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Estética Transcultural

NA UNIVERSIDADE LATINO-AMERICANA

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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

Universidade Federal Fluminense


REITOR
Sidney Luiz de Matos Mello

VICE-REITOR
Antonio Claudio Lucas da Nóbrega

Eduff – Editora da Universidade Federal Fluminense


CONSELHO EDITORIAL
Aníbal Francisco Alves Bragança (presidente)
Antônio Amaral Serra
Carlos Walter Porto-Gonçalves
Charles Freitas Pessanha
Guilherme Pereira das Neves
João Luiz Vieira
Laura Cavalcante Padilha
Luiz de Gonzaga Gawryszewski
Marlice Nazareth Soares de Azevedo
Nanci Gonçalves da Nóbrega
Roberto Kant de Lima
Túlio Batista Franco

DIRETOR
Aníbal Francisco Alves Bragança

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Estética Transcultural
NA UNIVERSIDADE LATINO-AMERICANA

NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

Copyright © 2015 Dinah Guimaraens


Copyright © 2016 Eduff – Editora da Universidade Federal Fluminense

Coordenação geral do projeto Capes/Cofecub – Comitê Francês de Avaliação da Cooperação


Universitária com o Brasil: Prof. Dinah Guimaraens – Escola de Arquitetura e Urbanismo/Programa
de Pós-Graduação em Arquiteura e Urbanismo, Universidade Federal Fluminense

Colaboradores:
Guilherme Werlang – Instituto de Artes e Comunicação Social, Universidade Federal Fluminense
Zeca Ligiero – Núcleo de Estudos das Performances Afroameríndias, Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro
Marina Vasconcellos de Carvalho – Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Aquitetura e
Urbanismo, Universidade Federal Fluminense

Capa, projeto gráfico e diagramação: Marina Vasconcellos de Carvalho

Apoio:

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da editora

Direitos desta edição cedidos à


Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense
Rua Miguel de Frias, 9, anexo/sobreloja - Icaraí - Niterói - RJ
CEP 24220-008 - Brasil
Tel.: +55 21 2629-5287
www.eduff.uff.br

Impresso no Brasil, 2016


Foi feito o depósito legal.
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APRESENTAÇÃO

“A Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana”


HISTÓRICO DO PROJETO CAPES-Cofecub n.752/12

A s linhas de atuação do projeto CAPES-Cofecub n. 752/12 foram idealizadas de modo


a fazer da universidade latino-americana um locus para práticas investigativas transculturais. Visam
essas linhas desconstruir o procedimento de bloqueio reflexivo e de primitivização das faculdades
humanas posto em prática pela pragmática contemporânea. O principal objetivo do projeto é fo-
mentar o intercâmbio entre o Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo/PPGAU
da Escola de Arquitetura e Urbanismo/EAU da UFF, o Programa de Pós-Graduação em Artes
Cênicas/PPGAC da UNIRIO e a Université Paris 8 – Saint Denis/UNESCO acerca de práticas
investigativas transculturais.
Atingir tal entendimento, alternativa única à perpetuação das hegemonias culturais, é o
objetivo geral de uma análise transcultural que lance mão de múltiplas vozes. A ênfase estética aqui
presente coincide com o esforço inicial já feito por uma rede de diferentes universidades latino-
americanas para o estabelecimento de Programas de Pós-Graduação e Institutos Transculturais, sob
a inspiração do próprio Poulain, coordenador da equipe francesa deste projeto. Tal proposta vem
pois se juntar a projetos inovadores já em curso em países vizinhos ao Brasil, como a Argentina, o
Uruguai, o Chile, o Equador, a Venezuela e a Bolívia.

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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

José Simões de Belmont Pessôa


Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade
Federal Fluminense – PPGAU/UFF

