobre o Witch House intitulado “Ghosts in the machine”37 (Fan-
tasmas na máquina) contextualizando as bandas, o gênero e a cena. Nesse
artigo, o produtor Christopher Dexter Greenspan (que lança suas músicas
sob o nome oOoOO) problematiza a noção de cena e sua relação com as
tecnologias quando aplicada ao Witch House:

Eu sinto que muito do desenvolvimento da música atual acontece


online. As cenas locais não são tão importantes. Garotos na Flori-
da ou em Paris podem buscar qualquer música que eles quiserem, e
bandas ao redos do mundo podem ir em busca de artistas de qual-
quer lugar que possuam o mesmo tipo de visão que eles para inspirá-
-los. Então eu não sei se podemos nos chamar de “cena” no sentido
tradicional da palavra, mas parece que definitivamente há um grupo
crescente de pessoas que estão produzindo música com uma estética
similar, e que pessoas com quem eles nunca se encontraram estão
chamando de “drag” 38 (GREESPAN apud COLLY, 2010,Online) 39.
37
Ghost in the machine (Fantasma na máquina) é como o ilósofo inglês Gilbert
Ryle se refere ao que ele considera absurda descrição do dualismo mente-corpo
contido na obra do ilósofo francês René Descartes. O termo aparece no livro
“The Concept of the Mind” (1949) de Ryle. Na cultura pop, uma diversidade
de obras se apropriou ou fez referências ao termo de alguma forma: o álbum de
1981, Ghost in the Machine do Police, os populares mangá/anime japoneses
Ghost in the Shell, o rapper B.o.B e o grupo eletrônico The M. Machine também
possui canções intituladas “Ghost in the machine”. Obras de icção-cientíica e
seriados como Arquivo X e Futurama possuem episódios que se referem ao termo,
normalmente relacionados a consciência/inteligência artiicial dentro de sistemas
de computadores.
Apontamentos Iniciais Sobre a Cena Witch House

38
“O termo drag é parcialmente uma referência ao hip-hop metalizado e fatiado, o
estilo inventado por DJ Screw e outros em Houston nos anos 90 e foi primeiramente
utilizado pela banda Salem para descrever sua música. O Salem pegou o andamento
metálico e picado – com uma arrancada pesada e hipnótica – e o combinou com
synths assustadores e vocais para criar um som esquisito e cavernoso.” (COLLY,
2010, Online). Tradução da autora: “The term “drag” is partly a reference to
screwed and chopped hip-hop, the syrupy style cooked up by DJ Screw and others
in 1990s Houston, and was irst used by the band Salem to describe their music.
Salem took screwed and chopped’s pacing-- its heavy, hypnotic pull-- and combined
it with spooky synths and vocals to create an eerie, cavernous sound.”
39
Tradução da Autora: “I feel like so much of music development happens online
now. Local scenes aren’t as important. Kids in Florida or Paris can seek out

110

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Uma das primeiras polêmicas em torno da cena e do gênero ques-
tionavam se poderíamos chamar o Witch House de um gênero viral, cujo
cerne havia se constituído via internet. Quanto a isso, o próprio Todd Pendu
(2010, Online) escreveu em “The Genesis of naming a genre”:

O ponto de toda essa discussão é que algo novo aconteceu aqui para o mun-
do da música. Atualmente vivemos em um mundo no qual os gêneros não
são controlados pelos críticos de elite da mídia ou jornalistas que cunham
novos termos da música como faziam no passado com nomes fracos que
hoje utilizamos cotidianamente como Shoegaze, Grunge, etc. Isso pode ser
uma coisa boa... talvez. Nesse caso, o gênero foi espalhado viralmente, ten-
do começado com uma pessoa que utilizou o tagueamento como método
para deinir um gênero. Uma vez que foi categorizado e outros o encontra-
ram, foi uma questão dos outros aceitarem esse gênero como uma realida-
de e então se tornou realidade. Gênero fake ou gênero real? Não há mais
nenhuma diferença (PENDU, 2010, Online)40.

O artigo de Todd Pendu em seu blog41, citado acima, saiu em 08 de


Novembro de 2010, apenas quatro dias depois da matéria produzida pelo
jornal New York Times sobre a “cena witch house”, e nele o produtor ques-
tiona várias vezes o papel dos mediadores das mídias tradicionais, uma vez
que ele salienta a “paternidade do gênero” a um usuário do sistema de reco-
mendação Last.fm. Na matéria do New York Times42 - uma grande reporta-
whatever music they want, and bands around the world can seek out like-minded
artists from anywhere for inspiration. So I don’t know if it can be called a ‘scene’
in the traditional sense of the word, but it seems like there’s deinitely a growing
group of people making aesthetically similar music that people they’ve never met
are calling ‘drag’.” (GREENSPAN apud COLLY, 2010, Online)
40
Tradução da autora: “The point of this whole piece is that something new has
happened here for the music world. We now live in a world where genres aren’t
controlled by elite media writers or journalists who get to coin new music terms like
they did in the past with weak names that we now use everyday such as Shoegaze,
Grunge, etc. This may be a good thing… just maybe. In this case, this genre was
spread virally starting with one person using tagging as a method to deine a genre.
Once it was tagged and others had found it, it was a matter of others accepting this
genre as a reality and then it became a reality. Fake Genre or Real Genre?; there is
no difference anymore (PENDDU, 2010, Online).
41
Disponível em: <http://www.toddpendu.com/the-genesis-of-naming-a-genre-
Adriana Amaral

witch-house>. Acesso em 04/10/2011.


42
A matéria é intitulada “Sweeping out of Houston, slowly,” de Jon Caramanica,

111

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gem focada no legado do hip-hop da cena de Houston, sobretudo através de
um artista chamado DJ Screw – há a apresentação sobre a emergência da
cena Witch House, contudo enfatizando questões de ordem técnica/tecno-
logica e da materialidade do uso dos samples e scratches.
A partir do artigo, que de certa forma “legitima” o gênero, Todd
Penddu descreve as transformações nesse processo de nomeação e de me-
diação:

O NY Times recentemente fez um artigo discutindo Witch House, então


não há retorno... Há, entretetando, um daqui para frente. Os mesmos mé-
todos podem ser usados para novos nomes de gêneros, novas deinições
ou contrarreações... A transformação é inevitável enquanto avançamos e
subgêneros e micro-gêneros mais novos certamente estarão presentes por
um longo, longo tempo (PENDU, 2010, Online).43

A partir das discussões propostas pelos próprios atores em seus


discursos percebemos os dois primeiros pontos indicados no debate so-
bre cena: o uso de terminologias próprias e a prática e a disseminação da
nomeação dos gêneros através dos sites de recomendação musical. Ora,
quanto ao primeiro ponto, não há grandes novidades, embora o discurso
de Todd Pendu nos faça querer crer que há. A categorização sempre partiu
dos próprios atores das cenas, que agem como mediadores dessas questões.
A legitimação se dava, no entanto, através da chancela da mídia massiva,
que popularizava um determinado termo como Punk, Shoegaze ou Gótico
por exemplo. Essa prática também continua aqui, através da igura do New
York Times, referido no próprio discurso de Pendu, que inclusive é dono de
um dos selos que lança o gênero, o Pendu Sound Recordings44.
Apontamentos Iniciais Sobre a Cena Witch House

No entanto, esse processo ganha novos contornos pelo agencia-


mento dos sistemas de recomendação e dos próprios usuários que através
dessa categorização, viralizaram o alcance do Witch House em pouquíssi-
04/11/2010 (Disponível em: <http://www.nytimes.com/2010/11/07/arts/
music/07witch.html?pagewanted=1&_r=1&>. Acesso em 14/10/2012).
43
Tradução da autora: “The NYTimes just did an article discussing Witch
House, so there’s no going back… There is, however, going forward. These same
methods can be used for new genre names, new deinitions, or for counteraction…
Transformation is inevitable as we move forward and newer sub-genres and newer
micro-genres are sure to be around for a long long time.” (PENDU, 2010, Online)
44
Disponível em: <http://pendusound.com>. Acesso: 04/01/2013.

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mo tempo via Last.fm e, assim, pautando o jornal New York Times, além
de tomarem para si essa “criação” debatendo e descrevendo os processos
através de blogs, fóruns, sites de redes sociais. Assim, a problematização das
práticas de “nomeação” dos gêneros e do próprio uso dos meios digitais é
discutido online pelos participantes da cena, tornando-se um item inerente
a ela mesma e assim reconigurando o papel das tecnologias na constitui-
ção dos gêneros, das cenas e das subculturas.
Um último adendo no luxo midiático é o fato de que em 04 de mar-
ço de 2013 foi exibido o sétimo episódio da primeira temporada da série de
televisão “The Following”, produzida pelo canal norte-americano Fox. No
inal desse episódio, a trilha sonora foi a música If I had a heart da banda
sueca Fever Ray45. Essa música, embora lançada em 2009 é considerada
uma das antecessoras do gênero Witch House, e, após a popularização do
gênero, muitas vezes aparece com essa tag nos sistemas de recomendação.
Assim, tendo sido utilizada como trilha em um seriado popular, temos mais
um elemento nesse complexo circuito de informações e de retroalimenta-
ção de mediadores e de disseminação do gênero: a televisão aberta (Canal
Fox) e um formato especíico (o seriado).
Outro item interessante se dá na própria disputa interna dos atores
no embate entre “quem está mais tempo na cena” e quem é um mero “no-
vato” ou quem não conhece os códigos, comumente chamado de “poser”
ou “newbie” na linguagem subcultural. Atualmente, esse tipo de disputa
acontece muitas vezes em forma de humor e novas apropriações de ma-
teriais. Em 2011, baseados nos próprios discursos dos atores das cenas, o
site Flavorwire46 elencou em um texto 15 características do gênero que os
iniciantes “deveriam saber” para “serem entendidos no gênero”. A questão
da centralidade da internet para a construção do Witch House é um dos
destaques:

Enfatize a importância da Internet: Depois que o termo foi cunhado, al-


guém começou a taguear bandas como Witch House em vários sites de
música. Todd Pendu acredita que isso teve um efeito na criação do gêne-

45
O Fever Ray é um projeto paralelo da cantora sueca Karin Dreijer Andersson, do
duo The Knife.
Adriana Amaral

46
Disponível em: <http://lavorwire.com/143984/how-to-be-a-witch-house-
poser>. Aceso: 21/03/2013.

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ro. Isso deve aprofundar a sua compreensão de que o fenômeno Witch
House não teria acontecido sem a Internet.47 (JOVANOVIC, 2011, On-
line)

Assim, mesmo que de uma forma bem humorada, há uma auto-


-relexão dos mesmos sobre os próprios pressupostos sob os quais o gênero
foi constituído. Todas essas questões enfatizam de um lado a importância
da própria noção de cena para os atores – mesmo que essa cena não se res-
trinja a uma cidade como New York ou apenas a um grupo de pessoas, os
produtores que iniciaram o processo de construção do gênero - dos novos
mediadores que emergem a partir das plataformas e sites de recomendação
musical e as práticas de categorização musical, desfazendo – pelo menos
nesse caso especíico – a ideia de que gênero não mais importaria nesse con-
texto. Assim, percebemos que as cenas e subculturas se articulam através
de práticas que já estavam presentes na formação das subculturas, sobre-
tudo no plano da linguagem e das ações, mas ao mesmo tempo conseguem
adquirir um alcance e uma popularização mais rápida e mais focada, vira-
lizada, como outros fenômenos da cultura digital, além da própria visibili-
dade e problematização dos luxos desses processos nos próprios ambientes
online.

Considerações Finais

A partir de alguns apontamentos iniciais rediscutimos brevemen-


te as noções de cena e subcultura no contexto da comunicação mediada
pelo computador a partir do breve exemplo da constituição do subgênero
de música eletrônica alternativa Witch House. O processo de viralização
Apontamentos Iniciais Sobre a Cena Witch House

do gênero, desde os produtores da cena até os usuários do Last.fm nos traz


algumas pistas para pensar os caminhos pelos quais as cenas e as subcul-
turas continuam a reconstruir seu caminho no contexto da comunicação
digital. A percepção de que os mediadores, as plataformas de discussão e
recomendação musical (a materialidade e o ato de categorizar) combinadas
47
Tradução da Autora: “Emphasize the importance of the Internet: After the term
was coined, someone went out and started tagging bands as “Witch House” on
various music sites. Todd Pendu believes that this had an effect on the creation
of the genre. This should further your understanding that the phenomenon of
“Witch House” would not have happened without the Internet.” (JOVANOVIC,
2011, Online)

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aos processos de apresentação da mídia massiva demonstram que tanto é
preciso rediscutir esses termos frente a novas formações e comportamentos
de consumo musical quanto é preciso relativizar os discursos que indicam
extrema novidade nas práticas, uma vez que muitas delas fazem parte da
tradição gramatical e modular das subculturas e cenas. Mesmo assim aqui
indicamos apenas alguns apontamentos iniciais que precisam ser aprofun-
dados a partir de cada caso especíico.
Por im, no que tange o Witch House mais especiicamente, contra-
riamente a várias indicações de alguns críticos que comentavam a “novi-
dade” e a “efemeridade” do subgênero, três anos depois – uma eternidade
em termos de modas e da própria internet – ele continua presente, seja na
mídia massiva (vide o caso do seriado The Following) em sucessivos desiles
de moda; seja com novas produções sendo lançadas48 como sendo discutido
nos fóruns e sites de redes sociais49. Além disso, através desses processos, até
mesmo subgêneros mais antigos como o dreampop, ressurgem em uma nova
geração que também ecoa, de certa forma sonoridades e práticas presentes
no Witch House. Mas essa é toda uma outra história, um outro artigo.

