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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE LETRAS E ARTES


ESCOLA DE MÚSICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO PROFISSIONAL EM MÚSICA – PROMUS

CELIO R. L. RENTROIA

CANÇÕES ESQUECIDAS DE CHIQUINHA GONZAGA – Tempero brasileiro na


música popular e no teatro musical

Rio de Janeiro

2019
CELIO R. L. RENTROIA

CANÇÕES ESQUECIDAS DE CHIQUINHA GONZAGA – Tempero brasileiro na


música popular e no teatro musical

Dissertação de mestrado apresentada ao


Programa de Pós-graduação Profissional em
Música (PROMUS), Linha de Pesquisa:
Processos de Desenvolvimento Artístico;
Escola de Música, Universidade Federal do
Rio de Janeiro, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre em Música.

Orientador: Prof.ª Dr.ª Sheila Zagury

Rio de Janeiro

2019
CELIO R. L. RENTROIA

CANÇÕES ESQUECIDAS DE CHIQUINHA GONZAGA – Tempero brasileiro na


música popular e no teatro musical

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa


de Pós-graduação Profissional em Música
(PROMUS), Linha de Pesquisa: Processos de
Desenvolvimento Artístico; Escola de Música,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
requisito parcial à obtenção do título de Mestre
em Música.

Aprovada em 16 de dezembro de 2019:


4

AGRADECIMENTOS:

À minha orientadora Sheila Zagury


Aos amigos, pela inestimável colaboração, Wagner de Miranda, Ana Azevedo e Regina
Barros.
5

Dedico esse trabalho à minha mãe, in Memoriam


6

RESUMO

RENTROIA, Celio R. L. Canções esquecidas de Chiquinha Gonzaga – Tempero brasileiro


na música popular e no teatro musical. Rio de Janeiro, 2019. Dissertação (Mestrado
Profissional em Música). Escola de Música, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2019.

O presente trabalho consiste no estudo teórico e prático da obra musical de Chiquinha


Gonzaga voltada para o canto, entre cancioneiro popular e teatro musical, e registro
fonográfico de peças representativas. A seleção foi orientada para obras inéditas ou que não
apresentem gravações disponíveis. O produto final é um CD com 12 faixas.

Palavras-chave: Chiquinha Gonzaga; Música Popular Brasileira; Teatro Musicado Brasileiro;


Canto.
7

ABSTRACT

RENTROIA, Celio R. L. Forgotten Songs by Chiquinha Gonzaga - Brazilian seasoning in


popular music and musical theater. Rio de Janeiro, 2019. Dissertation (Professional Master in
Music). School of Music, Federal University of Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.

The present work consists on a theoretical and practical study of Chiquinha Gonzaga´s
musical production directed to singing in popular music and musical theater, with
phonographic record of representative pieces. The selection will be directed to pieces with no
available records or still unreleased. The final product will be a CD with 12 tracks.

Keywords: Chiquinha Gonzaga; Brazilian Popular Music; Brazilian Musical Theater;


Singing.
8

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Imagem do manuscrito original de “Meu Deus, que maxixe


gostoso” (Fonte: Portal do Instituto Moreira Salles – Coleção
Chiquinha Gonzaga)............................................................... 37

Figura 2 - Partitura digitalizada de “Meu Deus, que maxixe gostoso” (Fonte:


<chiquinhagonzaga.com>)....................................................... 38

Figura 3 - Partitura publicada de “Fado das Tricanas de Coimbra”


(Fonte: Portal do Instituto Moreira Salles – Coleção Chiquinha
Gonzaga)................................................................................. 39

Figura 4 - Partitura digitalizada de “Fado das Tricanas de Coimbra”


(Fonte: <chiquinhagonzaga.com>).......................................... 40

Figura 5 - Primeira página do arranjo de “Meu Deus que maxixe gostoso”.... 44


9

SUMÁRIO

1- INTRODUÇÃO....................................................................................... 10

2- CHIQUINHA GONZAGA................................................................... 12

2.1 - Contexto histórico.................................................................................. 12

2.2 - Resumo biográfico.................................................................................. 17

2.3 - Produção artística................................................................................... 24

3- PESQUISA MUSICAL.......................................................................... 33

3.1 - Seleção de repertório.............................................................................. 34

4- ELABORAÇÃO DE ARRANJOS........................................................ 41

5- REGISTRO FONOGRÁFICO............................................................. 45

6- CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................ 46

REFERÊNCIAS..................................................................................... 47
10

APÊNDICE - PARTITURAS

1- AMOR...................................................................................................... 51

2- ANSELMO.............................................................................................. 54

3- CALA (TACI)......................................................................................... 64

4- CANÇONETA CÔMICA...................................................................... 72

5- DUETO - MAESTRO E RITA............................................................. 78

6- DUETO - MÁRIO E BEATRIZ ........................................................... 87

7- EUSÉBIO................................................................................................ 92

8- FADO DAS TRICANAS DE COIMBRA............................................ 98

9- MEU DEUS QUE MAXIXE GOSTOSO............................................. 104

10 - MODINHA.............................................................................................. 114

11 - RONDOLINI – RONDOLINÃO.......................................................... 119

12 - TEUS OLHARES................................................................................... 127


11

1 - INTRODUÇÃO

O trabalho aqui apresentado consiste na investigação da obra da maestrina, pianista,


compositora e arranjadora Chiquinha Gonzaga (1847-1935), com foco direcionado para a
seleção de 12 canções que não apresentem gravações disponíveis, escolhidas a partir do
repertório de música popular e teatro musical de sua autoria. O produto final desta pesquisa é
um CD com o registro fonográfico das peças selecionadas. As partituras estudadas serão
provenientes de duas fontes principais, que abrangem a quase totalidade dos registros
existentes da obra da compositora. A primeira é a Coleção Chiquinha Gonzaga,
disponibilizada no portal eletrônico do Instituto Moreira Salles
(<http://ims.com.br/musica/titular-colecao/chiquinha-gonzaga>), que desde 2005 é
mantenedor do acervo original. A segunda fonte é o conjunto de partituras já revisadas e
digitalizadas pelos pianistas e pesquisadores Wandrei Braga e Alexandre Dias, disponíveis no
portal eletrônico <chiquinhagonzaga.com>. O objetivo primordial é o aprofundamento na
obra de Chiquinha Gonzaga, através da pesquisa musical e posterior registro fonográfico de
peças selecionadas. O material de estudo foi sua produção composta especificamente para o
canto, a partir do acervo disponível de partituras de música popular e teatro musical.
A motivação deste projeto é a investigação de uma parte importante da obra de
Chiquinha Gonzaga ainda pouco conhecida, devido à ausência de gravações disponíveis. A
publicação na internet de um acervo considerável de partituras, até pouco tempo atrás raras
e/ou de difícil acesso, abriu novas e instigantes possibilidades de pesquisa, o que é um
estímulo a mais para a realização deste trabalho.
A importância de Chiquinha Gonzaga na história da música brasileira já é bastante
reconhecida, em função de alguns elementos que caracterizaram sua trajetória pessoal e
artística. Um deles é a sua vasta produção, que consiste de mais de 2.000 composições de
gêneros musicais variados, entre peças para piano e orquestrais, canções populares e trilhas
instrumentais e vocais criadas para teatro musical. Outro ponto importante é a natureza de sua
música, que incorporava criativamente influências europeias e formas musicais populares
nacionais, as quais já traziam elementos de origens diversas. A criadora de Lua branca e Ó
abre alas contribuiu com o desenvolvimento de uma estética cada vez mais tipicamente
brasileira. Edinha Diniz, em seu livro Chiquinha Gonzaga: Uma história de vida (1999),
esclarece este ponto, ao mencionar a influência do maestro flautista Joaquim Callado em sua
trajetória musical:
12

Sem dúvida Callado foi muito importante para ela como amigo, protetor e mestre. (...)
E sua influência fundamental. A morte o colheu prematuramente em março de 1880,
com apenas 32 anos de idade deixando o caminho aberto para que outro compositor o
seguisse. As bases que lançara para a nacionalização da música popular tiveram assim
uma continuadora em Chiquinha Gonzaga, que lhe estava mais próxima e se
identificava com aquele tipo de trabalho. Seria longo o caminho até conseguir afastar
a música produzida aqui das matrizes musicais estrangeiras. Chiquinha tomou a si a
tarefa de consolidar a proposta inicial de Callado e encaminhar o processo de
abrasileiramento musical. O gosto popular aceitou de imediato a nova música que se
formava e já no final do século o triunfo alcançado pela música popular - em
detrimento de outras formas de música - demonstrava sua adoção pelo grande público.
Para isso o teatro foi imprescindível. (DINIZ, 1999, p.62)

A atuação de Chiquinha Gonzaga no teatro musicado como compositora, pianista,


arranjadora e regente claramente ajudou a abrir espaço para a enorme popularidade que a
maestrina conquistou, ao longo de décadas de trabalho. Neste âmbito, também, foi
significativa a sua contribuição, buscando sempre o “abrasileiramento” da música integrada
ao teatro, motivo pelo qual ela certamente pode ser considerada uma das precursoras do teatro
musical brasileiro.
A vida pessoal de Chiquinha foi igualmente movimentada e até revolucionária para os
padrões da época, com alguns casamentos, rejeição da família e o polêmico envolvimento
com um rapaz quase 40 anos mais jovem. Além disso, a sua própria atuação profissional e
artística foi motivo de escândalo, numa época em que o papel social da mulher praticamente
se resumia ao de esposa e mãe. Esteve entre as precursoras de um posicionamento feminino
libertário e foi ainda abolicionista, integrante do movimento republicano e ativista dos direitos
dos artistas, vindo a se tornar uma das fundadoras da Sociedade Brasileira de Autores – SBAT
(originalmente, Sociedade Brasileira de Autores Teatrais). A imagem que ficou para a
posteridade foi a de uma mulher ativa, inteligente e determinada, além de artista de muito
talento e sucesso.
A amostra do trabalho final pode ser acessada através do link ou do código QR abaixo:

http://promus.musica.ufrj.br/index.php/estrutura-curricular/pesquisas-
encerradas/?&pesquisa=37#produto-artistico-ou-pedagogico
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2 - CHIQUINHA GONZAGA

2.1 - Contexto histórico

A breve contextualização que se segue não pretende aprofundar o estudo histórico do


