Você está na página 1de 30

Universidade Cândido Mendes – UCAM

Cinema e Linguagem Audiovisual

Silas Mendes Lucas

ÁUDIO NÃO É SÓ TRILHA SONORA


A importância do desenho de som no cinema

Prof. a Fernanda Alves Kanasiro

Rio de Janeiro
2018
Universidade Cândido Mendes – UCAM
Cinema e Linguagem Audiovisual

Silas Mendes Lucas

ÁUDIO NÃO É SÓ TRILHA SONORA


A importância do desenho de som no cinema

Prof.a Fernanda Alves Kanasiro

Trabalho de Conclusão apresentado ao


curso Cinema e Linguagem Audiovisual,
oferecido pela Universidade Cândido
Mendes – UCAM, como requisito parcial
para a obtenção do grau de especialista,
sob orientação da Prof. a Fernanda Alves
Kanasiro.

Rio de Janeiro
2018
Termo de Aprovação

Aluno: Silas Mendes Lucas


Título: Áudio não é só trilha sonora: A importância do desenho de som no
cinema

Trabalho de Conclusão apresentado ao


curso Cinema e Linguagem Audiovisual,
oferecido pela Universidade Cândido
Mendes – UCAM, como requisito parcial
para a obtenção do grau de especialista,
sob orientação da Prof. a Fernanda Alves
Kanasiro.

Rio de Janeiro, 24 de novembro de 2018.

Banca examinadora:

______________________________
Prof.a Fernanda Alves Kanasiro

______________________________
Professor (a) convidado (a)

______________________________
Professor (a) convidado (a)
O cinema ama o silêncio – e, nele, o som de um suspiro fundo.
Jean-Claude Carriere
Agradecimentos

À minha mãe, Marla, pelo apoio incondicional.


A Laura por sempre acreditar no meu melhor.
À minha esposa, Mariana, pela paciência e companheirismo.
Ao meu filho, Miguel, por dar sentido à minha vida.
A Andrea Terra e Brisa Evangelista pelas conversas e conselhos.
Aos meus amigos e familiares pelo carinho.
E em memória de L. Lucas, meu pai, e Michel Echenique Isasa, meu mestre.
ÁUDIO NÃO É SÓ TRILHA SONORA: A importância do desenho de som no
cinema

Silas Mendes Lucas1

Graduado em Gravação e Produção Fonográfica, acadêmico do Programa de Pós-


graduação lato sensu “Cinema e linguagem audiovisual” da Universidade Cândido
Mendes – UCAM, atua como sonoplasta na Empresa Brasil de Comunicação – EBC.

Resumo

No universo do cinema o som se divide em três partes: fala, música e efeitos


sonoros. Tendo em vista os inúmeros trabalhos que discorrem sobre o poder da
música no cinema, este trabalho tem a intenção de demonstrar a importância dos
demais aspectos sonoros em um filme, seus processos e os profissionais
responsáveis por eles, reconhecendo o desenho de som como fundamental
coordenador da linguagem sonora cinematográfica.

Palavras-chave: Cinema; Filme; Som; Áudio; Audiovisual; Desenho de som.

Abstract

In the cinema universe the sound has been divided in three parts: speech, music and
sound effects. As countless works can be found about the power of music in cinema,
this paper has the intention to show the importance of the other sound aspects in a
movie, their proceedings and the professionals responsible for them, recognizing the
sound design as the fundamental coordinator of the film sound language.

Key-words: Cinema; Film; Movie; Sound; Audio; Audiovisual; Sound design.

1 silasm.nd.s@gmail.com
Sumário

1 . I n t r o d u ç ã o ................................................................................................................................... 7
2 . A p e r c e p ç ã o d o s o m ............................................................................................................. 1 0
2 . 1 N o p r i n c í p i o , o r u í d o ......................................................................................................... 1 2
2 . 2 P r e p a r a n d o o s o u v i d o s .................................................................................................... 1 3
3 . P l a n e j a n d o o s o m .................................................................................................................. 1 6
4 . C a p t a n d o o s o m ..................................................................................................................... 1 7
4 . 1 O s o m d i r e t o e o m o m e n t o .............................................................................................1 7
4 . 2 A d u b l a g e m e a a d a p t a ç ã o .............................................................................................. 1 8
4 . 3 O s e f e i t o s , a m b i e n t e s e a c r i a ç ã o ...............................................................................2 0
4 . 4 O f o l e y e a r e c r i a ç ã o ......................................................................................................... 2 1
5 . E d i t a n d o e t r a n s f o r m a n d o o s o m ...................................................................................2 2
6 . A m i s t u r a d e s o n s ................................................................................................................. 2 4
7 . D e s e n h a n d o o s o m e c r i a n d o o u n i v e r s o ...................................................................2 5
8 . C o n s i d e r a ç õ e s f i n a i s ........................................................................................................... 2 7
R e f e r ê n c i a s .................................................................................................................................... 2 8
B i b l i o g r a f i a .................................................................................................................................... 2 9
7

1. Introdução

Quando se pensa a respeito do som em um filme é provável que a primeira


questão a vir à mente de qualquer pessoa seja a sua trilha sonora. A música talvez
seja a única parte do conteúdo sonoro de um filme percebida pelo público em geral
como uma inserção intencional em determinado momento com um propósito
definido.
Isso, além de ajudar na compreensão das emoções e dos contextos
narrativos buscados pelo diretor, o que inclusive foi a primeira intenção ao se unir
imagem e som no cinema (CHION, 1997, p. 61), também acaba por despertar um
interesse que pode ir além do filme em si.
Tanto no meio acadêmico quanto fora dele, a música ainda é o aspecto
sonoro mais abordado, seja em textos, livros ou documentários, e que desperta
maior interesse nas pessoas, como exposto por Bordwell e Thompson (2010):

De todos as formas de som no cinema, a música tem sido a mais


amplamente discutida. A literatura é volumosa, e com uma recente onda de
interesse em compositores de filmes, muito mais gravações de músicas de
filmes se tornaram disponíveis (BORDWELL e THOMPSON, 2010, p. 309,
tradução nossa)2.