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virtual das práticas comunicacionais na plataforma social Last.fm. In: FREIRE

48
Projetos iniciais como o Mater Suspiria têm lançado materiais novos, basta
uma consulta aos selos como, por exemplo, o Phantasma Disques, disponível em:
<http://phantasmadisques.bigcartel.com>. Acesso em 10/08/2013.
Adriana Amaral

49
O fórum Witch-House.com (disponível em <http://witch-house.com>. Acesso
em: 10/08/2013) continua bastante ativo em postagens.

115

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Adriana Amaral

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As Conveniências do Brega
Thiago Soares

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Apesar de soar um tanto quando “fora de moda” falar em
categorias estanques de estratiicação da sociedade, como classe social e
faixa etária, por exemplo, observa-se ainda o frequente uso destas molduras
“enquadrantes” como forma de circunscrever fenômenos nas cenas
musicais contemporâneas. Em particular, no contexto da música brega
do Recife, há uma constante convocação da noção de classe social para
reconhecer as dinâmicas de endereçamento das festas e bailes. Observa-
se também que ainda se faz uso constante da dicotomia periferia/Zona
Sul como atributos de localização geográica dos eventos, assim como
retrancas valorativas dentro de uma política de ocupação dos espaços de
entretenimento. Por isso, expressões ditas, muitas vezes, em tom pejorativo,
como “festa de música brega para playboy” ou “patricinhas da Zona Sul vão
à periferia para clubes de brega” servem como aparatos de mapeamento
de tensões envolvendo fruidores e ambientes desta cena musical recifense.
Este texto parte da observação de uma tensão: as apropriações da música
brega contemporânea feitas por produtores culturais em eventos voltados
para a classe média e que acontecem em boates ou espaços “descolados”
da Zona Sul do Recife. Questões sobre autenticidade, legitimidade e formas
“corretas” de engajamento de uma estética que emerge da periferia são
acionadas.
O debate que trazemos visa discutir este tensionamento a partir
de dinâmicas performáticas que se fazem nos deslocamentos na cidade e
privilegiam os engajamentos efêmeros, estratégicos e táticos. A ideia aqui é
pensar como esses eventos que acontecem na Zona Sul traduzem lógicas de
ocupação do espaço urbano que precisam ser pensadas como instâncias de
performatização. O acionamento de determinadas performances nos jogos
de lerte da cultura da noite é sintoma de uma ocupação lúdica a partir
de retrancas que são postas em circulação através das ingerências dos
espaços sexualizados. Fazer “pegação”, lertar, namorar são motivos para
se ir a uma festa brega1 – para além da própria música. Performatizar é,
1
Cabe aqui uma deinição acerca do que vem a ser uma festa brega no contexto da
cidade do Recife e Região Metropolitana: trata-se de um evento em que artistas da
cena brega local se apresentam. Neste sentido, adota-se o brega como um gênero
musical e a festa como uma espacialidade em que a estética e as experiências deste
gênero são performatizadas. Artistas como MC Shedon, Michelle Melo, banda
Musa do Calypso, Kitara, entre outros, são endereçados como “bregas”. Vale aqui
Thiago Soares

fazer diferenciações dos usos acerca do termo: o emprego do brega no Recife difere,
por exemplo, do tecnobrega do Pará e também da música cafona dos anos 70.

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naturalmente, negociar. E pensamos numa negociação que se dá na ordem
das conveniências culturais, de uma política de ocupação do espaço da
cidade que se faz de forma assumidamente frívola e precária. A questão que
permeia esta investigação diz respeito às maneiras com as quais o brega foi
se tornando conveniente (para quem? para que?) no contexto da cultura
do entretenimento no Recife. Nosso olhar é permeado pela identiicação de
micropolíticas, jogos de poder e legitimação acionados, muitas vezes, por
retrancas econômicas que agem sobre a disposição estética.
Para adentrar nos meandros da cena brega do Recife, é preciso
posicioná-la num quadro mais macro em que outros gêneros e experiências
musicais - como o Manguebeat2, o circuito “indie rock”, por exemplo –
foram/são hegemônicos na formatação da imagem do Recife como uma
“cidade musical”. Pensando nas tensões acarretadas entre as perspectivas do
senso comum e as legitimações por parte do jornalismo cultural, é possível o
reconhecimento de uma cultura musical do Recife que, hegemonicamente,
se traduz através do Carnaval, dos festivais de música (com ênfase no rock
e suas variáveis) e da cristalização do uso do Manguebeat como retranca de
endereçamento, inclusive, de uma série de políticas culturais. Minha intenção,
neste texto, não é identiicar tensões entre a cena brega e outras manifestações
musicais, suas disputas e busca por legitimação, mas sim, primeiramente,
localizar a cultura musical do brega num quadro mais amplo e plural na
cidade do Recife e, com isso, verticalizar a observação na cena, em si. É desta
verticalização em tornos dos espaços e das lógicas de ocupação da música
brega no contexto do Recife que faremos inferências sobre o que consideramos
ser a partitura de conveniências em torno da fruição e dos usos deste gênero
musical. Para debater com mais detimento estas questões aqui elencadas,
precisamos conhecer, primeiramente, as espacialidades que foram centrais na
constituição da cena brega do Recife. Nesta direção, espaços codiicados por
gêneros musicais populares funcionam como articuladores da permissividade
da ocupação da música brega nas lógicas de consumo no Recife.
2
O Manguebeat (também grafado como Manguebit ou Mangue beat) pode ser
traduzido como um movimento de inspiração contracultural ocorrido no Recife
As Conveniências do Brega

na década de 1990 que usava do mangue como metáfora da diversidade musical


de Pernambuco. Artistas que promoviam “misturas” de ritmos regionais, como
o maracatu com o rock e o hip hop, despontaram neste cenário, notadamente,
Chico Science e Nação Zumbi e Mundo Livre S/A. O Manguebeat inluenciou
bandas de Pernambuco, sendo o principal “motor” para Recife ser reconhecida
midiaticamente como um “centro musical”, e permanecer com esse título até hoje.

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Espacialidades bregueiras3

Historicizar os ambientes performáticos numa cena musical é uma


atividade fundamental para compreender como espacialidades são agentes
de interpretação de uma geograia humana que se atrela a gêneros musicais.
Pensar a existência de uma cena brega do Recife, com a experiência estética
de um gênero musical, as corporalidades dos sujeitos, os deslocamentos
urbanos dos frequentadores, toda a economia da cultura resultante de
empresários, casas de shows, espaços de circulação e consumo dos produtos
(arquivos de MP3, CDs e DVDs piratas), signiica perceber tal cenário
como resultante de (re)organizações, outras combinações e ambientes de
performatização de gêneros musicais populares. Em síntese, a cena brega
do Recife deve ser pensada como constituída por vestígios de sonoridades
de gêneros musicais populares, ambientes em que tais sonoridades foram
performatizadas, engajamentos dos sujeitos nestas espacialidades e,
sobretudo, enunciações que cristalizaram modos de fruir a musicalidade
popular pernambucana.
Na cena brega do Recife, trazer à tona uma perspectiva histórica
sobre os espaços de lazer e entretenimento auxilia na compreensão
dos encaixes e tensões relativos aos diálogos entre estéticas dos gêneros
musicais populares. Dessa forma, não se pode pensar a cena brega do
Recife sem recorrer aos espaços ligados ao pagode romântico, à suingueira4
e ao samba como “brechas” da entrada dos artistas de brega na cultura
do entretenimento. Na noite recifense nos anos 1990, assistíamos à
presença maciça das pagoderias, casas dedicadas a grupos de pagode
tanto locais quanto nacionais, que funcionavam como espaços de lazer
tanto na periferia da cidade, quando nas áreas centrais e nos bairros mais
nobres da Zona Sul. A tentativa é entender como o brega foi ocupando as
espacialidades, primeiramente da periferia, migrando, em seguida, para a
Zona Sul do Recife, numa lógica de negociação com outro gênero musical
popular, que vamos chamar aqui genericamente de “pagode”. Lançamos
3
O termo “bregueiro” é empregado, de maneira coloquial, para deinir sujeitos que
frequentam as festas bregas. Há uma tensão no uso do termo, sobretudo, em função
de uma lógica contrahegemônica: assumir-se “bregueiro” signiica ter “orgulho”
da música da periferia da cidade que passou a embalar também as boates da Zona
Sul da cidade.
Thiago Soares

4
Nomenclatura que soa como uma síntese da junção entre o pagode baiano e a
axé music.

125

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a questão: como artistas ligados ao universo bregueiro no Recife foram,
gradativamente, deixando de ser “estranhos” em casas noturnas voltadas à
classe média recifense e passando a ser “legítimos” nestes espaços?
As casas de entretenimento popular que traziam atrativos de pagode
ainda nos anos 1990 podem ser pensadas a partir de endereçamentos
geográicos: não exclusivamente o Recife, mas, sobretudo, a Região
Metropolitana (que compreende, além da capital pernambucana, outros
municípios como Jaboatão dos Guararapes, Cabo de Santo Agostinho,
Olinda, Paulista, Camaragibe, Abreu e Lima). Formas de endereçamento
foram fundamentais para a inserção do brega na partitura de fruição dos
freqüentadores destes espaços. As casas de pagode da Zona Sul (bairros
de Boa Viagem, Pina, Piedade, Candeias, Imbiribeira) centravam seus
atrativos em diálogos entre pagode e axé music, enquanto que, na Zona
Norte (Casa Amarela, Ibura, Jardim São Paulo, entre outros), a negociação
entre artistas de pagode e de brega sempre foram – digamos - mais abertas5.
O Pagode da Adega, da Lulagem, Entre Amigos – O Bode eram points
na Zona Sul, que tinham o foco de suas noitadas, a presença de “gente
bonita” que se encontrava “depois da praia”. Entre os atrativos, grupos de
pagode constituídos quase sempre por garotos de classe média, estudantes
universitários, como Pagunça e Padang, e bandas com repertório de axé
music6. Esta aproximação entre o pagode e a axé music tinha constituinte
de viabilidade econômica: grande parte dos empresários, proprietários
de pagoderias da Zona Sul do Recife, eram também “donos” de blocos de
Carnaval que “saíam” no Recifolia – a micareta que acontecia no Recife
neste período. Esta deliberada aproximação entre pagode e axé music gerou
certa blindagem a outros gêneros musicais como constituintes de atrativos
nas pagoderias da Zona Sul.
Em contrapartida, locais como o Pagode da Wanda, Espaço Aberto,
Galpão 40 Graus, entre outros, que integravam o “circuito pagodeiro” da
Zona Norte (envolvendo o que comumente se chama de periferia do Recife)
5
Podemos pensar também numa geograia distintiva dos espaços de shows: havia
aqueles mais “nobres” na área de entretenimento, como o Circo Maluco Beleza
As Conveniências do Brega

(reduto onde jovens da classe média se reuniam, freqüentemente, para shows de


axé music), o Clube Português ou o Pavilhão do Centro de Convenções também
cediam seus palcos para apresentações de grupos de pagode.
6
Lembremos que os anos 1990 foram centrais na cristalização da axé music e das
micaretas, os Carnavais fora de época num modelo de entretenimento gerado nos
padrões da folia de Salvador.

