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GUILHERME MAIA
Por
GUILHERME MAIA
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................ 1
INTRODUÇÃO
Quando um arquiteto olha para uma casa, flagra detalhes, proporções, valores ou
imperfeições que, em geral, não são percebidos por uma pessoa não iniciada nos segredos
da arquitetura. Na mesma taça de vinho da qual, distraidamente, sorvemos um gole com
intenção de tornar a conversação mais fluente em uma festa, o paladar e o olfato apurados
de um enólogo profissional podem ser capazes de sentir o sabor da terra que gerou a uva
utilizada na fabricação da bebida. Pequenos sinais sonoros, “normais” para a grande
maioria dos homens, para um médico que os ausculta com um estetoscópio podem
significar vida ou morte.
Nossos sentidos, quando treinados pelo estudo e/ou pela prática, nos tornam, de
certa forma, pessoas “diferentes” para as quais uma complexa cadeia semântica é
deflagrada a partir de sinais que, muitas vezes, pouco significam para outras pessoas. Um
músico profissional, quando entra em uma sala de cinema para assistir a um longa-
metragem de ficção, é um espectador diferenciado que perceberá a música do filme de
um “ponto de escuta” peculiar. Enquanto o espectador “comum” de cinema, de uma
maneira geral, está concentrado na história que está sendo contada, o profissional de
música provavelmente terá parte significativa de sua atenção requisitada por aspectos
técnicos e estéticos da música que emana das caixas de som da sala de projeção.
É a partir desse “ponto de escuta” singular de músico-espectador que a música do
cinema brasileiro contemporâneo será examinada neste trabalho. Quando assisto a um
filme de ficção, enquanto acompanho a fruição da narrativa, minha audição adestrada
inexoravelmente analisa, compara, questiona. Por que aquele acorde de dominante
naquele lugar e não um acorde de outra função harmônica? Por que o compositor e o
diretor optaram por aquela música e não por alguma outra? Por que aquela música
começa ou termina exatamente ali naquele ponto exato? Se, por um lado, esse processo
analítico compulsório absorve minha atenção a ponto de fazer com que detalhes
importantes dos diálogos e das imagens sejam às vezes “perdidos”, por outro, tem
suscitado questões que me levaram a conceber e a realizar este trabalho de pesquisa.
Espectador razoavelmente assíduo de cinema, em especial do cinema nacional, há
tempos vinha experimentando empiricamente a sensação de que há, em alguns filmes
2
1
Music has been closely linked with theatre since theatre began. Dance music and song have
played important roles in much folk drama. The classic forms of Asian theatre from India to Japan rely
heavily on music, as do the dramatic rituals of sub-Saharan Africa and of the indigenous peoples of the
Americas. (Sadie, S., New Grove Dictionary of Music and Musicians, London: Macmilan Publishers,
1980, vol. 9, p. 58)
3
importância equivalente aos diálogos falados. Já nos gêneros ocidentais de drama com
forte ênfase nos diálogos falados – peças teatrais 1 - a música aparece com bastante
freqüência entre as falas dos atores e, em alguns momentos, durante os diálogos falados.
Ainda de acordo com o mesmo dicionário, não existe um único termo que possa designar
todos os tipos de drama onde os diálogos falados predominam, mas a música que é
empregada nesse contexto tornou-se conhecida em várias línguas européias como
musique de scéne (Fr), bühenmusik (Al), musica di scena (It.), e, em inglês, como
incidental music 2, expressão que torna-se corrente a partir de meados do século XIX,
provavelmente derivada da correlata alemã inzidenzmusik, uma categoria de música de
teatro. 3
Percebe-se, portanto, na definição de música incidental uma classificação que
leva em conta uma ordem hierárquica entre os elementos do espetáculo. Somente em um
contexto cômico, ou de ousada vanguarda, podemos, por exemplo, imaginar uma Ópera
sem música. Aberturas, árias, recitativos, interlúdios instrumentais, constituem a própria
essência do gênero; são pilares de um arcabouço estético. A música, nesse caso, é
estrutural. O espetáculo não existe sem música. Segundo o Grove, a música é incidental
quando os diálogos falados ocupam uma posição hierarquicamente dominante em
relação à música. A expressão música incidental, em sua origem, portanto, refere-se a
uma música que, embora seja amplamente utilizada, é, de certa forma, prescindível, ou
seja, o espetáculo pode “ficar de pé” sem ela. Neste caso, os diálogos e a encenação são
os principais suportes dramatúrgicos do espetáculo.
No domínio da teoria contemporânea de música para cinema, a expressão música
incidental, que foi adotada por muito tempo com o mesmo sentido tomado por
empréstimo do teatro, vem sistematicamente sendo substituída pelo termo música
extradiegética. Centrados não em uma ordem hierárquica, mas sim no “ponto de
emissão” da música em relação ao universo ficcional, autores como Nicholas Cook e
Claudia Gorbman consideram que a música para cinema é diegética quando a fonte
sonora está presente, de maneira explícita ou implícita, na diegesis, ou seja, no universo
1
Plays, no original
2
Segundo o Grove, o termo incidental deve ser entendido não com o sentido trivial de “fortuito”,
“ casual”, mas sim com o significado de “incorrer na execução de” (um plano ou projeto).
3
Ibid., p. 58-62.
4
ficcional representado pelas imagens. Música diegética seria, portanto, o mesmo que
autores como Philip Tagg e George Burt chamam de source music. Segundo Tagg 1, uma
banda que cruza a cena tocando uma marcha, um conjunto em performance numa casa
noturna, a mãe cantando uma canção de ninar para o filho, são exemplos de source
music. Para Burt, a source music (ou música diegética) pode ser introduzida em uma cena
visualmente ou por referência. Quando, por exemplo, um personagem toca um
instrumento, canta ou assobia em cena, o espectador vê e escuta a performance. Nesse
caso, a fonte sonora está visualmente representada de modo explícito. Já em uma cena
que se passa no saguão de um aeroporto onde se ouve música ambiente, o espectador não
vê a fonte sonora, mas sabe, por referência, que em algum lugar fora da tela, mas dentro
do universo ficcional, existe um aparelho de som onde aquela música está sendo tocada.
Nos dois casos, a música é “possível” dentro da cena visualizada pelo espectador 2. Já a
música extradiegética é aquela cuja fonte sonora não se encontra, de modo algum,
representada no mundo ficcional descrito pelas imagens, ou seja, é uma música que vem
de fora da diegesis, que emerge de um mundo paralelo que as platéias se acostumaram,
através dos tempos, a aceitar como parte de um sistema polissêmico complexo chamado
cinema.
Na epígrafe de um dos capítulos do livro Composing for the Films 3, Theodore
Adorno e Hans Eisler contam uma história que ilustra de modo bem-humorado o conceito
de música extradiegética:
1
Em artigo publicado no site www.theblackbook.net/acad/tagg/teaching/mmi/filmfunx.html. Sem
referência a número de página.
2
Burt, G., The Art of Film Music, Boston: Northeastern University Press., 1994, p. 69-70.
3
Adorno, T. & Eisler, H., Composing for the Films., London: The Athlone Press, 1994.
5
A música extradiegética é aquela que “vem de onde vem a câmera”: dos recursos
da linguagem cinematográfica, da tecnologia, da sala de montagem, da própria essência
do cinema com imagem e som. É a música “não-realista”, operando na representação do
“real”.
Não é pretensão desta dissertação dar conta de todas as possibilidades de uso de
música estradiegética nos muitos gêneros e estilos de cinema que se desenvolveram ao
longo do século XX, mas sim verificar as estratégias adotadas no cinema comercial
brasileiro contemporâneo. Falar em cinema comercial, no entanto, implica em um
problema de ordem epistemológica que, para utilizar uma expressão utilizada pelo
escritor Machado de Assis nos parágrafos finais do romance Quincas Borba, gera
“questões prenhes de questões que nos levariam longe”. O cineasta François Truffaut,
por exemplo, afirma no livro Os Filmes de Minha Vida que, comerciais ou não, todos os
filmes são comercializáveis, ou seja, constituem objeto de compra e venda e que vê
diferenças apenas de grau, e não de natureza, entre filmes como Cantando na Chuva
(Singin’ in the Rain, Stanley Donen & Gene Kelly, 1952) e Ordet (Carl Dreyer 1, 1955),
declarando admirar igualmente os dois 2. Embora este estudo não pretenda aprofundar a
discussão sobre a dicotomia cinema comercial x cinema não-comercial, faz-se
imperativo esclarecer o recorte utilizado para dar contornos ao objeto investigado. Para
tal fim, adotou-se, como referência, o pensamento do cineasta Glauber Rocha para quem
“a história do cinema, modernamente, tem de ser vista, de Lumière a Jean Rouche, como
‘cinema comercial’ e ‘cinema de autor’.” 3 Para Glauber, o cinema comercial tem como
1
O diretor dinamarquês Carl Theodor Dreyer (1889-1968), cujos filmes fizeram muito mais
sucesso de crítica do que de público, exerceu forte influência sobre diretores como o sueco Ingmar
Bergman e o francês Robert Bresson. Sua obra cinematográfica freqüentemente explora personagens
atormentados por culpas psicológicas e questões metafísicas. O filme Ordet faz uma reflexão profunda
sobre religião e fé. (Sandra Brennan & Hal Erickson, in All-Movie Guide, www.all-movie.com)
2
Trufaut, F. Os Filmes de Minha Vida., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, p. 16.
3
Rocha, G., Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira,
1963, p. 13. Grifos do autor
6
1
Ibid., p.45.
2
Glauber Rocha, o mais veemente porta-voz do Cinema Novo, propunha a “desmistificação
estética do cinema americano e respectivos subprodutos” e dizia que a maior parte dos filmes feitos no
Brasil no período anterior ao ciclo cinemanovista era simples entretenimento com objetivos comerciais e
uma estética servil ao modelo hollywoodiano. (1981, p. 67)
7
que filme brasileiro tem que ser intelectualizado, esse estigma de filme
pseudo-europeizado. Vamos abraçar também os filmes populares, pois o
mais importante é levar o público brasileiro de volta às salas onde são
exibidos filmes nacionais. Filme diversão é filme diversão. E filme cabeça é
filme cabeça 1.
1
Trecho da mensagem transcrito com autorização do remetente.
2
Em 1996,1998, e 1999, respectivamente.
8
1
Flinn, C., Strains of Utopia: Gender, Nostalgia, and Hollywood Film Music., New Jersey:
Princeton University Press, 1992, p. 46.
2
Chion, M., Audio-vision. Sound on Screen, Nova Iorque: Columbia University Press, 1990, p.
524.
9
1
Gorbman, C., Unheard Melodies, London: BFI Publishing, 1987.
2
A montagem é o elemento mais específico da linguagem cinematográfica, o próprio fundamento
estético do filme. Segundo Gérard Betton, a montagem preside a organização do real e faz malabarismos
como o tempo, o espaço, cenários e personagens, visando satisfazer simultaneamente a inteligência e a
11
Para Bazin, gêneros e técnicas narrativas alcançaram uma nova estabilidade uma
década após a chegada do som no cinema, e ele se refere ao final dos anos 30 como um
momento de “perfeição clássica”. Mas o que caracteriza o modelo clássico do discurso
cinematográfico? Segundo Bazin, a narrativa clássica pressupõe um espaço cênico
unificado e representa este espaço através do estabelecimento de planos e cortes
subsequentes. A inteligibilidade espacial deve ser salvaguardada e o corte deve ser
motivado pela lógica dramática e/ou psicológica, atendendo às necessidades do
espectador de assistir a detalhes de importância narrativa.
Bazin situa o espectador como um sujeito autônomo que “quer” ver detalhes
importantes dramaturgicamente, e cuja demanda o cinema satisfaz através de estratégias
que procuram canalizar seus desejos, provocar uma “impressão de realidade” e propiciar
a identificação imaginária com a história. O filme clássico de Hollywood tem como meta
um discurso invisível que procura ocultar o processo fragmentado da montagem (planos e
cortes subseqüentes) através de estratégias de continuidade. Para Metz, também citado
por Gorbman, a montagem, no contexto clássico, é um procedimento que procura “apagar
suas próprias pegadas”. Sua eficiência como discurso se deve justamente ao fato de
obliterar todos os traços de sua enunciação, favorecendo o estabelecimento do vínculo
catártico do espectador com a história.
Segundo Gorbman, os mesmos princípios que determinam a montagem clássica –
lógica dramática e/ou psicológica - regem a composição, a mixagem e a edição da
música. Para a autora, as estratégias de uso de música extradiegética no cinema clássico
podem ser sintetizadas em seis princípios:
I -“Inaudibilidade”
Gorbman usa o termo inaudibilidade sempre entre aspas, pois é claro que a
música extradiegética é audível para o público, mas, segundo ela, um conjunto de
13
práticas convencionais evoluiu para que o espectador, em geral, não “focalize” a escuta
na música. De modo análogo à edição de continuidade na trilha de imagem, a música
extradiegética deve procurar manter-se “invisível”, o compositor deve “esconder seus
truques” como um prestidigitador. O objetivo principal da narrativa cinematográfica
clássica é provocar no público uma impressão de realidade e a música extradiegética,
como um um elemento alienígena no espaço cênico “realista” do filme, deve, portanto,
ser empregada com extrema cautela para não perturbar o envolvimento onírico do
espectador com a história. É importante lembrar que o público deslocou-se até a sala de
cinema e pagou ingresso para assistir a um filme, e não a um concerto. Um depoimento
do prestigiado diretor americano Sidney Lumet, em seu livro Fazendo Filmes, revela
como este princípio é adotado até mesmo por ele, um diretor contemporâneo que goza de
relativa independência em relação aos cânones do filme industrial de Hollywood:
Algumas das partituras que já ouvi [de música de filmes] não podem ser
lembradas de modo algum. Estou pensando na magnífica partitura de
Howard Shore para O Silêncio dos Inocentes 1. Quando vi o filme não a ouvi.
Mas a sentia sempre. É o tipo de partitura que tento conseguir na maioria
dos meus filmes. 2
1
The Silence of the Lambs, Jonathan Demme, 1981.
2
Lumet, S. , Fazendo Filmes, Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.161
3
Jaubert, M., IN Betton, G., op. cit. 1987, p. 49.
14
que aconselha o compositor a compor música flexível, ou seja, música que possa ser
encurtada ou estendida no caso da cena ser aumentada ou diminuída na edição final e
sugere a construção de pausas e de notas sustentadas, assim como a escrita de frases
curtas para favorecer a edição. Progressões e seqüências harmônicas são convenientes e
mesmo encorajadas. É aconselhável também preparar pequenas peças de música “neutra”
(notas sustentadas em vários instrumentos, rulos em tambores e/ou pratos e acordes de
caráter recitativo) para serem utilizadas em casos de necessidade de encurtamento ou
extensão de cenas na montagem final. Como exemplo da adequação do uso de
progressões harmônicas, Gorbman descreve uma seqüência do filme King Kong onde
Steiner utiliza esse recurso composicional que é um marco de seu estilo durante toda a
carreira:
1
King Kong is largely constructed in this way, especially the central section where Denham, Jack
Discroll, and other crew members, themselves pursued by the island’s fancifully created monsters, are
attempting to find Ann and rescue from Kong’s clutches. Sequential progression - each restatment of a
motive begining a step or a third higher than the last - build tension incessantly and relentlessly, and at
the same time proved adaptable in fitting with the final cutting of the images. (Gorbman, C. , op. cit., p.