Mas, além do trabalho dos músicos e compositores, há o trabalho minucioso


de diversos profissionais que desaparece aos olhos – ou melhor, ouvidos – do
público comum.
Quando assistimos um ator falando, dançando em uma boate, abrindo uma
porta ou passando entre árvores em meio a uma floresta, por exemplo, os diversos
sons dessas cenas são tão naturais e comuns ao nosso dia a dia que acabam
passando despercebidos. Mas, assim como simplesmente presenciar um belo
momento não garante uma bela fotografia sem que se tenham as ferramentas
corretas (fotógrafo, câmera, lente, tratamento de luz e cor), o som que ouvimos em
uma produção audiovisual também precisa ser captado ou criado, editado, tratado e
inserido para que se torne tão natural para quem assiste a ponto de não perceber a
sua existência.
2 “Of all the kinds of sound in cinema, music has been the most extensively discussed. The literature
is voluminous, and with a recent surge of interest in film composers, many more recordings of film
music have become available”.
8

A naturalidade com que esses sons existem em um filme é o que permite que
a audiência não se atente a eles, mas seja envolvida pela obra cinematográfica
como um todo, como explica Stiller (2012):

A audiência nunca deve pensar no som. O som é emocional, atingindo a


audiência em um nível subconsciente. O melhor elogio que pode ser dito
sobre o som é, ‘Este foi um ótimo filme’. Para alguém (que não seja um
profissional) dizer que o som estava ótimo significa que ele estava
pensando no som e não na história do filme (STILLER, 2017, p. 23,
tradução nossa)3.

Costuma-se dividir o som do filme em três setores: música, efeitos e diálogos,


a partir disso, a proposta deste trabalho é exatamente discorrer sobre os demais
processos sonoros de uma produção cinematográfica para além da música (com
ênfase no desenho de som4 pois este, como veremos mais a frente, de certa forma,
coordena os demais) e observando a complexidade e a importância de cada uma de
suas etapas e seus profissionais, contribuindo para uma melhor compreensão do
assunto.
É importante ainda esclarecer que as funções aqui descritas não
correspondem necessariamente a uma pessoa específica, apresentarei os conceitos
básicos, mas a forma de aplicá-los varia de acordo com o tamanho do projeto. Em
um trabalho independente e com baixo orçamento é comum que uma mesma
pessoa realize diversas, se não todas as funções, enquanto que uma grande
produção vai ter condições de envolver muito mais pessoas com habilidades
específicas, não só pela qualificação dos profissionais, mas também para reduzir o
tempo total da execução do projeto.
A metodologia utilizada para o propósito deste artigo foi a pesquisa
bibliográfica e documental aliada ao conhecimento prévio que adquiri ao longo de
mais de uma década trabalhando na área do audiovisual e estudando seus
conceitos e técnicas.
Infelizmente ainda se carece de uma maior diversidade de livros específicos
sobre o assunto em português, encontra-se alguma coisa sobre trilha sonora e
alguma coisa mais sobre áudio em si, mas o conteúdo de livros diretamente ligados
3 “The audience is never to think about the sound. Sound is emotional, hitting the audience on a
subconscious level. The greatest compliment that can be said about the sound is, ‘That was a great
movie'. For someone (other than a professional) to say that the sound was great meant that they were
thinking about the sound and not ‘in the story’ of the movie”.
4 O termo original em inglês, sound design, traduzido no Brasil como desenho de som ou desenho
sonoro, ainda é o mais usado entre profissionais do ramo, também sendo encontrada a utilização dos
termos design de som ou design sonoro.
9

ao áudio em produções cinematográficas é quase nulo, no entanto já se pode ver


um maior movimento em artigos, teses e matérias de revistas especializadas.
Já em livros estrangeiros, sobretudo estadunidenses (por conta do mercado
hollywoodiano), consegue-se uma análise mais vasta tanto sobre técnicas quanto
sobre equipamentos e profissionais do ramo, por isso estes livros serão as bases
mais referenciadas no conteúdo desse artigo.
Num primeiro momento abordarei os conceitos básicos do som que ouvimos,
também tratando da evolução do processo sonoro desde o surgimento do som no
cinema até os formatos de execução utilizados hoje em dia. Em seguida, analisarei
as etapas e os profissionais envolvidos na realização sonora de um filme
atualmente, desde a pré-produção (planejamento), até a produção (captação) e a
pós-produção (finalização). E por último concluirei com um apelo à valorização
destes profissionais, buscando ter contribuído para uma maior compreensão do
funcionamento de uma produção cinematográfica do ponto de vista dos profissionais
de áudio.
10

2. A percepção do som

O som que ouvimos nada mais é que vibrações no ar. “Uma onda de estímulo
alcançando os ouvidos ativa movimentos mecânicos que resultam em descargas
elétricas que são enviadas ao cérebro e cria a sensação que chamamos de som”
(EVEREST e POHLMANN, 2009, p. 39, tradução nossa) 5. Suas características se
devem basicamente a três pontos: amplitude, altura e timbre.
A amplitude da onda sonora é a energia sonora recebida, em outras palavras,
é através da amplitude que temos a capacidade de perceber um som como mais
forte ou mais fraco, ou o que comumente chamamos de volume e que, de maneira
geral, podemos medir em decibéis6.
A altura é a quantidade de ciclos por segundo 7 de uma onda sonora. A
audição humana é capaz de perceber aproximadamente entre 20 e 20.000 Hz e é
isso que nos dá a percepção que chamamos de grave ou agudo, quanto menor a
quantidade de ciclos por segundo mais grave um som é, da mesma forma, quanto
maior a quantidade de ciclos por segundo, mais agudo.
O timbre é a qualidade ou identidade do som e se deve à forma como as
ondas sonoras estão organizadas. Nenhuma onda sonora criada naturalmente existe
por si só, ela é sempre um somatório da nota fundamental 8 e seus harmônicos9 e é a
relação de intensidade entre essas notas que faz com que possamos distinguir a voz
de uma pessoa da voz de outra ou um instrumento de cordas de um instrumento de
sopro, por exemplo.
Mas a nossa percepção do som vai muito além do seu aspecto físico. Como
não poderia deixar de ser, nossa forma de compreender o mundo se deve aos
nossos sentidos: tato, olfato, paladar, visão e audição. Assim, o som é intrínseco ao
nosso dia a dia10, com ele podemos nos comunicar e interagir com as pessoas ao