126

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a ausência de ligações entre empresários do entretenimento e as lógicas da
axé music, gerou um ambiente de maior permissividade para os artistas
do brega – sem falar, obviamente, de uma aproximação geográica entre
as residências dos próprios artistas e os locais de entretenimento. Numa
escala menor, é possível inclusive, trazer à tona evidências de proprietários
de pagoderias da Zona Norte que mudaram o negócio e adentraram na
lógica de empresariar artistas do brega.
Formatava-se, assim, um circuito de espacialidades de música po-
pular na cidade do Recife. De maneira geral, na virada dos anos 1990 para
2000, a cultura de lazer e entretenimento popular da cidade estava dividida
da seguinte forma:

1. As pagoderias seguiam atraindo grande parte da massa de jo-


vens, tanto com os grupos de pagode propriamente ditos, quanto com artis-
tas oriundos da axé music, do funk ou em dias temáticos com os chamados
“banhos de espuma”7. Estabelecimentos como o Veleiro do Guaiamum e o
Caldeirão, localizados em bairros nobres como Espinheiro e Casa Forte, ou
pagoderias situadas em Boa Viagem, davam a tônica neste formato de festa.
É curioso perceber que não havia uma segmentação dos espaços por classe
social, pois grupos de pagode como Sassarico, Pagunça ou Padang tocavam
tanto nas pagoderias da Zona Sul (usual reduto da classe média), quanto
nas casas de pagode da Zona Norte;

2. Os clubes de bairro passavam a despertar interesse dos jovens


das periferias do Recife e atraíam grupos de pagode para suas programações
culturais, outrora dedicada exclusivamente, por exemplo, à seresta, promo-
vendo uma mescla de atrações de ordem mais “romântica” e “dor-de-co-
tovelo”, com o “alto astral” dos pagodeiros. Fazem parte deste segmento,
locais como o Clube das Pás, em Campo Grande, o Atlético Clube de Ama-
dores, em Afogados, o Treze do Vasco, em Vasco da Gama, o Intermunicipal
de Prazeres, em Jaboatão dos Guararapes e o Jaboatonense, em Jaboatão
Velho – grande parte desses clubes de bairro integram políticas públicas de
descentralização do entretenimento popular;

7
Uma prática que se assemelhava ao quadro da Banheira do Gugu, do Domingo
Legal, em que, a certa hora, em meio a um show de pagode, jogava-se espuma na
Thiago Soares

platéia e se iniciava uma “guerra” de mela-mela que se convertia num jogo de


paquera e sedução.

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3. As casas de serestas eram estabelecimentos em que se concen-
travam atrações mais ligadas à música romântica, com shows de artistas
como Daniel Bueno, Reginaldo Rossi, Nádia Maia e, inevitavelmente, atra-
tivos relacionados à Jovem Guarda, como Renato e Seus Blue Caps, The Fe-
vers e cantores “da fossa” como Núbia Lafayette, Cauby Peixoto e Waleska.
Estes locais agregavam, substancialmente, pessoas “mais velhas”, muitas
vezes, interessadas em relembrar grandes sucessos do cancioneiro popular,
de preferência, com um “copo de uísque na mão”;

4. Os forrogodes eram espaços em que oscilavam atrações de pago-


de e de forró, agregando de maneira mais evidente o público jovem, muitas
vezes, universitário. Grande parte dos espaços de forrogode se localizavam
perto de universidades particulares do Recife (Feitiço Tropical, Pappillon).
Nestes locais, era possível entender a reverberação de que o forró rompia
com a sazonalidade do período das festas juninas. Mais especiicamente o
forró da chamada oxente music, movimentação em torno de grupos como
Magníicos, Mastruz com Leite e outros, oriundos, grande parte, do Ceará, e
que ganhavam divulgação através da rádio Som Zoom Sat, gerando público
em todo o Nordeste.

É da conluência do clima de “azaração” das pagoderias, em


consonância com a lógica da “dor de cotovelo” dos clubes de seresta e das
formas de engajamento, dança e lerte do forró da oxente music que os clubes
de bairro se tornam locais propícios à gênese de uma cultura da música
brega contemporânea. Obviamente que as espacialidades só agregam o
brega porque há instituições no que se convencionou chamar de circuito
de cultura (HERSCHMANN, 2007), ou seja, níveis de institucionalidade
numa dinâmica híbrida, territorializada e protagonizada por atores sociais.
Entender a cena brega do Recife diante deste quadro signiica apontar para
o reconhecimento destes atores sociais.

NP Produções, Labaredas e a estética dos teclados


As Conveniências do Brega

Compreender as lógicas econômicas que envolvem as cenas é de


fundamental importância no que diz respeito à investigação das dinâmicas
dos gêneros musicais populares. Sem grandes vínculos a propostas –
digamos – mais artísticas, o que se observa neste contexto de produção é
uma busca pelo retorno inanceiro como aparato de longevidade – seja de

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casas noturnas, bandas ou eventos. Interessante pontuar que a igura das
produtoras ligadas a artistas do brega funcionam como um interessante
aporte de investigação na medida em que traduzem os movimentos de
oscilação econômica em torno dos fenômenos musicais. A NP Produções,
liderada pelo empresário Nino, e responsável pela gestão de carreira da
banda Labaredas, em 1995, era a principal produtora de brega do Recife.
Com vinculação ao Clube das Pás – um estabelecimento de bairro (Campo
Grande) que assumia também festas com serestas e cancioneiros românticos
– a NP Produções articulava a venda de shows da Labaredas, conjunto que
foi um contraponto ao “excesso” de grupos de pagode que “apareciam” nas
casas noturnas locais para fazer espetáculos, geralmente com coreograias
padronizadas e cabelos descoloridos – seguindo a tendência legada pelo
pagodeiro Belo. A Labaredas trazia uma coniguração musical em que se
sobressaíam os arranjos à base de teclados. Canções como “Garotinha
Linda” ou “Kelly” passaram a integrar praticamente todas as “vitrolas de
icha” de bares da periferia do Recife, disputando a atenção dos ouvintes do
pagode. Utopias românticas (“Vou fazer promessa pra icar contigo/ Vem,
garotinha linda!”) ou evocações a paixão por musas (“Kelly, oh, Kelly! Você
é assim, um pedaço de mim”) predominavam nas letras, que remetiam à
inocência dos relacionamentos amorosos, com forte acento musical que
remetia à Jovem Guarda.
Enquanto passava a integrar o circuito de entretenimento noturno
recifense e, gradativamente, suas músicas circulavam no mercado das rá-
dios populares, a Labaredas viu aparecer um cantor que também se anga-
riava nos arranjos musicais à base de teclados. O cearense Lairton começou
a ter faixas executadas pela rádio Som Zoom Sat, com sede em Fortaleza, no
Ceará, e de alcance regional. No Recife, os arranjos românticos e “cheios
de teclados” de Lairton pareciam estar em consonância com a estética so-
nora semelhante pautada pela banda Labaredas8. Dessa forma, Lairton e
Seus Teclados (este era o nome artístico da banda) se integrou ao circui-
to de brega recifense sobretudo diante do sucesso da música “Morango do
Nordeste”9, Lairton e Seus Teclados foi logo apelidado de “o moranguinho”,
em função da sua canção, que “estourou” nas rádios da Região Metropoli-
8 As conigurações musicais (arranjos, letras) eram bastante semelhantes, por
exemplo, às do cantor Reginaldo Rossi – uma espécie de precursor da “movimentação”
em torno da música romântica no Recife.
Thiago Soares

9 A música foi gravada também por artistas de “âmbito” nacional, como o


pagodeiro Vavá e os sertanejos Zezé di Camargo & Luciano, entre outros.

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tana do Recife. O cantor “abriu terreno” nacional para esta faixa romântica
de arranjos e letras simples, sendo executado em rádios voltadas para nor-
destinos residentes no Rio de Janeiro e em São Paulo. No Recife, entretanto,
artistas como Labaredas e Lairton e Seus Teclados estavam circunscritos a
circuitos da periferia da cidade, tocando ainda em casas de serestas e clubes
de bairro, embora passassem a ter projeção nacional em programas de TV
populares como Ratinho e Domingo Legal. A estética dos arranjos musicais
à base de teclados, que viria cristalizar o que se chamou de “brega românti-
co”, tem como epicentro este momento, em que artistas ganharam visibili-
dade no cenário local. Foi com a criação da Luan Produções e a chegada da
banda Calypso, vinda do Pará, ixando residência em Pernambuco, que se
criam as bases para a legitimação do brega e seu processo de deslocamento
em direção às casas noturnas da Zona Sul do Recife.

Luan Produções, Calypso e as divas bregueiras

Parece oportuno pensar o brega do Recife como uma conluência


de sonoridades e estéticas que dialogam com artistas da cena musical local
(Reginaldo Rossi, Reinaldo Belo, Labaredas, entre outros e uma estética
dos teclados), mas também do Pará (a partir de referências como a calipso
e o tecnobrega) e do Ceará (forró eletrônico). Ainda diante de questões
acionadas pelos atores sociais no contexto de produção, importante destacar
a gênese de uma estética que se ancora na presença da vocalista feminina,
a “diva bregueira”, como eco de referências ligadas ao universo da música
pop, a partir da chegada da banda Calypso, vinda de Belém do Pará, com
o intuito de ixar residência no Recife. O motivo para a escolha do Recife:
o posicionamento estratégico da cidade no “centro” do Nordeste (estando
perto de grandes centros urbanos como Fortaleza e Salvador) e também
em função da logística em torno da produtora que assumiria a gestão de
carreira da banda Calypso, a Luan Produções – cujos proprietários são
donos da maior casa de shows do Recife, o Chevrolet Hall.
Pensar a chegada da banda Calypso ao contexto recifense signiica
As Conveniências do Brega

compreender o agendamento que o grupo trouxe a outros artistas locais


e também a legitimação que os vocalistas Joelma e Chimbinha tiveram
ao serem agenciados pela Luan Produções – que tinha em seu casting
para divulgação no Nordeste, no início de carreira, por exemplo, artistas

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como Luan Santana e a banda de forró Garota Safada, do vocalista Wesley
Safadão. O destaque dado à banda Calypso no circuito de shows da Região
Metropolitana do Recife foi o pontapé para que se desse início a um processo
de criação em série de bandas de brega com vocalistas femininas10. Neste
sentido, podemos identiicar procedimentos enunciativos na formatação de
uma estética do brega no Recife: os arranjos à base de teclados, gravados em
poucos canais e com limitadas texturas sonoras, a presença da mulher, dos
igurinos “berrantes” e dos bailarinos como “corpo de baile” e sobretudo
nos vocais femininos apelos ao sussurro, gemido, erotização no cantar11.
O jornalismo cultural popular praticado na Folha de Pernambuco foi um
dos alicerces de uma mudança de perspectiva sobre os artistas do brega
local12. Na Revista da Folha, suplemento dominical do jornal, a cantora
Joelma igurou na capa da edição de número 85, de 2002, com o título “O
Glamour do Brega”, em que, com roupas luxuosas, dizia textualmente que
o brega precisava chegar às casas noturnas da Zona Sul do Recife. “Ser
brega é ser romântico e todo mundo é romântico”, atestava. É importante
tomar este depoimento da vocalista da banda Calypso dentro de um
contexto em que o grupo passou a ser agenciado por uma produtora
que detinha o espaço de shows mais nobre da cidade – o Chevrolet Hall

10
É relevante destacarmos o fato de que, nos grupos de forró da chamada oxente
music, a igura feminina já era destaque: da cantora Eliane, a “rainha do forró”,
passando pela Magníicos, que trouxe na igura de sua vocalista Walkíria, o
principal “trunfo” no tocante à cativar o público masculino em seus shows, tudo
parecia conspirar para que a coniguração das bandas de brega recifense fossem
angariadas na igura feminina.
11
Foi em meio a estes procedimentos discursivos que “estourou” nas rádios, no
inal de 2001, a música Amor de Rapariga, logo “apelidada” de Melô da Rapariga.
A canção foi cantada por Palas, vocalista do grupo Ovelha Negra, e trazia versos
explícitos como: “Amor de rapariga não vinga, não/ Não tem sentimento, não tem
coração/ Eu sei que logo ele vai perceber/Esta é a diferença entre nós duas/ Todo
homem quer uma mulher só sua”.
12
Destaco aqui o processo de midiatização da cena de brega no Recife, primeiramente,
a partir de modos de escuta que perpassam o rádio com programas populares
como Reinaldo Belo e música brega nos intervalos de programas policiais como
Bandeira 2, de Gino César nos anos 80/90. Programas de TV populares e regionais,
como Paulo Marques, O Povo na TV (anos 80/90) e Denny Oliveira, Tribuna Show
e congêneres nos anos 2000 agendaram artistas dentro do espectro da mídia
televisiva. Diante dos aparatos da cibercultura, blogs e sites de compartilhamento
Thiago Soares

(Palco MP3, Facebook, Orkut) engendram novos ambientes de circulação de


artistas do brega.

131

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–, a partir de uma guinada nacional de divulgação junto a programas
populares de TV (Domingão do Faustão, Programa do Ratinho, entre
outros) para só então, haver um “terreno propício” a que boates da Zona
Sul do Recife recebessem artistas do brega em suas noitadas.
Está na referência à banda Calypso, por exemplo, a matriz estética
que propiciou a aparição de “fenômenos” do brega romântico no Recife,
no inal da década de 2000, artistas como Musa do Calypso, da vocalista
Priscila Sena, e a banda Kitara, que detém coniguração idêntica à Calypso
(a vocalista Karlinha e o músico Rodrigo Mell como “líderes”).