77)
2
Para Michel Chion, a mixagem no cinema adota um procedimento vococêntrico, ou mais
precisamente, verbocêntrico, pois, em geral, privilegia a voz, como meio de expressão verbal, destacando-
a dos outros sons da trilha sonora. Segundo o autor, isso se deve, principalmente a um comportamento
verbocêntrico da escuta humana habitual. Quando num dado ambiente sonoro, ouvimos vozes, essas vozes
15
tendem a atrair, mais do que quaisquer outros sons, o foco de nossa atenção. (Chion, M. , Audio-Vison,
Nova Iorque: Columbia University Press, 1994, p.5-6)
1
In actual life we can usually take advantage of diferences of direction in order to concentrate
attention upon a particular sound. The result of concentrating upon one sound is, of course, not to make
the sound louder; but with our directive sense to help, we can largely forget the other sounds wich
accopmplishes the same purpose as making them fainter . Since, in the present case [i. e., a film
soundtrack with more than one type of sound] all the sounds come from the same direcion, and our
directive sense cannot be brought into play, the supression of the sounds in wich the listener is less
interested is accomplished by making them fainter. (Kellog, E., in Gorbmann, op. cit., p. 78)
16
c) Certos pontos da música são mais adequados que outros para entradas e saídas.
No caso da música não ter sido composta especialmente para a cena, a edição deve
privilegiar pausas, inícios ou fins de frases e tempos fortes. Para entender como opera
este princípio, basta imaginar uma “cena” da vida real onde se protagoniza uma sessão de
compras em um supermercado com música ambiente. Em geral, com o pensamento
absorvido por produtos e preços, muitas vezes nem nos damos conta de que existe música
no lugar. Entretanto, se ela for interrompida de maneira abrupta nossa audição perceberá
que algo “errado” aconteceu. A música tem inércia: ela forma uma espécie de plano de
fundo no subconsciente do ouvinte e a sua interrupção súbita faz surgir uma sensação de
perplexidade estética.
Wagner e Richard Strauss predominou por tanto tempo no cinema clássico 1. Para a
autora, o idioma Romântico era - e ainda é - tonal e familiar, com valores conotativos
compreensíveis para uma audiência de massa. Segundo Gorbman, o idioma musical deve
ser profundamente familiar e suas conotações devem nos remeter a um conhecimento
virtualmente reflexivo, para que a música possa operar correta e invisivelmente no
discurso cinematográfico clássico.
II - Significante de Emoção
Outra importante função da música no cinema clássico é a capacidade de suscitar
uma resposta emocional no espectador, intensificando ou abrandando a carga dramática
da narrativa. Segundo Earle Hagen (1971), muitos críticos consideram essa a mais
importante função da música no cinema, senão a única. Para Hagen, esses críticos
acreditam que o feedback emocional acontece independentemente da música estar, ao
mesmo tempo, desempenhando outras tarefas, uma vez que, “quaisquer que sejam as
outras funções que esteja exercendo, toda música, por sua própria natureza, tem a
capacidade de suscitar emoção” 2. No contexto clássico, por exemplo, a música de
abertura de um filme opera, como veremos a seguir, como um demarcador formal do
filme, mas ao mesmo tempo atua estabelecendo a emoção predominante do início da
história ou “aquece” o espectador apresentando-lhe um resumo emocional da narrativa.
Em um filme clássico, as imagens, os diálogos e os sons diegéticos operam na
representação do real e são elementos objetivos aos quais a música extradiegética
acrescenta uma imprescindível dimensão emocional, irracional, romântica, intuitiva. Para
Gorbman, a música tem o poder de transformar o literal no simbólico, o presente num
tempo mítico, o prosaico no poético e o particular no universal. A autora exemplifica o
uso de música como representação do irracional com outra seqüência da seção inicial do
1
Segundo P. Griffith, a capacidade da música de “narrar” ações ou emoções encontra sua
expressão maior nos poemas sinfônicos de Richard Strauss (1864-1949). Para o autor, Strauss elevou o
gênero a extravagantes culminâncias, e não teve rival em sua capacidade de traduzir musicalmente
imagens narrativas, a tal ponto que, com algum conhecimento do tema, seus poemas sinfônicos podem ser
“decodificados” como estórias à medida que os ouvimos. Não poderia haver exemplo mais notável do
nível que a música atingira no século XIX como meio narrativo de emoções ou ações, nem seria possível
ir mais longe nesta direção. (Griffiths, P. , A Música Moderna, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987, p.13)
2
...since all music, whatever its other functions are, inherently presents emotion, because that is
its nature. (Hagen, E., Scoring for Films. New York: Criterion Music Corp., 1971, p. 173.)
18
filme King Kong, na qual o barco que conduz os protagonistas chega à ilha onde
monstros e macacos gigantescos são “possíveis”, contrariando a razão. Steiner emprega
arpejos em harpa com ritmo ad libitum e centro tonal impreciso, estabelecendo uma
atmosfera misteriosa que ajuda a conduzir o espectador ao fantástico desativando suas
defesas contra um “mundo irreal”. Essa associação entre música e irracional predomina
nos gêneros terror, ficção científica e fantasia como um facilitador no processo de entrar
e sair de um discurso realista, transitando entre o lógico e o irracional, a realidade do dia-
a-dia e o sonho, o controle e a perda do controle. Uma frase do compositor Claude
Debussy, citada no livro A Música Moderna, de Paul Griffiths, ilustra com precisão
poética esse poder atribuído à música de transitar entre o real e o fantástico:
1
Griffiths, P., op. cit., p. 10.
2
The sense of common destiny wich fans at a football game might have as, “of one voice,” they
sing the national anthem or chant a slogan in support of the home team has something to do with the
19
emotions inspired by group identity-inducing rituals in more primitive groups. (Gorbman, C. op. cit. , p.
81.)
20
1 -Demarcações formais.
a) Começos e finais
Em geral, a música é usada nas aberturas e nos fins dos filmes. Como plano de
fundo dos créditos iniciais, tem a função de definir o gênero e o clima do filme. Na
maioria das vezes, apresenta em forma de medley 1 os motivos e temas que serão
utilizados posteriormente na trilha. Além disso, a música de abertura sinaliza, junto com
o apagar das luzes e com as primeiras imagens, que “o espetáculo está para começar”,
agindo como um elemento de transição entre a realidade do espectador - que saiu de casa,
comprou ingresso e entrou numa sala cheia de poltronas - e a “realidade” para a qual ele
vai ser transportado quando as luzes da sala se apagam e a história propriamente dita tem
início. Já a música de encerramento normalmente “explode” na última cena e continua
sobre os créditos finais. Em geral, são criadas re-exposições orquestrais do tema
principal, com resolução tonal. Recapitulação e conclusão conferem unidade à narrativa e
contribuem para o seu fechamento formal.
1
O mesmo que pout-pouri, ou seja uma série de temas ou canções diferentes arranjados em
seqüência initerruputa, ligados através de transições e justaposições.
21
c) Pontos de vista
A música nos filmes clássicos é usada também para enfatizar características
subjetivas dos personagens. Vários artifícios fornecem pistas ao espectador: associação
de música com o olhar de um personagem, associação temática repetida e solidificada no
curso da narrativa, orquestração de música que foi cantada anteriormente pelo
personagem, adição de reverberação para sugerir fortes experiências subjetivas. Gorbman
exemplifica o uso de música como indicador de ponto de vista com algumas passagens do
filme Of Human Bondage (Escravos do Desejo, John Cromwell, 1934). O protagonista,
Philip Carey, homem rico e refinado, está loucamente apaixonado pela humilde garçonete
Mildred, mas seu amor não é correspondido. Philip leva Mildred para jantar em um
restaurante sofisticado onde um trio de violoncelo, violino e piano executa uma valsa. A
fala de Philip “Eu adoro essa música. Ela me faz pensar em você.” consolida a melodia
da valsa como o tema de “Philip pensando em Mildred”. A partir deste momento, as
exposições extradiegéticas deste tema passarão a significar uma cumplicidade romântica
entre o espectador e o amor obsessivo de Philip por Mildred. No plano extradiegético, o
tema da valsa não é utilizado quando Mildred está em cena, procedimento que, segundo
Gorbman, ajuda a deixar claro, para o espectador, o desinteresse de Mildred por Philip.
O uso de reverberação, operando para indicar um ponto de vista subjetivo, tem
como exemplo uma cena onde Philip está fazendo uma prova na escola de medicina e,
distraído, fixa o olhar num esqueleto no canto da sala de aula. Uma fusão de imagens
transforma o esqueleto na imagem de Mildred, ao mesmo tempo em que o tema da valsa,
22
que estava sendo executado por um calíope 1 implícito no plano diegético, passa a ser
tocado por orquestra de cordas gravada com uma quantidade incomum de reverberação.
Quando um colega de Philip percebe que ele está distraído e tosse para chamá-lo de volta
ao “mundo real” da prova, o calíope retorna no plano de fundo auditivo.
2 - “Deixas” conotativas
Segundo Gorbman, a música na narrativa cinematográfica clássica procura
“ancorar” as imagens em significado, expressando estados de espírito e indicando valores
morais, éticos e de classe dos personagens. Além disso, atributos melódicos, harmônicos,
rítmicos e de instrumentação podem imitar ou ilustrar eventos físicos da tela. A música
reforça o significado dos diálogos, dos gestos, da iluminação, da performance dos atores
e do movimento das figuras na tela. Gorbman cita como exemplo o filme Caged (À
Margem da Vida, John Cromwel, 1950), um melodrama sobre um presídio feminino. O
filme começa com a jovem e inocente Marie Ellen chegando ao presídio em uma
caminhonete da polícia. Antes de entrar na prisão, Marie volta-se para trás e dá uma
última olhada no “lado de fora”: uma rua da cidade, um prédio, uma igreja, alguns
poucos automóveis em movimento. No final do filme, quando uma Marie endurecida por
suas experiências na prisão olha a mesma paisagem, uma música tensa de caráter
jazzístico em trompetes e saxofones ocupa a trilha sonora. O significado do “mundo
exterior” mudou para a protagonista e a música de Steiner, segundo Gorbman, opera com
eficiência na representação dessa transformação.
Para Gorbman, a música, em conjunção com as imagens, tem uma enorme
capacidade de influenciar no clima do filme. Músicas diferentes levam o espectador a
diferentes interpretações das cenas. Um verdadeiro léxico de conotações musicais,
estabelecido pela prática hollywoodiana, é explorado pelos departamentos de música dos
estúdios cinematográficos. Segundo a autora, esses “significados” em música foram
codificados e institucionalizados antes do surgimento do cinema sonoro, quando
começaram a surgir os léxicos de música para cinema como a Kinobiblioteque de
Giuseppe Becce, publicada em 1919, e Motion Picture Moods for pianists and Organists:
1
Espécie de órgão cujo som é produzido por vapor. Usualmente utilizado em espetáculos
circenses. (Hal, L., Pocket Music Dictionary, Milwaukee: Hal Leonard Publishing Corporation, 1993.)
23
A Rapid Reference Collection of Selected Pieces Adapted to Fifty Two Moods and
Situations, organizado por Erno Rappe em 1924. Segundo Gorbman, estes léxicos de
conotações de música para cinema gozavam de muita popularidade e estabeleceram as
bases do uso da música nas salas de projeção.
Entre os climas e situações relacionados no léxico de Rappe estão: aeroplano,
batalha, pássaros, perseguição, nacional, orgias, oriente, tempestade no mar, sinistro
e casamento. No léxico de Rappe, o pianista que, por exemplo, necessita criar uma
atmosfera de “tristeza”, pode escolher entre dez peças que incluem o primeiro
movimento da Sonata no. 2 de Beethoven, Elegie de Grieg e o Andante Patético e
Doloroso de Gaston Borch.
Além de prover o filme de “dicas” emocionais, a música extradiegética pode
também ilustrar a ação. Segundo Gorbman, Max Steiner desenvolveu um estilo de
música para cinema que tem como característica marcante a ilustração da ação
representada na tela. Duas técnicas dramatúrgicas de ilustração freqüentemente
utilizadas no modelo clássico são o mickey-mousing e o stinger. Expressão criada nos
estúdios Disney, mickey-mousing refere-se à “imitação” musical do ritmo e da direção
de movimentos de personagens, objetos, ou mesmo da câmera. Gorbman cita alguns
exemplos desse procedimento:
1
Music mickey-mouses the gait of Gypo Nolan in The Informer. Near the Begining of
Casablanca, as an allied resistence fighter is shot, the score imitates his fall to the ground. Near the
opening of The Big Sleep, a harp glissando helps to mickey-mouse the feigned collapse of spoiled Carmen
Sternwood into the arms of Philip Marlowe. (Gorbman, C., op. cit., p. 88.)
24
IV - Continuidade
O filme é um meio visual que dramatiza um enredo básico; lida com fotografias,
imagens, fragmentos e pedaços de filme: o tic-tac de um relógio, a abertura de uma
janela, alguém espiando, duas pessoas rindo, um carro arrancando, um telefone que toca.
A música opera no sentido de “dar liga” a esse mosaico de imagens 1. Segundo Gorbman,
1
Segundo Michel Chion, a mais amplamente difundida função do som no cinema consiste em
“alinhavar” os cortes, unificar o fluxo das imagens, construindo uma ponte sobre a descontinuidade visual.
Ainda segundo o autor, o som pode conferir unidade através do estabelecimento de atmosferas (i. e. canto
de pássaros ou ruídos de tráfego) que criam uma estrutura que parece conter a imagem, um espaço
“ouvido” no qual o “visto” é imerso, e também através da música extradiegética, que, por ser independente
das noções de tempo e espaço reais, tem o poder de fundir imagens fragmentadas numa corrente
homogênea. (1994, p. 47)
25
V - Unidade
O cinema clássico baseia-se na unidade formal e narrativa e necessita de música
para reforçar essa unidade. Já foi visto que as músicas de abertura e de encerramento
1
Montage sequences - calendar pages flipping, newspaper headlines spanning a period of time,
citizen Kane and his wife growing apart at the breakfast table over the years - are almost invariably
accompanied by music. (Gorbman, C., op. cit. p.89.)
26
constroem uma espécie de moldura para o filme. Na abertura, anunciando gênero, clima
e/ou indicando tempo e lugar. No final, procedimentos composicionais como
recapitulação de temas e cadências conclusivas reforçam o encerramento da narrativa. A
estruturação temática da música, a partir da sua inerente unidade baseada em exposições
e variações, atua como um sub-sistema semiótico, conferindo unidade ao filme.
Repetição, interação e variação de temas musicais no curso de um filme contribuem para
dar clareza à dramaturgia e às estruturas formais. A técnica Wagneriana do leitmotif foi,
e ainda é, amplamente utilizada na música de cinema.
Segundo o modelo clássico, as relações tonais entre as intervenções de música
devem ser organizadas de forma a contribuir para a unidade da narrativa. Gorbman cita o
teórico Sabaneev, que aconselha o compositor de música para cinema a observar
determinados procedimentos em relação à tonalidade das peças utilizadas na trilha
sonora. Para Sabaneev, se a música está ausente por mais de quinze segundos na trilha o
compositor está livre para começar um novo trecho de música numa tonalidade diferente,
mesmo estando a nova tonalidade em alto grau de afastamento, pois o espectador já terá
tido tempo de esquecer suficientemente a tonalidade do trecho anterior. Mas se o espaço
sem música for menor que esse, o novo trecho deve começar na mesma tonalidade ou em
tonalidade vizinha.
O estilo de Steiner de música para cinema é baseado em estruturação temática.