5 “A stimulus wave striking the ears sets in motion mechanical movements that result in electrical
discharges that are sent to the brain and create the sensation that we call sound”.
6 O decibel (dB) é a unidade, utilizada também para medidas sonoras, que indica a proporção de
energia ou intensidade em relação a um nível de referência. Mais especificamente pode-se adequar
sua medida em dBSPL para pressão sonora, dBIL para intensidade sonora e dBPWL para potência
sonora.
7 Os ciclos por segundos são chamados de Hertz e indicados pela sigla Hz.
8 A nota base que está sendo intencionalmente gerada.
9 Notas geradas naturalmente em frequências múltiplas da nota fundamental.
10 Considerando pessoas nascidas com os aparelhos auditivo e fonador funcionais.
11

nosso redor e não é de se estranhar que ele seja parte também de nossas
expressões artísticas.
Enquanto que na Grécia antiga o som estava de alguma forma relacionado à
maioria das nove artes que as musas inspiravam: dança (Terpsícore), poesia lírica
(Erato), música (Euterpe), música sacra (Polímnia), tragédia (Melpômene), comédia
(Tália), eloquência (Calíope), história (Clio) e astronomia (Urânia), no mundo
contemporâneo, três das chamadas sete artes11 têm ligação com o som, dentre elas
o nosso foco, o cinema.
No cinema, como dito anteriormente, o som se divide em três aspectos
básicos: fala, música e efeitos sonoros, e estes aspectos são trabalhados de acordo
à intenção que se tem com a cena, guiando a atenção do espectador na direção
desejada, como explicado por Bordwell e Thompson (2010):

Assim como com outras técnicas cinematográficas, o som guia a atenção do


espectador. Normalmente, a faixa sonora é aclarada e simplificada para que
o material mais importante sobressaia. […] Entretanto, o diálogo nem
sempre é o mais importante. Efeitos sonoros geralmente são o foco em
sequências de ação, enquanto que músicas podem dominar em cenas de
dança, sequências de transição ou momentos carregados de emoção e sem
diálogos. E alguns cineastas têm deslocado o peso convencionalmente
dado a cada tipo de som (BORDWELL e THOMPSON, 2010, p. 275,
tradução nossa)12.

Essa divisão foi sendo desenvolvida durante um longo período, a partir da


necessidade de se adequar os aspectos sonoros a uma linguagem cinematográfica,
mas, como se pode imaginar, não foi assim desde o início do som no cinema.

11 De acordo com o Manifesto das Sete Artes de Ricciotto Canudo (1923), são elas: música, dança,
pintura, escultura, arquitetura, literatura e cinema.
12 “As with other film techniques, sound guides the viewer’s attention. Normally, the sound track is
clarified and simplified so that important material stands out. […] Dialogue doesn’t always rank the
highest in important, though. Sound effects are usually central to action sequences, while music can
dominate dance scenes, transitional sequences, or emotion-laden moments without dialogue. And
some filmmakers have shifted the weight conventionally assigned to each type of sound”.
12

2.1 No princípio, o ruído

Em 1895, quando foi exibido o primeiro filme 13, o mesmo contava apenas com
imagens em movimento. Essa ausência de som não se devia à vontade de seus
criadores, mas à limitação técnica da época.
A primeira fase do cinema, de pouco mais de 30 anos, sob a alcunha de
cinema mudo14 passou por várias etapas de desenvolvimento. Mas o cinema
verdadeiramente sem som não se estendeu mais que seus anos inicias onde se
desenvolveram alguns poucos filmes que serviam principalmente como registro,
estudo ou simples demonstração da tecnologia, como os filmes dos irmãos Lumière
ou os primeiros filmes de George Méliès, por exemplo.
O acompanhamento musical no cinema precedeu em muito os filmes falados,
já que mesmo no cinema mudo a música se tornou indispensável, não tanto pela
intenção artística, mas principalmente para tirar a atenção do público dos ruídos
gerados pelo projetor (TONKS, 2003, p. 8).
Para Eisler (1947) como citado por Rosenfeld (2013) a música nesse
momento inicial tinha também um outro propósito já que os espectadores ainda
assistiam às cenas projetadas com certa estranheza, como se estivessem vendo
fantasmas ou espectros de pessoas que não estavam ali:

[…] Ela [a música], munia-os [os personagens em tela] da terceira


dimensão, dava-lhes fundo e plástica, humanizava-os e transmitia-lhes o
sopro divino, a alma de que careciam.
Não admira, portanto, que os proprietários de cinema logo de início
recorressem a pianistas ou pequenos conjuntos orquestrais, seja pelos
motivos expostos, instintivamente notados, seja para distrair a atenção do
público das imperfeições das primeiras películas (EISLER, 1947, apud
ROSENFELD, 2013, p. 123).

Inicialmente não existia nenhuma preparação específica para músicos de


cinema. O mais comum é que esses músicos fossem recrutados em locais onde
anteriormente já houvesse música ambiente, como hotéis e restaurantes, e
passassem a executar junto aos filmes as mesmas peças de seu repertório, sem

13 Em 22 de março de 1895 os irmãos Auguste e Louis Lumière exibiram La sortie de l’usine Lumière
à Lyon, ou A saída da fábrica Lumière em Lyon, para um pequeno público, evento considerado marco
inicial do cinema.
14 Tradução do termo silent movie, criado posteriormente para distinguir estes filmes dos chamados
falados (no original, talkies, sound films ou ainda talking pictures).
13

fazer qualquer ligação entre as duas artes.