Brega Universitário

Esta movimentação em torno das polaridades centro/periferia,


zona norte/zona sul, classe média/classe baixa passou a ser ainda mais
problematizada com a aparição de artistas como Victor Camarote & Banda
Arquibancada e Faringes da Paixão, grupos formados por garotos de classe
média que se apropriam da estética do brega de forma lúdica e passam a
integrar o circuito de shows nas boates da Zona Sul do Recife. Jornalistas
de cultura passaram a rotular tais artistas de “brega universitário”, numa
referência ao próprio rótulo de forró universitário, que foi gerado junto,
por exemplo, a grupos como Falamansa – igualmente integrantes da classe
média performatizando o “forró pé-de-serra” no mercado de música. Não
cabe aqui destituir tais experiências musicais de legitimidade nem entrar
no mérito da idelidade ou do “purismo” em torno das expressões musicais.
Quero destacar, entretanto, que há um debate sobre o tipo de apropriação
que artistas do “brega universitário” fazem da estética brega, sobretudo,
no que diz respeito a uma atitude possivelmente jocosa e risível diante do
material encenado. Meu interesse não é constituir este debate, mas apontar
uma tensão existente em tais experiências do ponto de vista dos jogos de
valores de quem consome música brega no Recife: é possível por exemplo
mapear fruidores que dizem, por exemplo, preferir “brega de raiz”, feito na
periferia, em detrimento do “brega da Zona Sul”.
Um fato, no entanto, precisa ser destacado: artistas como Victor
As Conveniências do Brega

Camarote e Banda Arquibancada e Faringes da Paixão foram responsáveis


pelo arrefecimento das fronteiras entre periferia e Zona Sul, na medida em
que passaram a produzir noites em boates do bairro de Boa Viagem reunindo
suas próprias bandas e artistas vindos da periferia (como Vício Louco,

132

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Michelle Melo e Banda Metade e mais recentemente os MCs Sheldon, Boco,
GG, entre outros). Há obviamente uma dupla zona de interesses: dos artistas
de brega chegarem às boates da Zona Sul (com cachês mais aviltantes, por
exemplo) e também dos “bregas universitários” em se legitimarem com a
presença de grupos “vindos da periferia” em suas noitadas.

Tensões em cena: brega, VIP e descolado.

Esta cartograia de espacialidades ocupadas por artistas da música


brega parece nos ser útil para reletir sobre as tensões da fruição do gênero
musical nos contextos da Zona Sul do Recife. Na tentativa de materializar
questões acerca dos jogos de valores presentes nestes embates, trago à
tona os cartazes que anunciam as festas de brega como um interessante
aporte para a presentiicação de uma lógica de entrada do brega nas casas
noturnas de classe média do Recife. O interesse aqui é evidenciar rascunhos
discursivos que sirvam como suporte da compreensão de uma dinâmica
dos deslocamentos na cidade. Primeiro, destaco o cartaz de uma festa de
brega que ocorre num clube de bairro, o Atlético Clube de Amadores, em
Afogados. O cartaz da “Festa do Beijo” (Fig.1) apresenta coniguração
de ordem cromática que apela para cores de longo alcance perceptivo –
amarelo e vermelho – com os artistas elencados com fotograias e a presença
de ícones de beijos em toda extensão do anúncio. Há uma perspectiva de
design de artefatos populares, com excessivo recurso de cores e formas,
além de uma síntese digamos “naïve” (ingênua) nesta coniguração.
Thiago Soares

Figura 1

133

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Cartazes como este da “Festa do Beijo” são popularmente chamados
no Recife de “lambe-lambes”, pois são colados nos muros das principais
avenidas da cidade através de uma espécie de “cola” que “lambe” a parede.
A presença dos “lambe-lambes” e seu “descascar” expostos ao sol e à
chuva formam um cenário bastante peculiar nas ruas da cidade, sobretudo
no centro do Recife, junto a terminais de ônibus e pontos de intensa
movimentação do comércio popular. Fica notório no cartaz da “Festa do
Beijo” a centralidade de um apelo: beijar, lertar, fazer “pegação” ao som dos
artistas elencados. Não há qualquer referência ao termo “brega” enquanto
endereçamento de gênero musical, no cartaz, exceto em função do nome de
uma das bandas se chamar Pank Brega.
Quando partimos para a investigação em torno dos cartazes das
festas de brega que acontecem em boates da Zona Sul, reconhecemos o
endereçamento de gênero musical como uma instância enunciativa: há
um destacamento do nome do bairro em que ocorre a festa (Boa Viagem)
no topo do anúncio e a própria titulação do evento traz à tona a presença do
gênero. A festa se chama “Brega Chic” (Fig.2). Esta aparente contradição
entre brega e chique pontua uma forma de acesso dos artistas do brega aos
locais da Zona Sul do Recife, neste caso, em especíico, à boate Iguana. Entre
os artistas elencados para tocar na festa, também, um destacamento: há
desde aqueles que o jornalismo cultural rotula como “brega universitário”,
como Victor Camarote e Faringes da Paixão, mas também os “bregas da
periferia” ou “de raiz” como Kelvis Duran e Banda Torpedo. Importante
perceber a estética do cartaz que opta por uma ordenação cromática de
cores frias, o lilás, o marrom e a reprodução de uma parede com ênfase
no formato da festa “open bar” (tradução de “bar aberto”), ou seja, bebida
alcoólica liberada – neste caso do evento, “para elas”. Este clima “elegante”
e “cool” presente no cartaz do “Brega Chic” parece ser sintoma de um
endereçamento que se faz “na defensiva” ou na contradição: é brega, mas
é elegante, “pode entrar”. Um tom, no discurso imagético, que se faz na
sobriedade. Outras festas da cidade, como “Brega de Elite”, também acionam
formatação discursiva semelhante.
As Conveniências do Brega

134

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Figura 2

Num entrelugar discursivo, optando por uma estética kitsch e um


tom humorístico, há a festa Brega Naite (Fig.3) (que, na própria formata-
ção do nome, traduz uma caracterização lúdica: o “night” é propositalmen-
te escrito como “naite”). O cartaz de divulgação da edição do evento que
contou com a presença da cantora Preta Gil evoca uma iconograia que
se assume kitsch: além da tipograia assemelhando-se a rabiscos, há um
lamingo e uma ordenação cromática colorida, visivelmente ornamentada,
que acaba sendo uma chave de endereçamento para o público freqüenta-
dor do evento: pessoas “descoladas”, formadores de opinião, publicitários,
jornalistas e “gente que gosta de brega, mas prefere curtir junto de pessoas
de seu ciclo de amizades”, como me disse um freqüentador. Apesar de com-
por as edições com shows de artistas do “brega de raiz”, o destacamento da
Brega Naite, na verdade, se dá em função dos DJs Ladie Khekhe e Original
DJ Copy - ela trazendo à tona um set com músicas bregas, ele utilizando-se
maciçamente de funk. Há, na festa, uma premissa de “jogação” e “pegação”
como podemos observar também na convocação da “Festa do Beijo”, no
clube de bairro do Recife, mas veriica-se um espírito de negociação com as
lógicas distintivas, na medida em que o cartaz divulga a existência de uma
“lage VIP”, titulação lúdica para a área VIP ou camarote, como se costuma
dividir os espaços nas casas noturnas e shows.
Thiago Soares

135

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Figura 3

O Brega Naite convoca um engajamento metarreferente que se faz


na performatização de uma fruição que se dá sempre em relação a uma pre-
missa previamente estabelecida. Há uma perspectiva lúdica – que pode ser
encarada como irônica ou jocosa também – de ressigniicar o brega diante
As Conveniências do Brega

de uma clara associação com o Carnaval, a permissividade e a conveniência


perfomática, ou seja, a deliberada pressuposição de assumir papéis sociais
efêmeros, lúdicos, precários, de forma estratégica e apontando para uma
tática de performatização.

136

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Sobre a noção de conveniência

Ao longo do texto, tentamos arregimentar, a partir da veriicação


empírica de instituições, cenários e atores sociais da cena brega do Recife,
questões que nos levem a entender nuances sobre o conceito de conveniência
cultural em deslocamento para a compreensão de uma cena musical. Neste
caso, precisamos nos voltar à gênese da ideia de “conveniência”13 como
proposta por George Yúdice, em seu livro “As Conveniências da Cultura”.
O autor menciona a conveniência sob a retranca do uso da cultura por
instituições – notadamente da ordem do Estado – a partir da materialização
em diferentes setores da vida contemporânea, a saber, o uso da alta cultura
(museus, centros culturais, entre outros) para objetivos do desenvolvimento
urbano; a promoção de culturas nativas e patrimônios nacionais através
da lógica do turismo; a “transformação” de espaços históricos em “parques
temáticos do tipo Disney” (YÚDICE, 2006, p. 46); a criação de indústrias
de cultura transnacional para “suporte” e integração de premissas como
a União Européia ou o Mercosul. Apesar de textualmente não querer soar
“nostálgico ou reacionário pela restauração de um pedestal para a cultura”,
percebe-se no tom da retórica de George Yúdice, ecos de uma crítica aos
usos da cultura por instituições públicas e privadas, reverberando o que
se convencionou chamar de uma crítica à estética da mercadoria (HAUG,
1997) ou a mercantilização da vida cotidiana – como previam os autores
da Escola de Frankfurt, mais notadamente, Adorno e Horkheimer. A certa
altura, Yúdice se vê diante de uma encruzilhada:

“a conveniência da cultura é uma característica óbvia da vida


contemporânea. Ao invés de nos atrelarmos à censura, pode ser mais
efetivo para os propósitos do pensamento estratégico estabelecer uma

13
Antes de tudo, é preciso fazer uma ressalva em torno da tradução para português
do termo “conveniência”, que, nos escritos originais de Yúdice, aparecem como
“expediency”. O termo, como usado pelo autor, traz à tona os usos ligados a lógicas
de políticas culturais e legitimações governamentais em torno de bens intangíveis.
A forma com que pensamos “conveniência” talvez se aproxime mais da palavra
original em inglês “convenience” que, por sua vez, não é usada por George Yúdice. O
uso do termo “conveniência” como fazemos neste texto, portanto, é mais inspirado
pelos escritos de Yúdice que, propriamente, uma tentativa de extensão de suas
Thiago Soares

noções. Neste caso, tento fazer um (re)enquadramento do termo para compreensão


das “brechas” e “conveniências” existentes nas experiências dos gêneros musicais.

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genealogia da transformação da cultura em recurso. O que ela nos assinala
a respeito do nosso período histórico?” (YÚDICE, 2006, p. 47)

A expressão-chave para entender as atribuições da conveniência,


para o autor, parece ser a “transformação da cultura em recurso”, ou seja,
a cultura como commodity ou artefato de negociação com pressupostos
estratégicos institucionais. Proponho circunscrever esta lógica de
reconhecimento da “cultura como recurso” para o entendimento das
estratégicas expressivas, espaciais e experienciais dos gêneros musicais.
Pensar um gênero musical como um recurso signiica compreender seu
uso institucional, suas formas de apropriação em circuitos de produção
e reconhecimento e ainda a institucionalização de suas espacialidades e
estéticas. Os gêneros musicais são importantes agenciadores culturais na
medida em que traduzem certa espontaneidade das experiências musicais,
dos fruidores e das sociabilidades, levantando o debate em torno dos seus
usos por aparatos institucionais – sobretudo o Estado. A visibilidade, por
exemplo, que o Governo de Pernambuco dá para o Manguebeat (e não
vou aqui debater sua ontologia, se o Manguebeat é ou não um gênero
musical, faço uso desta retranca classiicatória como uma estratégia
de endereçamento estético e mercadológico) a partir do apoio a artistas,
eventos e a ocupação de uma série de cargos por “iliados ao Mangue”
e, por outro lado, a invisibilidade em que se circunscreve o brega para
ins de política cultural, pode ser sintoma de indicativos dos gêneros
musicais como recursos de uma cultura. O que está em jogo, neste caso,
é uma permanente tensão entre cultura, política, economia e imagens
institucionais que traduzem “modos de cognição, de organização social e
até mesmo tentativas de emancipação social que parecem retroalimentar o
sistema a que resistem ou se opõem”. (YÚDICE, 2006, p. 49).
George Yúdice se encaminha para a problematização de
uma episteme14 da conveniência da cultura e, neste ponto, nossas questões
se imbricam. O autor propõe a noção de performatividade - “o modo, além
de instrumentalidade, pelo qual o social é cada vez mais praticado” – para
As Conveniências do Brega

14
O uso do termo “episteme” como faz Yúdice remete à noção como pensada por
Michel Foucault, ou seja, a episteme como um paradigma comum aos diversos
saberes humanos em uma determinada época que, por se embasarem numa
mesma estrutura, compartilham as mesmas características, independetemente de
suas diferenças especíicas.

