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UNIVERSIDADE DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE LETRAS E ARTES


MESTRADO EM MÚSICA

A MÚSICA EXTRADIEGÉTICA NO CINEMA COMERCIAL BRASILEIRO


CONTEMPORÂNEO. UM ESTUDO SOBRE AS FUNÇÕES DA MÚSICA NOS
FILMES BRASILEIROS INDICADOS AO OSCAR NOS ANOS 90.

GUILHERME MAIA

RIO DE JANEIRO, 2002


A MÚSICA EXTRADIEGÉTICA NO CINEMA COMERCIAL BRASILEIRO

CONTEMPORÂNEO. UM ESTUDO SOBRE AS FUNÇÕES DA MÚSICA NOS

FILMES BRASILEIROS INDICADOS AO OSCAR NOS ANOS 90.

Por

GUILHERME MAIA

Dissertação submetida ao Programa de Pós-


Graduação em Música doCentro de Letras e
Artes da Universidade do Rio de Janeiro
(UNI-RIO), como requisito parcial para a
obtenção do grau de Mestre sob a orientação
do Professor Doutor. Paulo Pinheiro.

Rio de Janeiro, 2002


RESUMO

Esta dissertação tem como objeto central as funções da música extradiegética no


cinema brasileiro comercial contemporâneo. No primeiro capítulo são abordados estudos
de alguns autores sobre as funções da música no cinema. As estratégias de uso de música
no cinema clássico hollywoodiano, a partir do estudo realizado por Claudia Gorbman no
livro Unheard Melodies (1987), constituem o paradigma principal desta investigação.
Para a autora, o modo de fazer música, no contexto do cinema clássico, é dominante no
cinema desde a gênese do filme sonoro e tem forte influência no cinema comercial
contemporâneo de vários países.
Com o objetivo de iluminar por outros ângulos o tema central desta pesquisa, foi
considerado relevante levar em conta alguns aspectos das perspectivas práticas e teóricas
de pesquisadores, cineastas e compositores como Michel Chion, Sergei Eisenstein, Philip
Tagg e Adorno & Eisler. As abordagens destes autores complementam o enfoque de
Gorbman e discutem algumas propostas anti-hollywoodianas de uso de música no
cinema.
No segundo capítulo são apontados exemplos de estratégias clássicas em filmes
das companhias cinematográficas Cinédia, Atlântida e Vera Cruz, e de procedimentos
heterodoxos em filmes dos movimentos conhecidos como Cinema Novo e Cinema
Marginal. No terceiro e último capítulo o foco dirige-se ao cinema brasileiro comercial
contemporâneo e é realizado um estudo comparativo entre as funções da música
extradiegética nos filmes O Quatrilho, O Que É Isso Companheiro? e Central do Brasil.
ABSTRACT
A Leonardo Dourado Jesus e
Victor Augusto Sydenstricker Jesus,
pelo futuro.
AGRADECIMENTOS

A CAPES, pelo apoio concedido em forma de bolsa.

Ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Música da UNI-RIO.

A Glória Stella Beatriz Demétrio Sydenstricker, pelo constante incentivo e apoio.

Ao professor Paulo Pinheiro, pela diligente e generosa orientação.

A Iara, pela parceria nas aventuras.

A Mário e Lívia, meus pais.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................ 1

CAPÍTULO 1 — Funções da Música de Cinema ........................................................................ 10


1.1 Funções da música no cinema clássico ................................................................................... 10
1.2 Funções da música no cinema, segundo Philip Tagg ............................................................. 28
1.3 O Manifesto de Eisenstein, a crítica de Adorno & Eisler e a visão de Michel Chion ............ 34

CAPÍTULO 2 — Estratégias clássicas e práticas heterodoxas no cinema brasileiro ................... 50


2.1 Cinédia, Atlântida e Vera Cruz: apostas em um cinema brasileiro de modelo
industrial ....................................................................................................................................... 51
2.2 A música extradiegética na Cinédia, na Atlântida e na Vera Cruz: exemplos da
influência do modelo clássico ....................................................................................................... 53
2.3 Cinema Novo e Cinema Marginal: a desconstrução do modelo hollywoodiano .................... 62
2.4 A música no Cinema Novo e no Cinema Marginal: exemplos de disjunção,
descontinuidade e fragmentação ................................................................................................... 69

CAPÍTULO 3 — Estratégias A música extradiegética em O Quatrilho, O Que É Isso


Companheiro? e Central do Brasil ............................................................................................... 81
3.1 O Quatrilho ............................................................................................................................. 83
3.2 O Que É Isso Companheiro? .................................................................................................. 98
3.3 Central do Brasil..................................................................................................................... 114

CONCLUSÕES ............................................................................................................................ 136


BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................................... 141
1

INTRODUÇÃO

Quando um arquiteto olha para uma casa, flagra detalhes, proporções, valores ou
imperfeições que, em geral, não são percebidos por uma pessoa não iniciada nos segredos
da arquitetura. Na mesma taça de vinho da qual, distraidamente, sorvemos um gole com
intenção de tornar a conversação mais fluente em uma festa, o paladar e o olfato apurados
de um enólogo profissional podem ser capazes de sentir o sabor da terra que gerou a uva
utilizada na fabricação da bebida. Pequenos sinais sonoros, “normais” para a grande
maioria dos homens, para um médico que os ausculta com um estetoscópio podem
significar vida ou morte.
Nossos sentidos, quando treinados pelo estudo e/ou pela prática, nos tornam, de
certa forma, pessoas “diferentes” para as quais uma complexa cadeia semântica é
deflagrada a partir de sinais que, muitas vezes, pouco significam para outras pessoas. Um
músico profissional, quando entra em uma sala de cinema para assistir a um longa-
metragem de ficção, é um espectador diferenciado que perceberá a música do filme de
um “ponto de escuta” peculiar. Enquanto o espectador “comum” de cinema, de uma
maneira geral, está concentrado na história que está sendo contada, o profissional de
música provavelmente terá parte significativa de sua atenção requisitada por aspectos
técnicos e estéticos da música que emana das caixas de som da sala de projeção.
É a partir desse “ponto de escuta” singular de músico-espectador que a música do
cinema brasileiro contemporâneo será examinada neste trabalho. Quando assisto a um
filme de ficção, enquanto acompanho a fruição da narrativa, minha audição adestrada
inexoravelmente analisa, compara, questiona. Por que aquele acorde de dominante
naquele lugar e não um acorde de outra função harmônica? Por que o compositor e o
diretor optaram por aquela música e não por alguma outra? Por que aquela música
começa ou termina exatamente ali naquele ponto exato? Se, por um lado, esse processo
analítico compulsório absorve minha atenção a ponto de fazer com que detalhes
importantes dos diálogos e das imagens sejam às vezes “perdidos”, por outro, tem
suscitado questões que me levaram a conceber e a realizar este trabalho de pesquisa.
Espectador razoavelmente assíduo de cinema, em especial do cinema nacional, há
tempos vinha experimentando empiricamente a sensação de que há, em alguns filmes
2

comercias brasileiros contemporâneos, um modo de fazer que se assemelha às estratégias


de uso de música adotadas pela indústria cinematográfica dominante no mercado, o
chamado “cinemão” de Hollywood. Existem, de fato, influências hollywoodianas na
música do cinema brasileiro comercial contemporâneo? Ou será que podemos falar em
um modo brasileiro de fazer música para cinema?
Organizar uma metodologia de trabalho que me ajudasse a obter respostas para
essas perguntas foi, sem dúvida, um grande desafio que começou com o “recorte” dos
conceitos e objetos principais a serem trabalhados no âmbito deste estudo sobre a música
extradiegética no cinema brasileiro comercial contemporâneo. Inicialmente, três questões
merecem ser consideradas: o que é música extradiegética? O que é cinema comercial?
Que filmes podem representar o cinema brasileiro comercial contemporâneo?
Para abordar o conceito de música extradiegética é importante, em primeiro lugar,
recorrer ao verbete Música incidental do New Grove Dictionary of Music and Musicians
segundo o qual a música tem ligações antigas e estreitas com a representação dramática:

A música tem estado intimamente ligada ao teatro desde que o teatro


começou. Músicas de dança e canções têm desempenhado um papel
importante em grande parte do teatro popular. As formas clássicas do teatro
asiático da Índia ao Japão apóiam-se intensamente na música assim como
os rituais dramáticos da África sub-saariana e dos povos indígenas das
Américas. 1

Segundo o Grove, em alguns gêneros ocidentais de representação dramática


(dramas litúrgicos medievais, ballet clássico, pantomina do século XIX, alguns tipos de
ópera) a música é praticamente um contínuo e está presente, com pequenas interrupções,
durante todo o tempo de encenação. Em outros gêneros, (zarzuela, semi-ópera,
vaudeville do século XVIII, ópera cômica), longas intervenções musicais gozam de

1
Music has been closely linked with theatre since theatre began. Dance music and song have
played important roles in much folk drama. The classic forms of Asian theatre from India to Japan rely
heavily on music, as do the dramatic rituals of sub-Saharan Africa and of the indigenous peoples of the
Americas. (Sadie, S., New Grove Dictionary of Music and Musicians, London: Macmilan Publishers,
1980, vol. 9, p. 58)
3

importância equivalente aos diálogos falados. Já nos gêneros ocidentais de drama com
forte ênfase nos diálogos falados – peças teatrais 1 - a música aparece com bastante
freqüência entre as falas dos atores e, em alguns momentos, durante os diálogos falados.
Ainda de acordo com o mesmo dicionário, não existe um único termo que possa designar
todos os tipos de drama onde os diálogos falados predominam, mas a música que é
empregada nesse contexto tornou-se conhecida em várias línguas européias como
musique de scéne (Fr), bühenmusik (Al), musica di scena (It.), e, em inglês, como
incidental music 2, expressão que torna-se corrente a partir de meados do século XIX,
provavelmente derivada da correlata alemã inzidenzmusik, uma categoria de música de
teatro. 3
Percebe-se, portanto, na definição de música incidental uma classificação que
leva em conta uma ordem hierárquica entre os elementos do espetáculo. Somente em um
contexto cômico, ou de ousada vanguarda, podemos, por exemplo, imaginar uma Ópera
sem música. Aberturas, árias, recitativos, interlúdios instrumentais, constituem a própria
essência do gênero; são pilares de um arcabouço estético. A música, nesse caso, é
estrutural. O espetáculo não existe sem música. Segundo o Grove, a música é incidental
quando os diálogos falados ocupam uma posição hierarquicamente dominante em
relação à música. A expressão música incidental, em sua origem, portanto, refere-se a
uma música que, embora seja amplamente utilizada, é, de certa forma, prescindível, ou
seja, o espetáculo pode “ficar de pé” sem ela. Neste caso, os diálogos e a encenação são
os principais suportes dramatúrgicos do espetáculo.
No domínio da teoria contemporânea de música para cinema, a expressão música
incidental, que foi adotada por muito tempo com o mesmo sentido tomado por
empréstimo do teatro, vem sistematicamente sendo substituída pelo termo música
extradiegética. Centrados não em uma ordem hierárquica, mas sim no “ponto de
emissão” da música em relação ao universo ficcional, autores como Nicholas Cook e
Claudia Gorbman consideram que a música para cinema é diegética quando a fonte
sonora está presente, de maneira explícita ou implícita, na diegesis, ou seja, no universo

1
Plays, no original
2
Segundo o Grove, o termo incidental deve ser entendido não com o sentido trivial de “fortuito”,
“ casual”, mas sim com o significado de “incorrer na execução de” (um plano ou projeto).
3
Ibid., p. 58-62.
4

ficcional representado pelas imagens. Música diegética seria, portanto, o mesmo que
autores como Philip Tagg e George Burt chamam de source music. Segundo Tagg 1, uma
banda que cruza a cena tocando uma marcha, um conjunto em performance numa casa
noturna, a mãe cantando uma canção de ninar para o filho, são exemplos de source
music. Para Burt, a source music (ou música diegética) pode ser introduzida em uma cena
visualmente ou por referência. Quando, por exemplo, um personagem toca um
instrumento, canta ou assobia em cena, o espectador vê e escuta a performance. Nesse
caso, a fonte sonora está visualmente representada de modo explícito. Já em uma cena
que se passa no saguão de um aeroporto onde se ouve música ambiente, o espectador não
vê a fonte sonora, mas sabe, por referência, que em algum lugar fora da tela, mas dentro
do universo ficcional, existe um aparelho de som onde aquela música está sendo tocada.
Nos dois casos, a música é “possível” dentro da cena visualizada pelo espectador 2. Já a
música extradiegética é aquela cuja fonte sonora não se encontra, de modo algum,
representada no mundo ficcional descrito pelas imagens, ou seja, é uma música que vem
de fora da diegesis, que emerge de um mundo paralelo que as platéias se acostumaram,
através dos tempos, a aceitar como parte de um sistema polissêmico complexo chamado
cinema.
Na epígrafe de um dos capítulos do livro Composing for the Films 3, Theodore
Adorno e Hans Eisler contam uma história que ilustra de modo bem-humorado o conceito
de música extradiegética:

Hollywood,1943: o filme Lifeboat de Alfred Hitchcock está em produção


nos estúdios da 20th Century-Fox. O compositor da casa descobre um dia
que o diretor havia decidido não usar música no filme. Confuso,
subitamente inseguro e um pouco aborrecido perguntou aos produtores o
porquê de tão incomum mudança de idéia. ‘ Bem’, explicaram, ‘Hitchcock
perguntou: Se toda a ação acontece num barco salva-vidas em alto mar, de

1
Em artigo publicado no site www.theblackbook.net/acad/tagg/teaching/mmi/filmfunx.html. Sem
referência a número de página.
2
Burt, G., The Art of Film Music, Boston: Northeastern University Press., 1994, p. 69-70.
3
Adorno, T. & Eisler, H., Composing for the Films., London: The Athlone Press, 1994.
5

onde viria a música?’. O compositor suspirou, deu um sorriso irônico e


replicou: ‘Peça ao Sr. Hitchcock para explicar de onde vem a câmera e eu
lhe direi de onde a vem música’.

A música extradiegética é aquela que “vem de onde vem a câmera”: dos recursos
da linguagem cinematográfica, da tecnologia, da sala de montagem, da própria essência
do cinema com imagem e som. É a música “não-realista”, operando na representação do
“real”.
Não é pretensão desta dissertação dar conta de todas as possibilidades de uso de
música estradiegética nos muitos gêneros e estilos de cinema que se desenvolveram ao
longo do século XX, mas sim verificar as estratégias adotadas no cinema comercial
brasileiro contemporâneo. Falar em cinema comercial, no entanto, implica em um
problema de ordem epistemológica que, para utilizar uma expressão utilizada pelo
escritor Machado de Assis nos parágrafos finais do romance Quincas Borba, gera
“questões prenhes de questões que nos levariam longe”. O cineasta François Truffaut,
por exemplo, afirma no livro Os Filmes de Minha Vida que, comerciais ou não, todos os
filmes são comercializáveis, ou seja, constituem objeto de compra e venda e que vê
diferenças apenas de grau, e não de natureza, entre filmes como Cantando na Chuva
(Singin’ in the Rain, Stanley Donen & Gene Kelly, 1952) e Ordet (Carl Dreyer 1, 1955),
declarando admirar igualmente os dois 2. Embora este estudo não pretenda aprofundar a
discussão sobre a dicotomia cinema comercial x cinema não-comercial, faz-se
imperativo esclarecer o recorte utilizado para dar contornos ao objeto investigado. Para
tal fim, adotou-se, como referência, o pensamento do cineasta Glauber Rocha para quem
“a história do cinema, modernamente, tem de ser vista, de Lumière a Jean Rouche, como
‘cinema comercial’ e ‘cinema de autor’.” 3 Para Glauber, o cinema comercial tem como

1
O diretor dinamarquês Carl Theodor Dreyer (1889-1968), cujos filmes fizeram muito mais
sucesso de crítica do que de público, exerceu forte influência sobre diretores como o sueco Ingmar
Bergman e o francês Robert Bresson. Sua obra cinematográfica freqüentemente explora personagens
atormentados por culpas psicológicas e questões metafísicas. O filme Ordet faz uma reflexão profunda
sobre religião e fé. (Sandra Brennan & Hal Erickson, in All-Movie Guide, www.all-movie.com)
2
Trufaut, F. Os Filmes de Minha Vida., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, p. 16.
3
Rocha, G., Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira,
1963, p. 13. Grifos do autor
6

exemplo mais emblemático o filme narrativo industrial de Hollywood, o chamado filme


de diversão, de entretenimento, onde o sucesso de bilheteria, ou seja, o lucro, tem
prioridade sobre questões estéticas. É o filme de produtor onde o diretor, segundo
Glauber, é apenas um artesão subordinado aos interesses da indústria. No contexto do
cinema nacional, Glauber considera a grande maioria dos filmes produzidos pelas
companhias cinematográficas Cinédia, Atlântida e Vera Cruz como representantes desta
tendência. Já o filme de autor, para Glauber, é o “cinema como conhecimento, e não
como divertimento; cinema como linguagem, e não como espetáculo” 1. Glauber cita
cineastas independentes como o russo Sergei Eisenstein, os franceses Jean-Luc Godard,
François Truffaut e Alain Resnais, os italianos Luchino Visconti e Roberto Rossellini, o
sueco Ingmar Bergman, e o americano Orson Welles, entre outros, como diretores para
os quais a expressão artística e/ou ideológica é mais importante do que o sucesso
comercial do filme. No Brasil, os movimentos chamados Cinema Novo e Cinema
Marginal podem ser considerados bons exemplos de um cinema no qual a questão
autoral tem prioridade em relação a valores de mercado.
Se para alguns, como, por exemplo, o próprio Glauber Rocha, a influência do
cinema industrial de Hollywood no Brasil é um mal a ser combatido 2, para outros o
chamado cinema não-comercial gera produtos voltados para um público elitista que
rejeita categoricamente o filme que tem como objetivo apenas divertir as platéias. Em
mensagem enviada à lista de discussão Cinemabrasil, o assistente de direção do filme
Avassaladoras (Mara Mourão, 2002), Hsu Chien, responde a uma crítica publicada no
jornal Folha de São Paulo, que chamava o filme de comercial, declarando:

Escrevo esta mensagem indignado com a crítica ao filme Avassaladoras. É


para isso que os diretores/produtores se esforçam tanto durante anos para,
com muito sacrifício, levar às telas um filme digno, cuja pretensão maior
talvez seja o de divertir as platéias? É preciso acabar com esse rancor de

1
Ibid., p.45.
2
Glauber Rocha, o mais veemente porta-voz do Cinema Novo, propunha a “desmistificação
estética do cinema americano e respectivos subprodutos” e dizia que a maior parte dos filmes feitos no
Brasil no período anterior ao ciclo cinemanovista era simples entretenimento com objetivos comerciais e
uma estética servil ao modelo hollywoodiano. (1981, p. 67)
7

que filme brasileiro tem que ser intelectualizado, esse estigma de filme
pseudo-europeizado. Vamos abraçar também os filmes populares, pois o
mais importante é levar o público brasileiro de volta às salas onde são
exibidos filmes nacionais. Filme diversão é filme diversão. E filme cabeça é
filme cabeça 1.

Como podemos perceber, a dicotomia que situa em horizontes distintos o cinema


comercial e o não-comercial, sobre a qual escreveu Glauber Rocha nos livros Revisão
Crítica do Cinema Brasileiro (1963) e Revolução do Cinema Novo (1981), permanece
viva no cinema brasileiro contemporâneo. Não cabe aqui fazer juízo de valor acerca de
um ou de outro tipo de cinema, nem tampouco discutir o quanto de autoral pode existir
em um filme diversão, ou de comercial em um filme cabeça, mas tão somente definir o
recorte do objeto que se pretende investigar. Filme comercial, no âmbito deste estudo,
designa o filme alinhado com a indústria do chamado “cinemão”, o longa-metragem de
ficção dominante no mercado que, em geral, conta uma história linear com princípio,
meio e final (feliz, de preferência ou, ao menos, com a resolução dos conflitos básicos da
narrativa). Trata-se de um produto elaborado por meio de um conjunto de técnicas e
práticas que visam causar na audiência uma impressão de realidade, provocando a
identificação projetiva do espectador com os personagens.
Partindo, portanto, desses princípios, os filmes O Quatrilho (Fábio Barreto,
1995), O Que É Isso, Companheiro? (Bruno Barreto, 1997) e Central do Brasil (Walter
Salles, 1998) foram eleitos como representantes do cinema brasileiro comercial
contemporâneo. Estes três filmes podem ser considerados bons exemplos do longa-
metragem de ficção que tem um compromisso maior com a ação, com o “contar uma
história”, do que com discussões de natureza ideológica ou com inovações na linguagem
cinematográfica. Além disso, a indicação destes filmes para o prêmio de Melhor Filme
Estrangeiro 2 na festa mais importante e de maior visibilidade midiática da indústria
cinematográfica mundial - o prêmio Oscar - contribui para referendá-los como objetos
desta pesquisa.

1
Trecho da mensagem transcrito com autorização do remetente.
2
Em 1996,1998, e 1999, respectivamente.
8

Abordados alguns conceitos e recortados os objetos desta pesquisa, uma outra


questão de ordem metodológica se impõe. De que maneira analisar a música de um
filme? Subjacentes às relações particulares entre música e filme narrativo, encontram-se
questões estéticas e funcionais que têm intrigado pesquisadores e críticos durante todo o
século. Que efeito tem o meio cinematográfico na música que para ele se produz? De que
maneira a música interfere na linguagem cinematográfica? O que é, afinal, “boa” música
de cinema?
Em um filme, sons e imagem atuam em sinergia gerando uma terceira entidade
autônoma. Uma vez interrelacionados, todos os elementos que operam na construção do
significado de uma cena – roteiro, fotografia, ângulos e movimentos de câmera,
montagem, diálogos, sons naturais, efeitos sonoros e música - serão percebidos pelo
espectador como um objeto unificado. 1 Michel Chion afirma que a noção de cinema
como a “arte da imagem” é uma ilusão. Para ele, o som e a imagem, no cinema, firmam
um contrato audiovisual onde o que ouvimos interfere na nossa percepção das imagens,
assim como o que vemos modifica a nossa escuta. 2
A música, no cinema, portanto, não é simplesmente um complemento harmonioso
das imagens, mas uma parte inseparável do filme. Assim, o foco prioritário desta
pesquisa se volta para a interação entre a música e a narrativa cinematográfica. Por que
aquela música está ali? Qual a parte que lhe cabe na construção de sentidos daquele
discurso? De que maneira eu, o músico-espectador, percebo esses elementos em
interação? Neste estudo, estas questões têm prioridade em relação a aspectos específicos
da teoria e da análise musical. A função da música no filme, portanto, é a unidade de
análise adotada.
Assim, no primeiro capítulo, serão abordados estudos de alguns autores sobre as
funções da música no cinema. Uma vez que o eixo principal desta investigação é a
música extradiegética no cinema brasileiro comercial contemporâneo, as estratégias de
uso de música no cinema clássico hollywoodiano, a partir do estudo realizado por
Claudia Gorbman no livro Unheard Melodies (1987), receberão atenção especial.

1
Flinn, C., Strains of Utopia: Gender, Nostalgia, and Hollywood Film Music., New Jersey:
Princeton University Press, 1992, p. 46.
2
Chion, M., Audio-vision. Sound on Screen, Nova Iorque: Columbia University Press, 1990, p.
524.
9

Gorbman situa sua investigação no contexto do modelo clássico da narrativa


cinematográfica por considerar que os códigos cinemáticos dessa corrente principal do
cinema guardam estreita relação com as estruturas musicais operantes nesse contexto.
Para a autora, o modo de fazer clássico é dominante no cinema desde a gênese do cinema
sonoro, e tem forte influência no cinema comercial contemporâneo de vários países.
Para que se possa compreender amplamente o tema central desta pesquisa, serão
também levados em conta alguns aspectos das perspectivas práticas e teóricas de
pesquisadores, cineastas e compositores como Philip Tagg, Sergei Eisenstein, Adorno &
Eisler e Michel Chion, que serão utilizados tanto para complementar o enfoque de
Gorbman quanto para abordar algumas propostas anti-hollywoodianas de uso de música
no cinema.
Com base nessas discussões sobre as funções da música na narrativa
cinematográfica, o segundo capítulo volta-se para o cinema brasileiro em busca de
exemplos de modo de fazer música para cinema. O objetivo desta “coleta de exemplos” é
apontar, em outros contextos estético-históricos, referências práticas de interação música-
narrativa, com o propósito de dinamizar o arsenal teórico reunido no capítulo I e de
enriquecer a audio-visão dos filmes-objeto analisados no capítulo 3. De filmes das
companhias cinematográficas Cinédia, Atlântida e Vera Cruz serão extraídos exemplos
do modelo clássico descrito por Gorbman. Já as propostas fundamentalmente anti-
hollywoodianas serão exemplificadas no contexto do Cinema Novo e do Cinema
Marginal. No terceiro e último capítulo desta dissertação, o foco dirigir-se-á ao cinema
brasileiro comercial contemporâneo e será realizado um estudo comparativo entre as
funções da música nos filmes O Quatrilho, O Que é Isso Companheiro? e Central do
Brasil.
10

CAPÍTULO 1 - FUNÇÕES DA MÚSICA NO CINEMA

1.1 – Funções da música no cinema clássico.


Na virada dos anos 30/40, um “modo” de fazer cinema e música para cinema se
estabelece em Hollywood não como um paradigma monolítico de regras invioláveis, mas
como um discurso narrativo nítido resultante da conjuntura de fatores artísticos,
econômicos, ideológicos e técnicos. O longa-metragem hollywoodiano de ficção,
produzido nesse período, tornou-se conhecido como cinema clássico.
No livro Unheard Melodies 1, Claudia Gorbman faz uma análise abrangente das
funções da música no cinema clássico utilizando, como modelo, a música para cinema de
Max Steiner (1888-1971). A autora justifica essa escolha pelo volume da obra desse
compositor e pela influência que exerceu em Hollywood. Nascido na Áustria, com
sólida formação musical dentro das tradições da ópera e da música sinfônica, Steiner
participou, como compositor e diretor musical, de mais de trezentas produções
cinematográficas. Suas composições para filmes como Gone With The Wind ( E o Vento
Levou, Victor Fleming, 1939), Mildred Pierce (Alma em Suplício, Michael Kurtis, 1945)
e King Kong (King Kong, Merian C. Cooper, 1933) formam um corpo estilístico
homogêneo que contribuiu, de maneira decisiva, para o estabelecimento das estratégias
de uso de música no cinema clássico.
Mas o que é exatamente e como funciona esse discurso cinematográfico clássico?
Segundo Gorbman não é possível identificar o protótipo do filme clássico, pois na
realidade nenhum modelo textual existe, mas sim uma série de convenções cuja
combinação e re-combinação constituem um campo discursivo facilmente reconhecível.
Mesmo levando em conta a grande diversidade de gêneros e estilos autorais e de estúdio,
há, segundo a autora, alguma coisa identificável como cinema clássico hollywoodiano,
um modelo implícito que determina a duração de um filme, as possibilidades da estrutura
narrativa e a organização de dimensões espaço-temporais via encenação, montagem 2 e
gravação e mixagem do som.

1
Gorbman, C., Unheard Melodies, London: BFI Publishing, 1987.
2
A montagem é o elemento mais específico da linguagem cinematográfica, o próprio fundamento
estético do filme. Segundo Gérard Betton, a montagem preside a organização do real e faz malabarismos
como o tempo, o espaço, cenários e personagens, visando satisfazer simultaneamente a inteligência e a
11

Para descrever o modelo clássico, Gorbman cita os teóricos franceses André


Bazin e Christian Metz. Bazin, no ensaio "A evolução da linguagem cinematográfica”,
localiza, no final dos anos trinta, um marco importante do cinema clássico:

Por volta de 1938 ou 1939 o filme falado, principalmente na França e nos


Estados Unidos, atingiu um nível de perfeição clássica como resultado, por
um lado, do amadurecimento dos diversos tipos de teatro desenvolvidos em
parte nos dez anos anteriores e em parte herdados do filme mudo, e, por
outro, da estabilização do progresso técnico. 1

Para Bazin, gêneros e técnicas narrativas alcançaram uma nova estabilidade uma
década após a chegada do som no cinema, e ele se refere ao final dos anos 30 como um
momento de “perfeição clássica”. Mas o que caracteriza o modelo clássico do discurso
cinematográfico? Segundo Bazin, a narrativa clássica pressupõe um espaço cênico
unificado e representa este espaço através do estabelecimento de planos e cortes
subsequentes. A inteligibilidade espacial deve ser salvaguardada e o corte deve ser
motivado pela lógica dramática e/ou psicológica, atendendo às necessidades do
espectador de assistir a detalhes de importância narrativa.
Bazin situa o espectador como um sujeito autônomo que “quer” ver detalhes
importantes dramaturgicamente, e cuja demanda o cinema satisfaz através de estratégias

sensibilidade, provocando a emoção artística e o efeito dramático ou onírico. Baseado em estudos de


cineastas e teóricos como Eisenstein, Pudovkin, Balazs e Arnheim, entre outros, Betton classifica os tipos
de montagem em três categorias principais: montagem rítmica, narrativa, e intelectual ou ideológica. A
montagem rítmica é o procedimento que determina a organização dos planos no tempo. Uma rápida
sucessão de planos curtos traduz, em princípio, aumento da intensidade dramática, enquanto planos
longos provocam normalmente uma impressão de monotonia, languidez, relaxamento. É do ritmo da
montagem que a obra cinematográfica extrai sua ordem, seu equilíbrio dramatúrgico e sua proporção. A
montagem intelectual ou ideológica consiste em justapor planos com o objetivo de comunicar um ponto de
vista ou um conteúdo ideológico ao espectador. Esse procedimento foi concebido e adotado pelo cinema
soviético de Eisenstein e Pudovkin. Já a montagem narrativa, é a mais comum no cinema. É a técnica e a
arte de reunir em sucessão diversos fragmentos de “realidade” com o objetivo de construir a
representação de uma ação como um todo significativo. Dominante no cinema comercial, é o mais
“descritivo” dos tipos de montagem. (Betton, G.,. A Estética do Cinema, São Paulo: Martins Fontes, 1987,
p. 72-82.)
1
By 1938 or 1939 the talking film, particulary in France and in the United States, had reached a
level of classical perfection as a result, on one hand, of the maturing of different kinds of drama developed
in part over the past ten years and in part inherited from the silent film, and, in other, of the stabilization
of thecnical progress. (Gorbman C., op. cit., p. 71)
12

que procuram canalizar seus desejos, provocar uma “impressão de realidade” e propiciar
a identificação imaginária com a história. O filme clássico de Hollywood tem como meta
um discurso invisível que procura ocultar o processo fragmentado da montagem (planos e
cortes subseqüentes) através de estratégias de continuidade. Para Metz, também citado
por Gorbman, a montagem, no contexto clássico, é um procedimento que procura “apagar
suas próprias pegadas”. Sua eficiência como discurso se deve justamente ao fato de
obliterar todos os traços de sua enunciação, favorecendo o estabelecimento do vínculo
catártico do espectador com a história.
Segundo Gorbman, os mesmos princípios que determinam a montagem clássica –
lógica dramática e/ou psicológica - regem a composição, a mixagem e a edição da
música. Para a autora, as estratégias de uso de música extradiegética no cinema clássico
podem ser sintetizadas em seis princípios:

I.- “Inaudibilidade” A música não deve percebida pelo espectador de forma


consciente e está subordinada aos veículos primários na
narrativa (diálogos e imagens).
II - Significante de emoção A música explicita sentimentos e enfatiza emoções
específicas sugeridas na narrativa.
III -.Função narrativa a) Função narrativa referencial: música fornece dicas
referenciais e narrativas indicando pontos de vista,
demarcações formais e estabelecendo ambientes e
personagens.
b) Função narrativa conotativa: música “interpreta” e
“ilustra” eventos narrativos.
IV - Continuidade A música provê o filme de continuidade formal e rítmica
(entre os planos, em transições entre cenas, e
preenchendo “espaços”.
V - Unidade Por meio de repetição e de variação do material
temático a música contribui para a unidade formal da
narrativa.
VI - Flexibilidade A música pode violar qualquer dos princípios acima, se
essa “violação” estiver a serviço de um dos princípios
anteriores.

I -“Inaudibilidade”
Gorbman usa o termo inaudibilidade sempre entre aspas, pois é claro que a
música extradiegética é audível para o público, mas, segundo ela, um conjunto de
13

práticas convencionais evoluiu para que o espectador, em geral, não “focalize” a escuta
na música. De modo análogo à edição de continuidade na trilha de imagem, a música
extradiegética deve procurar manter-se “invisível”, o compositor deve “esconder seus
truques” como um prestidigitador. O objetivo principal da narrativa cinematográfica
clássica é provocar no público uma impressão de realidade e a música extradiegética,
como um um elemento alienígena no espaço cênico “realista” do filme, deve, portanto,
ser empregada com extrema cautela para não perturbar o envolvimento onírico do
espectador com a história. É importante lembrar que o público deslocou-se até a sala de
cinema e pagou ingresso para assistir a um filme, e não a um concerto. Um depoimento
do prestigiado diretor americano Sidney Lumet, em seu livro Fazendo Filmes, revela
como este princípio é adotado até mesmo por ele, um diretor contemporâneo que goza de
relativa independência em relação aos cânones do filme industrial de Hollywood:

Algumas das partituras que já ouvi [de música de filmes] não podem ser
lembradas de modo algum. Estou pensando na magnífica partitura de
Howard Shore para O Silêncio dos Inocentes 1. Quando vi o filme não a ouvi.
Mas a sentia sempre. É o tipo de partitura que tento conseguir na maioria
dos meus filmes. 2

Referindo-se também a essa música “silenciosa” do cinema clássico, Gérard


Betton cita o compositor Maurice Jaubert que no livro La Musique de Film afirma que “a
música nunca deve se esquecer de que, no cinema, seu caráter de fenômeno sonoro
prevalece sobre seus aspectos intelectuais e mesmo metafísicos. Quanto mais ela se
apagar por trás da imagem mais chances terá de abrir novos horizontes para si”. 3
Gorbman descreve algumas práticas decorrentes do princípio da inaudibilidade:
a) no filme clássico, a forma musical está, em geral, subordinada à forma
narrativa. A duração de uma intervenção de música é determinada pela duração da ação
ou seqüência visualmente representada. Gorbman cita o teórico russo Leonid Sabaneev,

1
The Silence of the Lambs, Jonathan Demme, 1981.
2
Lumet, S. , Fazendo Filmes, Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.161
3
Jaubert, M., IN Betton, G., op. cit. 1987, p. 49.
14

que aconselha o compositor a compor música flexível, ou seja, música que possa ser
encurtada ou estendida no caso da cena ser aumentada ou diminuída na edição final e
sugere a construção de pausas e de notas sustentadas, assim como a escrita de frases
curtas para favorecer a edição. Progressões e seqüências harmônicas são convenientes e
mesmo encorajadas. É aconselhável também preparar pequenas peças de música “neutra”
(notas sustentadas em vários instrumentos, rulos em tambores e/ou pratos e acordes de
caráter recitativo) para serem utilizadas em casos de necessidade de encurtamento ou
extensão de cenas na montagem final. Como exemplo da adequação do uso de
progressões harmônicas, Gorbman descreve uma seqüência do filme King Kong onde
Steiner utiliza esse recurso composicional que é um marco de seu estilo durante toda a
carreira:

King Kong é em grande parte construído dessa maneira, especialmente a


sessão central onde Denham, Jack Discroll e outros membros da tripulação,
eles mesmos perseguidos pelos monstros fantásticos da ilha , estão tentando
encontrar Ann e resgatá-la das garras de Kong. Uma progressão seqüencial
– cada re-exposição de um motivo começando um semitom ou uma terça
acima do anterior – cria tensão contínua e incessante e ao mesmo tempo
provou ser adequada ao corte final das imagens. 1

b) Um princípio básico da estética do cinema clássico é a subordinação às vozes.


Segundo este princípio, a música deve ceder espaço aos diálogos 2 e aos sons diegéticos
de importância dramática. Uma bela passagem de violoncelo, mal planejada, pode ser
totalmente obscurecida por uma sirene que o diretor considere mais importante. Sabaneev

1
King Kong is largely constructed in this way, especially the central section where Denham, Jack
Discroll, and other crew members, themselves pursued by the island’s fancifully created monsters, are
attempting to find Ann and rescue from Kong’s clutches. Sequential progression - each restatment of a
motive begining a step or a third higher than the last - build tension incessantly and relentlessly, and at
the same time proved adaptable in fitting with the final cutting of the images. (Gorbman, C. , op. cit., p.
77)
2
Para Michel Chion, a mixagem no cinema adota um procedimento vococêntrico, ou mais
precisamente, verbocêntrico, pois, em geral, privilegia a voz, como meio de expressão verbal, destacando-
a dos outros sons da trilha sonora. Segundo o autor, isso se deve, principalmente a um comportamento
verbocêntrico da escuta humana habitual. Quando num dado ambiente sonoro, ouvimos vozes, essas vozes
15

chega ao radicalismo de recomendar a total eliminação da música nos momentos de


diálogo para garantir a clareza das falas. Durante os anos trinta, foi desenvolvido um
aparelho apelidado de up-and-downer que diminui o volume da música automaticamente
quando o sinal do diálogo entra na trilha. Gorbman cita o engenheiro de som Edward
Kellog que defende o uso do up-and-downer com o argumento de que o sistema simula a
atividade seletiva da audição humana:

Na vida real geralmente podemos tirar vantagem das diferenças de direção


para concentrar atenção em um som específico. O efeito de se concentrar em
um som não o torna, é claro, mais alto; mas com o nosso senso direcional
nos ajudando, podemos em grande parte esquecer os outros sons, o que
causa o mesmo efeito de diminuir-lhes o volume. Uma vez que, no presente
caso (i.e., a trilha sonora de um filme com mais de um tipo de som) todos os
sons vêm da mesma direção, e nosso senso direcional não pode funcionar,
a supressão dos sons no qual o ouvinte está menos interessado é realizada
tornando-os mais baixos. 1

Também durante os anos trinta, sedimentam-se diretrizes para composição e


edição de música para acompanhamento de diálogos nos filmes. Músicos, engenheiros de
som e diretores chegam à conclusão de que as madeiras (instrumentos das famílias da
flauta, do oboé, do clarinete e do fagote) criam um conflito desnecessário com a voz
humana, e declaram preferência pelo uso de cordas. Outra recomendação é manter a
orquestra em região diferente do registro das vozes, explorando, por exemplo, a região
aguda na música quando as vozes dos diálogos estão na região grave, e vice-versa, para
que as freqüências fiquem distribuídas de maneira equilibrada na trilha sonora.

tendem a atrair, mais do que quaisquer outros sons, o foco de nossa atenção. (Chion, M. , Audio-Vison,
Nova Iorque: Columbia University Press, 1994, p.5-6)
1
In actual life we can usually take advantage of diferences of direction in order to concentrate
attention upon a particular sound. The result of concentrating upon one sound is, of course, not to make
the sound louder; but with our directive sense to help, we can largely forget the other sounds wich
accopmplishes the same purpose as making them fainter . Since, in the present case [i. e., a film
soundtrack with more than one type of sound] all the sounds come from the same direcion, and our
directive sense cannot be brought into play, the supression of the sounds in wich the listener is less
interested is accomplished by making them fainter. (Kellog, E., in Gorbmann, op. cit., p. 78)
16

c) Certos pontos da música são mais adequados que outros para entradas e saídas.
No caso da música não ter sido composta especialmente para a cena, a edição deve
privilegiar pausas, inícios ou fins de frases e tempos fortes. Para entender como opera
este princípio, basta imaginar uma “cena” da vida real onde se protagoniza uma sessão de
compras em um supermercado com música ambiente. Em geral, com o pensamento
absorvido por produtos e preços, muitas vezes nem nos damos conta de que existe música
no lugar. Entretanto, se ela for interrompida de maneira abrupta nossa audição perceberá
que algo “errado” aconteceu. A música tem inércia: ela forma uma espécie de plano de
fundo no subconsciente do ouvinte e a sua interrupção súbita faz surgir uma sensação de
perplexidade estética.

d) Em geral, a música deve entrar ou sair em alguma ação (movimentação do


personagem, uma porta que é fechada ou aberta), a partir de algum sinal sonoro da trilha
(campainha de porta, telefone tocando) e em momentos de mudanças rítmicas e
emocionais importantes. Nesse caso, especificamente, a música tem uma tendência maior
a passar desapercebida, pois o foco da atenção do espectador estará mais concentrado na
narrativa. As entradas de música são momentos mais críticos que as saídas, pois tendem a
ser mais “visíveis”. O começo da música não deve jamais coincidir com a entrada de
diálogos na trilha, para não provocar “competição” entre os dois elementos na audição do
espectador.

e) O clima da música deve ser apropriado à cena. Os compositores clássicos


evitam escrever música que perturbe o envolvimento do espectador coma a história. A
música deve fornecer um paralelo musical à ação, reforçando o clima e/ou o ritmo. Uma
cena de perseguição a cavalo pede música como Ride of the Valkyries de Richard
Wagner; cenas de morte pedem música lenta e sombria. Esse princípio muitas vezes é
contrariado em comédias e em filmes de caráter experimental ou vanguardista.
A necessidade de adequação do clima da música às cenas é, segundo Gorbman,
um dos motivos pelos quais o idioma orquestral romântico do séc. XIX de Richard
17

Wagner e Richard Strauss predominou por tanto tempo no cinema clássico 1. Para a
autora, o idioma Romântico era - e ainda é - tonal e familiar, com valores conotativos
compreensíveis para uma audiência de massa. Segundo Gorbman, o idioma musical deve
ser profundamente familiar e suas conotações devem nos remeter a um conhecimento
virtualmente reflexivo, para que a música possa operar correta e invisivelmente no
discurso cinematográfico clássico.