Segundo Gorbman, depois de assistir ao copião do filme, Steiner elaborava a trilha a
partir dos perfis dos personagens e dos conflitos centrais da trama. Para a autora, o uso de
temas musicais é a principal força unificadora na prática de música para cinema em
Hollywood, pois a estruturação temática provê uma unidade intrínseca, baseada em
exposição e variação, que opera como um sub-sistema semiótico. Repetição, interação e
variação de temas musicais contribuem de maneira substancial para a clareza formal e
dramatúrgica de um filme.
VI - Flexibilidade 1
1
Gorbman, na verdade, classifica em sete os princípios que regem a música no cinema clássico.
No entanto, o princípio da invisibilidade, segundo o qual o aparato técnico da música extradiegética
(músicos, instrumentos, microfones, cabos, etc.) não deve “estar em cena” ou seja, não deve ser visto pelo
27
espectador, não foi considerado relevante no âmbito desta pesquisa. No entender deste pesquisador, a
inclusão de qualquer elemento do aparato técnico em cena automaticamente “diegetiza” a música.
28
1
http://www.theblackbook.net/acad/tagg/teaching/mmi/filmfunx.html
29
a) Funções 1 e 2
O primeiro item da classificação de Tagg - ênfase em movimentos - refere-se ao
uso da música com a função de ilustrar eventos narrativos, que Gorbman considera como
função narrativa conotativa (mickey-mousing). Já no item 2, ênfase em sons reais flagra-
se um aspecto não abordado por Gorbman, mas que também pode ser incluído na função
narrativa conotativa: a música sendo utilizada para representar sons não especificamente
musicais presentes na diegesis, como o tropel das patas de um cavalo em galope, o
assovio do vento, ou o rumor das ondas no mar.
b) Funções 3, 8, 9 e 10
As funções 3 (representação de tempo e lugar), 8 (símbolo), 9 (antecipação) e 10
(demarcação da estrutura formal), podem ser pertinentemente incluídas na função que
Gorbman classifica como narrativa referencial, ou seja, quando a música opera
fornecendo referências de ambientes sócio-histórico-culturais e personagens, “dicas” e
pontos de vista narrativos, e demarcações formais do filme. Complementando, entretanto,
a visão de Gorbman, Tagg ilumina alguns aspectos interessantes de cada uma dessas
quatro funções.
Para Tagg, a música pode operar na representação de tempo e lugar (3) dando
dicas narrativas referenciais sobre o ambiente histórico (medieval, contemporâneo,
antigüidade); social (classes alta, média e pobre), e físico/étnico (ameríndios, oriente,
ambiente urbano, ambiente rural). Já para ilustrar a música operando como símbolo (8),
Tagg dá um exemplo simples, mas emblemático, descrevendo uma cena hipotética onde
as imagens mostram o herói ferido em um campo de batalha enquanto o “tema da
heroina” é ouvido na trilha sonora. Nesse caso, a música estaria comunicando ao
31
espectador o ponto de vista subjetivo do herói que, agonizando ferido, lembra-se de sua
amada.
Segundo Tagg, a antecipação de ação subseqüente (9) ocorre quando a música
“avisa” ao espectador que algo importante está prestes a acontecer na história. É o que
Gorbman classifica como “dicas” narrativas, ainda dentro da função narrativa
referencial. A famosa seqüência do filme Tubarão (Jaws, Steven Spielberg, 1975), onde
o terrível tubarão assassino faz a sua primeira vítima, é um exemplo clássico da música
desempenhando essa função. Enquanto as imagens mostram uma inocente turista
tomando um plácido e agradável banho de mar, o vigoroso ostinato de duas notas, que a
partir desse momento passará a acompanhar as aparições do tubarão, vai entrando em
crescendo na trilha sonora, em disjunção com o que as imagens mostram. O conflito
entre o que o espectador vê (uma turista banhando-se no mar) e o que ele escuta (o
ostinato tenso e enérgico de John Williams), antecipa a tragédia que está por acontecer. É
interessante observar ainda que, neste caso, o espectador passa ser cúmplice da narrativa:
ele “sabe” que o perigo está por perto, mas a turista só se dará conta quando for tarde
demais.
Para ilustrar essa função da música de antecipar acontecimentos dramáticos, é
interessante citar a visão de Michel Chion, para quem os sons e as imagens no cinema
seguem padrões de repetição e transformação que criam no espectador uma sensação de
expectativa, de plenitude a ser desestabilizada ou de vazio a ser preenchido. Segundo
Chion, embora a sensação de antecipação possa ser provocada no espectador através de
diversos recursos da linguagem cinematográfica (movimentos de câmera ou mudança na
performance de um ator, por exemplo), muitos diretores recorrem com assiduidade à
música extradiegética para obter esse efeito, por saberem que a música, especificamente
os arcos de tensão e relaxamento do idioma tonal, leva o ouvinte a esperar cadências. 1 De
fato, ao menos para as platéias do chamado mundo ocidental, que cresceram imersas num
universo musical tonal, um acorde de dominante sempre contém em si a expectativa de
uma resolução.
O décimo item da classificação de Tagg - demarcação formal - inclui tanto
aspectos relativos à função referencial narrativa quanto à continuidade e à unidade, itens
32
c) Funções 4, 6, e 7
Tagg comenta, no item 4 de sua classificação, o que ele chama de source music.
Para ele, a música de cinema é source music quando a fonte sonora está presente, de
maneira explícita ou implícita, no universo ficcional, ou seja, o mesmo que Gorbman
classifica como música diegética, como foi visto na introdução desta dissertação. A
source music, portanto, não se caracteriza propriamente por exercer uma função
específica, mas sim por ter sua fonte sonora representada na diegesis.
A música pode operar também como meio de expressão das emoções dos
personagens (6) e como base para as emoções da platéia (7). Segundo Tagg, a música
pode tanto contribuir para expressar emoções de um personagem como operar como
gatilho de uma resposta emocional no espectador. Tagg exemplifica essas duas funções
da música através de uma cena hipotética: um plano neutro do herói lendo uma carta
1
Chion, M., op. cit. p. 55.
33
acompanhado na trilha sonora por uma “música de horror”, que deixa claro para o
espectador que ele está chocado com as notícias terríveis que lê na carta. A música, nesse
caso, revela ao espectador a emoção do personagem. Para demonstrar um caso onde a
música dispara uma resposta emocional na audiência, Tagg utiliza como exemplo a
mesma cena, mas substitui o herói pelo vilão. A “música de horror”, neste caso, não está
diretamente associada à emoção do vilão, para quem a carta traz notícias “boas” que o
levarão a atingir seus objetivos, mas sim comunicando ao espectador que algo terrível
está para acontecer com o herói. Nos dois exemplos de Tagg, a música está atuando na
função que Gorbman classifica como significante de emoção (função II), mas, ao mesmo
tempo, na função referencial narrativa, pois dá ao espectador referências sobre o
conteúdo da carta.
Tagg vai ao encontro do que Gorbman afirma sobre a flexibilidade do modelo
clássico, quando comenta que as funções da música no cinema não são mutuamente
exclusivas, sendo comum a música operar exercendo várias funções ao mesmo tempo,
como no exemplo descrito no parágrafo anterior. Para ilustrar a multifuncionalidade da
música no cinema, Tagg descreve mais uma cena hipotética onde o espectador vê
imagens de uma top-model, vestida com um robe de seda, andando langorosa em seu
suntuoso apartamento em Nova Iorque, acompanhada pelo som macio do CD de bossa-
nova que ela acabou de colocar para tocar. Para o autor, a platéia pode estar ouvindo essa
música de diversas maneiras:
- como música diegética, pois o espectador viu a top model colocando o CD para tocar
(função 4);
- como uma referência do gosto musical da personagem, e portanto, como indicador de
sua classe social (função 3);
- como uma referência de lugar (função 3), pois a bossa-nova é um gênero urbano, mais
adequado a ambientes de apartamentos (em Nova Iorque ou Copacabana, por
exemplo) do que a um ambiente rural;
- com referência de tempo: a cena certamente se passa em algum momento posterior ao
final dos anos 50 (função 3);
34
- a música pode também estar operando como símbolo (função 8), fazendo referência a
um namorado brasileiro da top-model;
- se o material temático da bossa-nova estiver sendo usado em outros momentos do filme
no plano extradiegético, a técnica do leitmotif pode estar sendo empregada para
conferir unidade à narrativa (função 10).
d) Função 5
Tagg descreve ainda a música com a função de comentário. Para ele o tipo mais
comum de comentário é o contraponto, ou seja, a música contradizendo a esfera
conotativa da ação visual, como, por exemplo, uso de melodia suave para imagens de
holocausto atômico, ou de música tensa e grave em uma cena de amor. Na música do
cinema clássico, e em todas as funções descritas anteriormente por Tagg, observa-se
procedimentos que buscam, em geral, a conjunção entre música e imagem. O uso da
música para comentar as imagens por disjunção, ou seja, contradizendo a esfera
conotativa das imagens, que Tagg classifica como comentário, é uma questão crucial da
teoria de música para cinema. Esta questão tem sua origem no célebre Manifesto Sobre o
Som, escrito pelo cineasta russo Sergei Eisenstein na época do nascimento do cinema
sonoro, passa pela teoria crítica de Theodore Adorno e Hans Eisler no final dos anos 40,
e chega aos estudos recentes de Michel Chion sobre o som no cinema. A função de
comentário ou contraponto, um verdadeiro divisor de águas na estética do cinema, será
enfocada a seguir, na terceira e última seção deste capítulo, como parte de um corpo
teórico que inclui as idéias de Eisenstein, a crítica ao modelo clássico feita por Adorno &
Eisler, e alguns comentários de Michel Chion sobre a questão do contraponto e sobre o
pensamento crítico sessentista sobre o uso do som.
1.3 - O Manifesto de Eisenstein, a crítica de Adorno & Eisler, e a visão de Michel Chion.
utilizado nas análises realizadas no âmbito desta pesquisa. A visão de Michel Chion
sobre a questão do contraponto entre música e imagem, e também sobre idéias que
dominaram a crítica cinematográfica européia nos anos 60/70, principalmente a francesa
dos Cahiers de Cinéma, acerca da descontinuidade na mixagem do som, também foi
considerada relevante neste trabalho.
1
Entre os mais importantes filmes de Eisenstein, onde o diretor aplica os princípios teóricos
expostos nos livros O Sentido do Filme e A Forma do Filme, estão Battleship Potemkin ( Encouraçado
Potemkin, 1925), Oktyabr (Outubro, 1927), Alexander Nevsky (Alexander Nevsky, 1938), Ivan Grozny I
(Ivan, o Terrível - 1a parte, 1944) e Ivan Grozny II ( Ivan, o Terrível - 2a Parte, 1946)
2
Eisenstein, S. O Sentido do Filme, 1942, p. 157
36
1
Betton, G. ob. cit. p. 77.
2
El sueño del cine soñono se ha hecho realidad. Con la invención de una prática banda sonora,
los americanos se han situado a un paso de una rápida y substancial realización. (...) Todo el mundo
habla sobre la cosa silenciosa que ha aprendido a falar. (Eisenstein, S.. La Forma en el Cine. Ed. ???,
19XX, p. 251.)
3
En primer lugar, se realizará la explotación comercial de la mercadoria mais vendível, los
films parlantes. Aquelos en los quales, la grabación del sonido procederá de un nível naturalista,
37
a) Natural - diz respeito aos ruídos naturais da filmagem, está fora do âmbito artístico;
b) Métrica: estruturada em função da duração. O exemplo mais comum seria a extensão
de um plano coincidir com a duração da música;
c) Rítmica: possui como elemento chave o movimento interno do quadro (seja um objeto
se movendo ou os contornos de linhas e volumes, que guiam o movimento do olhar do
espectador) sincronizado em relação ao movimento rítmico musical;
d) Melódica: semelhante ao anterior, sendo que nesse caso a estruturação é articulada
entre o movimento interno do quadro e o movimento melódico da música;
e) Tonal: trabalha níveis de densidade musical (timbre, volume, alturas) com níveis de
densidade tonais do quadro (linhas, cores, volumes e variações de luz).
1
MIRANDA, R. S., A Música no Cinema e A Música do Cinema de Krzysztof Kieslowski.,
Dissertação de Mestrado defendida em 21/12/1998 no Departamento de Multimeios da UNICAMP, p. 20-
21.
39
1
ADORNO, T. & EISLER, H., Composing for the Films, London: The Athlone Press, , 1994.
2
Prejudices and Bad Habits, no original em inglês.
40
1
Musical lackey, no original . (p. 24)
2
Unobtrusiveness, no original. (p.9)
41
1
Institute of Social Research, fundado originalmente por Horkheimer em Frankfurt, nos anos 20.
As idéias contidas nos estudos realizados no Instituto tornaram-se conhecidas como Escola de Frankfurt.
42
1
Horkheimer e Adorno lideraram essa corrente de pensamento, que considerava historicamente
desontextualizada a hermenêutica do marxismo adotada pelo Partido Comunista, e propunham um retorno
às idéias originais de Marx: uma teoria para os tempos, uma teoria que mudasse com os tempos.
2
McCann, G., “New Introduction”, in Adorno & Eisler, op. cit., p. VII a XXXIX.
3
Ibid., p. XXXVIII.
4
Ibid., op. p. XXXIX..
43
1
Se por um lado o cinema comercial contemporâneo, de certa forma confirma o potencial
expressivo e funcional de técnicas composicionais pós-tonais, como, por exemplo na música de O
Iluminado (The Shining, Stanley Kubrick, 1980) onde o compositor Wendy Carlos usa como base a obra
de compositores como Bartòk, Berlioz, Penderecki e Ligeti, por outro deixa claro que esses recursos,
operam com eficiência somente em determinados gêneros como suspense e terror. Fica difícil imagunar
dramas ou comédias românticas como de Uma Estória Amor (Love Story Arthur Hiller, 1970) ou Uma
Linda Mulher (Pretty Woman, Gary Marshal, 1990) com música dodecafônica na trilha sonora. As técnicas
composicionais pós-tonais, que no final dos anos 40 não eram ainda utilizadas pela indústria
cinematográfica, hoje em dia são recursos integrados à linguagem dominante e já podem até mesmo ser
consideradas um clichê da função II da classificação de Gorbman, significante de emoção, operando
principalmente nos gêneros terror e suspense como representação do irracional.
44
1
Adorno & Eisler, op. cit., p. 80.
2
Ibid., p. 26.
3
Ibid., p. 80.
4
Ibid., p. 78.
45
b) Dans les Rues (Victor Trivas, 1933). A tela mostra um luta sangrenta entre
desordeiros numa paisagem de princípio de primavera. A música, na forma de
variações, é suave e triste. Para Adorno e Eisler, a música expressa o contraste entre o
incidente e a cena, sem relação direta com a ação. Seu caráter lírico cria um
distanciamento da brutalidade dos eventos representados na tela: aqueles que estão
cometendo a brutalidade, são as próprias vítimas de seus atos. Este é um exemplo de
passividade (na música) em oposição a movimento (na ação).
Estes dois exemplos, onde, aliás, é inevitável perceber o cunho social e político do
pensamento de Adorno e Eisler sobre a música para cinema (a música sendo utilizada
para evocar solidariedade e resistência), de certa forma, revela uma contradição. Nas
cenas descritas são claras as disjunções entre movimento e passividade, entre ação e
inação, mas, ao mesmo tempo, há elementos em conjunção entre a música e a imagem
que podem ser entendidos como exemplos de música operando nas funções narrativa
referencial e significante de emoção do modelo clássico.