Rio de Janeiro oitocentista, objeto de trabalhos diversos e abrangentes. Serão levantados aqui
alguns aspectos que caracterizaram o período, e que de forma direta ou indireta possam ter
influenciado a trajetória pessoal e artística de Chiquinha Gonzaga.
O Brasil tornou-se sede do Império Português em 1808, com a vinda da família Real
para o Rio de Janeiro, passou a ser reino em 1822, quando D. Pedro I proclamou a
Independência, viveu o período do segundo reinado a partir de 1843, quando D. Pedro II
assumiu o trono, e tornou-se República em 1889. Ao longo desse período, diversas regiões do
Brasil cresciam economicamente, movidas por ciclos de demanda por produtos como a
borracha, que impulsionou o crescimento na Amazônia, a cana-de-açúcar na Bahia, o café em
São Paulo e no Rio de Janeiro, o ouro em Minas, Goiás e Mato Grosso, e a atividade
econômica dos imigrantes alemães e italianos no sul do Brasil, que estimulava diversos
setores. Os grandes centros se urbanizavam, abandonando gradativamente características
rurais e assumindo novas configurações nos aspectos arquitetônicos, profissionais, sociais e
familiares. O papel da família patriarcal como núcleo predominante da sociedade aos poucos
dá lugar à interação social, favorecendo a cidadania como princípio definidor do papel do
indivíduo.
A condição de capital do Império e a presença da corte portuguesa foram fatores
determinantes para a formação da identidade cultural do Rio de Janeiro. Desde a vinda da
família real, a cidade se tornara o pólo civilizador de uma nação em formação, o centro do
poder político que se manifestava sobre todas as outras regiões, ao mesmo tempo
intrinsecamente ligado à Europa e seus valores. Alencastro reflete sobre o início desse
processo:

A transferência da corte trouxe para a América portuguesa a família real e o governo


da metrópole. Trouxe também, e sobretudo, boa parte do aparato administrativo
português. Personalidades diversas, funcionários régios continuaram embarcando
para o Brasil atrás da corte, dos seus empregos e dos seus parentes, após o ano de
1808. Concretamente, além da família real, 276 fidalgos e signatários régios
recebiam verba anual de custeio e representação, paga em moeda de ouro e prata
retirada do Tesouro Real do Rio de Janeiro. Luccock calculava em 2 mil o número
de funcionários régios e de indivíduos exercendo funções relacionadas com a Coroa.
14

Junte-se ainda os setecentos padres, os quinhentos advogados e os duzentos


“praticantes” da medicina residentes na cidade. (ALENCASTRO, 1997, p. 11)

Esse fato dispara um processo civilizatório com características muito particulares que
se acentuam com o passar dos anos. A demanda pelos produtos e serviços se intensificou e
especializou com as levas migratórias de estrangeiros que chegavam, e tal desenvolvimento
atraía também moradores de outras regiões do Brasil. O mercado de escravos atingia seu
ápice, conforme descreve Alencastro:

Enfim, chegam mais africanos, dado que a baía de Guanabara convertera-se, desde o
final do século XVIII, no maior terminal negreiro da América. Embora a maioria
desses indivíduos se destinasse à zona agrícola, um número crescente de escravos será
retido no meio urbano para atender à demanda de serviços: entre 1799 e 1821 a
percentagem de cativos no município salta de 35% para 46%. (ALENCASTRO, 1997,
p. 14).

Este fator influenciou as características demográficas da cidade, já que quase metade


da população era de origem africana. Novas levas de imigrantes, principalmente portugueses,
alteraram estas proporções na segunda metade do século, sem modificar essencialmente a
configuração mestiça da população. No comércio de mercadorias, o porto fluminense era
parada quase obrigatória para os navios que viessem do Atlântico Norte para os portos
americanos do Pacífico, e vice-versa. Em termos proporcionais, metade do comércio exterior
brasileiro passou pelos cais cariocas durante o século XIX.
A influência da cultura francesa em Portugal se manifestava também no Brasil desde o
descobrimento, particularmente entre as elites, e se intensificava com o desenvolvimento da
cidade. Folhetins, romances e operetas difundiam a imagem do modo de vida francês,
apresentado como paradigma de civilidade para a sociedade tropical e escravagista. A moda
francesa era vendida em lojas elegantes da Rua do Ouvidor, e tudo que era francês trazia uma
aura de modernidade. A influência literária se manifestava no jornalismo, na filosofia, na
ficção e nos termos incorporados à fala cotidiana. O piano torna-se uma mercadoria-fetiche,
símbolo de status e civilização, a ponto de o Rio de Janeiro ser chamado de “A cidade dos
pianos”. “Para aquela sociedade de características ainda coloniais este instrumento
representava não só um objeto de luxo, mas também um desenvolvimento cultural”
(JUNQUEIRA, 1982, p. 2). Inevitavelmente, a nova tendência geraria reflexos significativos
na vida e na música praticada na cidade, em suas várias vertentes, como explica Amato:
15

No Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX, que então recebia muitos
artistas estrangeiros para óperas e recitais, o piano difundiu-se como instrumento
tocado em salões particulares e festas familiares, gradualmente ganhando as salas de
concerto. Ainda nesse período, a prática musical foi valorizada ao ser incluída
oficialmente na educação brasileira: um decreto federal de 1854 regulamentou o
ensino de música no país e passou a orientar as atividades docentes, enquanto que,
no ano seguinte, outro decreto fez exigência de concurso público para a contratação
de professores de música. De grande relevância, igualmente, foi a criação do
Imperial Conservatório de Música do Rio de Janeiro, ainda em 1841. (AMATO,
2008, p. 169)

Ao mesmo tempo, era significativa a presença da cultura africana, proporcional ao


grande número de escravos de diversas origens que integravam a população da cidade. Cida
Donato investiga as tensões que se manifestavam a partir dessa interação e os reflexos
produzidos na música:

As estratégias para a modernização do Brasil contavam com algumas artimanhas que


visavam anular a força dos negros no sistema colonial. As práticas rituais dos
africanos sustentavam-se na música e no canto e, na extensão dessas ações, a vida
cotidiana desses povos não se dissociava do seu universo religioso. Desta maneira, o
canto e a música constituíam o complexo cultural dos negros, residindo nelas o
estímulo máximo para as suas ações criadoras. Além disso, o elo religioso permitia-os
diferenciarem-se enquanto grupo étnico e estabelecerem uma unidade, mesmo entre
povos de nações diferentes. No entanto, esta ordenação ameaçava a estrutura de poder
existente, levando o Estado e a Igreja a encarregaram-se de profanizar os ritos para
dissipar a força religiosa que impulsionava os escravos à rebeldia. Assim, as
manifestações sagradas dos negros foram deslocadas de seu lócus, as casas de axé,
para as festividades públicas ou as da religião oficial. O que parecia, em princípio,
contribuir para a dispersão e ruína de uma prática que ameaçava os bons costumes da
sociedade, na verdade, culminou num processo de sincretismo religioso, facilitando a
miscigenação entre os ritmos africanos e os demais existentes no país. (DONATO,
2008, p. 4)

As críticas ao sistema escravocrata contribuíram significativamente para as mudanças


que caracterizaram as últimas décadas do século XIX. Entre o Final da Guerra do Paraguai e a
Proclamação da República (1870-1889), a vida pública brasileira apresenta um quadro de
mobilização intensa. A guerra havia consumido recursos financeiros e provocado pressões no
aspecto social, o que estabeleceu um ambiente de questionamento e ativismo, manifestados
especialmente nos movimentos abolicionista e republicano. De acordo com Diniz:

Diante disso a relativa estabilidade polı́tica e econômica que o paıś vinha atravessando
é abalada. Discute-se a questao ̃ institucional. Novas parcelas da populaçao ̃ procuram
formas de participar politicamente do processo de mudança. A pequena burguesia,
inquieta, adere. Academias, cursos jurıd́ icos e jornais revelam-se focos de ebulição
intelectual e polıt́ ica. O entusiasmo popular pelas grandes campanhas sociais é
16

contagiante e a participaçaõ em massa termina por provocar reformas. (DINIZ, 1999,


p. 37).

Novas camadas sociais emergiam e reivindicavam maior participação na coletividade,


em termos de expressão de opinião, discussão de direitos e consumo de bens materiais e
culturais, em um processo de modernização da sociedade que favoreceu o crescimento de
vários setores.
O setor cultural e de entretenimento procurava ampliar a variedade da oferta, por um
lado com uma atividade consistente de importação de produções estrangeiras, e por outro com
o anseio pelo desenvolvimento de formas artísticas tipicamente nacionais. O questionamento
sobre o que significava ser brasileiro se manifestava nos âmbitos político, social e cultural, e
nas artes essa inquietação favoreceu o surgimento de novas formas de expressão, que
incorporavam as influências europeias, africanas e americanas, responsáveis pela formação da
identidade nacional.
Se na primeira metade do século a oferta de atrações artísticas era quase
exclusivamente importada, ao longo da segunda metade se estabelece uma produção nacional
de crescimento gradativo, inicialmente bastante influenciada pelos padrões europeus. A
sofisticação da sociedade, aliada ao desgaste das décadas finais do regime monárquico e à
popularização dos ideais iluministas, também importados da Europa, estimulou
questionamentos e reivindicações nos vários aspectos da vida pública, e o setor do
entretenimento refletia com rapidez e fidelidade os anseios e aspirações das novas classes
sociais emergentes (DINIZ, p. 39).
A crítica política era incorporada cada vez mais incisivamente aos espetáculos teatrais,
adaptando-se aos poucos às circunstâncias brasileiras. Surgem os primeiros dramaturgos
brasileiros de destaque, cuja produção se manifesta no teatro predominantemente textual e no
teatro ligeiro musicado, que reproduzia aqui as formas e denominações europeias, como
opereta, burleta, mágica e revista1, entre outras. Estes gêneros variados se popularizaram na

1
Opereta – Ópera leve, curta, com diálogos falados, música e dança. Referia-se a assuntos do cotidiano, tendo
normalmente o amor como tema central, e era entremeada por números musicais; Burleta – Gênero híbrido, com
estrutura textual e músicas ligadas a um enredo coeso. No teatro italiano, burleta significava comédia musicada,
e o uso inicial do termo no Brasil é atribuído a Artur Azevedo; Mágica – Com enredo simples e sem conexão
obrigatória com a realidade, tinha forma híbrida, com elementos da ópera italiana, da zarzuela e da opereta
francesa. Abordava temas fantásticos e utilizava maquinaria engenhosa em seus recursos visuais; Revista –
Gênero que articulava fatos políticos, econômicos, culturais e artísticos ocorridos durante o ano. A estrutura era
fragmentada em quadros, que misturavam teatro, música e dança, conduzidos pela figura do compadre ou da
comadre, de forma cômica ou caricata. (ABREU, págs. 54 a 57).
17

França em meados do século XIX e rapidamente sua influência era absorvida em outros
países da Europa, inclusive Portugal, chegando pouco tempo depois no Brasil. Aguiar
discorre sobre essas duas tendências do teatro na época:

Enquanto isso acontecia no sisudo Gymnase Dramatique, teatro de preferência dos


realistas, outros teatros – como o Alcazar - fervilhavam mais e mais com as burletas,
as farsas, onde imperava o ritmo frenético dos cancans, das mágicas, unindo as
marcas de uma civilização cada vez mais visual com os ditos licenciosos nas
entrelinhas ou mesmo fora delas. Ambas as tendências, como já se disse, não
tardaram em repercutir no Brasil, sobretudo na corte, sempre novidadeira de
sensações à la française. (AGUIAR. 1998, p. 8)

Teatros, confeitarias, cafés-concerto, clubes e agremiações eram locais de encontro


onde fervilhava a vida social carioca, favorecida pela inovação do bonde como veículo de
mobilidade urbana. Toda esta movimentação proporcionou o surgimento de um novo tipo
social, o boêmio. Ligado principalmente à literatura e à música, o fenômeno da boemia
também produziria efeitos no âmbito da discussão política. Estes ambientes inicialmente
apresentavam frequência predominantemente masculina, e as exceções eram as cocotes,
atrizes estrangeiras que normalmente também se prostituíam.
A mudança no padrão de conduta feminina ocorre lentamente na segunda metade do
século XIX e avança até o século XX, permitindo aos poucos a presença da mulher dita “de
família” em espaços antes ocupados apenas pelas consideradas “mundanas”.