II - Significante de Emoção
Outra importante função da música no cinema clássico é a capacidade de suscitar
uma resposta emocional no espectador, intensificando ou abrandando a carga dramática
da narrativa. Segundo Earle Hagen (1971), muitos críticos consideram essa a mais
importante função da música no cinema, senão a única. Para Hagen, esses críticos
acreditam que o feedback emocional acontece independentemente da música estar, ao
mesmo tempo, desempenhando outras tarefas, uma vez que, “quaisquer que sejam as
outras funções que esteja exercendo, toda música, por sua própria natureza, tem a
capacidade de suscitar emoção” 2. No contexto clássico, por exemplo, a música de
abertura de um filme opera, como veremos a seguir, como um demarcador formal do
filme, mas ao mesmo tempo atua estabelecendo a emoção predominante do início da
história ou “aquece” o espectador apresentando-lhe um resumo emocional da narrativa.
Em um filme clássico, as imagens, os diálogos e os sons diegéticos operam na
representação do real e são elementos objetivos aos quais a música extradiegética
acrescenta uma imprescindível dimensão emocional, irracional, romântica, intuitiva. Para
Gorbman, a música tem o poder de transformar o literal no simbólico, o presente num
tempo mítico, o prosaico no poético e o particular no universal. A autora exemplifica o
uso de música como representação do irracional com outra seqüência da seção inicial do

1
Segundo P. Griffith, a capacidade da música de “narrar” ações ou emoções encontra sua
expressão maior nos poemas sinfônicos de Richard Strauss (1864-1949). Para o autor, Strauss elevou o
gênero a extravagantes culminâncias, e não teve rival em sua capacidade de traduzir musicalmente
imagens narrativas, a tal ponto que, com algum conhecimento do tema, seus poemas sinfônicos podem ser
“decodificados” como estórias à medida que os ouvimos. Não poderia haver exemplo mais notável do
nível que a música atingira no século XIX como meio narrativo de emoções ou ações, nem seria possível
ir mais longe nesta direção. (Griffiths, P. , A Música Moderna, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987, p.13)
2
...since all music, whatever its other functions are, inherently presents emotion, because that is
its nature. (Hagen, E., Scoring for Films. New York: Criterion Music Corp., 1971, p. 173.)
18

filme King Kong, na qual o barco que conduz os protagonistas chega à ilha onde
monstros e macacos gigantescos são “possíveis”, contrariando a razão. Steiner emprega
arpejos em harpa com ritmo ad libitum e centro tonal impreciso, estabelecendo uma
atmosfera misteriosa que ajuda a conduzir o espectador ao fantástico desativando suas
defesas contra um “mundo irreal”. Essa associação entre música e irracional predomina
nos gêneros terror, ficção científica e fantasia como um facilitador no processo de entrar
e sair de um discurso realista, transitando entre o lógico e o irracional, a realidade do dia-
a-dia e o sonho, o controle e a perda do controle. Uma frase do compositor Claude
Debussy, citada no livro A Música Moderna, de Paul Griffiths, ilustra com precisão
poética esse poder atribuído à música de transitar entre o real e o fantástico:

Somente a música tem o poder de evocar livremente os lugares


inverossímeis, o mundo indubitável e quimérico que opera secretamente na
misteriosa poesia da noite, nos milhares de ruídos anônimos que emanam
das folhas acariciadas pelos raios da lua. 1

A música, especialmente o idioma romântico de Wagner e Strauss, pode também


provocar no espectador uma resposta de “sentimento épico” e transformar a história de
um homem na história da humanidade, elevando a uma significação universal a
individualidade dos personagens representados, tornando-os “maiores que a vida”. Para
Gorbman, este fenômeno pode ser explicado pelas análises antropológicas das funções
sociais do ritmo e da canção em grupos humanos:

O senso de destino comum que torcedores num jogo de futebol podem


experimentar enquanto, “a uma só voz”, cantam o hino nacional ou um
slogan de apoio ao time da casa tem alguma coisa a ver com as emoções
inspiradas por rituais instigadores de identidade de grupo em sociedades
mais primitivas. 2

1
Griffiths, P., op. cit., p. 10.
2
The sense of common destiny wich fans at a football game might have as, “of one voice,” they
sing the national anthem or chant a slogan in support of the home team has something to do with the
19

Na música do filme Mildred Pierce, Gorbman aponta dois momentos em que,


segundo a autora, a música de Steiner desempenha função importante no processo de
transcendência que faz da vida de um personagem a história de uma comunidade. Na
cena em que Mildred, a protagonista, está atordoada com a violenta discussão que tem
com a irmã, um close-up de seu rosto sofrido, acompanhado pelas três primeiras notas
do seu tema numa versão trágica em dinâmica forte, representa não só a condição de
Mildred, mas a condição da Mulher enquanto Mãe. No final do filme, quando a
protagonista, livre e de novo ao lado de seu marido, caminha da porta da delegacia em
direção ao sol nascente, a orquestra, densa e com predominância dos metais, faz a re-
exposição do tema de Mildred em tom maior. O reencontro do casal passa a representar
a reconstrução do sistema patriarcal que a trama do filme tentou desconstruir durante a
narrativa. Sob a égide da lei, as ambigüidades se resolvem e as sombras são dissipadas
pela luz de um novo dia.
Para Gorbman, nos filmes históricos do diretor John Ford são adotadas estratégias
similares às empregadas em Mildred Pierce, com a música sendo usada para dar
dimensões míticas a uma cena de ficção. Na cena final de Young Mr. Lincoln (A Grande
Esperança, John Ford, 1939), por exemplo, um plano geral mostra o protagonista, em
uma paisagem grandiosa, caminhando em direção ao topo de um monte, acompanhado na
trilha sonora pelo Battle Hymn of the Republic, composto em 1862 por William Steffe e
Julia Ward. A simples caminhada de Lincoln é transformada numa predição de seu
destino como Presidente dos EUA durante a Guerra Civil. Para Gorbman, virtualmente
qualquer música Romântica orquestral pode ajudar a transformar o cotidiano no mítico.
No entanto, neste caso específico, a referência a um hino patriótico amplamente
difundido (o refrão é o célebre Glory! Glory! Hallelujah! ) ajuda a representar com mais
precisão o destino do personagem.

III - Função narrativa

emotions inspired by group identity-inducing rituals in more primitive groups. (Gorbman, C. op. cit. , p.
81.)
20

Para Gorbman, a música no filme clássico pode fornecer ao espectador


referências de demarcações formais e níveis da narrativa, e também ilustrar, enfatizar,
sublinhar, indicar eventos narrativos importantes por meio de “deixas” conotativas.

1 -Demarcações formais.
a) Começos e finais
Em geral, a música é usada nas aberturas e nos fins dos filmes. Como plano de
fundo dos créditos iniciais, tem a função de definir o gênero e o clima do filme. Na
maioria das vezes, apresenta em forma de medley 1 os motivos e temas que serão
utilizados posteriormente na trilha. Além disso, a música de abertura sinaliza, junto com
o apagar das luzes e com as primeiras imagens, que “o espetáculo está para começar”,
agindo como um elemento de transição entre a realidade do espectador - que saiu de casa,
comprou ingresso e entrou numa sala cheia de poltronas - e a “realidade” para a qual ele
vai ser transportado quando as luzes da sala se apagam e a história propriamente dita tem
início. Já a música de encerramento normalmente “explode” na última cena e continua
sobre os créditos finais. Em geral, são criadas re-exposições orquestrais do tema
principal, com resolução tonal. Recapitulação e conclusão conferem unidade à narrativa e
contribuem para o seu fechamento formal.

b) Tempo, lugar e personagens


Através de convenções bem estabelecidas, a música ajuda a posicionar o
espectador temporal e geograficamente. Harmonias, padrões melódicos, ritmos e hábitos
de orquestração fortemente codificados contribuem para estabelecer época, lugar e
características de personagens. Dessa forma, batidas de tambores ou pizzicato no
contrabaixo num allegreto em compasso quaternário com o primeiro tempo
marcadamente acentuado, associado a uma melodia modal menor nas cordas ou nas
madeiras, sugerem território indígena; melodia maior no trompete ou em instrumentos da
família da marimba, acompanhados por ritmo de rumba, evocam a América Latina;
xilofones ou woodblocks, tocando melodias pentatônicas menores em compasso

1
O mesmo que pout-pouri, ou seja uma série de temas ou canções diferentes arranjados em
seqüência initerruputa, ligados através de transições e justaposições.
21

quaternário, remetem ao Japão ou à China; valsas de Johann Strauss sugerem o ambiente


de Viena no fim do século XVIII; acordeons estão associados a Roma ou Paris; a
agitação da cidade grande, especialmente Nova Iorque, é sugerida por orquestra de jazz
executando temas levemente dissonantes com eventuais ataques de metais; arpejos na
harpa remetem à idade média, renascença ou ambientes celestiais; melodias de caráter
jazzístico no estilo piano-bar em clarinete ou saxofone revelam a mulher sedutora;
madeiras ou xilofones em tom maior com eventuais notas “erradas” (não diatônicas)
geralmente acompanham personagens e situações cômicas.

c) Pontos de vista
A música nos filmes clássicos é usada também para enfatizar características
subjetivas dos personagens. Vários artifícios fornecem pistas ao espectador: associação
de música com o olhar de um personagem, associação temática repetida e solidificada no
curso da narrativa, orquestração de música que foi cantada anteriormente pelo
personagem, adição de reverberação para sugerir fortes experiências subjetivas. Gorbman
exemplifica o uso de música como indicador de ponto de vista com algumas passagens do
filme Of Human Bondage (Escravos do Desejo, John Cromwell, 1934). O protagonista,
Philip Carey, homem rico e refinado, está loucamente apaixonado pela humilde garçonete
Mildred, mas seu amor não é correspondido. Philip leva Mildred para jantar em um
restaurante sofisticado onde um trio de violoncelo, violino e piano executa uma valsa. A
fala de Philip “Eu adoro essa música. Ela me faz pensar em você.” consolida a melodia
da valsa como o tema de “Philip pensando em Mildred”. A partir deste momento, as
exposições extradiegéticas deste tema passarão a significar uma cumplicidade romântica
entre o espectador e o amor obsessivo de Philip por Mildred. No plano extradiegético, o
tema da valsa não é utilizado quando Mildred está em cena, procedimento que, segundo
Gorbman, ajuda a deixar claro, para o espectador, o desinteresse de Mildred por Philip.
O uso de reverberação, operando para indicar um ponto de vista subjetivo, tem
como exemplo uma cena onde Philip está fazendo uma prova na escola de medicina e,
distraído, fixa o olhar num esqueleto no canto da sala de aula. Uma fusão de imagens
transforma o esqueleto na imagem de Mildred, ao mesmo tempo em que o tema da valsa,
22

que estava sendo executado por um calíope 1 implícito no plano diegético, passa a ser
tocado por orquestra de cordas gravada com uma quantidade incomum de reverberação.
Quando um colega de Philip percebe que ele está distraído e tosse para chamá-lo de volta
ao “mundo real” da prova, o calíope retorna no plano de fundo auditivo.

2 - “Deixas” conotativas
Segundo Gorbman, a música na narrativa cinematográfica clássica procura
“ancorar” as imagens em significado, expressando estados de espírito e indicando valores
morais, éticos e de classe dos personagens. Além disso, atributos melódicos, harmônicos,
rítmicos e de instrumentação podem imitar ou ilustrar eventos físicos da tela. A música
reforça o significado dos diálogos, dos gestos, da iluminação, da performance dos atores
e do movimento das figuras na tela. Gorbman cita como exemplo o filme Caged (À
Margem da Vida, John Cromwel, 1950), um melodrama sobre um presídio feminino. O
filme começa com a jovem e inocente Marie Ellen chegando ao presídio em uma
caminhonete da polícia. Antes de entrar na prisão, Marie volta-se para trás e dá uma
última olhada no “lado de fora”: uma rua da cidade, um prédio, uma igreja, alguns
poucos automóveis em movimento. No final do filme, quando uma Marie endurecida por
suas experiências na prisão olha a mesma paisagem, uma música tensa de caráter
jazzístico em trompetes e saxofones ocupa a trilha sonora. O significado do “mundo
exterior” mudou para a protagonista e a música de Steiner, segundo Gorbman, opera com
eficiência na representação dessa transformação.
Para Gorbman, a música, em conjunção com as imagens, tem uma enorme
capacidade de influenciar no clima do filme. Músicas diferentes levam o espectador a
diferentes interpretações das cenas. Um verdadeiro léxico de conotações musicais,
estabelecido pela prática hollywoodiana, é explorado pelos departamentos de música dos
estúdios cinematográficos. Segundo a autora, esses “significados” em música foram
codificados e institucionalizados antes do surgimento do cinema sonoro, quando
começaram a surgir os léxicos de música para cinema como a Kinobiblioteque de
Giuseppe Becce, publicada em 1919, e Motion Picture Moods for pianists and Organists:

1
Espécie de órgão cujo som é produzido por vapor. Usualmente utilizado em espetáculos
circenses. (Hal, L., Pocket Music Dictionary, Milwaukee: Hal Leonard Publishing Corporation, 1993.)
23

A Rapid Reference Collection of Selected Pieces Adapted to Fifty Two Moods and
Situations, organizado por Erno Rappe em 1924. Segundo Gorbman, estes léxicos de
conotações de música para cinema gozavam de muita popularidade e estabeleceram as
bases do uso da música nas salas de projeção.
Entre os climas e situações relacionados no léxico de Rappe estão: aeroplano,
batalha, pássaros, perseguição, nacional, orgias, oriente, tempestade no mar, sinistro
e casamento. No léxico de Rappe, o pianista que, por exemplo, necessita criar uma
atmosfera de “tristeza”, pode escolher entre dez peças que incluem o primeiro
movimento da Sonata no. 2 de Beethoven, Elegie de Grieg e o Andante Patético e
Doloroso de Gaston Borch.
Além de prover o filme de “dicas” emocionais, a música extradiegética pode
também ilustrar a ação. Segundo Gorbman, Max Steiner desenvolveu um estilo de
música para cinema que tem como característica marcante a ilustração da ação
representada na tela. Duas técnicas dramatúrgicas de ilustração freqüentemente
utilizadas no modelo clássico são o mickey-mousing e o stinger. Expressão criada nos
estúdios Disney, mickey-mousing refere-se à “imitação” musical do ritmo e da direção
de movimentos de personagens, objetos, ou mesmo da câmera. Gorbman cita alguns
exemplos desse procedimento:

A música “mickeymouseia” o rebolado de Gypo Nolan em The Informer.


Próximo ao início de Casablanca, quando um soldado aliado da força de
resistência é baleado, a música imita a sua queda no chão. Perto da
abertura de “The Big Sleep”, um glissando de harpa auxilia a
“mickeymousear” o desmaio simulado da mimada Carmen Sterwood nos
braços de Philip Marlowe. 1

Já o termo stinger refere-se a um sforzando ou fortissimo instrumental usado para


ilustrar tensão dramática súbita. Gorbman dá dois exemplos do emprego do stinger em

1
Music mickey-mouses the gait of Gypo Nolan in The Informer. Near the Begining of
Casablanca, as an allied resistence fighter is shot, the score imitates his fall to the ground. Near the
opening of The Big Sleep, a harp glissando helps to mickey-mouse the feigned collapse of spoiled Carmen
Sternwood into the arms of Philip Marlowe. (Gorbman, C., op. cit., p. 88.)
24

Mildred Pierce. O primeiro exemplo é a cena em que a bem-sucedida gerente de


restaurante Mildred está abraçando o playboy Monte Beragon, enquanto a música na
trilha sonora toca o “Tema de Beragon”. Num dado momento, o marido de Mildred entra
em cena. O som da porta sendo fechada violentamente pelo marido e um corte para um
primeiro plano do casal desconcertado coincidem com um stinger na música. No
segundo exemplo, Mildred está em cena descendo as escadas da casa de praia de
Beragon, quando um close-up em seu rosto mostra que ela está atordoada com o que vê.
Enquanto a orquestra faz um glissando ascendente que conduz a um acorde stinger, o
filme corta para um primeiro plano de sua filha, Veda, abraçada com Beragon.
Gorbman cita ainda outra cena do mesmo filme onde o silêncio é usado com a
mesma função do sforzando. Sabendo das intenções de sua filha, Veda, de se casar com
o jovem e rico Ted Forrester, Mildred vai visitá-la e pergunta-lhe se Wally, amigo da
família, já sabe que ela quer se casar com Ted. Enquanto um close-up enquadra Veda,
ela diz: “... quer se casar? Nós estamos casados!” Nesse momento o filme corta para um
close-up do rosto de Mildred atordoada com a revelação, enquanto a música de fundo,
presente durante toda a ação, faz uma pausa após um rápido crescendo sobre um acorde
dissonante. A pausa opera, nesse caso, como stinger, acentuando a súbita tensão
dramática da narrativa.

IV - Continuidade
O filme é um meio visual que dramatiza um enredo básico; lida com fotografias,
imagens, fragmentos e pedaços de filme: o tic-tac de um relógio, a abertura de uma
janela, alguém espiando, duas pessoas rindo, um carro arrancando, um telefone que toca.
A música opera no sentido de “dar liga” a esse mosaico de imagens 1. Segundo Gorbman,

1
Segundo Michel Chion, a mais amplamente difundida função do som no cinema consiste em
“alinhavar” os cortes, unificar o fluxo das imagens, construindo uma ponte sobre a descontinuidade visual.
Ainda segundo o autor, o som pode conferir unidade através do estabelecimento de atmosferas (i. e. canto
de pássaros ou ruídos de tráfego) que criam uma estrutura que parece conter a imagem, um espaço
“ouvido” no qual o “visto” é imerso, e também através da música extradiegética, que, por ser independente
das noções de tempo e espaço reais, tem o poder de fundir imagens fragmentadas numa corrente
homogênea. (1994, p. 47)
25

a música ajuda a suavizar a descontinuidade intrínseca ao processo clássico de


montagem. Um corte pobre ou elipses temporais tornam-se menos perceptíveis através
do emprego da música, que atua como uma espécie de “substância coesiva” no plano de
fundo auditivo. Gorbman dá alguns exemplos de música operando em elipses temporais:
“Sequências de montagem – páginas de calendário esvoaçando, manchetes de jornais
cobrindo um período de tempo, cidadão Kane e sua esposa distanciando-se na mesa de
café da manhã ao longo dos anos – são quase sempre acompanhadas por música.” 1
A música pode também suavizar a transição entre cenas. No modelo clássico, e
mesmo em filmes desalinhados com esse modelo, é usual a música começar um pouco
antes do fim de uma cena e estender-se pela seguinte. Algumas vezes pode ser
observado um procedimento onde a música de uma “cena A” modula para uma nova
tonalidade na “cena B”. Gorbman cita o final do filme The Big Sleep (À Beira do
Abismo, Howard Hawks, 1946) para demonstrar essa função da música de cinema de
atuar como um tecido conjuntivo espaço-temporal. Na cena descrita por Gorbman, o
protagonista Marlowe deixa a mansão Sternwood depois de haver encontrado-se com
Carmen, Coronel Sternwood e Vivian em três conversas sucessivas. A música começa
enquanto o mordomo o conduz à porta. O filme corta para um primeiro plano de uma
placa onde se lê: “Hollywood Public Library” e depois para um primeiríssimo plano dos
documentos que Marlowe está pesquisando na biblioteca. A música de transição de
Steiner não tem uma forma musical própria, uma vez que precisa obedecer ao ritmo da
edição e à rápida mudança de locações que ela ilustra e conota. Ela modula com
frequência, mas é ainda uma peça de música inteira, uma substância contínua, que
compensa as descontinuidades espaço-temporais necessárias para a coerência narrativa
que conduz Marlowe de um lugar para outro.

V - Unidade
O cinema clássico baseia-se na unidade formal e narrativa e necessita de música
para reforçar essa unidade. Já foi visto que as músicas de abertura e de encerramento

1
Montage sequences - calendar pages flipping, newspaper headlines spanning a period of time,
citizen Kane and his wife growing apart at the breakfast table over the years - are almost invariably
accompanied by music. (Gorbman, C., op. cit. p.89.)
26

constroem uma espécie de moldura para o filme. Na abertura, anunciando gênero, clima
e/ou indicando tempo e lugar. No final, procedimentos composicionais como
recapitulação de temas e cadências conclusivas reforçam o encerramento da narrativa. A
estruturação temática da música, a partir da sua inerente unidade baseada em exposições
e variações, atua como um sub-sistema semiótico, conferindo unidade ao filme.
Repetição, interação e variação de temas musicais no curso de um filme contribuem para
dar clareza à dramaturgia e às estruturas formais. A técnica Wagneriana do leitmotif foi,
e ainda é, amplamente utilizada na música de cinema.
Segundo o modelo clássico, as relações tonais entre as intervenções de música
devem ser organizadas de forma a contribuir para a unidade da narrativa. Gorbman cita o
teórico Sabaneev, que aconselha o compositor de música para cinema a observar
determinados procedimentos em relação à tonalidade das peças utilizadas na trilha
sonora. Para Sabaneev, se a música está ausente por mais de quinze segundos na trilha o
compositor está livre para começar um novo trecho de música numa tonalidade diferente,
mesmo estando a nova tonalidade em alto grau de afastamento, pois o espectador já terá
tido tempo de esquecer suficientemente a tonalidade do trecho anterior. Mas se o espaço
sem música for menor que esse, o novo trecho deve começar na mesma tonalidade ou em
tonalidade vizinha.
O estilo de Steiner de música para cinema é baseado em estruturação temática.
Segundo Gorbman, depois de assistir ao copião do filme, Steiner elaborava a trilha a
partir dos perfis dos personagens e dos conflitos centrais da trama. Para a autora, o uso de
temas musicais é a principal força unificadora na prática de música para cinema em
Hollywood, pois a estruturação temática provê uma unidade intrínseca, baseada em
exposição e variação, que opera como um sub-sistema semiótico. Repetição, interação e
variação de temas musicais contribuem de maneira substancial para a clareza formal e
dramatúrgica de um filme.

VI - Flexibilidade 1

1
Gorbman, na verdade, classifica em sete os princípios que regem a música no cinema clássico.
No entanto, o princípio da invisibilidade, segundo o qual o aparato técnico da música extradiegética
(músicos, instrumentos, microfones, cabos, etc.) não deve “estar em cena” ou seja, não deve ser visto pelo
27

Como foi visto anteriormente, os princípios relacionados por Gorbman não


constituem um sistema monolítico de regras invioláveis. Para Gorbman, a música goza de
um status especial entre a percepção consciente e inconsciente, entre planos ficcionais
diegéticos e extradiegéticos, e entre ritmos formais e narrativos, transitando entre
diversos tipos de contradições textuais. Muitas vezes, por exemplo, principalmente
quando a música está desempenhando funções ilustrativas (mickey-mousing, stinger) ela
torna-se “visível” demais, contrariando o princípio da inaudibilidade. Isto significa que,
em certas condições (especificidades do roteiro, fatores históricos, estilos de diretores e
compositores) um princípio pode ser violado em função do predomínio de outro.

A análise de Claudia Gorbman das funções da música no cinema clássico é, sem


dúvida, um dos mais amplos estudos já realizados no âmbito das relações entre música e
imagem no contexto do cinema comercial. No entanto, para estruturar o arcabouço
teórico desta pesquisa sobre a música no cinema brasileiro comercial contemporâneo, foi
considerado importante levar em consideração alguns aspectos relevantes das abordagens
de autores como Philip Tagg, Sergei Eisenstein, Theodore Adorno, Hans Eisler e Michel
Chion, que também se dedicaram a teorizar sobre esse tema. Assim, as próximas seções
deste capítulo abordarão as funções da música no cinema segundo o musicólogo Philip
Tagg, a proposta do cineasta Sergei Eisenstein sobre o uso do som em contraponto com
as imagens, a crítica de Adorno e Eisler ao modelo clássico e, finalmente, a visão do
teórico francês Michel Chion sobre contraponto, inaudibilidade e continuidade na
música para cinema.

espectador, não foi considerado relevante no âmbito desta pesquisa. No entender deste pesquisador, a
inclusão de qualquer elemento do aparato técnico em cena automaticamente “diegetiza” a música.
28

1.2 - Funções da música no cinema, segundo Philip Tagg.


Em artigo publicado em sua página pessoal na web 1, o musicólogo inglês Philip
Tagg, baseado no livro Ästhetik der Filmmusik (1959), da polonesa Zofia Lissa, também
musicóloga, sintetiza em dez itens as funções da música no cinema. Enquanto Gorbman
restringe o foco de seu estudo ao cinema clássico, Tagg faz uma classificação de caráter
genérico que não se dirige a um determinado tipo de cinema, mas às possibilidades
dramáticas e narrativas de música em qualquer contexto cinematográfico. Apresentada
em forma de artigo, a classificação de Tagg é bastante sintética e não tem a abrangência
do estudo de Gorbman, mas é relevante no âmbito desta pesquisa; em primeiro lugar, por
semelhança, pois, de uma maneira geral, as classificações de Gorbman e Tagg coincidem;
em segundo lugar, por incluir uma função que, a princípio, não faz parte do conjunto de
estratégias clássicas, mas merece fazer parte do instrumental analítico deste trabalho pela
sua importância no domínio da teoria da música para cinema. Discussões a respeito da
função de comentário ou contraponto percorrem um eixo teórico que surge na gênese do
cinema sonoro e se estende ao pensamento contemporâneo.
A tabela da página seguinte sintetiza a classificação de Tagg das funções da
música no cinema:

1
http://www.theblackbook.net/acad/tagg/teaching/mmi/filmfunx.html
29

FUNÇÕES DA MÚSICA NO CINEMA


1 - Ênfase de movimento Sublinhar musicalmente movimentos visíveis na tela.
2 - Ênfase de sons reais Sublinhar musicalmente, de maneira estilizada, sons que
não são intrinsecamente música, como sons de passos,
máquinas, gritos, risadas, impacto etc.
3 - Representação de tempo e lugar Uso da música para provocar na audiência associações com
um determinado ambiente cultural, físico, social ou
histórico.
4 - Source Music Música cuja fonte sonora faz parte explícita ou
implicitamente da realidade ficcional.
5 - Comentário Uso da música para comentar as imagens por disjunção, ou
seja, contradizendo a esfera conotativa da ação visual..
6 - Expressão das emoções do Uso da música para comunicar os possíveis sentimentos
personagem dos personagens
7 - Base para as emoções da Uso da música para provocar na platéia emoções que
audiência podem ou não estarem sendo vivenciadas por personagens
em cena.
8 - Símbolo Uso da música para representar algo ou algum personagem
já conhecido pela platéia, mas ausente da cena em si.
9 - Antecipação de ação Uso da música para antecipar acontecimentos da narrativa
subseqüente
10 - Demarcação da estrutura Uso da música para demarcar o início e o fim do filme, e
formal do filme uso da técnica do leitmotif para identificar personagens e
manter a narrativa unificada.
30

São muitos e claros os pontos coincidentes entre as classificações de Gorbman e


Tagg. Embora Tagg faça uso de outra nomenclatura e ordene as funções em conjuntos
diferentes dos formados por Gorbman, a sua classificação, de uma maneira geral,
descreve funções que se enquadram com propriedade no paradigma clássico, como será
visto a seguir:

a) Funções 1 e 2
O primeiro item da classificação de Tagg - ênfase em movimentos - refere-se ao
uso da música com a função de ilustrar eventos narrativos, que Gorbman considera como
função narrativa conotativa (mickey-mousing). Já no item 2, ênfase em sons reais flagra-
se um aspecto não abordado por Gorbman, mas que também pode ser incluído na função
narrativa conotativa: a música sendo utilizada para representar sons não especificamente
musicais presentes na diegesis, como o tropel das patas de um cavalo em galope, o
assovio do vento, ou o rumor das ondas no mar.

b) Funções 3, 8, 9 e 10
As funções 3 (representação de tempo e lugar), 8 (símbolo), 9 (antecipação) e 10
(demarcação da estrutura formal), podem ser pertinentemente incluídas na função que
Gorbman classifica como narrativa referencial, ou seja, quando a música opera
fornecendo referências de ambientes sócio-histórico-culturais e personagens, “dicas” e
pontos de vista narrativos, e demarcações formais do filme. Complementando, entretanto,
a visão de Gorbman, Tagg ilumina alguns aspectos interessantes de cada uma dessas
quatro funções.
Para Tagg, a música pode operar na representação de tempo e lugar (3) dando
dicas narrativas referenciais sobre o ambiente histórico (medieval, contemporâneo,
antigüidade); social (classes alta, média e pobre), e físico/étnico (ameríndios, oriente,
ambiente urbano, ambiente rural). Já para ilustrar a música operando como símbolo (8),
Tagg dá um exemplo simples, mas emblemático, descrevendo uma cena hipotética onde
as imagens mostram o herói ferido em um campo de batalha enquanto o “tema da
heroina” é ouvido na trilha sonora. Nesse caso, a música estaria comunicando ao
31

espectador o ponto de vista subjetivo do herói que, agonizando ferido, lembra-se de sua
amada.
Segundo Tagg, a antecipação de ação subseqüente (9) ocorre quando a música
“avisa” ao espectador que algo importante está prestes a acontecer na história. É o que
Gorbman classifica como “dicas” narrativas, ainda dentro da função narrativa
referencial. A famosa seqüência do filme Tubarão (Jaws, Steven Spielberg, 1975), onde
o terrível tubarão assassino faz a sua primeira vítima, é um exemplo clássico da música
desempenhando essa função. Enquanto as imagens mostram uma inocente turista
tomando um plácido e agradável banho de mar, o vigoroso ostinato de duas notas, que a
partir desse momento passará a acompanhar as aparições do tubarão, vai entrando em
crescendo na trilha sonora, em disjunção com o que as imagens mostram. O conflito
entre o que o espectador vê (uma turista banhando-se no mar) e o que ele escuta (o
ostinato tenso e enérgico de John Williams), antecipa a tragédia que está por acontecer. É
interessante observar ainda que, neste caso, o espectador passa ser cúmplice da narrativa:
ele “sabe” que o perigo está por perto, mas a turista só se dará conta quando for tarde
demais.
Para ilustrar essa função da música de antecipar acontecimentos dramáticos, é
interessante citar a visão de Michel Chion, para quem os sons e as imagens no cinema
seguem padrões de repetição e transformação que criam no espectador uma sensação de
expectativa, de plenitude a ser desestabilizada ou de vazio a ser preenchido. Segundo
Chion, embora a sensação de antecipação possa ser provocada no espectador através de
diversos recursos da linguagem cinematográfica (movimentos de câmera ou mudança na
performance de um ator, por exemplo), muitos diretores recorrem com assiduidade à
música extradiegética para obter esse efeito, por saberem que a música, especificamente
os arcos de tensão e relaxamento do idioma tonal, leva o ouvinte a esperar cadências. 1 De
fato, ao menos para as platéias do chamado mundo ocidental, que cresceram imersas num
universo musical tonal, um acorde de dominante sempre contém em si a expectativa de
uma resolução.
O décimo item da classificação de Tagg - demarcação formal - inclui tanto
aspectos relativos à função referencial narrativa quanto à continuidade e à unidade, itens
32

IV e V da classificação de Gorbman. Tagg afirma que a música pode operar de diversas


maneiras no reforço da estrutura formal do filme:

a) Na abertura (créditos iniciais), comunicando à platéia que um tipo específico de


história, envolvendo um determinado tipo de personagens e que ocorre num ambiente
específico, está para começar;
b) Através do uso da técnica do leitmotif, para identificar personagens, seus estados
emocionais, ambientes etc. Para Tagg, repetição e variação do material temático
contribui também para tornar o filme mais compreensível emocionalmente e para
“aglutinar” os cortes da narrativa;
c) construindo elos e pontes entre cenas;
d) eventos musicais de curta duração podem atuar como coda de uma cena ou seqüência,
pontuando o seu final. Segundo Tagg, nesses casos é comum o compositor utilizar um
acorde de dominante sem resolução com a intenção de provocar, no espectador, a
sensação de que a narrativa continua;
e) no final, demarcando a conclusão da narrativa e, muitas vezes, fazendo também uma
espécie de resumo das emoções predominantes no curso ou no final do filme.

c) Funções 4, 6, e 7
Tagg comenta, no item 4 de sua classificação, o que ele chama de source music.
Para ele, a música de cinema é source music quando a fonte sonora está presente, de
maneira explícita ou implícita, no universo ficcional, ou seja, o mesmo que Gorbman
classifica como música diegética, como foi visto na introdução desta dissertação. A
source music, portanto, não se caracteriza propriamente por exercer uma função
específica, mas sim por ter sua fonte sonora representada na diegesis.
A música pode operar também como meio de expressão das emoções dos
personagens (6) e como base para as emoções da platéia (7). Segundo Tagg, a música
pode tanto contribuir para expressar emoções de um personagem como operar como
gatilho de uma resposta emocional no espectador. Tagg exemplifica essas duas funções
da música através de uma cena hipotética: um plano neutro do herói lendo uma carta

1
Chion, M., op. cit. p. 55.
33

acompanhado na trilha sonora por uma “música de horror”, que deixa claro para o
espectador que ele está chocado com as notícias terríveis que lê na carta. A música, nesse
caso, revela ao espectador a emoção do personagem. Para demonstrar um caso onde a
música dispara uma resposta emocional na audiência, Tagg utiliza como exemplo a
mesma cena, mas substitui o herói pelo vilão. A “música de horror”, neste caso, não está
diretamente associada à emoção do vilão, para quem a carta traz notícias “boas” que o
levarão a atingir seus objetivos, mas sim comunicando ao espectador que algo terrível
está para acontecer com o herói. Nos dois exemplos de Tagg, a música está atuando na
função que Gorbman classifica como significante de emoção (função II), mas, ao mesmo
tempo, na função referencial narrativa, pois dá ao espectador referências sobre o
conteúdo da carta.
Tagg vai ao encontro do que Gorbman afirma sobre a flexibilidade do modelo
clássico, quando comenta que as funções da música no cinema não são mutuamente
exclusivas, sendo comum a música operar exercendo várias funções ao mesmo tempo,
como no exemplo descrito no parágrafo anterior. Para ilustrar a multifuncionalidade da
música no cinema, Tagg descreve mais uma cena hipotética onde o espectador vê
imagens de uma top-model, vestida com um robe de seda, andando langorosa em seu
suntuoso apartamento em Nova Iorque, acompanhada pelo som macio do CD de bossa-
nova que ela acabou de colocar para tocar. Para o autor, a platéia pode estar ouvindo essa
música de diversas maneiras:

- como música diegética, pois o espectador viu a top model colocando o CD para tocar
(função 4);
- como uma referência do gosto musical da personagem, e portanto, como indicador de
sua classe social (função 3);
- como uma referência de lugar (função 3), pois a bossa-nova é um gênero urbano, mais
adequado a ambientes de apartamentos (em Nova Iorque ou Copacabana, por
exemplo) do que a um ambiente rural;
- com referência de tempo: a cena certamente se passa em algum momento posterior ao
final dos anos 50 (função 3);
34

- a música pode também estar operando como símbolo (função 8), fazendo referência a
um namorado brasileiro da top-model;
- se o material temático da bossa-nova estiver sendo usado em outros momentos do filme
no plano extradiegético, a técnica do leitmotif pode estar sendo empregada para
conferir unidade à narrativa (função 10).

d) Função 5
Tagg descreve ainda a música com a função de comentário. Para ele o tipo mais
comum de comentário é o contraponto, ou seja, a música contradizendo a esfera
conotativa da ação visual, como, por exemplo, uso de melodia suave para imagens de
holocausto atômico, ou de música tensa e grave em uma cena de amor. Na música do
cinema clássico, e em todas as funções descritas anteriormente por Tagg, observa-se
procedimentos que buscam, em geral, a conjunção entre música e imagem. O uso da
música para comentar as imagens por disjunção, ou seja, contradizendo a esfera
conotativa das imagens, que Tagg classifica como comentário, é uma questão crucial da
teoria de música para cinema. Esta questão tem sua origem no célebre Manifesto Sobre o
Som, escrito pelo cineasta russo Sergei Eisenstein na época do nascimento do cinema
sonoro, passa pela teoria crítica de Theodore Adorno e Hans Eisler no final dos anos 40,
e chega aos estudos recentes de Michel Chion sobre o som no cinema. A função de
comentário ou contraponto, um verdadeiro divisor de águas na estética do cinema, será
enfocada a seguir, na terceira e última seção deste capítulo, como parte de um corpo
teórico que inclui as idéias de Eisenstein, a crítica ao modelo clássico feita por Adorno &
Eisler, e alguns comentários de Michel Chion sobre a questão do contraponto e sobre o
pensamento crítico sessentista sobre o uso do som.

1.3 - O Manifesto de Eisenstein, a crítica de Adorno & Eisler, e a visão de Michel Chion.

Embora não seja o objetivo desta dissertação uma abordagem abrangente da


análise e das propostas de Eisenstein, Adorno e Eisler, algumas das idéias contidas no
Manifesto Sobre o Som e em Composing for The Films serão comentadas por estarem
relacionadas diretamente, embora em oposição, com o paradigma do modelo clássico
35

utilizado nas análises realizadas no âmbito desta pesquisa. A visão de Michel Chion
sobre a questão do contraponto entre música e imagem, e também sobre idéias que
dominaram a crítica cinematográfica européia nos anos 60/70, principalmente a francesa
dos Cahiers de Cinéma, acerca da descontinuidade na mixagem do som, também foi
considerada relevante neste trabalho.

1.3.1- O Manifesto de Eisenstein - Declaração sobre o Som.


O cineasta soviético Sergei Eisenstein (1898-1948), foi um dos principais
arquitetos da forma cinematográfica moderna. Apesar de sua obra não chegar a uma
dezena de filmes 1, poucos diretores contribuíram tanto para o desenvolvimento da
linguagem cinematográfica. Para Eisenstein, a verdadeira essência do cinema está no
processo de montagem do filme. Neste processo, segundo ele, a justaposição dos planos
não deve ocorrer em função da descrição linear de um fato, mas sim se sustentar no
confronto de idéias, no conflito, na contradição. Eisenstein dizia:

Uma vez reunidos, dois fragmentos de filme de qualquer tipo combinam-


se inevitavelmente em um novo conceito, em uma nova qualidade, que
nasce de sua justaposição(...) A montagem é a arte de exprimir ou dar
significado através da relação de dois planos justapostos, de tal forma
que essa justaposição dê origem a uma idéia ou exprima algo que não
exista em nenhum dos dois planos separadamente. O conjunto é superior
à soma das partes.” 2

Um exemplo esclarecedor deste princípio, baseado na justaposição de planos


independentes entre si, é a célebre “experiência de Kulechov”: a um primeiro plano do
ator Ivan Mosjkine, voluntariamente inexpressivo, eram justapostas, alternadamente,
imagens de um prato de sopa fumegante, um revólver, um caixão de criança e uma cena

1
Entre os mais importantes filmes de Eisenstein, onde o diretor aplica os princípios teóricos
expostos nos livros O Sentido do Filme e A Forma do Filme, estão Battleship Potemkin ( Encouraçado
Potemkin, 1925), Oktyabr (Outubro, 1927), Alexander Nevsky (Alexander Nevsky, 1938), Ivan Grozny I
(Ivan, o Terrível - 1a parte, 1944) e Ivan Grozny II ( Ivan, o Terrível - 2a Parte, 1946)
2
Eisenstein, S. O Sentido do Filme, 1942, p. 157
36

erótica. Quando se projetava a seqüência diante de espectadores desprevenidos, o rosto


de Mosjkine passava a exprimir a fome, o medo, a tristeza ou o desejo. Dentro da obra de
Eisenstein, encontram-se exemplos de montagem intelectual ou ideológica que podem ser
comparadas ao “efeito Kulechov”. Em Encouraçado Potemkin, a justaposição dos três
leões de pedra - o primeiro adormecido, o segundo acordado e o terceiro erguido-, que,
justapostos formam apenas um, rugindo e revoltado. Em Outubro, a montagem da estátua
do czar Alexandre III que, demolida, reconstitui-se simbolizando a reviravolta da
situação política. 1
As idéias de Eisenstein sobre a montagem cinematográfica refletem-se no célebre
manifesto que assinou em 1928, junto com os diretores soviéticos Vsevolod Pudovkin
(1893-1953) e Grigory Alexandrov (1903-1983), intitulado Declaração sobre o Som.
Comentando o então recente salto tecnológico do cinema americano - o som gravado
diretamente na película cinematográfica -, o manifesto saúda a novidade dizendo que “o
sonho do cinema sonoro tornou-se realidade. Com a invenção de uma prática banda
sonora, os americanos se situaram a um passo de uma rápida e substancial realização. (...)
Todo o mundo fala da coisa silenciosa que aprendeu a falar.” 2
Em seu manifesto, entretanto, Eisenstein, Pudovkin e Alexandrov revelam-se
preocupados com as conseqüências da introdução do som no cinema sobre a técnica da
montagem intelectual soviética. Para eles, o primeiro impulso gerado pela chegada do
som seria em direção a um uso naturalista e comercial do som:

Em primeiro lugar, se realizará a exploração comercial da mercadoria mais


vendável, os filmes falantes. Aqueles nos quais a gravação do som procederá
em um nível naturalista, correspondendo exatamente com o movimento na
tela, e proporcionando uma certa “ilusão” de pessoas que falam, de objetos
audíveis etc. 3

1
Betton, G. ob. cit. p. 77.
2
El sueño del cine soñono se ha hecho realidad. Con la invención de una prática banda sonora,
los americanos se han situado a un paso de una rápida y substancial realización. (...) Todo el mundo
habla sobre la cosa silenciosa que ha aprendido a falar. (Eisenstein, S.. La Forma en el Cine. Ed. ???,
19XX, p. 251.)
3
En primer lugar, se realizará la explotación comercial de la mercadoria mais vendível, los
films parlantes. Aquelos en los quales, la grabación del sonido procederá de un nível naturalista,
37

Segundo o manifesto, esse uso automático do som em “dramas de alta cultura e


qualquer outro tipo de ação dramática fotografada de natureza teatral” destruiria toda a
cultura da montagem, “uma vez que qualquer adesão de som a uma peça de montagem
visual aumenta a sua inércia como peça de montagem.” Para Eisenstein e seus parceiros,
somente o contraponto do som em relação aos trechos de montagem visual
proporcionariam uma nova potencialidade no desenvolvimento e no aperfeiçoamento da
montagem:

O primeiro trabalho experimental relacionado com o som deve ser dirigido


no sentido de uma precisa não-sincronização com as imagens visuais. E
somente uma tarefa como essa proporcionará a evidência necessária, que
mais adiante guiará a criação de um contraponto orquestral de imagens
visuais e auditivas.” 1

Segundo os autores do manifesto, o som deveria ser tratado como um novo


elemento da montagem e como um fator dissociado da imagem visual. Para eles, o
método contrapontístico de construir o filme sonoro levaria o cinema a alcançar um nível
de poder cultural sem precedentes.
Na Declaração sobre o Som, Eisenstein, Pudovkin, e Alexandrov discutem o som
no cinema de uma maneira geral, e não especificamente questões ligadas às relações
entre música e imagem. Mais tarde, especialmente no livro O Sentido do Filme,
Eisenstein viria a teorizar mais profundamente sobre a presença da música nos filmes,
estendendo as suas regras de montagem visual também para a manipulação entre música
e imagem, na chamada montagem vertical. Várias idéias sobre a sincronização de
elementos plásticos, tonais e sonoros foram desenvolvidas em seus filmes e registradas
em artigos e livros. 2 Para Eisenstein, a montagem vertical deveria ser estruturada numa

correspondiendo exactamente con el movimiento en la pantalla, y proporcionando una cierta “ilusión” de


personas que hablan, de objetos audibles, etc. (Eisenstein, S., ob. cit., p. 252. Grifos do autor.)
1
Ibid.
2
Maiores detalhes sobre as teorias de Eisenstein podem ser encontradas nos seus livros A Forma
do Filme e O Sentido do Filme. Rio de Janeiro (Jorge Zahar), 1990.
38

“partitura audiovisual”, baseada num planejamento detalhado das relações entre os


elementos plásticos, tonais e sonoros do filme. As idéias de Eisenstein sobre música para
cinema foram desenvolvidas em estreita colaboração com o compositor Sergei Prokofiev,
que assina a música em vários de seus filmes. Junto com Prokofiev, Eisenstein elaborou
uma série de combinações, rígidas ou livres, sincronizadas ou sincopadas, de acordo com
a força de significação desejada , seja através do conflito, da contradição ou da
exploração de vários sentidos da percepção. Segundo Suzana Reck Miranda 1, os
principais tipos de relação entre a música e a imagem foram descritos por Eisenstein da
seguinte maneira:

a) Natural - diz respeito aos ruídos naturais da filmagem, está fora do âmbito artístico;
b) Métrica: estruturada em função da duração. O exemplo mais comum seria a extensão
de um plano coincidir com a duração da música;
c) Rítmica: possui como elemento chave o movimento interno do quadro (seja um objeto
se movendo ou os contornos de linhas e volumes, que guiam o movimento do olhar do
espectador) sincronizado em relação ao movimento rítmico musical;
d) Melódica: semelhante ao anterior, sendo que nesse caso a estruturação é articulada
entre o movimento interno do quadro e o movimento melódico da música;
e) Tonal: trabalha níveis de densidade musical (timbre, volume, alturas) com níveis de
densidade tonais do quadro (linhas, cores, volumes e variações de luz).