Em Kuhle Wampe, Brecht e Dudow utlizam a música para significar um
sentimento de resistência, de esperança num mundo melhor, e fornecer ao espectador
uma referência do ponto de vista do filme sobre aquelas imagens de pobreza e miséria. O
mesmo acontece em Dans les Rues, onde a música não acompanha o ritmo da ação, mas
procura levar o espectador a “perdoar” a brutalidade dos personagens que, do ponto de
vista do filme, são vítimas da sua própria violência. Nos dois casos, há disjunção entre os
ritmos da ação e da música, mas existe, em outros níveis, conjunção entre o que se vê e o
que se ouve.
A partir da noção de contraponto proposta por Eisenstein, o uso de som no cinema
passou a ser, de certa forma, visto por críticos e cineastas sob duas perspectivas
antagônicas: som e música operando em paralelo à ação representada na tela versus som
e música em contraponto em relação à ação. Segundo Michel Chion, como veremos a
seguir, esta polarização se baseia em uma noção imprecisa da idéia de contraponto, e
reduz as infinitas possibilidades dramatúrgicas da “audiovisão” a um modelo dual
intelectualizado e inútil em termos práticos.
46
1
La Voix au Cinéma, Le Son au Cinéma, e La Toile Trouée.
47
Para Chion, se existe algo que possa ser chamado de contraponto audiovisual, isto
ocorre sob condições significativamente diferentes do contraponto musical. Na música,
apenas notas estão sendo usadas – o mesmo material – enquanto som e imagem
pertencem a diferentes categorias sensoriais. Falar sobre contraponto no cinema é,
portanto, tomar por empréstimo uma noção imprecisa, aplicando uma especulação
intelectual ao invés de um conceito viável, que pode ser trabalhado num contexto
prático 1.
Na visão de Chion, os estudos sobre o filme tornaram-se confusos com essa
analogia, ao ponto de usá-la constantemente de modo equivocado. Muitos casos tomados
como exemplo de contraponto poderiam ser, na verdade, exemplos de harmonia
dissonante, uma vez que apontam para uma discordância momentânea entre a natureza
figurativa da imagem e do som, apesar do termo harmonia também não levar em conta as
especifidades do fenômeno audiovisual. Segundo o autor, muitas são as possibilidades de
acrescentar som a qualquer imagem dada. Dentro deste amplo conjunto de opções,
algumas são totalmente convencionais. Outras, sem contradizer ou “negar” a imagem,
transportam a sua percepção para outro nível. Além disso, a dissonância audiovisual é tão
meramente o inverso da convenção, e, conseqüentemente, presta homenagem à
convenção, aprisionando-nos numa lógica binária que tem somente de modo remoto
alguma coisa a ver com o modo como funciona o cinema. 2
Um último aspecto a ser considerado dentro deste corpo teórico das funções da
música no cinema, diz respeito a um pensamento crítico que também floresceu na crítica
francesa dos Cahiers du Cinéma nos anos 60/70, defendendo um discurso
cinematográfico fragmentado e “visível” em oposição às estratégias de montagem
clássicas cujo objetivo é construir um discurso “invisível”. Na prática clássica, a
mixagem de uma trilha sonora consiste essencialmente na arte de suavizar as passagens
de um som para outro, aparando arestas e alisando asperezas, através da manipulação do
1
De fato, somente quem nunca estudou as regras do contraponto, analisou uma fuga de Bach, ou
dedicou-se a compor uma obra de caráter contrapontístico, poderia usar esse termo para referir-se a uma
disjunção entre som e imagem. Em uma fuga, as diversas vozes polifônicas guardam estreita ligação tonal
entre si e operam em profunda conjunção rítmica, harmônica e melódica. Muitos, senão todos, os
procedimentos composicionais empregados numa fuga são baseados em simetria.
2
Chion, M., op. cit., p. 35-39.
48
volume do áudio (fades in e out 1), com o objetivo de “ocultar” os pontos de edição da
trilha. Segundo Chion, nos anos 60-70 alguns críticos passaram a ver essa prática
dominante não como “naturais” mas sim como a corporificação de uma ideologia
particular e de um posicionamento estético exclusivo e característico do cinema
hollywoodiano. Muitas análises desse tipo surgiram neste período, concluindo
invariavelmente com um apelo à desmistificação do modelo clássico, e propondo um
cinema baseado na fragmentação da narrativa. Segundo Chion, apenas alguns poucos
diretores, entre estes Jean-Luc Godard, realmente atenderam ao apelo deste pensamento
crítico. Para Chion, Godard foi um dos raros diretores a realizar cortes abruptos no som,
acentuando saltos e descontinuidades, e, em grande parte, desprezando a edição
“inaudível” de áudio com suas gradações de intensidade e todos os fades, dissoluções,
fusões e transições predominantemente empregadas na mixagem dos filmes.
Em sua dissertação de mestrado, Suzana Reck Miranda cita Chion, que no livro
La Musique des Films fala sobre a edição heterodoxa de música nos filmes do diretor
francês. Godard rompe com os princípios clássicos da inaudiblidade e da continuidade ao
utilizar cortes abruptos e música em volume mais alto que os diálogos:
1
Expressões correntes nos estúdios de música e cinema. Fade in significa um crescendo do
silêncio ao volume desejado. Fade out, do volume em que o áudio está presente, ao silêncio.
49
1
Miranda, R. S., op. cit., p. 25-25.
50
1
Ramos L. A. & Heffner, H., “Cinédia” in Ramos F. & Miranda L. F., org., Enciclopédia do
Cinema Brasileiro, São Paulo: Editora Senac, 2000, p. 130-132.
52
1
“ O Cinema, pelos aspectos tão variados que apresenta, principalmente pela natureza industrial
de suas realizações, já se firmou no mundo contemporâneo como um dos mais expressivos elementos de
progresso. A tal ponto que os grandes povos de hoje lhe dedicam ação permanente, entregando-se com
esforço ao estudo dos métodos técnicos, financeiros e comerciais que lhe são próprios. No Brasil, o cinema
ainda representa muito menos do que deveria ser e, por isso esmo, quem se propuser, fundado em seguras
razões de capacidade, a contribuir para o seu desenvolvimento industrial, sem dúvida estará fadado aos
maiores êxitos. E também prestará indiscutíveis serviços para a grandeza a pátria” ( Manifesto da
Atlântida, de 1941. - In Viany, A., Introdução ao Cinema Brasileiro, Rio de Janeiro: MEC/Instituto
Nacional do Livro, 1959.)
2
Em paralelo às Chanchadas, a Atlântida continuou a produzir dramas. Em 1947, o melodrama
Luz dos meus Olhos, dirigido por José Carlos Burle, abordando problemas raciais, não faz sucesso de
público, mas é premiado pela crítica como melhor filme do ano. No ano de 1950, Watson Macedo recebe o
prêmio de melhor diretor pelo filme A Sombra da Outra, uma adaptação do romance Elza e Helena, de
Gastão Cruz.
3
Miranda L. F., “Atlântida”, in Ramos & Miranda, op. cit., p. 33-34.
4
– História da Vera Cruz – (sítio oficial da Vera Cruz) http://veracruz.itgo.com/mainbr.htm -texto
apócrifo.
5
Ibid.
53
1
Paranaguá, P. A., “Vera Cruz”, in Ramos & Miranda, op. cit., 2000, p. 561-562.
2
Gonzaga, A., 50 Anos de Cinédia, Rio de Janeiro: Record, 1987.
3
Os compositores mais citados nas fichas técnicas dos filmes da Cinédia são os que têm
atividade centrada na canção popular, os hit makers: da época :Lamartine Babo, Noel Rosa, Assis
Valente, Custódio Mesquita, Ary Barroso, João de Barro, Dorival Caymmi, Hervê Cordovil e Antônio
Nássara. A dupla Alvarenga e Ranchinho, Haroldo Lobo, Grande Otelo, David Nasser, Donga , Jararaca
54
e Ratinho, Ataulfo Alves, Luiz Gonzaga, Mário Lago, Billy Blanco, e Adelino Moreira embora menos
assíduos, também tiveram suas canções utilizadas em filmes da Cinédia.
1
Ramos, L. A., “Trilha Sonora”, in Ramos & Miranda, op. cit., p. 548.
2
Embora os grandes sucessos da companhia tenham sido os “musicarnavalescos”, infelizmente
não foi possível tomá-los como exemplo nessa pesquisa, pois não foi encontrada nenhuma cópia em vídeo
de filmes da Cinédia desse gênero nas locadoras que serviram de base para essa pesquisa - Estação
Botafogo, Estação Paissandú, Politheama, e Macedônia.
3
Na filmografia da Cinédia aparecem ainda os nomes de Francisco Mignone, Guerra Peixe e
Heitor Villa-Lobos. Segundo a ficha técnica, Mignone compôs a “música de fundo” do filme Bonequinha
de Seda. Guerra-Peixe trabalhou nas comédias O Dia é Nosso (1941), dirigido por Milton Rodrigues
(canções de Donga e David Nasser), Poeira de Estrelas (1948) dirigido por Moacir Fenelon e Estou Aí?
(1949), dirigido por Cajado Filho. Segundo dados do livro Cinema Brasileiro 1908-1977, de Araken C. P.
Júnior, Guerra-Peixe trabalhou em dezenove filmes, em diversas fases do cinema brasileiro. Já Villa-
Lobos, embora seja citado nas fichas técnicas do livro de Araken C. P. Júnior como autor da música de
quinze longa-metragens, em verdade trabalhou como compositor de música original para cinema, segundo
55
Jorge Antunes, apenas no filme da Cinédia O Descobrimento do Brasil (1937), dirigido por Humberto
Mauro: Nos outros casos, a música de Villa-Lobos foi utilizada como trilha adaptada.
1
Para Ganga Bruta, Gnatalli compôs música original de caráter sinfônico, além da melodia da
canção Teus Olhos... Água Parada. A letra dessa canção é de autoria de Heckel Tavares, que assina ainda
as canções Coco de praia (números 1 e 2) e a canção-tema Ganga Bruta, esta com letra de Joracy Camargo.
Na Cinédia, Radamés Gnatalli assinou ainda a direção musical da comédia Onde Estás Felicidade
56
(Mesquitinha, 1939) e do drama Caminho do Céu (Milton Rodrigues, 1943), este último em parceria com
Lyrio Panicalli.
1
A análise das fichas técnicas dos filmes da Atlântida1 revela um amplo domínio do compositor
Lyrio Panicalli, que assina a música de trinta e um entre os sessenta e oito filmes produzidos pela
companhia de 1943 a 1964. Alexandre Gnatalli , Léo Perachi e Radamés Gnatalli são os outros
compositores citados mais de uma vez nas fichas técnicas. (Informações colhidas no livro Cinema
Brasileiro 1908-1978 de Araken C. Pereira Jr. Santos, Casa de Cinema, 1979).
57
música dos filmes hollywoodianos, numa relação intertextual de sátira que fica clara já na
abertura dos dois filmes. A música de Nem Sansão nem Dalila, uma sátira à super-
produção hollywoodiana Sansão e Dalila (Cecil B. de Mille, 1949), começa com metais
executando melodias a duas vozes em intervalos de quartas e quintas paralelas e
tímpanos marcando as semínimas, remetendo o ouvinte/espectador ao estilo épico do
diretor Cecil B. de Mille 2. Na abertura de Matar ou Correr a percussão e os metais em
ritmo “galopado” situam o espectador no clima de sátira aos faroestes de Hollywood 3.
Outra referência importante ao gênero faroeste são as cadências plagais 4, típicas na
música de filmes americanos deste gênero, utilizadas, em geral, em grandes planos gerais
de paisagens.
A edição voltada para a inaudibilidade é um característica comum aos filmes da
Cinédia e da Atlântida, incluídos como exemplos nesta pesquisa. A mixagem da música,
em todos os filmes investigados, segue o procedimento vococêntrico descrito por Michel
Chion. Se há diálogos na trilha sonora, a música está ausente ou em plano-de-fundo. Esse
modo de mixar a música em subordinadação às vozes também pode ser flagrado em
filmes da Vera Cruz como Caiçara, O Cangaceiro e Floradas na Serra.
Segundo L. Ramos 5, a produção da Vera Cruz é a que mais se aproxima do
modelo clássico de música para cinema. Já Hernani Heffner vê na música da companhia
paulista traços de “evolução”, em relação ao padrão da Cinédia e da Atlântida: “No
campo da trilha musical, evoluiu-se sensivelmente com a fixação de compositores
regulares para o cinema e o uso dramático dos temas, em geral dentro da tradição
1
Refiro-me aqui ao conceito de “ponto de virada” ou “plot point” adotado pelo script doctor Syd
Field: os plot points geralmente dizem das “viradas” na trajetória, ou “cortes epistemológicos”, na vida do
protagonista. (Field, S., Manual do Roteiro, Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1982.
2
O diretor e produtor Cecil B. de Mille tornou-se conhecido principalmente através épicos dos
Sansão e Dalila, Cleópatra (1934) e Os Dez Mandamentos (1923 e 1956).
3
A sátira ao filme hollywoodiano é uma das principais características das Chanchadas. Em De
Vento em Popa(1957), Oscarito faz uma imitação do ídolo do rock Elvis Presley, e. em Os Dois
Ladrões(1960), imita os trejeitos de Eva Todor em frente ao espelho, numa clara referência ao filme Hotel
da Fuzarca (1929), com os Irmãos Marx.
4
Cadências conclusivas do tipo sub-dominante- tônica, de caráter modal, onde a relação
tensão/repouso é branda pois não há o movimento de resolução do trítono inerente às cadências dominante-
tônica. O caráter modal da cadência plagal está semanticamente conectado a períodos históricos pré-tonais,
ou a sociedades pré-industriais.
5
Ramos L. A, “Trilha Sonora” in Ramos & Miranda, op. cit., p. 548.
58
1
americana.” Mas, na verdade, o que se observa, ao menos nos filmes investigados no
âmbito desta pesquisa, é continuidade e não ruptura ou “evolução” qualitativa. Tanto na
Cinédia quanto na Atlântida já havia os “compositores fixos”, e, como será visto a seguir,
na Vera Cruz também havia “números musicais”, embora de uma maneira diferenciada.
Em Caiçara, primeiro lançamento da Vera Cruz, a trilha sonora tem canções no
plano diegético 2e a música extradiegética de Francisco Mignone segue, em geral, o
paradigma clássico. Caiçara é um dramalhão. Na primeira seção da história, enquanto as
imagens e os diálogos cumprem a função dramática de apresentar ao público o casal de
protagonistas, José Amaro e Marina, é a música de caráter dramático que, atuando nas
funções significante de emoção e narrativa referencial, estabelece o gênero do filme e a
intensidade do drama que o futuro reserva aos personagens. Em uma cena onde um “falso
amigo” tenta beijar à força a esposa do protagonista, a música segue, em paralelo, a
progressão dramática: é ativa e dissonante enquanto há confronto físico entre os dois;
suaviza, diminuindo o grau de dissonância e a atividade rítmica, quando ela consegue
colocá-lo para fora de casa; torna-se misteriosa e mais dissonante, quando ela percebe
que há alguém do lado de fora tentando entrar; e relaxa finalmente, resolvendo as
tensões em um acorde prolongado de tônica menor, quando ela percebe que o possível
invasor não é o “falso amigo”, mas sim seu marido José Amaro que chega para salvá-la.