Ainda no início do século XX, a mulher não tinha direito ao voto e à participação
política, e suas aptidões deveriam desenvolver-se apenas no que se referisse a tarefas
essencialmente domésticas: cozinha, bordados, crochês, familiaridade com a língua
francesa e com a música, especialmente com a execução pianística. (AMATO, 2008,
p. 172)

Em um primeiro momento, códigos rígidos estabeleciam as distinções entre um rótulo


e o outro, em termos de comportamento social, vestimenta, locais e horários de frequência. O
desenvolvimento da sociedade urbana reduz em parte as características patriarcais
predominantes, com a necessidade de outras formas de interação social, o que favorece novas
configurações dos papéis masculinos e femininos. Alencastro cita Gilberto Freyre, ao
esclarecer este ponto: “O absolutismo do pai de família dissolvia-se à medida que outras
figuras de homem ganhavam ascendência na sociedade escravista: o juiz, o correspondente
comercial, o diretor do colégio, o médico. ” (FREIRE apud ALENCASTRO, p. 76).
18

O fim da escravidão em 1888 e a Proclamação da República em 1889 marcaram o


início de uma nova fase que se estendeu pelas primeiras décadas do século XX, e no Rio de
Janeiro caracterizou a chamada Belle Époque, cujo ápice foi a reforma urbana conduzida pelo
prefeito Pereira Passos, entre 1903 e 1906. Todas estas mudanças contribuiriam para uma
nova configuração da cidade, conforme esclarece Donato:

Neste decurso, o Rio de Janeiro não poupava esforços para manter-se no rol dos
grandes centros, adotando, para isto, medidas severas que incluíram desde a
proclamação da República, em 15 de novembro de 1899, até o bota-abaixo de Pereira
Passos, as quais transformaram consideravelmente a rotina dos habitantes e dividiram
a população em dois pólos antagônicos: de um lado a ostentação do luxo se refletindo
em vários momentos, tais como na vida noturna incrementada pela iluminação a gás e
o surgimento dos teatros, cabarés e salões; nas tardes nas confeitarias; nos passeios
nos jardins públicos; no flanar nas grandes avenidas e em oposição a isto, a varredura
da classe pobre, negra e mestiça varrida do centro para a periferia e subúrbios, zonas
com pouca ou nenhuma infra-estrutura. (DONATO, 2008, p. 3)

Este Rio de Janeiro em processo de transformação inicia o século XX com novas


tensões sociais, ao mesmo tempo em que é palco de uma atividade cultural intensa e variada,
que ajudou a definir os rumos do teatro musicado e da música popular, em âmbito local e
nacional. A consolidação do choro e o surgimento do samba, o sucesso das revistas e
operetas, a impressão e comercialização de partituras, o desenvolvimento do carnaval e a
inovação tecnológica da gravação de áudio foram elementos que caracterizaram a vida
cultural da cidade no início do novo século e influenciaram as mudanças e desdobramentos
posteriores.

2.2 - Resumo biográfico

A biografia Chiquinha Gonzaga – Uma história, de Edinha Diniz, apresenta extensa e


detalhada informação sobre a vida e a obra da maestrina, e serviu de fonte principal para o
conteúdo resumido apresentado a seguir.
Francisca Edwiges Neves Gonzaga nasceu no Rio de Janeiro em 17 de outubro de
1847, filha de um militar de origem ilustre, José Basileu Neves Gonzaga, e de Rosa, alforriada
e filha de escrava. Apesar de ser fruto de uma relação condenada socialmente, teve a sorte de
ser registrada pelo pai, que a assumiu e possibilitou a ela uma educação de sinhazinha da
corte. Mesmo assim, sua origem mestiça marcaria sua trajetória pessoal e artística por toda a
vida.
19

A infância de Chiquinha se deu na Rua Nova do Príncipe, atual R. Senador Pompeu,


no Centro do Rio. Conforme recomendavam os hábitos de vigilância moral, o militar
contratou um cônego para o ensino das primeiras letras à sua filha Chiquinha. Além da
escrita, da leitura, do cálculo e do catecismo, a jovem aprenderia também alguns idiomas. E,
mais que isto, para que naõ tivesse sua formação social incompleta, cuidou da sua educaçaõ
musical. Foi a contragosto que José Basileu contratou um maestro para as aulas de piano da
filha, pois preferia uma professora.
Nas residências, a presença do piano tornara-se quase obrigatória, por uma
combinação de motivos que iam do desenvolvimento dos países europeus produtores e
exportadores do instrumento e de tendências à tentativa das classes emergentes de aparentar
cultura e erudição. Conforme ilustram Novais e Alencastro:

De alto valor agregado e de imediato efeito ostentatório – as duas características que


fazem desde então a felicidade respectiva dos importadores e dos consumidores
brasileiros de renda concentrada -, o piano apresentava-se como o objeto de desejo
dos lares patriarcais. Comprando um piano, as famílias introduziam um móvel
aristocrático no meio de um mobiliário doméstico incaracterístico e inauguravam –
no sobrado urbano ou nas sedes das fazendas – o salão: um espaço privado de
sociabilidade que tornará visível, para observadores selecionados, a representação da
vida familiar. Saraus, bailes e serões musicais tomavam um novo ritmo. Vendendo
um piano, os importadores comercializavam – pela primeira vez desde 1808 – um
produto caro, prestigioso, de larga demanda, capaz de drenar para a Europa e os
Estados Unidos uma parte da renda local antes reservada ao comércio com a África,
ao trato negreiro. (ALENCASTRO, 1997, P. 47)

Além do contato com o professor maestro e com um tio músico amador, pode-se supor
que Chiquinha tenha recebido a influência da moda musical da época e do repertório popular
das ruas, desde então presente na cultura carioca. Apesar de sua educação claramente não ter
sido negligenciada, não se pode afirmar que tenha sido muito mais esmerada do que os
padrões sociais vigentes permitiam às moças em geral e às de sua camada social em
particular.
Ainda de acordo com os costumes da época, casou-se bem cedo, aos 16 anos, em 5 de
novembro de 1863. O noivo, Jacinto Ribeiro do Amaral, era um jovem militar filho de um
proprietário de terras, rico e com razoável posição social. Como a grande maioria dos
casamentos de então, esta união foi resultado de arranjos entre os pais dos noivos, em que
pesavam significativamente aspectos financeiros.
A vida pacata de casada, com os confortos que permitiam as posses do marido,
escravos para realizar todas as tarefas e o tempo dedicado a bordados e doces não eram
suficientes para satisfazer o temperamento irrequieto que Chiquinha sempre demonstrara. O
20

aprendizado de música ganhou um papel preponderante na sua formaçaõ e o talento


manifestou-se cedo. A música representava um meio de manifestar e extravasar seu
temperamento e manter sua vontade própria, o que provocava ciúmes no marido e até mesmo
o desafiava. Assim, a relação conjugal começa a tornar-se delicada. Ainda aos 16 anos torna-
se mãe de seu primeiro filho, João Gualberto, em 1864, e no ano seguinte nasce Maria do
Patrocínio. Chiquinha continuava a dedicar-se ao piano para desespero do marido,
esperançoso de que as atividades maternas lhe desviassem de vez as atenções da música. A
situação conjugal agravava-se.
Também em 1864, é deflagrada a Guerra do Paraguai, e em 1865, o Brasil intervém.
Estes fatos refletem-se na já conturbada vida do casal de modo decisivo. As atividades
militares e comerciais de Jacinto colocaram-no na posição de Comandante da Marinha
Mercante. Em junho de 1865, seu navio é fretado pelo Governo e ele começa a empreender
viagens ao sul, levando mantimentos, armas e tropas. O seu desespero de marido de uma
mulher rebelde e obstinada fez com que tivesse a ideia de obrigar Chiquinha a acompanhá-lo
naquelas viagens. Parecia-lhe uma solução para afastá-la do piano. Em uma dessas viagens,
além de Chiquinha, estava o filho João Gualberto.
Ao presenciar o tratamento discriminatório e violento dado aos soldados, que eram na
maioria escravos alforriados, contratados para substituir os “voluntários da pátria”, e
percebendo que ela ali era tão dominada quanto eles, Chiquinha rapidamente revoltou-se. Foi
pensando em amenizar seus sofrimentos que conseguiu um violão a bordo, o que enfureceu o
marido, obcecado por um controle que não conseguia exercer sobre sua personalidade livre e
rebelde. As brigas do casal levam Jacinto a uma posição irredutível. Exige da mulher que faça
uma opção definitiva entre ele e a música. A resposta de Chiquinha foi imediata: “- Pois,
senhor meu marido, eu não entendo a vida sem harmonia.” (DINIZ, 1999, p.33).
Abandona assim o marido e o navio e volta ao Rio de Janeiro, trazendo João
Gualberto. Conforme ela já esperava, a família não oferece nenhum apoio a sua decisão,
pressionando-a para que faça o que se esperava de todas as esposas: retornar ao marido e
devotar-lhe obediência irrestrita. Apesar disso, Chiquinha mantém sua decisão por algum
tempo, até que a descoberta de uma nova gravidez a obriga a uma reconciliação com o
marido, que como era de se esperar, foi temporária. Quando seu terceiro filho, Hilário, conta
apenas oito meses de idade, ela se separa de vez de Jacinto, levando consigo apenas João
Gualberto. A partir daquele momento, a casa de José Basileu fechou definitivamente as suas
portas. Para a famıĺ ia, ela foi declarada morta e seu nome impronunciável. Seus filhos lhe
estavam proibidos. A partir deste momento, sua vida toma um rumo inesperado, com as
21