E ste livro é resultado da colaboração científica entre o Programa de Pós-


Graduação em Arquitetura e Urbanismo-PPGAU da Universidade Federal Flumi-
nense-UFF, o Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas-PPGAC da UNIRIO e a
Universidade Paris 8-Saint Denis. Colaboração esta viabilizada pelo programa de inter-
câmbio entre o Brasil e a França, CAPES-COFECUB, por meio do projeto “A Estética
Transcultural na Universidade Latino-Americana” iniciado em maio de 2012.
Coordenado pelo catedrático de Filosofia da Cultura e das Instituições da
UNESCO/Universidade Paris 8-Saint Denis, professor Jacques Poulain e pela professora
Dinah Guimaraens do PPGAU/UFF, o projeto atua numa abordagem filosófica, estética
e cultural, visando desconstruir o procedimento de bloqueio reflexivo das faculdades
humanas que tem sido posto em prática pela pragmática universitária contemporânea.
No período de desenvolvimento do projeto, entre maio de 2012 e dezembro de 2015,
coube aos corpos acadêmicos das instituições envolvidas – representadas, no lado francês
pelos professores Bruno Cany, Irma Medoux, Philippe Tancelin e Plínio Prado Jr., e, no
lado brasileiro, pelos professores Dinah Guimaraens, Guilherme Werlang, Zeca Ligiéro,
Charles Feitosa e Tiago de Oliveira Pinto – lançar mão de uma análise transcultural feita
de múltiplas vozes para se opor à perpetuação de hegemonias culturais.
O diálogo transcultural proposto pelo projeto nas áreas de artes visuais, ar-
quitetura, artes cênicas/performance e música conduziu a uma interdisciplinaridade
decorrente de um espaço dialógico e intercultural, permitindo o afloramento de reali-
dades autônomas que o filósofo Jacques Poulain conceitua como representando “uma
estética transcultural das percepções e das concepções de mundo que possa determinar
o horizonte cosmopolita das memórias e das expectativas de todos”. A interdisciplinari-
dade ficou marcada na realização de dois seminários, o primeiro em maio de 2013 no
Museu de Arte Contemporânea de Niterói, intitulado “Museus e Transculturalidade:
Novas Práticas Pós-Modernas”, que contou com a participação de agentes indígenas ur-
banos da Aldeia Maracanã, ao lado de índios Kamayurá, Yawalapiti, Aweti, Guarani e
Marubo; o segundo em maio de 2015 na UNIRIO, intitulado “Estética Transcultural:
Filosofia, Espaço e Performance”; e na construção de uma oca do Alto Xingu no cam-
pus da Praia Vermelha/UFF em novembro/dezembro de 2014, integrando a disciplina
“Arquitetura Indígena Bioclimática” ministrada pela professora Dinah Guimaraens.
É, então, com enorme satisfação que apresento aos leitores este livro, resul-
tado de uma pertinente colaboração entre instituições de ensino superior no Brasil e na
França, esperando que outros projetos surjam no meio universitário por ele inspirados!

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO
O desafio da antropologia intercultural para uma estética transcultural
Jacques Poulain 11
Tradução: Daniel Mendes Fernandes

Transculturalidade estética: experimentação pragmática da arte e da arquitetura


Dinah Guimaraens 18


Educação e cultura na formação da cidadania
Carlos Alberto Ribeiro de Xavier 30

Parte I
Práticas transculturais 37

Partilha da verdade universitária no campus da Praia Vermelha| UFF:


a construção da oca xinguana como protótipo bioclimático
Dinah Guimaraens e Marina Vasconcellos de Carvalho 38

Escola xamânica: arte e transculturalidade na Amazônia ocidental


Guilherme Werlang 48

Instituto Tamoio, povos originários e Aldeia Maracanã


Carlos Tukano 60

Antes ocas de palha, hoje teias de concreto


Carolina Camargo de Jesus 64

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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

Parte II
Ensaios: poética e estética 74


Antonin Artaud: o homem-teatro vindo do Alhures
Bruno Cany 75
Tradução: Guilherme Werlang

Museu, poesia e patrimônio imaterial em Alphonsus de Guimaraens


Lucas Guimaraens 84

De que corpo se trata no niilismo europeu e no niilismo brasileiro?


Charles Feitosa 89

A exploração da arte africana primitiva sobre a economia neoliberal


transcultural 95
Eyene Mba
Tradução: Daniel Mendes Fernandes

O surrealismo enquanto poética no mundo moderno
Augusto de Guimaraens Cavalcanti 100

Perfomando “Dona Mariana, princesa turca, cabocla curandeira, arara


cantadeira
Zeca Ligiéro 112

Musicologia e transculturação
Tiago de Oliveira Pinto 129

A antropologia intercultural para a transculturalidade de gêneros


Irma Julienne Angue Medoux 145
Tradução: Daniel Mendes Fernandes

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Parte III
Comunicações 151

Um caso em transculturalidade: Brasil e a arte-ethos do continente


afroatlântico
George Nelson Preston 152

Arte pública: educação em escolas públicas de Nova York
Liza Renia Papi 157

A transculturalidade como desafio epistêmico


Evandro Vieira Ouriques 164

O museu nacional latino do Smithsonian
Luis R. Cancel 177

O Museu Nacional do Índio Americano e a transculturalidade


Rosane Maria Rocha de Carvalho 182

Patrimônio imaterial como museografia


Jack Lohman 189

Preservando o patrimônio imaterial em casa: primeira nação Huu-ay-aht


(Nuu-chah-nulth)
Angela Wesley 195

MAMIWATA: dança em deslocamento


Denise Mancebo Zenicola 201

Interpretações Ticuna sobre a iconografia das máscaras rituais


Priscila Faulhaber 207

Temas transversais e cultura afro-brasileira e indígena


Norma Sueli Rosa Lima 214

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INTRODUÇÃO – Professor Jacques Poulain