Em Caiçara, a música extradiegética opera principalmente em transições entre
cenas (função IV - continuidade) e nos momentos de maior intensidade dramática da
história. Curiosamente, no entanto, o diretor optou por não usar música na seqüência do
assassinato de José Amaro pelo sócio, ponto culminante da narrativa. A seqüência
acabou ficando com menos impacto dramático que outras de menor importância, o que
pode ser considerado um “erro” no modelo clássico. Um outro desvio em relação ao
1
Heffner, H., “Som”, in Ramos & Miranda, op. cit., p. 520.
2
A presença da canção popular é marcante em Caiçara e aparece de três maneiras, sempre no
plano diegético: o sócio de José Amaro canta duas vezes acompanhando-se ao violão; grupos de nativos
cantam músicas de refrão e estribilho, fazendo de “improviso” referências aos personagens do filme;
manifestações folclóricas de canto e dança servem de cenário e fundo musical para algumas ações. Em
Caiçara, portanto, a música popular opera dando “cor local” - é música de uso comum dos pescadores e
habitantes da ilha onde a ação se dá - e dialogando com a narrativa através dos comentários das letras.
De certa forma, podemos considerar algumas das cenas onde os personagens cantam como “números
musicais”, já que, embora sem o aspecto de espetáculo da música dos filmes da Cinédia e da Atlântida,
em Caiçara a canção também tem lugar de destaque, chegando em alguns momentos a ocupar o primeiro
plano narrativo.
59
1
As fichas técnicas dos filmes da Vera Cruz1 revelam que Enrico Simonetti ,Gabriel Migliori e
Francisco Mignone, foram os mais ativos compositores da companhia. Simonetti fez música para os
filmes Veneno (Giani Pons, 1952), Esquina da Ilusão (Rogério Jacobbi, 1953), Luz Apagada (Carlos
Thiré, 1953). Uma Pulga na Balança (Luciano Salce, 1953), É Proibido Beijar (Hugo Lombardi, 1954),
Na Senda do Crime (Flamínio B. Serri, 1954) e Floradas na Serra (Luciano Salce, 1954). Francisco
Mignone assina a música dos filmes Caiçara (Adolfo Celi, 1950), Ângela (Tom Payne, 1951), e Sinhá
Moça (Oswaldo Sampaio e Tom Payne, 1953). Gabriel Migliori fez a música de Família Lero-Lero
(Alberto Pieralise, 1953), Candinho (Alberto Pieralise, 1954), e O Cangaceiro (Lima Barreto, 1953). A
música de O Cangaceiro foi premiada com uma menção honrosa no Festival de Cannes.
61
tecnologias (equipamentos mais leves e ágeis) foram forças que contribuíram para o
surgimento de um novo cinema no Brasil. 1
O Cinema Novo rompe com as Chanchadas, os melodramas, e propõe “a
desmistificação estética do cinema americano e respectivos subprodutos” 2. Para Glauber
Rocha, o mais veemente porta-voz do movimento, o filme que se fazia no Brasil era
simples entretenimento com objetivos comerciais e uma estética servil ao modelo
hollywoodiano. Um meio de comunicação poderoso como o cinema deveria ser usado
como espaço de experimentação e expressão artísticas, de valorização da cultura
brasileira, de denúncia das injustiças sociais e de ação política anti-imperialista: “Cinema
como conhecimento, e não como divertimento; cinema como linguagem, e não como
espetáculo.” 3 Ainda segundo Glauber Rocha, este é um momento de ruptura na história
da produção cinematográfica nacional, “porque significa a primeira tomada de
consciência cultural e política do cinema brasileiro.” 4.
Cultura e política: o ideário do Cinema Novo propunha um enfoque realista em
aspectos sócio-culturais até então evitados, tratados com humor chanchadesco ou
“glamourizados” no cinema brasileiro - a fome, a pobreza, a miséria - e uma ação política
transformadora cujo principal objetivo era a libertação econômica e cultural do Brasil em
relação ao domínio imperialista americano. Glauber Rocha, ressaltando o poder de
comunicação da mídia cinematográfica, afirma que “o cinema, sendo o mais poderoso
instrumento de comunicação existente, é uma arma indispensável e fundamental na luta
contra o imperialismo” 5. Glauber defende um “cinema de guerrilha 6 como a única forma
de combater a ditadura estética e econômica do cinema imperialista ocidental” 7. No
manifesto Eztetyka da Fome 8, de 1965, Glauber Rocha reafirmaria o compromisso do
Cinema Novo com a abordagem realista das mazelas sociais do então chamado “terceiro
mundo”, erigidas pela fome e pela miséria:
1
Paranaguá, P. A., “Cinema Novo”, in Ramos & Miranda, op. cit., p. 144-146.
2
Rocha, G., Revolução do Cinema Novo, Rio de Janeiro: Alhambra/Embrafilme, 1981, p. 67
3
Ibid., p. 45.
4
Ibid., p. 77.
5
Ibid., p. 71.
6
Grifo do autor
7
Ibid., p. 77.
8
Apresentado durante as discussões em torno do Cinema Novo, por ocasião da retrospectiva
realizada na Resenha do Cinema Latino-Americano em Gênova.
64
1
Rocha, G., op. cit., p. 30.
2
Ibid, p. 25.
3
Grifos do autor
4
Rocha, G., Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1963, p.13.
65
1
Labaki, A., org., Cinema Brasileiro, São Paulo: Publifolha, 1998, p. 13-14.
2
Como na pesquisa bibliográfica realizada não foi encontrada uma filmografia precisa do
conjunto de obras do Cinema Novo, foram adotados como referência os verbetes “Cinema Novo” e
“Trilhas Sonoras” da Enciclopédia do Cinema Brasileiro (Ramos & Miranda, 2000), os longa-metragens
66
citados no livro Cinema Novo no Brasil (David Neves, 1966), e as fichas técnicas da filmografia de
Araken C. P. Júnior.
1
Ramos, F., Cinema Marginal 1968-1973 - A Representação em seu Limite, São Paulo:
Brasiliense/Embrafilme, 1987, p. 31.
2
Xavier, I., “O Cinema Moderno Brasileiro” in Revista Cinemais, número 4, p. 45.
67
Toda uma atitude debochada e irritante dos personagens tem como objetivo
criar no espectador um sentimento de irritação que se mescla ao da
repulsa. O vínculo catártico, próprio à narrativa clássica, não se estabelece
68
1
Ramos, F., op. cit., p. 116.
2
Ibid., p. 121.
3
Ibid., p. 130.
4
Fernão Ramos ressalta ainda um importante sub-conjunto da estética marginal, que denomina de
marginal cafajeste, composto por filmes que buscavam atingir o mercado exibidor através do erotismo,
mas sem abrir mão de uma atitude reflexiva autoconsciente e irônica sobre os procedimentos narrativos
utilizados. Segundo o autor, essa tendência abriu as portas para a posterior filmografia erótica da Boca do
Lixo paulista, que tornou-se conhecida como pornochanchada. Os filmes As Libertinas (1969) de
Reichenbach, Antônio Lima e João Callegaro (em episódios), Audácia, Fúria dos Desejos (1970) de
Reichenbach e Antônio Lima, República da Traição (1970) de Carlos Alberto Ebert, e O pornógrafo
(1970) de João Callegaro são, segundo F. Ramos, emblemas do marginal cafajeste.
69
1
Ibid., p. 133.
2
Ibid., p.141.
3
Merten, L. C., “A Boca Maldita” in Revista Veredas número 66, Rio de Janeiro: Centro Cultural
Banco do Brasil, 2001, p. 21.
70
tinha como objetivo divertir o espectador, mas para a nova geração cinemanovista um
filme deveria ter a função de “alfabetizar, informar, educar e conscientizar as massas
ignorantes e as classes médias alienadas.” 1. Assim, os clichês clássicos de uso de música,
que contribuíam para situar o espectador numa posição “passiva e comodista” 2, passam a
ser considerados inadmissíveis no contexto cinemanovista.
Um exemplo radical de “anti-hollywwodianismo” é a trilha sonora do filme
Vidas Secas, onde Nélson Pereira dos Santos, que em alguns filmes anteriores como Rio
40 Graus e Rio Zona Norte 3 havia empregado música extradiegética segundo os cânones
do modelo clássico, rompe com o modelo ao optar por não usar música extradiegética.
Visando construir uma narrativa fílmica realista, Nélson Pereira deve ter considerado
que o não-realismo intrínseco a qualquer música extradiegética operaria em oposição aos
seus objetivos. Em Vidas Secas, as poucas intervenções de música emergem da diegesis
e estão relacionadas a aspectos culturais do universo representado nas imagens: várias
passagens do filme mostram manifestações folclóricas de canto e dança.
No plano extradiegético, embora não haja música propriamente dita, há som. O
rangido de um carro-de-boi, apresentado nas primeiras imagens da abertura do filme,
percorre toda a narrativa, ora justificado visualmente pela imagem do carro-de-boi, ora
exclusivamente no nível extradiegético. É também o som rascante e penetrante do carro-
de-boi que dá o ponto final da trilha sonora do filme. A interação das opiniões do
compositor Jorge Antunes e do crítico e pesquisador Hernani Heffner sobre o ruído de
carro-de-boi da trilha sonora de Vidas Secas, revela dois pontos de vista antagônicos.
Considerando a falta de recursos como influência importante na estética da música no
filme e valorizando a relação imagem/som, Heffner diz:
1
Rocha, G., op. cit., 1981, p. 67.
2
Neves, D., Cinema Novo no Brasil, Petrópolis: Editora Vozes, 1966, p.17.
3
A música extradiegética de Rio Zona Norte foi assinada por Alexandre Gnatalli, e a de Rio 40
Graus por Radamés Gnatalli.
71
Já para Jorge Antunes, se Nélson Pereira dos Santos tivesse mais contato com as
pesquisas, que já se faziam no Brasil daquela época nos campos da música concreta e da
música eletrônica, poderia extrair muito mais do material sonoro:
É no mínimo instigante imaginar uma música para Vidas Secas que tivesse
contado com a participação de um especialista em manipular timbres, alturas,
intensidades e durações, ou seja, um compositor, trabalhando como Música Concreta o
ruído de carro-de-boi. Antunes, entretanto, não leva em consideração que a opção por
utilização de “matéria bruta” empregada sem artifícios está na matriz estética do Cinema
Novo desta primeira fase. A exemplo do ruído bruto empregado na trilha sonora, a
fotografia de Vidas Secas também é “crua”, sem filtros ou recursos especiais de
laboratório. Algumas cenas do filme chegam até a incorporar o “erro”, admitindo
imagens “estouradas”, ou seja, saturadas pela luminosidade excessiva.
Ao optar por não utilizar música extradiegética em Vidas Secas, Nélson Pereira
dos Santos rompe com o modelo clássico, mas, de certa forma, também mantém vínculos
com o modelo. Nélson Pereira substitui a música de caráter Romântico, que utilizou em
Rio 40 Graus e Rio Zona Norte, por ruído, mas emprega o ruído de maneira clássica nas
funções significante de emoção, operando na representação do sofrimento dos
personagens e narrativa referencial, estabelecendo ambiente e contribuindo para a
demarcação formal do filme (abertura, pontos culminantes e final).
1
Heffner, H., “Som” in Ramos & Miranda, op. cit., p. 520.
72
1
Antunes, J., “Nosso Cinema e Nossa Música”, in Cinema Brasileiro. 8 Estudos, Rio de Janeiro:
MEC/Embrafilme/Funarte, 1980, p. 168. Grifos do autor.
2
Segundo os créditos iniciais do filme.
3
As peças de Marlos Nobre utilizadas por Glauber em O Dragão da Maldade Contra o Santo
Guerreiro são Unkrimakrimkrim e Ritmetron.
73
1
Ramos, L. A., “Trilha Sonora” in Ramos & Miranda, op. cit., p. 549.
2
Ibid.
3
Ibid. p. 168.
4
O ponto de partida para a investigação sobre a música no cinema marginal foram as fichas
técnicas dos sessenta e nove títulos reunidos nas filmografias do livro Cinema Marginal, A Representação
em Seu Limite (1987) de Fernão Ramos, e do catálogo da mostra Cinema Marginal e suas Fronteiras,
realizada no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) na cidade de São Paulo. A julgar pelo número de
filmes sem créditos musicais, com créditos relativos a seleção musical, ou com música assinada pelos
próprios diretores - quarenta e seis títulos, ou seja, quase 70% da amostra investigada - a tendência ao uso
de trilhas adaptadas, que, como foi visto anteriormente, é uma das características do Cinema Novo, tem
continuidade no Cinema Marginal. Segundo a filmografia consultada, os diretores Júlio Bressane, Rogério
Sganzerla e Neville d’Almeida dão continuidade à prática centralizadora do “cinema de autor”, sendo os
responsáveis pela música de seus filmes. Bressane é o cineasta de maior presença na filmografia, com dez
obras. Apenas uma delas, O Anjo Nasceu (1969), tem a música assinada por um compositor. Neste filme, a
música original é de autoria de Guilherme Vaz. Nos cinco filmes de Sganzerla citados, dois são assinados
pelo próprio diretor - um deles em parceria com Gilberto Gil - , em dois não constam créditos relativos à
música, e um tem créditos de “seleção musical”. Nenhuma das fichas técnicas dos quatro filmes de Neville
d’Almeida citados inclui créditos para a música. Essa mesma tendência pode ainda ser observada nos
créditos dos filmes de Carlos Reichenbach, Ivan Cardoso, Jairo Ferreira, José Mojica Marins, Luiz
Rosemberg Filho e Elyseu Visconti, entre outros.
74
- enquanto um assassino mata a família, em uma televisão ligada está sendo tocada a
canção La Bamba; operando, de certa forma, no sentido de banalizar a ação descrita na
tela; 1
- ainda no plano diegético, Márcia, uma das duas protagonistas do filme, interpretada
pela atriz Márcia Rodrigues, cantarola When I’m Sixty-Four (Lennon & McCartney)
enquanto se exercita à beira de uma piscina;
- o Samba Vejo Amanhecer (Noel Rosa), um be-bop instrumental vibrante em disjunção
com um extenso primeiro plano do rosto triste de Renata, a outra protagonista,
interpretada pela atriz Renata Sorrah. A associação imagem-som nesta cena provoca um
forte estranhamento e pode ser considerada um bom exemplo do que Chion chama de
harmonia dissonante, da mesma forma que as duas canções carnavalescas que irrompem
no plano extradiegético após assassinatos brutais, “avacalhando” a dramaticidade das
imagens;
- Márcia e Renata, à beira da piscina, dançam ao som de uma canção do gênero be-bop;
- no plano extradiegético, uma música ao piano contribui para estabelecer um clima de
filme mudo em uma cena onde Márcia e Renata folheiam um álbum de fotografias, na
progressão dramática da relação amorosa das protagonistas. A música aqui opera na
elaboração do discurso intertextual com o cinema mudo;
- o ié-ié-ié romântico Ninguém Vai Tirar Você de Mim (Edson Ribeiro e Hélio Justo),
interpretado por Roberto Carlos, “debocha” das imagens de Marta e Renata, morrendo
após atirarem uma na outra na cena de encerramento da narrativa em mais um exemplo
de comentário, contraponto ou harmonia dissonante. A partir dos últimos fotogramas e
durante os créditos finais, as três últimas palavras da canção (em te perder) passam a ser
1
Esta cena é um bom exemplo do que Chion classifica como música anempatética. Para Chion a
música de um filme pode produzir um efeito emocional empatético ou anempatético1 em relação às
situações dramáticas representadas na tela. O efeito empatético é obtido quando a música expressa
diretamente sua participação no clima da cena, ou seja, “refere-se”, através de códigos musicais e culturais,
ao estado emocional dos personagens, operando na representação de sentimentos como alegria, ódio, amor,
etc. Para Chion, nesses casos a música tem uma relação de empatia com as imagens. Já o efeito
anempatético é produzido quando a música é indiferente ao que se passa com os personagens. Para Chion,
os exemplos mais comuns de música anempatética ocorrem no plano diegético, como, por exemplo, em
uma cena onde um ato de violência é cometido enquanto uma caixinha-de-música, ignorando as emoções
dos personagens, continua a sua execução mecânica acionada previamente ou em algum momento da ação.