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mapeamento de uma espécie de materialidade das estratégias dos discursos
que emergem das transformações da cultura em recurso. Nas palavras de
Yúdice, “a conveniência da cultura sustenta a performatividade como lógi-
ca fundamental da vida social”, ou seja, o autor trata a performatividade
como um constante estado de alerta, uma enunciação que se faz continu-
amente e aciona as relações entre Estado, cultura e instituições públicas
e privadas para compreensão dos jogos de aproximação, distanciamento e
usos de bens culturais. Acho particularmente pertinente enquadrar a no-
ção de conveniência da cultura dentro de quadros mais amplos que con-
vocam, por exemplo, expressões como adequação e pertinência – tais pa-
lavras soam como formas de agenciar e compreender, por exemplo, usos e
expressividades de gêneros musicais em contextos especíicos. Ao tratar de
performatividade, por exemplo, o que adentra a esfera do visível, as expres-
sões, aquilo que é posto, sua materialidade, constante lógica de performan-
ce das instituições, dos sujeitos, dos usos, Yúdice convoca Judith Butler para
pensar princípios de inclusão e exclusão, disputas, controles e – mais uma
vez – usos de aparatos da cultura. “Dentro” ou “fora”, incluído ou excluído,
segundo Butler, fazem parte de uma inteligibilidade simbólica através da
qual é possível reconhecer performatividades, hegemonias e contra-hege-
monias. É neste sentido que operacionalizamos com o conceito de conve-
niência de George Yúdice: na forma de enxergar o fenômeno, as brechas,
as operações de entrada e saída, jogos de visibilidade e invisibilidade, em
constante performatização.

Quando ser brega é conveniente

Quero inalizar esta argumentação trazendo à tona alguns


pontos que julgo necessários para o debate em torno dos engajamentos,
performances e ocupações espaciais nas cenas musicais. Neste sentido,
destaco aqui três postulações que ajudam a compreender como faço uso
a noção de conveniência (reenquadrando o perspectiva de Yúdice) na
observação da cena musical brega do Recife:

1. A conveniência é uma brecha através do qual fenômenos, processos,


expressões e experiências se acomodam em suas dinâmicas de
Thiago Soares

institucionalização na tessitura da cena musical. Penso, neste texto,

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especiicamente, a cena brega do Recife, por isso, estou diante de uma cena
marcada por um gênero musical. Neste caso, observa-se as conveniências
em torno dos usos estratégicos de um gênero musical: sua ocupação dos
espaços, legitimação de sonoridades e experiências e seus usos institucionais.
Destaco aqui o termo “acomodação” como profícuo para pensar movimentos
de hegemonia e contra-hegemonia de valores e gostos nas cenas musicais,
além de reconhecer que pensar como os fenômenos “se acomodam” de
forma “conveniente”, nos interpela mapear por exemplo, que instituições
(públicas ou privadas, por exemplo) agem sobre este processo. Nesta minha
observação sobre a cena brega, tive a intenção de cartografar, através da
veriicação de uma retórica dos espaços, casas noturnas e lógicas de fruição
de gêneros musicais populares, no Recife e Região Metropolitana, como o
brega foi se acomodando na cidade, se legitimando, ocupando as brechas
dos cenários de outros gêneros musicais, notadamente o pagode e o forró
– e passando, hoje, a “conviver” com estes gêneros em espaços de disputa
e constante reorganização. Reconheço que a institucionalização do brega
no Recife traz indicativos de fortes enlaces econômicos, sobretudo através
de empresários e casas de espetáculos populares em busca de atrativos para
movimentação de suas agendas, em consonância com uma sonoridade e
uma estética que se cristalizam diante da circulação de bens de consumo e
sua midiatização.

2. Ressalto aqui a perspectiva de pensar a conveniência no âmbito


performático, como um jogo de engajamentos precários, efêmeros, que é
acionado diante de contextos especíicos. Tomar a conveniência como uma
performance enseja reletir sobre a cultura como uma complexa cadeia de
tensões e interesses, visibilidades e invisibilidades. A noção de conveniência
nos é útil porque a palavra traz, em si, a visualização de brechas, enlaces
discursivos que podem – ou não – ser acionados. Performatizar de acordo
com uma conveniência signiica reconhecer a cultura como um ambiente
tático, estratégico, como um vetor de visibilidades políticas, estéticas e afe-
tivas. É nesta direção que reconhecemos que a cena brega do Recife é um
As Conveniências do Brega

profícuo ambiente para se pensar as conveniências performáticas: os garo-


tos de classe média que se fantasiam de bregueiros para curtir uma noite;
as jovens que vivem as “piriguetes” numa noite estratégica de lerte e sedu-
ção ao som das batidas musicais bregueiras. Uma geograia humana que se
forma e se dissipa em função de circunstâncias não-previstas. Aparição e

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apagamento. Luz e sombra. Visualidade e invisibilidade.

3. A ideia é pensar aspectos ligados à efemeridade dos engajamen-


tos ou o que Edgar Morin chama de “apropriações precárias” nos agrupa-
mentos. Neste sentido, começamos o texto falando num certo tom classii-
catório de classe social e faixa etária, no entanto, a perspectiva é descons-
truir esta fala comum e acionar a ideia de conveniência performática para
tentar escapar de certa ambivalência marxista. A nossa direção é a de reco-
nhecer a efemeridade como uma forma legítima de engajamento, inclusive,
pensando uma política que se faz na frivolidade das fruições. Reiteramos,
portanto, a performance como um lugar privilegiado para tratar das ence-
nações no brega do Recife e, de maneira mais ampla, das cenas musicais.
Pensar performance nas cenas musicais signiica entender formas de atuar,
papéis sociais, lugares de fala, de encenação que se formam diante de gêne-
ros musicais, contextos econômicos, políticos e estéticos.

Referências:

CARLSON, Marvin. Performance – uma Introdução Crítica. Belo


Horizonte: Editora da UFMG, 2011.
HAUG, Wolfgang Fritz. Crítica da Estética da Mercadoria. São Paulo:
UNESP, 1997.
HERSCHMANN, Micael. Alguns Apontamentos sobre a Reestruturação
da Indústria da Música. In: FREIRE FILHO, João; HERSCHMANN, Micael
(Org.). Novos Rumos da Cultura da Mídia. Rio de Janeiro: Mauad X,
2007.
JANOTTI JR, Jeder. Are You Experienced? Experiência e Mediatização nas
Cenas Musicais. In: Contemporânea. Salvador: PPGCOM da UFBA, vol.
10. Numero 1. 2012. Disponível em: <http://www.portalseer.ufba.br/
index.php/contemporaneaposcom/ article/view/5933/4365>. Acesso
em 12 de junho de 2013.
Thiago Soares

MARTÍN-BARBERO, Jesús. Ofício de Cartógrafo. São Paulo: Edições


Loyola, 2004.

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SOARES, Thiago. Conveniências Performáticas num Show de Brega
no Recife: Espaços Sexualizados e Desejos Deslizantes de Piriguetes e
Cafuçus. In: Logos. Rio de Janeiro: PPGCOM da UERJ, ol. 19. n. 1. 2012.
Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.e-publicacoes.uerj.br/
index.php/logos/article/view/3270>. Acesso em 11 de janeiro de 2013.
YÚDICE, George. A Conveniência da Cultura. Belo Horizonte: Editora da
UFMG, 2006.
As Conveniências do Brega

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Dinâmicas e processos de
ressignificação na cidade do Rio:
A Cena Jovem no Arpoador
Cíntia Sanmartin Fernandes

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(...) hoje deiniria cena como as esferas circunscritas de sociabilidade, cria-
tividade e conexão que tomam forma em torno de certos tipos de objetos culturais no
transcurso da vida social desses objetos. Contudo, isto não resolve nada!

Will Straw

Esse trecho de uma entrevista1 concedida há alguns anos atrás


por Straw possibilita que se tenha certa ideia da complexidade do debate
conceitual que gira em torna da noção de “cena”. Logo de saída percebe-se
que a intenção do autor não é “resolver” as indagações de pesquisadores a
partir da proposição de uma categoria rígida e inlexível. Conforme Straw
assinala, esta noção nos últimos vinte anos foi empregada de duas manei-
ras distintas: ora como “análise de categorias sociais”, ora na “concepção
das maneiras como as práticas musicais articulam um sentido de espaço”.
Assim, argumenta que:

(...) a noção de cena desenvolveu-se em duas direções nos últimos vinte


anos. Em uma delas, “cena” é um elemento em uma série lexical que inclui
“subcultura”, “tribo” e outras unidades sociais/culturais nas quais se
supõe que a música exista. (...) Em outra direção, recorresse à “cena” para
tentar teorizar a relação da música com a geograia e o espaço (JANOTTI,
2012, p.3).

A partir da segunda forma de uso da noção de cena o autor postula


que esta ganharia muito com um diálogo mais estrito com teorias de redes
(como a “teoria ator-rede” proposta por Bruno Latour, por exemplo) e
infraestruturas. Conforme salienta Straw:

(...) acho que precisamos dar mais atenção ao papel das instituições de ní-
vel mais baixo como bares, lojas, locais de criação de redes por meio das
Cíntia Sanmartin Fernandes

quais as práticas musicais e as pessoas circulam. A noção de “cena” não


precisa ter agentes humanos ativos em seu centro; também pode referir-se
1
Ver JANOTTI, Jeder Jr. Will Straw e a importância da ideia de cenas musicais nos
estudos de música e comunicação. In: E-Compós. Brasília: COMPÓS, 2012.

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a redes, nodos e trajetórias de circulação (...) “cena” requer que se passe da
prática localizada a uma conceituação mais ampla de sociabilidade cultu-
ral e teatralidade (JANOTTI, 2012, p.3 e 5).

Neste artigo está se considerando a noção de cena como sendo pro-


fícua para a compreensão da dinâmica cultural contemporânea, na maio-
ria das vezes luida, transitória e glocal. No caso deste trabalho emprega-se
esta noção para analisar as sociabilidades e os processos de reterritorializa-
ção promovidos por alguns atores sociais em uma localidade da Zona Sul da
cidade do Rio de Janeiro.

Interações sensíveis na cidade

Nas cidades interculturais as narrativas estão sempre e constante-


mente sendo recriadas, deslocando-se e se re-imaginando com e por meio das
relações com os outros (próximos ou distantes). É nesse movimento de des-
centramento que Canclini, por exemplo, - ao analisar as diversas narrativas
sobre a globalização - propôs a reconceitualização dos “modos substancia-
listas ou intranacionais de conceber a cultura” das cidades. Para o autor, a
interculturalidade auxilia a compreensão da passagem das “identidades cul-
turais mais ou menos autocontidas para processos de interação e negociação
entre sistemas socioculturais diversos” (CANCLINI, 2007, p. 49) presentes
nas interações e experiências cotidianas contemporâneas das urbes.
Nesse sentido, parte-se da premissa de que a cidade do Rio de Ja-
Dinâmicas e Processos de Ressigniicação na Cidade do Rio

neiro é representativa dessas relações em que os espaços são redeinidos


seguindo os luxos e os ixos, as continuidades e as descontinuidades coti-
dianas balizadas por modos de estar, de vivenciar e de experienciar os locais
e lugares por meio de uma prática cultural glocal2 (ROBERTSON, 2009) que
em virtude de todos os seus possíveis movimentos contrastantes entre dis-
tâncias e proximidades “faz também redescobrir a corporeidade” aonde o
2
Conforme Robertson (2009) o termo glocalização foi introduzido na década de
1980 como estratégia mercadológica japonesa, inspirada na dochakuka - palavra
derivada de dochaku -, conceito originalmente referido à adaptação das técnicas de
cultivo da terra às condições locais. Segundo ele, o conceito de “glocalização” tem
o mérito de restituir à globalização a sua realidade multidimensional; a interação
entre global e local evitaria que a palavra “local” deinisse apenas um conceito
identitário, contra o “caos” da modernidade considerada dispersiva e tendente à
homologia.