O contraponto entre música e imagem, para Eisenstein, portanto, não deveria


basear-se numa simples oposição ou disjunção, mas numa complexa e intrincada rede de
relações sincrônicas e/ou assincrônicas tecida a partir de uma série de correspondências
entre o que se vê na tela e o que se ouve na trilha sonora. Como será visto mais adiante, a
idéia de um contraponto entre as linguagens musical e cinematográfica, segundo Michel
Chion, foi adotada de maneira equivocada pelo pensamento crítico francês dominante nos
anos 60/70.

1
MIRANDA, R. S., A Música no Cinema e A Música do Cinema de Krzysztof Kieslowski.,
Dissertação de Mestrado defendida em 21/12/1998 no Departamento de Multimeios da UNICAMP, p. 20-
21.
39

1.3.2 - A crítica de Adorno e Eisler


No final dos anos 40, o filósofo alemão Theodor Adorno e o compositor Hans
Eisler, também de origem germânica, uniram-se para escrever Composing for the Films 1,
um livro-manifesto onde criticam as estratégias de uso de música no cinema de
Hollywood e defendem um rompimento estético com o modelo clássico dominante. No
capítulo intitulado Preconceitos e Maus Hábitos 2 Adorno e Eisler criticam algumas das
práticas consagradas na indústria cinematográfica americana. As práticas hollywoodianas
atacadas, são justamente as que emergem do contexto clássico descrito por Gorbman. A
tabela da página seguinte, sintetiza a crítica de Adorno e Eisler a alguns procedimentos
típicos do filme clássico:

1
ADORNO, T. & EISLER, H., Composing for the Films, London: The Athlone Press, , 1994.
2
Prejudices and Bad Habits, no original em inglês.
40

1 - O Leitmotif A técnica do leitmotif, tal como empregada no cinema, foi


reduzida ao nível de um “lacaio musical” 1 com a função
redundante de sublinhar a presença de um personagem cuja
aparição as imagens já explicitaram para o espectador.
2 - Melodia e Eufonia O caráter simétrico e as associações “poéticas” da melodia não
correspondem à objetividade tecnológica e ao caráter assimétrico
do filme.
3 - Discrição 2 A idéia segundo a qual a música não deve ser percebida pelo
espectador de maneira consciente é baseada na noção vaga de que
a música deve desempenhar uma função subordinada em relação
às imagens
4 - Ilustração O uso da música para imitar diretamente eventos da tela
(mickeymousing), assim como para expressar climas através de
clichês melódicos e instrumentais reforça a escuta passiva e
automática do espectador.
5 - Geografia e O uso da música para fornecer ao espectador referências históricas
História e geográficas é um despropósito, pois esse tipo de “arte aplicada”
vai de encontro ao caráter moderno do cinema
6 - Clichês Assim como outros aspectos do cinema de Hollywood (situações
típicas, crises emocionais recorrentes, modos padronizados de
provocar suspense) as convenções musicais são deploráveis e não
conseguem causar o efeito dramático ao qual se propõem, pois o
espectador já se acostumou com o estímulo através de
inumeráveis passagens análogas em outros filmes.

1
Musical lackey, no original . (p. 24)
2
Unobtrusiveness, no original. (p.9)
41

Para entender a crítica de Adorno e Eisler, é importante levar em conta os


fundamentos em que se baseiam essas críticas. Segundo a introdução escrita por Grahan
McCann para a edição de 1994 de Composing for The Films, Hans Eisler (1898-1962),
estudou composição com Arnold Schönberg, e, depois de Webern e Berg, foi o primeiro
compositor a escrever música utilizando a técnica dodecafônica. O radicalismo político
de Eisler levou-o a romper com o esteticismo de Schönberg, e partir em busca de novas
formas que servissem aos seus propósitos de criar uma música socialista. Muito
influenciado pelas idéias do alemão Berthold Brecht acerca da arte politicamente
engajada, Eisler compôs numerosas peças de teatro e cantatas para textos do dramaturgo.
Com o crescimento do fascismo, o posicionamento de esquerda de Eisler obrigou-o a
abandonar a Alemanha e, nos anos 30, após trabalhar pouco tempo em alguns países da
Europa, chegou aos Estados Unidos onde viveu até 1950. Nos EUA, além de atividades
nas áreas acadêmicas e da música de concerto, Eisler chegou a escrever música para
filmes comerciais como Hangman Also Die (Fritz Lang, 1945), None But the Lonely
Heart (Clifford Odets, 1944), e The Spanish Main (Frank Borzage, 1945), entre outros.
Para Eisler, compor música para cinema na América não foi uma experiência
particularmente compensadora, pois ele achava intolerável o baixo status reservado ao
compositor de música para cinema dentro da indústria de Hollywood.
Já o filósofo Theodor Wiesengrund Adorno (1903-1969) é considerado o mais
proeminente professor acadêmico alemão e um destacado representante do pensamento
vanguardista europeu. Precoce, intelectual e musicalmente, Adorno estudou composição
com Alban Berg e manteve estreitas relações pessoais com Schönberg, Webern, Kreneck
e outros representantes da escola moderna alemã dos anos 20. Nos anos 30, o fascismo
mudou o curso das vidas e das carreiras de muitos intelectuais alemães e Adorno, assim
com Eisler, também foi obrigado a emigrar. Após um curto exílio temporário em Oxford,
Adorno mudou-se para Nova Iorque onde trabalhou no Instituto de Pesquisa Social 1,
dirigido então pelo filósofo alemão Max Horkheimer, um velho amigo de Adorno.
Theodor Adorno tornou-se a influência intelectual dominante nos projetos de pesquisa do

1
Institute of Social Research, fundado originalmente por Horkheimer em Frankfurt, nos anos 20.
As idéias contidas nos estudos realizados no Instituto tornaram-se conhecidas como Escola de Frankfurt.
42

Instituto, que se fundamentavam nos pressupostos da Teoria Crítica 1, e foi um obstinado


crítico da cultura de massa e da indústria cultural, termo que junto com Horkheimer,
ajudou a cunhar. Adorno, com a Teoria Crítica, e Eisler, com a prática teatral brechtiana,
representam duas das mais significativas tradições no marxismo do século XX. 2
Enquanto Gorbman e Tagg fazem uma análise de como a música no cinema é,
Adorno e Eisler criticam esse modo de ser da música, e propõem um estado ideal
autônomo para a música de cinema baseados não exatamente na funcionalidade, mas sim
em determinadas diretrizes estéticas e políticas. Mais que funcional, portanto, a crítica de
Adorno e Eisler é uma crítica ideológica e estética. Enquanto o compositor Eisler tinha
como projeto “dar expressão musical concreta à visão marxista de sociedade e às
aspirações das classes trabalhadoras” 3, o crítico musical Adorno afirmava que “a música
cumpre a sua função social quando apresenta problemas sociais através de seu próprio
material e de acordo com suas próprias leis formais - problemas que a música contém em
si mesma nas células mais íntimas de sua técnica” 4.
Em verdade, os autores criticam não só a música para cinema no contexto
hollywoodiano, mas o próprio cinema de Hollywood, a cultura de massa, a indústria
cultural, e o uso degenerador da arte como commodity nas economias capitalistas. Para
Adorno e Eisler, o cinema deveria ser visto não como diversão, mas sim como uma arte
compromissada com a constante inovação da linguagem e com as idéias marxistas sobre
cultura e sociedade.
No plano estético, os autores defendem a idéia de que os novos recursos
composicionais pós-tonais, especialmente os empregados por Schönberg, Bartòk e
Stravinsky, seriam mais adequados ao cinema do que o material clássico-romântico
usualmente utilizado. Para eles, não havia justificativa para o fato de o cinema, uma arte
do século XX, utlilizar o convencional e ultrapassado idioma musical romântico do
século anterior. A música para cinema deveria ser encarada como uma arte em constante

1
Horkheimer e Adorno lideraram essa corrente de pensamento, que considerava historicamente
desontextualizada a hermenêutica do marxismo adotada pelo Partido Comunista, e propunham um retorno
às idéias originais de Marx: uma teoria para os tempos, uma teoria que mudasse com os tempos.
2
McCann, G., “New Introduction”, in Adorno & Eisler, op. cit., p. VII a XXXIX.
3
Ibid., p. XXXVIII.
4
Ibid., op. p. XXXIX..
43

busca de inovação, e não como a reprodução de um modelo, segundo eles, esteticamente


ultrapassado 1.
Outro aspecto estético relevante na crítica de Adorno e Eisler é a defesa de uma
maior autonomia para a música no cinema, que, segundo eles, tal como se apresentava no
contexto clássico americano, prestava um papel servil à indústria do cinema. Os autores
se opõem de modo radical ao princípio da inaudibilidade, ou seja, a premissa segundo a
qual o espectador não deve perceber a música de modo consciente, argumentando que o
compositor deve trabalhar com, e não para, os diretores; assim como a música deve falar
com sua própria voz, ela deve agir sobre e não só reagir em função das imagens. O
caráter da música de cinema não deveria ser determinado pelos interesses da indústria.
Para alguns compositores forjados no ambiente vanguardista da música de
concerto alemã da primeira metade do século XX - e herdeiros da tradição romântica, no
seio da qual o artista passa a ocupar uma posição de destaque na sociedade e na cultura,
libertando-se, enfim, do papel social de prestador de serviços que desempenhava
anteriormente para a igreja ou para a aristocracia -, era uma humilhação escrever música
a serviço de interesses outros que não a Arte.
Um bom exemplo da postura de alguns compositores alemães residentes nos
Estados Unidos em relação à música para cinema é o episódio descrito por McCann, onde
Schönberg, ao ser convidado pelo vice-presidente da Metro Goldwyn-Mayer, Irving
Thalberg, para escrever a música da versão cinematográfica da saga chinesa The Good
Earth, escrita por Pearl Buck, exigiu, entre outras coisas, um controle total sobre a fala
dos atores para garantir que eles dissessem o texto nas notas e na afinação exata previstas
na partitura, o que, segundo Shcönberg produziria um efeito semelhante a Pierrot
Lunaire. Thlaberg, algum tempo depois, comunicou a Schönberg haver encontrado

1
Se por um lado o cinema comercial contemporâneo, de certa forma confirma o potencial
expressivo e funcional de técnicas composicionais pós-tonais, como, por exemplo na música de O
Iluminado (The Shining, Stanley Kubrick, 1980) onde o compositor Wendy Carlos usa como base a obra
de compositores como Bartòk, Berlioz, Penderecki e Ligeti, por outro deixa claro que esses recursos,
operam com eficiência somente em determinados gêneros como suspense e terror. Fica difícil imagunar
dramas ou comédias românticas como de Uma Estória Amor (Love Story Arthur Hiller, 1970) ou Uma
Linda Mulher (Pretty Woman, Gary Marshal, 1990) com música dodecafônica na trilha sonora. As técnicas
composicionais pós-tonais, que no final dos anos 40 não eram ainda utilizadas pela indústria
cinematográfica, hoje em dia são recursos integrados à linguagem dominante e já podem até mesmo ser
consideradas um clichê da função II da classificação de Gorbman, significante de emoção, operando
principalmente nos gêneros terror e suspense como representação do irracional.
44

algumas canções chinesas folclóricas que haviam inspirado um outro compositor do


departamento musical da Metro a compor “lovely music” para o filme.
Autonomia artística para a música, abandono total dos clichês românticos e ênfase
nos novos recursos composicionais podem ser considerados os elementos que compõem a
tríade central nos postulados de Adorno e Eisler. É com base nessa tríade que eles
abordam a questão do contraponto entre música e imagem no cinema.

1.3.3 - A questão do contraponto em Adorno e Eisler.


Embora não utilizem a palavra contraponto, Adorno e Eisler também criticam o
que chamam de “pseudo-psicológica empatia estética e reduplicação redundante” 1na
música do cinema dominante: “A música, ao invés de limitar-se ao convencional reforço
da ação ou do clima, pode projetar seu significado em relevo, situando-se em oposição ao
que está visualmente representado na tela”. 2 Para os autores, a relação entre música e
imagem, pela própria natureza diferenciada destas duas artes, não é de similaridade, mas
sim uma relação dialética de pergunta e resposta, afirmação e negação, aparência e
essência. 3
A partir desse ponto de vista, Adorno e Eisler afirmam que o desenvolvimento da
música para cinema será medido na extensão em que ela é capaz de fazer essa relação
dialética e antitética de modo frutífero, e de desvencilhar-se da ilusão de uma relação
direta entre música e imagem. 4 Os autores dão dois exemplos de cenas onde a oposição
entre música e imagem é, segundo eles, utilizada com sucesso:
a) Kuhle Wampe (Bertold Brecht & Slatan Dudow, 1931). As imagens mostram casas
precárias em um bairro miserável. A atmosfera é passiva, desesperançada, deprimente,
enquanto a música é ativa, penetrante: um prelúdio polifônico de caráter marcato. O
contraste entre movimento (na música) e passividade (na ação), segundo Adorno e
Eisler, funciona como um choque deliberado que provoca um sentimento de
resistência, e não uma empatia sentimental;

1
Adorno & Eisler, op. cit., p. 80.
2
Ibid., p. 26.
3
Ibid., p. 80.
4
Ibid., p. 78.
45

b) Dans les Rues (Victor Trivas, 1933). A tela mostra um luta sangrenta entre
desordeiros numa paisagem de princípio de primavera. A música, na forma de
variações, é suave e triste. Para Adorno e Eisler, a música expressa o contraste entre o
incidente e a cena, sem relação direta com a ação. Seu caráter lírico cria um
distanciamento da brutalidade dos eventos representados na tela: aqueles que estão
cometendo a brutalidade, são as próprias vítimas de seus atos. Este é um exemplo de
passividade (na música) em oposição a movimento (na ação).
Estes dois exemplos, onde, aliás, é inevitável perceber o cunho social e político do
pensamento de Adorno e Eisler sobre a música para cinema (a música sendo utilizada
para evocar solidariedade e resistência), de certa forma, revela uma contradição. Nas
cenas descritas são claras as disjunções entre movimento e passividade, entre ação e
inação, mas, ao mesmo tempo, há elementos em conjunção entre a música e a imagem
que podem ser entendidos como exemplos de música operando nas funções narrativa
referencial e significante de emoção do modelo clássico.
Em Kuhle Wampe, Brecht e Dudow utlizam a música para significar um
sentimento de resistência, de esperança num mundo melhor, e fornecer ao espectador
uma referência do ponto de vista do filme sobre aquelas imagens de pobreza e miséria. O
mesmo acontece em Dans les Rues, onde a música não acompanha o ritmo da ação, mas
procura levar o espectador a “perdoar” a brutalidade dos personagens que, do ponto de
vista do filme, são vítimas da sua própria violência. Nos dois casos, há disjunção entre os
ritmos da ação e da música, mas existe, em outros níveis, conjunção entre o que se vê e o
que se ouve.
A partir da noção de contraponto proposta por Eisenstein, o uso de som no cinema
passou a ser, de certa forma, visto por críticos e cineastas sob duas perspectivas
antagônicas: som e música operando em paralelo à ação representada na tela versus som
e música em contraponto em relação à ação. Segundo Michel Chion, como veremos a
seguir, esta polarização se baseia em uma noção imprecisa da idéia de contraponto, e
reduz as infinitas possibilidades dramatúrgicas da “audiovisão” a um modelo dual
intelectualizado e inútil em termos práticos.
46

1.3.4 - Michel Chion: questões relativas ao contraponto, e aos princípios da


inaudibilidade e da continuidade.
No âmbito deste trabalho, a palavra final sobre a questão do contraponto será dada
ao compositor, diretor de curta-metragens e crítico cinematográfico francês Michel
Chion, que no livro Audio-Vision, sintetiza e amplia idéias por ele desenvolvidas em
publicações anteriores 1 sobre o som no cinema. Os estudos de Chion, que abordam de
forma ampla e consistente aspectos estéticos, funcionais e tecnológicos da relação som-
imagem em produtos e meios audiovisuais, podem ser considerados como uma leitura
fundamental para qualquer trabalho de pesquisa que tenha como enfoque a música no
cinema. Embora aborde também algumas questões relativas à música, Chion prioriza, em
suas análises, aspectos específicos das possibilidades dramatúrgicas do som e da voz
como elementos da linguagem cinematográfica. No contexto deste trabalho, portanto, um
mergulho profundo no pensamento de Chion extrapolaria o recorte proposto. Entretanto,
algumas idéias discutidas em Audio-Vision tangenciam o objeto desta dissertação.
Segundo Michel Chion, a chegada do cinema sonoro, no final dos anos 20,
coincidiu com uma forte onda de esteticismo no filme mudo. As pessoas passaram a ter
um interesse apaixonado em comparar o cinema com a música. Para Chion, essa é a razão
pela qual muitos teóricos adotaram o termo contraponto para designar a noção de um
estado ideal do som no filme: um cinema livre de redundâncias onde o som e a imagem
constituem duas pistas fisicamente paralelas, mas vagamente conectadas, nenhuma
dependente da outra.
Chion critica o uso do termo contraponto para designar a disjunção entre música e
imagem, por considerá-lo redutor e semanticamente impreciso. Para o autor, no âmbito
da música ocidental o termo contraponto refere-se a um modelo composicional baseado
em várias vozes concomitantes individualizadas e coerentes na dimensão horizontal. Já o
termo harmonia, diz respeito à dimensão vertical que envolve as relações de cada nota
com outra ouvida no mesmo momento, juntas formando acordes. Treinamento em
composição clássica envolve o aprendizado das duas disciplinas e a maioria das obras
compostas na tradição clássica combina as duas dimensões.

1
La Voix au Cinéma, Le Son au Cinéma, e La Toile Trouée.
47

Para Chion, se existe algo que possa ser chamado de contraponto audiovisual, isto
ocorre sob condições significativamente diferentes do contraponto musical. Na música,
apenas notas estão sendo usadas – o mesmo material – enquanto som e imagem
pertencem a diferentes categorias sensoriais. Falar sobre contraponto no cinema é,
portanto, tomar por empréstimo uma noção imprecisa, aplicando uma especulação
intelectual ao invés de um conceito viável, que pode ser trabalhado num contexto
prático 1.
Na visão de Chion, os estudos sobre o filme tornaram-se confusos com essa
analogia, ao ponto de usá-la constantemente de modo equivocado. Muitos casos tomados
como exemplo de contraponto poderiam ser, na verdade, exemplos de harmonia
dissonante, uma vez que apontam para uma discordância momentânea entre a natureza
figurativa da imagem e do som, apesar do termo harmonia também não levar em conta as
especifidades do fenômeno audiovisual. Segundo o autor, muitas são as possibilidades de
acrescentar som a qualquer imagem dada. Dentro deste amplo conjunto de opções,
algumas são totalmente convencionais. Outras, sem contradizer ou “negar” a imagem,
transportam a sua percepção para outro nível. Além disso, a dissonância audiovisual é tão
meramente o inverso da convenção, e, conseqüentemente, presta homenagem à
convenção, aprisionando-nos numa lógica binária que tem somente de modo remoto
alguma coisa a ver com o modo como funciona o cinema. 2
Um último aspecto a ser considerado dentro deste corpo teórico das funções da
música no cinema, diz respeito a um pensamento crítico que também floresceu na crítica
francesa dos Cahiers du Cinéma nos anos 60/70, defendendo um discurso
cinematográfico fragmentado e “visível” em oposição às estratégias de montagem
clássicas cujo objetivo é construir um discurso “invisível”. Na prática clássica, a
mixagem de uma trilha sonora consiste essencialmente na arte de suavizar as passagens
de um som para outro, aparando arestas e alisando asperezas, através da manipulação do

1
De fato, somente quem nunca estudou as regras do contraponto, analisou uma fuga de Bach, ou
dedicou-se a compor uma obra de caráter contrapontístico, poderia usar esse termo para referir-se a uma
disjunção entre som e imagem. Em uma fuga, as diversas vozes polifônicas guardam estreita ligação tonal
entre si e operam em profunda conjunção rítmica, harmônica e melódica. Muitos, senão todos, os
procedimentos composicionais empregados numa fuga são baseados em simetria.
2
Chion, M., op. cit., p. 35-39.
48

volume do áudio (fades in e out 1), com o objetivo de “ocultar” os pontos de edição da
trilha. Segundo Chion, nos anos 60-70 alguns críticos passaram a ver essa prática
dominante não como “naturais” mas sim como a corporificação de uma ideologia
particular e de um posicionamento estético exclusivo e característico do cinema
hollywoodiano. Muitas análises desse tipo surgiram neste período, concluindo
invariavelmente com um apelo à desmistificação do modelo clássico, e propondo um
cinema baseado na fragmentação da narrativa. Segundo Chion, apenas alguns poucos
diretores, entre estes Jean-Luc Godard, realmente atenderam ao apelo deste pensamento
crítico. Para Chion, Godard foi um dos raros diretores a realizar cortes abruptos no som,
acentuando saltos e descontinuidades, e, em grande parte, desprezando a edição
“inaudível” de áudio com suas gradações de intensidade e todos os fades, dissoluções,
fusões e transições predominantemente empregadas na mixagem dos filmes.
Em sua dissertação de mestrado, Suzana Reck Miranda cita Chion, que no livro
La Musique des Films fala sobre a edição heterodoxa de música nos filmes do diretor
francês. Godard rompe com os princípios clássicos da inaudiblidade e da continuidade ao
utilizar cortes abruptos e música em volume mais alto que os diálogos:

Se existe uma marca no emprego da música para a obra de Godard é, na


opinião de Chion, o uso de rupturas e interrupções constantes na mesma. O
cineasta tem uma preferência em realizar cortes abruptos em músicas do
repertório clássico. Mesmo quando se trata de composições originais para
os seus filmes, esta concepção é aplicada. É comum nos seus filmes a música
cobrir os diálogos ou então ocorrer uma correspondência no modo de tratar
os ruídos, as vozes e a música, podendo ocorrer cortes e deslocamentos nos
três componentes da banda - sonora. 1

A prescrição de um procedimento baseado na idéia de contraponto entre música e


imagem/ação, e de descontinuidade e “audibilidade” na edição da trilha sonora, aqui
discutidas por Eisenstein, Adorno & Eisler e Chion, surgiram e floresceram no

1
Expressões correntes nos estúdios de música e cinema. Fade in significa um crescendo do
silêncio ao volume desejado. Fade out, do volume em que o áudio está presente, ao silêncio.
49

pensamento e na prática de críticos e cineastas que defendiam um cinema autoral, não-


comercial e anti-hollywwodiano por essência. Para eles, paralelismo musical/visual e
continuidade na edição de áudio eram “males estéticos”, inerentes ao modo de utilizar
música no cinema industrial americano, que deviam ser combatidos.
Como foi visto anteriormente, não é intenção deste trabalho discutir quem tem
razão, ou seja, se a música de cinema deve seguir este, aquele ou qualquer paradigma,
mas sim olhar a música no cinema brasileiro de posse de um instrumental analítico
abrangente e crítico. Assim, o modelo clássico, exposto por Gorbman, ampliado pela
classificação de Tagg, e posto em relação de confronto com as tendências anti-
hollywoodianas expostas nesta seção será o guia dos próximos passos desta narrativa.

1
Miranda, R. S., op. cit., p. 25-25.
50

CAPÍTULO 2 - ESTRATÉGIAS CLÁSSICAS E PRÁTICAS HETERODOXAS NO


CINEMA BRASILEIRO.

No capítulo anterior, vimos que, segundo Gorbman, a música no filme clássico


norte-americano é composta e editada com base em um conjunto de procedimentos,
consolidados pela prática, que visa principalmente favorecer a fruição da narrativa,
prover o espectador de informações dramaturgicamente importantes e contribuir para que
a audiência experimente uma impressão de realidade. Por outro lado, vimos também que
a música pode operar em disjunção com as imagens, gerando conflitos na relação
imagem-som ou tornando explícito o caráter fragmentado da montagem. O propósito
central deste segundo capítulo é investigar, no contexto da produção cinematográfica
nacional, reflexos exemplares, tanto das estratégias clássicas quanto dos modos
heterodoxos de fazer música para cinema. É possível encontrar evidências do conjunto de
práticas adotado pelo cinema clássico de Hollywood no filme comercial/industrial
brasileiro do mesmo período? Que exemplos podemos encontrar, no chamado cinema de
arte nacional, de rupturas com esse modelo e de outras propostas de interação
música/narrativa cinematográfica?
Embora os objetos de análise desta dissertação - os filmes O Quatrilho, O Que É
Isso, Companheiro? e Central do Brasil - tenham sido eleitos no âmbito do ciclo mais
recente do cinema brasileiro, conhecido como “Retomada”, em busca de respostas para
essas perguntas será feita uma breve digressão ao passado, com o intuito de enriquecer,
por meio de exemplos extraídos na tradição do nosso cinema, a “escuta” da música no
cinema brasileiro comercial contemporâneo. Como Gorbman situa a sedimentação do
modelo clássico no filme hollywoodiano industrial dos anos 30/40, foram eleitos aqui
como objetos de análise alguns filmes das companhias cinematográficas Cinédia,
Atlântida e Vera Cruz. A Cinédia, fundada em 1930; a Atlântida, em 1941; e a Vera
Cruz, em 1949, lutaram pela implantação de um cinema industrial no Brasil. Como
campo de investigação de exemplos de usos heterodoxos de música no cinema, foi eleito
o efervescente período dos anos 60/70, quando floresce no Brasil um modo de fazer
filmes independente, onde valores autorais e ideológicos predominam sobre valores de
51

mercado. Assim, tendências anti-hollywoodianas de emprego de música serão apontadas


no domínio experimental/vanguardista do Cinema Novo e do Cinema Marginal.
Antes, porém, de falar da música nesses “recortes” de cinema, é importante fazer
uma breve contextualização dos conjuntos dos quais foram extraídos os exemplos.
Assim, neste capítulo, serão também comentados alguns aspectos estético-históricos
relativos ao universo investigado, assim como destacadas algumas características gerais
da música produzida na Cinédia, na Atlântida, na Vera Cruz e no âmbito dos movimentos
cinemanovista e marginal, levando em conta as fichas técnicas dos filmes produzidos no
contexto recortado e a visão de autores como Lécio Augusto Ramos, Hernani Heffner e
Jorge Antunes sobre a música no cinema brasileiro.

2.1 - Cinédia, Atlântida e Vera Cruz: apostas em um cinema brasileiro de modelo


industrial.
A Cinédia, a Atlântida e a Vera Cruz podem ser consideradas bons exemplos de
iniciativas voltadas para a implantação de um cinema brasileiro de caráter industrial, com
um modo de produção inspirado no modelo dos estúdios hollywoodianos. A Cinédia,
fundada por Ademar Gonzaga em 1930, produziu cerca de 60 longa-metragens de ficção.
Os primeiros títulos da companhia - Lábios sem Beijos (Humberto Mauro, 1930), Mulher
(Octávio Gabus Mendes, 1931), Limite (Mário Peixoto, 1931) e Ganga Bruta (Humberto
Mauro, 1932-33) - seguiam a linha do gênero drama. Entretanto, embora alguns dramas,
entre os muitos produzidos pela Cinédia, tenham alcançado grande êxito artístico e de
bilheteria, - Limite tornou-se um clássico e O Ébrio (1946), dirigido por Gilda de Abreu,
teve público estimado em doze milhões de espectadores - os grandes sucessos da
companhia foram os filmes “musicarnavalescos”. Comédias musicais como Estudantes
(Wallace Downey, 1935), Alô, Alô Brasil (W. Downey, J. de Barro e A. Ribeiro, 1935) e
Alô, Alô Carnaval (Adhemar Gonzaga, 1936), onde um fio de história servia de elemento
de ligação entre sucessivos “números musicais” nos quais cantores de sucesso do rádio
interpretavam canções de carnaval. 1

1
Ramos L. A. & Heffner, H., “Cinédia” in Ramos F. & Miranda L. F., org., Enciclopédia do
Cinema Brasileiro, São Paulo: Editora Senac, 2000, p. 130-132.
52

Essa vertente “musicarnavalesca” do cinema brasileiro tem também presença


dominante nos filmes da Atlântida, companhia cinematográfica fundada em 1941, por
Moacir Fenelon e José Carlos Burle, com objetivo semelhante ao da Cinédia, ou seja,
promover o desenvolvimento industrial do cinema brasileiro 1. Assim como a Cinédia, a
Atlântida tem a sua produção inicial de ficção voltada para o gênero drama, mas atinge o
apogeu comercial com as comédias populares e os musicais carnavalescos. Filmes como
Carnaval Atlântida (José Cralos Burle, 1952), A Dupla do Barulho (Carlos Manga,1952),
Nem Sansão nem Dalila (Carlos Manga, 1954), Matar ou Correr (Carlos Manga, 1954) e
o Homem do Sputnick (Carlos Manga, 1959), entre outros, tornaram-se a marca registrada
da companhia: as Chanchadas 2. A mais profícua das três companhias cinematográficas
investigadas nesse capítulo, a Atlântida, produziu cerca de sessenta e oito títulos. Em
1962, a Atlântida lançou seu último filme: Os Apavorados, dirigido por Ismar Porto. 3
Inciativa do empresário italiano Franco Zampari, a Vera Cruz foi fundada em
1949 com o objetivo de transformar o estado de São Paulo em um pólo produtor de
cinema, espaço até então ocupado pelo Rio de Janeiro. “Cinema se faz com bons
técnicos, bons artistas, maquinaria adequada, grandes estúdios e dinheiro” 4, este foi o
pensamento que norteou a trajetória da Vera Cruz em busca de um cinema de “produção
brasileira com padrão internacional ” 5.

1
“ O Cinema, pelos aspectos tão variados que apresenta, principalmente pela natureza industrial
de suas realizações, já se firmou no mundo contemporâneo como um dos mais expressivos elementos de
progresso. A tal ponto que os grandes povos de hoje lhe dedicam ação permanente, entregando-se com
esforço ao estudo dos métodos técnicos, financeiros e comerciais que lhe são próprios. No Brasil, o cinema
ainda representa muito menos do que deveria ser e, por isso esmo, quem se propuser, fundado em seguras
razões de capacidade, a contribuir para o seu desenvolvimento industrial, sem dúvida estará fadado aos
maiores êxitos. E também prestará indiscutíveis serviços para a grandeza a pátria” ( Manifesto da
Atlântida, de 1941. - In Viany, A., Introdução ao Cinema Brasileiro, Rio de Janeiro: MEC/Instituto
Nacional do Livro, 1959.)
2
Em paralelo às Chanchadas, a Atlântida continuou a produzir dramas. Em 1947, o melodrama
Luz dos meus Olhos, dirigido por José Carlos Burle, abordando problemas raciais, não faz sucesso de
público, mas é premiado pela crítica como melhor filme do ano. No ano de 1950, Watson Macedo recebe o
prêmio de melhor diretor pelo filme A Sombra da Outra, uma adaptação do romance Elza e Helena, de
Gastão Cruz.
3
Miranda L. F., “Atlântida”, in Ramos & Miranda, op. cit., p. 33-34.
4
– História da Vera Cruz – (sítio oficial da Vera Cruz) http://veracruz.itgo.com/mainbr.htm -texto
apócrifo.
5
Ibid.
53

Segundo P. Paranaguá 1, os filmes da Vera Cruz procuravam aplicar os códigos


narrativos de Hollywood sobre histórias com “cor local” (Caiçara, Sinhá Moça, Tico-
Tico no Fubá, O Cangaceiro), melodramas convencionais (Apassionata, Floradas na
Serra), comédias de costumes (Nadando em Dinheiro, Sai da Frente) e policiais noir
(Na Senda do Crime). O sonho hollywoodiano de Franco Zampari, entretanto, teve vida
curta e o único filme da Companhia que chegou a conquistar algum espaço significativo
no exterior foi O Cangaceiro (1953), premiado no festival de Cannes de 1953. Segundo
depoimento do teatrólogo e cineasta Abílio Pereira de Almeida à historiadora Maria
Rita Galvão, a ingenuidade empresarial de Zampari levou a Vera Cruz, afogada em
dívidas, a fechar as portas em 1954 deixando um legado de dezoito longa-metragens.

2.2 - A música extradiegética na Cinédia, na Atlântida e na Vera Cruz: exemplos da


influência do modelo clássico.
No livro 50 Anos de Cinédia 2, Alice Gonzaga, filha do fundador da companhia,
apresenta uma filmografia com sessenta e um títulos de filmes produzidos, co-produzidos
ou distribuídos pela Cinédia. A análise das fichas técnicas dessa filmografia revela a forte
predominância dos chamados “números musicais” tanto nas comédias quanto nos
dramas. Para Lécio Augusto Ramos, na era dos “musicarnavalescos” e, posteriormente,
nas Chanchadas da Atlântida, houve um predomínio da canção diegética sobre a música
extradiegética 3:

Marcado pelo apogeu dos gêneros musicais populares, primeiro na Cinédia


e depois na Atlântida,[a fase dos “musicarnavalescos” e das Chanchadas] é
um período em que a canção importa mais que o fundo musical.
Compositores e arranjadores populares no Rádio, como Radamés Gnatalli,
Lyrio Panicalli e Leo Peracchi, são recrutados para formatar arranjos

1
Paranaguá, P. A., “Vera Cruz”, in Ramos & Miranda, op. cit., 2000, p. 561-562.
2
Gonzaga, A., 50 Anos de Cinédia, Rio de Janeiro: Record, 1987.
3
Os compositores mais citados nas fichas técnicas dos filmes da Cinédia são os que têm
atividade centrada na canção popular, os hit makers: da época :Lamartine Babo, Noel Rosa, Assis
Valente, Custódio Mesquita, Ary Barroso, João de Barro, Dorival Caymmi, Hervê Cordovil e Antônio
Nássara. A dupla Alvarenga e Ranchinho, Haroldo Lobo, Grande Otelo, David Nasser, Donga , Jararaca
54

padronizados para as canções de Carnaval. Além desse trabalho,


responsabilizavam-se em compor temas que eventualmente eram utilizados
para costurar as seqüências cômicas ou dramáticas. 1

É importante ressaltar, no entanto, que, apesar da forte predominância de canções,


a música instrumental extradiegética teve presença marcante nos dramas da Cinédia.
Ganga Bruta e O Ébrio são bons exemplos da influência do modelo clássico, descrito por
Gorbman, no cinema brasileiro 2. Em Ganga Bruta, Radamés Gnatalli, o compositor mais
citado nas fichas técnicas da Cinédia 3e que viria a ser um dos compositores mais atuantes
do cinema brasileiro de todos os tempos, estreou em longa-metragens de ficção seguindo
a “receita”. Gnatalli emprega o modo menor em passagens tristes ou reflexivas, o modo
maior em cenas alegres, dominantes estendidas e dissonância nas cenas de tensão.
Ataques de metais (stingers) em pontos culminantes de suspense, violinos nas cenas de
amor. O ritmo musical está quase sempre subordinado ao ritmo da ação, e um bom
exemplo desse procedimento é a cena da partida do protagonista, Dr. Marcos, para o
interior, onde a música acelera em sincronismo com o acelerando das engrenagens do
trem que parte, em um efeito de ilustração que se enquadra na função narrativa
conotativa de Gorbman. Exemplos de música operando na função narrativa referencial,
no que diz respeito a indicadores de classe social de personagens, também podem ser
encontrados em Ganga Bruta: cenas que mostram ambientes sofisticados e personagens
“bem-educados” estão, em geral, associadas a música de concerto, enquanto um

e Ratinho, Ataulfo Alves, Luiz Gonzaga, Mário Lago, Billy Blanco, e Adelino Moreira embora menos
assíduos, também tiveram suas canções utilizadas em filmes da Cinédia.
1
Ramos, L. A., “Trilha Sonora”, in Ramos & Miranda, op. cit., p. 548.
2
Embora os grandes sucessos da companhia tenham sido os “musicarnavalescos”, infelizmente
não foi possível tomá-los como exemplo nessa pesquisa, pois não foi encontrada nenhuma cópia em vídeo
de filmes da Cinédia desse gênero nas locadoras que serviram de base para essa pesquisa - Estação
Botafogo, Estação Paissandú, Politheama, e Macedônia.
3
Na filmografia da Cinédia aparecem ainda os nomes de Francisco Mignone, Guerra Peixe e
Heitor Villa-Lobos. Segundo a ficha técnica, Mignone compôs a “música de fundo” do filme Bonequinha
de Seda. Guerra-Peixe trabalhou nas comédias O Dia é Nosso (1941), dirigido por Milton Rodrigues
(canções de Donga e David Nasser), Poeira de Estrelas (1948) dirigido por Moacir Fenelon e Estou Aí?
(1949), dirigido por Cajado Filho. Segundo dados do livro Cinema Brasileiro 1908-1977, de Araken C. P.
Júnior, Guerra-Peixe trabalhou em dezenove filmes, em diversas fases do cinema brasileiro. Já Villa-
Lobos, embora seja citado nas fichas técnicas do livro de Araken C. P. Júnior como autor da música de
quinze longa-metragens, em verdade trabalhou como compositor de música original para cinema, segundo
55

“batuque” orquestral com forte presença de percussão afro-brasileira acompanha as cenas


de bar, onde a classe trabalhadora se diverte , se embriaga e briga. 1
No melodrama O Ébrio (1946), dirigido por Gilda de Abreu, um dos maiores
sucessos comerciais da Cinédia, a música diegética ocupa posição estrutural na narrativa.
É através da atividade de cantar em programas de auditório do rádio que o protagonista
Gilberto, interpretado pelo cantor Vicente Celestino, consegue custear seus estudos e
realizar o sonho de tornar-se um famoso e rico cirurgião. Assim, são numerosos os
“números musicais” e cenas onde Gilberto canta e cantarola em casa, às vezes
acompanhado pela esposa ao piano. No plano extradiegético, a trilha sonora de O Ébrio
tem algumas breves intervenções de música do repertório de concerto (Gounod, J.Srauss,
Mendhelson) e de música intrumental original assinada por Julio Cristóbal. A música de
Cristóbal, discreta e “inaudível”, opera primordialmente como significante de emoção na
representação do sofrimento do protagonista. Versões orquestrais da melodia da canção
Porta Aberta, com a qual o protagonista vence um concurso de calouros numa emissora
de rádio, acompanham a decadência de Gilberto rumo à mendicância, operando como um
leitmotif do protagonista (função narrativa referencial) e contribuindo para a unidade do
discurso fílmico.
A música de O Ébrio, sem dúvida é, um bom exemplo de aplicação do modelo
clássico na música extradiegética. Entretanto, em uma cena da seção final do filme pode-
se observar um bom caso de disjunção entre música e imagem. Vítima de uma desilusão
amorosa, o antes bem-sucedido Gilberto havia se transformado em um mendigo
alcoólatra. Em uma de suas perambulações, embriagado pelos bairros miseráveis da
cidade, esbarra em outro mendigo, também bêbado, e tem início uma seqüência de gags
humorísticos circenses. Apesar de a cena receber um tratamento visivelmente cômico,
quase chapliniano, a música que acompanha as imagens mantém o caráter triste e
dramático, causando, no contexto cinematográfico em que o filme se insere, um efeito

Jorge Antunes, apenas no filme da Cinédia O Descobrimento do Brasil (1937), dirigido por Humberto
Mauro: Nos outros casos, a música de Villa-Lobos foi utilizada como trilha adaptada.
1
Para Ganga Bruta, Gnatalli compôs música original de caráter sinfônico, além da melodia da
canção Teus Olhos... Água Parada. A letra dessa canção é de autoria de Heckel Tavares, que assina ainda
as canções Coco de praia (números 1 e 2) e a canção-tema Ganga Bruta, esta com letra de Joracy Camargo.
Na Cinédia, Radamés Gnatalli assinou ainda a direção musical da comédia Onde Estás Felicidade
56

peculiar de estranhamento, pois a música, ancorada no drama, de certa forma impede a


fruição do humor das imagens. Esta seqüência é um bom exemplo do que Tagg classifica
como comentário ou contraponto, mas que Chion prefere chamar de harmonia
dissonante.
Assim como ocorre em O Ébrio e Ganga Bruta, a aplicação do modelo clássico
de música para cinema em filmes da Atllântida pode ser também flagrada. Títulos como
Carnaval Atlântida, Nem Sansão nem Dalila e Matar ou Correr, com música assinada
por Lyrio Panicalli, o compositor mais ativo da companhia 1, refletem com clareza a
influência da música que se fazia no período clássico hollywoodiano. Em Carnaval
Atlântida a música de abertura é um medley de versões instrumentais das canções do
filme. Durante a narrativa propriamente dita, a música extradiegética opera nas transições
entre cenas (função IV - continuidade) e estabelecendo climas (função III - narrativa
referencial e conotativa): “música de suspense”, em cenas de perigo; “música
engraçada”, em cenas de humor chanchadesco; “música agitada”, nas cenas de
perseguição e briga; “música romântica”, nas cenas de amor.
Em Nem Sansão nem Dalila, Panicalli adota os mesmos procedimentos
empregados em Carnaval Atlântida, com destaque para a utilização de música na função
narrativa referencial no que diz respeito à representação de tempo e lugar. Nas primeiras
seqüências do filme, ambientadas em ambiente urbano, a música extradiegética é tonal.
No primeiro “ponto de virada” 1 da história, quando os personagens interpretados por
Oscarito e Grande Otelo são transportados através de uma “engenhoca do tempo” para a
Roma Antiga, a música torna-se modal e a orquestração mais rarefeita, explorando
sonoridades associadas a “música antiga”.
Assim como em Matar ou Correr, em Nem Sansão nem Dalila, a música de
Gnatalli, além de seguir o modelo clássico, faz referências mais ou menos explícitas à