Segundo Chion, embora indiferente ao clima das imagens, o emprego de música anempatética costuma
provocar um intenso efeito dramático.
76
1
Segundo L. Ramos, “a vanguarda musical que eclodiu nos anos 60, e que revelou compositores
como Ricardo Tacuchian, Willy Correa de Oliveira, Edino Krieger, Marlos Nobre, Esther Scliar, Rogério
Duprat, e outros, foi de certa forma ignorada pelo Cinema Novo. Forma registrados apenas dois casos de
aproximação entre os dois movimentos: o filme Noite Vazia (W. H. Khouri, 19xx) com música de Rogério
Duprat e A Derrota ( Mario Fiorani, 1966) com música assinada por Esther Scliar.” (Ramos, L. A., “Trilha
Sonora” in Ramos & Miranda, op. cit., p. 549.) Nas fichas técnicas da filmografia Marginal entre os
sessenta e nove filmes relacionados, apenas cinco têm música original composta por representantes das
“vanguardas”: Trilogia do Terror (J. Mojica Marins, O. Candeias e S. Souza, 1968), filme em três
episódios com música de Damiano Cozzela e Rogério Duprat, O Anjo Nasceu ( J. Bressane, 1969), com
música de Guilherme Vaz, O Profeta da Fome (Maurice Capovilla, 1969) com música de Rinaldo Rossi,
Assuntina das Américas (Luiz Rosemberg, 1975) com música assinada por Cecília Conde e O Segredo da
Múmia (Ivan Cardoso, 1985) com música de Júlio Medaglia.
77
1
Peguei um Ita no norte / Pra vim pro Rio morar / Adeus meu pai, minha mãe / Adeus
Belém do Pará / Ai, ai, ai, ai / Adeus Belém do Pará / Ai, ai, ai, ai / Adeus Belém do Pará - /Vendi
meus troços que eu tinha / O resto dei pra guardar / Talvez eu volte pro ano / Talvez eu fique por
lá / .Mamãe me deu um conselho / Na hora de embarcar / Meu filho, ande direito / Que é pra
78
saudades, com um lirismo naif que contrasta, de maneira radical, com a relação imagem-
som que a precede. Ao colocar esta canção em interação com uma imagem quase
totalmente estática de estrada, Bressane faz com que a música passe a ocupar um
“primeiro plano” narrativo, mas parece não pretender produzir significados explícitos
para o espectador. Um curto silêncio precede o medley, última intervenção musical do
filme. Como foi visto no capítulo anterior, a utilização de medleys em cenas de abertura
ou encerramento é parte das estratégias clássicas hollywoodianas. Bressane, entretanto,
utiliza o modelo de forma estilizada, pois o “áspero” material composicional da música
de Guilherme Vaz, desprovido de qualquer aspecto melódico cantabile ou de fácil
memorização, não opera da mesma forma que o material clássico-romântico empregado
na fórmula de Hollywood. As estruturas com altíssimo grau de dissonância da música de
Guilherme Vaz contribuem para estabelecer o “unhappy end”.
Embora este trabalho pretenda enfocar apenas a música e não outros elementos
constitutivos da trilha sonora (vozes, sons ambientes, efeitos sonoros), o grito de Carvana
foi incluído como objeto de análise pela importância do grito na ficção marginal.
Conforme observou F. Ramos, gritos desesperados repetidos de forma convulsiva operam
nesse contexto como representação de um horror visceral:
Deus lhe ajudar / Tou a bom tempo no Rio / Nunca mais voltei pra lá / Pro mês intera dez anos /
Adeus Belém do Pará.
79
trilha sonora. É o “ponto final” do filme. Para F. Ramos, ao universo ficcional construído
pelo Cinema Marginal caberia um adjetivo preciso: o esporro. Berros lacerantes, longos e
exasperados, permeiam toda a diegesis Marginal.
Outro aspecto que merece atenção é a validação estética do “erro técnico”. No
Cinema Marginal, o “belo” é o mal-feito, o mal-acabado, e isso diz respeito também à
edição da música. Como foi visto no primeiro capítulo, as entradas e saídas da música
extradiegética são pontos críticos da trilha sonora e um conjunto de estratégias foi
desenvolvido para resolver a questão da “intrusão” da música no ambiente realista da
narrativa. No modelo clássico, as saídas da música se dão em decrescendos (fade outs)
sutis ou em pontos favoráveis do fluxo musical (pausas, cadências, finais de frases,
tempos fortes). Já no Cinema Marginal, saídas de música em corte seco são constantes,
em geral sobre um ponto qualquer do discurso musical. Um exemplo emblemático dessa
prática é o final de O Anjo Nasceu, onde a música de fechamento do filme – o medley
aleatório-atonal de Guilherme Vaz - é interrompido bruscamente, sem chegar a um
“ponto final”. A perplexidade estética 2, provocada pela interrupção súbita da música, é
nitidamente intencional e passa, dentro do contexto Marginal, a fazer parte do repertório
de possibilidades de uso de música no cinema. Outro exemplo de erro técnico operando
com intenção dramática é o final de Matou a Família e Foi ao Cinema, quando as últimas
palavras da canção Ninguém Vai Tirar Você de Mim são ouvidas em loop, como um
disco de vinil “pulando”.
1
Ramos, F., op. cit., p. 118-119.
2
Ver capítulo I, pág. 8.
3
Outro aspecto relevante que emerge da amostra investigada é o fato de que embora estejam
situados esteticamente em polos opostos, há também um forte traço-de-união entre os dois conjuntos de
80
filmes estudados: a presença marcante da canção popular na trilha sonora. Nos filmes da Atlântida, da
Cinédia e da Vera Cruz canções populares são utilizadas nos “números musicais” do plano diegético e
em versões orquestrais no plano extradiegético. Já no contexto do Cinema Novo e do Cinema Marginal,
a canção popular cantada ganha espaço significativo no plano extradiegético, passando a também ocupar
na trilha sonora o lugar antes reservado exclusivamente ao material composicional clássico-romântico
orquestral .
81
Os três filmes aqui tomados como objetos de análise inserem-se num ciclo
produtivo que teve início no ano de 1994 e tornou-se conhecido como A Retomada. Este
mais recente ciclo do cinema brasileiro dá continuidade a uma trajetória descontínua que
alterna períodos fecundos e colapsos. Segundo o pesquisador e crítico Amir Labaki 1, a
partir da chegada do cinema ao Brasil, em 8 de julho de 1896, apenas sete anos após a
projeção inaugural parisiense dos irmãos Lumière, tem início uma fase de produção de
documentários, seguido pelo que ficou conhecido como a belle époque do cinema
brasileiro: a era muda. Esse primeiro ciclo de filmes de ficção é interrompido entre 1911
e 1912 com a entrada no mercado das produções internacionais.
Ainda segundo Labaki, a chegada do cinema sonoro dispara um novo processo
produtivo, que tem como marca a luta da Cinédia, da Atlântida, da Vera Cruz e de outras
companhias cinematográficas em prol da implantação de um cinema de caráter industrial
no Brasil. A aposta no modelo industrial esbarra, no entanto, na falta de um sistema de
distribuição e exibição que desse suporte aos elevados custos de produção dos filmes, e
na forte dominação do mercado exibidor exercido pelas majors norte-americanas. Assim,
o modelo vai, pouco a pouco, sendo substituído pela crença na realização independente
de filmes de baixo orçamento. Essa tendência floresce nos anos 60 com o Cinema Novo e
o Cinema Marginal e declina no princípio dos anos 70 com o aumento da repressão
política do governo militar. Em 1974, é criada a Embrafilme que põe em prática uma
série de iniciativas em defesa da produção e da exibição do cinema brasileiro. Tutelada, a
produção/exibição nacional vive fase de novo vigor. Com o fim da Embrafilme, órgão
extinto em 1990 em um dos primeiros atos do governo Collor, a produção nacional de
longa-metragens de ficção vive seu período menos fecundo, tendo suas atividades
praticamente paralisadas. Em 1993, com a promulgação da Lei do Audiovisual, tem
início um novo ciclo produtivo - a Retomada - , que eclode nas telas na última metade da
década de 90.
1
Labaki, A., op. cit., p. 9-21.
82
Assim como o período entre 1974 e 1990, em que a maior parte da produção
cinematográfica brasileira esteve ligada de alguma forma à Embrafilme, os filmes da
Retomada não constituem exatamente um conjunto estético com características comuns
dominantes, mas sim um quadro onde convivem, “pós-modernamente”, diversas
tendências autorais e comerciais. O Quatrilho, O Que É Isso Companheiro? e Central do
Brasil são filmes que podem ser considerados bons exemplos da vertente comercial, ou
seja, do longa-metragem de ficção dominante no mercado, que, em geral, conta uma
história, com princípio, meio e fim, e é um produto elaborado através de um conjunto de
técnicas e práticas que visam a construção de um discurso cinematográfico “invisível”. É
característica comum aos três filmes um compromisso maior com a ação, com o “contar
uma história” do que com a discussão de princípios ideológicos ou com inovações na
linguagem cinematográfica.
É fundamental ressaltar que os filmes aqui analisados não serão submetidos a uma
rigorosa crítica cinematográfica ou julgados segundo o seu caráter ideológico. O
importante, no contexto desta pesquisa, é o perfil geral de cinema-espetáculo desses
filmes. O Quatrilho, O Que É Isso Companheiro? e Central do Brasil são filmes
elaborados segundo os princípios descritivos da montagem narrativa 1, ou seja,
obedecem a procedimentos, dominantes no cinema comercial, que têm como objetivo
reunir em sucessão diversos fragmentos de “realidade”, visando construir a representação
de uma ação como um todo significativo.
É importante ainda observar que as músicas, aqui enfocadas, não estão sendo
submetidas a qualquer julgamento de valor quanto à “qualidade” musical, mesmo porque
discutir o que é “qualidade” em música nos remete às tais “questões prenhes de questões
que nos levariam longe” citadas na introdução deste trabalho.
Antes de proceder à análise propriamente dita, faz-se necessário esclarecer alguns
pontos relativos ao procedimento metodológico adotado. Obviamente, dar conta da
interação da música com todos os elementos da linguagem cinematográfica em três
longas-metragens é tarefa que extrapolaria os limites formais de uma dissertação de
mestrado. Por isso, no âmbito desta pesquisa, o conjunto de unidades de análise utilizado
foi restrito aos princípios da inaudibilidade, da unidade, da continuidade, e da função
83
3.1 - O Quatrilho
3.1.1 - Dados gerais sobre o filme, diretor e compositores.
O Quatrilho foi dirigido por Fábio Barreto e teve a música assinada por Caetano
Veloso e Jaques Morelenbaum. O roteiro do filme é baseado no livro homônimo do
gaúcho José Clemente Pozenatto (1940), professor de Literatura Brasileira da
Universidade de Caxias do Sul. As filmagens foram feitas em Caxias do Sul e em locais
1
Ver definição de Gerard Betton em nota de rodapé da página 11 da introdução deste trabalho.
84
1
Heffner, H., “Fábio Barreto” in Ramos & Miranda, op. cit., p. 43.
2
Fonte: Filme B Informa - Edição especial, setembro 1998.
3
Luiz Carlos Barreto é um dos produtores cinematográficos mais ativos do cinema brasileiro
contemporâneo e começou sua carreira no cinema assinando a fotografia do filme Vidas Secas.
85
1
Augusto, S., crítica publicada originalmente no jornal Folha de São Paulo, in Labaki, A., op. cit.,
p. 183.
2
Ibid., p.185.
3
Ramos, F., “Caetano Veloso” in Ramos & Miranda, op. cit., p. 558-561.
86
parceria com Caetano, Morelenbaum assina, junto com o compositor Antônio Pinto, a
música de Central do Brasil.
1
Plot point ou ponto de virada: conceito adotado pelo script doctor Syd Field, em seu livro
Manual do Roteiro. Refere-se a “viradas” na trajetória, ou “cortes epistemológicos” na vida do
protagonista.
87
de Angelo prosperam. Nascem os filhos dos dois casais. Pierina e Angelo perdoam
Massimo e Teresa.
1
O acordeon e a viola de dez cordas aparecem exclusivamente no plano diegético e operam na
função narrativa referencial no que diz respeito à representação de tempo e lugar.
88
violoncelo solo. Posteriormente, volta por diversas vezes em versão instrumental, ora
com melodia na trompa, acompanhada por cordas e metais, ora executada pelas cordas,
sempre com caráter triste e melancólico. No início da seção conclusiva da história, a
música é exposta pela primeira vez na íntegra, em versão cantada, com letra. Uma nova
versão instrumental acompanha a última cena, que mostra a “volta por cima” de Angelo.
Nos créditos finais volta a primeira parte da versão cantada, sendo logo sucedida por
MMM.
A canção Mérica, Mérica, Mérica, está presente na trilha sonora do filme já a partir
da abertura, acompanhando os créditos iniciais. Durante toda a seqüência dos créditos, a
música é soberana numa trilha onde não há vozes, sons ambientes ou efeitos sonoros. A
melodia, extremamente mnemônica, é apresentada na voz a capella de Caetano Veloso,
com letra em italiano, sendo em seguida acompanhada pela entrada sucessiva de
madeiras, bandoneon e cordas, bandolim e, finalmente, de tuba, flautas e trompa, em
tratamento onde predomina um caráter contrapontístico. A entrada sucessiva dos
instrumentos acompanhantes aumenta gradativamente a densidade orquestral da música,
garantindo uma boa progressão dramática na abertura do filme, composta de slide
89
1
Justaposição de imagens estáticas.
90
1 Abertura
0:00:00 - Texto escrito em fundo negro Silêncio;
surge em fade in, fornecendo ao
espectador informações sobre a
época e o lugar da história.
0:00:20 - Ainda sobre fundo negro, nome - Entra música: voz (Caetano
do filme em computação gráfica e Veloso) a capella apresenta a - Função referencial narrativa
nome do diretor. Seguem créditos primeira estrofe da canção MMM. ⇒ demarcação formal e
sobre imagens fotográficas, em A partir do primeiro refrão, referência de época e grupo
sépia, de imigrantes italianos no madeiras, bandoneon, cordas, tuba, social.
Brasil. flautas e trompa entram,
sucessivamente, sempre em textura
contrapontística.
0:02:51 - Fim dos créditos - Plano - Música vai saindo em fade out, em
Conjunto do padre que vem fusão com som de sinos da Igreja
chegando à igreja, montado em
- Inaudibilidade.
uma mula, para celebrar o
casamento de Angelo e Teresa
2 0:17:37 - Vários planos de Pierina - Violoncelo, executando os dois - Continuidade.
cozinhando e servindo comida a primeiros compassos da melodia de
trabalhadores, MT, entra nos últimos fotogramas
da cena anterior, prossegue até a
0:17:50 entrada do diálogo e sai em fade
out.
- Inaudibilidade.
3 0:24:16 Massimo e Pierina, já casados, Bandolim solo apresenta pela - Função narrativa referencial:
recebem a visita de Teresa primeira vez a melodia do Tema de TTM será utilizado leitmotif do
Teresa e Massimo (TTM). romance entre Teresa e
0:24:32 Massimo.