Université Paris 8 – Saint Denis


Cátedra UNESCO de Filosofia da Cultura e das Instituições

O desafio da antropologia intercultural para uma estética


transcultural
Jacques Poulain
Tradução: Daniel Mendes Fernandes

O desafio de uma antropologia do diálogo: a configuração das figuras da


felicidade

A antropologia do diálogo explorou as origens da arte e da cultura retraçando


a dinâmica da comunicação, a qual constitui a base de qualquer experiência. Nascido
um ano mais cedo e desprovido de correlações hereditárias com o ambiente, o aborto
crônico – que é o homem – vive inicialmente um hiato entre seus aparelhos sensoriais
e motores. Não consegue ele se agarrar a um estímulo para ativar um programa motor
tal como fazem os animais bem formados e nascidos no tempo certo. Dessa forma, o ser
humano teve de se prender a uma linguagem, fazendo o mundo falar, para aí encontrar
a felicidade ligada à escuta intrauterina da voz da mãe. O movimento de emissão e re-
cepção dos sons permite que se prenda a realidades e goze delas encontrando o que lhe
interessa. No entanto, o uso dos olhos, das mãos e de todos os órgãos de seu corpo só
foi possível quando projetou, pelo uso dos olhos, esse movimento de emissão e recep-
ção próprio à linguagem, conferindo às suas percepções visuais um valor igualmente
gratificante que confere aos sons que recebe e pelos quais se imagina recebendo a fala
do próprio mundo. Essa propriedade do uso dialógico da linguagem foi descoberta pelo
linguista W. von Humboldt em 1836, e por ele foi chamada de “prosopopeia”. A antro-
pologia filosófica da linguagem de A. Gehlen mostrou, no século XX, que essa prosopo-
peia não se restringia à linguagem, mas que também se transferia para o uso de todos os
aparelhos sensoriais e motores: a visão, o tato, a manipulação das coisas e a locomoção
são vividos como projeção e recepção de sensações que são vividas como gratificações
tão significativas quanto os sons, e que podem ser registradas pela memória e, portanto,
reproduzidas como tais.
Distinta das experiências motoras e perceptivas quotidianas, a experiência da
arte encontra sua dinâmica específica na busca sistemática de todas as experiências do
mundo, de nós mesmos e dos outros que nos falam gratificando com voz de mãe, isto
é, nos respondendo de maneira necessariamente favorável. Descobriu-se esta também,
inicialmente, na experiência do sagrado. Porque a experiência de escutar o mundo que
fazemos falar não é apenas gratificante: esta nos permite acessar a realidade do mundo e
as diversas realidades que ele contém como aquelas que nos gratificam em razão de sua
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realidade. Portanto, a experiência do diálogo com o mundo também é cognitiva: ela nos permite reconhecê-
las como tais, tão gratificantes e satisfatórias quanto, sob o ponto de vista hedônico, é a realidade do mundo.
Em sua evolução filogenética, o ser humano se apoiou nessa dupla qualidade de resposta gratificante do
sagrado e de reconhecimento desse sagrado como realidade última para se orientar e se descobrir, pouco a
pouco, em si mesmo, naquela que ele deseja ser e na qual ele pode gozar de si mesmo ao alcançar sua própria
realidade, sua própria realização e, por conseguinte, sua própria felicidade.
Assim, a própria especificidade da arte surgiu ao se reconhecer como produtora das figuras da fe-
licidade, sem as quais o ser humano não podia viver e sem as quais não poderia encontrar sentido em sua
vida. No entanto, a autonomia dessa experiência se impôs com a rejeição do sagrado e dos mitos religiosos
operada pelo Iluminismo, pois esta se manifestou durante a Renascença e, em seguida, na Modernidade
como lugar de reconhecimento de sua própria verdade, ou como lugar de verdade do que é o ser humano.
No Romantismo alemão descobriu-se que a dinâmica dialógica da arte não era somente a da arte, ou seja,
ela determinava também a dinâmica da vida mental e social humana, tanto quanto a dinâmica de sua
imaginação. A imaginação produtiva permaneceu sendo um mistério, de tal maneira que foi reduzida a uma
qualidade visual ou pictórica. Ao descobrirmos que a imaginação humana é comunicacional ou dialógica,
não somente percebemos que a renovação da vida mental não era redutível a esse fluxo de serialização se-
quencial – tal como parece ser para a consciência que tomou consciência disso –, mas também permitimo-
nos compreender que o diálogo consigo mesmo – que para Platão já era a alma – ditava a lei de renovação