(Mesquitinha, 1939) e do drama Caminho do Céu (Milton Rodrigues, 1943), este último em parceria com
Lyrio Panicalli.
1
A análise das fichas técnicas dos filmes da Atlântida1 revela um amplo domínio do compositor
Lyrio Panicalli, que assina a música de trinta e um entre os sessenta e oito filmes produzidos pela
companhia de 1943 a 1964. Alexandre Gnatalli , Léo Perachi e Radamés Gnatalli são os outros
compositores citados mais de uma vez nas fichas técnicas. (Informações colhidas no livro Cinema
Brasileiro 1908-1978 de Araken C. Pereira Jr. Santos, Casa de Cinema, 1979).
57

música dos filmes hollywoodianos, numa relação intertextual de sátira que fica clara já na
abertura dos dois filmes. A música de Nem Sansão nem Dalila, uma sátira à super-
produção hollywoodiana Sansão e Dalila (Cecil B. de Mille, 1949), começa com metais
executando melodias a duas vozes em intervalos de quartas e quintas paralelas e
tímpanos marcando as semínimas, remetendo o ouvinte/espectador ao estilo épico do
diretor Cecil B. de Mille 2. Na abertura de Matar ou Correr a percussão e os metais em
ritmo “galopado” situam o espectador no clima de sátira aos faroestes de Hollywood 3.
Outra referência importante ao gênero faroeste são as cadências plagais 4, típicas na
música de filmes americanos deste gênero, utilizadas, em geral, em grandes planos gerais
de paisagens.
A edição voltada para a inaudibilidade é um característica comum aos filmes da
Cinédia e da Atlântida, incluídos como exemplos nesta pesquisa. A mixagem da música,
em todos os filmes investigados, segue o procedimento vococêntrico descrito por Michel
Chion. Se há diálogos na trilha sonora, a música está ausente ou em plano-de-fundo. Esse
modo de mixar a música em subordinadação às vozes também pode ser flagrado em
filmes da Vera Cruz como Caiçara, O Cangaceiro e Floradas na Serra.
Segundo L. Ramos 5, a produção da Vera Cruz é a que mais se aproxima do
modelo clássico de música para cinema. Já Hernani Heffner vê na música da companhia
paulista traços de “evolução”, em relação ao padrão da Cinédia e da Atlântida: “No
campo da trilha musical, evoluiu-se sensivelmente com a fixação de compositores
regulares para o cinema e o uso dramático dos temas, em geral dentro da tradição

1
Refiro-me aqui ao conceito de “ponto de virada” ou “plot point” adotado pelo script doctor Syd
Field: os plot points geralmente dizem das “viradas” na trajetória, ou “cortes epistemológicos”, na vida do
protagonista. (Field, S., Manual do Roteiro, Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1982.
2
O diretor e produtor Cecil B. de Mille tornou-se conhecido principalmente através épicos dos
Sansão e Dalila, Cleópatra (1934) e Os Dez Mandamentos (1923 e 1956).
3
A sátira ao filme hollywoodiano é uma das principais características das Chanchadas. Em De
Vento em Popa(1957), Oscarito faz uma imitação do ídolo do rock Elvis Presley, e. em Os Dois
Ladrões(1960), imita os trejeitos de Eva Todor em frente ao espelho, numa clara referência ao filme Hotel
da Fuzarca (1929), com os Irmãos Marx.
4
Cadências conclusivas do tipo sub-dominante- tônica, de caráter modal, onde a relação
tensão/repouso é branda pois não há o movimento de resolução do trítono inerente às cadências dominante-
tônica. O caráter modal da cadência plagal está semanticamente conectado a períodos históricos pré-tonais,
ou a sociedades pré-industriais.
5
Ramos L. A, “Trilha Sonora” in Ramos & Miranda, op. cit., p. 548.
58

1
americana.” Mas, na verdade, o que se observa, ao menos nos filmes investigados no
âmbito desta pesquisa, é continuidade e não ruptura ou “evolução” qualitativa. Tanto na
Cinédia quanto na Atlântida já havia os “compositores fixos”, e, como será visto a seguir,
na Vera Cruz também havia “números musicais”, embora de uma maneira diferenciada.
Em Caiçara, primeiro lançamento da Vera Cruz, a trilha sonora tem canções no
plano diegético 2e a música extradiegética de Francisco Mignone segue, em geral, o
paradigma clássico. Caiçara é um dramalhão. Na primeira seção da história, enquanto as
imagens e os diálogos cumprem a função dramática de apresentar ao público o casal de
protagonistas, José Amaro e Marina, é a música de caráter dramático que, atuando nas
funções significante de emoção e narrativa referencial, estabelece o gênero do filme e a
intensidade do drama que o futuro reserva aos personagens. Em uma cena onde um “falso
amigo” tenta beijar à força a esposa do protagonista, a música segue, em paralelo, a
progressão dramática: é ativa e dissonante enquanto há confronto físico entre os dois;
suaviza, diminuindo o grau de dissonância e a atividade rítmica, quando ela consegue
colocá-lo para fora de casa; torna-se misteriosa e mais dissonante, quando ela percebe
que há alguém do lado de fora tentando entrar; e relaxa finalmente, resolvendo as
tensões em um acorde prolongado de tônica menor, quando ela percebe que o possível
invasor não é o “falso amigo”, mas sim seu marido José Amaro que chega para salvá-la.
Em Caiçara, a música extradiegética opera principalmente em transições entre
cenas (função IV - continuidade) e nos momentos de maior intensidade dramática da
história. Curiosamente, no entanto, o diretor optou por não usar música na seqüência do
assassinato de José Amaro pelo sócio, ponto culminante da narrativa. A seqüência
acabou ficando com menos impacto dramático que outras de menor importância, o que
pode ser considerado um “erro” no modelo clássico. Um outro desvio em relação ao

1
Heffner, H., “Som”, in Ramos & Miranda, op. cit., p. 520.
2
A presença da canção popular é marcante em Caiçara e aparece de três maneiras, sempre no
plano diegético: o sócio de José Amaro canta duas vezes acompanhando-se ao violão; grupos de nativos
cantam músicas de refrão e estribilho, fazendo de “improviso” referências aos personagens do filme;
manifestações folclóricas de canto e dança servem de cenário e fundo musical para algumas ações. Em
Caiçara, portanto, a música popular opera dando “cor local” - é música de uso comum dos pescadores e
habitantes da ilha onde a ação se dá - e dialogando com a narrativa através dos comentários das letras.
De certa forma, podemos considerar algumas das cenas onde os personagens cantam como “números
musicais”, já que, embora sem o aspecto de espetáculo da música dos filmes da Cinédia e da Atlântida,
em Caiçara a canção também tem lugar de destaque, chegando em alguns momentos a ocupar o primeiro
plano narrativo.
59

paradigma hollywoodiano é o “excesso de caráter” da música de Mignone. As


composições de Mignone para Caiçara, embora estejam quase sempre subordinadas
aos propósitos do filme, algumas vezes contrariam o princípio da inaudibilidade,
parecendo se “descolar” da narrativa e demandando excessiva atenção sobre si mesma.
Seguindo o mesmo modelo, a música de Gabriel Migliori para O Cangaceiro
também é marcada por canções. A melodia da canção Mulher Rendeira é empregada
como leitmotif e está presente na trilha já sobre as primeiras imagens, cantada no plano
extradiegético por um coro de vozes masculinas. No curso do filme, ela aparece mais
duas vezes cantada (uma delas no plano diegético interpretada pela atriz Vanja Orico) e
em variações orquestrais com diversos tratamentos rítmicos e harmônicos. Também
neste filme pode-se verificar a presença dos “números musicais”. Em uma seqüência
noturna no acampamento dos cangaceiros - a progressão dramática que conduz à fuga
de Teodoro com a professora mantida como refém do bando -, quatro canções do
compositor Zé do Norte são cantadas:
- a toada Lua Bonita é interpretada a quatro vozes pelo grupo de cangaceiros com
acompanhamento de sanfona e percussão. A interpretação afinadíssima e profissional
dá à performance um tom de “espetáculo”, soando diferente do que acontece, por
exemplo, em Caiçara, onde as canções são interpretadas de maneira mais informal;
- grupo de cangaceiros cantam e dançam o xaxado Vou-me embora pro Sertão do
Jatobá;
- cangaceiros cantam Meu Pião. A cada repetição do refrão (meu pião) um
cangaceiro/cantor é enfocado em close-up num tratamento que remete um pouco aos
video-clips contemporâneos;
- a personagem interpretada pela atriz Vanja Orico canta Sôdade, meu bem Sôdade,
acompanhada por um cangaceiro ao violão e por uma orquestra no plano
extradiegético.
A música extradiegética de Gabriel Migliori é muito presente em O Cangaceiro,
bem no estilo ilustrativo (função narrativa conotativa) de Max Steiner e presta um
serviço disciplinado e eficiente à narrativa, mesmo exagerando algumas vezes no uso
de efeitos cômicos de mickeymousing .
60

Se o objetivo da Vera Cruz era fazer cinema baseado nos padrões de


Hollywood, foi, sem dúvida, na música de Enrico Simonetti 1que os produtores da casa
encontraram a fórmula adequada para os seus melodramas. Floradas na Serra é um
exemplo de aplicação do modelo clássico na música para cinema. A exemplo de
Migliori, em O Cangaceiro, Simonetti usa a técnica do leitmotif. O mesmo motivo
musical que “emoldura” o filme na música de abertura e no encerramento percorre toda
a narrativa, colaborando para a unidade do discurso fílmico. Após a abertura, e
algumas pequenas transições, a música passa a operar como pista narrativa (função III
- narrativa referencial) em diversas passagens. Lucília, a protagonista interpretada pela
atriz Cacilda Becker, está descansando em um hotel em Campos de Jordão. Naquela
época, devido à qualidade do clima e do ar, Campos de Jordão abrigava um grande
número de doentes de tuberculose em recuperação e os turistas eram aconselhados a
fazer um exame médico. Lucília recebe, da gerência do hotel, um papel com o nome e o
telefone do médico que deverá lhe examinar. Ela guarda o papel dentro de um livro.
Mais tarde, quando pega o livro para ler, o papel cai, lembrando a Lucília que deve
procurar o médico. Quando o papel cai, um stinger dissonante nos metais indica ao
espectador que aquele exame terá importância na história. Trata-se, na verdade, do
primeiro sinal da progressão dramática da doença da protagonista. Mais tarde, uma
cena de Lucília sendo examinada no consultório termina com um primeiro plano da
radiografia. Um primeiríssimo plano enquadra o rosto do médico, com expressão
profissional, examinando a radiografia em silêncio enquanto um acorde dramático
deixa claro para o espectador que a radiografia contém más notícias: Lucília tem
tuberculose. Outra pista narrativa importante que fica a cargo da música é a
apresentação, na estação ferroviária, do personagem Bruno, interpretado por Jardel
Filho. Após descer do trem, o personagem caminha pela plataforma até parar,

1
As fichas técnicas dos filmes da Vera Cruz1 revelam que Enrico Simonetti ,Gabriel Migliori e
Francisco Mignone, foram os mais ativos compositores da companhia. Simonetti fez música para os
filmes Veneno (Giani Pons, 1952), Esquina da Ilusão (Rogério Jacobbi, 1953), Luz Apagada (Carlos
Thiré, 1953). Uma Pulga na Balança (Luciano Salce, 1953), É Proibido Beijar (Hugo Lombardi, 1954),
Na Senda do Crime (Flamínio B. Serri, 1954) e Floradas na Serra (Luciano Salce, 1954). Francisco
Mignone assina a música dos filmes Caiçara (Adolfo Celi, 1950), Ângela (Tom Payne, 1951), e Sinhá
Moça (Oswaldo Sampaio e Tom Payne, 1953). Gabriel Migliori fez a música de Família Lero-Lero
(Alberto Pieralise, 1953), Candinho (Alberto Pieralise, 1954), e O Cangaceiro (Lima Barreto, 1953). A
música de O Cangaceiro foi premiada com uma menção honrosa no Festival de Cannes.
61

enquadrado em plano médio pela câmera. Nesse momento, um crescendo na música


extradiegética “avisa” ao espectador que aquele não é um homem qualquer, mas
alguém que terá papel importante na história. Outra pista importante, e um exemplo de
utilização criativa de clichês, ocorre quando Lucília lê em voice over uma carta para
seus amigos de São Paulo que ainda não sabem de sua doença. Lucília esconde a
verdade e diz que a cidade é linda, o clima é ótimo, que está se divertindo muito.
Acompanhando as palavras de Lucília, o leitmotif recebe um tratamento com alto grau
de dissonância que contrasta com as palavras da carta e expõe a dor da protagonista.
Enquanto as palavras mentem para os amigos, a música confirma a verdade para o
espectador.
Floradas na Serra não tem “números musicais”, mas a canção popular tem
papel importante na trama atuando entre os planos diegético e extradiegético. A canção
Adeus Guacyra (Heckel Tavares e Joracy Camargo) é utilizada em três momentos da
progressão dramática do caso de amor entre Lucília e Bruno:
- Lucília recebe a visita de Bruno na pensão em que está morando com as companheiras
de tratamento. Uma das amigas coloca um disco no fonógrafo e Adeus Guacyra soa em
versão cantada. Lucília e Bruno conversam na varanda. Enquanto os personagens vão
se abrindo e revelando o que sentem um pelo outro, a música torna-se mais orquestral e
vai para o plano extradiegético, acompanhando a progressão dramática da cena;
- Bruno e Lucília, apaixonados, namoram ao som da canção que toca em um fonógrafo
na sala da casa que Lucília alugou para os dois;
- na seção final da história, após um grave desentendimento com Bruno, Lucília chega
em casa e põe a canção no fonógrafo, mas não agüenta ouvi-la e desliga o aparelho.
Ela sabe que seu caso com Bruno chegou ao fim. Adeus Guacyra marca de forma
expressiva o início, o auge e o fim do romance entre Bruno e Lucília, operando entre os
planos diegético e extradiegético na função narrativa referencial, como o leitmotif da
trama amorosa dos protagonistas, e contribuindo para a unidade da narrativa.
Ganga Bruta, O Ébrio, Carnaval Atlântida, Nem Sansão nem Dalila, Matar ou
Correr, Caiçara, O Cangaceiro e Floradas na Serra são filmes que refletem a forte
influência do modelo clássico de música para cinema sobre o filme comercial
dominante no Brasil durante o período em que a produção cinematográfica nacional
62

procurava seguir os passos do modo de fazer industrial hollywoodiano. Nestes filmes, a


música, na grande maioria das cenas e seqüências, opera em paralelo e subordinada ao
fluxo dramático e evita conflitos com os diálogos. No material composicional
empregado na música extradiegética predominam claramente estruturas clássico-
românticas baseadas no princípio da melodia acompanhada, e o respeito aos princípios
da unidade (repetição e variação de material temático) e da continuidade (música
operando em transições entre cenas) é um procedimento recorrente. Em todos os filmes
investigados não há cortes abruptos da música e um único exemplo de interação
música-narrativa que pode ser enquadrado no que Chion classifica como harmonia
dissonante ocorre na cena do filme O Ébrio, descrita nas páginas 35-36 deste capítulo.
Se o emprego do modelo clássico de música para cinema, a julgar pelos filmes
investigados no âmbito desta pesquisa, está presente na tradição do nosso cinema
comercial-industrial, procedimentos heterodoxos podem ser flagrados no contexto
independente do Cinema Novo e do Cinema Marginal.

2. 3 - Cinema Novo e Cinema Marginal - A desconstrução do modelo hollywoodiano.


A partir de meados dos anos 50, no Brasil, a produção de filmes independentes e
de baixo orçamento surge como alternativa ao modelo industrial. Influenciados pelo neo-
realismo italiano, que tem como uma das diretrizes estéticas a substituição da
artificialidade dos cenários dos filmes de estúdio pela “realidade” das filmagens ao ar
livre ou em locações, e pelo cinema-verdade, um tipo de documentário que procura
através do uso de som direto e fotografia sem artifícios captar o maior realismo possível,
diretores como Alex Viany (Agulha no Palheiro, 1953), Nélson Pereira dos Santos (Rio
40 Graus, 1955), Osvaldo Sampaio (A Estrada, 1957) e Roberto Santos (O Grande
Momento, 1958) dão os primeiros passos em direção ao movimento que eclode nos anos
60 com o nome de Cinema Novo. A nouvelle-vague e a influência da crítica francesa dos
Cahiers du Cinéma com a política do “cinema de autor”, a formação de profissionais nas
escolas de cinema da Europa, o movimento dos cineclubes e o surgimento de novas
63

tecnologias (equipamentos mais leves e ágeis) foram forças que contribuíram para o
surgimento de um novo cinema no Brasil. 1
O Cinema Novo rompe com as Chanchadas, os melodramas, e propõe “a
desmistificação estética do cinema americano e respectivos subprodutos” 2. Para Glauber
Rocha, o mais veemente porta-voz do movimento, o filme que se fazia no Brasil era
simples entretenimento com objetivos comerciais e uma estética servil ao modelo
hollywoodiano. Um meio de comunicação poderoso como o cinema deveria ser usado
como espaço de experimentação e expressão artísticas, de valorização da cultura
brasileira, de denúncia das injustiças sociais e de ação política anti-imperialista: “Cinema
como conhecimento, e não como divertimento; cinema como linguagem, e não como
espetáculo.” 3 Ainda segundo Glauber Rocha, este é um momento de ruptura na história
da produção cinematográfica nacional, “porque significa a primeira tomada de
consciência cultural e política do cinema brasileiro.” 4.
Cultura e política: o ideário do Cinema Novo propunha um enfoque realista em
aspectos sócio-culturais até então evitados, tratados com humor chanchadesco ou
“glamourizados” no cinema brasileiro - a fome, a pobreza, a miséria - e uma ação política
transformadora cujo principal objetivo era a libertação econômica e cultural do Brasil em
relação ao domínio imperialista americano. Glauber Rocha, ressaltando o poder de
comunicação da mídia cinematográfica, afirma que “o cinema, sendo o mais poderoso
instrumento de comunicação existente, é uma arma indispensável e fundamental na luta
contra o imperialismo” 5. Glauber defende um “cinema de guerrilha 6 como a única forma
de combater a ditadura estética e econômica do cinema imperialista ocidental” 7. No
manifesto Eztetyka da Fome 8, de 1965, Glauber Rocha reafirmaria o compromisso do
Cinema Novo com a abordagem realista das mazelas sociais do então chamado “terceiro
mundo”, erigidas pela fome e pela miséria:

1
Paranaguá, P. A., “Cinema Novo”, in Ramos & Miranda, op. cit., p. 144-146.
2
Rocha, G., Revolução do Cinema Novo, Rio de Janeiro: Alhambra/Embrafilme, 1981, p. 67
3
Ibid., p. 45.
4
Ibid., p. 77.
5
Ibid., p. 71.
6
Grifo do autor
7
Ibid., p. 77.
8
Apresentado durante as discussões em torno do Cinema Novo, por ocasião da retrospectiva
realizada na Resenha do Cinema Latino-Americano em Gênova.
64

De Aruanda a Vidas Secas, o Cinema Novo narrou, descreveu, poetizou,


discursou, analisou, excitou os temas da fome: personagens comendo terra,
personagens comendo raízes, personagens roubando para comer,
personagens feias, sujas, descarnadas, morando em casas sujas, feias,
escuras. Foi esta Galeria de famintos que identificou o Cinema Novo com o
miserabilismo tão condenado pelo Governo, pela crítica a serviço dos
interesses anti-nacionais, pelos produtores e pelo público. 1

Considerando o cinema comercial americano como o “vilão” da história, é no


âmbito do cinema independente internacional, principalmente o da Europa, que Glauber
elege os “heróis” do Cinema Novo: “Orson Welles e Jean Vigo, Flaherty e Max Ophuls,
Eisenstein e Visconti, Rosselini e Buñel - eis os heróis da saga cinematográfica em vários
pontos do mundo.” 2 Em oposição ao cinema comercial predominante do Brasil, Glauber
propõe, citando ainda outros realizadores independentes, a revolução estética com bases
nas idéias de André Bazin acerca de um “cinema de autor”:

Adotando-se o método do autor, que encontra no crítico francês André Bazin


seu primeiro pensador, (...) a história do cinema, modernamente, tem de ser
vista, de Lumière a Jean Rouche como ‘cinema comercial’ e ‘cinema de
autor’ 3. Não há limitações de som ou de cor para autores como Meliès,
Eisenstein, Dreyer, Vigo, Flaherty, Rosselini, Bergman, Visconti, Antonioni,
Resnais, Godard ou Truffaut. (...) O que dá eternidade a esses filmes [dos
diretores citados] é a política de seus autores: a realidade que, tanto através
das lentes primitivas de Tissé como das lentes modernas de Raoul Coutard,
foi apreendida e plasmada em visão de mundo 4.

1
Rocha, G., op. cit., p. 30.
2
Ibid, p. 25.
3
Grifos do autor
4
Rocha, G., Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1963, p.13.
65

Segundo o crítico Amir Labaki 1, a primeira fase do Cinema Novo tem um


enfoque acentuadamente social e rural. O exemplo maior dessa tendência é a chamada
“trilogia do sertão”, composta pelos filmes Deus e Diabo na Terra do Sol (Glauber
Rocha, 1963), Os Fuzis (Ruy Guerra, 1963) e Vidas Secas (Nélson Pereira dos Santos,
1963). Com o estabelecimento da ditadura militar em 1964, as câmeras trocam o interior
pela metrópole e a abordagem passa a ser mais política em filmes como A Grande
Cidade ( Cacá Diegues, (1965), O Desafio (Paulo César Saraceni, 1965), O Bravo
Guerreiro (Gustavo Dahl, 1968), e Terra em Transe (Glauber Rocha, 1966), ou
intimista, como na produção independente paulista de Walter Hugo Khoury (Noite
Vazia, 1964) e de Luís Sérgio Person (São Paulo S.A., 1965). Ainda segundo Labaki,
com o endurecimento do regime militar em 1968 e o conseqüente acirramento da
censura, o Cinema Novo envereda por uma última fase, alegórica, que estabelece um
diálogo com a vanguarda teatral e musical da Tropicália e tem como títulos
emblemáticos Brasil Ano 2000 (Walter Lima Jr., 1967-8), Azyllo Muito Louco (Nélson
Pereira dos Santos, 1969), Pindorama (Arnaldo Jabor, 1970) e Macunaíma (Joaquim
Pedro de Andrade, 1969) 2.
Já as primeiras manifestações do movimento que se tornou conhecido como
Cinema Marginal surgem no momento em que parte do grupo cinemanovista, passando a
priorizar a realização social de seus filmes, abandona a postura radical de questionamento
da narrativa cinematográfica e adota uma atitude voltada para a conquista do mercado por
meio de um cinema de espetáculo. Algumas das bandeiras desfraldadas no início do
Cinema Novo - câmera-na-mão e produções baratas - são empunhadas, agora, por jovens
cineastas perplexos e descrentes do poder de interferência do cinema no corpo social e
nas estruturas do poder. Com o fechamento político do governo militar, as pretensões
reformistas da geração de Glauber Rocha e Nélson Pereira dos Santos perdem força e dão
lugar a uma proposta de cinema que reflete a impossibilidade da ação política nos termos
anteriormente estabelecidos. “Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha e

1
Labaki, A., org., Cinema Brasileiro, São Paulo: Publifolha, 1998, p. 13-14.
2
Como na pesquisa bibliográfica realizada não foi encontrada uma filmografia precisa do
conjunto de obras do Cinema Novo, foram adotados como referência os verbetes “Cinema Novo” e
“Trilhas Sonoras” da Enciclopédia do Cinema Brasileiro (Ramos & Miranda, 2000), os longa-metragens
66

esculhamba”. Esta frase, na voz do protagonista de O Bandido da Luz Vermelha (1968),


de Rogério Sganzerla, revela uma postura que viria a ser recorrente no conjunto da obra
marginal. “Avacalhar” e “esculhambar” significam atos desordenados e sem vínculos
com ações construtivas. F. Ramos, para quem a problemática da marginalidade no
cinema brasileiro, por volta dos anos 70, exclui a necessidade efetiva de uma ação da
obra na realidade de maneira a transformá-la, vê da seguinte maneira essa nova postura
emergente:

A dimensão redentora de um trabalho em prol de terceiros, este aspecto um


pouco cristão, um pouco altruísta do Cinema Novo, desaparece para ceder
espaço a um mundo ficcional que alterna entre a ‘curtição’ e o ‘horror’,
mas tendo como referência a própria classe média, os próprios produtores
dos filmes, seus terrores, suas angústias e seus prazeres. 1

Ismail Xavier, que considera a representação da experiência dos vencidos e a


tematização do colapso dos sujeitos históricos clássicos como dados centrais do Cinema
Marginal, também expõe diferenças estruturais entre a postura marginal e a
cinemanovista na transição entre os anos 60 e 70:

Câmera na mão e descontinuidade, uma textura de imagens muitas vezes


geradora de desconforto, são os traços do cinema de Júlio Bressane,
Andrea Tonacci, Luiz Rosemberg, João Silvério Trevisan, Neville de
Almeida, Carlos Reichenbach e Ozualdo Candeias, autores que radicalizam
o tom agressivo num momento em que o Cinema Novo buscava maior
comunicação e se fazia mais convencional porque buscava estabilizar suas
relações com o público. 2

citados no livro Cinema Novo no Brasil (David Neves, 1966), e as fichas técnicas da filmografia de
Araken C. P. Júnior.
1
Ramos, F., Cinema Marginal 1968-1973 - A Representação em seu Limite, São Paulo:
Brasiliense/Embrafilme, 1987, p. 31.
2
Xavier, I., “O Cinema Moderno Brasileiro” in Revista Cinemais, número 4, p. 45.
67

Agressão, estilização e fragmentação narrativa: estes são, segundo F. Ramos, os


três principais pilares da estética marginal. Buscando relacionar-se com o espectador
através de estruturas de agressão baseadas na fragmentação narrativa e na representação
do horror e da abjeção, o universo ficcional marginal incorpora o “ruim, o “desprezível”,
o “lixo”, e dá valor estético ao que, na década de 90, convencionou-se chamar de trash.
Bocas que se enchem de comida de modo exagerado e deixam a massa formada escapar
pelos cantos ou que se abrem de forma ostensiva mostrando ao espectador o bolo
alimentar, deglutição de restos de comida deteriorada e detritos apanhados em depósitos
de lixo, sangue escorrendo pela boca e pelo corpo, vômitos espalhados sobre o corpo,
pessoas imundas rolando na lama ou se arrastando com dificuldade em montes de lixo,
representação de seres humanos com características de animais. Segundo F. Ramos, o
discurso narrativo marginal parece ter um prazer secreto em significar o grotesco para o
espectador:

As cenas se alongam, a intensidade narrativa atinge seu ápice, a narrativa


toma todo o tempo necessário para que esta imagem seja significada. O
nojo, o asco, a imundície, a porcaria, a degradação, enfim, todo o universo
“baixo” compõe a diegese típica da narrativa marginal. 1

Ainda segundo F. Ramos, a representação do abjeto traz consigo uma presença


inevitável que sua concretização enquanto imagem provoca: o horror. O Cinema
Marginal penetra a fundo em toda a dimensão simbólica do horror grotesco, repulsivo, do
horror-terror. Para F. Ramos, esse horror é “a medida do sentimento causado pela
expressão do abjeto” (p.119). Esse universo do “baixo” também se reflete na ação dos
personagens debochados e desprovidos de intenções altruístas, ou valoradas pela moral,
que povoam a ficção marginal:

Toda uma atitude debochada e irritante dos personagens tem como objetivo
criar no espectador um sentimento de irritação que se mescla ao da
repulsa. O vínculo catártico, próprio à narrativa clássica, não se estabelece
68

e, em seu lugar, se instaura uma relação em que o espectador se sente


incomodado pelo deboche agressivo, não conseguindo projetar sentimentos
agradáveis no ficcional representado. 2

Nem só as representações do horror e abjeção, entretanto, fazem parte da


construção estética marginal. Através de procedimentos de estilização diversos, a ficção
marginal mantém com outros modelos narrativos uma relação de intertextualidade lúdica
e irreverente, explorando o universo do gênero. F. Ramos cita uma declaração de Rogério
Sganzerla sobre O Bandido da Luz Vermelha que, segundo o autor, pode ser tomada
como a caracterização da intertextualidade do filme:

[O Bandido] é fusão e mixagem de vários gêneros, pois para mim não


existe separação de gêneros. Então, fiz um filme soma: um far west mas
também musical, documentário, policial, comédia ou chanchada (não sei
exatamente) e ficção científica. 3

O uso de citações e reproduções estilizadas de cenas das chanchadas e de filmes


clássicos americanos, especialmente de filmes policiais, é marcante na filmografia 4 do
período. Procedimentos de estilização podem ser também observados na forte presença
do kitsch e do “cafona” no mundo ficcional marginal, e ainda no que F. Ramos chama de
“estilização de atitudes” dos personagens:

A narrativa constrói padrões de conduta dos personagens a partir de


atitudes “chupadas” ou que se remetem a outros discursos já de per si

1
Ramos, F., op. cit., p. 116.
2
Ibid., p. 121.
3
Ibid., p. 130.
4
Fernão Ramos ressalta ainda um importante sub-conjunto da estética marginal, que denomina de
marginal cafajeste, composto por filmes que buscavam atingir o mercado exibidor através do erotismo,
mas sem abrir mão de uma atitude reflexiva autoconsciente e irônica sobre os procedimentos narrativos
utilizados. Segundo o autor, essa tendência abriu as portas para a posterior filmografia erótica da Boca do
Lixo paulista, que tornou-se conhecida como pornochanchada. Os filmes As Libertinas (1969) de
Reichenbach, Antônio Lima e João Callegaro (em episódios), Audácia, Fúria dos Desejos (1970) de
Reichenbach e Antônio Lima, República da Traição (1970) de Carlos Alberto Ebert, e O pornógrafo
(1970) de João Callegaro são, segundo F. Ramos, emblemas do marginal cafajeste.
69

estilizados. O universo ficcional se sustenta, então, a partir de um discurso-


narrativa base preexistente, já cristalizado enquanto quadro de
referências. 1

Além dos procedimentos de agressão e estilização, o terceiro pilar dessa estética é


a fragmentação narrativa. No filme marginal, segundo F. Ramos, os vínculos
estabelecidos entre as imagens e entre as ações dos personagens fogem a esquemas
lineares de evolução. Não é a trama que condiciona a ordenação dos planos, mas sim a
“significação de estados de espírito de dramaticidade elevada que se estabelecem de
forma gratuita” 2. Ainda segundo o autor, no Cinema Marginal diversas seqüências
pertencem ao universo do “não sentido” e são construídas em função de sua
potencialidade imagética, desvinculadas do desenvolvimento dramático da história,
privilegiando o “mostrar” ao invés do “contar”. Filmes onde o desenvolvimento da trama,
ou seja, o “contar uma história”, tenha evolução linear, não são numerosos na ficção
marginal. Essa narrativa fragmentada e a relação de intertextualidade com o cinema
clássico hollywoodiano são assim vistos por Luiz Carlos Merten: “Pode-se considerar
que o próprio Cinema Marginal avacalhava fórmulas consagradas em Hollywood, com
seu estilo de narrar certinho, à base de começo, meio e fim, e relações de causa e efeito.” 3

2.4 - A música no Cinema Novo e no Cinema Marginal: exemplos de disjunção,


descontinuidade e fragmentação.
Ao romper com a estética e com o modo de produção do filme americano
dominante, o Cinema Novo rompe também com a música utilizada nesse contexto.
Como foi visto no primeiro capítulo, dentro do esquema industrial do filme de espetáculo
e entretenimento hollywoodiano a música devia operar contribuindo para o
estabelecimento do vínculo catártico do espectador com a história. Já o Cinema Novo,
buscava estabelecer com o público uma relação diferenciada e de caráter marcadamente
didático. O cinema dominante no Brasil, estudado nas seções anteriores deste capítulo,

1
Ibid., p. 133.
2
Ibid., p.141.
3
Merten, L. C., “A Boca Maldita” in Revista Veredas número 66, Rio de Janeiro: Centro Cultural
Banco do Brasil, 2001, p. 21.
70

tinha como objetivo divertir o espectador, mas para a nova geração cinemanovista um
filme deveria ter a função de “alfabetizar, informar, educar e conscientizar as massas
ignorantes e as classes médias alienadas.” 1. Assim, os clichês clássicos de uso de música,
que contribuíam para situar o espectador numa posição “passiva e comodista” 2, passam a
ser considerados inadmissíveis no contexto cinemanovista.
Um exemplo radical de “anti-hollywwodianismo” é a trilha sonora do filme
Vidas Secas, onde Nélson Pereira dos Santos, que em alguns filmes anteriores como Rio
40 Graus e Rio Zona Norte 3 havia empregado música extradiegética segundo os cânones
do modelo clássico, rompe com o modelo ao optar por não usar música extradiegética.
Visando construir uma narrativa fílmica realista, Nélson Pereira deve ter considerado
que o não-realismo intrínseco a qualquer música extradiegética operaria em oposição aos
seus objetivos. Em Vidas Secas, as poucas intervenções de música emergem da diegesis
e estão relacionadas a aspectos culturais do universo representado nas imagens: várias
passagens do filme mostram manifestações folclóricas de canto e dança.
No plano extradiegético, embora não haja música propriamente dita, há som. O
rangido de um carro-de-boi, apresentado nas primeiras imagens da abertura do filme,
percorre toda a narrativa, ora justificado visualmente pela imagem do carro-de-boi, ora
exclusivamente no nível extradiegético. É também o som rascante e penetrante do carro-
de-boi que dá o ponto final da trilha sonora do filme. A interação das opiniões do
compositor Jorge Antunes e do crítico e pesquisador Hernani Heffner sobre o ruído de
carro-de-boi da trilha sonora de Vidas Secas, revela dois pontos de vista antagônicos.
Considerando a falta de recursos como influência importante na estética da música no
filme e valorizando a relação imagem/som, Heffner diz:

Sem ter à disposição as facilidades da Vera Cruz, que vão desaparecendo


com o tempo, e os recursos da unidade carioca do Bonfanti, que pega fogo
em 1957, o nascente Cinema Novo troca a qualidade técnica por certo
efeito de estranhamento, evidenciado no plano inicial de Vidas Secas. O

1
Rocha, G., op. cit., 1981, p. 67.
2
Neves, D., Cinema Novo no Brasil, Petrópolis: Editora Vozes, 1966, p.17.
3
A música extradiegética de Rio Zona Norte foi assinada por Alexandre Gnatalli, e a de Rio 40
Graus por Radamés Gnatalli.
71

famoso ruído do carro-de-boi, tradução sinestésica e quase metafísica do


tema do filme, engendrado pelo sonoplasta Geraldo José, indicaria os
possíveis e ricos diálogos entre imagem e som. 1

Já para Jorge Antunes, se Nélson Pereira dos Santos tivesse mais contato com as
pesquisas, que já se faziam no Brasil daquela época nos campos da música concreta e da
música eletrônica, poderia extrair muito mais do material sonoro:

O objeto sonoro era rico: duração longa, timbre incisivo e penetrante,


comportamento contínuo e cheio de melismas e glissandos. Mas faltou a
presença de um compositor para construir objetos musicais com aquele
objeto sonoro; para fazer música com aquele ruído. 1

É no mínimo instigante imaginar uma música para Vidas Secas que tivesse
contado com a participação de um especialista em manipular timbres, alturas,
intensidades e durações, ou seja, um compositor, trabalhando como Música Concreta o
ruído de carro-de-boi. Antunes, entretanto, não leva em consideração que a opção por
utilização de “matéria bruta” empregada sem artifícios está na matriz estética do Cinema
Novo desta primeira fase. A exemplo do ruído bruto empregado na trilha sonora, a
fotografia de Vidas Secas também é “crua”, sem filtros ou recursos especiais de
laboratório. Algumas cenas do filme chegam até a incorporar o “erro”, admitindo
imagens “estouradas”, ou seja, saturadas pela luminosidade excessiva.
Ao optar por não utilizar música extradiegética em Vidas Secas, Nélson Pereira
dos Santos rompe com o modelo clássico, mas, de certa forma, também mantém vínculos
com o modelo. Nélson Pereira substitui a música de caráter Romântico, que utilizou em
Rio 40 Graus e Rio Zona Norte, por ruído, mas emprega o ruído de maneira clássica nas
funções significante de emoção, operando na representação do sofrimento dos
personagens e narrativa referencial, estabelecendo ambiente e contribuindo para a
demarcação formal do filme (abertura, pontos culminantes e final).

1
Heffner, H., “Som” in Ramos & Miranda, op. cit., p. 520.
72

Se em Vidas Secas ainda há vínculos formais com modelo clássico, em O Dragão


da maldade Contra o Santo Guerreiro (1969) e Macunaíma (1969) Glauber Rocha e
Joaquim Pedro de Andrade radicalizam a oposição ao modo de utilizar música no cinema
hollywoodiano. Em O Dragão da Maldade, Glauber agrega, em uma mixagem
descontínua e fragmentada, música do folclore de Minas Gerais 2, Pixinguinha, canções
originais de Sérgio Ricardo e Walter Queirós, e a música de concerto atonal de Marlos
Nobre 3. Desprezando os princípios da inaudibilidade, da unidade e da continuidade,
Glauber constrói uma trilha sonora prolixa e “indiscreta”, repleta de cortes abruptos.
Cada trecho de música é utilizado apenas uma vez na trilha, à exceção da canção Antônio
das Mortes, Matador de Cangaceiro, de Sérgio Ricardo, que é empregada na seção
inicial do filme e no encerramento onde se estende sobre os créditos finais.
Joaquim Pedro de Andrade, em Macunaíma, adota um procedimento semelhante
ao de Glauber em O Dragão da Maldade. A música de Macunaíma é um amálgama
fragmentado e hiperexplícito de hinos, marchinhas, fox, ié-ié-ié, samba-canção, xaxado,
bolero e música de concerto. Villa-Lobos, Borodim e Johann Strauss se misturam, na
trilha sonora, a Jorge Ben, Francisco Alves, Roberto Carlos, Dalva de Oliveira, Luiz
Gonzaga e Jards Macalé. Nesses dois filmes, portanto, não há propriamente uma música
exradiegética original, mas sim o que se chama de trilha adaptada, ou seja, elaborada a
partir de músicas já gravadas ou compostas anteriormente para outros fins. Alguns
autores, como L. Ramos, atribuem essa tendência de uso de trilhas adaptadas à falta de
recursos financeiros e técnicos, que levavam os diretores a “providenciar eles mesmos a
trilha sonora de seus filmes” 1. Já para Jorge Antunes, não foram limitações de ordem
financeira ou tecnológica que levaram os cineastas do Cinema Novo a optar por não
arregimentar profissionais da música para seus filmes. Para ele, subjacente a essa idéia
poderiam estar “as pretensões escondidas nas teorizações da política do cinema de
autor”:

1
Antunes, J., “Nosso Cinema e Nossa Música”, in Cinema Brasileiro. 8 Estudos, Rio de Janeiro:
MEC/Embrafilme/Funarte, 1980, p. 168. Grifos do autor.
2
Segundo os créditos iniciais do filme.
3
As peças de Marlos Nobre utilizadas por Glauber em O Dragão da Maldade Contra o Santo
Guerreiro são Unkrimakrimkrim e Ritmetron.
73

O propalado “despojamento” do Cinema Novo, por esta carência de


recursos técnicos, psicológicos e expressivos, fez com que se aproximasse
de um aparente cinema barato, que dispensava a contratação de
compositores e músicos profissionais. Se essa hipótese fosse rebatida com
violência, eu seria obrigado a acreditar em uma pretensiosa posição do
cineasta no sentido de ser um “faz-tudo”, cuidando ele também da
organização pretensamente musical da parte sonora.” 2

Ainda segundo o autor, evidências dessa “pretensão composicional” podem ser


flagradas em Terra em Transe (1967), onde Glauber Rocha sobrepõe em cluster
heterogêneo ruído de multidão, Villa-Lobos e batucada de samba com resultado
considerado por Antunes uma “montagem gratuita e banal (...) que agrava o problema
da ineficácia da função expressiva porque mexe na ferida da semântica musical”. 3
Descontinuidade, fragmerntação e a busca por formas de interação música-
narrativa diferentes das estabelecidas pelo modelo clássico são características que
também podem ser flagradas na música dos filmes marginais abordados no âmbito dessa
pesquisa 4. Em O Bandido da Luz Vermelha, Sganzerla despreza completamente os
princípios da unidade e da continuidade ao recortar, fundir e justapor, de modo quase
sempre abrupto, muitos trechos curtos de obras bem populares do repertório sinfônico

1
Ramos, L. A., “Trilha Sonora” in Ramos & Miranda, op. cit., p. 549.
2
Ibid.
3
Ibid. p. 168.
4
O ponto de partida para a investigação sobre a música no cinema marginal foram as fichas
técnicas dos sessenta e nove títulos reunidos nas filmografias do livro Cinema Marginal, A Representação
em Seu Limite (1987) de Fernão Ramos, e do catálogo da mostra Cinema Marginal e suas Fronteiras,
realizada no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) na cidade de São Paulo. A julgar pelo número de
filmes sem créditos musicais, com créditos relativos a seleção musical, ou com música assinada pelos
próprios diretores - quarenta e seis títulos, ou seja, quase 70% da amostra investigada - a tendência ao uso
de trilhas adaptadas, que, como foi visto anteriormente, é uma das características do Cinema Novo, tem
continuidade no Cinema Marginal. Segundo a filmografia consultada, os diretores Júlio Bressane, Rogério
Sganzerla e Neville d’Almeida dão continuidade à prática centralizadora do “cinema de autor”, sendo os
responsáveis pela música de seus filmes. Bressane é o cineasta de maior presença na filmografia, com dez
obras. Apenas uma delas, O Anjo Nasceu (1969), tem a música assinada por um compositor. Neste filme, a
música original é de autoria de Guilherme Vaz. Nos cinco filmes de Sganzerla citados, dois são assinados
pelo próprio diretor - um deles em parceria com Gilberto Gil - , em dois não constam créditos relativos à
música, e um tem créditos de “seleção musical”. Nenhuma das fichas técnicas dos quatro filmes de Neville
d’Almeida citados inclui créditos para a música. Essa mesma tendência pode ainda ser observada nos
créditos dos filmes de Carlos Reichenbach, Ivan Cardoso, Jairo Ferreira, José Mojica Marins, Luiz
Rosemberg Filho e Elyseu Visconti, entre outros.
74

clássico-romântico, percussão de samba e de ritos afro-brasileiros, ié-ié-ié, rock,


chorinho, baião, bolero, chá-chá-chá, guarânia, samba e samba-canção. O resultado
dessa mistura prolixa é um discurso musical exagerado e “gago”, que nunca se
estabelece de fato e dificulta, ou mesmo impossibilita, qualquer fruição por parte do
espectador.
A prolixidade da música de O Bandido da Luz Vermelha ocorre tanto no plano
diegético quanto no extradiegético. Na diegesis, o protagonista, além de assobiar
enquanto pratica alguns assassinatos, no final do filme espera a morte tocando violão e
cantando (nos dois casos a música está contribuindo para o estabelecimento do
“deboche”, do “avacalho”, significando, para o espectador, o cinismo do bandido em
relação à violência e à morte). Personagens cantarolam, cantam em casas noturnas e
ouvem música no rádio e na televisão. Já no plano extradiegético, a intensa atividade
musical divide espaço ainda com narração (voice over), efeitos eletrônicos e sons
ambientes empregados como elemento extradiegético.
É importante ainda observar que as músicas utilizadas por Sganzerla são sempre
espécies de ícones de estilo, facilmente identificáveis pelo espectador. A Quinta Sinfonia
(Beethoven), trechos das óperas O Barbeiro de Sevilha (G. Rossini) e O Guarani (Carlos
Gomes), as canções Castigo (Dolores Duran), Rock Around The Clock (J. Deknight &
M. Freedman), Asa Branca (L. Gonzaga e H. Teixeira), Sabor a mi (Alvaro Carillo),
Molambo (Augusto Mesquita) e Malagueña Salerosa (P. Galindo, E. Ramirez & E.
Lecuona) são alguns dos hits presentes na trilha sonora. Se em muitos momentos do
filme a relação música-narrativa produz significados não explícitos, em outros os
significados são desmesuradamente óbvios e operam como um “metaclichê”; o que
acontece, por exemplo, com o emprego da Quinta Sinfonia operando em passagens
dramáticas.
Já Júlio Bressane, ao contrário do Sganzerla de O Bandido da Luz Vermelha,
produz em Matou a Família e Foi ao Cinema (1969) e O Anjo Nasceu (1969) trilhas
sonoras bem menos densas. Em Matou a Família e Foi ao Cinema, um filme de muitos
“silêncios”, Bressane utiliza apenas nove intervenções de música:
75

- enquanto um assassino mata a família, em uma televisão ligada está sendo tocada a
canção La Bamba; operando, de certa forma, no sentido de banalizar a ação descrita na
tela; 1
- ainda no plano diegético, Márcia, uma das duas protagonistas do filme, interpretada
pela atriz Márcia Rodrigues, cantarola When I’m Sixty-Four (Lennon & McCartney)
enquanto se exercita à beira de uma piscina;
- o Samba Vejo Amanhecer (Noel Rosa), um be-bop instrumental vibrante em disjunção
com um extenso primeiro plano do rosto triste de Renata, a outra protagonista,
interpretada pela atriz Renata Sorrah. A associação imagem-som nesta cena provoca um
forte estranhamento e pode ser considerada um bom exemplo do que Chion chama de
harmonia dissonante, da mesma forma que as duas canções carnavalescas que irrompem
no plano extradiegético após assassinatos brutais, “avacalhando” a dramaticidade das
imagens;
- Márcia e Renata, à beira da piscina, dançam ao som de uma canção do gênero be-bop;
- no plano extradiegético, uma música ao piano contribui para estabelecer um clima de
filme mudo em uma cena onde Márcia e Renata folheiam um álbum de fotografias, na
progressão dramática da relação amorosa das protagonistas. A música aqui opera na
elaboração do discurso intertextual com o cinema mudo;
- o ié-ié-ié romântico Ninguém Vai Tirar Você de Mim (Edson Ribeiro e Hélio Justo),
interpretado por Roberto Carlos, “debocha” das imagens de Marta e Renata, morrendo
após atirarem uma na outra na cena de encerramento da narrativa em mais um exemplo
de comentário, contraponto ou harmonia dissonante. A partir dos últimos fotogramas e
durante os créditos finais, as três últimas palavras da canção (em te perder) passam a ser

1
Esta cena é um bom exemplo do que Chion classifica como música anempatética. Para Chion a
música de um filme pode produzir um efeito emocional empatético ou anempatético1 em relação às
situações dramáticas representadas na tela. O efeito empatético é obtido quando a música expressa
diretamente sua participação no clima da cena, ou seja, “refere-se”, através de códigos musicais e culturais,
ao estado emocional dos personagens, operando na representação de sentimentos como alegria, ódio, amor,
etc. Para Chion, nesses casos a música tem uma relação de empatia com as imagens. Já o efeito
anempatético é produzido quando a música é indiferente ao que se passa com os personagens. Para Chion,
os exemplos mais comuns de música anempatética ocorrem no plano diegético, como, por exemplo, em
uma cena onde um ato de violência é cometido enquanto uma caixinha-de-música, ignorando as emoções
dos personagens, continua a sua execução mecânica acionada previamente ou em algum momento da ação.
Segundo Chion, embora indiferente ao clima das imagens, o emprego de música anempatética costuma
provocar um intenso efeito dramático.
76

repetidas de modo obstinado, como um disco “pulando”, causando um efeito dramático


inusitado.
O material empregado na música de Matou a Família e Foi ao Cinema é
totalmente extraído da música popular: Beatles, Roberto Carlos, jazz, samba e marchas
carnavalescas. Bressane usa poucas intervenções de música, mas sempre deixa fluir o
discurso musical, expondo obras inteiras ou seções inteiras de obras. Em todas as
intervenções de música (à exceção da primeira) a progressão dramática da narrativa é
praticamente interrompida para que o fluxo musical se estabeleça e se explicite.
Contrariando o princípio da inaudibilidade, Bressane coloca a música em primeiro plano
ou, ao menos, em igualdade hierárquica com as imagens.
Já O Anjo Nasceu é um dos poucos exemplos de parceria entre as chamadas
“vanguardas” musicais e cinematográficas no cinema brasileiro 1. Neste filme, Bressane
mistura material extraído do repertório popular com a aleatoriedade e a atonalidade das
composições de Guilherme Vaz, mas, em linhas gerais, mantém o mesmo procedimento
adotado em Matou a Família e Foi ao Cinema: longas intervenções de música em
contraste com imagens estáticas ou de pouquíssima ação. Os módulos aleatório-atonais
criados por Vaz, onde as relações de altura entre as notas só oferece ao ouvinte a tensão
(arsis) e jamais a sensação de relaxamento (tesis), operam amplificando a angústia e a
violência dos dois bandidos (interpretados pelos atores Hugo Carvana e Miltom
Gonçalves) que protagonizam o filme.
Em O Anjo Nasceu, Bressane, mais uma vez, adota um procedimento heterodoxo
para concluir a narrativa, como pode ser observado no quadro a seguir.