4 0:28:35 Fim da visita -Teresa despede-se e Volta bandolim. Idêntico à - Recapitulação ⇒ unidade.
parte. intervenção anterior. - Função narrativa referencial
0:28:31
⇒ Música “emoldura” a cena.
5 Ângelo vai à cidade procurar
trabalho.
0:29:34 - Vários planos do protagonista - MT é exposto pela segunda vez. - Recapitulação ⇒ unidade
andando a cavalo por uma rua da Agora com a melodia na trompa, em
cidade, indo ao encontro de tom menor, andamento lento e
Batiston, o homem que contrata região médio grave, com
trabalhadores para a construção da acompanhamento de cordas (em
estrada. arco e pizzicato) e metais.
Na seqüência da música, ouve-se
nas flautas citação da melodia de - Recapitulação ⇒ unidade
MMM.
0:30:28 Ângelo apeia e encontra-se com
Batiston.
- Diálogo entre Angelo e Batiston - Música sai em corte seco.
- Corte seco sem função
dramática aparente.
91
6 0:32:44 -Vários planos de Angelo - Volta MT. É o mesmo trecho - Recapitulação ⇒ unidade.
quebrando pedras com a picareta (melodia de MT justaposta à de - Função narrativa referencial
na construção da estrada. MMM) utilizado na chegada de
⇒ leitmotif do personagem
Angelo à cidade, com ligeiras
diferenças nos cortes de entrada e
Angelo.
saída.
0:33:00 - Corte seco de áudio encerra a
intervenção musical. - Corte seco sem função
dramática aparente.
7 Início da segunda seção da - MT reaparece, com o mesmo Recapitulação e variação de
narrativa Os dois casais viajam tratamento anterior, mas material temático ⇒ unidade.
para a recém-adquirida colônia. desenvolve-se por mais tempo com Música “costurando” cenas
Longo trecho sem diálogos: a seguinte forma:
⇒ Continuidade.
- Inaudibilidade.
8 0:46:00 - A construção do moinho (longo - Recapitulação e variação de
trecho sem diálogos.) material temático ⇒ unidade
- Angelo e Massimo coordenam - Volta a música-tema, na mesma
operários na construção; região médio/grave e com o mesmo
caráter da intervenções anteriores.
0:47:50 - citação de MMM;
0:48:16 - Planos conjuntos e primeiros - Entra melodia do TTM;
planos de Teresa e Pierina - Função narrativa referencial.
cozinhando e, em seguida, levando ⇒ leitmotif de Teresa e
comida para o almoço dos Massimo operando em
trabalhadores no canteiro de obras; seqüência da progressão do
0:49:12 -Teresa e Massimo trocam olhares romance entre os dois.
em plano/contraplano;
16 1:51:10 Elipse:
- Cenas de Angelo e de Pierina - Volta versão instrumental de - Recapitulação e variação
mais velhos na cidade, de carro, a MMM. Melodia no acordeon; Unidade.
pé; - Música decresce para plano de - Função narrativa referencial
1:51:27 fundo; vai saindo em fade out
- Voz de Teresa , em voice over, ⇒ acordeon = Itália.
“lê” uma carta onde manda notícias - Subordinação às vozes.
e pede perdão a Angelo e Pierina. Procedimento vococêntrico.
Ainda em voice over, Pierina
responde perdoando; imagens de
Angelo mais velho e sua família
(mulher, filhos, e alguns netos)
1:52:01 arrumando-se para uma fotografia; - Volta versão cantada de MT
- Câmera se aproxima lentamente
- Recapitulação.
em zoom (de Plano geral para
plano conjunto do grupo); imagem
do grupo se funde à imagem da
nova família de Massimo e Teresa,
também se arrumando para foto;
imagem sai em fade out - Música segue ⇒
Continuidade.
17 1:54:40 Créditos finais - Segue versão cantada de MT, - Função narrativa referencial.
seguida de versão igualmente ⇒ demarcação formal da
cantada de MMM narrativa.
- Recapitulação ⇒ unidade.
Imagens/ação Música
CENA 1/INTERIOR/DIA - BAR DE COSMO Sem música
COSMO - Ô Angelo, mas não tem nenhuma colônia pra
comprar em Nova Vicenzia. Faz como os
outros, que foram pra Caxias. Olha, o trem vai
ser inaugurado em poucos meses. Trabalho é
que não vai faltar.
ANGELO - A única coisa que sei é pegar no cabo da
enxada. Ir pra cidade é o mesmo que morrer
de fome.
COSMO - Olha, tem indústria, tem comércio, tão
construindo casas novas, tão abrindo estradas.
E, depois, sempre dá pra pegar na picareta.
Não é nada demais, é?
ANGELO - É... na picareta... isso eu sei fazer. Enquanto
isso podia procurar uma outra colônia...
CENA 2/EXTERIOR/DIA - RUA DE CAXIAS DO
00:26:37 SUL - Entra música junto com o primeiro
Plano médio de Angelo andando à cavalo em uma rua fotograma. Primeira exposição clara
00:26:41 movimentada. da música-tema A Voz Amada.
Abre para plano conjunto: câmera acompanha Angelo Tonalidade inicial de Fá# menor,
aproximando-se de uma das casas da rua, apeando, andamento lento ( = 63), melodia na
00:27:00 dirigindo-se à entrada da casa.
Na entrada da casa é recebido por Rocco. Início do região médio grave (trompa),
diálogo. acompanhamento de cordas em
pizzicato e arco, e metais, com caráter
dramático. Quase um réquiem. A
melodia é formada por transposições
dos dois primeiros compassos da MT.
Música segue sem contrastes
expressivos, decrescendo para
ROCCO - Tu é o Angelo Gardoni. Eu recebi um bilhete segundo plano em relação ao diálogo.
do compadre Cosmo. Como vai o compadre?
ANGELO - Eh, o compadre va bene.
ROCCO - O compadre Cosmo me disse que tu é muito - Música sai em corte seco.
00:27:21 bom no quatrilho. Isso é que vamo vê, eh?
Fim da seqüência
Como a história revelará adiante, Angelo vai encontrar trabalho, vai comprar as terras
que deseja, construir o moinho e prosperar. Quando encontra com Rocco é bem recebido
e a conversa entre os dois é amena e bem-humorada. A música utilizada, no entanto,
recebe um tratamento que sugere sentimentos trágicos. A combinação de elementos
musicais utilizada - andamento lento, tonalidade menor, melodia legatto na região médio-
grave - sugere uma atmosfera triste e sombria. Em relação a essa seqüência e ao destino
dramático de Angelo, uma música com essas características poderia estar operando na
função que Tagg classifica como antecipação de ação subseqüente, indicando um futuro
sombrio para o protagonista. Mas o fluxo da história virá a mostrar que Angelo, apesar de
traído pelo irmão e pela mulher, será vitorioso nos negócios e no amor, contrariando a
“previsão” da música que acaba por funcionar como uma “pista falsa”.
Outro aspecto da música de O Quatrilho que se afasta do modelo clássico diz
respeito a procedimentos de edição. Embora sejam numerosos os exemplos de uso de
música extradiegética para “costurar” planos e cenas, ajudando a “suavizar a
descontinuidade intrínseca ao processo clássico de montagem” 1, é igualmente grande o
número de cenas finalizadas com “cortes secos” na música, ou seja, música sendo
interrompida durante a sua enunciação (no meio de uma frase musical, ou mesmo de um
acorde sustentado). Como foi visto no primeiro capítulo, segundo os princípios da edição
clássica certos pontos da música são mais adequados que outros para entradas e saídas.
No caso da música não ter sido composta especialmente para a cena, a edição deve
privilegiar pausas, fim de frases e tempos fortes, por exemplo, como pontos de edição.
Em O Quatrilho várias intervenções de música têm um final abrupto, de certa forma
remetendo a procedimentos estéticos utilizados por Godard e pelos cineastas do Cinema
Novo e do Cinema Marginal. No entanto, os “cortes secos” de música em Godard e nos
contextos cinemanovista e marginal são pressupostos estéticos de um modo de fazer
cinema. Em O Quatrilho, um filme narrativo clássico, o procedimento parece deslocado e
vazio de qualquer intenção estética.
1
Ver referência na página 16 do primeiro capítulo deste trabalho.
98
1
Tinoco, A. L., “Bruno Barreto” in Ramos & Miranda, op. cit., p. 43.
99
1991), Decadence (Steven Berkoff, 1994), Very Bad Things (Peter Berg,1998) e Boys
and Girls (Robert Iscove, 2000).
1
Interpretado por Selton Melo.
2
Interpretados por Luís Fernando Guimarães, Fernanda Torres, Cláudia Abreu e Caio Junqueira,
respectivamente.
3
Interpretados por Mateus Natchergaele e Nélson Dantas
100
- 3a Intervenção.
c) Motivo III
1
É importante ressaltar que na música de O Que É Isso Companheiro?, ao contrário do que
acontece nos outros dois filmes investigados neste capítulo, não se pode falar, propriamente, em uma
melodia estruturada nos moldes clássico-românticos, com pricípio, meio e fim, pontos culminantes, etc.
102
solo e texturas corais polifônicas a duas e três vozes. Outros aspectos dominantes na
música do filme são andamentos lentos - muitas vezes ad libitum - e as chamadas “notas
brancas”, ou seja, figuras rítmicas de maior duração como longas, breves, semibreves e
mínimas.
1 0:00:00 - Slide show em preto e branco - Entra música - canção Garota Função narrativa referencial
com imagens do Rio de Janeiro de Ipanema, interpretada por (representação de tempo e lugar
nos anos 60: praias, Maracanã, Tom Jobim. e demarcação formal)
bonde circulando no centro da - Continuidade: música
cidade, etc. operando para dar fluxo
- Table top: letreiros, sobre contínuo a sucessão de imagens
fundo negro, fornecendo ao estáticas.
espectador informações sobre o
contexto político da história - o
golpe militar de 1964 e o
decreto do Ato Institucional
número 5, em 1968.
0:01:16 - Ainda em p.b. planos gerais - Música sai em fade out em
de passeata estudantil no centro fusão com as vozes dos - Inaudibilidade.
do Rio de Janeiro e primeiros manifestantes que gritam
planos do protagonista palavras-de-ordem.
Fernando e dos personagens
César e Arthur 1 na passeata.
Sobre essas imagens entram os
créditos de produção e direção.
1
O personagem Arthur, interpretado pelo ator Eduardo Moscovis, atua na primeira seção da
narrativa como personagem “orelha”, ou seja, um personagem plantado na trama para que o público “ouça”
o pensamento do protagonista sem que o roteiro precise recorrer a monólgos ou voice over. (jargão de
teledramaturgia.)
103
3 0:14:09 Seqüência do assalto a um - Música entra nos últimos - Continuidade ⇒ música “liga”
banco na primeira ação do fotogramas da cena anterior as duas seqüências.
grupo. (companheiros comendo ao
- Vários planos do grupo anoitecer em um acampamento
assaltando o banco. na praia após um dia de
treinamento de tiro). Versão
instrumental (guitarras, baixo, - Função narrativa referencial
bateria) da canção The House of ⇒ referência de época (a canção
the Rising Sun (Alan Price). foi um sucesso dos anos 60)
- Plano conjunto de Marcão - Música decresce para plano- - Subordinação às vozes
fazendo um discurso de-fundo durante a fala de (Procedimento vococêntrico)
revolucionário. Marcão. ⇒ Inaudibilidade.
três vozes). O respeito ao princípio da continuidade parece também fazer parte das
estratégias de Copeland e Bruno Barreto. É significativo o número de cenas onde a
música opera transições “costurando” cenas, seqüências e elipses temporais.
Não há em O Que É Isso Companheiro? procedimentos que possam ser
classificados como disjunção, contraponto ou harmonia dissonante. O que predomina
amplamente são estratégias que visam construir um paralelismo entre a ação e a música.
Esse paralelismo se dá não somente quando a música opera como significante de emoção
ou desempenha funções narrativas, mas também em relação à própria estrutura dramática
das cenas e seqüências. Isso pode ser observado através das muitas cenas e seqüências
onde a música começa em instrumentos solo, desenvolve-se em duetos ou a três vozes e
conclui em instrumento solo. Esse procedimento cria um paralelo com a estrutura da cena
clássica que, assim como a macro estrutura do roteiro, também tem, em geral, uma
dinâmica dramática que parte de um ponto de menor “densidade”, desenvolve-se até um
ponto culminante e conclui em momento de menor “densidade”.
Em um único momento do filme - a seqüência do assalto ao banco - há interação
música-ação sem um paralelismo evidente. A versão instrumental da canção The House
of the Rising Sun, que acompanha toda a seqüência do assalto, é uma balada tonal
executada com melodia na guitarra e acompanhamento de guitarra, baixo elétrico e
bateria, bem ao estilo da música pop dos anos 60. O “clima” da canção não tem uma
relação direta com a ação descrita pelas imagens mas, nesse caso, entra em jogo o
princípio da flexibilidade descrito por Gorbman, segundo o qual um determinado
princípio pode ser violado em função do predomínio de outro. O aspecto funcional
predominante da música nesta seqüência é a referência de época, ou seja, função
narrativa referencial, uma vez que a canção utilizada foi um grande sucesso fonográfico
dos anos 60.
Embora, em termos de material composicional, a música de Stewart Copeland
seja, por um lado, a que mais se afasta do modelo clássico por ser a menos “Romântica”
das três músicas analisadas neste capítulo - orquestrações rarefeitas, caráter não-melódico
e não-tonal, tratamento serial dos motivos-, por outro pode ser considerada a que mais
fielmente obedece aos princípios clássicos no que diz respeito a aspectos funcionais. A
análise das seqüências 2, 5, 6 e 7 da Tabela II, por exemplo, revela como Copeland,
114
Primeiro Dia. Pianista que se declara autodidata, Pinto afirma, em entrevista concedida
em um “bate-papo” virtual no portal Terra 2, que “a trilha sonora tem que ser muito sutil
para poder simplesmente atestar o que a história conta.” Essa declaração do compositor já
nos dá pistas de que a música de Central do Brasil deve obedecer ao primeiro princípio
do modelo clássico - inaudibilidade - que, entre outras coisas, determina que a música
deve fornecer um paralelo à ação representada na tela. Segundo Antônio Pinto, a música
de Central do Brasil é o resultado de um trabalho “a seis mãos” realizado por ele,
Morelenbaum e Walter Salles, que também participou intensamente do processo de
elaboração da música.
1
Heffner, H., in Ramos & Miranda, op. cit., p. 485.
2
www.terra.com
3
Personagem inserido na trama com a função de “escutar” o pensamento de um personagem mais
importante. É através do “orelha” que o espectador “ouve” o pensamento de um protagonista, sem que o
roteiro precise recorrer a monólogos ou a recursos de voice over.
116
tecendo entre si uma relação onde a integridade e a firmeza de propósitos de Josué acaba
por fazer com que Dora se dispa de suas couraças e volte a acreditar em seus bons
sentimentos. Em um dos descaminhos da viagem, Dora e Josué ficam sem dinheiro. Josué
faz com que ela use de seu ofício de escrever cartas para que eles possam conseguir
dinheiro. Dora consegue, mas desta vez envia pelo correio todas as cartas escritas. A
volta de Dora ao seu trabalho de escrever cartas é a solução dos conflitos da segunda
seção da história e o “ponto de virada” que conduz à conclusão.