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corpo transforma-se numa “certeza materialmente sensível, diante de um
universo difícil de apreender” e assim, os lugares “podem ser vistos como
um intermédio entre o Mundo e o Indivíduo” onde “cada lugar, irrecusavel-
mente imerso numa comunhão com o mundo, torna-se exponencialmente
diferente dos demais. A maior globalidade corresponde uma maior indivi-
dualidade” – a uma glocalidade (SANTOS, 2008, p. 313-314). Desse modo,
em acordo com Santos (2008), se faz necessário regressar aos lugares coti-
dianos considerando todas as relações e práticas sensíveis e inteligíveis que
o fazem ser, ou seja: os objetos, as ações, a técnica e o tempo.
Essas práticas, enquanto “artes do fazer” cotidiano (CERTEAU,
2005), podem ser apreendidas em diversos lugares da cidade. Cidade que
aqui é tratada como espaço comunicacional-interacional, viviicado nas di-
nâmicas socioculturais-ambientais comunicantes de diversas identidades,
diversos modos de presença, diversos gostos, diversas signiicações tanto da
arquitetura urbana quanto dos indivíduos que convivem e interatuam ne-
las e com elas.
O presente artigo objetiva a possibilidade do deslocamento da com-
preensão social para além da funcionalidade, e das ixações identitárias
apriorística, sugerindo que as experiências interativas entre indivíduos
(considerando aqui os objetos) originam relações semi-simbólicas, ou seja,
relações luidas constituídas em situação que possibilitam um percurso de
construção do sentido aberto, resultando num constante vir-a-ser contra-
riando as posições tautológicas a respeito da conformação essencialmente
simbólica. O pressuposto é de que o existencial realiza-se pelos modos de
presença que interatuam com o estético, o estésico e o funcional.
Assim as qualidades e suas signiicâncias conformadoras das es-
téticas-relacionais - considerando-se o corpo, a cidade (arquitetura e am-
biente), e suas interações sensíveis – conduzirão a abordagem do “olhar
comprometido” do sentido construído em ato (LANDOWSKI, 2005, 2002).
Essa escolha analítica se debruça sobre uma perspectiva compreensiva das
“cenas musicais” (STRAW, 1991, 2006) das urbes, que considera a sensibi-
lidade e a inteligibilidade no processo de enunciação dos locais dos espaços
Cíntia Sanmartin Fernandes

urbanos sem excluir as redes “imateriais” da cibercultura (SÁ, 2011).


O conceito de cena delineado por Straw é amplo e se pode acenar
o mesmo de diversos modos, conforme Sá (2011) essa noção refere-se tan-
to (...) “a um ambiente local ou global; marcado pelo compartilhamento
de referências estético-comportamentais; como supõe o processamento de

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referências de um ou mais gêneros musicais, podendo ou não dar origem a
um novo gênero; assim como apontando para as fronteiras móveis, luídas e
metafóricas dos grupamentos juvenis supõem uma demarcação territorial
a partir de circuitos urbanos que deixam rastros concretos na vida da cida-
de e de circuitos imateriais da cibercultura, que também deixam rastros e
produzem efeitos de sociabilidade marcadas fortemente pela dimensão mi-
diática” (SÁ, 2011, p. 159 ).
O conceito, enquanto metáfora espacial, marcado pelo comparti-
lhamento de referências estético-comportamentais e especialmente como
prática musical local/global é frutífero para o debate o qual se insere a
presente pesquisa. Pensar as cenas nas tramas urbanas torna-se profícuo
no momento em que o aproximo de alguns conceitos com os quais venho
articulando em trabalhos anteriores (FERNANDES 2010, 2011a, 2011c,
2012b) como: interações e experiências sensíveis, “musicabilidades” e “ter-
ritorialidades sônicas-musicais”.
É a partir, portanto da experiência sensível na cidade que se pode
compreender as musicabilidades, ou seja, as práticas socioculturais que
têm como élan a música. Sociabilidades erigidas em um espaço afetivo e
de pertencimento onde a música cria territorialidades distintas a partir dos
movimentos de transindividualidade – constituída pelas interações inter-
-humanas incluindo o espaço e os objetos técnicos (SANTOS, 2008). Para
tanto, elegeu-se o Arpoador, e mais precisamente um lugar que o constitui,
a Galeria River, emblemático das experiências socioculturais glocais, na
qual o cotidiano dá-se no convívio de diferentes grupos, pela circulação de
distintos códigos identitários, éticos e estéticos (MAFFESOLI, 1995, 2007).
Dinâmicas e Processos de Ressigniicação na Cidade do Rio

O Arpoador: “energia jovem que gira”

O Arpoador localiza-se na divisa entre as Praias de Copacabana


(Avenida Atlântica) e Ipanema (Av. Vieira Souto). Além das duas praias, é
conformado pelo Parque “Garota de Ipanema” local no qual, além de área
de lazer e recreação, são realizados com frequência concertos com artistas
nacionais e internacionais.
O imaginário sobre esse local da cidade está submerso nas histó-
rias de práticas sociais transgressoras. O Arpoador, devido sua localização
geográica, serviu ao longo da metade do século XX como um recanto dos
encontros clandestinos, dos novos comportamentos sexuais e de modas

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violadoras das normas e regras morais tradicionais.
A chegada do surf nas areias do Rio em meados dos anos de 1960 e
início dos 70 representou não somente o advento da prática de um esporte,
mas a origem de um estilo, no qual a juventude, a comida natural, as rou-
pas confortáveis, os cabelos longos e a interação sensível com a natureza
ressigniicaram os sentidos daquele espaço. As primeiras lojas de surf da
zona sul se originaram do desejo de alguns suristas viverem dessa cultura.
A Galeria River localizada nos arredores, por exemplo, foi escolhida como o
lugar tanto para se comercializar os diversos produtos relativos ao universo
desta tribo como ponto de encontro, de sociabilidade entre os suristas e ou-
tros grupos - os quais ocupavam as areias entre ela e o Píer de Ipanema - e
que representavam a contracultura da época.
Conforme Ruy Castro,

O Arpoador sempre acolhera várias turmas, até então, não houvera o pre-
domínio de umas sobre as outras. Mas, com a crescente hegemonia do sur-
fe, a partir de 1964 – e com a ocupação do Arpoador pelas grandes massas
que os suristas atraíam – os habitués os começaram a debandar (...). Em
1965, a cultura e mitologia do Arpoador clássico estavam chegando ao
im – mesmo porque, sendo Ipanema um território pronto para recebê-las,
suas bandeiras erguidas (como a do sexo sem culpa) foram rapidamente
assimiladas pelo bairro e deixaram de ser um privilégio. Com o Arpoador
entregue aos suristas, houve os que caminharam apenas alguns metros e
se estabeleceram em frente à rua Rainha Elizabeth. (CASTRO, 1999, p. 43)

Ao mesmo tempo ainda conforme o autor a construção do Píer de


Ipanema, o que seria um interceptor oceânico do bairro entre as ruas Far-
me de Amoedo e Teixeira de Melo, com uma escavação de trezentos metros
feita para a colocação de tubos emissários de esgotos, causou uma trans-
formação no mar que ocasionou o surgimento de ondas perfeitas para a
prática do surf, assim,
Cíntia Sanmartin Fernandes

(...) em comparação ao que se passou naquelas dunas cobertas pelo fu-


macê, toda a modernidade duramente conquistada por três ou quatro
gerações de pioneiros do Arpoador (...) icou, de repente, antiga, tímida,
superada (...) Durante três verões, até 1973, o Píer foi a liberdade no poder.
Sexo, drogas, comportamento, idéias, vestuário, comprimento do cabelo,

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tudo era liberado. Era uma “república independente” nos piores tempos do
regime militar: os anos Médice. Ao contrário do resto do país, que vivia sob
a mais angustiante mordaça da história (...) no perímetro do Píer só era
proibido proibir (CASTRO, 1999, p. 297).

O Píer transformou-se em

(...) a praia hippie de Ipanema, um grande underground a céu aberto, o


epicentro do desbunde (...) a moda do Píer eram as saias longas com o um-
bigo de fora e as batas indianas. Havia também quem circulasse vestindo
calças saint-tropez, macacões e até ponchos (...) As pessoas se saudavam
com beijos na boca (...). Não era uma praia, era uma atitude.
Tudo fazia parte da cultura (sorry – contracultura) do Píer. As conversas
eram sobre mapa astral, macrobiótica, orientalismo, comunidades alter-
nativas, a “nova era”, o disco do Cream, a peça Hair (CASTRO, 1999, p.
298).

Essa atitude, enunciada num estilo de vida3 - como aponta Maffeso-


li (1995, p.64) nessa “‘encarnação’ ou ainda a projeção concreta de todas
as atitudes emocionais, maneiras de pensar e agir, em suma, de todas as re-
lações com o outro, pelas quais se deine a cultura” - de jovens da década de
70, fomenta o imaginário carioca sobre o Arpoador constituído na imagem
do surf e da contracultura, considerando todos os elementos simbólicos
que lhes dão forma (SIMMEL, 2004).
Corroborando com esse imaginário, Beto Neves4, estilista e proprie-
Dinâmicas e Processos de Ressigniicação na Cidade do Rio

tário da marca Complexo B com a loja homônima na Galeria River, airma


que a Galeria nos anos 70 era um “ícone da moda”, pois além de lojas des-
tinadas aos suristas, boutiques como Aniki Bóbó5, de Celina M. da Rocha
destinava-se ao estilo dos jovens frequentadores das areias de Ipanema.
3
Utiliza-se o conceito a partir das obras de Maffesoli que, assim como o sociólogo
Guyau já havia apontado, “o estilo de um homem ou de um determinado grupo
nada mais era do que a cristalização da época em que viviam” (MAFFESOLI, 1995,
p.29).
4
Beto Neves é estilista e proprietário da marca Complexo B. Entrevista concedida
em 5 de outubro de 2012.
5
Sobre Aniki Bóbó consultar: Renata Ser nagiotto “Butiques de Ipanema”
in Antenna Web – Revista Digital do IBModa http://www.antennaweb.
com.br/edicao2/artigos/artigo2.htm Acesso em 22 janeiro 2013.

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O nome da marca de design psicodélico, criada em parceria com o artista
plástico Gilles Jacquard, inspirou-se no ilme homônimo do português Ma-
nuel de Oliveira, precursor do neorrealismo italiano e colaborou demasia-
damente para atrair uma clientela que cultivava manifestações culturais
típicas que emergiram após os anos 60. Conforme Neves,

(...) nos anos 70, a referência que eu tenho (...) era como um ícone de
moda. Foi a primeira Galeria a ter moda. Você pode pesquisar algo sobre a
estilista da Aniki Bóbó (...) que abriu uma loja na Galeria no boom do Píer
de Ipanema. Antes disso a Galeria era um lugar de açougueiro, sapateiro,
quitanda, era uma coisa do bairro (...) Aniki Bóbó instalou-se como refe-
rência de moda pensada para aqueles que frequentavam o Píer e o Arpoa-
dor, como Gal, Caetano entre outros formadores de opinião. (Beto Neves)

A partir dos relatos acima se compreende que a Galeria River re-


presenta um marco do consumo cultural e do entretenimento dedicado ao
jovem que emergiu como um protagonista das sociedades no pós-guerra.
As transformações identitárias no campo da cultura e da política inluen-
ciaram a iniciativa do mercado em deinir um novo segmento: o jovem6.
Desse modo, a partir da década de 1960 expandiu-se as possibilidades de

6
É indispensável especiicar que as noções de jovem e juventude, ou de cultura jovem
é um debate caro às ciências sociais. A sociologia abordará a noção como um valor
próprio da modernidade que ganhou vigor na segunda metade do século XX - após
a Segunda Guerra Mundial - com a emergência da indústria cultural. Conforme
T. Parsons, “as tendências históricas com a modernização, a industrialização,
a urbanização, a ascensão da classe média e a ampliação da educação pública
fomentaram a segregação com base na idade e a estratiicação da juventude, o
que por sua vez promoveu o desenvolvimento da cultura da juventude” (Apud
OUTHWAITE; BOTTOMORE, 1993, p.168). Contemporaneamente, Reguillo
Cruz (2000), aproxima-se desta abordagem ao airmar que são três os processos
responsáveis por colocar em evidência a categoria juventude: “a organização
econômica por via do aceleramento industrial, cientíico e técnico, que implicou
ajustes na organização produtiva da sociedade; a oferta e o consumo cultural; e
por último o discurso jurídico”. No entanto, sua análise diferencia-se ao alegar que
Cíntia Sanmartin Fernandes

a idade, “ainda que seja um referencial importante, não é uma categoria fechada
e transparente, pois não se esgota no referencial biológico e assume validades
distintas não somente em diferentes sociedades, mas também no interior de uma
mesma sociedade, ao estabelecer diferenças principalmente em função dos lugares
sociais que os jovens ocupam nela” (tradução livre REGUILLO CRUZ, 2000, p.25-
26).