1
Segundo L. Ramos, “a vanguarda musical que eclodiu nos anos 60, e que revelou compositores
como Ricardo Tacuchian, Willy Correa de Oliveira, Edino Krieger, Marlos Nobre, Esther Scliar, Rogério
Duprat, e outros, foi de certa forma ignorada pelo Cinema Novo. Forma registrados apenas dois casos de
aproximação entre os dois movimentos: o filme Noite Vazia (W. H. Khouri, 19xx) com música de Rogério
Duprat e A Derrota ( Mario Fiorani, 1966) com música assinada por Esther Scliar.” (Ramos, L. A., “Trilha
Sonora” in Ramos & Miranda, op. cit., p. 549.) Nas fichas técnicas da filmografia Marginal entre os
sessenta e nove filmes relacionados, apenas cinco têm música original composta por representantes das
“vanguardas”: Trilogia do Terror (J. Mojica Marins, O. Candeias e S. Souza, 1968), filme em três
episódios com música de Damiano Cozzela e Rogério Duprat, O Anjo Nasceu ( J. Bressane, 1969), com
música de Guilherme Vaz, O Profeta da Fome (Maurice Capovilla, 1969) com música de Rinaldo Rossi,
Assuntina das Américas (Luiz Rosemberg, 1975) com música assinada por Cecília Conde e O Segredo da
Múmia (Ivan Cardoso, 1985) com música de Júlio Medaglia.
77

Descrição da cena Áudio


00:00 Diversos planos dos dois bandidos Carvana dá gritos dilacerados durante”,
em um carro que segue por uma aproximadamente. 2’15”
estrada. O bandido interpretado por
Carvana está ferido.
Imagem se estabiliza num plano geral
da estrada.
02:15 Bandidos saem de cena (ponto de Fim dos gritos – silêncio
fuga na perspectiva)
02:29 Segue o mesmo plano geral da Entra a canção Peguei um Ita no Norte
estrada vazia (à exceção de dois (Dorival Caymmi), interpretada pelo
carros que passam rapidamente por próprio autor. A música é tocada inteira.
ela.) Silêncio
04:47 Entra um medley dos módulos aleatório-
06:05 atonais utilizados durante o filme.
08:41 Corte seco para créditos finais Segue medley
09:01 Fim dos créditos Música sai em corte seco

Bressane utiliza, portanto, quatro elementos na trilha sonora da seqüência final: os


gritos prolongados emitidos por um dos bandidos, a canção Peguei um Ita no Norte, um
medley com o material composto por Guilherme Vaz e silêncios. Durante a ação
propriamente dita, ou seja, a viagem dos bandidos pela estrada, o que se ouve na trilha
são os gritos do personagem interpretado por Carvana. O silêncio que sucede o longo
grito (que reverbera na memória do espectador) faz com que a semiose do grito se
prolongue na instância da recepção. A partir do momento em que o plano geral da estrada
se estabiliza, tem início um trecho de 6’ 46” de música e silêncios curtos sobre imagens
totalmente vazias de ação. A canção Peguei um Ita no Norte interrompe o processo de
significação do grito e provoca um sensação de perplexidade, pois, após uma cena de
formidável impacto dramático, a audição do espectador é surpreendida por uma canção
“familiar”, cuja letra 1 fala de memórias de um momento de partida, conselhos de mãe e

1
Peguei um Ita no norte / Pra vim pro Rio morar / Adeus meu pai, minha mãe / Adeus
Belém do Pará / Ai, ai, ai, ai / Adeus Belém do Pará / Ai, ai, ai, ai / Adeus Belém do Pará - /Vendi
meus troços que eu tinha / O resto dei pra guardar / Talvez eu volte pro ano / Talvez eu fique por
lá / .Mamãe me deu um conselho / Na hora de embarcar / Meu filho, ande direito / Que é pra
78

saudades, com um lirismo naif que contrasta, de maneira radical, com a relação imagem-
som que a precede. Ao colocar esta canção em interação com uma imagem quase
totalmente estática de estrada, Bressane faz com que a música passe a ocupar um
“primeiro plano” narrativo, mas parece não pretender produzir significados explícitos
para o espectador. Um curto silêncio precede o medley, última intervenção musical do
filme. Como foi visto no capítulo anterior, a utilização de medleys em cenas de abertura
ou encerramento é parte das estratégias clássicas hollywoodianas. Bressane, entretanto,
utiliza o modelo de forma estilizada, pois o “áspero” material composicional da música
de Guilherme Vaz, desprovido de qualquer aspecto melódico cantabile ou de fácil
memorização, não opera da mesma forma que o material clássico-romântico empregado
na fórmula de Hollywood. As estruturas com altíssimo grau de dissonância da música de
Guilherme Vaz contribuem para estabelecer o “unhappy end”.
Embora este trabalho pretenda enfocar apenas a música e não outros elementos
constitutivos da trilha sonora (vozes, sons ambientes, efeitos sonoros), o grito de Carvana
foi incluído como objeto de análise pela importância do grito na ficção marginal.
Conforme observou F. Ramos, gritos desesperados repetidos de forma convulsiva operam
nesse contexto como representação de um horror visceral:

A representação do abjeto traz consigo uma presença inevitável que sua


concretização enquanto imagem provoca: o horror. Não o horror moralista
em face da existência do que a boa ética condena, mas um horror mais
profundo, advindo das profundezas da alma humana – um horror de
temores pré-históricos e incomensuráveis – e que aflora em toda sua
potência original. (...) O horror sem medida, que atinge a todos e que tem
em sua imagem exemplar o berro histérico e convulsivo que percorre de
ponta a ponta os filmes marginais. 1

O grito de Carvana, na seqüência final de O Anjo Nasceu, estende-se por dois


minutos e quinze segundos, aproximadamente, e é o último som diegético ouvido na

Deus lhe ajudar / Tou a bom tempo no Rio / Nunca mais voltei pra lá / Pro mês intera dez anos /
Adeus Belém do Pará.
79

trilha sonora. É o “ponto final” do filme. Para F. Ramos, ao universo ficcional construído
pelo Cinema Marginal caberia um adjetivo preciso: o esporro. Berros lacerantes, longos e
exasperados, permeiam toda a diegesis Marginal.
Outro aspecto que merece atenção é a validação estética do “erro técnico”. No
Cinema Marginal, o “belo” é o mal-feito, o mal-acabado, e isso diz respeito também à
edição da música. Como foi visto no primeiro capítulo, as entradas e saídas da música
extradiegética são pontos críticos da trilha sonora e um conjunto de estratégias foi
desenvolvido para resolver a questão da “intrusão” da música no ambiente realista da
narrativa. No modelo clássico, as saídas da música se dão em decrescendos (fade outs)
sutis ou em pontos favoráveis do fluxo musical (pausas, cadências, finais de frases,
tempos fortes). Já no Cinema Marginal, saídas de música em corte seco são constantes,
em geral sobre um ponto qualquer do discurso musical. Um exemplo emblemático dessa
prática é o final de O Anjo Nasceu, onde a música de fechamento do filme – o medley
aleatório-atonal de Guilherme Vaz - é interrompido bruscamente, sem chegar a um
“ponto final”. A perplexidade estética 2, provocada pela interrupção súbita da música, é
nitidamente intencional e passa, dentro do contexto Marginal, a fazer parte do repertório
de possibilidades de uso de música no cinema. Outro exemplo de erro técnico operando
com intenção dramática é o final de Matou a Família e Foi ao Cinema, quando as últimas
palavras da canção Ninguém Vai Tirar Você de Mim são ouvidas em loop, como um
disco de vinil “pulando”.

Os filmes tomados como exemplo neste capítulo, constituem, sem sombra de


dúvida, uma amostra muito pequena para servir de base para generalizações mais
amplas. No entanto, ao menos na amostra investigada, pode-se notar com clareza a
influência do modelo clássico descrito por Gorbman no cinema da Atlântida, da
Cinédia e da Vera Cruz, assim como das tendências anti-hollywoodianas de disjunção
música/imagem, descontinuidade e fragmentação no repertório do Cinema Novo e do
Cinema Marginal 3.

1
Ramos, F., op. cit., p. 118-119.
2
Ver capítulo I, pág. 8.
3
Outro aspecto relevante que emerge da amostra investigada é o fato de que embora estejam
situados esteticamente em polos opostos, há também um forte traço-de-união entre os dois conjuntos de
80

O objetivo da coleta de exemplos realizada neste capítulo, como foi visto


anteriormente, foi buscar, em outros contextos estético-históricos, referências práticas de
modos de fazer música para cinema no Brasil, com o propósito de dinamizar o arsenal
teórico reunido no primeiro capítulo e enriquecer a audio-visão dos filmes-objeto dessa
dissertação. É, portanto, e acima de tudo, à luz do pensamento de Gorbman, mas levando
também em conta aspectos pontuais das idéias de Tagg, Eisesntein, Adorno & Eisler e
Chion e os exemplos de interação música-narrativa cinematográfica em filmes da
Cinédia, da Atlântida, da Vera Cruz, do Cinema Novo e do Cinema Marginal, que os
filmes O Quatrilho, O Que É Isso Companheiro, e Central do Brasil serão analisados no
terceiro e último capítulo desta pesquisa. Conforme foi visto na introdução desta
dissertação, Gorbman afirma que o modo de fazer música adotado no cinema clássico é
dominante desde a gênese do cinema sonoro e tem forte influência no cinema comercial
contemporâneo de vários países. A questão central do próximo capítulo é verificar se a
música extradiegética destes três filmes segue (e até que ponto o faz) o modelo clássico
e/ou se é também influenciada pela prática anti-hollywoodiana do Cinema Novo e do
Cinema Marginal.

filmes estudados: a presença marcante da canção popular na trilha sonora. Nos filmes da Atlântida, da
Cinédia e da Vera Cruz canções populares são utilizadas nos “números musicais” do plano diegético e
em versões orquestrais no plano extradiegético. Já no contexto do Cinema Novo e do Cinema Marginal,
a canção popular cantada ganha espaço significativo no plano extradiegético, passando a também ocupar
na trilha sonora o lugar antes reservado exclusivamente ao material composicional clássico-romântico
orquestral .
81

CAPÍTULO 3 - A MÚSICA EXTRADIEGÉTICA EM O QUATRILHO, O QUE É


ISSO COMPANHEIRO? E CENTRAL DO BRASIL.

Os três filmes aqui tomados como objetos de análise inserem-se num ciclo
produtivo que teve início no ano de 1994 e tornou-se conhecido como A Retomada. Este
mais recente ciclo do cinema brasileiro dá continuidade a uma trajetória descontínua que
alterna períodos fecundos e colapsos. Segundo o pesquisador e crítico Amir Labaki 1, a
partir da chegada do cinema ao Brasil, em 8 de julho de 1896, apenas sete anos após a
projeção inaugural parisiense dos irmãos Lumière, tem início uma fase de produção de
documentários, seguido pelo que ficou conhecido como a belle époque do cinema
brasileiro: a era muda. Esse primeiro ciclo de filmes de ficção é interrompido entre 1911
e 1912 com a entrada no mercado das produções internacionais.
Ainda segundo Labaki, a chegada do cinema sonoro dispara um novo processo
produtivo, que tem como marca a luta da Cinédia, da Atlântida, da Vera Cruz e de outras
companhias cinematográficas em prol da implantação de um cinema de caráter industrial
no Brasil. A aposta no modelo industrial esbarra, no entanto, na falta de um sistema de
distribuição e exibição que desse suporte aos elevados custos de produção dos filmes, e
na forte dominação do mercado exibidor exercido pelas majors norte-americanas. Assim,
o modelo vai, pouco a pouco, sendo substituído pela crença na realização independente
de filmes de baixo orçamento. Essa tendência floresce nos anos 60 com o Cinema Novo e
o Cinema Marginal e declina no princípio dos anos 70 com o aumento da repressão
política do governo militar. Em 1974, é criada a Embrafilme que põe em prática uma
série de iniciativas em defesa da produção e da exibição do cinema brasileiro. Tutelada, a
produção/exibição nacional vive fase de novo vigor. Com o fim da Embrafilme, órgão
extinto em 1990 em um dos primeiros atos do governo Collor, a produção nacional de
longa-metragens de ficção vive seu período menos fecundo, tendo suas atividades
praticamente paralisadas. Em 1993, com a promulgação da Lei do Audiovisual, tem
início um novo ciclo produtivo - a Retomada - , que eclode nas telas na última metade da
década de 90.

1
Labaki, A., op. cit., p. 9-21.
82

Assim como o período entre 1974 e 1990, em que a maior parte da produção
cinematográfica brasileira esteve ligada de alguma forma à Embrafilme, os filmes da
Retomada não constituem exatamente um conjunto estético com características comuns
dominantes, mas sim um quadro onde convivem, “pós-modernamente”, diversas
tendências autorais e comerciais. O Quatrilho, O Que É Isso Companheiro? e Central do
Brasil são filmes que podem ser considerados bons exemplos da vertente comercial, ou
seja, do longa-metragem de ficção dominante no mercado, que, em geral, conta uma
história, com princípio, meio e fim, e é um produto elaborado através de um conjunto de
técnicas e práticas que visam a construção de um discurso cinematográfico “invisível”. É
característica comum aos três filmes um compromisso maior com a ação, com o “contar
uma história” do que com a discussão de princípios ideológicos ou com inovações na
linguagem cinematográfica.
É fundamental ressaltar que os filmes aqui analisados não serão submetidos a uma
rigorosa crítica cinematográfica ou julgados segundo o seu caráter ideológico. O
importante, no contexto desta pesquisa, é o perfil geral de cinema-espetáculo desses
filmes. O Quatrilho, O Que É Isso Companheiro? e Central do Brasil são filmes
elaborados segundo os princípios descritivos da montagem narrativa 1, ou seja,
obedecem a procedimentos, dominantes no cinema comercial, que têm como objetivo
reunir em sucessão diversos fragmentos de “realidade”, visando construir a representação
de uma ação como um todo significativo.
É importante ainda observar que as músicas, aqui enfocadas, não estão sendo
submetidas a qualquer julgamento de valor quanto à “qualidade” musical, mesmo porque
discutir o que é “qualidade” em música nos remete às tais “questões prenhes de questões
que nos levariam longe” citadas na introdução deste trabalho.
Antes de proceder à análise propriamente dita, faz-se necessário esclarecer alguns
pontos relativos ao procedimento metodológico adotado. Obviamente, dar conta da
interação da música com todos os elementos da linguagem cinematográfica em três
longas-metragens é tarefa que extrapolaria os limites formais de uma dissertação de
mestrado. Por isso, no âmbito desta pesquisa, o conjunto de unidades de análise utilizado
foi restrito aos princípios da inaudibilidade, da unidade, da continuidade, e da função
83

narrativa (referencial e conotativa). O princípio da flexibilidade foi descartado como


unidade de análise justamente por sua “flexibilidade”, ou seja, o que interessa no
contexto dessa investigação não é saber se um princípio está sendo violado em função de
outro ou se a música está exercendo várias funções ao mesmo tempo, mas sim verificar
quais as funções predominantes. A função significante de emoção não foi propriamente
descartada, mas levada em conta de forma diferenciada, tomando por base a afirmação de
Earl Hagen, citada no primeiro capítulo desta dissertação. Segundo Hagen, quaisquer que
sejam as outras funções que possa estar exercendo, toda a música tem a capacidade de
suscitar emoção. No âmbito desta análise, portanto, a função significante de emoção é
considerada intrínseca ao discurso da música e só será levada em conta em alguns casos
especiais para exemplificar paralelismo entre música e narrativa. Este procedimento foi
adotado porque a questão sobre o que é significado em música e se ela de fato “significa”
alguma emoção mereceria, talvez, uma dissertação inteiramente dedicada ao tema.
Quando se afirma, no contexto deste trabalho, que uma determinada música tem um
caráter triste, isso reflete a resposta emocional que ela provoca em mim, o músico-
espectador que conduz esta pesquisa.
O primeiro passo da análise aqui realizada é a contextualização dos objetos -
dados gerais sobre o filme, diretor e compositor(es). Em seguida, é apresentada uma
sinopse do filme com o objetivo de fornecer ao leitor referências da história e do modelo
narrativo básico. Os passos subseqüentes são a descrição do material instrumental,
temático e composicional utilizado na música, e um estudo sincrônico das relações entre
a música e a ação dramática, apresentado sob a forma de tabelas contendo o mapa geral
das funções da música extradiegética em cada um dos três filmes investigados.

3.1 - O Quatrilho
3.1.1 - Dados gerais sobre o filme, diretor e compositores.
O Quatrilho foi dirigido por Fábio Barreto e teve a música assinada por Caetano
Veloso e Jaques Morelenbaum. O roteiro do filme é baseado no livro homônimo do
gaúcho José Clemente Pozenatto (1940), professor de Literatura Brasileira da
Universidade de Caxias do Sul. As filmagens foram feitas em Caxias do Sul e em locais

1
Ver definição de Gerard Betton em nota de rodapé da página 11 da introdução deste trabalho.
84

próximos aos originalmente descritos no livro, como o vilarejo de Antônio Prado. O


Quatrilho é baseado em uma história real ocorrida no Rio Grande do Sul no começo do
século passado e o título se refere a um jogo de cartas muito popular entre os colonos
italianos no qual se pode trair os parceiros. Segundo Hernani Heffner 1, o filme obteve
expressivo sucesso de bilheteria no contexto do mercado exibidor brasileiro, atingindo a
marca de 1.117. 154 espectadores 2 e tornando-se um dos símbolos da Retomada.
Fábio Barreto, o diretor do filme, é o membro mais jovem da família do produtor
Luiz Carlos Barreto 3. Ele iniciou sua carreira cinematográfica em 1976 como assistente
de direção do filme Dona Flor e Seus Dois Maridos, dirigido por seu irmão Bruno
Barreto. Depois de realizar alguns curta-metragens e atuar como produtor, Fábio estreou
como diretor no filme Índia, a Filha do Sol (1981). Em seguida, dirigiu O Rei do Rio
(1984), e Luzia Homem (1985). Depois de O Quatrilho, Fábio dirigiu o filme Bela Donna
(1998), baseado no romance Riacho Doce de José Lins do Rego.
Em entrevista publicada em 1996, numa edição especial do jornal O Estado de
São Paulo dedicada aos filmes indicados ao prêmio Oscar daquele ano, Barreto declara-se
influenciado pelos diretores Joaquim Pedro de Andrade e Nélson Pereira dos Santos,
assim como pelo cinema americano, principalmente o de Coppola, e resume da seguinte
forma sua posição estética: “Gosto do cinema de comportamento, de personagens, do tipo
de filme que te faz refletir e que te faz levar a emoção do que viu dentro de si por muito
tempo.” Baseado no que diz o crítico Sérgio Augusto 1, em O Quatrilho Fábio Barreto faz
mais uso de suas influências americanas do que das tendências européias presentes na
obra de Joaquim Pedro e Nélson Pereira. Sobre o filme, Sérgio Augusto diz:

O hábil e diligente Fábio Barreto - que nas cenas de festa e bodas


demonstra ter aprendido algumas lições básicas de Coppola e Bertolucci -
optou pelo que talvez seja na atual conjuntura e para um empreendimento
financiado por 30 pessoas jurídicas, a estratégia correta: reacostumar as

1
Heffner, H., “Fábio Barreto” in Ramos & Miranda, op. cit., p. 43.
2
Fonte: Filme B Informa - Edição especial, setembro 1998.
3
Luiz Carlos Barreto é um dos produtores cinematográficos mais ativos do cinema brasileiro
contemporâneo e começou sua carreira no cinema assinando a fotografia do filme Vidas Secas.
85

massas ao hábito de ver filmes brasileiros, oferecendo-lhes um sucedâneo


[de teledramaturgia] com predicados palpáveis, de resto protagonizado por
celebridades televisivas. 2

A parceria entre Caetano e Morelenbaum, que assinam juntos a música de O


Quatrilho, surge e se firma no cenário cinematográfico brasileiro nos anos 90 a partir do
filme Tieta do Agreste (Cacá Diegues, 1996). Depois de O Quatrilho, a dupla assinou
ainda a música de Orfeu (Cacá Diegues, 1999). O compositor e cantor Caetano Veloso,
que na área da música popular dispensa maiores apresentações, tem uma relação longa e
plural com o cinema brasileiro. Segundo Fernão Ramos 3, Caetano tem canções de sua
autoria em mais de trinta filmes e chegou a dirigir o longa-metragem Cinema Falado em
1986. Além de diversas participações como ator, publicou na juventude um número
razoável de críticas cinematográficas em jornais de boa circulação em Salvador. Caetano
Veloso produziu pela primeira vez para um longa-metragem em 1967, compondo a
canção-tema do filme Proezas de Satanás na Vila do Leva-e-trás do diretor baiano Paulo
Gil Soares. Logo em seguida faz a canção Objeto Não Identificado para Brasil Ano 2000
(1968) de Walter Lima Jr. Ainda segundo o autor, Caetano assina a trilha sonora integral
dos filmes Índia, a Filha do Sol (1984), de Fábio Barreto e São Bernardo (1971), de
Leon Hirszman. Sobre a música de São Bernardo, Ramos diz que “vozes e sons no limite
da atonalidade alteram-se periodicamente, pontuando a dramaticidade esvaziada do
filme” (p. 559). Mas essa incursão de Caetano pela atonalidade é episódica em sua
música para cinema, que é primordialmente baseada em canções.
Filho do maestro Henrique Morelenbaum, Jaques Morelenbaum, embora tenha
tido formação musical na área da música de concerto, exerce hoje em dia uma atividade
profissional centrada na música popular. Violoncelista e arranjador, Morelenbaum, cuja
carreira começou nos anos 70 no grupo A Barca do Sol, é atualmente um dos músicos
mais requisitados pelo mercado fonográfico. Nos anos 90, além dos filmes realizados em

1
Augusto, S., crítica publicada originalmente no jornal Folha de São Paulo, in Labaki, A., op. cit.,
p. 183.
2
Ibid., p.185.
3
Ramos, F., “Caetano Veloso” in Ramos & Miranda, op. cit., p. 558-561.
86

parceria com Caetano, Morelenbaum assina, junto com o compositor Antônio Pinto, a
música de Central do Brasil.

3.1.2 - Sinopse de O Quatrilho


A ação se passa no final do século XIX, em Caxias do Sul e Nova Vicenzia,
cidades colonizadas por imigrantes italianos. Na primeira seção da história (apresentação
dos personagens e das tramas principais), Angelo, homem do campo de poucos sorrisos,
e a bela Teresa se casam e passam a viver na pequena propriedade rural da família em
Nova Vicenzia, tirando da terra seu sustento. Teresa, romântica e sonhadora, logo se
desilude com o estilo pouco afetivo do parceiro. Massimo, irmão mais moço de Angelo,
aventureiro e sedutor, demonstra a Teresa a atração que sente por ela, mas Teresa o
rejeita e o aconselha a procurar uma mulher para casar. Massimo casa-se com a prática e
trabalhadora Pierina, mas seus sentimentos em relação à cunhada continuam fortes.
Segundo um costume do lugar, com o casamento do irmão mais moço Angelo é obrigado
a abandonar as terras em que vive, e decide procurar trabalho e terras em Caxias do Sul.
Após algum tempo vivendo na cidade e trabalhando com a picareta na construção de uma
ferrovia, Angelo convida o irmão para ser seu sócio na compra de uma colônia onde
construiriam um moinho e produziriam farinha. Massimo aceita e tem início a seção
central da história (desenvolvimento), quando os dois casais se mudam para a colônia,
passando a tocar o negócio juntos e vivendo sob o mesmo teto. A colônia prospera, mas,
com a convivência, floresce a atração entre Massimo e Teresa, que acabam por não
resistir e se entregam um ao outro, fugindo em seguida, no plot point 1 principal da
narrativa, que conduz à terceira e última seção do filme (conclusão). Nesta, ao saber da
fuga de sua mulher com seu irmão, Angelo desespera-se e deprime, perdendo
temporariamente o interesse nos negócios. Pierina reza e sofre em silêncio. Com o tempo,
a convivência e a identificação de propósitos, que sempre existiu entre Angelo e Pierina,
os faz descobrir que “foram feitos um para o outro”. Assim, o casal passa a viver
maritalmente, enfrentando e superando os preconceitos da época e do lugar. Os negócios

1
Plot point ou ponto de virada: conceito adotado pelo script doctor Syd Field, em seu livro
Manual do Roteiro. Refere-se a “viradas” na trajetória, ou “cortes epistemológicos” na vida do
protagonista.
87

de Angelo prosperam. Nascem os filhos dos dois casais. Pierina e Angelo perdoam
Massimo e Teresa.

3.1.3- A música de O Quatrilho.

3.1.3.1 - Material temático, instrumental e composicional.


A música de O Quatrilho foi escrita para um conjunto reduzido da orquestra
sinfônica - oito violinos, duas violas, dois violoncelos, um contrabaixo, uma harpa, dois
piccolos, um oboé, dois clarinetes (um clarone), duas trompas, um trombone e uma tuba -
utilizado de maneira tradicional, ou seja, sem explorar recursos heterodoxos dos
instrumentos. Bandolim, acordeon, viola de dez cordas 1 e o violão que acompanha a
versão cantada da música-tema completam o arsenal instrumental da música do filme. O
corpo temático de O Quatrilho é baseado em uma música instrumental, Tema de Teresa e
Massimo (TTM), e duas canções: Mérica, Mérica, Mérica (MMM), de autor
desconhecido, e a música-tema do filme, A Voz Amada (MT), de Caetano Veloso. Todo o
material temático empregado no filme deriva dessas três músicas.

a) Música-tema (MT): A Voz Amada


 = 56

A frase dos primeiros quatro compassos da canção A Voz Amada é o material


temático mais presente na trilha sonora do filme. De uma maneira geral, essa canção está
associada ao percurso do protagonista (Angelo) e é exposta, pela primeira vez, em

1
O acordeon e a viola de dez cordas aparecem exclusivamente no plano diegético e operam na
função narrativa referencial no que diz respeito à representação de tempo e lugar.
88

violoncelo solo. Posteriormente, volta por diversas vezes em versão instrumental, ora
com melodia na trompa, acompanhada por cordas e metais, ora executada pelas cordas,
sempre com caráter triste e melancólico. No início da seção conclusiva da história, a
música é exposta pela primeira vez na íntegra, em versão cantada, com letra. Uma nova
versão instrumental acompanha a última cena, que mostra a “volta por cima” de Angelo.
Nos créditos finais volta a primeira parte da versão cantada, sendo logo sucedida por
MMM.

b) Mérica, Mérica, Mérica


 = 63

A canção Mérica, Mérica, Mérica, está presente na trilha sonora do filme já a partir
da abertura, acompanhando os créditos iniciais. Durante toda a seqüência dos créditos, a
música é soberana numa trilha onde não há vozes, sons ambientes ou efeitos sonoros. A
melodia, extremamente mnemônica, é apresentada na voz a capella de Caetano Veloso,
com letra em italiano, sendo em seguida acompanhada pela entrada sucessiva de
madeiras, bandoneon e cordas, bandolim e, finalmente, de tuba, flautas e trompa, em
tratamento onde predomina um caráter contrapontístico. A entrada sucessiva dos
instrumentos acompanhantes aumenta gradativamente a densidade orquestral da música,
garantindo uma boa progressão dramática na abertura do filme, composta de slide
89

show 1com imagens do lugar e dos personagens da história. A melodia do refrão é


empregada em várias outras passagens do filme, ora justaposta ora sobreposta à MT.

c) Tema de Teresa e Massimo


 = 76

Essa música acompanha o desenvolvimento da trama de Massimo e Teresa, sendo


utilizada na maioria das cenas em que a progressão dramática da atração entre os dois
personagens é explicitada na narrativa. Funciona como um leitmotif do casal. A primeira
exposição da melodia é em bandolim solo. Na segunda intervenção volta o bandolim
acompanhado por cordas e madeiras. No ponto culminante da narrativa (a “primeira vez”
de Massimo e Teresa), o TTM é exposto em sua versão mais extensa. A melodia é
introduzida pelo bandolim com as madeiras no acompanhamento. Em seguida, a harpa
vai para primeiro plano, executando variações melódicas acompanhada pelas cordas.
Finalmente, a melodia é exposta, na íntegra, por harpa e bandolim em uníssono,
acompanhados pelas cordas. O TTM é empregado ainda uma vez, com o último
tratamento descrito, na cena da partida de Massimo e Teresa.
Em termos de material composicional, na música de O Quatrilho predomina a melodia
tonal acompanhada, na maioria das vezes, por acordes em bloco. O tratamento harmônico
das melodias remete ao universo romântico: inclinações e modulações para tons afastados
da tonalidade inicial, assim como o uso de cromatismo, são constantes nos
desenvolvimentos da MT e do TTM. No TTM, especificamente, pode-se ouvir estruturas
harmônicas de tintas impressionistas, muito semelhantes às empregadas por Tom Jobim
em sua obra. O modo menor predomina claramente. Mesmo a canção Mérica, Mérica,
Mérica, apresentada no princípio e no final em tom maior, durante o filme é sempre re-
exposta em um contexto harmônico menor.

1
Justaposição de imagens estáticas.
90

3.1.3.2 - Mapa geral das funções da música em O Quatrilho. (Tabela I)

Tempo Imagem/ação Música Funções

1 Abertura
0:00:00 - Texto escrito em fundo negro Silêncio;
surge em fade in, fornecendo ao
espectador informações sobre a
época e o lugar da história.
0:00:20 - Ainda sobre fundo negro, nome - Entra música: voz (Caetano
do filme em computação gráfica e Veloso) a capella apresenta a - Função referencial narrativa
nome do diretor. Seguem créditos primeira estrofe da canção MMM. ⇒ demarcação formal e
sobre imagens fotográficas, em A partir do primeiro refrão, referência de época e grupo
sépia, de imigrantes italianos no madeiras, bandoneon, cordas, tuba, social.
Brasil. flautas e trompa entram,
sucessivamente, sempre em textura
contrapontística.
0:02:51 - Fim dos créditos - Plano - Música vai saindo em fade out, em
Conjunto do padre que vem fusão com som de sinos da Igreja
chegando à igreja, montado em
- Inaudibilidade.
uma mula, para celebrar o
casamento de Angelo e Teresa
2 0:17:37 - Vários planos de Pierina - Violoncelo, executando os dois - Continuidade.
cozinhando e servindo comida a primeiros compassos da melodia de
trabalhadores, MT, entra nos últimos fotogramas
da cena anterior, prossegue até a
0:17:50 entrada do diálogo e sai em fade
out.
- Inaudibilidade.
3 0:24:16 Massimo e Pierina, já casados, Bandolim solo apresenta pela - Função narrativa referencial:
recebem a visita de Teresa primeira vez a melodia do Tema de TTM será utilizado leitmotif do
Teresa e Massimo (TTM). romance entre Teresa e
0:24:32 Massimo.
4 0:28:35 Fim da visita -Teresa despede-se e Volta bandolim. Idêntico à - Recapitulação ⇒ unidade.
parte. intervenção anterior. - Função narrativa referencial
0:28:31
⇒ Música “emoldura” a cena.
5 Ângelo vai à cidade procurar
trabalho.
0:29:34 - Vários planos do protagonista - MT é exposto pela segunda vez. - Recapitulação ⇒ unidade
andando a cavalo por uma rua da Agora com a melodia na trompa, em
cidade, indo ao encontro de tom menor, andamento lento e
Batiston, o homem que contrata região médio grave, com
trabalhadores para a construção da acompanhamento de cordas (em
estrada. arco e pizzicato) e metais.
Na seqüência da música, ouve-se
nas flautas citação da melodia de - Recapitulação ⇒ unidade
MMM.
0:30:28 Ângelo apeia e encontra-se com
Batiston.
- Diálogo entre Angelo e Batiston - Música sai em corte seco.
- Corte seco sem função
dramática aparente.
91

6 0:32:44 -Vários planos de Angelo - Volta MT. É o mesmo trecho - Recapitulação ⇒ unidade.
quebrando pedras com a picareta (melodia de MT justaposta à de - Função narrativa referencial
na construção da estrada. MMM) utilizado na chegada de
⇒ leitmotif do personagem
Angelo à cidade, com ligeiras
diferenças nos cortes de entrada e
Angelo.
saída.
0:33:00 - Corte seco de áudio encerra a
intervenção musical. - Corte seco sem função
dramática aparente.
7 Início da segunda seção da - MT reaparece, com o mesmo Recapitulação e variação de
narrativa Os dois casais viajam tratamento anterior, mas material temático ⇒ unidade.
para a recém-adquirida colônia. desenvolve-se por mais tempo com Música “costurando” cenas
Longo trecho sem diálogos: a seguinte forma:
⇒ Continuidade.

0:39:38 - Início da viagem melodia da MT


melodia de MMM
ponte modulatória

- Chegada à Colônia. Exterior. - Voltam variações da melodia da


Plano geral da casa. MT nas cordas
- Cenas da primeira noite dos
casais sobre o mesmo teto;
0:43:14 - Primeiro plano do rosto de Teresa
com expressão triste. Final conclusivo.

- Inaudibilidade.
8 0:46:00 - A construção do moinho (longo - Recapitulação e variação de
trecho sem diálogos.) material temático ⇒ unidade
- Angelo e Massimo coordenam - Volta a música-tema, na mesma
operários na construção; região médio/grave e com o mesmo
caráter da intervenções anteriores.
0:47:50 - citação de MMM;
0:48:16 - Planos conjuntos e primeiros - Entra melodia do TTM;
planos de Teresa e Pierina - Função narrativa referencial.
cozinhando e, em seguida, levando ⇒ leitmotif de Teresa e
comida para o almoço dos Massimo operando em
trabalhadores no canteiro de obras; seqüência da progressão do
0:49:12 -Teresa e Massimo trocam olhares romance entre os dois.
em plano/contraplano;

0:49:23 = Elipse: Teresa já em seu quarto, - Continua TTM, diminui


na emoção da troca de olhares densidade instrumental, assim como
entre ela e Massimo. os ritmos harmônico e melódico. - Continuidade - música
“costura” a seqüência que
acontece em três cenários
- Final conclusivo. diferentes; música operando em
elipses temporais.
- Inaudibilidade.
92

9 Encontro de Teresa e Massimo no


moinho
0:53:34 - Planos de Teresa indo ao - Entram, nas cordas, acordes do - Variação de material temático
encontro de Massimo; acompanhamento do TTM.
⇒ continuidade.
- Função narrativa referencial
0:53:44 - Início do diálogo entre os dois. - Música desce para plano de fundo ⇒ leitmotif
Teresa faz, filosoficamente, e vai saindo em fade out; - Procedimento vococêntrico
perguntas a Massimo sobre o (subordinação às vozes).
significado do amor Massimo ⇒ inaudibilidade.
procura seduzir a cunhada. Pede
um beijo. Teresa diz que concede,
0:57:06 mas só “se for na ponta dos - Volta acompanhamento do TTM
dedos”; nas cordas;
- Música sobe para primeiro plano;
- Massimo beija Teresa;
- Teresa fica nervosa; - Música decresce bruscamente para - Paralelismo entre a dinâmica
-Teresa dá uma desculpa; plano de fundo durante a fala de da música e a progressão
Teresa; dramática da cena.
- Acorde tenso em crescendo;
0:57:30 - levanta-se; - Corte seco no meio do acorde.
- e vai embora. - Corte seco sem função
dramática aparente.
10 Seqüência da “primeira vez” de - Continuidade e função
Massimo e Teresa: narrativa referencial.
1:00:57 Casal passeia em clima romântico - Arpejos em harpa acompanhados
num cenário de rio e cachoeira; por cordas em notas longas,
chegam a um depósito de grãos, introduzem o TTM.
beijam-se de pé, deitam-se sobre as - Melodia no bandolim, depois no
sacas de trigo, e fazem amor pela violoncelo.
primeira vez.
1:04:50 - Final conclusivo.
- Inaudibilidade.
11 Seqüência da partida de Massimo e
Teresa
1:12:52 - Massimo dirige-se à cidade à - Volta MT - Recapitulação ⇒ unidade.
cavalo. Na cidade, conversa com
Batiston (não se ouve a voz dos
atores), faz acertos financeiros;
- Massimo e Teresa, com bagagem,
dirigem-se à estação ferroviária;
1:13:54 - Na estação, Massimo dá - Música sai em fade-out
instruções a um empregado; - Subordinação às vozes.
1:15:18 - Massimo e Teresa embarcam em - Entra TTM nas cordas
um trem na estação. Trem parte, - Função narrativa referencial
câmera acompanha os dois na ⇒ leitmotif de Teresa e
janela da cabine
Massimo.
1:16:04 - Música sai em corte seco

- Corte seco ⇒ edição


descontínua sem função
dramática aparente.
93

12 Seqüência de Angelo e Pierina


após descobrirem a traição.
1:17:12 - Empregado que estava com Sem música
Massimo na estação dá a notícia a
Angelo e vai embora; Angelo,
revoltado, desabafa com Pierina,
que ouve em silêncio;
- Angelo resmunga e pragueja; - Volta MT, agora somente nas
Pierina reza; cordas. - Recapitulação ⇒ unidade.
- Angelo sobe ao primeiro andar; - Final suspensivo sobre acorde de
olha para uma cômoda que fora dominante. - Acorde de dominante com
dada de presente por Massimo para função narrativa referencial
Teresa; (antecipação de ação
- Angelo fora da casa destruindo
subseqüente: a explosão de ira
furiosamente a cômoda com seu
machado e fazendo uma fogueira
do protagonista)
com a madeira.
- Primeiríssimo plano do fogo:
1:23:37 passagem de tempo;
- Manhã do dia seguinte: Angelo - MT, ainda nas cordas, volta da
sentado diante das cinzas; Pierina capo.
surge à porta da casa e vai em - Recapitulação ⇒ unidade.
direção a Angelo para consolá-lo.
- Final da música em corte seco

- Corte seco ⇒ edição


descontínua sem função
dramática aparente.
13 Seqüência de Angelo e Pierina em
1::30:06 casa.
- Vários planos de Pierina - Volta MT - versão cantada, na voz - Recapitulação e variação de
executando pequenas tarefas de Caetano Veloso. Música material temático
domésticas; introduzida pelo bandoneon;
- PP de Angelo sentado à janela, - Entra voz, acompanhada por ⇒ Unidade.
olhar perdido no horizonte. bandoneon, violão, violoncelo;
1:32:49 - Final conclusivo.
⇒ Inaudibilidade.
14 1:36:09 Angelo e Pierina fazem amor em Cordas executam o Variação de material temático.
um depósito de trigo. acompanhamento da MT. ⇒ Unidade.
1:37:48 Final conclusivo.
- Inaudibilidade.
15 Angelo dá a “volta por cima” - Volta MT, agora em metais e - Paralelismo. Significante de
1:45:09 Plano geral do novo cordas. Caráter épico. emoção. Caráter épico. (a vitória
empreendimento de Angelo: de Angelo = vitória de cada um
panorâmica sobre o pasto da nova de nós, espectadores.)
fazenda onde o protagonista cria
gado.
1:45:30 - Música sai em corte seco.
- Corte seco ⇒ edição
descontínua sem intenção
dramática aparente.
94

16 1:51:10 Elipse:
- Cenas de Angelo e de Pierina - Volta versão instrumental de - Recapitulação e variação
mais velhos na cidade, de carro, a MMM. Melodia no acordeon; Unidade.
pé; - Música decresce para plano de - Função narrativa referencial
1:51:27 fundo; vai saindo em fade out
- Voz de Teresa , em voice over, ⇒ acordeon = Itália.
“lê” uma carta onde manda notícias - Subordinação às vozes.
e pede perdão a Angelo e Pierina. Procedimento vococêntrico.
Ainda em voice over, Pierina
responde perdoando; imagens de
Angelo mais velho e sua família
(mulher, filhos, e alguns netos)
1:52:01 arrumando-se para uma fotografia; - Volta versão cantada de MT
- Câmera se aproxima lentamente
- Recapitulação.
em zoom (de Plano geral para
plano conjunto do grupo); imagem
do grupo se funde à imagem da
nova família de Massimo e Teresa,
também se arrumando para foto;
imagem sai em fade out - Música segue ⇒
Continuidade.
17 1:54:40 Créditos finais - Segue versão cantada de MT, - Função narrativa referencial.
seguida de versão igualmente ⇒ demarcação formal da
cantada de MMM narrativa.
- Recapitulação ⇒ unidade.