Como uma evolução natural desse processo, aos poucos foram se tornando
mais conhecidos e solicitados aqueles instrumentistas que conseguiam adequar sua
música às cenas, improvisando livremente ou em cima de temas conhecidos,
criando a atmosfera que julgava mais coerente ao que estava sendo visto na tela.
Num dado momento, houve a necessidade por parte dos diretores de
determinar um conteúdo sonoro-musical próprio que se relacionasse às suas obras
em vez de depender apenas do senso estético dos músicos em cada projeção,
exemplos disso foram Charlie Chaplin e Sergei Eisenstein.
Chaplin, nos Estados Unidos, passou a compor ele mesmo partituras que
eram entregues aos pianistas para acompanhar seus filmes e Eisenstein, na União
Soviética, desenvolveu um verdadeiro estudo sobre o assunto 15, além de recorrer a
compositores consagrados como Prokofiev e Shostakovich16 para a criação de peças
específicas para seus filmes (SALLES, 2014, l. 409).
Com Don Juan em 1926 e The Jazz Singer em 1927, o Vitaphone17 trouxe
uma primeira amostra das possibilidades criativas de um filme com efeitos sonoros,
músicas e vozes sincronizados com a imagem. Estava dado início verdadeiramente
ao que hoje chamamos de audiovisual.

2.2 Preparando os ouvidos

O desenvolvimento tecnológico foi uma constante na história do cinema


sonoro. Quanto à reprodução do som, os sistemas iniciais monofônicos (com apenas
um canal de reprodução) foram aos poucos substituídos, a partir da década de 1940,
pelos sistemas estéreo18, onde a reprodução contava na verdade com três canais,

15 O desenvolvimento do pensamento de Sergei Eisenstein sobre o cinema sonoro está presente em


seu livro O sentido do filme (Η μορφή του φιλμ), publicado pela primeira vez em 1942.
16 Sergei Prokofiev (1891-1953) e Dmitri Shostakovich (1906-1975), compositores, nascidos no
Império Russo, aclamados como dois dos maiores do século XX.
17 Desenvolvido pela Warner Bros., foi o primeiro método utilizado em larga escala capaz de
sincronizar eletronicamente a execução do som (através de um disco fonográfico) com as imagens
exibidas pelo projetor.
18 O sistema estéreo teve início com o lançamento, em novembro de 1940, do filme Fantasia de Walt
Disney, exibido com sistema sonoro próprio chamado Fantasound, a partir deste momento vários
desenvolvedores focaram seus esforços em criar algo semelhante.
14

um à esquerda, outro à direita e outro ao centro 19, e esses no final da década de


1970 pelo sistema Surround20 de quatro canais: esquerdo, direito, central e traseiro.
Esse sistema criado pela empresa Dolby, inicialmente responsável por uma
redução considerável nos ruídos resultantes das gravações e exibições em película
magnética21, culminou no sistema Dolby Digital 5.1, contando com seis fontes
sonoras: esquerda, central, direita, esquerda traseira, direita traseira e uma via para
baixas frequências, chamada subwoofer22.
Desde 1987 o padrão mínimo para reprodução em cinema foi determinado
pelo comitê da SMPTE23 como o 5.1 (cinco ponto um). E ainda hoje os dois
principais sistemas existentes Dolby Digital e DTS Digital Cinema trabalham com o
áudio neste formato.
Existem ainda o SDDS (Sony Dynamic Digital Sound) e alguns modelos não
convencionais de DTS que adicionam mais dois canais ao formato, criando o
chamado 7.1 (sete ponto um), que passa a contar com: esquerda, esquerda central,
centro, direita central, direita, esquerda traseira, direita traseira e subwoofer. Apesar
do aparente ganho em qualidade e possibilidades que se poderia ter com um
sistema de oito canais, muitas vezes a instalação do sistema SDDS acaba sendo
simplificada para 5.1 (HOLMAN, 2010, p.190).
No ambiente doméstico, os aparelhos de televisão em geral trazem um
sistema estéreo, apesar de ainda ser comum encontrar, ao menos na realidade
brasileira, aparelhos nos quais a fonte sonora é única.
Para os mais interessados e com condições para tal, pode-se contar com um
sistema de home theater, que busca recriar a experiência sonora-cinematográfica,
permitindo a execução dos 6 ou 8 canais presentes em seu DVD, Blu-ray ou serviço
de streaming.
Diversos fatores podem influenciar positiva ou negativamente o resultado

19 O canal central servia para minimizar o chamado deslocamento do centro fantasma, que ocorria
pela diferença de velocidade com que as fontes sonoras laterais levavam para atingir os ouvidos dos
espectadores situados nas extremidades das salas de cinema.
20 Surround (que poderia ser traduzido como ao redor) é uma técnica que recria um ambiente sonoro
mais realista ao permitir a percepção de som proveniente de qualquer direção horizontal,
acrescentando fontes sonoras além das comumente instaladas somente à frente do espectador.
21 A gravação do som, por esse sistema, deixou de ser feita de forma magnética e passou a ser feita
de forma ótica.
22 Capaz de reproduzir frequências subgraves (abaixo de 63 Hz), que não são atingidas pelos
woofers (alto-falantes) convencionais.
23 A Society of Motion Picture & Television Engineers (Sociedade de engenheiros de filme e
televisão), é a associação internacional responsável pela regulamentação dos processos
audiovisuais.
15

desses sistemas caseiros, desde a não observância de conceitos básicos para a sua
instalação ou o tratamento do ambiente no qual será instalado até a qualidade dos
equipamentos em si, esses fatores combinados podem resultar em uma experiência
bastante diferente da planejada pelos profissionais que a desenvolveram, como
apontado por Holman (2010):

O ambiente doméstico é muito diferente do ambiente do cinema, de


qualquer forma, muitas vezes necessitando de algumas alterações para
garantir uma boa tradução do som de um local para outro. Enquanto as
finalidades dos sistemas de cinema são bem conhecidos e, pelo menos, às
vezes atendidos pela aplicação de padrões amplamente respeitados, os
sistemas domésticos não são bem definidos pelos padrões. Além disso, o
equipamento para o grande e fragmentado mercado consumidor mostra
uma variação maior de qualidades do que o equipamento projetado para
uso em cinemas (HOLMAN, 2010, p.198, tradução nossa)24.