dificuldades de toda ordem que aguardavam uma mulher nas suas condições. Por outro lado,
abre-se um novo caminho, no qual ela poderia realizar seus sonhos e conquistar o espaço na
música que tanto adorava.
Apadrinhada pelo flautista Callado, considerado um dos criadores do “choro” e
nacionalizador da música popular, Chiquinha foi imediatamente adotada pelo ambiente
musical boêmio. Devido à fama de galanteador que o flautista cultivava e a duas composições
dedicadas a ela, Querida por todos e A sedutora, a natureza do interesse de Callado sempre
foi motivo de especulações. De qualquer forma, tudo indica que estes sentimentos, se
existiram, não foram correspondidos. Chiquinha apaixona-se pelo engenheiro João Batista de
Carvalho Jr., amigo da família Gonzaga e freqüentador da casa dos Amaral, o que levanta em
todos a suspeita de que a ligação era antiga. Passam a viver juntos, despertando a censura e a
discriminação da sociedade conservadora da corte carioca, onde eram bastante conhecidos. O
gosto de João Batista pela vida boêmia e pelas mulheres também provoca ciúmes em
Chiquinha, fatores que tornavam a vida do casal na corte cada vez mais complicada. Até que
um contrato de trabalho para o engenheiro leva o casal, acompanhado de João Gualberto, a ir
morar no interior de Minas Gerais. Um anos depois, nasce a filha Alice. A personalidade do
marido e os ciúmes de Chiquinha, entretanto, chegam a uma crise séria, quando ela o
surpreende dançando em casa com uma mulher estranha, ao som de castanholas. Ela decide
abandoná-lo e à filha recém-nascida, voltando ao Rio de Janeiro com João Gualberto.
Todos estes acontecimentos criaram em torno de Chiquinha uma reputação
significativamente escandalosa para os padrões da época. Abandonar um casamento, dedicar-
se a uma união não aceita socialmente, freqüentar o meio musical boêmio e atuar
profissionalmente na música era tudo o que não se esperava de uma mulher respeitável,
especialmente ao levar em consideração sua origem mestiça, também digerida com
dificuldades pela sociedade da corte. O desenvolvimento da cidade favorecia ainda a presença
de atrizes e cantoras estrangeiras, com frequência também adeptas da prostituição, o que
gerava um acirramento dos padrões de conduta feminina.
De volta ao Rio de Janeiro e com a responsabilidade de manter a si mesma e ao filho
João Gualberto, Chiquinha inicia suas atividades como compositora de polcas, “pianeira de
choros” (DINIZ, p. 51) e professora de piano. O choro desenvolvia-se francamente como uma
nova forma de tocar gêneros musicais europeus, como a polca, a valsa, o schottisch, o tango, a
habanera, etc. O flautista e maestro Callado, padrinho musical de Chiquinha, destacava-se na
nova tendência, com seu conjunto Choro Carioca. Quando começam a ser requisitados para
tocar em casas com piano, Chiquinha junta-se ao grupo. Com este trabalho, torna-se o
22

primeiro profissional de piano ligado ao choro. Paralelamente, continua dando aulas de piano
e compondo, e suas músicas tornam-se sucessos rapidamente. Em apenas um ano, sua polca
Atraente já chegava à 15ª edição. O nome de Chiquinha Gonzaga tornava-se conhecido e
comentado em toda a cidade. Na mesma proporção do sucesso, entretanto, crescia a
maledicência dirigida a ela, afinal, seria impensável que uma mulher desafiasse todos os
padrões sociais de seu tempo impunemente.
Seu nome era cantarolado ou recitado em quadrinhas maliciosas pelas ruas, a
sociedade e mesmo a própria família condenavam seu comportamento, considerado
impróprio, mas suas composições caíam facilmente no gosto popular. Em 1879, ela deixa a
editora Viúva Canongia, onde publicara suas primeiras peças, e migra para a editora de Arthur
Napoleão, pianista conceituado. Com ele, continua seu aprimoramento musical e vê sua
popularidade aumentar cada vez mais.
Enquanto isso, sua filha Maria havia sido criada pelos avós maternos, que inclusive a
batizaram, sem nunca ter tido contato com Chiquinha, nem mesmo saber que ela era sua mãe.
Chegou a ser matriculada em um internato, sob ordens expressas de que não recebesse visitas,
para evitar qualquer tentativa de aproximação. Ao concluir sua educação básica, volta a morar
com os avós, que acreditava serem seus pais. Por um acaso do destino, encontram-se em uma
viagem de trem e Chiquinha se apresenta a Maria. Mais tarde, em casa, a verdade finalmente
lhe é contada pelos avós. Além das conseqüências emocionais da revelação, Maria vê aos
poucos seu noivado esfriar, até o rompimento final por parte do pai do noivo, sob o
argumento de que ela era filha de Chiquinha Gonzaga, nome impronunciável nas famílias de
respeito da corte. Algum tempo depois, Maria acaba se casando com Gustavo Mancebo, que
não demonstrava preconceito sobre sua filiação. Tiveram três filhas, e Maria não retornaria a
encontrar Chiquinha até ficar viúva, anos mais tarde.
Na década de 1880, Chiquinha trabalhava arduamente como professora de piano e
outras disciplinas para garantir seu sustento e do filho João Gualberto, enquanto começava a
ganhar popularidade com suas composições. Percebe no teatro musicado emergente um
campo de trabalho a ser explorado, e após algumas tentativas infrutíferas, chama a atenção da
crítica especializada com a trilha da peça A corte na roça.
A partir desse momento, sua vida começa a mudar significativamente. Participa de
sucessivas produções, conquistando o respeito e a admiração do público e da crítica, até seu
nome se tornar quase sinônimo de sucesso na ficha técnica de um espetáculo. Maiores
detalhes sobre este e outros aspectos de sua trajetória artística serão abordados no próximo
capítulo.
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Ao mesmo tempo, Chiquinha se engaja cada vez mais em causas políticas,


participando com afinco dos movimentos abolicionista e republicano, além de outras
reivindicações populares que caracterizaram a década de 1880 e que mobilizavam grande
parte da classe artística. Após pouco tempo da vigência da República, entretanto, já surgiam
os sinais de desencanto com o novo regime. Chiquinha escreve uma cançoneta, Aperte o
botão, censurada pelo governo florianista e que lhe rendeu a apreensão de toda a edição das
partituras, além de uma ordem de prisão. Conseguiu safar-se devido ao parentesco com
pessoas ilustres, mas não restaram registros da música para a posteridade. Seu ativismo ainda
se manifestaria anos mais tarde, na luta pelo reconhecimento dos direitos autorais dos artistas,
tendo ela sido uma das fundadoras e detentora da cadeira número 1 da SBAT (Sociedade
Brasileira de Autores Teatrais). A observação de sua trajetória contestadora de padrões e
valores sociais, particularmente no aspecto do papel e dos direitos da mulher, também pode
facilmente colocá-la entre as precursoras dos movimentos de conscientização feminina no
Brasil.
Com a República, chegou o fim da carreira militar de seu pai, reformado
compulsoriamente no posto de marechal-de-campo. Em 1891, José Basileu adoece
gravemente e Chiquinha ainda tenta visitá-lo, mas o pai se recusa a recebê-la. Mantém até o
fim sua rejeição à filha expulsa da família e morre logo depois sem perdoá-la. Durante o
cortejo fúnebre, Chiquinha permanece à distância, sem que os presentes lhe dirijam um único
olhar. Pouco tempo mais tarde, Chiquinha felizmente consegue se reconciliar com a mãe,
Rosa, que viveria seus últimos anos disposta a aceitar a filha incompreendida.
Aos 42 anos, Chiquinha torna-se avó. Seu filho João Gualberto se casa com uma moça
de apenas 13 anos de idade, Rita de Cássia, a quem chama de Ritoca. Tiveram duas filhas,
Valquíria e Iara, nomes das duas valsas mais famosas de Chiquinha na época.
Lamentavelmente, João abandona a mulher e as filhas pouco tempo depois, para ir viver em
São Paulo com outra mulher, Vitalina.
Durante as duas últimas décadas do século XIX, Chiquinha conquistava cada vez mais
sucesso e reconhecimento, ainda que não totalmente unânime. Ao mesmo tempo, a
maledicência contra ela na sociedade crescia proporcionalmente, suscitando a criação apelidos
como “Chica Polca” e quadrinhas pejorativas distribuídas pela cidade (prática comum na
época, que abrangia vários assuntos e personagens da vida pública, normalmente de forma
pouco abonadora). O ativismo político ainda acrescentava novos aspectos à sua imagem
pública, alguns favoráveis, outros nem tanto.
24

Em 1899, Chiquinha compõe a marcha carnavalesca Ó Abre Alas, em homenagem ao


Cordão Rosa de Ouro, antecipando uma tendência que só se popularizaria 20 anos mais tarde.
Ó Abre Alas tornou-se parte do repertório clássico do carnaval até hoje, e provavelmente é a
composição mais conhecida da maestrina. As circunstâncias desse episódio também serão
detalhadas no próximo capítulo.
A virada do século XX foi um momento de redescoberta do amor. Chiquinha, então
com 52 anos, evolve-se com um rapaz de apenas 16, coincidentemente chamado João Batista
e carinhosamente chamado de Joãozinho. Viaja com ele para Portugal, onde passam alguns
meses, e voltam ao Rio de Janeiro se apresentando como mãe e filho, alternativa encontrada
para evitar mais um escândalo no currículo da maestrina. Naturalmente, como tudo que dizia
respeito a sua vida pessoal, isso era motivo de comentários e especulações. Passam a viver
juntos e felizes, mascarando a situação com a falsa maternidade, e esta relação duradoura só
se encerra com a morte dela, em 1935. João Batista se tornaria então o fiel guardião do
extenso acervo da maestrina, até sua própria morte, em 1961.
Esta seria a primeira de três viagens a Portugal, onde ela conquista espaço e
reconhecimento profissional, o que a leva a se estabelecer em Lisboa entre 1906 e 1909.
Quando volta ao Rio de Janeiro, encontra a cidade mais desenvolvida e já remodelada pela
reforma urbanística de Pereira Passos. A Praça Tiradentes era o centro da vida noturna
carioca, e os espetáculos em cartaz frequentemente tinham o nome da maestrina Francisca
Gonzaga apresentado com destaque na fachada dos teatros.
Serão detalhados no próximo capítulo a produção artística realizada em Portugal e
outros momentos importantes de sua carreira, como o enorme sucesso da burleta Forrobodó.
De qualquer modo, nas primeiras décadas do século XX o nome de Chiquinha se consolidava
em âmbito nacional, e sua música produzia reflexos em locais tão distantes quanto o sul e o
nordeste do Brasil.
A criação da SBAT foi resultado da inquietação de muitos anos em relação aos
direitos do autor, que com freqüência eram desrespeitados. Alguns episódios ocorridos com
Chiquinha alimentaram a discussão, como a apropriação indevida de uma canção composta
para a divulgação de um estabelecimento comercial, a publicação não autorizada (e não
remunerada) de composições da maestrina em Berlim e o uso de diversos tangos (maxixes) de
sua autoria em Paris, tanto nos salões como em discos, também sem autorização nem
remuneração. Em território nacional, o desrespeito se estendia às produções teatrais, cujos
empresários utilizavam de expedientes diversos para driblar o pagamento aos autores. Em
1916, é aprovada a Lei 3.071, que dispunha sobre a propriedade literária e artística, iniciando
25