151

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criação de produtos culturais para atender a diversidade cultural emergen-
te na re-coniguração das identidades culturais marcadas pela beat genera-
tion, pelo movimento hippie, psicodelismo, orientalismo, tropicalismo, mo-
vimento de liberação sexual (por um viés psicanalítico), suistas, rock´n roll
e a liberação feminina. O estilo dessa juventude foi traduzido e apropriado
por diversas marcas que associaram o conceito de liberdade e movimento
aos seus produtos como a famosa Hang Ten7 (marca californiana precurso-
ra da roupa para prática do surf).
Para Neves, a história da Galeria não pode ser desvinculada des-
sas revoluções comportamentais desde a década de 1970 que passaram (e
passam) pelo Arpoador, pois inluenciam diretamente as transformações
ocorridas na River. Conforme o entrevistado as lojas da Galeria River até
os dias de hoje estabelecem sintonia com os estilos de vida do Arpoador, as-
sim, “depois do surf, passou para os esportes radicais, na evolução foi para
os patins, o skate, voltou pro surf, depois para o patins e o skate hoje em
dia todos esses estilos convivem”. O mais importante para o entrevistado é
compreender que em todas essas práticas culturais há “uma energia jovem
que gira” e que reatualiza os estilos e estéticas desses grupos.
Contudo, nos em ins dos anos de 1980 e por toda década de 1990,
a Galeria passou por uma crise bem aguda devido à conjuntura política e
econômica do Rio de Janeiro. A conjuntura da época somada ao discurso
da insegurança social8, disseminada pela mídia local e nacional, em con-
formidade com a construção de novos shoppings que ofereciam um espaço
de conforto e segurança para as compras e o lazer, fez com que muitos fre-
quentadores da zona sul adotassem esse novo hábito de consumo.
Dinâmicas e Processos de Ressigniicação na Cidade do Rio

Muitas lojas fecharam, mas houve àqueles que permaneceram


como o estúdio de tatuagem do Caio Tatoo e algumas lojas de surf (prática
que permaneceu na cultura de praia do Rio). Nesse momento, estabeleceu-
-se certa descrença dos lojistas em relação à retomada do “espírito da Ga-
leria” inclusive porque as lojas que icam defrontes para a rua Francisco
Otaviano, onde hoje se instalou Board´s Co, o boteco Informalzinho, o Espa-
ço Reserva + e a Osklen, foi alugado pela Refricentro (uma loja de ar con-
dicionado para carros). Conforme Beto Neves, que abriu sua loja na Galeria

7
Ver <http://www.hangten.com.mx/historia.html>. Acesso: 12/01/2013.
8
Os discursos mais representativos são àqueles vinculados à idéia de “cidade partida”
muito disseminada a partir do livro do jornalista Zuenir Ventura. Cidade Partida. São
Paulo: Companhia das Letras, 1994.

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em 1999,
o grande problema que tinha na Galeria era o Refricentro que tomava
conta de quase toda frente (...)então icava a Galeria com metade dela to-
mada por essa loja. A Refricentro predominou, ela queimava a imagem da
Galeria... (...) tem umas 50 lojas e nos anos 90, quando eu entrei tinham
15 lojas vazias, então o momento estava bem deprimido (...). O sonho de
todo mundo era tirar aquilo dali e trazer marcas que trouxessem o público
jovem novamente para o lugar. Isso só foi acontecer recentemente.

A grande virada parece ter acontecido em concomitância com


um novo estilo de cultura jovem do início dos anos 2000 que aportava nas
grandes cidades como São Paulo e Rio de janeiro e que tinham o Mercado
Mundo Mix e a Feira Babilônia como referencial de moda, comportamento
e estilo de vida. Neves airma que alguns estilistas procuravam no Rio de
Janeiro um lugar como a Galeria Ouro Fino de São Paulo, polo da cultura
jovem urbana daquele momento social.

Foi nesse momento que o pessoal de moda que estava participando do Mer-
cado Mundo Mix e do Babilônia, descobriu esse lugar como uma oportuni-
dade de preço e a energia não estava morta. A energia jovem se mantinha.
Passa tudo, cria-se Barra Shopping, Barra Sul, Ipanema, mas a Galeria so-
brevive. Tanto é que agora estão redescobrindo o lugar.

Reiterando esse movimento de mudança Neves ainda declara que,

(...) foi nos inais dos anos de 1990 com o nascimento dessas novas mar-
cas, o nascimento dessa moda carioca alternativa - assim como em São
Paulo tinha a Galeria Ouro Fino, que é uma referencia lá. Aqui precisava
irmar aonde seria esse nicho alternativo de moda além do Babilônia. Aí
umas 5 marcas, em 1998/9 vieram para cá. Estávamos atendendo as de-
mandas dos clientes que queriam ter um provador, uma loja, estávamos
indo em cima dos desejos. Aglutinamos 5 marcas e depois icaram 3, en-
Cíntia Sanmartin Fernandes

im, dessa época eu fui o único que sobrevivi. Eu abri em 99, já tem 13 anos
que estou aqui.

(...) eu tinha fechado minha loja, e eu jurei que não abriria mais uma, me
estabilizar, ter empregado, eu queria viver na informalidade, no artesanal

153

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das feiras(...) mas foi tão mais forte essa necessidade de ter um ponto de
referência no Rio, a coisa estava crescendo tanto e aí no dia seguinte eu
peguei o carro e vim até aqui. Tinham umas cinco opções de lojas vazias,
eu vi essa loja , aliás umas das menores lojas da Galeria e eu vislumbrei...
tinha uma grade e eu olhei e falei aqui é minha loja e aqui vai ter um São
Jorge!

Marcos Cavalcante9 (um dos sócios da Boards CO, e sindico da Gale-


ria desde de 1996) também admite que a década de 90 foi um período difícil
para o lugar.

Quando assumi tinha 16 lojas fechadas e uma inadimplência muito gran-


de, com rombo de caixa. Alguns lojistas migraram para Ipanema achando
que a galeria iria sucumbir. Enxugamos os custos, atualizamos os valores
cobrados pelo condomínio e colocamos a casa em ordem. Depois partimos
para a modernização e o aumento das ações de marketing que não exis-
tiam. De pouco em pouco fomos alcançando os objetivos. Primeiro con-
venci um lojista que tinha uma loja sem as características da galeria (Re-
fricentro) a passar o ponto, entrando novas lojas que deram mais destaque
ao nosso espaço. Board´s Co, Botequim Informal e Reserva, ocuparam a
frente da Galeria, dando uma nova cara a entrada . Sem dúvida isso va-
lorizou muito a fachada da River. Continuamos nessa ideia de mudar o
conceito da Galeria, que comprovadamente deu certo. Convenci também
os outros proprietários que tínhamos que seguir nesse processo de melho-
ria da fachada de entrada da Galeria, procurando modernizar o ambiente.
Dinâmicas e Processos de Ressigniicação na Cidade do Rio

Ao analisar os depoimentos o que se evidencia é a constante rea-


tualização do conceito de juventude. Ao que tudo indica o “espírito do lu-
gar”, os seus modos, estilos e estéticas vincula-se a esse imaginário desde
as décadas de 1960/1970. Recuperar esse estilo parecer ser o objetivo dos
empresários. Para Neves, é a força da juventude que faz com que esse espa-
ço da cidade permaneça como referência cultural juvenil, como ponto de
encontro de diversas tribos que independente da idade tem “uma harmonia
com o tempo” e essa relação gera uma vida saudável.

9A entrevista na íntegra pode ser acessada em: <http://galeriariver.com.br/


site/2012/10/16/entrevista-com-marcos-cavalcante>. Acesso: 04/08/2013.

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O que é jovem? Eu acho que é um espírito saudável! A Galeria tem um
espírito saudável! E eu falo saudável como tomar o mate e o açaí, como
comer no Hare burguer, tomar uma cerveja com batata frita e carne no
Informalzinho... que tem seu lado saudável, como as roupas dos esportes, o
skate, como o frescor da Complexo B... essa coisa da contramão, mais fresh,
isso é que é ser jovem, é ser saudável! É essa vantagem (...) ter um tempo
mais estendido. O cara que vem com o ilho (...) jovem para mim é ter uma
harmonia com o tempo. O cara pode ter 60 anos e se sentir bem ali. Esse
espírito, essa coisa sem preocupação com o tempo do corpo... e sim com a
alma... estar ali (...)

Eu não sou do surfe, não tenho nada a ver com surfe... a minha onda pode
cruzar com a deles numas de sou carioca, sou saudável, sou contemporâ-
neo. Arrisco-me assim como quando o cara entra no mar, ou quando ele
entra numa proposta nova de roupa, mais “conceitual” mais subjetivo ele
entra no risco... tem a história da tatuagem... também virou um boom...e
essa coisa do culto ao corpo. Ou seja, pelo esporte ou como você cobre o
corpo, então tem esse link, tem essa coisa jovem, tem um espírito jovem aí!!

Territorialidades sônico-musicais

A Galeria, que sempre teve uma ligação com a cidade, especial-


mente com Ipanema e Arpoador, atualmente, passa por um novo momento
com o estímulo a abertura de lojas voltadas para a Gastronomia como o
Informalzinho (representante da cultura de botequim carioca) o Mate e o
Hare Burguer (que se consagrou nas areias cariocas por seus sanduíches
vegetarianos).
A chegada da loja Reserva +, há mais ou menos um ano e meio,
à Galeria também contribui para o resgate da identidade cultural que a
caracterizou a década de 1970/1980, conforme Kin10, gerente do espaço
Reserva +,
Cíntia Sanmartin Fernandes

10
Kin, em janeiro de 2011 foi convidado pelo dono da marca (Roni) para ser gerente
do projeto da marca Reserva, o espaço Reserva +, inaugurado em agosto de 2011.
Entrevista realizada em 8 de agosto 2012.

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(...) a escolha do ponto da Galeria River aconteceu porque é um ponto es-
pecial pela localização, pois ica entre a praia de Copacabana e de Ipane-
ma , e foi o centro, o lugar importantíssimo para a formação do “caráter
carioca”. Foi aqui que começou o surfe foi aqui que começou a “cultura
do carioca”. A “identidade carioca” nasceu daqui... Então quando surgiu
este ponto pensamos que estar aqui na Galeria e participar desse novo mo-
mento da cidade seria positivo para a marca. Com a Olimpíada e a Copa do
Mundo e tudo mais, o momento econômico favorável, tentar aproveitar
esse espaço que foi o berço da identidade carioca para tentar fazer ressurgir
essa produção cultural na cidade.

A questão da localização, da espacialidade da Galeria em relação


à cidade, surge em vários depoimentos como um elemento de muita força
para a dinâmica cotidiana do lugar cujo signo do glocalismo e do hibridis-
mo cultural está presente. No argumento de Kin,

a rua Francisco Otaviano é um dos pontos mais democráticos do Rio. A


rua deve ser um dos lugares aonde tem mais estrangeiro circulando no
Rio de Janeiro, a proximidade entre Ipanema e Copacabana, tem o Morro
do Cantagalo que é do lado, tem o ponto inal de diversos ônibus e é por
aqui então que todo mundo anda, domingo a rua ta fechada então tem de
tudo! Copacabana já tem uma mistura incrível, Ipanema também, por ser
a praia que o carioca mais freqüenta, também tem um luxo muito grande.
Dinâmicas e Processos de Ressigniicação na Cidade do Rio

Então para mim, o Arpoador é um dos espaços mais democráticos e mistu-


rados da cidade e, assim, com isso, a Reserva+ tem um público que quase
não conseguimos classiicar por ser eclético demais.
(...) E acho que o espaço é mais ou menos isso, contém essa diversidade e
tem ganhado força com o passar do tempo as pessoas começam a conhecer
já sabem que todo sábado e domingo tem show, que segundas e terças tem
teatro, e que sempre temos uma exposição de algum artista plástico, da
cidade, do país ou estrangeiro (...)

Ainda sobre os luxos de pessoas, carros, bicicletas Kin airma que devi-
do ao fato do lugar ser de “de passagem”, estar no traçado da ciclovia da cidade e
ter um estilo descontraído, colabora para que o transeunte pare pós-praia a pé, de

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skate, de patins, ou de bicicleta, sem necessitar retornar para casa ou hotel, para
desfrutar tanto da gastronomia, como dos shows e das compras. Conforme Kin,

(...) no verão ica mais cheio, a cidade ica cheia, a idéia do espaço até pela
localização é o pós-praia, o show nos inais de semana são às 18, 18:30 hs ,
as pessoas saem da praia e vem para cá... a descontração do espaço permite
isso, a pessoa vem suja de areia, entra e vê o show, toma uma cerveja...
então é um lugar muito bom para isso(...)
As bicicletas, acho que é uma cultura que vem crescendo no mundo e o
Rio é uma cidade incrível para isso. Plana, tem uma orla que pega quase a
zona sul por inteiro, tem a questão da sustentabilidade, um momento mais
saudável. Por estar estrategicamente na ciclovia a Galeria, tem o pessoal
que vem de skate, de bicicleta, de patins (...)