24 “The home environment is very different from the theatrical environment, however, often requiring
some changes to ensure good translation of sound from one venue to the other. Whereas the goals of
theater systems are well known and at least sometimes met through the application of widely
respected standards, home systems are not well defined by standards. Also, equipment for the large
and fractious consumer market shows a greater range of quality than does the equipment designed for
theatrical use”.
16

3. Planejando o som

Além de todo o avanço em termos tecnológicos, ao longo do tempo o próprio


princípio do que se espera de uma criação sonora para um filme foi sendo alterado,
necessitando cada vez de profissionais mais especificamente qualificados.
Assim como qualquer outra parte dentro do conjunto de atividades
necessárias para a criação de um filme, o processo de sonorização tem seu
princípio muito antes do início das filmagens.
Na pré-produção são analisadas as necessidades tanto da equipe que será
formada quanto de equipamentos que terão de ser disponibilizados para a captação,
tratamento e finalização de todo o som do filme, adequando da melhor forma as
necessidades ao orçamento disponível.
As leituras de roteiro e ensaios que podem acontecer nesse período são
importantes para que o responsável pelo som possa avaliar os timbres e entonações
dos atores e a interação com o diretor e os demais departamentos permite uma
análise das interferências acústicas que podem vir a ocorrer por conta dos
ambientes de locação, cenários, objetos de cena e figurinos.
Todos esses fatores acabam por influenciar diretamente na escolha dos
equipamentos que serão utilizados, especialmente microfones, o que torna o
planejamento indispensável para que não se perca tempo nos dias de filmagens e
para que tudo possa ocorrer sem maiores problemas e dificuldades, já que
alterações, atrasos e intervenções no processo durante a produção significa, de
maneira geral, gastos não planejados.
17

4. Captando o som

Por muito tempo o som que se tinha gravado durante o período de filmagem
servia apenas como guia para uma gravação posterior com maior qualidade, os
atores precisavam ir a estúdios específicos depois de realizarem suas cenas para
recriarem suas falas, pois o set de filmagem costumava ser muito barulhento: os
ambientes não eram bem isolados e os próprios equipamentos geravam muitos
ruídos; além disso, os microfones e gravadores não permitiam a mobilidade
necessária para que se acompanhasse os atores em cena.
Embora o avanço na tecnologia já permitisse a captação do som com maior
qualidade in loco há algum tempo, essa forma de gravação perdurou no Brasil até
meados dos anos 1970, principalmente pelo costume do fluxo de trabalho dos
antigos diretores (FLORES, 2008).

4.1 O som direto e o momento

O som direto nada mais é que o som gravado durante a filmagem das cenas.
Em geral, são as falas, sejam elas diálogos em filmes de ficção ou os depoimentos
em filmes documentários, mas pode se estender também para sons ambientes e
efeitos práticos, que posteriormente serão tratados de forma diferente.
A equipe de som direto é formada pelo técnico de som direto, que estrutura e
coordena o trabalho, o microfonista, que posiciona os microfones de forma a obter a
melhor captação possível, e o assistente, que auxilia a montagem, desmontagem,
transporte, manutenção dos microfones, gravadores, bem como cabos, pedestais,
baterias, fontes de energia e demais itens necessários (HOLMAN, 2010, p. 56).
O trabalho do som direto depende, além do conhecimento técnico, de
equipamentos que sejam capazes de realizar seus três processos básicos: o
microfone que realiza a captação, o gravador digital responsável pelo registro e os
fones de ouvido que permitem a monitoração.
Existem diversos tipos de microfone, que serão escolhidos de acordo à
18

necessidade, como dito anteriormente, mas não se pode deixar de citar os dois tipos
de microfones mais usados. O microfone de lapela, que em geral pode ser
posicionado na roupa, na altura do dorso, facilitando a captação da fala
principalmente para documentários ou entrevistas, onde um microfone estar à
mostra não caracteriza um problema; e o shotgun, que é um microfone muito
direcional, “[…] projetado para obter o som em um ângulo estreito enquanto
permanece menos sensível aos sons de outras direções. É ótimo para isolar o alvo
em um grupo ou para excluir ruídos próximos” (MILLERSON e OWENS, 2008, p.
204, tradução nossa)25 o que permite que o seu posicionamento fora do campo de
visão da câmera ainda resulte em uma boa captação de som.
Juntamente do shotgun, é comum que se utilize o boom26, um suporte
comprido que dá maior mobilidade que um pedestal comum, já que seu propósito é
ficar o tempo todo nas mãos do microfonista, sendo direcionado de acordo com a
movimentação dos atores em cena. Também é comum, que em ambientes externos,
se utilize uma capa27 metálica, de pelos ou espuma para proteger o microfone contra
o vento.
Ainda que tudo tenha sido planejado e que a equipe de som direto possa
solicitar a regravação de alguma cena por conta de problemas técnicos com o áudio,
algumas situações podem requerer um maior cuidado ou até mesmo uma
substituição posterior.

4.2 A dublagem e a adaptação

Como dito anteriormente, houve um período na adaptação do cinema mudo


para o falado onde o som captado durante a filmagem servia somente de guia, mas
as facilidades de sincronização, a economia de tempo na pós-produção e o ganho
com a interpretação dos atores prevaleceu sobre esse costume, entretanto, ainda
existem situações onde é necessário que haja a substituição do som original, seja

25 “[...] designed to pick up sound within a narrow angle while remaining less sensitive to sounds from
other directions. It is great for isolating a subject within a crowd or for excluding nearby noises”.
26 Em inglês se usa o termo boom operator para designar o microfonista.
27 Zeppelin, windscreen, windjammer, wildshield, etc, são diversos os tipos de capas para microfones
shotgun, possuindo materiais e aplicações diferentes.
19

pela qualidade do som ou da própria pronúncia e interpretação do ator não estarem


no nível esperado, seja por interferências externas não percebidas durante a
filmagem, seja pelo local escolhido para a cena não favorecer a uma boa captação
sonora.
Essa dublagem é chamada de ADR (automated dialog replacement ou, em
português, substituição automatizada dos diálogos) e nada mais é que a gravação
da voz com o mesmo ator em um estúdio depois da conclusão da cena. Nestes
casos, entra em cena o diretor de dublagem, que vai organizar o processo,
buscando junto aos atores a qualidade emocional da cena original e junto à equipe
de som as melhores formas – através da escolha de microfones e ambientes – de
simular a condição sonora original (ROSE, 2015, p. w12-w14).