a regulamentação dos direitos autorais. Entretanto, sem a existência de um órgão de classe


que cuidasse dos interesses dos autores, a legislação tornava-se inócua. Chiquinha então reúne
os amigos Raul Pederneiras e Viriato Corrêa, ambos jornalistas e autores teatrais de prestígio,
e convocam pelos jornais uma reunião de autores. No dia 27 de setembro de 1917, é
formalizada a criação da SBAT (Sociedade Brasileira de Autores Teatrais), cuja atuação
abrangia não só os autores dos textos, mas também os compositores, como no caso da
maestrina. Apesar dos protestos iniciais de vários empresários a respeito das justas
reivindicações, em alguns anos a SBAT se consolidou como um órgão eficaz e respeitado.
Até hoje, na sua sede no Centro do Rio de Janeiro, existe um busto em tamanho natural de
Chiquinha, que recebeu a cadeira número 1 da instituição. Até o final da vida, a maestrina
freqüentava diariamente a sede, sempre atuante nas questões relativas aos direitos autorais.
Em 1960, seu companheiro João Batista Lage doaria à SBAT todo o acervo de composições,
matérias de jornal, fotos e documentos pessoais da maestrina, cuidadosamente preservado
durante décadas.
Os últimos anos de Chiquinha Gonzaga foram divididos entre as alegrias
proporcionadas pelo amor e cuidado de Joãozinho, o merecido reconhecimento profissional, a
motivação com as atividades realizadas na SBAT, e as profundas tristezas oriundas da relação
conturbada com a família e o declínio de popularidade, já que o teatro musicado se
modificava rapidamente sob a influência do disco e da estética norte-americana. Dos filhos, só
tinha contato freqüente com João Gualberto, ainda que ele morasse em São Paulo. Hilário se
sentia constrangido diante da mãe ilustre, de quem nunca havia sido próximo, e sobrevivia
como sapateiro instalado no bairro do Méier. O pai, Jacinto, envelheceu junto a ele, após ter
perdido a fortuna por duas vezes, e quando veio a falecer, ironicamente teve seu enterro pago
por Chiquinha. As filhas Maria e Alice casaram-se e enviuvaram cedo, e quando se viram em
dificuldades financeiras, recorreram a Chiquinha, que se recusou a ajudá-las, pois também não
vivia em condições para isso. Ressentidas, deflagram uma campanha contra Joãozinho, a
quem responsabilizavam, em parte, pela atitude da mãe. Todos estes fatos geravam grande
desgosto em Chiquinha, que ainda era assediada por parentes interessados na existência de
uma fortuna de que ela nunca havia desfrutado.
A maestrina viveu seus últimos dias em seu apartamento na Praça Tiradentes, com a
companhia apenas de seu grande amor, Joãozinho, e evitando ao máximo a proximidade de
outras pessoas. Faleceu aos 87 anos, no dia 28 de fevereiro, às vésperas do carnaval de 1935.
26

2.3 - Produção artística

A prática regular da composição representou ao mesmo tempo uma possibilidade e


uma necessidade que surgiram após o fim do casamento de Chiquinha com Jacinto. Livre da
atitude repressora do marido, ela finalmente pôde dedicar-se com afinco à continuidade do
seu aprimoramento e à criação musical. Começou a trabalhar como professora de piano e
compositora de sucesso crescente, editando sem parar principalmente valsas, polcas e tangos.
Suas composições apresentavam ora elementos alegres e dançantes, ora românticos e
sentimentais, mas sempre com o caráter nacional que marcaria sua obra. Para isso, foi
fundamental a influência de seu padrinho musical, o maestro Callado, que era um adepto de
primeira hora da busca pela brasilidade na música e apresentou Chiquinha ao meio musical
boêmio carioca. Nesse ambiente, surgiam novas formas musicais como o choro, conforme
esclarece Edinha Diniz:

Se esse processo ocorria com os inúmeros gêneros musicais importados, a polca, no


entanto, oferecia mais possibilidade. Ela permitia um entrelaçamento com o popular
lundu local pela similaridade de compasso e andamento. Musicalmente a fusaõ gera
a polca-de-serenata que no seu processo evolutivo dá origem ao “choro”.
Coreograficamente a hı́brida polca-lundu permite a criaçaõ do maxixe. Do ponto de
vista da dança, a aproximação foi facilitada pelo fato da polca reforçar o
enlaçamento do par e apresentar-se como dança européia e consentida, o que era
negado ao espúrio lundu com sua pouco inocente umbigada. O importante é que
ambas continham um erotismo implı́cito capaz de provocar um entusiasmo inédito.
De qualquer forma queremos chamar a atençao ̃ para a sutileza dos primeiros
compositores populares promotores dessa fusao ̃ , pois ao rubricarem gêneros hı́bridos
camuflavam os de origem mais popular. Isso significava talvez a única saıd́ a
possı́vel numa sociedade altamente colonizada porquanto naõ representava uma
consagração direta do que era da cultura negra (escrava, no caso), e assim não
ameaçava as normas da cultura dominante nem a contestava. A história da música
popular brasileira registra o nome de um pioneiro nesse processo de sintetização:
Joaquim Antonio da Silva Callado Junior (1848-1880). (DINIZ, 1999, p.50)

Ainda segundo Diniz, a primeira referência ao termo choro surge no nome do conjunto
do maestro Callado, o Choro Carioca, composto por um instrumento solista (a flauta do
maestro), dois violões e um cavaquinho, os quais deveriam ser músicos improvisadores. A
autora detalha:

Dessa “improvisação” nasceu o choro. Esse caráter improvisatório, aliás, se refletiria


na execução: uma forma “chorosa” de tocar polca, valsa, schottisch, tango,
habanera, etc. Mais tarde, bem mais tarde, o termo choro se transfere da maneira de
tocar para um gênero musical próprio. Por enquanto, na década de 1870, o chorão
(integrante desses conjuntos) lançava mao ̃ da música importada e nela introduzia
sıń copes e “descaıd
́ as”. (DINIZ, 1999, p.50)
27

Com o aumento da procura por este tipo de conjunto, contratado para tocar em festas,
e frequentemente em casas que tinham piano, Chiquinha é convidada a integrar o Choro
Carioca, tornando-se a primeira “pianeira” e a primeira chorona. Em 1877, publica sua
primeira composição de sucesso, a polca Atraente, no mês de fevereiro. Em novembro, a
partitura já está em sua 15ª edição. Nesse mesmo ano, ainda lança as valsas Desalento e
Harmonias do coração, a polca Não insistas, rapariga e o tango Sedutor, sempre com
sucesso.
Callado morre prematuramente aos 32 anos, em 1880, deixando em Chiquinha uma
continuadora da trajetória de nacionalização da música popular que ele abraçara e com a qual
ela sempre se identificou. A busca por uma expressão musical brasileira, que se distinguisse
da matriz européia sem negá-la, mas incorporando também influências das culturas africana e
indígena, resultaria numa música que agradou o gosto do povo e foi aos poucos consolidando
os rumos da música popular brasileira. Nesse processo, o teatro teve enorme importância.
Com a modernização da sociedade carioca, emergem camadas de público ávidas pelo
consumo de novos produtos culturais, e o teatro musicado rapidamente conquistou sua
preferência. A influência europeia em todos os âmbitos era ainda bastante presente, e as
companhias francesas em particular traziam ao Rio de Janeiro as novidades do teatro ligeiro
musicado parisiense, sob a forma de operetas, burletas, mágicas e revistas, entre outras
denominações. À medida em que chegavam aqui, iam-se aos poucos abrasileirando, a
exemplo da música popular, através de traduções, adaptações e paródias. Na segunda metade
da década de 1880, consolida-se o gênero do teatro de revista, que consistia na passagem em
“revista”, como o nome sugere, dos acontecimentos do ano. Os fatos são levemente
alinhavados por um enredo de comédia, e a música é um elemento fundamental e de
sustentação desse tipo de espetáculo, sempre de forma alegre, brejeira e jocosa. Acerca desse
período, o crítico de teatro Macksen Luiz discorre sobre a consolidação do dramaturgo Artur
Azevedo como grande revisteiro carioca:

E Artur Azevedo foi decisivo na gênese e na aclimatação do gênero, que sobreviveu


até à década de 60 do século passado. As revistas de ano, a primeira delas em 1877, à
qual se seguiram outras 19, Azevedo registrava, criticamente, os acontecimentos dos
últimos 12 meses, de forma satírica e critica e estabelecia as bases do que viria a ser o
formato explorado pelos quase 100 anos seguintes. Nesta série de revistas, com títulos
saborosos (Rio de Janeiro de 1877, Ataca Felipe, Cocota, O Bilontra, O Carioca, O
Tribofe). [...] A música, decisiva e integrante indissociável do espetáculo, trazia letras
mordazes e composições originais, iniciando a construção do repertório do seria
28

conhecido como a moderna música popular brasileira. A revista foi o primeiro meio
para sua difusão e popularização. (LUIZ, 2011).

Assim, com frequência, a música ouvida nos teatros ganhava as ruas sob a forma de
assobios, e o inverso também ocorria, com a incorporação de músicas populares já conhecidas
ao enredo de peças teatrais. Essas características tornam o teatro um elemento importante de
divulgação da música popular. Esta situação não passou despercebida por Chiquinha, que
ainda lutava com dificuldade pelo seu sustento e viu no teatro um território profissional
promissor, apesar de todas as dificuldades.
Sua tentativa inicial se dá com a criação do libreto e a composição musical da peça
Festa de São João, estudando orquestração e arranjo para outros instrumentos de forma
autodidata, através de manuais elementares encontrados no mercado. Apesar de seus esforços,
a peça não é produzida e permanece inédita. Três anos depois, envolve-se na composição de
uma peça de Artur Azevedo, Viagem ao Parnaso, chega a escrever quase toda a parte de
piano e canto, mas finalmente é rejeitada pelo empresário, sob o argumento de que uma
mulher não era confiável para a tarefa. Em 1885, finalmente ela consegue estrear como
compositora e maestrina (termo que gerava estranhamento, pela absoluta raridade da
referência à atividade do maestro no feminino), com a peça A corte na roça, um enredo sobre
costumes no interior do país, com libreto do iniciante Palhares Ribeiro.
A produção teve vários contratempos, com a ausência do empresário, os atrasos nos
salários dos membros da companhia, a dificuldade de Chiquinha fazer-se respeitada nos
ensaios e até mesmo a censura policial a alguns trechos das letras considerados impróprios.
Ao estrear, apesar do pouco público, a peça foi aplaudida e o número final dançado teve
pedidos de bis, o que não aconteceu por intervenção policial, obrigando a companhia a baixar
o pano. Esta dança censurada era o maxixe. A imprensa criticou o libretista e os atores, mas a
música de Chiquinha foi unanimemente aclamada pela graça, elegância, originalidade, caráter
nacional, e com ênfase ao ineditismo de uma composição produzida por uma mulher. Esta
receptividade foi um divisor de águas em sua trajetória profissional, e em pouco tempo sua
assinatura num libreto se tornaria sinônimo de sucesso e casas cheias. Na primeira biografia
sobre Gonzaga, a autora Mariza Lira nos informa sobre os grandes êxitos da maestrina
relacionados ao teatro:

Ao teatro legou quase um cento de partituras, com libretos assinados por nomes
brilhantes, como Arthur Azevedo, Valentim Magalhães, Filinto de Almeida, Furtado
Coelho, Batista Coelho (João Foca), Osório Duque Estrada, Paulo Silva Araújo,
29

Avelino de Andrade, Viriato Corrêa, Raul Pederneiras, Mário Monteiro, Renato


Viana, Calixto Cordeiro, Iveta Ribeiro e muitos outros. (LIRA, 1978, p. 81)

No mesmo ano, a estréia de A filha do Guedes repete fatos da produção anterior, com a
censura da polícia, as críticas à produção e ao elenco e os rasgados elogios à música de
Chiquinha, incluindo uma canção que conquistaria grande popularidade, Menina faceira. A
partir desse momento a vida de Chiquinha se encaminharia para um sucesso estável e um
progressivo reconhecimento pelo seu trabalho. O maxixe era elemento frequente em sua obra,
ainda que sem esta denominação, associada ao modo sensual de se dançar. De qualquer
forma, Chiquinha é considerada a maior maxixeira de seu tempo. De acordo com Edinha
Diniz:

No maxixe ninguém lhe levava vantagem. A dança nacional merecia da compositora


uma atenção toda especial, não estivesse ela empenhada permanentemente em
abrasileirar o que encontrasse pela frente. E esse era o caso do tango e do maxixe.
Antes de mais nada é preciso que se distinga o gênero musical tango do seu
correspondente coreográfico, o maxixe. Embora hoje em dia o vocábulo refira-se à
música popular dos argentinos, o tango foi no Brasil um dos gêneros musicais que
mais se prestou à nacionalização da nossa música popular. Originário da Espanha -
precisamente da Andaluzia - chegou nas Américas na década de 1860. Na Argentina
sofreu fusão com a habanera cubana e a milonga local, nacionalizando-se cedo, e nas
primeiras décadas deste século lançava-se internacionalmente como tango argentino.
No Brasil, onde teria chegado na mesma época, ele fundiu-se também com a
habanera cubana e mais a polca e o lundu. Na década de 1870 já começava a exibir
evidentes sinais de nacionalidade brasileira. (DINIZ, 1999, p.83)

Devido ao caráter sensual e até mesmo erótico que caracterizava o maxixe, os números
eram frequentemente chamados de polcas, tanguinhos, tangos brasileiros, lundus ou algum
outro rótulo que não se mostrasse tão polêmico. José Ramos Tinhorão também faz referência
a este ponto:

...da maneira livre de dançar os gêneros de música em voga na época –


principalmente a polca, a schottisch e a mazurca – o maxixe resultou do esforço dos
músicos de choro em adaptar o ritmo das músicas à tendência aos volteios e
requebros de corpo com que mestiços, negros e brancos do povo teimavam em
complicar os passos das danças de salão. (TINHORÃO, 1974, p. 53)

Mário de Andrade confirma a importância de Chiquinha no surgimento do maxixe e


no processo de abrasileiramento da música popular:

As manifestações popularescas que tiveram maior e mais geral desenvolvimento


são, desde o século passado, as modinhas, os maxixes e sambas urbanos que andam
profusamente impressos. (...) Menção especial deve ser feita a Francisca Gonzaga,
tipo curioso de compositora cujas dansas e cantigas, muitas dotadas de caráter
30

brasileiro forte, mereciam maior atenção e respeito aqui. A atividade musical dela é
tipicamente oitocentista. (ANDRADE, 2015, p. 168)

Simultaneamente, no âmbito político, Chiquinha assumia cada vez mais uma postura
ativista, aderindo ao movimento abolicionista e posteriormente ao republicano. Participava
com entusiasmo e trabalho, o que talvez representasse, além do apreço pelas causas
humanistas, uma forma de denunciar o atraso da sociedade que a condenava. Um terceiro
fator a ser considerado era a popularidade que este tipo de envolvimento agregava aos artistas,
e que definitivamente a favoreceu. Além disso, o próprio envolvimento com o teatro
musicado, de caráter eminentemente crítico, colocava-a permanentemente em contato com
temas e indivíduos questionadores da ordem social estabelecida, em todos seus aspectos.
Nas duas últimas décadas do século XIX, a maestrina firmava-se como um grande
nome, sempre empenhada no processo de abrasileiramento da música popular e do teatro
musicado. Tornara-se compositora de grande parte das músicas de sucesso de sua época. Em
1889, conhece o maestro Carlos Gomes, então em visita ao Brasil. Participa de uma
homenagem a ele, realizada no teatro São Pedro de Alcântara, em que ela atua como regente
de suas próprias composições e inclui um número apresentado por violões, violas e pandeiros,
executados por amadores, o que era uma atitude transgressora. Como mais uma homenagem,
ela toca ao piano e rege a valsa Carlos Gomes, conquistando a atenção e o apoio do grande
compositor. A respeito desse acontecimento e de sua relação com o grande maestro, Donato
diz que:

Compôs óperas e introduziu o maxixe, um jeito brasileiro de dançar o tango, a polca


e o lundu, no gosto nacional. Transitou pela imprensa e estabeleceu amizades com
jornalistas. Não obstante, retirou da marginalização os violões, as violas e os
pandeiros, levando-os para o teatro, numa homenagem prestada a Carlos Gomes, no
arranjo da música caramuru. (DONATO, 2008, p. 5)

O carnaval já se consolidara como importante festa popular no Brasil e


particularmente no Rio de Janeiro. A percussão havia sido introduzida pelos cordões em 1852,
acompanhando gritos de “Zé-Pereira”, criando um dos elementos mais típicos da festa. Mas a
música era elemento raro, praticamente inexistente. A partir de 1869, por influência da
companhia teatral do empresário Heller, que apresenta uma opereta cômica com tema
carnavalesco, aos poucos a música vai sendo incorporada às manifestações populares de rua,
ainda que de forma tímida. Nos bailes realizados nos salões, a música tradicional já era
elemento corriqueiro. No início de 1899, morando no Andaraí, de onde saía o Cordão Rosa de
Ouro, Chiquinha compõe uma música em homenagem ao cordão, atitude aparentemente
31

banal, mas que não tinha ocorrido a outros compositores. Era Ó Abre Alas, criado como
marcha-rancho e considerada a primeira canção carnavalesca brasileira. Foi imediatamente
adotada pelo cordão e durante anos cantada apenas por seus integrantes. Em 1904, a canção é
incluída na peça Não Venhas, de temática carnavalesca, e cujas apresentações eram seguidas
de bailes. A canção foi ganhando popularidade e longevidade. Ao longo de mais de um
século, passou a fazer parte da identidade do próprio carnaval, e ainda é para muitos a
principal referência musical da produção de Chiquinha Gonzaga. Sobre esta época, Edinha
Diniz esclarece:

Era o carnaval começando a despontar como tema nos palcos dos teatros, filão
̃ . Para se ter uma idéia dos gêneros musicais utilizados
depois explorado à exaustao
numa peça desse tipo, nitidamente popular, enumeramos os encontrados nos
manuscritos da maestrina: choro, dueto recitativo, lundu, dobrado carnavalesco (Ó
Abre Alas, também apresentado como maxixe de cordão e conhecido como marcha),
modinha, chula, marcha, hino maxixe, valsa, fado português, giga espanhola e
samba. (DINIZ, 1999, p.83)

Após duas visitas breves a Portugal em 1902 e 1904, a maestrina parte em 1906 para
uma estadia de três anos em Lisboa, onde suas partituras já eram editadas e conhecidas. A
princípio, manteve-se afastada do meio artístico, mas após algum tempo começou a participar
da vida cultural, tocando e compondo. Chega a compor a trilha das revistas A Batota e Cá e
lá, além das óperas cômicas As três graças e A bota do diabo, que foi seu maior sucesso em
Portugal. Apesar das eventuais críticas às peças, a música de Chiquinha sempre agradou o
público e a crítica, consolidando a popularidade que suas composições já haviam conquistado
por lá.
De volta ao Rio de Janeiro, encontra uma cidade mudada não só pela reforma
urbanística promovida pelo prefeito Pereira Passos, mas também pela presença crescente do
cinematógrafo e sua concorrência com o teatro, que por sua vez já reduzia a duração dos
espetáculos para se adaptar aos novos hábitos do público. Pouco tempo após sua chegada, já
estreava o vaudeville Casei com titia, a opereta de costumes Manobras de amor (com libreto
de Osório duque Estrada, autor do Hino Nacional), a opereta Colégio de senhoritas, e ainda
gravaria diversas participações em disco com o Grupo Chiquinha Gonzaga, acompanhada por
uma formação típica do choro: violão, cavaquinho e flauta. Em 1912, estreia a burleta
Forrobodó, que viria a se tornar seu maior sucesso teatral, contabilizando mais de 1.500
apresentações. O tango (maxixe) Não se impressione e a modinha Lua branca ganharam
popularidade nas ruas, bem como expressões e gírias usadas na peça, que trazia linguagem
32

inovadora, ao retratar de modo caricatural uma festa dançante em uma casa de classe baixa no
bairro da Cidade Nova. Sobre Forrobodó, a autora Neyde Veneziano informa que:

(...) esta peça que foi musicada por Chiquinha Gonzaga, representou um marco para
o teatro nacional, pois, a partir dela, a linguagem popular brasileira entrou em cena.
As gírias, o carioquês, os nossos sotaques, passaram imediatamente às revistas, que
até então, mantinham-se fiéis à prosódia lusitana. (VENEZIANO, 1991, P. 40)