Cavalcante complementa essa opinião ao alegar que,

(...) o fato da galeria estar na continuidade do calçadão, que liga o Leblon


ao Leme , icar próximo ao Arpoador, e estar no meio dos bairros de maior
rede hoteleira da cidade do Rio, fez com que nos tornássemos um ponto de
passagem natural de turistas que vem visitar nossa cidade.

O “estar na continuidade do calçadão”, como airmado acima, é de


extrema importância para a compreensão da espacialidade da Galeria, o
que conduz a reletir acerca da dimensão comunicativa desse espaço. Sua
arquitetura é de linha reta e horizontal, e ocupa o piso térreo de um edifício
de moradia. Quem a olha frontalmente a vê em relação aos outros prédios
vizinhos em uma descontinuidade com a verticalidade preponderante nos
edifícios ao redor. Essa horizontalidade, com piso direito baixo (sem o uso
do vidro como elemento funcional para garantir a relação com o tempo na-
tural) - ao contrário do que deiniria para Benjamin o construto arquite-
tônico de uma Passagem -, rompe com qualquer interação verticalizada e
aproxima os corpos dos habitués ao deslocar a atenção para as lateralidades
Cíntia Sanmartin Fernandes

do espaço ampliando os movimentos dos corpos no espaço-tempo, permite


assim, como nos fala Neves, viver “em harmonia com o tempo” e assim com
o ambiente.
O revestimento do piso de pedras portuguesas pretas e brancas for-
mando a igura representada no calçadão de Copacabana, ao longo de toda

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Avenida Atlântica, reinscreve o passante ao reiterar por meio da plástica
preto/branco em um jogo curvilíneo, os signos de Copacabana criando o
sentido de continuidade entre os espaços dentro/fora. Assim esse espaço
é vivido como passagem, como extensões das ruas. Continuidade também
ampliadora do espaço.
A Galeria utiliza luzes artiiciais devido ao seu projeto arquitetôni-
co dividido em três corredores principais - dois paralelos, por onde se entra
e sai da Galeria e um perpendicular que faz a ligação entre os dois, e esses
se ligam a pequenos corredores sem saída - cuja entrada e o caminho da luz
natural se faz pelas duas amplas aberturas que acessam a rua.
Ao circular pelos corredores as vitrines organizam os objetos a
serem consumidos e que servirão como élan e reconhecimento das diver-
sas tribos que transitam pela Galeria. Modas variadas entre o surfwear, os
grunges, os alternativos contemporâneos, os roqueiros e os lutadores de
jiu-jítsu, bem como os acessórios e os equipamentos para os amantes do
surf e atualmente do stand up, do skate, das lutas marciais, do frescobol,
dos patins, do vôlei e futebol de praia etc. compõem a variedade de objetos
que possuem uma função simbólica, não simplesmente útil.
Como Maffesoli, interpreta-se o ato do consumo não como a ob-
tenção de um objeto manufaturado funcional, mas como uma relação que
permite a manifestação do sensível, da necessidade de singularidade, iden-
tidade e da experiência estética. Assim, a aquisição dos objetos simboliza “la
misteriosa alquimia que amalgama hedonismo y estética, y que se vuelve
casi una ética, es decir, un vínculo social” (MAFFESOLI, 2009b, p. 90).
A ideia do vínculo social ganha força no depoimento de Kin que
Dinâmicas e Processos de Ressigniicação na Cidade do Rio

reitera os estilos de vida dos consumidores da Galeria,

Acho que a nossa proposta é que seja um lugar de encontro. Os barzinhos,


o Informalzinho aqui do lado, a gente, tem possibilitado que a Galeria River
se torne um lugar para descontração para o entretenimento mesmo, não
só uma Galeria tradicional que você vai e compra alguma coisa, é claro
que... espero, que mantenha o clima praiano que a cidade tem e hoje em
dia tem muita força por causa do skate, estar numa galeria que tá na orla,
na rua (...) e a rua fecha aos domingos (...) tem muita gente que vem para
cá comprar skate no Dudu lá dentro, passear pela orla, e acabam curtindo
uma música aqui no nosso espaço (...) então é um lugar muito legal (...)

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A capacidade de mobilização das experiências musicais presenciais
e das interações realizadas no Arpoador e na Galeria (que integram de for-
ma harmoniosa vetores como sonoridade e espacialidade) vêm ganhando
visibilidade no cotidiano. Essas musicabilidades” (sociabilidades que gra-
vitam em torno da música) ou “ territorialidades sônicas-musicais” (FER-
NANDES, 2011) lorescem com frequência no Rio e são resultado de insur-
gências das ruas, do engajamento e da atuação dos atores sociais no espaço
público. Pode-se dizer que a experiência musical promovida pelo Reserva
+ vem permitindo construir processos de “reterritorialização” (DELEUZE,
GUATTARI, 1995) signiicativos nesta microrregião.
O Arpoador vem servindo de palco desde a década de 80 com a pre-
sença do Circo Voador e do bar Jazz Mania, e na atualidade com o Studio RJ
(vide o sucesso do Noite Fora do Eixo realizado todas quintas-feiras), para
a realização de shows e eventos que envolvem a música ao vivo. Festivais
de Jazz como Bourbon Street Fest, realizado no Parque Garota de Ipanema
(que trouxe importantes bandas, tais como Orleans St. Jazz Band; Terran-
ce Simien & The Zydeco Experience; e Shamarr Allen & The Underwags),
bem como o Festival de música/intervenção urbana  Dia da Rua patroci-
nado pela marca Farm11 e pelo portal Oi Novo Som. Assim moda e música
associam-se e criam territorialidades por meio de estilos de vida. A Farm12
e a Reserva + seguem investindo naquilo que denominam lifestyle. Mais do
que roupa as duas marcas, como a Complexo B, vendem entretenimento
articulado a estilos de vida!

Considerações finais

O importante é perceber que esses territórios ao mesmo tempo em


que estão demarcados por uma questão da lógica funcional do espaço (vi-
trines, incentivo ao consumo etc.) interagem sensivelmente com os indiví-

11
Disponível em: <http://www.farmrio.com.br/adorofarm/dia-de-musica>.
Acesso: 12/07/2013.
12
Na página eletrônica da marca encontramos a seguinte descrição: “foi com
Cíntia Sanmartin Fernandes

estampas, cores e muita descontração que a FARM surgiu na zona sul do rio e
conquistou o Brasil (...) era uma vez um pequeno estande numa feira de moda.
Ele virou uma loja e depois uma rede de lojas, que conquistou uma cidade, depois
outras cidades, estados e, até, outro país. Aquele pequeno estande se tornou a
marca da menina carioca e, quem diria, deu origem a um lifestyle: o estilo de vida
FARM”.

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duos que ali circulam e em conjunção transmutam o sentido originalmen-
te traçado no projeto racional convertendo-o em pequena territorialidade.
Territorialidade entendida como uma complexa experiência capaz de gerar
ajustamentos nas formas de ação e interação do indivíduo no mundo onde
este, devido à sua autonomia e integridade, pode navegar e construir, em
seu cotidiano, relações inesperadas constituidoras dos lugares.
Espaços não somente inteligíveis, mas sensíveis, afetivos, onde exis-
tir não é apenas seguir regras e normas, sejam elas de qual ordem forem,
mas arriscar-se em outras possibilidades, à aventura do lançar-se na cidade
de forma sensual, em que corpo e ambiente (artiicial ou natural) intera-
gem gerando outros signiicados para os locais, transformando-os em luga-
res (FERRARA, 2007).
Com isso airmamos que os espaços se lugarizam13 à medida que os
indivíduos se apropriam deles, sentindo-os, intercambiando com o ambien-
te, desvelando-os, ao mesmo tempo em que se desvelam, gerando a possi-
bilidade de ininitas conformações de espacialidades que tecem o cotidiano
da vida citadina. Trama ininita e aberta. Rede geradora de possibilidades
comunicativas e culturais onde o consumo da música e da moda aparece
como uma prática de reconhecimento cultural, de identidade de um indiví-
duo ou grupo, ou seja, de estilos de vida.

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13
O conceito de lugar, empregado na atual pesquisa, tem como referência o que
Milton Santos (1996) chamou de “espaços do acontecer solidário”, que deinem
usos e geram valores de múltiplas naturezas, como culturais, antropológicos,
econômicos, sociais etc., em que se pressupõem coexistências culturais, mesmo
que efêmeras.

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Sobre os autores:

Adriana Amaral
(adriamaral@yahoo.com)

Professora e pesquisadora do programa de Pós-Graduação em Ciências da


Comunicação da Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos). Doutora
em comunicação social pela Puc- RS. Pesquisadora do CNPq, atualmente,
desenvolve pesquisa sobre valores e disputas de cenas musicais em plata-
formas de música online. É autora do livro Visões perigosas – uma arque-
genealogia do cyberpunk (Sulinas, 2006); e, em co-autoria, de Métodos de
Pesquisa para Internet (Sulinas, 2011)

Cíntia Sanmartin Fernandes


(cintia@lagoadaconceicao.com)

Doutora em Sociologia Política pela UFSC, com doutorado-sanduíche junto


à Université René Descartes-ParisV/Sorbonne, tendo realizado dois estágios
pós-doutorais, respectivamente no Programa de Pós-Graduação em Comu-
nicação da PUC-SP e no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da
UFRJ. Atualmente é professora do Programa de Pós-Graduação em Comu-
nicação da UERJ e pesquisadora do Grupo de Pesquisa Comunicação, Arte
e Cidade (CAC).

Felipe Trotta
(trotta.felipe@gmail.com)

Professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação e do curso de


Mídia da Universidade Federal Fluminense, doutor em Comunicação pela
UFRJ e pesquisador do CNPq. É autor de diversos artigos sobre música, va-
lor e mercado, e do livro O samba e suas fronteiras (Editora UFRJ, 2011).
Atua ainda como vice-presidente da Seção Latino-Americana da Interna-
tional Association for Study of Popular Music (IASPM -AL ).

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Jeder Janotti Junior
(jederjr@gmail.com)

Baterista nas horas vagas, headbanger apaixonado. Jeder é crítico musical e


professor de Graduação e do Programa de Pós-Graduação da UFPE. Pesqui-
sador do CNPq. Autor e organizador, entre outros, dos livros Heavy Metal
com Dendê (E-Papers), Aumenta Que Isso Aí é Rock and Roll (E-Papers),
Comunicação e Música Popular Massiva (junto com João Freire Filho-Edu-
fba) e Comunicação e Estudos Culturais (junto com Itânia Gomes-Edufba).
Atualmente publica seus petardos críticos no site www.outroscriticos.com.
 
Micael Herschmann
(micaelmh@pq.cnpq.br)

Formou-se em História pela PUC-RJ, tendo realizado seu mestrado e dou-


torado em Comunicação na UFRJ, bem como seu estágio pós-doutoral na
Universidade Complutense de Madri. É pesquisador 1 do CNPq e professor
do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal
do Rio de Janeiro. Além disso, coordena o Núcleo de Estudos e Projetos em
Comunicação (NEPCOM-ECO/UFRJ) e o GP de Comunicação, Música e En-
tretenimento da INTERCOM. É autor dos seguintes livros: A Indústria da
Música em Transição (Editora Estação das Letras e das Cores, 2010); Lapa,
cidade da música (Editora Mauad X, 2007); O funk e hip hop invadem a
cena (Editora UFRJ, 2000).

Simone Pereira de Sá
(sibonei.sa@gmail.com)

Doutora em Comunicação pela UFRJ, tendo cursado estágio pós-doutoral na


McGill University (Montreal, Canadá). É pesquisadora do CNPq, professora do
Programa de Pós-graduação em Comunicação e do curso de Mídia da Univer-
sidade Federal Fluminense, onde coordena o LabCult-Laboratório de Pesquisa
em Culturas e Tecnologias. É autora dos livros: Baiana internacional – as me-
diações culturais de Carmen Miranda (MIS; 2002) e O samba em rede: comu-
nidades virtuais, dinâmicas identitárias e carnaval carioca (E-papers; 2005).
Organizou a coletânea Rumos da cultura da música (Sulina; 2010); e co-or-
ganizou Prazeres digitais (E-papers, 2004); e Som+Imagem (7Letras, 2012)

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Thiago Soares
(thikos@gmail.com)

Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Culturas Mi-


diáticas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), doutor em Comunica-
ção e Cultura Contemporânea pela Universidade Federal da Bahia (UFBA),
autor do livro Videoclipe, o elogio da desarmonia (2004).

Will Straw
(william.straw@mcgill.ca)

Professor da McGill University, Montreal, Art History and Communication


Department e Diretor do McGill Institute for the Study of Canada. Suas pes-
quisas contemplam temáticas diversiicadas ligadas ao universo do som,
música, cinema e entretenimento.

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