Uma desvantagem no desempenho da gravação de ADR é que o ator


encara uma sala quieta e sem vida com pouca resposta acústica se
comparada ao que está acontecendo na tela. [...] A não correspondência na
perspectiva do microfone entre o som da filmagem e as gravações feitas
num looping28 ou ADR é uma das mais reveladoras diferenças que podem
impedir que as duas soem parecidas (HOLMAN, 2010, p. 70, tradução
nossa)29.

É essa a mesma função desempenhada pelo responsável pelas narrações em


off e pelos diálogos que serão a base de um filme animado 30. E será também um
outro profissional desempenhando essa mesma função que posteriormente tratará
de adaptar os diálogos, escolher vozes e coordenar o processo de dublagem ou
localização para uma outra língua.

A parte mais importante ao se preparar para dirigir uma dublagem é


descobrir como ela deveria soar. Isso significa ouví-la adequadamente em
sua cabeça, o que pode ser difícil para pessoas orientadas pelo visual
(ROSE, 2015, p. w19, tradução nossa)31.

28 Várias gravações ou takes de uma mesma cena.


29 “A performance disadvantage of ADR recording is that the actor faces a dead and quiet room with
little acoustic response compared to what is happening on screen. [...] Failure to match microphone
perspective between production sound and recordings made on a looping or ADR stage is one of the
most telltale differences that may prevent the two from sounding alike”.
30 Já que em uma animação o som das falas é gravado primeiro e somente depois, com base nele e
no registro dos movimentos corporais e labiais dos atores, é criada a movimentação dos
personagens.
31 “The most important part of preparing to direct a voice-over is figuring out how it should sound.
That means hearing it properly in your head, which can be difficult for people who are visually
oriented”.
20

4.3 Os efeitos, ambientes e a criação

Além das falas dos atores, existem diversos outros sons que fazem parte do
universo de cada cena. Muito do que faz com que uma cena pareça natural são os
sons de fundo presentes nos ambientes, eles ajudam a compor e a dar unidade a
um conjunto de imagens. Um som ambiente que se mantém constante, disfarça as
pequenas diferenças que podem haver por conta dos diferentes trechos utilizados na
edição, por isso é interessante que se grave no local da cena alguns momentos de
“silêncio”32 para que se possa usar posteriormente se necessário.
Também é importante que se tente gravar, durante as filmagens, os efeitos
sonoros dos objetos em cena. Se for possível ter microfones adicionais direcionados
a esses objetos “o resultado será um efeito prático (pfx33) que combina com a
acústica da sala e está perfeitamente sincronizado” (ROSE, 2015, p. w28, tradução
nossa)34, se não for possível gravar durante a cena em si por conta de os microfones
ficarem à mostra ou porque o efeito interfere na qualidade da captação do diálogo,
pode-se ainda refazer esses momentos somente para gravar os efeitos, sem a
necessidade de gravar novamente toda a cena.
Em último caso, se por qualquer motivo não for possível gravar esses
detalhes no momento da filmagem, os efeitos e sons ambientes terão que ser
recriados em estúdio ou adaptados de bancos de sons35 ou da biblioteca pessoal
dos responsáveis pela edição.

32 Esse “silêncio” é chamado de room tone, e caracteriza o ambiente em momentos onde não há
diálogos.
33 Pfx’s, production effects, são efeitos sonoros que ocorrem no set durante as filmagens.
34 “The result will be a production effect (pfx) that matches the room’s acoustics and is perfectly in
sync”.
35 Bibliotecas que podem ser adquiridas com diversos efeitos sonoros e ruídos ambientes para uso.
21

4.4 O foley36 e a recriação

Muitas vezes os sons captados em uma cena não são satisfatórios para
compor a sua atmosfera, sendo preciso que sejam reforçados ou recriados
posteriormente através da arte do foley, “[...] porque gravações de foley exageram
os sons da vida real para torná-los audíveis” (HOLMAN, 2010, p. 162, tradução
nossa)37. O foley é a

[…] técnica de se reproduzir em estúdio todo o som gerado pela atividade


física dos personagens, por meio de ‘mímica’ de seus movimentos. Passos,
ruídos de roupas, manejo de objetos, quedas e outras ações são imitadas
pelos artistas de foley enquanto assistem à cena e gravam seus sons
(BERCHMANS, 2012, p. 176, grifo do autor).

Enquanto que num pequeno projeto essa função seja quase inexistente, em
animações e filmes de grande orçamento esses artistas são extremamente
valorizados e requisitados, realizando também a criação de outros sons, além dos
referentes aos atores, que são de difícil captação, como, por exemplo, chuva, vento,
pássaros, etc.
Os artistas de foley precisam ser criativos e inventivos, experimentar diversos
materiais e diversas formas de interagir com eles, e seu trabalho deve ser realizado
junto ao do editor de som, pois além de gravar sua atuação, pode ser necessário
que se somem diversos sons diferentes para alcançar o resultado desejado.

36 Título dado em homenagem a Jack Foley, criador de diversas técnicas de efeitos sonoros, tendo
desenvolvido métodos para realizar os efeitos ao vivo em sincronia com o filme na sua pós-produção
já nos anos 1930. No Brasil, muitas vezes se chama o foley de sonoplastia.
37 “[...] because Foley recording exaggerates real-life sounds to make them audible”.
22

5. Editando e transformando o som

Após o fim das filmagens, geralmente, a equipe de montagem é a


responsável por fazer a primeira junção entre a imagem e o som relativos a cada
cena e será esse o material base para a equipe de edição de som trabalhar,
podendo ainda essa equipe se dividir, para facilitar o fluxo de trabalho, em editor de
diálogos, editor de ambientes, editor de foley, editor de música e editor de efeitos
especiais.
O editor de diálogo, mesmo recebendo as cenas base com o som e a imagem
já sincronizados, precisa ainda organizar o material bruto vindo do som direto para
facilitar possíveis substituições. Seu trabalho busca também unificar o som das
falas, amenizando a diferença entre os takes, eliminando ruídos indesejados e
separando os sons que foram gravados para serem usados posteriormente como
efeito.
O editor de ambientes deve pensar em unificar, através do som, todo o plano
em que estiver trabalhando, desenvolvendo múltiplas camadas que podem ser
formadas pelos ambientes gravados nas locações onde foram feitas as tomadas de
som direto, os room tones, somados ou não a outros sons ambientes de bancos de
sons ou, até mesmo, novas gravações que julgue necessário fazer para acrescentar
qualidade ao projeto.
Para Holman (2010) a constância no ambiente é de fundamental importância
para o sentido de continuidade das cenas:

O ambiente desempenha um papel muito significativo na continuidade da


cena. Se o ambiente se mantém constante através do corte na imagem, ele
diz subliminarmente para a audiência que apesar de talvez termos mudado
nosso ponto de vista, nós ainda estamos no mesmo espaço (HOLMAN,
2010, p. 163, tradução nossa)38.