No mesmo ano, a maestrina ainda faz a trilha da revista Pomadas e farofas e da


burleta de costumes Pudesse esta paixão. No ano seguinte, o sucesso de Forrobodó ensejaria
uma continuação, a burleta Depois do forrobodó.
Em 1914, ocorre um episódio que acrescenta mais uma polêmica à história da
maestrina, quando a Primeira Dama da República, D. Nair de Teffé, durante a última festa do
governo do marechal Hermes da Fonseca, realizada no Palácio do Catete, toca ao violão o
Corta-jaca/Gaúcho, composto por Chiquinha. A música, um tango criado para a peça Zizinha
Maxixe em 1895, havia sido editada como partitura para canto e piano em 1899, e era
regularmente executada por grupos instrumentais de choro. A partir de um comentário sobre a
ausência de música brasileira nas festas palacianas, D. Nair faz a escolha duplamente ousada
de tocar ao violão, instrumento ainda alvo de bastante preconceito, um tango (maxixe)
considerado popularesco e indigno de figurar em ambientes ou comemorações respeitáveis.
Tal atitude suscitou críticas e maledicências ferozes por parte da população e da imprensa,
que aproveitava o episódio para externar sua insatisfação com o governo que findava e com a
figura da primeira dama, a qual não por acaso se tornaria amiga de Chiquinha. D. Nair, que
havia sido educada na Europa, também era uma mulher à frente do seu tempo, tendo atuado
como pianista, atriz, cantora e pintora, até se consagrar como a primeira cartunista brasileira,
com trabalho conhecido e respeitado. Coincidentemente, estudou piano com o mesmo maestro
Arthur Napoleão que foi professor e editor da maestrina. E assim como Chiquinha, era alvo de
todos os ataques dirigidos às mulheres que não se enquadravam no estereótipo social de
esposa e mãe. Naturalmente, todos estes fatores contribuíram para as reações que o episódio
provocou. E tanto o fato em si quanto a polêmica gerada ajudaram a popularizar o Corta-jaca,
que mantém o seu vigor até os dias de hoje.
Nos anos seguintes, já respeitada em âmbito nacional e internacional, Chiquinha
marcaria presença no teatro de costumes regionais, que conquistava sucesso crescente, com as
peças A sertaneja, Jandira e Juriti, o seu maior sucesso do gênero. Segundo Diniz, sua
33

música era considerada uma síntese da alma brasileira de norte a sul, apesar das diferenças
regionais:

Dos gêneros de salão, alguns se prestaram à fusão musical e ficaram no âmbito


urbano, já modificados (polca, tango, habanera, etc.) enquanto outros passaram para
o domı́nio rural, caipirizando-se. Este foi o caso por exemplo da schotzisch
(escocesa) que aclimatou-se ao nordeste onde virou xote, e da quadrilha, a antiga
dança palaciana. (DINIZ, 1999, p. 61)

Sua última trilha foi composta aos 86 anos, em 1933, para a peça Maria, em cujo
elenco figuravam, entre outros, Vicente Celestino e Brandão Filho. Quando faleceu, dois anos
depois, deixava um legado de 77 trilhas para teatro e mais de 2.000 composições, sempre com
a assinatura de brasilidade que consolidou seu nome com destaque na história da música
popular e do teatro musicado brasileiros.
34

3 - PESQUISA MUSICAL

Desde o início deste projeto, a pesquisa musical realizada a partir do acervo de


Chiquinha Gonzaga mostrou-se como o foco principal do trabalho. A associação entre a
relativa raridade de registros fonográficos e a disponibilização de um grande número de
partituras na internet se apresentou como um desafio e uma oportunidade de mergulhar no
universo musical da compositora, a partir do caminho aberto por outros pesquisadores,
principalmente a biógrafa Edinha Diniz e os pianistas e pesquisadores Wandrei Braga e
Alexandre Dias. A primeira foi responsável pela redescoberta do acervo, preservado em
condições inadequadas na SBAT durante anos. Uma quantidade impressionante de partituras
manuscritas e editadas, textos de peças teatrais, artigos, fotos e outros documentos haviam
sido doados à SBAT pelo último companheiro de Chiquinha, João Fernandes Lage, pouco
antes de sua morte, em 1961, após décadas de preservação cuidadosa de todo o material,
desde o falecimento da maestrina, em 1935. Nesse período, o acesso a este acervo foi bastante
restrito e o próprio conhecimento de sua existência era privilégio de muito poucos.
Com a publicação da biografia Chiquinha Gonzaga – Uma história de vida, em 1985,
Edinha Diniz trouxe à tona uma infinidade de dados biográficos e também de partituras há
muito esquecidos. Isso desencadeou um novo interesse na vida e na obra da maestrina, por
revelar a importância do seu papel, não só no desenvolvimento da música brasileira, como
também na participação de movimentos políticos e sociais de relevância histórica
inquestionável.
No aspecto do registro de sua obra musical, a redescoberta do acervo suscitou o
trabalho dos pesquisadores Wandrei Braga e Alexandre Dias, que se empenharam na tarefa de
revisar e digitalizar todas as partituras manuscritas, disponibilizadas no portal
<chiquinhagonzaga.com>, criado em 1999 e que também registra uma ampla gama de
informações, discografia, artigos e notícias, sempre atribuindo os devidos créditos a Edinha
Diniz. Em 2005, o Instituto Moreira Salles se tornou o mantenedor do acervo e disponibilizou
também as imagens dos documentos originais na internet. (https://ims.com.br/titular-
colecao/chiquinha-gonzaga)
Na capa de cada partitura digitalizada, Wandrei e Alexandre incluem o resultado das
suas pesquisas sobre gravações realizadas daquela peça especificamente, facilitando muito o
trabalho de selecionar as composições inéditas ou sem registros fonográficos disponíveis. A
partir destas informações, foi iniciado o estudo das peças que se enquadravam neste
parâmetro, constituindo o objeto do presente trabalho. Além destas peças já revisadas e
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digitalizadas, também foram estudadas imagens de manuscritos originais, disponíveis no


portal do Acervo Chiquinha Gonzaga do IMS.
O segundo critério utilizado na seleção foi a presença do canto, sem distinção, num
primeiro momento, entre números cantados em grupo ou individuais, masculinos ou
femininos. A continuação do processo de escolha levou à predominância de composições para
vozes individuais masculinas, e o repertório final inclui apenas dois duetos
(masculino/feminino) e uma peça originalmente feminina.
O próximo critério foi musical, com a seleção de gêneros ao mesmo tempo variados e
representativos da obra de Chiquinha. Nesse aspecto, o maxixe e suas diferentes formas
predominam na seleção final, que conta ainda com duas valsas, uma chula, um fado e uma
modinha. Também houve a observação dos temas das letras, mas este elemento acabou tendo
menos peso que o anterior.

3.1 – Seleção de repertório

Segue abaixo a seleção final de canções, com as informações apresentadas no portal


<chiquinhagonzaga.com> sobre origem e edições.

Amor - Publicada pela primeira vez, Acervo Digital Chiquinha Gonzaga, 2011.

Anselmo – Da peça de costumes Amores de um taberneiro - Não publicado, retirado do


manuscrito original.

Cala (Taci) - Publicado pela primeira vez, Acervo Digital Chiquinha Gonzaga, 2011. A
composição seria de 1900, pois em 23 de março deste ano Chiquinha vendeu esta romanza ao
editor Manoel Antônio Guimarães. A autoria dos versos é desconhecida, tendo a maestrina
cometido um erro no título em um dos seus manuscritos, grafado, erradamente, como ‘Tachi’.
O título significa ‘cala-te’; Taci é a segunda pessoa do singular do presente do verbo italiano
tacere, que significa ‘silenciar-se’.

Cançoneta cômica – Da cena cômica Há alguma novidade? – Composta para a festa de


benefício do ator Peixoto, a quem a música é dedicada. Publicada pela primeira vez, Acervo
36

Digital Chiquinha Gonzaga, 2011. Trata-se da composição original, preservada manuscrita,


que recebeu publicação apenas para piano pela casa editora Buschmann e Guimarães.

Dueto Maestro e Rita - Da burleta Depois do forrobodó. Letra: Carlos Bettencourt (1890-
1941).

Dueto Mário e Beatriz - Publicada pela primeira vez, Acervo Digital Chiquinha Gonzaga,
2011. Em 1921 Chiquinha escreveu a partitura para a peça, símbolo em 2 atos, Romeu e
Julieta, com libreto do escritor teatral Renato Vianna (1894-1953). A peça permaneceu
inédita, por razões ignoradas, embora a maestrina tenha escrito 28 músicas para piano, canto e
orquestra. Este dueto tem data anotada em manuscrito: 1924.

Eusébio – Da peça de costumes Amores de um taberneiro. Não publicado, retirado do


manuscrito original.

Fado das Tricanas de Coimbra - Publicado pela Casa Mozart como “Arranjo por Francisca
Gonzaga”, com versos populares, sugerindo origem no folclore de Portugal. Também
conhecido como As tricanas de Coimbra. Lino Barbosa, a quem a maestrina dedica a música,
é o proprietário da editora Casa Mozart, estabelecido desde 1905 na Avenida Central, no Rio
de Janeiro, editor também de Ernesto Nazareth, Paulino Sacramento, Anacleto de Medeiros e
outros. Este fado foi gravado por Risoleta (voz) com orquestra, em disco Columbia, c. 1911
(gravação não disponível).

Meu Deus que maxixe gostoso - Publicado pela primeira vez, Acervo Digital Chiquinha
Gonzaga, 2011. Composição de 1911, integrante da revista em 3 atos e 2 apoteoses Pomadas
e farofas, escrita por Frederico Cardoso de Menezes e representada no Teatro São José em
agosto de 1912. A própria autora pretendeu publicar este tango na série Canções Brasileiras e
chegou a anunciá-lo como a última da primeira série, mas permaneceu inédito.

Modinha - Da burleta Depois do forrobodó. Letra: Carlos Bettencourt (1890-1941)

Rondolini-Rondolinão - Publicada por Manoel Antônio Guimarães, c. 1886. O artista


Machado da dedicatória provavelmente é o ator Machado (José Machado Pinheiro e Costa),
conhecido também como Machado Careca. Trata-se do “autor anônimo” da opereta burlesca
37

de costumes nacionais Zizinha Maxixe, que ele teria imitado do francês, representada no
Teatro Éden Lavradio em agosto de 1895, para a qual Chiquinha Gonzaga escreveu a trilha
que inclui o tango O gaúcho, música que se popularizou com o nome de Corta-jaca.

Teus olhares - Publicada pela primeira vez, Acervo Digital Chiquinha Gonzaga, 2011. A
canção parece ter sido composta para a burleta em 3 atos Depois do Forrobodó, de Carlos
Bettencourt (1890-1941), representada no Teatro São José em 1913, como modinha de
Escandanhas. No ano seguinte ganhou versos de Avelino de Andrade (1866-1937), mas
permaneceu inédita.
38

Figura 1 – Imagem do manuscrito original de “Meu Deus, que maxixe gostoso”.


(Fonte: Portal do Instituto Moreira Salles – Coleção Chiquinha Gonzaga)
39

Figura 2 – Partitura digitalizada de “Meu Deus, que maxixe gostoso”.


(Fonte: <chiquinhagonzaga.com>)
40

Figura 3 – Partitura publicada de “Fado das Tricanas de Coimbra”.


(Fonte: Portal do Instituto Moreira Salles – Coleção Chiquinha Gonzaga)
41

5 -Seleção de repertório

Figura 4 – Partitura digitalizada de “Fado das Tricanas de Coimbra”.


(Fonte: <chiquinhagonzaga.com>)
42

4 - ELABORAÇÃO DE ARRANJOS

Todas as composições selecionadas estão originalmente na formação de piano e voz.