3.1.3.3 - Funções da música em O Quatrilho.


Pode-se afirmar, sem medo de errar, que há muitos pontos de identidade entre a
música de O Quatrilho e o modelo clássico descrito por Gorbman, o que pode ser
constatado já a partir do material composicional clássico-romântico utilizado. A música
do filme é toda baseada em melodia tonal acompanhada e o tratamento harmônico
predominante é baseado em recursos do universo Romântico. Além de exercer a função
de conferir unidade ao filme, as constantes recapitulações e variações de temas (motivos
extraídos das três músicas que formam o corpo temático musical de O Quatrilho
percorrem toda a história) operam de duas maneiras na função narrativa referencial: a)
uso da técnica do leitmotif para fazer referência a ambientes e estados emocionais de
personagens, e b) contribuindo para a demarcação formal da narrativa. A canção Mérica,
Mérica, Mérica, por exemplo, opera na representação do ambiente onde a história
acontece e, ao mesmo tempo, atua na construção da “moldura” do filme marcando
presença na abertura e sobre os créditos finais. De uma maneira geral, não há
propriamente disjunções intencionais entre música e imagem, ou qualquer procedimento
95

estético que possa remeter à idéia de um contraponto ou de uma harmonia dissonante na


relação entre a música e a narrativa. A prática predominante no filme é o paralelismo
entre os movimentos dramáticos do filme e da música.
Entretanto, se em geral a música de O Quatrilho atua como significante de
emoção, procurando acompanhar a dinâmica dramática da narrativa, em vários momentos
do filme foi possível perceber desencontros entre as emoções representadas na música e
na tela. Em O Quatrilho os personagens movem-se pela narrativa numa trajetória
vitoriosa permeada por conflitos e dor, mas também por alegria, esperança, coragem e,
principalmente, por amor. Angelo é um vencedor em sua trajetória, assim como o amor é
vitorioso e libertador na trama ao se impor sobre preconceitos e dar um destino feliz aos
personagens envolvidos em casamentos emocionalmente pobres. No entanto, a exagerada
dramaticidade da trilha sonora nas duas primeiras partes do filme antecipa com
intensidade demasiada os sentimentos de traição e dor dos personagens de Angelo e
Pierina, que somente são claramente expostos na seção final do filme. Ao “carregar na
tinta”, a música comete uma espécie de “fraude” dramatúrgica, levando o espectador a
crer que um destino cruel está escrito para aqueles personagens. A música é muito mais
tensa e triste do que os personagens e a história. Um bom exemplo desse excesso
dramático da música pode ser flagrado na cena descrita a seguir (detalhamento da
seqüência 5 da Tabela I):
96

Imagens/ação Música
CENA 1/INTERIOR/DIA - BAR DE COSMO Sem música
COSMO - Ô Angelo, mas não tem nenhuma colônia pra
comprar em Nova Vicenzia. Faz como os
outros, que foram pra Caxias. Olha, o trem vai
ser inaugurado em poucos meses. Trabalho é
que não vai faltar.
ANGELO - A única coisa que sei é pegar no cabo da
enxada. Ir pra cidade é o mesmo que morrer
de fome.
COSMO - Olha, tem indústria, tem comércio, tão
construindo casas novas, tão abrindo estradas.
E, depois, sempre dá pra pegar na picareta.
Não é nada demais, é?
ANGELO - É... na picareta... isso eu sei fazer. Enquanto
isso podia procurar uma outra colônia...
CENA 2/EXTERIOR/DIA - RUA DE CAXIAS DO
00:26:37 SUL - Entra música junto com o primeiro
Plano médio de Angelo andando à cavalo em uma rua fotograma. Primeira exposição clara
00:26:41 movimentada. da música-tema A Voz Amada.
Abre para plano conjunto: câmera acompanha Angelo Tonalidade inicial de Fá# menor,
aproximando-se de uma das casas da rua, apeando, andamento lento ( = 63), melodia na
00:27:00 dirigindo-se à entrada da casa.
Na entrada da casa é recebido por Rocco. Início do região médio grave (trompa),
diálogo. acompanhamento de cordas em
pizzicato e arco, e metais, com caráter
dramático. Quase um réquiem. A
melodia é formada por transposições
dos dois primeiros compassos da MT.
Música segue sem contrastes
expressivos, decrescendo para
ROCCO - Tu é o Angelo Gardoni. Eu recebi um bilhete segundo plano em relação ao diálogo.
do compadre Cosmo. Como vai o compadre?
ANGELO - Eh, o compadre va bene.
ROCCO - O compadre Cosmo me disse que tu é muito - Música sai em corte seco.
00:27:21 bom no quatrilho. Isso é que vamo vê, eh?
Fim da seqüência

O ponto crítico da interação música-narrativa, nesta seqüência, é a intensidade da


carga dramática da música. Até esse momento da história, nada de grave aconteceu ao
protagonista. A essa altura, o espectador já sabe que Angelo é casado com Teresa e
Massimo com Pierina. A atração entre Teresa e Massimo também já foi explicitada.
Angelo, o protagonista, quer comprar terras, construir um moinho e produzir farinha, mas
não está encontrando terras disponíveis em Nova Vicenzia, cidade onde vive. Enquanto a
oportunidade não surge, Angelo, aconselhado por um amigo, vai procurar trabalho
temporário em Caxias do Sul, onde pretende encontrar as terras que deseja adquirir.
97

Como a história revelará adiante, Angelo vai encontrar trabalho, vai comprar as terras
que deseja, construir o moinho e prosperar. Quando encontra com Rocco é bem recebido
e a conversa entre os dois é amena e bem-humorada. A música utilizada, no entanto,
recebe um tratamento que sugere sentimentos trágicos. A combinação de elementos
musicais utilizada - andamento lento, tonalidade menor, melodia legatto na região médio-
grave - sugere uma atmosfera triste e sombria. Em relação a essa seqüência e ao destino
dramático de Angelo, uma música com essas características poderia estar operando na
função que Tagg classifica como antecipação de ação subseqüente, indicando um futuro
sombrio para o protagonista. Mas o fluxo da história virá a mostrar que Angelo, apesar de
traído pelo irmão e pela mulher, será vitorioso nos negócios e no amor, contrariando a
“previsão” da música que acaba por funcionar como uma “pista falsa”.
Outro aspecto da música de O Quatrilho que se afasta do modelo clássico diz
respeito a procedimentos de edição. Embora sejam numerosos os exemplos de uso de
música extradiegética para “costurar” planos e cenas, ajudando a “suavizar a
descontinuidade intrínseca ao processo clássico de montagem” 1, é igualmente grande o
número de cenas finalizadas com “cortes secos” na música, ou seja, música sendo
interrompida durante a sua enunciação (no meio de uma frase musical, ou mesmo de um
acorde sustentado). Como foi visto no primeiro capítulo, segundo os princípios da edição
clássica certos pontos da música são mais adequados que outros para entradas e saídas.
No caso da música não ter sido composta especialmente para a cena, a edição deve
privilegiar pausas, fim de frases e tempos fortes, por exemplo, como pontos de edição.
Em O Quatrilho várias intervenções de música têm um final abrupto, de certa forma
remetendo a procedimentos estéticos utilizados por Godard e pelos cineastas do Cinema
Novo e do Cinema Marginal. No entanto, os “cortes secos” de música em Godard e nos
contextos cinemanovista e marginal são pressupostos estéticos de um modo de fazer
cinema. Em O Quatrilho, um filme narrativo clássico, o procedimento parece deslocado e
vazio de qualquer intenção estética.

3.2 - O Que É Isso, Companheiro?


3.2.1- Dados gerais sobre o filme, diretor e compositor.

1
Ver referência na página 16 do primeiro capítulo deste trabalho.
98

Livre adaptação do livro homônimo escrito por Fernando Gabeira, baseado em


fatos reais e vivenviados pelo próprio autor, O Que É Isso Companheiro, produzido pela
L. C. Barreto, foi dirigido por Bruno Barreto e teve a música original assinada pelo
baterista e compositor Stewart Copeland. A trama do livro e do filme é centrada no
episódio do seqüestro do embaixador americano Charles Elbrick por militantes de grupos
que se opunham ao regime militar, que governava o Brasil no final dos anos 60.
O Que É Isso Companheiro? obteve menos sucesso de bilheteria - 321.450
espectadores - do que O Quatrilho, mas ocupou espaço destacado na imprensa que, de
uma maneira geral, elogiou o profissionalismo da produção e da direção, não deixando,
contudo, de criticar a visão maniqueísta inclinada à direita do filme, que dava ênfase aos
dramas de consciência de um torturador enquanto apresentava os seqüestradores como
personagens tipo, ou seja, de modo caricatural.
Filho mais velho do produtor Luiz Carlos Barreto, Bruno Barreto tem uma
extensa carreira como diretor de longa-metragens que teve início em 1972 com o filme
Tati, a Garota. Bruno Barreto foi o diretor de um dos maiores sucessos comerciais do
cinema brasileiro, o filme Dona Flor e Seus Dois Maridos que, segundo Antônio L.
Tinoco 1, é o recordista absoluto de público na história do cinema brasileiro. Embora em
seu filme de estréia - Tati, a Garota - possa ser flagrada, ainda segundo Tinoco, forte
influência cinemanovista, atualmente Bruno Barreto, que hoje vive e trabalha em
Hollywood, pode ser considerado um legítimo representante de um cinema voltado para o
êxito comercial.
Nascido no Egito, filho de funcionários americanos da CIA, Stewart Copeland
começou sua carreira de baterista na Inglaterra, numa trajetória que teve como ponto
culminante a participação no grupo Police entre os anos de 1977 e 1985. Após o fim do
grupo, que dissolveu-se no auge da fama, Copeland passou a se dedicar a compor para
cinema, atividade que exerceu pela primeira vez em 1983 quando, a convite do diretor
americano Francis Ford Coppola, escreveu a música do filme Rumble Fish. Entre os
filmes com música assinada por Copeland estão Out of Bounds (Richard Tuggle, 1986)
Wall Street, (Oliver Stone,1987), Highlander II: The Quickening (Russell Mulcahy,

1
Tinoco, A. L., “Bruno Barreto” in Ramos & Miranda, op. cit., p. 43.
99

1991), Decadence (Steven Berkoff, 1994), Very Bad Things (Peter Berg,1998) e Boys
and Girls (Robert Iscove, 2000).

3.2.2 - Sinopse de O Que É Isso Companheiro?.


Em 1964, um golpe militar derruba o governo democrático brasileiro e, após
alguns anos de manifestações políticas, é promulgado, em dezembro de 1968, o Ato
Constitucional nº 5 (AI-5), que acabava com a liberdade de imprensa e os direitos civis.
Neste período, muitas pessoas, entre elas vários estudantes, abraçam a luta armada
entrando para a clandestinidade. Em 1969, militantes do Movimento Revolucionário 8 de
Outubro (MR-8) elaboram um plano para seqüestrar o embaixador dos Estados Unidos e
trocá-lo por prisioneiros políticos, que eram torturados nos porões da ditadura.
Este é o cenário onde se passa a história protagonizada pelo estudante Fernando,
personagem interpretado pelo ator Pedro Cardoso. Fernando e seu amigo César 1 decidem
lutar contra a ditadura militar e ingressam no MR8, onde conhecem Marcão, Maria, René
e Júlio 2. A primeira ação do grupo é um bem-sucedido assalto a banco, apesar das baixas
no grupo. César, o mais jovem, é baleado e capturado pela polícia. Visando uma ação que
conseguisse furar o bloqueio da imprensa, Pedro sugere o seqüestro do embaixador
americano no Brasil, Charles Elbrick. A direção do movimento aprova a idéia e o grupo
passa ao planejamento e à execução do seqüestro, agora sob o comando de dois veteranos
da militância, os “companheiros” Jonas e Toledo 3, membros do movimento paulista Ação
Libertadora Nacional.
Na segunda seção do filme, a casa onde os militantes do MR8 mantêm cativo o
embaixador é o epicentro da ação, que se desenvolve em algumas sub-tramas: a) a
expectativa dos seqüestradores em relação à resposta do governo militar às suas
reivindicações; b) a progressão das investigações policiais; c) o drama de consciência de
um dos policiais-torturadores; d) a progressão da tensão entre os “companheiros” Jonas e
Pedro; e e) a progressão da relação afetiva entre Pedro e a “companheira” Maria. O
governo atende às reivindicações do MR8, o embaixador é libertado e os “companheiros”

1
Interpretado por Selton Melo.
2
Interpretados por Luís Fernando Guimarães, Fernanda Torres, Cláudia Abreu e Caio Junqueira,
respectivamente.
3
Interpretados por Mateus Natchergaele e Nélson Dantas
100

envolvidos no seqüestro seguem rumos independentes na clandestinidade, proibidos, por


precaução, de manter qualquer tipo de comunicação entre si.
A libertação do embaixador é o “ponto de virada” que conduz à seção conclusiva
da narrativa. Após uma elipse de tempo, Pedro, que durante a operação envolvera-se
emocionalmente com Maria, decide desobedecer às ordens do comando do MR8 e
procura a moça. A imprudência de Pedro favorece a ação da polícia, que acaba
capturando o casal. Uma nova elipse transporta a história para a conclusão final: Pedro e
Maria, junto com outros presos políticos, são soltos em troca da liberdade do embaixador
alemão no Brasil que havia sido seqüestrado por grupos militantes anti-ditadura.

3.2.3- A música de O Que É Isso Companheiro?.


3.2.3.1- Material temático, instrumental e composicional.
A música extradiegética original de O Que É Isso Companheiro? foi escrita para
um conjunto de cordas e madeiras (violinos, violas, violoncelo, contrabaixo, clarinete,
oboé e flauta), violão e percussão. Há ainda na trilha sonora do filme a presença das
canções Garota de Ipanema (Tom Jobim e Vinícius de Morais) e The House of the Rising
Sun (Alan Price) utilizadas como trilha adaptada. A primeira é utilizada somente na
abertura do filme. The House of the Rising Sun é ouvida apenas na seqüência onde os
militantes do MR8 assaltam um banco e sobre os créditos gerais finais. Essas duas
canções são empregadas de modo pontual operando principalmente na função narrativa
referencial (representação de época e lugar) e não têm qualquer relação temática com a
música extradiegética original, composta por Stewart Copeland, que domina praticamente
todo o filme.
O corpo temático da música original do filme é composto basicamente pelo
material exposto nos primeiros compassos da primeira intervenção de música
extradiegética original (seqüência 2 da Tabela II - Fernando entrando na clandestinidade)
e nos dois primeiros compassos da terceira intervenção (seqüência 5 da Tabela II - René
ligando para o pai).
- 1a intervenção.
101

- 3a Intervenção.

Os movimentos melódicos que formam o corpo temático da música do filme são


compostos de apenas três notas e podem ser assim resumidos:
a) Motivo I b) Motivo II

c) Motivo III

O Motivo I, com movimento melódico de um salto (4a ascendente) sucedido por


um grau conjunto (2a ascendente) é o mais marcante na música do filme e, assim com os
outros dois, é submetido a um tratamento composicional baseado em princípios que
podem ser considerados como uma prática serial, ou seja, inversões, movimentos
retrógrados e transposições. 1
Na música de O Que É Isso Companheiro predominam escalas e cadências
modais quase sempre nos modos eólio, dórico e frígio. (Copeland não usa cadências com
movimento melódico sensível ⇒ tônica e desenvolvimentos tonais em nenhum momento
do filme) e densidade orquestral rarefeita, sendo utilizados inúmeras vezes instrumentos

1
É importante ressaltar que na música de O Que É Isso Companheiro?, ao contrário do que
acontece nos outros dois filmes investigados neste capítulo, não se pode falar, propriamente, em uma
melodia estruturada nos moldes clássico-românticos, com pricípio, meio e fim, pontos culminantes, etc.
102

solo e texturas corais polifônicas a duas e três vozes. Outros aspectos dominantes na
música do filme são andamentos lentos - muitas vezes ad libitum - e as chamadas “notas
brancas”, ou seja, figuras rítmicas de maior duração como longas, breves, semibreves e
mínimas.

3.2.3.2- Mapa geral da música de O Que É Isso, Companheiro? (Tabela II)

Tempo Imagem/ação Música Funções

1 0:00:00 - Slide show em preto e branco - Entra música - canção Garota Função narrativa referencial
com imagens do Rio de Janeiro de Ipanema, interpretada por (representação de tempo e lugar
nos anos 60: praias, Maracanã, Tom Jobim. e demarcação formal)
bonde circulando no centro da - Continuidade: música
cidade, etc. operando para dar fluxo
- Table top: letreiros, sobre contínuo a sucessão de imagens
fundo negro, fornecendo ao estáticas.
espectador informações sobre o
contexto político da história - o
golpe militar de 1964 e o
decreto do Ato Institucional
número 5, em 1968.
0:01:16 - Ainda em p.b. planos gerais - Música sai em fade out em
de passeata estudantil no centro fusão com as vozes dos - Inaudibilidade.
do Rio de Janeiro e primeiros manifestantes que gritam
planos do protagonista palavras-de-ordem.
Fernando e dos personagens
César e Arthur 1 na passeata.
Sobre essas imagens entram os
créditos de produção e direção.

1
O personagem Arthur, interpretado pelo ator Eduardo Moscovis, atua na primeira seção da
narrativa como personagem “orelha”, ou seja, um personagem plantado na trama para que o público “ouça”
o pensamento do protagonista sem que o roteiro precise recorrer a monólgos ou voice over. (jargão de
teledramaturgia.)
103

2 0:06:49 - Vários planos de Fernando e


Arthur caminhando à noite na
Urca. Fernando diz que vai
entrar na luta armada contra a
ditadura. Arthur tenta
convencê-lo a desistir da idéia.
Fernando está irredutível.
A. - Então é definitivo?
F. - É definitivo.
A. - Vê se não morre...
F.- Vou tentar.
A. - A gente se vê...
F. - A gente não vai se ver... - Entra música (nota sustentada - Função narrativa referencial.
crescendo “do nada”). ⇒ música demarca a entrada de
Violoncelo solo. Primeira Fernando na clandestinidade
- Elipse. Fernando em seu exposição dos Motivos I e II. - Continuidade ⇒ música
apartamento. operando na “costura” entre
cenas e elipses.
- Chega o “companheiro” - Entra segunda voz. Notas - Paralelismo entre música e
Marcão para buscá-lo e pede a longas. Pouca atividade rítmica, ação dramática. (aumento da
Fernando que coloque um par melódica e harmônica, textura densidade da música =
de óculos escuros. coral rarefeita., modo menor progressão dramática. Ponto
natural com fundamental na nota culminante da música
Mi. À medida em que a cena coincidindo com o momento em
evolui, a densidade aumenta que Fernando deixa o “seu
(três vozes). mundo” para trás.
- Elipse. Fernando e Marcão na - Música atinge o ponto
portaria do prédio de Fernando. culminante. Fermata sobre
Fernando fingindo-se de cego. acorde suspenso em posição
Os dois atravessam a rua e aberta com fundamental em Mi.
entram em um automóvel.
Marcão dá a partida no carro.
- Câmera deriva e faz um
travelling vertical mostrando o - Sobre as notas longas das
prédio de Fernando. cordas, entra um breve arpejo de
- Elipse. Fernando no interior violão.
do casa que serve de “aparelho” Seguem as cordas.
para os militantes do MR8.
- Primeiro plano de Fernando - Um harmônico no violão (nota - Função narrativa conotativa
tirando os óculos. A luz ofusca Si) coincide com o piscar de ⇒ harmônico no violão
seus olhos. olhos de Fernando ofuscado “ilustrando” o ofuscar nos olhos
pela luz. de Fernando.
- Câmera subjetiva (ponto de - Seguem cordas. Mesma - Continuidade.
vista de Fernando) faz uma atmosfera, mesmo centro tonal.
0:09:05 panorâmica da sala
apresentando os membros do
MR8.
- A um comando do líder do - Música conclui em um - Inaudibilidade. ⇒ Música
grupo “companheiros” sentam- intervalo consonante nas cordas conclui antes do início do
se ao redor de uma mesa e tem (5a ). diálogo (subordinação às vozes,
início diálogo onde as regras procedimento vococêntrico)
do MR8 são expostas a
Fernando.
104

3 0:14:09 Seqüência do assalto a um - Música entra nos últimos - Continuidade ⇒ música “liga”
banco na primeira ação do fotogramas da cena anterior as duas seqüências.
grupo. (companheiros comendo ao
- Vários planos do grupo anoitecer em um acampamento
assaltando o banco. na praia após um dia de
treinamento de tiro). Versão
instrumental (guitarras, baixo, - Função narrativa referencial
bateria) da canção The House of ⇒ referência de época (a canção
the Rising Sun (Alan Price). foi um sucesso dos anos 60)
- Plano conjunto de Marcão - Música decresce para plano- - Subordinação às vozes
fazendo um discurso de-fundo durante a fala de (Procedimento vococêntrico)
revolucionário. Marcão. ⇒ Inaudibilidade.

0:15:21 - Vários planos da ação de - Música sai em fade out, em - Inaudibilidade.


fuga. fusão com o ruído do motor do
carro em fuga.
4 0:16:39 César foi baleado e preso
durante o assalto. Fernando
revela ao grupo que conhecia
César e sabia o seu nome, o que
era proibido pelo comando do
MR8.
- Primeiro plano do rosto de - Entra música. Após uma nota - Unidade ⇒ permanência de
Fernando. lá sustentada no violino instrumentação, do modo menor
(crescendo “do nada”), entram e da atmosfera geral da música.
cordas fazendo primeira
variação (transposição e
inversão) do Motivo 1 (sexta
ascendente seguida de segunda
0:18:18 menor descendente)
- Corta para cena de César - Música decresce durante os - Subordinação às vozes.
sendo torturado por agentes do diálogos do interrogatório.
SNI.
- Corta para a sala do - Violino sustenta a fundamental - Continuidade.
“aparelho”. Militantes da escala e vai saindo em fade - Música conclui junto com a
comentam o assalto e Fernando out . Final conclusivo cena ⇒ inaudibilidade.
propõe o seqüestro do .
embaixador americano.
105

5 0:25:10 Para conseguir informações


sobre o embaixador americano,
a companheira René dorme
com o chefe dos seguranças da
embaixada.
- Dia seguinte, de manhã cedo. - Dueto de flauta e oboé. Entra - Variação de material temático
Plano conjunto de René flauta solo. Exposição do ⇒ unidade.
caminhando pela rua em Motivo III. Ênfase nas três
direção a um telefone público. primeiras notas do modo menor
com fundamental em Dó.
- Primeiro plano de René - Música faz uma pausa...
ligando para seu pai. O
espectador ouve a voz do pai da
menina reclamando por ter sido
acordado por ela.
00:26:0 - Primeiro plano de René - ... e volta em flauta solo uma - Música conclui junto com a
3 chorando oitava abaixo da exposição, cena ⇒ inaudibilidade.
concluindo em intervalo de terça - Paralelismo entre a emoção de
menor (3o e 5o graus da escala René e o caráter da música que
menor harmônica) “entristece” com a mudança de
oitava.
6 0:28:32 Companheiro Jonas dá - Unidade e Continuidade.
instruções sobre o seqüestro.
J.- Eu quero avisar que mato o - Após a fala de Jonas música - Significante de emoção
primeiro que discordar de entra em duas vozes (clarinete e (intensificando a carga
minhas ordens ou vacilar. oboé). Segunda variação do dramática da fala de Jonas e da
- PP da reação de Fernando Motivo I (2a menor descendente reação de Fernando)
apreensivo. / 4a descendente). Música - Paralelismo. Música faz um
conclui em intervalo de 4a (Si- movimento do 5o grau (Final em
- Corta para planos do grupo Mi) Si-Mi) para o primeiro (arpejos
preparando as armas que serão - Entra, justaposto, violão em Lá maior) enquanto a ação
utilizadas na operação. fazendo arpejo da tríade de Lá vai de um momento de maior
maior em ritmo ad libitum. tensão (a ameaça de Jonas) para
outro de menor tensão
(companheiros concentrados no
preparo das armas).
- Variação de material temático
- Voltam clarinete e oboé ⇒ Unidade.
0:29:16 - Corta para plano conjunto da fazendo transposição do Motivo - Inaudibilidade e Continuidade
cozinha. Maria comunica a III. ⇒ Música conclui junto com a
Fernando que ele não vai - Música conclui em Fermata cena e invade um pouco a cena
participar da operação. sobre intervalo de 5a (Si-Mi), seguinte.
que sai em fade out.
106

7 0:31:41 Seqüência do seqüestro do


embaixador. Vários planos de - Entram cordas a três vozes em - Função narrativa referencial
companheiros, “de tocaia” na crescendo “do nada” antecipação de ação
rua, esperando a passagem do (fundamental, quinta e subseqüente.
carro do embaixador. René, em fundamental oitava a cima) e
um posto avançado, é a percussão (ritmo de samba - Paralelismo. Música
responsável por dar o sinal lento). Modo frígio com acompanha o movimento de
quando avistar o carro. fundamental em Lá. tensão e repouso da narrativa.
Transposições do Motivo II. - Embora esteja inevitavelmente
- René ameaça dar o sinal, mas - Ao gesto de René ameaçando associado a Brasil, o ritmo de
é um equívoco: é o carro do dar o sinal as duas vozes samba aqui não está operando
embaixador de Portugal que se inferiores sobem um semitom, primordialmente na função de
aproxima. gerando tensão com a primeira estabelecer ambiente, mas sim
voz Quando fica claro que “em paralelo” aos ritmos da
aquele não é o carro do montagem e da ação.
embaixador, as duas vozes
inferiores descem um semitom
retornando às alturas originais e
restabelecendo a consonância.
- Saem cordas. Segue samba - Continuidade.
lento na percussão.
- Corta para apartamento de
Dona Margarida (Fernanda
Montenegro) ligando para a
polícia porque está achando
suspeito o comportamento das
pessoas que observa de sua
janela.
- Corta para embaixador saindo - Voltam cordas. Uníssono na - Função narrativa referencial.
de casa. fundamental Lá. ⇒ “a ação está para começar.”
- René dá o sinal: o carro do - Coincidindo com o gesto de - Função narrativa conotativa
embaixador se aproxima. René Sobre um pedal de Lá na (stinger)
- Vários planos dos região aguda entram acordes
companheiros entrando em dois sforzatto com alto grau de - Paralelismo ⇒ música
carros e partindo para a ação. dissonância na região médio acompanha a progressão
grave. Entram surdo ff dramática.
marcando o segundo tempo do
- Plano do carro do embaixador 2/4 e ganzá.
do ponto de vista de Jonas, que
dirige um dos carros. - Função narrativa conotativa
- Carro do embaixador em - Crescendo súbito nas cordas. ⇒ crescendo nas cordas
primeiro plano se Cordas saem. Cresce e segue “ilustrando” o “crescimento” do
“aproximando” da câmera. percussão. carro na tela.
- Planos dos companheiros
entrando no carro do
embaixador e o imobilizando.
- Corta para Dona Margarida
ligando de novo para a polícia.
- Corta para o “aparelho”.
Fernando e Toledo aguardam a
0:38:15 chegada dos companheiros na - Inaudibilidade.
garagem da casa. - Sai música em fade out.
107

8 0:38:51 - Planos dos carros chegando à - Entra música. Mesma - Unidade.


garagem. Companheiros atmosfera das intervenções
desembarcam com o anteriores. Superposição dos
embaixador, se cumprimentam Motivos I (salto de 5a seguido
pelo sucesso da ação. de segunda menor descendente)
e III (dois graus conjuntos
0:40:02 - Primeiríssimo plano do rosto consecutivos). - Inaudibilidade.
do embaixador deitado em uma - Música sai em fade out sobre
cama no quarto-cativeiro. Fermata em intervalo de 5a com
fundamental no 1o grau da
escala.
9 0:41:50 - A notícia do seqüestro é - Entra música. Transposições - Unidade.
divulgada na TV. Montagem do Motivo I em madeiras e
paralela da mulher do cordas. (terça menor ascendente
Embaixador e dos seguido de segunda menor
companheiros assistindo. descendente, e sexta menor
- Corta para quarto de Henrique ascendente seguida de segunda - Continuidade.
(policial do SNI, torturador). menor descendente)
Henrique e sua mulher Lília
assistindo ao fim da notícia na
TV.
0:42:28 - Corta para companheiros - Música conclui em clarinete - Inaudibilidade.
comemorando. solo na nota Si. Final suspensivo

10 0:45:35 - Quarto de Henrique e Lília. - Unidade.


Henrique revela a Lília que é - Entra nota longa no violino
um torturador. (crescendo “do nada”). Música
- Primeiro plano do casal se desenvolve nas cordas na
abraçado. escala Eólia com fundamental
em Lá. Variações dos Motivos I
e II. Mesma atmosfera geral das - Inaudibilidade
intervenções anteriores. Durante
as falas de Henrique e Lília
música decresce.
0:47:01 - Corta para plano conjunto da - Música vai saindo em fade out. - Continuidade e Inaudibilidade
cozinha do aparelho. Fernando
e Marcão em cena. Maria entra
na cozinha e diz que Fernando
foi designado para ir à rua
comprar mantimentos.
11 1:00:56 - Fim da cena de René fazendo - Entra música. Oboé e clarinete. - Unidade e Continuidade.
curativos no embaixador. Cordas acompanham. Variação
- Corta para Fernando entrando dos Motivo II e III.
em uma Igreja e colocando, na
caixa de oferendas, a lista com
os nomes dos companheiros
que deverão ser libertados em
troca da libertação do
embaixador.
1:01:39 - Corta para Fernando, em um - Final suspensivo em intervalo - Inaudibilidade. Procedimento
telefone público, avisando aos de 5a (Si-Mi), antes de ter início vococêntrico.
jornais o lugar onde a lista pode a fala de Fernando.
ser encontrada.
108

12 1:04:15 - Apartamento dos Unidade, Continuidade,


companheiros. Jonas e Júlio Inaudibilidade, Procedimento
conversam sobre qual dos vococêntrico.
companheiros deve ser
escolhido para executar o
embaixador caso o governo se
recuse a negociar. Júlio se
oferece.
- Jonas: Eu tenho outra pessoa - Entra música. Nota Ré em - Função narrativa referencial.
em mente. crescendo “do nada) sustentada ⇒ música “sublinha” mais uma
- Júlio: Quem? no violino. Transposição do vez a idéia de morte.
- Jonas: O companheiro Paulo Motivo II, inversão e
(codinome de Fernando). transposição do Motivo III
- Corta para plano conjunto do
embaixador em seu quarto.
1:07:19 - Corta para plano conjunto da - Música vai saindo em fade out. - Inaudibilidade.
cozinha da casa. Diálogos
coloquiais entre os
companheiros Toledo, Maria e
René.
13 1:08:36 Fim de cena em que Fernando e - Entra música. Clarinete e oboé. - Transição ⇒ Continuidade.
o embaixador conversam no Retrógrado do Motivo I na - Unidade.
quarto-cativeiro. primeira voz. Ré menor eólio.
- Plano conjunto dos policiais
do SNI interrogando um dono
de padaria, que havia ligado
para a polícia por haver achado
estranho que um jovem
comprasse oito frangos de uma
só vez.
1:08:45 - Final conclusivo em intervalo - Inaudibilidade. Procedimento
de 4a, com fundamental em Ré, vococêntrico.
saindo em fade out no início das
falas.
109

14 1:10:36 Quarto-cativeiro. Fernando está


sentado em uma cadeira em seu
turno de vigia do embaixador,
que está dormindo. Fernando
ouve a campainha da porta ser
tocada, se levanta e aponta a
arma para a cabeça do
embaixador. Embaixador
acorda.
Após passado o susto (a
campainha fora tocada por
engano). O embaixador,
constrangido, diz que sentiu
medo e teve uma crise de
incontinência. - Música entra Arpejos ad - Significante de emoção ⇒
- Primeiro plano do rosto de libitum no violão. (Fá 6, Sol 4, música “em paralelo” com o
Fernando também constrangido Mi menor). Violão conclui com constrangimento dos
com a situação. transposição e retrógrado do personagens.
- Fernando ajuda o embaixador Motivo I (2a menor ascendente
a levantar-se para ir ao seguido de salto de 5a
banheiro. ascendente).
- Sai violão entram cordas. - Unidade.
Começa com transposição e
- Corta para plano conjunto e inversão do Motivo I e continua
primeiro plano do embaixador com o mesmo segmento
sentado no vaso sanitário utilizado na seqüência 8 desta
chorando. tabela. - Música cresce junto com a
- Música cresce. abertura do plano de filmagem
- Corta para grande plano geral (de Primeiro plano para Grande
do Corcovado. plano geral). Paralelismo.
- Inaudibilidade.
- Final suspensivo em um
- Corta para a residência do intervalo de quarta aumentada.
embaixador. Mordomo entrega (Mi-Lá#)
carta à esposa do embaixador.
15 1:12:59 Após a leitura (voice over do
embaixador) da carta, P.P. da
esposa do embaixador reagindo
emocionada. - Entra oboé solo, primeira nota - Continuidade. (transição entre
(crescendo “do nada”) e logo cenas)
depois cordas. Variação do
Motivo I. Duas vozes, notas
longas.
- Corta para Jonas, Júlio e - Música segue em plano-de -
Marcão observando de fundo, acompanhando toda a
Henrique e um colega fazendo- seqüência (diálogos dos
se passar por funcionários da companheiros e dos policiais) e
companhia telefônica em sai em fade out no final. - Inaudibilidade e procedimento
serviço de conserto. vococêntrico.
110

16 1:20:35 - Manhã do dia decisivo. Limite


do prazo dado ao governo pelo
MR8.
Fernando fica sabendo que - Entra música. Cordas. Mesmo - Significante de emoção ⇒
será o encarregado de executar segmento utilizado na seqüência música “em paralelo” com a
o embaixador, caso seja do seqüestro do embaixador. apreensão de Fernando e Maria.
necessário. - Unidade.
- P.P. do rosto de Fernando
reagindo apreensivo.
- P. M. de Jonas dizendo que se
houver qualquer vacilo ele mata
os dois.
- Corta para quarto da casa
onde Fernando e Maria
conversam. Estão assustados e
com medo de morrer.
Maria chora. - Final suspensivo em acorde do - Inaudibilidade e Unidade.
VI grau da escala de ré menor
eólio. Flauta faz variação do
Motivo I.
17 1:22:47 Mesmo quarto do fim da
seqüência anterior.
- Maria e Fernando beijam-se.
- Maria diz: agora eu sei o seu - Entra música. Flauta solo em - Significante de emoção
nome. É Fernando, não é? Lá menor natural. Clima ⇒ música “em paralelo” com os
- Voltam a se beijar. levemente lírico. Combinação sentimentos de Fernando e
dos motivos III e I. Maria.
- Corta para plano geral da
casa. - Entra nota Mi sustentada no Paralelismo e Significante de
- Corta para plano conjunto dos contrabaixo. emoção ⇒ Música “em
Henrique e o colega paralelo” com o perigo.
1:22:27 observando a casa de binóculo. - Música sai em fade out. - Inaudibilidade ⇒
- Diálogo entre os policiais. procedimento vococêntrico.
18 1:25:46 Está chegando a hora limite
dada pelo MR8 e o governo
ainda não deu resposta.
- Fernando entra no quarto - Volta Motivo II, mesmo - Função narrativa referencial
cativeiro. Planos de Fernando e tratamento da primeira (algo está para acontecer).
do embaixador, que se dá conta intervenção.
de que pode morrer a qualquer
momento.
1:26:00 Em voice over embaixador lê Durante o voice over, música - Inaudibilidade. Procedimento
uma carta para sua esposa onde conclui em fermata sobre acorde vococêntrico.
fala da possibilidade de morrer. de tônica (Mi menor) e vai
Corta rápido para PC da esposa saindo em fade out.
de Elbrick lendo a carta.
19 1:35:56 - Maracanã em dia de Fla-Flu. - Entra nota Mi, nas cordas, em - Unidade.
Fim do jogo. Multidão de oitava. Sobre a nota pedal, ouve- - Função narrativa referencial.
torcedores saindo do estádio. O se variação do Motivo I e, em - Música demarca o momento da
embaixador é libertado. seguida, retorna o mesmo libertação do embaixador. Fim
Companheiros se misturam à segmento da seqüência 8 desta do conflito primário do filme.
multidão. tabela.
- Final conclusivo em intervalo - Conclusão na música e na ação
de 5a com fundamental em Mi. ⇒ paralelismo e inaudibilidade.
111

20 1:37:44 A volta para casa do


embaixador.
- PP do embaixador e sua - Entra nota Mi sustentada no
mulher se abraçando nos contrabaixo.
jardins da residência
- Plano geral dos jardins - Continuidade.
- Elipse. Corta para Plano geral
da rua e da casa onde o - Frase ascendente nas cordas na
embaixador ficou confinado. escala de Mi menor dórico.
Aparece letreiro “Um mês
depois”.
- Corta para planos do interior
da casa. O proprietário está
fazendo uma reforma. - Música conclui em intervalo - Inaudibilidade ⇒
- Henrique entra na casa e tem de 5a com fundamental em Mi. procedimento vococêntrico.
início um diálogo entre os dois.
21 1:38:31 Na casa, torturador descobre Volta percussão de samba e - Recapitulação ⇒ unidade.
possíveis pistas do paradeiro cordas. Fragmento da música
dos seqüestradores. utilizada na cena do seqüestro.
- Plano detalhe de um caderno - Crescendo na nota Mi - Crescendo acompanha o plano
onde Henrique anota endereços. sustentada no violino. detalhe dos endereços que
- Corta para plano geral de uma - Entra violão. Arpejos ad colocam o policial na pista dos
rua de terra batida. Fernando libitum sobre acordes de Lá seqüestradores. Paralelismo.
desembarcando de um ônibus. maior e Sol maior.
- Fernando caminha pela rua
em voice over, Fernando “lê”
uma carta onde diz a Maria que
precisa vê-la e “que se danem a
s regras de segurança”.
1:39:13 - PP de Fernando parando e - Final conclusivo. - inaudibilidade.
olhando para um cartaz onde
seu rosto aparece, entre outros,
como procurado pela polícia.
22 1:40:30 Sala da casa onde Maria se
esconde. Sentados à mesa
Fernando e Maria conversam.
- PP de Maria chorando e dos - Entra violino solo. Variação e - Unidade. Variação de material
dois se abraçando. combinação dos Motivos III e I. temático.
1:40:53 - Fim do abraço dos dois. Maria - Final suspensivo. - Inaudibilidade. Música conclui
se levanta e vai para outro junto com a narrativa.
cômodo da casa.
112

23 1:41:50 - Plano conjunto de Fernando


ainda sentado à mesa. Fernando
estranha a demora de Maria e
chama por ela, que não
responde.
- Fernando levanta-se e percebe - Batida de surdo, ou tambor - Função narrativa conotativa
que a porta da frente está grave com bastante reverberação ⇒ Batida do tambor opera como
aberta. marca o momento em que um stinger.
Fernando se dá conta de que
algo errado está acontecendo. -
Efeito sonoro (ruído branco) em
Apavorado, Fernando tenta crescendo acompanha a fuga de
fugir pelos fundos da casa Fernando até ser cortado pelo
pulando o muro, mas é atingido tiro.
por um tiro e cai.
24 - Vários planos de Maria sendo - Entra música de encerramento. - Unidade.
conduzida numa cadeira de Recapitulação de todo o material - Função narrativa referencial
rodas. Letreiro indicando elipse temático utilizado durante o ⇒ demarcação formal.
(oito meses depois). filme. Começa em modo eólio
- Plano geral de um avião com fundamental em Ré e
parado em uma pista. Um conclui em modo eólio com - Final conclusivo. ⇒
grupo aguarda o embarque. fundamental em Mi. inaudibilidade.
- Planos médios e primeiros
planos de Fernando, Júlio,
Marcão e René entre os .
membros do grupo.
- Maria junta-se ao grupo, que
está sendo fotografado.
- Imagem congela e aparecem
os créditos relativos aos atores
principais.
25 1:48:43 Créditos finais. - Volta “The House of the - Recapitulação ⇒ Unidade.
Rising Sun”, acompanhando os
créditos finais.

3.2.3.3 - Funções da música em O Que É Isso Companheiro?.