Com o dinheiro ganho, Dora e Josué seguem a viagem em busca do pai do
menino. Depois de algumas dificuldades, conseguem encontrar Isaías e Moisés, os dois
irmãos mais velhos de Josué, e a história flui em direção ao seu final. Dora e Josué vão à
casa dos irmãos do garoto e Isaías os informa que o pai desparecera há alguns meses e
que a última notícia que haviam recebido dele fora uma carta que ainda não haviam lido,
pois eram analfabetos. Dora “lê” a carta para os três irmãos “dourando a pílula”, ou seja,
fazendo-os acreditar que o pai havia ido procurar Ana e Josué no Rio de Janeiro, que
pretendia voltar em breve e que queria muito conhecer o filho. De madrugada, enquanto
os irmãos dormem, Dora sai sorrateiramente, dirige-se à improvisada estação rodoviária
do lugarejo, entra em um ônibus e parte de volta ao Rio de Janeiro, deixando Josué aos
cuidados de Moisés e Isaías.
1
8 violinos, 2 violas, 2 violoncelos, contrabaixo, violão, viola de dez cordas, percussão e rabeca.
117
b) Tema II
1 - Motivo do piano/violoncelo.
2 - Melodia.
c) Tema III
119
3.3.3.2 - Mapa geral das funções da música extradiegética em Central do Brasil. (Tabela
III)
120
3 0:08:33 - Breve transição entre a cena - Volta Tema II. Um pequeno - Transição ⇒ continuidade.
de Dora e Irene fazendo em fragmento da intervenção
casa a “triagem” das cartas anterior. - Recapitulação do Tema II
(noite) e a segunda cena de Ana ⇒ unidade.
e Josué na Central do Brasil
(planos da estação ao
amanhecer, e de Dora
atendendo os primeiros clientes
0:09:10 do dia) - Música sai em fade out - Edição de continuidade
- Ana e Josué são atendidos por ⇒ Inaudibilidade.
Dora
4 Seqüência do atropelamento de
Ana.
0:11:26 - Ana paga a Dora pelo serviço - Entra música em piano e - Paralelismo música-imagem.
prestado; cordas. Material temático (dissonâncias - tensão pré-
- sai da estação; derivado do Tema II. Centro acidente)
- quando Dora e Josué tonal em Lá menor, notas - Unidade (variação do material
atravessam a rua em frente à longas, dissonâncias, pouca temático)
estação, um transeunte esbarra atividade rítmica.
acidentalmente no braço de
Josué e faz cair o pião que o
menino carregava. Josué volta
no meio da travessia para pegar
o pião.
0:12:01 - Dora para no meio da rua para
repreender Josué, se distrai e é - Frase ascendente nas cordas - Função narrativa conotativa.
atropelada por um caminhão. em crescendo acompanha a Frase ascendente “ilustra” a
aproximação do caminhão que aproximação do caminhão.
0:12:46 - Josué desesperado; populares atropela Ana;
seguram o menino; Dora e o - Música vai saindo em fade - Inaudibilidade.
policial “xerife da estação” out.
comentam com indiferença o
episódio.
122
16 0:49:50 - Dora e Josué conseguem - Volta Tema II. Melodia na - Função narrativa referencial:
carona com um caminhoneiro e rabeca. Mesmo tratamento da representação de lugar (rabeca).
seguem viagem. Plano geral do primeira exposição. - Função narrativa conotativa:
caminhão seguindo pela movimento do ônibus.
0:50:08 estrada. - Música sai em fade out. - Inaudibilidade
17 0:55:00 Dora, Josué e o caminhoneiro Volta Tema II. Mesmo Recapitulação ⇒ unidade.
seguem viagem após uma tratamento anterior.
pequena parada em um posto
da estrada.
0:55:24 - Música sai em fade out. - Inaudibilidade.
18 0:55:57 - Planos de caminhão seguindo Volta Tema II., agora Variação do material temático.
viagem na estrada. Anoitece. introduzido e acompanhado pela ⇒ Unidade.
Os viajantes param para viola de dez cordas e na
descansar. tonalidade de Fás menor;
0:56:27 - Final conclusivo na tônica. - Música conclui junto com a
cena -⇒ Inaudibilidade.
19 0:57:48 Manhã seguinte. Dora, Josué e - Volta Tema II. com o mesmo Paralelismo, unidade,
o caminhoneiro seguem tratamento da primeira representação de movimento e
viagem. Plano geral do ônibus exposição; inaudibilidade.
0:58:04 na paisagem do interior do
Nordeste. Música sai em fade out.
20 Durante a parada em um bar da
estrada, enquanto bebem
cerveja sentados em uma mesa,
Dora insinua a possibilidade de
uma relação amorosa com o
caminhoneiro. Enquanto vai ao
banheiro passar batons nos
1:01:34 lábios, o caminhoneiro vai - Entra valsa (3/4) em Fá# - Variação de material temático.
embora deixando Dora e Josué. menor com melodia arpejada ⇒ continuidade.
- Primeiro plano de Dora derivada do Tema III.
observando a partida do
caminhão através de uma janela
do bar.
- Plano conjunto de Dora e - Música vai saindo em fade out. - Inaudibilidade
Josué conversando sentados em
um meio fio.
21 Após conseguirem carona num
caminhão que leva romeiros
para a festa que acontece na
cidade, Dora e Josué chegam a
Bom Jesus do Norte.
1:03:56 - Vários planos de Dora e Josué - Volta Tema III com melodia - Recapitulação ⇒ Unidade.
caminhando pelas ruas da na Rabeca. Mesmo tratamento - Representação de movimento:
cidade. A cidade se prepara da primeira exposição. Dora e Josué entrando na
para receber os romeiros. cidade.
1:05:56 - Início do diálogo entre Dora e
Josué. - Música sai em fade out.
- Inaudibilidade.
127
22 1:06:14 - Dora e Josué se aproximam da - Entra segunda parte do Tema - Recapitulação ⇒ unidade.
porteira do sítio onde supõem III nas cordas, agora com centro
viver Jesus. tonal em Dó. Nota Dó
sustentada em tremolo nos
- Plano geral de Josué correndo violinos. - Variação de material temático
pelo caminho que leva à casa- - Entra viola de dez cordas ⇒unidade.
sede da pequena propriedade; fazendo variações em modo - Representação de movimento:
dórico da melodia da primeira a corrida de Josué.
parte do Tema III. Andamento - Paralelismo música-narrativa:
mais enérgico. À medida em que música acompanha o fluxo
Josué se aproxima da casa, as dramático da narrativa.
cordas do acompanhamento
1:07:01 - Josué chega perto do curral do ascendem para região mais
sítio e vê um menino mais ou aguda, crescem em volume e
menos da sua idade. Os dois se densidade, e vão passando a
encaram; ocupar o primeiro plano na
1:07:12 - O menino chama pela mãe mixagem..
avisando que tem gente - Fluxo musical estaciona em
chegando. um acorde de dominante.
1:07:28 - Dora conversa com a dona da - inaudibilidade.
casa, e diz que quer falar com o - Música prossegue. Volta a
marido dela. segunda parte do Tema III e vai
saindo em fade out.
23 1:10:28 - Reação de Josué ao saber que - Volta a mesma rabeca solo - Função narrativa referencial
o dono da casa não é Jesus, seu utilizada na cena em que Dora
pai. O dono da casa diz que está desolada após perder o
Jesus vendeu a casa para ele e ônibus e o dinheiro.
agora vive em um lugarejo
próximo chamado Vila do João.
24 Seqüência do desmaio de Dora. - Significante de emoção ⇒
Noite. Festa religiosa na cidade. Música como representação do
Dora diz a Josué que ele é um irracional (a progressão do mal-
castigo na vida dela. Josué foge estar de Dora.) - Paralelismo.
no meio da multidão de
romeiros. Dora vai atrás de
Josué.
- À procura de Josué, Dora - Notas longas e dissonantes nas
entra numa casa de ex-votos. cordas, fundidas aos cânticos e
Sente-se mal (câmera gira preces dos romeiros,
velozmente); acompanham a progressão do
mal-estar de Dora.
- e desmaia. O desmaio é precedido por uma - Função narrativa conotativa⇒
série de glissandos ascendentes. glissandos acompanham o
movimento da câmera e o
desmaio de Dora.
- Josué entra em cena e abaixa- - Música sai em fusão com o - Inaudibilidade.
se olhando o rosto de Dora. espoucar dos fogos de artifício
queimados em louvor a Bom
Jesus.
128
25 1:15:40 Manhã seguinte ao desmaio de - Melodia arpejada no modo - Variação de material temático
Dora. mixolídio na viola de dez ⇒ unidade.
- Alguns planos de Dora cordas. Ritmo rubato. Cordas
dormindo com a cabeça no colo acompanham com notas longas.
de Josué, que está sentado em Material temático derivado do
uma calçada. Tema III.
1:16:22 - Final conclusivo da música na - Música conclui junto com a
fundamental do modo. cena -⇒ Inaudibilidade.
26 Dora volta a escrever cartas
para ganhar o dinheiro que
precisa para ir com Josué para a
Vila do João tentar encontrar - Volta Tema I em piano solo. O - Recapitulação ⇒ unidade.
Jesus. mesmo tratamento da abertura - Função narrativa referencial.
- Vários planos de Josué do filme. Tema I marca o segundo “ponto
apregoando o serviço que Dora de virada” da história.
está oferecendo e de Dora
escrevendo. - Música sai em fade out. - Inaudibilidade.
- Primeiro plano de Dora
1:19:46 escrevendo carta ditada por
uma de suas novas clientes.
27 1:20:12 - Noite em Bom Jesus, cidade - Volta Tema I, idêntico. Recapitulação ⇒ unidade.
ainda em festa. Planos de Dora
e Josué contentes se divertindo
e tirando fotos. Josué compra
um vestido para Dora.
1:21:08 - Elipse. Dora e Josué entram - Continuidade.
em um hotel para dormir. - Música vai saindo em fade out. - Inaudibilidade
28 1:22:48 Manhã do dia seguinte. Dora e - Viola solo com o mesmo - Variação de material temático
Josué aguardam sentados em motivo rítmico do Tema I, agora ⇒ unidade.
um banco a partida do ônibus em modo dórico com
que os levará à Vila do João. fundamental em Ré.
- Dora levanta-se e caminha até
um posto de correio para enviar
as cartas dos clientes.
- Final suspensivo em acorde - Música conclui junto com a
com raiz no quarto grau da cena. ⇒ Inaudibilidade.
escala.
129
29 1:23:25 Partida do ônibus para Bom - Volta Tema I. Piano e Cordas. Recapitulação e variação de
Jesus. material temático ⇒ unidade.
- Travelling da paisagem
observada do ponto de vista de
um passageiro à janela do
ônibus. Planos de Dora e Josué
sentados nas poltronas.
- Ônibus chega à Vila do João.
Dora e Josué desembarcam.
- Dora pede ao dono de uma - Decresce durante o diálogo. ⇒ Inaudibilidade (subordinação
birosca que funciona como às vozes)
ponto final do ônibus.
informações sobre a casa que
procura. O dono da birosca não
sabe onde fica, mas diz que o
rapaz que está consertando o
telhado da casa vizinha à
birosca pode saber.
1:24:10 - Plano médio do rapaz, dando
as informações.
- Após as falas do rapaz e dos - Fim da intervenção musical: Função narrativa referencial
agradecimentos de Dora, crescendo em uma fermata ⇒ crescendo nas cordas
câmera vai se afastando sobre o acorde de Lá menor enfatizando a importância
lentamente da imagem do (tônica) com nona. Dissonância dramática do personagem.
rapaz, que o espectador fica branda.
sabendo mais tarde ser Isaías, o - Música conclui junto com a
irmão mais velho de Josué. cena ⇒ Inaudibilidade.
30 1:27:46 Dora e Josué caminham pela - Volta segunda parte do Tema Recapitulação ⇒ unidade.
rua principal da Vila do João. III, somente nas cordas.
No endereço que procuravam
ficaram sabendo que Jesus
havia vendido a casa e “sumido
no mundo”.
- Diálogo entre Dora e Josué.
1:28:20 Ela convence o menino a - Música vai saindo em fade out. - Inaudibilidade (subordinação
desistir da busca pelo pai e às vozes)
voltar para o Rio de Janeiro
com ela.
- Elipse. Perto do ponto final do
ônibus, Dora conversa com
Irene no telefone.
130
1
Ver capítulo I, p. 16.
2
As saídas abruptas de música recorrentes em O Quatrilho não podem ser consideradas exemplos
de fragmentação pois no contexto narrativo em que ocorrem, como foi visto anteriormente, soam
totalmente desprovidas de qualquer intenção estética.
133
CONCLUSÕES
1
As saídas abruptas de música recorrentes em O Quatrilho não podem ser consideradas exemplos
de fragmentação pois no contexto narrativo em que ocorrem, como foi visto anteriormente, soam
totalmente desprovidas de qualquer intenção estética.
137
passado, não há, é claro, espaço na trilha sonora para elementos musicais de caráter
“brasileiro” com função narrativa referencial; mas também neste filme pode-se falar em
uma certa “brasilidade”, que emerge das tintas jobinianas da música de Jaques
Morelenbaum e da voz “familiar” de Caetano Veloso na trilha sonora.
Mesmo em termos de material composicional, entretanto, o que predomina nas
trilhas sonoras dos três filmes é um tipo de música extradiegética que poderíamos
classificar como pertencente a um repertório “internacional” de música para cinema. No
caso de O Quatrilho e Central do Brasil, estruturas musicais derivadas do repertório
clássico-romântico constituem o material dominante. Já em O Que É Isso Companheiro?,
o material composicional utilizado por Stewart Copeland, de caráter modal e não-
melódico, remete aos clichês utilizados nos filmes dos gêneros suspense e ação,
produzidos pela atual indústria de Hollywood.
É possível afirmar, ainda, que a música extradiegética dos três filmes investigados
é composta, editada e mixada segundo procedimentos muito semelhantes aos adotados
nos filmes da Cinédia, Atlântida e Vera Cruz, apontados como exemplos no segundo
capítulo. Essa semelhança é mais nítida em O Quatrilho e Central do Brasil, onde a
música extradiegética tem o mesmo caráter cantabile e “romântico”, ou seja, o mesmo
que se ouve nas trilhas sonoras de filmes como Floradas na Serra, Ganga Bruta, O Ébrio
e Nem Sansão nem Dalila. É importante observar também que, assim como ocorre nos
filmes das três companhias cinematográficas que dominaram a “cena” brasileira nos anos
30, 40 e 50, a música extradiegética dos filmes brasileiros indicados ao prêmio Oscar nos
anos 90 forma corpos estéticos homogêneos, que, portanto, diferem, de modo radical, dos
mosaicos musicais multi-referentes, observados nos filmes do Cinema Novo e do Cinema
Marginal.
Embora a questão central deste trabalho restrinja-se às funções da música
extradiegética no cinema comercial brasileiro contemporâneo, um aspecto extremamente
relevante emerge das observações realizadas. As fichas técnicas consultadas, assim como
os filmes aqui abordados, refletem uma característica que, talvez, possa ser considerada
como um certo modo de fazer “brasileiro”: a presença marcante da canção popular, nos
planos diegético e extradiegético, dividindo espaço com a música instrumental
extradiegética na trilha sonora.
138
1
O Ébrio, Ganga Bruta, Carnaval Atlântida, Nem Sansão nem Dalila, Matar ou Correr, Caiçara,
Vidas Secas, O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, O Bandido da Luz Vermelha, Matou a
Família e Foi ao Cinema, O Anjo Nasceu, O Quatrilho, O Que É Isso Companheiro? e Central do Brasil.
139
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140
1
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