A edição de foley se difere da edição de efeitos pois esta última é incluída na


categoria dos ruídos não provenientes da ação humana, como, por exemplo, sons
da natureza, de motores ou de explosões. De acordo com Stiller (2017, p. 32-33), o

38 “Ambience plays a significant role in scene continuity. If ambience stays constant across a picture
cut, it says subliminally to the audience that although we may have changed our point of view, we are
still in the same space”.
23

trabalho do editor de efeitos é enriquecido quando feito em três camadas: a primeira


para sons em sincronia com a fonte que você vê em tela, a segunda para sons fora
de sincronia ou cuja fonte não se pode ver e a terceira para sons que não fazem
parte do mundo dos personagens39; pois assim ele não se sobrecarrega e consegue
criar estruturas complexas, mas ainda funcionais.
A edição de música, quando se trabalha com músicas já existentes, depende
principalmente de um bom conhecimento musical por conta do editor para que sejam
possíveis cortes e ajustes que privilegiem os fraseados mais interessantes para os
momentos propostos sem que se descaracterize a música como um todo ou perca-
se sua essência.
Em trabalhos com músicas originais, a sua edição pode se confundir com o
próprio processo de composição e produção musical do filme, já que esta etapa
normalmente é realizada independentemente da equipe de edição de som. Os
responsáveis pelas composições normalmente baseiam suas ideias no roteiro,
indicações do diretor e nas primeiras montagens feitas, o que, não raramente, exige
ajustes para o corte final. O comum nesses casos é que as músicas sejam
entregues na etapa de mixagem, o que não prejudica o processo, já que ela será o
último elemento sonoro a ser equilibrado.

Em um longa-metragem ou outros projetos grandes, a música é geralmente


tratada separadamente. Um compositor escreve e grava as partituras
enquanto o resto das faixas de áudio estão sendo desenvolvidas e mixadas.
A música então é adicionada como último passo na mixagem (ROSE, 2015,
p. 121, tradução nossa)40.

39 Os sons não-diegéticos, aqueles que os próprios personagens não ouviriam.


40 “In a feature film or other large project, music is often treated separately. A composer writes and
records the score while the rest of the track is being developed and mixed. The music then gets added
as the last step in mixing”.
24

6. A mistura de sons

A mixagem é a etapa final de todo o processo sonoro do filme, nela todos os


sons são unidos para um resultado final que soe uniforme e que esteja dentro dos
padrões de exibição, por isso, podem haver mixagens diferentes para cada caso,
como para a exibição em cinemas ou para o lançamento de um blu-ray, por
exemplo.
Também é necessário que se faça uma outra versão dos arquivos de áudio, a
chamada banda internacional41, ou seja, todo o som do filme com exceção das falas.
Essa versão será utilizada para a adaptação em outros idiomas.
Enquanto a mixagem para pequenos filmes e filmes independentes pode ser
realizada em pequenos estúdios com o mínimo de equipamentos disponíveis, a
mixagem para cinema costuma ser feita em grandes ambientes, até mesmo
cinemas, com diversidade de auto-falantes e equipamentos, e é comum ainda que
seja feita por dois profissionais ao mesmo tempo, um responsável pelos diálogos e
as músicas e outro pelos efeitos sonoros e ambientes (STILLER, 2017, p. 35).
Durante a mixagem serão escolhidas, de todas as informações sonoras
adicionadas e tratadas durante o processo de edição, quais serão evidenciadas;
nosso cérebro faz isso naturalmente no nosso dia a dia, direcionando nossa atenção
apesar dos outros sons presentes nos ambientes em que estamos, como explica
Berchmans (2012) no parágrafo seguinte:

Apesar de todo este volume de informação, você ainda consegue manter


um ‘foco’ auditivo e se concentrar em cada fonte sonora e identificar cada
elemento com razoável precisão. Isto porque nosso cérebro faz uma
seleção de qual fonte sonora queremos ouvir. Em outras palavras, você
escuta tudo, mas só ouve o que quer. No cinema, a mixagem é responsável
por fazer essa seleção para você (BERCHMANS, 2012, p. 186).

Por ser a mixagem a última etapa no processo sonoro de um filme o seu


resultado é o que o público realmente ouvirá; por isso, muitas as vezes a
responsabilidade final de sua realização fica a cargo do próprio sound designer42.

41 Também utiliza-se a sigla da nomenclatura original: M&E (music and effects).


42 Assim como ocorre com o termo sound design, a tradução do termo para sonoplasta não é de uso
25

7. Desenhando o som e criando o universo

Em algumas literaturas, encontra-se o uso do termo sound designer como


forma de tratar o profissional responsável pelo desenvolvimento de sons especiais,
diferentes dos que poderíamos simplesmente captar.

Conceitualmente, sound design (ou desenho de som, como em português


pode-se chamar) é a criação, manipulação e organização de elementos
sonoros. É o processo que reproduz o rugir de um tiranossauro rex, ou o
som de uma arma-laser, o tiroteio de uma sangrenta batalha, ou ainda, a
voz de um computador futurista (BERCHMANS, 2012, p. 176).

Mas essa não é a origem do termo. Até 1979, em geral, a pós-produção da


parte sonora de um filme em Hollywood era feita por duas equipes: uma que editava
e preparava as faixas e outra responsável pela mixagem final. O termo sound
designer surgiu, então, para diferenciar a forma de trabalho desempenhada por
Walter Murch em Apocalypse Now daquela realizada anteriormente pelos demais
profissionais.