O princípio da Inaudibilidade se destaca de maneira especial na música de O Que
É Isso Companheiro? que é a mais “discreta” entre as músicas dos filmes investigados
neste capítulo, ou seja, a que menos chama atenção sobre si mesma. Esse efeito de
música “inaudível” se deve a algumas estratégias adotadas pelo compositor. Entradas de
música em fade in de notas longas sustentadas em instrumentos solo e saídas de música
em fade outs, ou finais conclusivos coincidentes com o finais de cenas, são
procedimentos recorrentes. A mixagem de caráter acentuadamente vococêntrico procura
evitar qualquer conflito entre a música e os diálogos, procedimento que é favorecido pela
texturas orquestrais rarefeitas (instrumentos solos, uníssonos, duetos e texturas corais a
113

três vozes). O respeito ao princípio da continuidade parece também fazer parte das
estratégias de Copeland e Bruno Barreto. É significativo o número de cenas onde a
música opera transições “costurando” cenas, seqüências e elipses temporais.
Não há em O Que É Isso Companheiro? procedimentos que possam ser
classificados como disjunção, contraponto ou harmonia dissonante. O que predomina
amplamente são estratégias que visam construir um paralelismo entre a ação e a música.
Esse paralelismo se dá não somente quando a música opera como significante de emoção
ou desempenha funções narrativas, mas também em relação à própria estrutura dramática
das cenas e seqüências. Isso pode ser observado através das muitas cenas e seqüências
onde a música começa em instrumentos solo, desenvolve-se em duetos ou a três vozes e
conclui em instrumento solo. Esse procedimento cria um paralelo com a estrutura da cena
clássica que, assim como a macro estrutura do roteiro, também tem, em geral, uma
dinâmica dramática que parte de um ponto de menor “densidade”, desenvolve-se até um
ponto culminante e conclui em momento de menor “densidade”.
Em um único momento do filme - a seqüência do assalto ao banco - há interação
música-ação sem um paralelismo evidente. A versão instrumental da canção The House
of the Rising Sun, que acompanha toda a seqüência do assalto, é uma balada tonal
executada com melodia na guitarra e acompanhamento de guitarra, baixo elétrico e
bateria, bem ao estilo da música pop dos anos 60. O “clima” da canção não tem uma
relação direta com a ação descrita pelas imagens mas, nesse caso, entra em jogo o
princípio da flexibilidade descrito por Gorbman, segundo o qual um determinado
princípio pode ser violado em função do predomínio de outro. O aspecto funcional
predominante da música nesta seqüência é a referência de época, ou seja, função
narrativa referencial, uma vez que a canção utilizada foi um grande sucesso fonográfico
dos anos 60.
Embora, em termos de material composicional, a música de Stewart Copeland
seja, por um lado, a que mais se afasta do modelo clássico por ser a menos “Romântica”
das três músicas analisadas neste capítulo - orquestrações rarefeitas, caráter não-melódico
e não-tonal, tratamento serial dos motivos-, por outro pode ser considerada a que mais
fielmente obedece aos princípios clássicos no que diz respeito a aspectos funcionais. A
análise das seqüências 2, 5, 6 e 7 da Tabela II, por exemplo, revela como Copeland,
114

utilizando poucos elementos composicionais, procura acompanhar “de perto” a dinâmica


dramática das cenas com sua música “inaudível”.

3.3 - Central do Brasil


3.3.1 - Dados gerais sobre o filme, diretor e compositor.
Dirigido por Walter Salles, e com música assinada por Jaques Morelenbaum e
Antônio Pinto, Central do Brasil foi o maior sucesso comercial dos três filmes aqui
enfocados tendo atingido a marca de 1.189.136 espectadores. É um dos filmes da
Retomada mais premiados internacionalmente. Além da indicação ao Oscar, o filme
conquistou o Prêmio "Cinema 100" (Melhor Roteiro), outorgado pelo Sundance Institute
e pela rede de televisão cultural japonesa NHK, e os prêmios Urso de Ouro (Melhor
Filme), Urso de Prata (Melhor Atriz: Fernanda Montenegro) e Melhor Filme (Júri
Ecumênico) no Festival de Berlim.
A exemplo dos dois filmes anteriormente investigados, o roteiro de Central do
Brasil é estruturado em três partes (apresentação dos personagens e das tramas,
desenvolvimento e conclusão) segundo os princípios da narrativa clássica e conta a
história da professora aposentada Dora e do menino Josué, de nove anos. A trama central
do filme é a viagem de Dora e Josué ao Nordeste à procura do pai do menino, que havia
perdido a mãe.
A carreira de Walter Salles como diretor de longa-metragens de ficção tem início
nos anos 90. Salles, que anteriormente havia se dedicado a dirigir e produzir programas
de TV como o Conexão Internacional, filmes publicitários e documentários, estreou em
longas em 1991 com o filme A Grande Arte, um policial baseado no livro homônimo de
Rubem Fonseca. Segundo Hernani Heffner 1, em A Grande Arte Salles já imprime
algumas marcas de seu estilo - apuro formal, o exame de antinomias (arcaico/moderno,
interior/exterior, pureza/maldade) e o enfoque documental de algumas seqüências. Nos
anos 90, além de Central do Brasil, Salles dirigiu os longas-metragens Terra Estrangeira
(1995) e O Primeiro Dia (1999), ambos em parceria com a diretora Daniela Thomas.
Central do Brasil é o primeiro longa-metragem da carreira de Antônio Pinto que,
nos anos 90 assina ainda a música de Menino Maluquinho II (Helvécio Ratton, 1998) e O
115

Primeiro Dia. Pianista que se declara autodidata, Pinto afirma, em entrevista concedida
em um “bate-papo” virtual no portal Terra 2, que “a trilha sonora tem que ser muito sutil
para poder simplesmente atestar o que a história conta.” Essa declaração do compositor já
nos dá pistas de que a música de Central do Brasil deve obedecer ao primeiro princípio
do modelo clássico - inaudibilidade - que, entre outras coisas, determina que a música
deve fornecer um paralelo à ação representada na tela. Segundo Antônio Pinto, a música
de Central do Brasil é o resultado de um trabalho “a seis mãos” realizado por ele,
Morelenbaum e Walter Salles, que também participou intensamente do processo de
elaboração da música.

3.3.2 - Sinopse de Central do Brasil


Na primeira seção do filme, Dora, a protagonista interpretada por Fernanda
Montenegro, trabalha escrevendo cartas para analfabetos na estação ferroviária Central
do Brasil, no Rio de Janeiro. Ana, uma nordestina acompanhada por seu filho Josué, de
nove anos, pede a Dora que escreva uma carta endereçada a Jesus, pai que Josué não
chegou a conhecer e que vive no interior do Estado de Pernambuco, numa cidade
chamada Bom Jesus do Norte. Na saída da estação Ana é atropelada. Josué fica
abandonado e passa a noite na estação. Dora, uma vigarista endurecida pela vida - ela
raramente enviava de fato as cartas que escrevia para os analfabetos -, em uma transação
intermediada pelo policial civil que atuava como uma espécie de xerife da estação
ferroviária, vende o menino para um grupo especializado na comercialização de crianças
para estrangeiros. Irene, irmã de Dora, que no filme opera como sua “orelha” 3 e
consciência, faz a protagonista cair em si e perceber a gravidade do que cometera.
Arrependida, Dora vai ao apartamento onde havia deixado Josué e consegue resgatá-lo.
O resgate de Josué é o plot point que conduz à segunda seção da narrativa, que
mostra a viagem de Dora e Josué para o Nordeste à procura do pai do menino. Durante a
viagem, repleta de pequenos incidentes de percurso, os dois protagonistas vão aos poucos

1
Heffner, H., in Ramos & Miranda, op. cit., p. 485.
2
www.terra.com
3
Personagem inserido na trama com a função de “escutar” o pensamento de um personagem mais
importante. É através do “orelha” que o espectador “ouve” o pensamento de um protagonista, sem que o
roteiro precise recorrer a monólogos ou a recursos de voice over.
116

tecendo entre si uma relação onde a integridade e a firmeza de propósitos de Josué acaba
por fazer com que Dora se dispa de suas couraças e volte a acreditar em seus bons
sentimentos. Em um dos descaminhos da viagem, Dora e Josué ficam sem dinheiro. Josué
faz com que ela use de seu ofício de escrever cartas para que eles possam conseguir
dinheiro. Dora consegue, mas desta vez envia pelo correio todas as cartas escritas. A
volta de Dora ao seu trabalho de escrever cartas é a solução dos conflitos da segunda
seção da história e o “ponto de virada” que conduz à conclusão.
Com o dinheiro ganho, Dora e Josué seguem a viagem em busca do pai do
menino. Depois de algumas dificuldades, conseguem encontrar Isaías e Moisés, os dois
irmãos mais velhos de Josué, e a história flui em direção ao seu final. Dora e Josué vão à
casa dos irmãos do garoto e Isaías os informa que o pai desparecera há alguns meses e
que a última notícia que haviam recebido dele fora uma carta que ainda não haviam lido,
pois eram analfabetos. Dora “lê” a carta para os três irmãos “dourando a pílula”, ou seja,
fazendo-os acreditar que o pai havia ido procurar Ana e Josué no Rio de Janeiro, que
pretendia voltar em breve e que queria muito conhecer o filho. De madrugada, enquanto
os irmãos dormem, Dora sai sorrateiramente, dirige-se à improvisada estação rodoviária
do lugarejo, entra em um ônibus e parte de volta ao Rio de Janeiro, deixando Josué aos
cuidados de Moisés e Isaías.

3.3.3 -A música de Central do Brasil

3.3.3.1 - Material temático, instrumental e composicional.


O material instrumental empregado na música de Central do Brasil mistura piano
e conjunto de cordas friccionadas com instrumentos regionais 1. A exemplo do que
acontece em O Quatriho, em Central do Brasil o material temático dominante deriva de
três músicas, aqui chamadas de Tema I, Tema II e Tema III.
a) Tema I

1
8 violinos, 2 violas, 2 violoncelos, contrabaixo, violão, viola de dez cordas, percussão e rabeca.
117

Os arpejos dos sete primeiros compassos da melodia constituem o fragmento


melódico mais marcante na música do filme e percorrem toda a narrativa, desde a
abertura ao último fotograma da história propriamente dita. Na abertura, o Tema I é
apresentado em piano solo na tonalidade de Lá menor e em andamento moderado. O
caráter regular e cíclico dos quatro primeiros compassos, assim como sua natureza
rítmica - o constante impulso da última colcheia dos compassos ímpares para o tempo
forte do compasso adjacente -, sugerem movimento: o movimento dos trens e das pessoas
na estação, o movimento de Dora e Josué em busca de Jesus, o “movimento” interno de
Dora em direção aos próprios bons sentimentos. Ao mesmo tempo, a tonalidade menor e
a interpretação conferem à música um caráter triste e melancólico.
A segunda exposição do Tema I - o mesmo piano solo da abertura - ocorre
justamente no “ponto de virada” que conduz à seção central da narrativa, ou seja, a
partida de Dora e Josué de ônibus para Bom Jesus do Norte. O piano solo é utilizado
ainda mais uma vez durante essa primeira etapa da viagem, quando o ônibus retoma o seu
“movimento” depois da primeira parada para abastecimento.
Após um bom tempo ausente da trilha sonora, o Tema I volta a marcar momentos
importantes da narrativa: a) na seqüência em que Dora recoemça a escrever cartas para
ganhar o dinheiro que precisa para proseguir viagem; b) na cena em que Dora envia pelo
correio as cartas que recebeu, o tema aparece em modo dórico, com a mesma figuração
rítmica da primeira exposição; c) acompanhando a partida do ônibus que leva os
protagonistas de Bom Jesus para Vila do João; d) com o mesmo caráter anterior, na cena
em que Isaías se apresenta a Dora e Josué; e) na seqüência final do filme, quando Dora
parte de volta ao Rio de Janeiro.
118

b) Tema II
1 - Motivo do piano/violoncelo.

2 - Melodia.

O tema II está ligado exclusivamente à primeira seção do filme, basicamente


ambientada na estação Central do Brasil. É a música de maior atividade interna da trilha
sonora. Em andamento presto, a sucessão obsessiva de colcheias no piano e no
violoncelo, no que poderíamos chamar de um ostinato variado, sugere uma forte
sensação de movimento e cria a estrutura sobre a qual as cordas exploram tensões em
torno da tonalidade central de Mi menor.
A primeira intervenção do Tema II acontece na segunda seqüência do filme,
acompanhando o “movimento” de Dora da plataforma da estação até entrar em sua casa.
Logo em seguida, o Tema II é utilizado em uma pequena transição entre a cena em que
Dora e Irene fazem em casa a “triagem” das cartas que “devem” ser enviadas e a cena
que inicia a seqüência da morte de Ana. À exceção do Tema I da abertura, todo o
material do restante da primeira seção da narrativa é extraído do Tema II.

c) Tema III
119

O mais “nordestino” dos temas empregados na trilha sonora, o Tema III é


apresentado pela primeira vez na cena em que Dora e Josué estão no ônibus seguindo em
direção a Bom Jesus e ela conta ao garoto que também havia perdido o pai quando tinha
9 anos. Nesta primeira intervenção, o tema aparece em um conjunto de cordas onde o
primeiro violino é substituído pela rabeca. A melodia, assim como a dos Temas I e II,
também é estruturada em forma de arpejo, desta vez sobre as notas do modo menor
natural (ou eólio), com fundamental em Ré e com forte aceno “nordestino”. A partir da
primeira exposição, o Tema III passa a ser a música mais presente na segunda seção da
narrativa sendo reapresentado em variações melódicas e rítmicas, outros contextos tonais
e modais e com diferentes intrumentações.

3.3.3.2 - Mapa geral das funções da música extradiegética em Central do Brasil. (Tabela
III)
120

Tempo Imagem/ação Música Funções

1 0:00:00 - Letreiro com créditos (table - Silêncio. O Tema I, utilizado na abertura,


top) será empregado também nos
a)prêmios conquistados principais pontos estruturais da
0:00:17 b)empresas patrocinadoras - Entram sons diegéticos da narrativa, ou seja, nos dois
estação ferroviária: passos, “pontos de virada” da história, e
murmúrios, ambulantes, locutor ainda no final, operando na
anunciando chegadas e partidas, função narrativa referencial, no
ruídos das composições em que diz respeito ao uso da
movimento. música como elemento de
0:00:33 - Último table top com créditos - Entra Tema I - piano solo. demarcação formal do filme.
dos patrocinadores; Sons diegéticos prosseguem. De uma maneira geral, O Tema I
- Plano geral do trem na está associado também a
estação. Passageiros imagens que representam
desembarcando. Planos da movimento, ou seja, opera na
estação. 2 clientes de Dora função narrativa conotativa,
0:02:08 ditam cartas; “ilustrando” o movimento de
- O terceiro cliente é Ana com - Tema I sai em fade out. trens e passageiros na estação, o
seu filho Josué movimento do ônibus em
direção ao nordeste, e até
mesmo o “movimento” do fluxo
narrativo.
Variações e repetições do Tema
I conferem unidade ao filme.
2 0:03:15 - Fim do “expediente” de Dora, Paralelismo entre fluxo musical
que paga propina a policial e se e fluxo narrativo. Música
despede. “acompanha” as imagens.
0:03:25 - Dora anda pela plataforma em - Entra Tema II: frase em
direção ao trem. colcheias em uníssono
executada por violoncelo e
0:03:30 piano;
0:03:50 - Entra melodia nas cordas;
- Entra contrabaixo (arco)
marcando as colcheias dos
0:04:18 - Passageiros entram no trem tempos fracos;
pelas portas e janelas; Dora - Sai a melodia e entra cuíca em - Função narrativa referencial
entra no trem que aos poucos ritmo de samba sobreposta ao (indicador de lugar e classe
vai ficando lotado; piano e às cordas. social). Cuíca em ritmo de
0:04:22 - Trem parte; samba associada a Brasil, Rio de
- Sai cuíca e volta melodia nas Janeiro, subúrbios, classe
cordas; trabalhadora.
0:04:49 - Primeiro plano de Dora com
expressão cansada e triste. - Música ralenta e faz cadência
conclusiva em Mi menor.
0:05:00 - Elipse. Dora caminhando - Piano segue fazendo uma
pelos corredores do conjunto espécie de coda sobre os
habitacional onde mora. acordes de tônica e dominante - Continuidade: fluxo contínuo
de Mi menor. musical suavizando os cortes e
elipses temporais intrínsecos ao
processo da montagem.
0:05:18 - Elipse. Dora abrindo a porta - Música vai saindo em fade - Inaudibilidade
de casa e entrando. out.
121

3 0:08:33 - Breve transição entre a cena - Volta Tema II. Um pequeno - Transição ⇒ continuidade.
de Dora e Irene fazendo em fragmento da intervenção
casa a “triagem” das cartas anterior. - Recapitulação do Tema II
(noite) e a segunda cena de Ana ⇒ unidade.
e Josué na Central do Brasil
(planos da estação ao
amanhecer, e de Dora
atendendo os primeiros clientes
0:09:10 do dia) - Música sai em fade out - Edição de continuidade
- Ana e Josué são atendidos por ⇒ Inaudibilidade.
Dora
4 Seqüência do atropelamento de
Ana.
0:11:26 - Ana paga a Dora pelo serviço - Entra música em piano e - Paralelismo música-imagem.
prestado; cordas. Material temático (dissonâncias - tensão pré-
- sai da estação; derivado do Tema II. Centro acidente)
- quando Dora e Josué tonal em Lá menor, notas - Unidade (variação do material
atravessam a rua em frente à longas, dissonâncias, pouca temático)
estação, um transeunte esbarra atividade rítmica.
acidentalmente no braço de
Josué e faz cair o pião que o
menino carregava. Josué volta
no meio da travessia para pegar
o pião.
0:12:01 - Dora para no meio da rua para
repreender Josué, se distrai e é - Frase ascendente nas cordas - Função narrativa conotativa.
atropelada por um caminhão. em crescendo acompanha a Frase ascendente “ilustra” a
aproximação do caminhão que aproximação do caminhão.
0:12:46 - Josué desesperado; populares atropela Ana;
seguram o menino; Dora e o - Música vai saindo em fade - Inaudibilidade.
policial “xerife da estação” out.
comentam com indiferença o
episódio.
122

5 Estação da Central do Brasil, - Paralelismo imagem-música,


interior, fim de tarde. Josué Unidade e continuidade.
procura Dora como um
“cliente” mas Dora o enxota
porque ele não tem dinheiro
para pagar por seus serviços.
0:14:38 - Primeiro plano de Josué de pé - Entra música: piano e cordas - Função narrativa referencial.
olhando com raiva para Dora; na tonalidade de Mi menor em Música associada ao olhar
0:14:52 - Sucessão de planos gerais e piano e cordas. Breve raivoso de Josué.
médios da estação; desenvolvimento do material
0:15:01 - Dora caminha pela temático do Tema II (melodia
0:15:08 plataforma; das cordas).
- Entra no trem, volta-se para - Após uma pequena pausa que - Função narrativa referencial
fora olhando para a plataforma. sucede um acorde de dominante, (antecipação de ação
a nota fá# é sustentada em subseqüente)
crescendo na região aguda do
violino.
0:15:13 - Entram acordes da região - Função narrativa conotativa
- Josué está parado na médio-grave. O primeiro acorde (stinger). Acorde tenso
plataforma encarando Dora. (dominante) coincide com um coincidindo com o primeiro
primeiro plano de Josué plano de Josué.
encarando Dora;
- Música segue somente nas
cordas. Predominância de notas
longas e acordes menores.
0:15:32 - entra um arpejo menor que - Função narrativa conotativa:
- Trem entra em movimento e “acelera” sutilmente junto com o ilustração de movimento.
vai acelerando aos poucos. movimento do trem.
Josué corre acompanhando o
trem. Dora o acompanha com o - Música ralenta e decresce em - Continuidade e inaudibilidade.
olhar. volume e densidade. Sai em fade
- Elipse. Plano geral de Josué out.
sozinho de noite na estação.
6 Dia seguinte, fim de tarde na - Paralelismo, unidade.
estação. Dora prepara-se para ir
embora. Planos de Dora se
despedindo de alguns colegas e
planos gerais da estação.
0:19:25 - Policial se aproxima de Josué - Entra música nas cordas,
que está sentado sozinho em andamento lento, notas longas
um canto da estação e procura com tratamento de coral.
saber quem ele é.. Material temático derivado do
- Dora entra em cena e diz que Tema II. Dissonâncias.
conhece o menino. Policial diz
que quer “ter uma palavrinha”
com Dora.
0:20:00 - Policial e Dora conversam - Música sai em fade out. - Inaudibilidade.
afastados de Josué.
123

7 Dia seguinte, fim de tarde na Paralelismo, unidade.


estação. Dora tenta convencer o
arredio Josué a ir para casa com
ela. Josué hesita. Dora entrega
o bilhete do trem e diz que se
Josué resolver aceitar o convite
é só ir atrás dela.
0:21:53 - Dora caminha pela plataforma - Entra música. Cordas e piano.
em direção ao trem, entra no Clima semelhante à cena
trem, olha para a plataforma anterior onde Dora e Josué se
através de uma janela. encaram. - Função narrativa conotativa.
- Plano médio de Josué parado - Fermata sobre acorde de efeito Fermata opera como um stinger.
na plataforma olhando para suspensivo. Acorde de
Dora. dominante alterado.
0:22:05 - Elipse. Dora e Josué entrando
no apartamento de Dora. - Música prossegue, com
melodia explorando o quinto e o
sexto grau do modo menor
natural (andamento lento, pouca
atividade melódica, textura
rarefeita) e vai saindo em fade - Inaudibilidade.
out.
8 0:25:37 Casa de Dora, noite. Após o
jantar, Dora e Irene lavam
pratos na cozinha. Sozinho na
sala, Josué observa os móveis e
os quadros nas paredes da casa.
0:25:52 - Josué vê uma gaveta - Entra música. Somente cordas, Paralelismo. À medida em que
entreaberta onde se encontram notas longas. Grau de Josué “se aproxima” da carta
muitas cartas. Anda em direção dissonância crescendo à medida cresce o grau de dissonância.
à gaveta. Mexe nas cartas e em que Josué se aproxima da
reconhece o envelope onde gaveta e pega a carta que sua
Dora colocou a carta para seu mãe havia ditado para Dora.
pai, Jesus. Josué pega a carta e
abre o envelope.
0:26:20 - Dora entre em cena e retira - Música sai em fade out. - Inaudibilidade.
bruscamente a carta das mãos
de Josué.
124

9 Final da seqüência da “venda” Paralelismo, unidade,


de Josué ao casal de traficantes continuidade.
de crianças.
0:29:52 - Primeiro plano de Josué , - Entra, executado por piano e
triste e apreensivo, sentado em cordas, o motivo do piano e do
um sofá da casa dos traficantes; violoncelo do Tema II,
- Elipse. Dora caminha pelos andamento lento, interpretação
pilotis do prédio onde mora rubato.
puxando um carrinho com uma
caixa grande. É a televisão que
comprou com o dinheiro da
venda do menino;
0:30:01 - Elipse. Primeiro plano de - Música sai em uma formata - Música conclui junto com a
Dora de pé na sala de sua casa sobre acorde de Ré menor. cena.
com um controle remoto nas ⇒ Inaudibilidade.
mãos. Irene entra em cena e se
surpreende com o novo
aparelho de TV.
10 Progressão do arrependimento Paralelismo, unidade,
de Dora por ter vendido Josué. continuidade.
0:32:37 - Vários planos de Dora - Variações do motivo do piano
assistindo à TV na sala, com e celso do Tema II., andamento
expressão triste e pensativa. lento;
0:33:00 - Planos de Dora tentando - Música cresce em volume.
conciliar o sono, sem Aumenta o grau de dissonância;
0:33:19 conseguir. - Entram nas cordas arpemos
- Plano seqüência de Dora na menores ascendentes sobre nota
manhã seguinte andando pela pedal;
0:33:34 casa, se arrumando para sair. - Música sai em uma formata - Música conclui junto com a
- Elipse. Primeiro plano de sobre acorde de caráter cena.
Dora batendo à porta da casa suspensivo. ⇒ Inaudibilidade.
dos traficantes.
11 Seqüência do resgate de Josué Paralelismo, unidade,
0:34:33 - Após distrair a dona do - Música entra com as cordas em continuidade.
apartamento com fotos de um movimento melódico que
outras crianças, Dora entra e começa com as três primeiras
procura por Josué. Em um dos notas da escala menor natural na
quartos da casa, Dora encontra região grave. À medida em que
Josué dormindo, o acorda, e a cena evolui, a melodia vai
foge; fazendo um movimento
ascendente, o volume aumenta
em crescendo, e cresce o grau de
dissonância.
0:35:49 - Ao sair, Dora tranca a porta - Música sai em fusão com o - Inaudibilidade.
por fora. ruído da porta que fecha e com
os gritos dos traficantes
xingando Dora.
125

12 Início da segunda seção da - Função narrativa referencial:


narrativa: a viagem de Dora e recapitulação do Tema I, da
Josué para o nordeste em busca abertura, no primeiro “ponto de
de Jesus. virada” da história.
0:39:18 - Dora e Josué no ônibus que - Volta Tema I. O mesmo piano - Função narrativa conotativa:
inicia a viagem. Planos dos dois solo utilizado na abertura do ilustração de movimento.
dentro do ônibus e do ônibus filme;
seguindo viagem pela estrada.

0:40:10 - Música sai em fade out. - Inaudibilidade.


13 0:41:20 - Após uma parada regular, - Volta Tema I, agora com Função narrativa conotativa.
ônibus segue viagem; acordes nas cordas como
acompanhamento;
0:41:46 - Entra diálogo entre Dora e - Música sai em uma formata - Música conclui junto com a
Josué sobre acorde de tônica menor cena.
com sétima maior e nona. Inaudibilidade.
14 0:43:09 Dora conta a Josué que também - Função narrativa referencial:
perdeu a mãe quando era representação de lugar (rabeca
pequena. como spalla)
- Após o fim da fala de Dora, - Primeira exposição do Tema - O Tema III será utilizado
Josué é mostrado em primeiro II., em conjunto de cordas com a durante todo o resto da seção
plano olhando para a paisagem rabeca substituindo o primeiro central do filme, operando
do nordeste na janela do violino como opala; também na função de conferir
ônibus. unidade ao filme.
- Plano geral do ônibus - O caráter arpejado e imitativo
seguindo viagem. do Tema II. pode ser
considerado também como
operante na função narrativa
conotativa, no que diz respeito à
representação de movimento.
Nesta cena, o Tema II. aparece
associado ao movimento do
ônibus.
0:44:08 - Primeiro plano de Dora e - Música sai em fade out. - Inaudibilidade.
Josué dentro do ônibus. Dora
adormecida. Josué pega a
garrafa de cachaça que Dora
estava bebendo e toma alguns
goles.
15 0:48:36 - Dora sentada no meio fio à Rabeca solo faz variações sobre - Função narrativa referencial:
beira da estrada desolada após o arpejo e a escala do modo representação de lugar (rabeca).
haver perdido o ônibus e o eólio com fundamental em Ré; - As variações são executadas
dinheiro que lhe restava. pela rabeca com afinação e ritmo
imprecisos. O contraste entre
essa interpretação e a anterior
(que é “clássica”) sugere uma
associação entre a
“precariedade” da execução e a
precariedade da situação de
Dora.
0:48:54 - Conclusão na fundamental da - Inaudibilidade. Música conclui
escala. junto com a cena.
126

16 0:49:50 - Dora e Josué conseguem - Volta Tema II. Melodia na - Função narrativa referencial:
carona com um caminhoneiro e rabeca. Mesmo tratamento da representação de lugar (rabeca).
seguem viagem. Plano geral do primeira exposição. - Função narrativa conotativa:
caminhão seguindo pela movimento do ônibus.
0:50:08 estrada. - Música sai em fade out. - Inaudibilidade
17 0:55:00 Dora, Josué e o caminhoneiro Volta Tema II. Mesmo Recapitulação ⇒ unidade.
seguem viagem após uma tratamento anterior.
pequena parada em um posto
da estrada.
0:55:24 - Música sai em fade out. - Inaudibilidade.
18 0:55:57 - Planos de caminhão seguindo Volta Tema II., agora Variação do material temático.
viagem na estrada. Anoitece. introduzido e acompanhado pela ⇒ Unidade.
Os viajantes param para viola de dez cordas e na
descansar. tonalidade de Fás menor;
0:56:27 - Final conclusivo na tônica. - Música conclui junto com a
cena -⇒ Inaudibilidade.
19 0:57:48 Manhã seguinte. Dora, Josué e - Volta Tema II. com o mesmo Paralelismo, unidade,
o caminhoneiro seguem tratamento da primeira representação de movimento e
viagem. Plano geral do ônibus exposição; inaudibilidade.
0:58:04 na paisagem do interior do
Nordeste. Música sai em fade out.
20 Durante a parada em um bar da
estrada, enquanto bebem
cerveja sentados em uma mesa,
Dora insinua a possibilidade de
uma relação amorosa com o
caminhoneiro. Enquanto vai ao
banheiro passar batons nos
1:01:34 lábios, o caminhoneiro vai - Entra valsa (3/4) em Fá# - Variação de material temático.
embora deixando Dora e Josué. menor com melodia arpejada ⇒ continuidade.
- Primeiro plano de Dora derivada do Tema III.
observando a partida do
caminhão através de uma janela
do bar.
- Plano conjunto de Dora e - Música vai saindo em fade out. - Inaudibilidade
Josué conversando sentados em
um meio fio.
21 Após conseguirem carona num
caminhão que leva romeiros
para a festa que acontece na
cidade, Dora e Josué chegam a
Bom Jesus do Norte.
1:03:56 - Vários planos de Dora e Josué - Volta Tema III com melodia - Recapitulação ⇒ Unidade.
caminhando pelas ruas da na Rabeca. Mesmo tratamento - Representação de movimento:
cidade. A cidade se prepara da primeira exposição. Dora e Josué entrando na
para receber os romeiros. cidade.
1:05:56 - Início do diálogo entre Dora e
Josué. - Música sai em fade out.
- Inaudibilidade.
127

22 1:06:14 - Dora e Josué se aproximam da - Entra segunda parte do Tema - Recapitulação ⇒ unidade.
porteira do sítio onde supõem III nas cordas, agora com centro
viver Jesus. tonal em Dó. Nota Dó
sustentada em tremolo nos
- Plano geral de Josué correndo violinos. - Variação de material temático
pelo caminho que leva à casa- - Entra viola de dez cordas ⇒unidade.
sede da pequena propriedade; fazendo variações em modo - Representação de movimento:
dórico da melodia da primeira a corrida de Josué.
parte do Tema III. Andamento - Paralelismo música-narrativa:
mais enérgico. À medida em que música acompanha o fluxo
Josué se aproxima da casa, as dramático da narrativa.
cordas do acompanhamento
1:07:01 - Josué chega perto do curral do ascendem para região mais
sítio e vê um menino mais ou aguda, crescem em volume e
menos da sua idade. Os dois se densidade, e vão passando a
encaram; ocupar o primeiro plano na
1:07:12 - O menino chama pela mãe mixagem..
avisando que tem gente - Fluxo musical estaciona em
chegando. um acorde de dominante.
1:07:28 - Dora conversa com a dona da - inaudibilidade.
casa, e diz que quer falar com o - Música prossegue. Volta a
marido dela. segunda parte do Tema III e vai
saindo em fade out.
23 1:10:28 - Reação de Josué ao saber que - Volta a mesma rabeca solo - Função narrativa referencial
o dono da casa não é Jesus, seu utilizada na cena em que Dora
pai. O dono da casa diz que está desolada após perder o
Jesus vendeu a casa para ele e ônibus e o dinheiro.
agora vive em um lugarejo
próximo chamado Vila do João.
24 Seqüência do desmaio de Dora. - Significante de emoção ⇒
Noite. Festa religiosa na cidade. Música como representação do
Dora diz a Josué que ele é um irracional (a progressão do mal-
castigo na vida dela. Josué foge estar de Dora.) - Paralelismo.
no meio da multidão de
romeiros. Dora vai atrás de
Josué.
- À procura de Josué, Dora - Notas longas e dissonantes nas
entra numa casa de ex-votos. cordas, fundidas aos cânticos e
Sente-se mal (câmera gira preces dos romeiros,
velozmente); acompanham a progressão do
mal-estar de Dora.
- e desmaia. O desmaio é precedido por uma - Função narrativa conotativa⇒
série de glissandos ascendentes. glissandos acompanham o
movimento da câmera e o
desmaio de Dora.
- Josué entra em cena e abaixa- - Música sai em fusão com o - Inaudibilidade.
se olhando o rosto de Dora. espoucar dos fogos de artifício
queimados em louvor a Bom
Jesus.
128

25 1:15:40 Manhã seguinte ao desmaio de - Melodia arpejada no modo - Variação de material temático
Dora. mixolídio na viola de dez ⇒ unidade.
- Alguns planos de Dora cordas. Ritmo rubato. Cordas
dormindo com a cabeça no colo acompanham com notas longas.
de Josué, que está sentado em Material temático derivado do
uma calçada. Tema III.
1:16:22 - Final conclusivo da música na - Música conclui junto com a
fundamental do modo. cena -⇒ Inaudibilidade.
26 Dora volta a escrever cartas
para ganhar o dinheiro que
precisa para ir com Josué para a
Vila do João tentar encontrar - Volta Tema I em piano solo. O - Recapitulação ⇒ unidade.
Jesus. mesmo tratamento da abertura - Função narrativa referencial.
- Vários planos de Josué do filme. Tema I marca o segundo “ponto
apregoando o serviço que Dora de virada” da história.
está oferecendo e de Dora
escrevendo. - Música sai em fade out. - Inaudibilidade.
- Primeiro plano de Dora
1:19:46 escrevendo carta ditada por
uma de suas novas clientes.
27 1:20:12 - Noite em Bom Jesus, cidade - Volta Tema I, idêntico. Recapitulação ⇒ unidade.
ainda em festa. Planos de Dora
e Josué contentes se divertindo
e tirando fotos. Josué compra
um vestido para Dora.
1:21:08 - Elipse. Dora e Josué entram - Continuidade.
em um hotel para dormir. - Música vai saindo em fade out. - Inaudibilidade
28 1:22:48 Manhã do dia seguinte. Dora e - Viola solo com o mesmo - Variação de material temático
Josué aguardam sentados em motivo rítmico do Tema I, agora ⇒ unidade.
um banco a partida do ônibus em modo dórico com
que os levará à Vila do João. fundamental em Ré.
- Dora levanta-se e caminha até
um posto de correio para enviar
as cartas dos clientes.
- Final suspensivo em acorde - Música conclui junto com a
com raiz no quarto grau da cena. ⇒ Inaudibilidade.
escala.
129

29 1:23:25 Partida do ônibus para Bom - Volta Tema I. Piano e Cordas. Recapitulação e variação de
Jesus. material temático ⇒ unidade.
- Travelling da paisagem
observada do ponto de vista de
um passageiro à janela do
ônibus. Planos de Dora e Josué
sentados nas poltronas.
- Ônibus chega à Vila do João.
Dora e Josué desembarcam.
- Dora pede ao dono de uma - Decresce durante o diálogo. ⇒ Inaudibilidade (subordinação
birosca que funciona como às vozes)
ponto final do ônibus.
informações sobre a casa que
procura. O dono da birosca não
sabe onde fica, mas diz que o
rapaz que está consertando o
telhado da casa vizinha à
birosca pode saber.
1:24:10 - Plano médio do rapaz, dando
as informações.
- Após as falas do rapaz e dos - Fim da intervenção musical: Função narrativa referencial
agradecimentos de Dora, crescendo em uma fermata ⇒ crescendo nas cordas
câmera vai se afastando sobre o acorde de Lá menor enfatizando a importância
lentamente da imagem do (tônica) com nona. Dissonância dramática do personagem.
rapaz, que o espectador fica branda.
sabendo mais tarde ser Isaías, o - Música conclui junto com a
irmão mais velho de Josué. cena ⇒ Inaudibilidade.
30 1:27:46 Dora e Josué caminham pela - Volta segunda parte do Tema Recapitulação ⇒ unidade.
rua principal da Vila do João. III, somente nas cordas.
No endereço que procuravam
ficaram sabendo que Jesus
havia vendido a casa e “sumido
no mundo”.
- Diálogo entre Dora e Josué.
1:28:20 Ela convence o menino a - Música vai saindo em fade out. - Inaudibilidade (subordinação
desistir da busca pelo pai e às vozes)
voltar para o Rio de Janeiro
com ela.
- Elipse. Perto do ponto final do
ônibus, Dora conversa com
Irene no telefone.
130

31 1:29:09 - Dora e Josué na birosca


comprando passagem com
destino ao Rio de Janeiro para o
dia seguinte.
- Um menino montado em uma
bicicleta para junto a Isaías e
fala com ele algo que o
espectador não escuta.
- Isaías caminha em direção a - Viola solo, motivo rítmico do - Recapitulação ⇒ unidade.
Dora e Josué. Tema I, modo dórico. (mesmo - Função narrativa referencial,
trecho utilizado em 01:22:49) novamente enfatizando a
importância dramática da cena.
É, finalmente, o momento do
“encontro”
32 Sala da casa de Isaías e Moisés,
irmãos de Josué.
1:31:24 Josué vê um retrato de seu pai e Volta o Tema III da capo. - Recapitulação ⇒ unidade
sua mãe pendurado na parede
da casa. Primeiro plano de
Josué. Plano do retrato. Câmera
se aproxima do retrato.
1:32:00 - Isaías e Moisés levam João e - Música vai saindo em fade out. - Inaudibilidade.
Dora até a oficina onde Moisés
faz trabalhos de carpintaria.
131

33 Madrugada do dia seguinte.


Dora se levanta da cama, e
começa a preparar-se para sair.
Antes de sair, coloca a carta
que Ana lhe ditara na estação e
outra, que havia sido enviada
1:41:30 por Jesus para Ana em um - Entra piano solo com acordes - Variação de material temático
móvel abaixo do retrato do do acompanhamento do Tema I. ⇒ unidade.
casal. Pouca atividade.
- Primeiro plano das cartas.
- Plano geral da casa. Dora abre
a porta e sai.
- Vários planos de Ana
andando em direção ao ponto
final do ônibus, enquanto - Entra Tema I. Piano piano e - Recapitulação ⇒ unidade
amanhece. cordas.
- Planos de Josué acordando e
se dando conta de que Dora foi
embora. Josué grita: Dora!
- Planos de Josué correndo pela
rua atrás de Dora.
- Primeiro plano de Dora
escrevendo uma carta. Em
voice over Dora “lê” o que
escreve. Dora diz que é melhor
assim, e que se Josué sentir
saudades olhe o monóculo com
o retrato que tiraram juntos em - Cordas crescem e se destacam.
Bom Jesus. Piano vai para segundo plano,
- Fim da leitura da carta. Planos depois sai.
alternados de Dora e Josué - Somente cordas. Violinos
olhando o retrato no monóculo. fazem uma variação da melodia
do Tema I.
- Final. Fermata na tônica - Função narrativa referencial -
menor. demarcação do fechamento da
- Fade out sobre um primeiro narrativa.
plano do rosto de Dora.
34 1:45:48 Créditos finais sobre fundo - Entra a o samba-canção - Melodia da canção estruturada
negro. Preciso me Encontrar do a partir de arpejos menores.
compositor Candeia, Variação de material temático.
interpretada por Cartola. ⇒ unidade.
Melodia com estrutura de
arpejos em Ré menor remete ao
material temático empregado no
filme.
132

3.3.3.3 - Funções da música em Central do Brasil.


“Copiar e colar” aqui o parágrafo inicial da análise das funções da música em O
Quatrilho não seria um procedimento de todo inadequado para descrever a influência do
modelo clássico na música de Central do Brasil, pois são evidentes os traços comuns
entre os dois filmes no que diz respeito ao modo de fazer música para cinema.
Paralelismo entre música e narrativa, repertório composicional com predomínio de
melodia acompanhada, música utilizada como “substância coesiva” 1 dando continuidade
ao processo fragmentado da montagem, uso de instrumentos “regionais” como referência
de lugar, recapitulação e variação de material temático operando na função narrativa
referencial e conferindo unidade ao filme são, sem sombra de dúvida, procedimentos
também dominantes em Central do Brasil.