Os arranjos incorporaram outros instrumentos: flauta, clarineta, violino, violoncelo, baixo,
bateria e percussão, em formações variadas. Foram modificadas tonalidades, estrutura
harmônica e rítmica e criadas novas introduções e intervenções melódicas. A performance
vocal é inspirada nas variações estéticas da música popular e do teatro musicado, buscando
estabelecer a atmosfera adequada a cada composição. Cada peça suscitou uma proposta de
arranjo específica, conforme descrito abaixo.

Amor - Partitura original: piano e voz. Arranjo: piano e voz. O ritmo original de valsa (3/4)
foi transformado em balada (4/4), com adaptação da divisão rítmica e métrica. O tom foi
transposto de Lá maior para Sol maior e a peça foi rearmonizada.

Anselmo - Partitura original: piano e voz (manuscrita). Arranjo: piano, clarineta, baixo,
percussão e voz. Foram criados a introdução e os contrapontos da clarineta ao longo da
melodia, bem como o fraseado do baixo. Foi mantido o ritmo original de chula.

Cala (Taci) - Partitura original: piano e voz. Arranjo: piano, violino, violoncelo e voz. A letra
original em italiano foi vertida para o português. Foram compostas a introdução e os
contrapontos de violino e violoncelo ao longo da melodia.

Cançoneta cômica - Partitura original: piano e voz. Arranjo: piano, clarineta, baixo,
percussão e voz. A melodia da introdução passou do piano para a clarineta. Foram compostos
os contrapontos de clarineta ao longo da melodia e o fraseado de baixo. O ritmo original
(maxixe) foi mantido.

Dueto Maestro/Rita - Partitura original: piano, uma voz masculina e uma feminina. Arranjo:
piano, clarineta, vozes masculina e feminina. Foram compostos a introdução, com clarineta e
piano, e os contrapontos de clarineta ao longo da melodia. O ritmo original (maxixe) foi
mantido.
43

Dueto Mario/Beatriz - Partitura original: piano, uma voz masculina e uma feminina.
Arranjo: mesma formação. Foram compostos uma nova introdução e um interlúdio entre as
partes A e B. O tom original foi transposto de Mi bemol maior para Dó maior. A peça foi
rearmonizada e as vozes da última parte foram adaptadas à nova harmonia.

Eusébio - Partitura original: piano e voz (manuscrita). Arranjo: piano, baixo, percussão e voz.
O ritmo original ganhou um acento latino na primeira parte, tornando-se maxixe na segunda.
Foram compostos o fraseado de baixo e a melodia do piano na introdução. O arranjo prevê a
possibilidade de improviso do pianista ao longo de toda a peça, a partir da harmonia cifrada.

Fado das Tricanas de Coimbra - Partitura original: piano e voz. Arranjo: piano, violoncelo e
voz. Foram criados contrapontos do violoncelo na introdução e ao longo da melodia.

Meu Deus, que maxixe gostoso – Partitura original: piano e voz. Arranjo: piano, flauta,
baixo, percussão e voz. Foi composta a introdução de 8 compassos, com melodia conduzida
pela flauta e harmonia pelo piano. Foram criados também contrapontos de flauta ao longo da
melodia e o fraseado do baixo. Na primeira parte o ritmo original de maxixe foi mantido, já na
segunda parte foi mudado para baião.

Modinha - Partitura original: piano e voz. Arranjo: piano, violino, violoncelo e voz. Foram
compostas a introdução e o interlúdio com violino e violoncelo. A estrutura e a tonalidade
originais foram mantidas.

Rondolini-Rondolinão - Partitura original: piano e voz. Arranjo: piano, flauta, baixo,


percussão e voz. A peça, originalmente em Fá maior, foi dividida em três tonalidades
diferentes, Ré bemol maior, Ré maior e Mi bemol maior, entremeadas por duas pontes
modulatórias. A introdução foi inspirada na original, mas ganhou frases em diferentes
tonalidades, contribuindo para o efeito cômico, recurso também utilizado nas partes faladas.
Foi composta a parte da flauta da introdução, das partes faladas e das pontes. O baixo é
apresentado cifrado, com liberdade para o baixista, dentro do ritmo original de maxixe.

Teus Olhares - Partitura original: piano e voz. Arranjo: piano, violino, baixo, bateria e voz. A
valsa original foi transformada em valsa-jazz (jazz waltz), com a forma musical dividida em
três partes. Na primeira parte, o tom original foi transposto uma terça menor abaixo, de Ré
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menor para Si menor. A segunda parte é uma ponte modulatória composta para conduzir à
terceira parte, em Ré menor. Foi composta a parte de violino, com introdução, melodia da
ponte e intervenções ao longo do canto. A parte do baixo é apresentada cifrada, dando
liberdade ao baixista. Apesar de o ritmo de jazz waltz não se configurar como tipicamente
nacional, já foi incorporado pela música brasileira e se apresentou aqui como uma opção
considerada adequada.
45

Figura 5 – Primeira página do arranjo de “Meu Deus que maxixe gostoso”.


(Arranjo do autor)
46

5 - REGISTRO FONOGRÁFICO

O processo de ensaios do repertório foi realizado inicialmente com piano e voz,


durante 3 meses. Nas últimas duas semanas, foram incorporados os outros instrumentos, de
modo a realizar todos os eventuais ajustes necessários antes das gravações.
No primeiro período de 8 horas no estúdio, foram gravados o piano, o baixo e a
bateria, acompanhados por uma voz-guia. No segundo período, foram gravados os sopros e as
cordas. Os vocais definitivos foram gravados posteriormente, numa série de 4 períodos no
estúdio. A mixagem foi realizada em mais dois períodos e a masterização foi encomendada a
outro estúdio, tendo sido finalizada em duas semanas.
Este método de gravação foi o que se apresentou como o mais viável em termos de
custos e de conciliação das agendas de todos os músicos envolvidos. Além disso, também
possibilitou mais tempo para as gravações de voz, como frequentemente se mostra necessário.
A sonoridade final obtida atende plenamente à proposta do trabalho, o que sinaliza para a
adequação do processo de gravação escolhido, apesar do tempo relativamente restrito.

O CD contou com as seguintes participações:

Piano: Ana Azevedo


Baixo: Lipe Portinho
Bateria: André Fróes
Violino: Nikolay Sapoundjiev
Violoncelo: Emilia Valova
Clarinete: César Bonan
Flauta: Paula Martins
Voz: Celio Rentroya e Marianna Leporace
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6 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

A realização do presente trabalho envolveu o estudo biográfico e histórico, além da


pesquisa musical, a elaboração dos arranjos e o registro fonográfico. O conjunto dessas
abordagens proporcionou um mergulho na obra da maestrina Chiquinha Gonzaga, abrangendo
também o Rio de Janeiro da Belle Époque e as transformações marcantes ocorridas no
período, não apenas no aspecto musical, mas na própria formação da identidade cultural
brasileira.
Os principais desafios que se apresentaram foram a tarefa de seleção do repertório, a
partir de um acervo de mais de 400 partituras, e a elaboração dos arranjos que dialogassem
com a estética da época e com manifestações musicais posteriores. Estas fases, entretanto,
foram tão prazerosas quanto a pesquisa textual, que proporcionou uma verdadeira viagem no
tempo e ampliou a compreensão dos aspectos estudados.
A etapa final do trabalho, que consistiu na preparação e registro fonográfico do
repertório escolhido, foi sem dúvida a mais estimulante, por concretizar em forma de música
o resultado de todos os aspectos da pesquisa. É interessante observar que mesmo a
familiaridade desenvolvida com as canções selecionadas, em primeiro lugar nas suas formas
originais e posteriormente com os novos arranjos, não permitiu antecipar totalmente o
resultado sonoro, que inevitavelmente surge com um caráter próprio. Essa sensação de
relativa surpresa se apresenta a partir de elementos que só se revelam no momento da
performance, registrada pela gravação. Ideias e sentimentos incorporam novas nuances,
momentos dos arranjos se destacam ou são atenuados, e novos sentidos musicais contribuem
para a atmosfera sonora obtida.
A extensa obra de Chiquinha Gonzaga, bem como a produção artística da Belle
Époque carioca, de forma mais ampla, convidam a outras abordagens de pesquisa que possam
aprofundar a compreensão e gerar outros produtos musicais relativos a este rico período da
história musical brasileira.
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REFERÊNCIAS

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Terapia, 2018.

AGUIAR, Flávio (0rg.). Antologia do teatro brasileiro: A aventura realista e o teatro


musicado. São Paulo: Editora Senac, 1998.

ALMEIDA, Alexandre Zamith. Por uma visão de música como performance. Porto Alegre:
Opus, v. 17, n. 2, p. 63-76, dez. 2011.

AMATO, Rita de Cássia Fucci. Funções, representações e valorações do piano no Brasil:


um itinerário sócio-histórico. Revista do Conservatório de Música. Pelotas: UFPel, n. 1, p. 1-
29, 2008.

ANDRADE, Mário de. Pequena História da Música. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.

BRAGA, Wandrei e DIAS, Alexandre. Acervo Digital Chiquinha Gonzaga. Disponível em


<http://chiquinhagonzaga.com/wp/acervo-digital-chiquinha-gonzaga>.

DINIZ, Edinha. Chiquinha Gonzaga - Uma história de vida. Rio de Janeiro: Editora Rosa
dos Tempos, 1999.

DONATO, Cida. A sedução poética das composições de Chiquinha Gonzaga e suas


parcerias textuais: o nascimento de uma estética brasileira na música do início do século
XX. XI Congresso Internacional da ABRALIC. USP. São Paulo, 2008. Disponível em <
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INSTITUTO MOREIRA SALLES. Coleção Chiquinha Gonzaga. Disponível em


< https://ims.com.br/titular-colecao/chiquinha-gonzaga/>

JUNQUEIRA, Maria Francisca Paez. Escola de música de Luigi Chiaffarelli.1982. Tese


(Doutorado em Comunicação) – Universidade Mackenzie, São Paulo.
49

LIRA, Mariza. Chiquinha Gonzaga, grande compositora brasileira. 2ª Ed. Rio de Janeiro:
FUNARTE, 1978.

LUIZ, Macksen. Teatro de Revista: Revista à brasileira nasceu cantando. Publicada na


Revista da SBAT nº 526. Rio de Janeiro, 2011.Disponível em <
http://macksenluiz.blogspot.com/2011/09/teatro-de-revista.html>

NOVAIS, Fernando A. e ALENCASTRO, Luiz Felipe. História da vida privada no Brasil –


Vol. 2 – Império: A corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

TINHORÃO, José Ramos. Pequena História da Música Popular (da Modinha à Canção
de Protesto). Petrópolis: Vozes, 1974.

VENEZIANO, Neyde. O teatro de revista no Brasil – Dramaturgia e convenções.


Campinas: Pontes – Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1991.
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APÊNDICE - PARTITURAS
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