[…] Walter Murch foi chamado, em Apocalypse Now, para lidar com todas as
tarefas de som de pós-produção, desde o trabalho conceitual nas faixas
meses antes da intensiva pós-produção se inciar, até a edição de som e a
finalização da mixagem (HOLMAN, 2010, p. 145, tradução nossa)43.

A partir de então, o termo passou a designar esse acompanhamento, essa


supervisão44 e aprofundamento dados para que todo o conteúdo sonoro faça parte
de uma obra cinematográfica e não esteja isolado dos demais aspectos dessa obra,
acrescentando conteúdo à narrativa e à estética do filme como um todo. Para
desempenhar bem o seu papel, o sound designer se envolve no processo
cinematográfico como um todo e o seu desenho é a demonstração prática disso.

tão comum no mercado cinematográfico quanto o original em inglês ou os termos designer de som e
designer sonoro.
43 “[…] Walter Murch was called upon, for Apocalypse Now, to handle all the postproduction sound
chores, from conceptual work on the track months before intensive postproduction began, through
sound editing and completion of the final mix”.
44 Até por isso, ainda é possível encontrar o uso dos termos diretor ou supervisor de som.
26

Um bom desenho de som está relacionado a todos os outros departamentos


no filme. Você usa sugestões de outros departamentos para o uso do som.
O som responde a outros departamentos. O som é uma voz independente
que fala por si só; diálogo, música, efeitos sonoros e ambientação. Mas o
som também é a voz do visual, a voz dos atores, e a voz da locação e dos
acessórios no filme (STILLER, 2017, p.10, tradução nossa)45.

O sound designer guia o som e contribui em todos os processos sonoros,


elaborando soluções para a captação do som, supervisionando ou até mesmo
realizando a edição e a mixagem do filme.

Lembre-se, o seu trabalho como sound designer é saber como se fazem


todos os trabalhos. Cabe a você ser capaz de separar cada elemento
sonoro e tratá-lo como cada profissional faria. É seu trabalho trazer uma
proximidade criativa para o diretor (STILLER, 2017, p. 36, tradução nossa) 46.

45 “A good sound design pays attention to all the other departments in a film. You take your cues for
the use of sound from other departments. Sound responds to other departments. Sound is an
independent voice that speaks for itself; dialogue, music, sound effects and ambience. But sound is
also the voice of the visual, the voice for actors, and the voice for the location and props in the film”.
46 “Remember, your job as a sound designer is to know how to do all the jobs. It falls to you to be able
to pick apart each sound element and treat them as a professional would. It is your job to bring a
creative approach to the sound for the director”.
27

8. Considerações finais

O cinema, e as obras audiovisuais em geral, têm diversas vertentes e formas


de trabalho, seja como forma de expressão pessoal, meio de propagação de uma
ideia ou relatos dramatizados de universos históricos e/ou fantásticos, a sua
principal característica, no meu ponto de vista, é a abordagem e discussão de temas
variados, trazendo a diversão ou a inquietação em forma de entretenimento.
Quando terminamos de assistir a um filme, somos inundados com nomes e
informações dos diversos profissionais responsáveis pela existência daquela obra.
Apesar de poucas vezes darmos importância a essas informações, sabemos que
sem eles não poderíamos viver esse momento.
Busquei, através deste artigo, clarificar a existência e a importância de um
dos campos, a meu ver – e sustentado pelos indicativos de mercado e de divulgação
científica –, menos conhecidos do meio cinematográfico, e espero que de alguma
forma tenha ajudado para a valorização desses profissionais.
Os recursos sonoros são, não meros aspectos técnicos, mas elementos de
linguagem que afetam a obra como um todo. O desenho de som, como resultado do
esforço conjunto desses diversos profissionais é, então, o processo criativo e técnico
que possibilita a existência de todo o universo que envolve o público.
O som é a alma do que se vê em tela, aquilo ao que não damos a devida
atenção, mas que nos faria extremo mal se não estivesse presente.
28

Referências

BERCHMANS, Tony. A música do filme. 4. ed. São Paulo: Escrituras Editora, 2012.

BORDWELL, David; THOMPSON, Kristin. Film art. 9. ed. New York: McGraw-Hill,
2010.

CHION, Michel. Músicas, media e tecnologias. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.

EVEREST, F. Alton; POHLMANN, Ken C. Master handbook of acoustics. 5. ed.


New York: McGraw-Hill, 2009.

FLORES, Virginia. O som no cinema brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro,


2008. Disponível em: http://pt.scribd.com/document/130531295/O-Som-no-Cinema-
Brasileiro-Contempora-neo. Consultado em 02 de outubro de 2018.

HOLMAN, Tomlinson. Sound for film and television. 3. ed. Massachusetts:


Elsevier, 2010.

MILLERSON, Gerald e OWENS, Jim. Video production handbook. 4. ed.


Massachusetts: Elsevier, 2008.

ROSE, Jay. Producing great sound for film and video: expert tips from
preproduction to final mix. 4. ed. Massachusetts: Focal Press, 2015.

ROSENFELD, Anatol. Cinema: arte & industria. São Paulo: Perspectiva, 2013.

SALLES, Filipe. Música visual: um estudo sobre as afinidades entre som e imagem,
baseadas no filme Fantasia de Walt Disney. São Paulo: Fox Tablet, 2014.

STILLER, Murray. Sound design for filmmakers. British Columbia: Paw Print
Production, 2017.
29

TONKS, Paul. Film music. 2. ed. Hertfordshire: Pocket Essencials, 2003.

Bibliografia

CARRIERE, Jean-Calude. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova


Fronteira, 2006.

EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.

________, Sergei. O sentido do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.

VALLE, Sólon do. Manual prático de acústica. 3. ed. Rio de Janeiro: Música &
Tecnologia, 2009.

EISLER, Hanns. Composing for the films. Oxfordshire: Oxford University Press,
1947.

ALVES, Bernardo Marquez. O universo profissional das etapas da produção


sonora cinematográfica. São Paulo, 2009. Disponível em: . Consultado em: 27 de
novembro de 2018.http://pt.scribd.com/doc/47739583/O-Universo-Profissioal-das-
Etapas-da-Producao-Sonora-Cinematografica-Bernardo-Marquez-Alves

Você também pode gostar