São claras as evidências de que na música de Central do Brasil, O Quatrilho, e O


Que é Isso Companheiro? predominam as estratégias clássicas de composição, edição e
mixagem. A música desses filmes, portanto, comprova a afirmação de Gorbman segundo
a qual o modo de fazer música para cinema baseado no modelo clássico tem presença
marcante no cinema comercial contemporâneo de vários países, ao menos no que diz
respeito ao Brasil. Em verdade, em nenhum dos três filmes podem ser observados
procedimentos que se enquadrem nas propostas de Adorno & Eisler. Práticas intencionais
da harmonia dissonante de Chion ou de fragmentação e rupturas no discurso musical 2
também são estratégias ausentes nos três filmes.
Outra característica comum aos três filmes diz respeito ao material
composicional. Ao contrário das práticas verificadas em alguns dos filmes do Cinema
Novo e do Cinema Marginal, abordados no capítulo 2 - colagens de músicas de vários
gêneros distintos -, a música extradiegética de O Quatrilho, O Que É Isso Companheiro?
e Central do Brasil é estruturada como um corpo estético unificado baseado em

1
Ver capítulo I, p. 16.
2
As saídas abruptas de música recorrentes em O Quatrilho não podem ser consideradas exemplos
de fragmentação pois no contexto narrativo em que ocorrem, como foi visto anteriormente, soam
totalmente desprovidas de qualquer intenção estética.
133

desenvolvimento temático. Repetição e variação de temas ou motivos são a espinha


dorsal da música dos três filmes.
Ainda em relação ao material composicional, outros aspectos também merecem
atenção. Na música de O Quatrilho e Central do Brasil predomina a melodia
acompanhada, ou seja, aquela “música de cinema” que o espectador sai assobiando após
deixar a sala de projeção. Já em O Que É Isso Companheiro?, a música de Stewart
Copeland é estruturada a partir da repetição e da variação de pequenos motivos
melódicos que não chegam, propriamente, a estabelecer melodias de caráter cantabile. A
música de Copeland para O Que É Isso Companheiro? é a menos clássico-romântica das
três mas, ao mesmo tempo, é a mais “inaudível”. Essa inaudibilidade se deve
principalmente ao fato da forma musical estar totalmente subordinada à forma narrativa,
ou seja, a música de O Que É Isso Companheiro? não se estabelece como um objeto
artístico autônomo. Pode-se mesmo dizer que ela “não existe” desvinculada do discurso
cinematográfico do qual é parte constituinte. Já em O Quatrilho, as canções de Caetano
Veloso que dão origem ao material temático, e mesmo o desenvolvimento desse material,
elaborado por Jaques Morelenbaum, são peças musicais com princípio, meio e fim, que
têm autonomia fora do contexto cinematográfico em que se inserem. O mesmo, de certa
forma, ocorre na música de Central do Brasil que, embora não tenha a músca estruturada
a partir de canções, provê o espectador de melodias claramente definidas e de formas
estruturadas que podem também ser ouvidas como objetos autônomos.
Um último aspecto, relativo à edição da música, merece algumas considerações.
Enquanto em Central do Brasil e O Que é Isso Companheiro? o modelo clássico domina
em toda a música, em O Quatrilho pode-se observar alguns procedimentos heterodoxos.
As constantes saídas de música em corte seco contrariam o princípio da inaudibilidade e,
em muitas passagens, é possível verificar disjunções entre a música e a narrativa,
principalmente no que diz respeito à exagerada intensidade dramática da música na
primeira seção da história. Estes procedimentos, no entanto, como já foi observado, não
podem ser considerados como uma herança da estética fragmentada cinemanovística e
marginal nem, tampouco, ser tomados como exemplos de harmonia dissonante. Em O
Quatrilho, os cortes secos e as disjunções soam, de certa forma, mais como “erro” do que
como uma intenção estética.
134

Embora haja, portanto, diferenças de estilo e de “precisão” na aplicação do


modelo, o conjunto de estratégias do modelo clássico predomina nos três filmes aqui
investigados. Por um lado, pode-se afirmar que a música dos “brasileiros” Jaques
Morelenbaum, Caetano Veloso e Antônio Pinto segue mais de perto a tradição do cinema
clássico presente nos filmes da Cinédia, da Atlântida e da Vera Cruz (canções e material
composicional clássico-romântico), enquanto o “americano” Stewart Copeland segue
mais a linha do thrilher contemporâneo, onde a música costuma operar criando “climas e
atmosferas”. Mas, por outro, também é válida a afirmação de que as estratégias de uso de
música nos três filmes são fortemente ancoradas nos princípios do modelo clássico
descrito por Gorbman.
135

CONCLUSÕES

Na introdução deste trabalho, centrado na posição singular de músico-espectador,


apontei para a possibilidade da existência de semelhanças entre as estratégias de uso de
música no cinema clássico de Hollywood e no cinema comercial brasileiro
contemporâneo. O caminho percorrido para confirmar essa experiência empírica partiu
do estudo de Claudia Gorbman sobre as estratégias clássicas de uso de música no cinema
de Hollywood dos anos 30/40. O estudo de Gorbman é, sem dúvida, um dos mais amplos
já realizados no âmbito das relações entre música e imagem no contexto do cinema
comercial.
Em seguida, foi levada em consideração a classificação de Philip Tagg das
funções da música no cinema. Baseada no livro Ästhetik der Filmmusik, da musicóloga
polonesa Zofia Lissa, a classificação de Tagg aplica-se a qualquer contexto estético e
histórico cinematográfico. Uma breve análise comparativa entre as classificações de
Gorbman e Tagg revelou que o quadro funcional do modelo clássico, descrito por
Gorbman, extrapola os limites do filme hollywoodiano dos anos 30/40, podendo servir,
também, como paradigma para análises mais abrangentes das funções da música no
cinema. No quadro funcional descrito por Tagg, a única função que não se enquadra, com
propriedade, no modelo clássico é a função de comentário ou contraponto, ou seja, o uso
da música para comentar as imagens por disjunção, contradizendo a esfera conotativa da
ação visual.
Um estudo sobre a noção de contraponto entre música e narrativa cinematográfica
foi o passo seguinte desta pesquisa. Partindo do célebre Manifesto Sobre o Som, escrito
por S. Eisenstein, V. Pudovkin e G. Alexandrov, foi percorrido um eixo teórico que
discutiu práticas anti-hollywoodianas, passou pela crítica de Adorno & Eisler ao modelo
clássico e incluiu, também, a visão de Michel Chion sobre a questão do contraponto e
sobre idéias que dominaram a crítica cinematográfica européia nos anos 60/70 acerca da
descontinuidade e da “audibilidade” na edição do som das trilha sonoras.
No segundo capítulo, o modelo clássico, exposto por Gorbman, referendado pela
classificação de Tagg e posto em relação de confronto com as tendências anti-
hollywoodianas abordadas por Eisenstein, Adorno & Eisler e Michel Chion, serviu de
136

base para uma investigação que apontou, no contexto da produção cinematográfica


nacional, reflexos exemplares tanto das estratégias clássicas quanto dos modos
heterodoxos de fazer música para cinema. Na amostra investigada, foi possível apontar a
forte influência do modelo clássico de música para cinema em filmes da Atlântida, da
Cinédia e da Vera Cruz, assim como a presença das tendências anti-hollywoodianas de
disjunção música/imagem, descontinuidade e fragmentação e no repertório do Cinema
Novo e do Cinema Marginal.
A partir do arsenal teórico reunido no primeiro capítulo, e dinamizado pelos
exemplos apontados dentro da tradição do cinema brasileiro, o foco desta pesquisa
voltou-se para o cinema brasileiro comercial contemporâneo. Assim, foi realizado um
estudo sobre as funções da música nos filmes O Quatrilho, O Que é Isso Companheiro? e
Central do Brasil. Esse estudo revelou que as estratégias de uso de música extradiegética
utilizadas nos três filmes investigados fundamentam-se claramente no modelo clássico.
A música desses filmes, portanto, comprova a afirmação de Gorbman, segundo a
qual o modo de fazer música para cinema baseado no modelo clássico dos anos 30/40 tem
presença marcante no cinema comercial contemporâneo de vários países, ao menos no
que diz respeito ao Brasil. Em verdade, em nenhum dos três filmes-objetos deste estudo
podem ser observados procedimentos que se enquadrem nas propostas de Adorno &
Eisler. Práticas intencionais da harmonia dissonante de Chion ou de fragmentação e
rupturas no discurso musical 1 também são estratégias ausentes nos três filmes.
Afirmar que nestes filmes há forte predominância do modelo clássico de música
para cinema, no entanto, não quer dizer que não haja elementos de “brasilidade” na
música extradiegética de O Que É Isso Companheiro?, Central do Brasil e O Quatrilho.
Essa “brasilidade”, contudo, não está nas estratégias de interação música-narrativa mas,
sim, no material composicional utilizado. Nos dois primeiros filmes observa-se a
utilização de percussão afro-brasileira, operando na função narrativa referencial
(representação de lugar e de classe social). Na música de O Quatrilho, filme cuja
narrativa é ambientada em uma colônia italiana do Rio Grande do Sul no início do século

1
As saídas abruptas de música recorrentes em O Quatrilho não podem ser consideradas exemplos
de fragmentação pois no contexto narrativo em que ocorrem, como foi visto anteriormente, soam
totalmente desprovidas de qualquer intenção estética.
137

passado, não há, é claro, espaço na trilha sonora para elementos musicais de caráter
“brasileiro” com função narrativa referencial; mas também neste filme pode-se falar em
uma certa “brasilidade”, que emerge das tintas jobinianas da música de Jaques
Morelenbaum e da voz “familiar” de Caetano Veloso na trilha sonora.
Mesmo em termos de material composicional, entretanto, o que predomina nas
trilhas sonoras dos três filmes é um tipo de música extradiegética que poderíamos
classificar como pertencente a um repertório “internacional” de música para cinema. No
caso de O Quatrilho e Central do Brasil, estruturas musicais derivadas do repertório
clássico-romântico constituem o material dominante. Já em O Que É Isso Companheiro?,
o material composicional utilizado por Stewart Copeland, de caráter modal e não-
melódico, remete aos clichês utilizados nos filmes dos gêneros suspense e ação,
produzidos pela atual indústria de Hollywood.
É possível afirmar, ainda, que a música extradiegética dos três filmes investigados
é composta, editada e mixada segundo procedimentos muito semelhantes aos adotados
nos filmes da Cinédia, Atlântida e Vera Cruz, apontados como exemplos no segundo
capítulo. Essa semelhança é mais nítida em O Quatrilho e Central do Brasil, onde a
música extradiegética tem o mesmo caráter cantabile e “romântico”, ou seja, o mesmo
que se ouve nas trilhas sonoras de filmes como Floradas na Serra, Ganga Bruta, O Ébrio
e Nem Sansão nem Dalila. É importante observar também que, assim como ocorre nos
filmes das três companhias cinematográficas que dominaram a “cena” brasileira nos anos
30, 40 e 50, a música extradiegética dos filmes brasileiros indicados ao prêmio Oscar nos
anos 90 forma corpos estéticos homogêneos, que, portanto, diferem, de modo radical, dos
mosaicos musicais multi-referentes, observados nos filmes do Cinema Novo e do Cinema
Marginal.
Embora a questão central deste trabalho restrinja-se às funções da música
extradiegética no cinema comercial brasileiro contemporâneo, um aspecto extremamente
relevante emerge das observações realizadas. As fichas técnicas consultadas, assim como
os filmes aqui abordados, refletem uma característica que, talvez, possa ser considerada
como um certo modo de fazer “brasileiro”: a presença marcante da canção popular, nos
planos diegético e extradiegético, dividindo espaço com a música instrumental
extradiegética na trilha sonora.
138

Em todos os filmes brasileiros assistidos no âmbito desta dissertação 1, a música


popular, em menor ou maior grau, está presente. No caso específico do cinema brasileiro
dos anos 90, nomes de compositores com carreira profissional centrada na música
popular aparecem com muito mais freqüência nas fichas técnicas do que nomes de
compositores com atuação direcionada para a área da música de concerto. O uso
recorrente da música popular no cinema pode ser considerado como uma característica de
um modo de fazer do cinema brasileiro ou é uma estratégia comum a outras
cinematografias? A canção popular é incluída nas trilhas sonoras como uma estratégia
para atingir o grande público? Porque os compositores de música popular têm atuação
mais destacada do que os de música de concerto no cinema brasileiro contemporâneo?
Estas são, sem sombra de dúvida, outras “questões prenhes de questões” que merecem
um estudo próximo mais aprofundado.

1
O Ébrio, Ganga Bruta, Carnaval Atlântida, Nem Sansão nem Dalila, Matar ou Correr, Caiçara,
Vidas Secas, O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, O Bandido da Luz Vermelha, Matou a
Família e Foi ao Cinema, O Anjo Nasceu, O Quatrilho, O Que É Isso Companheiro? e Central do Brasil.
139

ADORNO, Theodor & EISLER, Hanns. Composing for the Films. The Athlone Press,
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da Educação e Cultura, Rio de Janeiro, 1959.
XAVIER, Ismail. O Cinema Moderno Brasileiro in Revista Cinemais, número 4, 1997.
ANEXO

Este anexo apresenta fichas técnicas contendo referências a título, ano de


lançamento, diretor e compositores das músicas de filmes das companhias
cinematográficas Cinédia, Atlântida e Vera Cruz, dos movimentos Cinema Novo e
Cinema Marginal e de filmes lançados nos anos 90.
Os dados sobre a Cinédia foram coletados no livro Cinédia 50 Anos de Cinédia
escrito por Alice Gonzaga. Os dados relativos aos filmes da Atlântida, da Vera Cruz e do
Cinema Novo forma coletados no livro Cinema Brasileiro 1908-1977 de Araken C. P.
Júnior. O livro Cinema Marginal, A Representação em Seu Limite, de Fernão Ramos, e o
catálogo da mostra Cinema Marginal e suas Fronteiras, realizada no Centro Cultural
Banco do Brasil (CCBB), na cidade de São Paulo foram as fontes consultadas sobre as
fichas técnicas dos filmes do Cinema Marginal. A tabela contendo as fichas técnicas de
filmes produzidos nos anos 90 foi montada a partir de dados coletados na Riofilmes, na
Secretaria do Audiovisual, na lista de discussão “Cinemabrasil” 1 e no catálogo Cinema
Brasileiro. Um Balanço da Retomada do Cinema Nacional, publicado pelo Ministério da
Cultura através da Secretaria do Audiovisual.

1
www.cinemabrasil.org.br
1 - Cinédia

Ano Título Direção Música


1930 Lábios sem Beijos Humberto Mauro s/créd
1931 Limite Mário Peixoto Satie, Borodin, Ravel, Stravinsky, César
Frank, Prokofief
Mulher Octávio Gabus Mendes s/créd
1933 Ganga Bruta Humberto Mauro Radamés Gnatalli
canção de Heckel Tavares e Joracy
Camargo
Onde a Terra Acaba Octávio Gabus Mendes s/créd
A Voz do Carnaval Ademar Gonzaga e Números musicais
Humberto Mauro
Honra e Ciúmes Antônio Tibiriçá Números musicais
1934 Tatuapés s/créd s/créd
1935 Alô, Alô, Brasil Wallace Downey, João números musicais
de Barro e A. Ribeiro
Noites Cariocas Henrique Cadicamo números musicais
Carioca Maravilhosa Luiz de Barros números muiscais
Estudantes Wallace Downey números musicais
1936 Alô, Alô, Carnaval Adhemar Gonzaga números musicais
O Jovem Tataravô Luiz de Barros Músicas originais - Aldo Taranto e
Bonfiglio de Oliveira
Arranjos e direção musical - Maestro
Martinez Gaó (orquestras: Cassino
Atlântico, Francisco Martí e Romeu Silva
Bonequinha de Seda Oduvaldo Vianna números musicais
música de fundo - Francisco Mingone
Caçando as Feras Líbero Luxardo Martinez Gaó - música de abertura
1937 O Descobrimento do Brasil Humberto Mauro Villa-Lobos
Samba da Vida Luiz de Barros números musicais
1938 Alma e Corpo de uma raça Milton Rodrigues números musicais - orquestra do Cassino
de Copacabana
Aruanã Líbero Luxardo s/créd
Maridinho de Luxo Luiz de Barros números musicais
Ernâni Amorim - Direçao Musical
Tererê não Resolve Luiz de Barros números musicais
Ercole Vareto - música
Alvarenga e Ranchinho - Orquestra do
cassino da Urca
1939 Está Tudo Aí Mesquitinha números musicais
Joujoux e Balangandãs Amadeu Castelaneta números musicais
Onde Estás Felicidade Mesquitinha Números musicais
Radamés Gnatalli e Luciano Perrone -
Orquestra da Rádio Nacional
1940 Direito de Pecar Leo Marten Música original: Direito de Pecar, de
Antônio Nássara e Frazão, gravada com a
Oequestra de Napoleão Tavares
Eterna Esperança Leo Marten s/créd
Pureza Chianca de Garcia Músicas de Dorival Caymi
Orquestração e Regência - Radamés
Gnatalli
Orquestra - Luciano Perrone
1941 24 Horas de Sonho Chianca de Garcia Arthur Brosmans - partitura musical
composta especialmente para o filme,
música que vai do princípio ao fim
acompanhando o ritmo dos movimentos,
conservando um valor sinf6onico especial.
Aplicou-se música incidental, até então
inédita no cinema brasileiro.
O Dia é Nosso Milton Rodrigues Música - Donga e David Nasser
Orquestrações e Regência - Guerra-Peixe
e Arnold Gluckman
Orquestra de Luciano Perrone
Sedução no Garimpo Luiz de Barros Ernâni Amorim - direção musical e
Orquestra
Acordeonista - George Brass
1943 Abacaxi Azul Wallace Downey números musicais -
Orquestra de Napoleão Tavares
Conjunto de Violões de Dilermendo Reis
Caminho do Céu Milton Rodrigues números musicais
Radamés Gnatalli e Lírio Panicalli -
orquestrações e regência
Samba em Berlim Luiz de Barros números musicais
1944 Berlim na Batucada Luiz de Barros números musicais
O Brasileiro João de Souza Bob Chust s/créd
Romance Proibido Adhemar Gonzaga s/créd
Coração sem Piloto Luiz de Barros números musicais
1945 O Cortiço Luiz de Barros número musical
Pif-Paf Luiz de barros e números musicais
Adhemar Gonzaga
1946 Caídos do Céu Luiz de Barros números musicais
O Ébrio Gilda de Abreu Música: Vicente Celestino
Orquestração e regência: Júlio Cristobal
1948 Esta é Fina Luiz de Barros números musicais
Fogo na Canjica Luiz de Barros s/créd.
Mãe Theophilo de Barros números musicais
Filho
Obrigado, Doutor Moacir Fenelon Leon Gonbang - trilha e regência
Poeira de Estrelas Moacir Fenelon números musicais
Guerra-Peixe - direção musical (compôs
“Rumba”, interpretada por Bicalho y sus
Rumberos)
1949 Estou Aí? Cajado Filho números musicais
Guerra-Peixe: direção musical
O Homem que Passa Moacir Fenelon s/créd.
Pinguinho de Gente Gilda de Abreu número musical
Ercole Varetto
1950 Aguenta Firme, Izidoro Luiz de Barros números musicais
Arturo Usai: trilha
Um Beijo Roubado Leo Marten números musicais
Loucos por Música Adhemar Gonzaga Impaciência, de Franz Schubert,
orquestração de Fritz Gottwald.
Colaboração da Orquestra Sinf6onica
Brasileira sob a Regência do maestro José
Siqueira.
Somos Dois Milton Rodrigues números musicais
Radamés Gnatalli: trilha e direção musical
1951 Ano do Lodo Luiz de Barros s/créd.
1955 Carnaval em Lá Maior Adhemar Gonzaga números musicais (artistas da Rádio e da
TV Record )
2 - Atlântida

Ano Título Direção Música


1943 É Proibido Sonhar Moacur Fenelon Lyrio Panicalli
Moleque Tião José Carlos Burle Canções de Custódio Mesquita e
Evaldo Rui
1944 Gente Honesta M. Fenelon s/créd.
Romance de um Mordedor José Carlos Burle s/créd.
Tristezas não Pagam Dívidas J. C. Burle Números musicais (Ismael Silva,
Ataulfo Alves, Blecaute e outros)
Gol da Vitória J. C. Burle Lyrio Panicalli
Não Adianta Chorar Watson Macedo Números musicais (Sylvio Caldas,
Alvarenga & Ranchinho, Ciro
Monteiro e outros)
Vidas Solidárias M. Fenelon s/créd.
1946 Fantasma por Acaso M. Fenelon Gaó Gurgel
Segura Essa Mulher W. Macedo Números muiscais (Alvarenga &
Ranchinho, Nélson Gonçalves,
Orlando Silva e outros)
Sob a Luz do meu Bairro M. Fenelon Lyrio Panicalli
1947 Asas do Brasil M. Fenelon Lyrio Panicalli
Esse Mundo É Um Pandeiro W, Macedo Lyrio Panicalli (números musicais:
Lupiscínio Rodrigues, Moacir Silva,
Zequinha de Abreu e outros)
Luz dos meus Olhos J. C. Burle Lyrio Panicalli
1948 É Com Este Que Eu Vou J. C. Burle Números musicais (Dorival
Caymmi, Luís Bonfá, Luiz Gonzaga
e outros)
Falta Alguém no Manicômio J. C. Burle Lyrio Panicalli
Famoso Cornélio W. Macedo s/créd.
Terra Violenta Edmund Bernoudy Lyrio Panicalli
Canções de Dorival Caymmi e J. C.
Burle
1949 Caçula do Barulho Ricardo Freda Lyrio Panicalli
E o Mundo se Diverte W. Macedo Números Musicais (Ary Barroso,
Dorival Caymmi, Luiz Gonzaga &
Humberto Teixeira)
Também Somos Irmãos J. C. Burle Lyrio Panicalli (números musicais:
L. Gonzaga & Humberto Teixeira,
Zequinha de Abreu, Klecius Caldas
e outros)
1950 Carnaval no Fogo W. Macedo Lyrio Panicalli
Não É Nada Disso J. C. Burle Lyrio Panicalli (números musicais
interpretados por Grande Otelo,
Jorge Goulart, Francisco Carlos e
outros)
A Sombra da Outra W. Macedo Leo Perachi ( regência de Lyrio
Panicalli)
1951 Aí Vem o Barão W. Macedo Números Musicais (Alberto
Ribeiro, Ivon Cury, José M. Abreu,
Osvaldo Alves e outros)
Maior que o Ódio J. C. Burle Lyrio Panicalli
1952 Amei um Bicheiro J. Ileli / P. Wanderley Leo Perachi
Aviso aos Navegantes W. Macedo Osvaldo Alves (Alberto Ribeiro,
Antônio Nássara, Humberto
Teixeira, Klecius Caldas e outros)
Areias Ardentes J. B. Tanko Lyrio Panicalli (regência de Leo
Perachi
Barnabé Tu És Meu J. C. Burle Leo Perachi (regência de Lyrio
Panicalli). Números Musicais (Alcir
Pires Vermelho, Herivelto Martins,
Jair Amorim & Evaldo Gouveia,
Luiz Gonzaga e outros)
1953 Carnaval Atlântida J. C. Burle Lyrio Panicalli (números musicais:
Antônio Maria, Ary Barroso,
Dorival Caymmi, Braguinha,
Fernando Lobo e outros)
A Carne É o Diabo P. Campos / S. Markenzon Abel Ferreira
Dupla do Barulho Carlos Manga Lyrio Panicalli
É pra Casar? Luiz de Barros Waldir Calmon
Santa de um Louco George Dusek Henrique Gandelman
1954 Carnaval em Caxias Paulo Wanderley Radamés Gnatalli (números
musicais: Hervê Cordovil, João
Roberto Kelly, Klecius Caldas e
outros)
Malandros em Quarta Luiz de Barros Lyrio Panicalli (números musicais:
Dimensão Braguinha, Lamartine Babo, Noel
Rosa e outros)
Matar ou Correr Carlos Manga Lyrio Panicalli
Nem Sansão nem Dalila C. Manga Lyrio Panicalli
Outra Face do Homem J. B. Tanko Guerra-Peixe
1955 Chico Viola não Morreu Roman V. Barreto Lyrio Panicalli (números musicais:
Ary Barroso, Alcir pires Vermelho,
Orestes Barbosa e outros)
O Golpe C. Manga Lyrio Panicalli
Guerra no Samba C. Manga Lyrio Panicalli (números musicais:
Ivon Cury, Ataulfo Alves, Armando
Cavalcanti, Klecius Caldas e outros)
Paixão nas Selvas Francisco Einhorn Walter S. Porto Alegre (regência de
Lyrio Panicalli)
1956 Colégio de Brotos C. Manga Lyrio Panicalli
Papai Fanfarrão C. Manga Lyrio Panicalli
Vamos com Calma Lyrio Panicalli Guio de Moraes (números musicais
interpretados por Ataulfo Alves,
César de Alencar, Jorge Goulart,
Emilinha Borba e outros)
1957 De Vento em Popa C. Manga Alexandre Gnatalli (canções de
Carlos Imperial e Gordurinha)
Garotas e Samba C. Manga A. Gnatalli (números musicais:
Chocolate, Armando Cavalcanti,
Luiz Vieira e outros)
Treze Cadeiras F. Einhorn A. Gnatalli
É a Maior C. Manga Lyrio Panicalli
1958 E o Espetáculo Continua Cajado Filho Lyrio Panicalli
Esse Milhão É Meu C. Manga Lyrio Panicalli
1959 Aí Vem a Alegria Cajado Filho R. Gnatalli
O Cupim C. Manga Lyrio Panicalli
O Homem do Sputnick C. manga A. Gnatalli
O Palhaço o Que É? C. Manga Lyrio Panicalli
Pintando o Sete C. Manga Leo Perachi
1960 Os Bandeirantes Marcel Camus Henri Crola
Dois Ladrões C. Manga A. Gnatalli
Duas Histórias (cacareco Vem C. Manga Lyrio Panicalli
Aí)
1961 Quanto Mais Samba Melhor C. Manga A. Gnatalli
Entre Mulheres e Espiões C. Manga A. Gnatalli
Esse Rio que Eu Amo Carlos Hugo Christensen Lyrio Panicalli (regência de R.
Gnatalli)
Sete Evas C. Manga Luís Bonfá
1962 Os Apavorados Ismar Porto A. Gnatalli.
3 - Vera Cruz

Ano Título Direção Música


1950 Caiçara Adolfo Celi Francisco Mignone
1951 Ângela Tom Payne Francisco Mignone
Terra é Sempre Terra Tom Payne Guerra -Peixe
Apassionata Fernando de Barros L. v. Beethoven (trilha adaptada)
1952 Sai da Frente Fernando de Barros s/ créditos
Tico-Tico no Fubá Adolfo Celi Música - Zequinha de Abreu
Arranjos - Carlos Guarany
Regência - Radamés Gnatalli
Veneno Giani Pons Enrico Simoneti
1953 O Cangaceiro Lima Barreto Gabriel Migliori
Esquina da Ilusão Rogério Jacob Enrico Simoneti
Família Lero-lero Alberto Pieralise Gabriel Migliori
Luz Apagada Carlos Thiré Enrico Simoneti
Nadando em Dinheiro Carlos Thiré Radamés Gnatalli
Uma pulga na Balança Lucianao Salce Enrico Simoneti
Sinhá Moça O. Sampaio/T. Payne Francisco Mignone
1954 Candinho Abílio P. Almeida Gabriel Migliori
É proibido Beijar Hugo Lombardi Enrico Simoneti
Floradas na Serra Luciano Salce Enrico Simoneti
Na Senda do Crime Flamínio B. Serri Enrico Simoneti
4 - Cinema Novo

Ano Título Diretor Música


1961 A Grande Feira Roberto Pires Remo Usai
Mandacarú Vermelho Nélson Pereira dos Santos Remo Usai
1962 Assalto ao Trem Pagador Roberto Farias Remo Usai
Os Cafajestes Ruy Guerra Luís Bonfá
Cinco Vezes Favela Marcos Farias Mário Rocha
Miguel Borges Mário Rocha
Cacá Diegues Carlos Lira
Joaquim Pedro de Andrada Carlos Lira
Leon Hirszman s/créd.
O Pagador de Promessas Anselmo Duarte Gabriel Migliori
Tocaia no Asfalto Roberto Pires Remo Usai
1963 Boca de Ouro Nélson Pereira dos Santos Remo Usai
1964 Barravento Glauber Rocha Washington B. Silva
Deus e o Diabo na Terra do Sol Glauber Rocha Canções originais de Sérgio
Ricardo.
Villa-Lobos (trilha adapatada)
Noite Vazia Walter Hugo Khoury Rogério Duprat
Porto das Caixas Paulo César Saraceni Tom Jobim
Sol Sobre a Lama Alex Vianny Cançoes de Vinícius de Moraes
e músicas de Pixinguinha
Vidas Secas Nélson Pereira dos Santos s/créditos
1965 O Desafio Paulo César Saraceni Mozart e Villa-Lobos (trilha
adapatada)
Canções de Edu Lobo,
Gianfrancesco Guarnieri, Carlos
Lira, José Cândido, Zé Kéti,
Caetano Veloso, João de Paula e
Vinícius de Moraes
Os Fuzis Ruy Guerra Moacyr Santos
São Paulo S.A. Luís Sérgio Person Cláudio Petraglia
1966 Corpo Ardente Walter Hugo Khoury Joseph Albinoni (trilha
adapatada)
A Grande Cidade Cacá Diegues Trlha adapatada - Villa-Lobos,
Francisco Mignone, Ernesto
Nazareth, Pixinguinha, Zé Kéti
e Heckel tavares
A Hora e a Vez de Augusto Roberto Santos Geraldo Vandré
Matraga
O Padre e a Moça Joaquim Pedro de Andrade Carlos Lira
1967 Proezas do Satanás na Vila do Paulo G. Soares Caetano Veloso
Leva-e-Traz
Terra em Transe Glauber Rocha Canções originais de Sérgio
Ricardo.
+ trilha adapatada
Todas as Mulheres do Mundo Domingos de Oliveira João Ramiro
1968 Bebel, Garota Propaganda Maurice Capovilla Carlos Imperial
Capitú Paulo César Saraceni Marlos Nobre
Edu Coração de Ouro Domingos de Oliveira Joaquim Assis
1969 Brasil, Ano 2000 Walter Lima Jr. Rogério Duprat, Caetano
Veloso, Gilberto Gil, Capinam
Bravo Guerreiro Gustavo Dahl Remo Usai
Copacabana me Engana Antônio Carlos Fontoura Caetano Veloso
O Dragão da Maldade Contra o Glauber Rocha Canções Originais de Sérgio
Santo Guerreiro Ricardo.
Trilha adaptada (diversos
autores)
As Duas Faces da Moeda Domingos de OLiveira Joaquim Assis
Macunaíma Joaquim Pedro de Andrade Trilha adapatada (diversos
autores)
Máscara da Traição Roberto Pires Francis Hime
1970 Azyllo Muito Louco Nélson Pereira dos Santos Antônio Adolfo e Tibério
Gaspar
Cabezas Cortadas Glauber Rocha Trilha adapatada (diversos
autores)
Os Herdeiros Cacá Diegues Trilha adaptada (Villa-Lobos e
outros autores)
1971 Casa Assassinada Paulo César Saraceni Antônio Carlos Jobim/Dori
Caymmi
Os Deuses e os Mortos Ruy Guerra Milton Nascimento
Lúcia McCartney David Neves Trilha adapatada (Villa-Lobos,
Beatles, Erasmo Carlos e
outros)
1972 Como Era Gostoso o Meu Nélson Pereira dos Santos Guilherme Vaz, José Rodrix,
Francês Raimundo B. de Mello
Os Inconfidentes Joaquim Pedro de Andrade Trilha adapatada (Tom Jobim,
Ary Barrosos e outros)
Na Boca da Noite Walter Lima Jr. Gato Barbieri, James Spalding e
Ron Carter
Pindorama Arnaldo Jabor Guilherme Vaz
Quando o Carnaval Chegar Cacá Diegues Trilha adaptada (Chico Buarque,
João de Barro, Tom Jobim e
outros)
1973 São Bernardo Leon Hirszman Caetano Veloso
Tati, a Garota Bruno Barreto Dori Caymmi
Toda a Nudez Será Castigada Arnaldo Jabor Astor Piazzola (trilha
adapatada)
1974 Anjo da Noite Walter Hugo Khoury Rogério Duprat
A Estrela Sobe Bruno Barreto Francis Hime/Guto Graça Melo
Rainha Diaba Antônio Carlos Fontoura Guilherme Vaz
1975 Amuleto de Ogum Nélson Pereira dos Santos Jards Macalé
5 - Cinema Marginal

Ano Título Direção Música


1964 À Meia-Noite Levarei sua José Mojica Marins Hermínio Gimenez
Alma
1966 Esta Noite Encarnarei no Teu José Mojica Marins s/cred
Cadáver
1967 Barão Olavo. O Horrível Júlio Bressane s/cred
A Margem Ozualdo Camdeias Luís Chaves /
Zimbo Trio
1968 Blá Blá Blá Andrea Tonacci s/cred
Viagem ao Fim do Mundo Fernando Cony Campos Caetano Veloso
Hitler no Terceiro Mundo José Agripino de Paula José Maurício Nunes (seleção
musical)
Trilogia do Terror José Mojica Marins Damiano Cozella
(em episódios) Ozualdo Candeias Damiano Cozella
Sebastião de Souza Rogério Duprat
Jardim de Guerra Neville de Almeida s/cred
O Bandido da Luz Vermelha Rogério Sganzerla Rogério Sganzerla
Desesperado Sérgio Bernardes s/cred
1969 Meteorango Kid, o Herói André Luiz Oliveira Moraes e Galvão
Intergalático
Essa Rua tão Augusta Carlos Reichenbach s/cred
As Libertinas Carlos Reichenbach s/cred
(em episódios) Antônio Lima
João Calegaro
Câncer Glauber Rocha s/cred
Gamal, o Delírio de Sexo João Batista de Andrade Ivan Mariotti e Judimar Ribeiro
O Despertar da Besta José Mojica Marins s/cred
Matou a Família e Foi ao Júlio Bressane s/cred
Cinema
O Anjo Nasceu Júlio Bressane Guilherme Vaz
O Profeta da Fome Maurice Capovilla Rinaldo Rossi /
Adauto Santos
A Mulher de Todos Rogério Sganzerla Ana Carolina Soares
(seleção musical)
Em Cada Coração um Punhal Sebastião de Souza Rogério Duprat (Transplante de
(em episódios) José Rubens Siqueira Mãe)
João Batista de Andrade João Silvério Trevisan (O Filho
da Televisão)
1970 Caveira, my Friend Älvaro Guimarães Novos Baianos
Bang Bang Andrea Tonacci Márcio F. Murano (seleção
musical)
República da Traição Carlos Alberto Ebert s/cred
Crioulo Doido Carlos Alberto Prates Correia s/cred
A Possuída dos Mil Demônios Carlos Frederico Danilo Caymmi
Audácia! A Fúria dos Desejos Carlos Reichenbach s/cred.
(em episódios) Antônio Lima
Jairo Ferreira
Os Monstros de Babaloo Elyseu Visconti Elyseu Visconti /
Edson Machado
Nené Bandalho Emílio Fontana s/cred
Perdidos e Malditos Geraldo Veloso s/cred
O Pornógrafo João Callegaro s/cred
Orgia, o Homem que Deu Cria João Silvério Trevisan Ibanez de Carvalho
A Família do Barulho Júlio Bressane s/cred
Cuidado Madame Júlio Bressane s/cred
Jardim das Espumas Luiz Rosemberg s/cred
Mangue Bangue Neville d’Almeida s/cred
Piranhas do Asfalto Neville d’Almeida s/cred
O Anunciador - O Homem das Paulo Bastos Martins Carlos Moura
Tormentas
Carnaval na Lama Rogério Sganzerla s/cred
Copacabana Mon Amour Rogério Sganzerla Rogério Sganzerla /
Gilberto Gil
Sem Essa Aranha Rogério Sganzerla s/cred
Sagrada Família Sylvio Lana s/cred
Na Boca da Noite Walter Lima Jr. Gato Barbieri
1971 Capitão Bandeira contra o Dr. Antônio Calmon Nélson Ângelo
Moura Brasil
O Lobisomem, o Terror da Elyseu Visconti Elyseu Visconti
Meia-Noite
Nosferato no Brasil Ivan Cardoso s/cred
Crazy Love Júlio Bressane s/cred
Lágrima Pantera Júlio Bressane s/cred
Memórias de um Estrangulador Júlio Bressane s/cred
de Loiras
O Longo Caminho da Morte Júlio Calasso Júlio Calasso /
Marjorie Baum
Night Cats Neville d’Almeida s/cred
A Herança Ozualdo Candeias Fernando lona /
Vidal França
1972 Vida de Artista Haroldo Marinho Brabosa Sidney Miller
Jota (?)
A Múmia Volta a Atacar Ivan Cardoso s/cred
Sentença de Deus Ivan Cardoso s/cred
A Fada do Oriente Júlio Bressane s/cred
1973 O Guru e os Guris Jairo Ferreira s/cred
Eat me Lygia Pepe Yoko Ono
1974 O Rei do Baralho Júlio Bressane s/cred
Zezero Ozualdo Candeias Vidal França
1975 Ticumbi Elyseu Visconti s/cred
Ovelha Negra Haroldo Marinho Barbosa Sidney Miller
Assuntina das Américas Luiz Rosemberg Cecília Condé
Cristais de Sangue Luna Alkalay Kátia de França
1976 Bandalheira Infernal José Sette de Barros s/cred
Crônica de um Industrial Luiz Rosemberg Filho s/cred
1977 O Vampiro da Cinemateca Jairo Ferreira s/cred
1981 O Segredo da Múmia Ivan Cardoso Júlio Medaglia
6 - Anos 90

Ano Título Direção Música


1994 Veja Esta Canção C. Diegues C. Buarque, C. Veloso, G. Gil, J.
Benjor
A Terceira Margem do Rio Nélson Pereira dos Santos Milton Nascimento
Carlota Joaquina Carla Camurati André Abujamra /
Armando Souza
A Causa Secreta Sérgio Bianchi Matias Capovilla
O Mandarim Júlio Bressane Júlio Bressane
Erotique - Chamada Final Ana Maria Magalhães A. C. Jobin/P. Jobin
O Quatrilho Fábio Barreto C. Veloso/ J. Morelenbaum
Louco por cinema André Luiz Oliveira Cláudio Vinícius /
André Luís Oliveira
Perfume de Gardênia G. de Almeida Prado Hermelino Neder
Terra Estrangeira Walter Sales J. M. Wisnick
Menino Maluquinho Helvécio Raton M. Nascimento
Cinema de Lágrimas Nélson Pereira dos Santos Paulo Jobim
1996 As Meninas Emiliano Ribeiro Carlos Moletta
Felicidade é ... José Pedro Goulart Léo Henkin
José Roberto Toureiro
Jorge Furtado
Antônio Cecílio Neto
Mil e Uma Suzana Moraes Péricles Cavalcanti
O Judeu Jom Tob Azulay Rui Luís Pereira
O Lado Certo da Vida Errada Octávio Bezerra Sérgio Ricardo
O Monge e a Filha do Walter Lima Jr. Sandy Stein
Carrasco
Quem Matou Pixote José Jofilly David Tygel
Maurício Maestro
Sábado Mauro Giorgetti Ugo Giorgetti
Sombras de Julho Marco Altberg David Tygel
Super Colosso Luiz Ferré Ruriá Duprat
Tieta do Agreste C. Diegues C. Veloso/ J. Morelenbaum
O Cego que Gritava Luz J. B. de Andrade Fernando Andrade

Jenipapo Monique Gandenberg Philip Glass


Doces Poderes Lúcia Murad Sacha Amback / Adriana
Calcanhoto
Corisco e Dadá Rosemberg Cariri Maestro Toinho Alves e Quinteto
Violado
Fica Comigo Tizuka Yamasaki Vania Abreu
Ary Sperling
Como Nascem os Anjos Murilo Salles Victor Biglione
O Guarani Norma Benguel Wagner Tiso, composição original,
orquestração e regência a partir do
tema e de músicas incidentais da
ópera O Guarani, de Carlos Gomes.
1997 16060 Vinícius Mainardi Hilton Raw
Buena Sorte Tânia Lamarca Vinícius França
Lua de Outubro Henrique Freitas Lima Sérgio Rojas
Celau Moreira
Navalha na Carne Neville de Almeida Carlinhos Brown
O Amor Está no Ar Amylton de Almeida Vinícius França
Fabiano Gonçalves
O Cangaceiro Aníbal Massaíni Neto Vicente Sálvia
O Noviço Rebelde Tizuka Yamasaki Renato Aragão Jr.
Ricardo Rangel Aragão
José Lourenço
Renato Aragão
Os Matadores Beto Brandt André Abujamra
Ed Mort Alain Fresnot Arrigo Barnabé
O Cineasta da Selva Aurélio Michiles Caito Marcondes e Teco Cardoso
Anahy de las Missiones Sérgio Silva Celso Loureiro Chaves
O Homem Nú Hugo Carvana David Tigel
Baile Perfumado Paulo Caldas Direção musical: Chico Science e
Lírio Ferreira Fred Zero Quatro, Sergio Siba
Veloso, Lucio Maia e Paulo Rafael
Pequeno Dicionário Amoroso Sandra Werneck Ed Motta e José Nabuco
Guerra de Canudos Ségio Resende Edu Lobo
Miramar Júlio Bressane Livio Tragtenberg
O Velho Toni Venturi Marcelo Goldman
O Sertão das Memórias José Araújo Naná Vasconcelos
Crede-mi B. Lessa e Dany Roland s/créditos
O Que é Isso Companheiro Bruno Barreto Stewart Copeland
A Ostra e o Vento Walter Lima Jr. Wagner Tiso
Um Céu de Estrêlas Tata Amaral Lívio Tratenberg
Wilson Sukorski
1998 Menino Maluquinho II Helvécio Ratton Antônio Pinto/M. Nascimento/F.
Brandt
Boleiros Mauro Giorgetti Ugo Giorgetti
Coração Iluminado Hector Babenco Zbigniew Preisner
For All - O Trampolim de L. C. Lacerda David Tygel
Vitória Buza Ferraz
Simão, o Fantasma Trapalhão Paulo Aragão Renato Aragão, Lincoln Olivetti,
Renato Aragão Jr.
Traição Arthur Fontes Canções de João Gilberto, Tim
Cláudio Torres Maia e Outros
José Henrique Fonseca
Ação Entre Amigos Beto Brandt André Abujamra
Alô?! Mara Mourão Arrigo e Paulo Barnabé
Policarpo Quaresma, Herói do Paulo Thiago Direção musical: Sérgio Saraceni
Brasil
Bela Donna Fábio Barreto Dori Caymi
Kenoma Eliane Caffé Grupo Uakti
Central do Brasil Walter Sales J. Morelenbaun/A. Pinto
Como Ser Solteiro Rosane Svartman Leonardo Teixeira, Laufer e Paulo
Futura
Bocage - O Triunfo de Amor Djalma Limongi Batista Lívio Tratenberg
A Grande Noitada Denoy de Oliveira Caito Marcondes
Amores Domingos de Oliveira Nico Nicolaiewsky
Amor e Cia Helvécio Ratton Tavinho Moura
O Toque do Oboé Cláudio Mac Dowell Wagner Tiso
1999 Cronicamente Inviável Sérgio Bianchi s/créditos
Encontro de Demônios A. S. Cecílio Neto Léo Henke
Oswaldo Sperando
Estorvo Ruy Guerra Egberto Gismonti
Fé Ricardo Dias Mário Manga
Hans Staden Luís Alberto Gal Pereira Marlui Miranda
Lelo Nazário
Iremos à Beirute Marcos Moura Manassés de Souza
Mário Hermano Penna José Luís Pena
Milagre em Juazeiro Wolney Oliveira Sérgio Vitier
O Dia da Caça Alberto Graça Armênio Graça
O Tronco João Batista de Andrade Tavinho Moura
O Viajante Paulo César Saraceni Túlio Mourão
Paulo Jobim
Sérgio Saraceni
Uma Aventura do Zico Antônio Carlos Fontoura David Tygel
Zoando na TV José Alvarenga Jr. Cecelo Frony
No Coração dos Deuses Geraldo Moraes André Moraes
O Primeiro Dia Walter Salles e Daniela Antonio Pinto, Eduardo Bid e Naná
Thomaz Vasconcelos
Mauá Sérgio Resende Cristóvão Bastos
São Jerônimo Júlio Bressane Fábio Tagliaferri
Paixão Perdida Walter Hogo Khouri Ruriá Duprat e Fred Khouri
Adágio ao Sol Xavier de Oliveira Fábio Nercessian
As Feras Walter Hugo Khouri Amílson Godoy
Através da Janela Tata Amaral Lívio Tragtenberg
Wilson Sukorski
Bossa Nova Bruno Barreto Eumir Deodato
Caminho dos Sonhos Lucas Amberg s/créditos
Contos de Lygia Del Rangel Rafael e Ricardo Righini
Um Copo de Cólera Aluísio Abranches André Abujamra
Orfeu C. Diegues C. Veloso (J. Morelenbaum)
Oriundi Ricardo Bravo Arrigo Barnabé
Outras Estórias Pedro Bial Direção musical: Grupo Uakti e
Marco Antônio Guimarães
Até que a Vida nos Separe José Saragoza Direção musical: Vicente de Paula
Sálvia
A Hora Mágica G. de Almeida Prado Lívio Tratenberg
Hermelino Neder
Dois Córregos Carlos Reichenbach Música original: Ivan Lins
Arranjos e produção musical:
Nelson Ayres
Por Trás do Pano Luiz Villaça Produção musical: Wilson
"Simoninha" de Castro
Música original: Dimi Kireeff
Histórias do Flamengo Alexandre Niemeyer s/crédito
Tiradentes Oswaldo Caldeira Wagner Tiso

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