da consciência e que sua criação das figuras de felicidade guiava a escolha das formas de vida, nas quais o ser
humano pode se reconhecer se reconhecendo que é feliz por se deleitar com uma obra de arte. Esse diálogo
consigo mesmo não é puro prazer de si mesmo na invenção de suas formas de vida: o ser humano somente
alcança seu destino quando julga que este é realmente, ou não, as formas de vida e felicidade das quais goza
ao reconhecer que atendem às suas expectativas de felicidade. Deve ele julgar se são realmente, ou não, essas
formas de rearmonização verbal e mental consigo mesmo, com o outro e com o mundo que teve de imaginar
que o era para conseguir imaginá-las, dar-lhes existência e permitir através delas, sua própria existência.
A criatividade do pensamento e da imaginação não mais pode ser pensada com base no modelo do
“gênio”, isto é, de uma natureza inconsciente que imprime suas regras à arte, como afirmava Kant. É esta
ativada pelo reconhecimento e/ou julgamento da forma em que vivemos, segundo o qual tal forma de vida
não mais nos satisfaz, mas reside em uma posição tal que nos coloca distantes da nossa percepção de mundo
e de nossas expectativas: esta não acontece de maneira mágica como um evento que bastaria aguardar da
mesma forma que Heidegger aguardava o “último deus”. Depende esta desse sentimento de insatisfação que
torna insuportáveis para nós uma ou outra forma de vida, um ou outro mundo, uma ou outra conduta de
nós mesmos ou do outro. Depende, ainda do julgamento que distingue, no sentimento de infelicidade, o
sentimento de sofrimento, o que produz a insatisfação e o sentimento de não mais poder ser essa forma ou
nela se reconhecer. A criatividade do imaginário dialógico com nós mesmos e do diálogo artístico com o
mundo necessita do reconhecimento de um julgamento negativo de realidade e de verdade sobre a felicidade
que, inicialmente no passado, uma ou outra forma de vida nos havia proporcionado. Essa criatividade ativa
a busca pela nova forma de vida, pela nova obra ou pelo novo comportamento que atenda realmente às nos-
sas próprias expectativas ou às do outro e que nos permita, a nós mesmos e ao outro, que nos reconheçamos
nessa forma de vida como sendo nossa realidade comum.
A dinâmica do julgamento que dá vida à criatividade da criação artística, tal como a da nossa vida
mental e social, é o que permite que essa busca por figuras de felicidade – própria à arte e à nossa própria vida
– alcance algum lugar. Essa dinâmica é o que constitui a cultura, isto é, o conjunto de atitudes, estados de
alma, ações e julgamentos, o que nos possibilita fazer da nossa vida uma cultura que chegue ao seu destino e
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nos permita acessar o nosso próprio destino, dando-nos a oportunidade de, ao mesmo tempo, identificar as
expectativas de respostas favoráveis nas quais nós nos reconheçamos e possamos atender a essas expectativas,
seja realizando-as, encarnando-as ou encontrando nelas o nosso destino. Porque esse acordo de julgamento e
de felicidade com o mundo, com o outro e com nós mesmos é o nosso destino; destino que faz do acordo di-
alógico, do acordo de julgamento artístico ou do acordo de cultura uma realidade na qual somente gozamos
da felicidade que encontramos nesse acordo, quando nele reconhecemos a nossa própria realidade. Longe de
ser uma obra do acaso, somente gozamos dela quando a reconhecemos como sendo a realização presente do
esforço de toda a nossa vida passada.

O espaço dialógico e intercultural e sua neutralização musealizada

A busca por figuras da felicidade se expressa hoje no diálogo intercultural, na experiência de procu-
rar gozar das formas de vida culturais estrangeiras, como se elas fossem também as nossas, e conseguir obter
sucesso nesse intento. A antropologia do diálogo nos permite que as reconheçamos aprendendo a discernir
as formas culturais de vida e de arte, ausentes na nossa própria cultura e que ainda nos impedem de acessar
a nossa própria. Conduz-nos a uma concepção da memória das culturas que revoluciona profundamente
nossa relação com as “musas”, e com a memória das figuras da felicidade, artísticas ou culturais, que ha-
bitualmente denominamos de “museu”. Porque a função deste último é permitir que nos apropriemos de
todas as coisas que, nas culturas do mundo, atende às nossas expectativas e possamos relançá-las aos moldes
da imaginação dialógica que age em nós. Faz-nos também, participar de uma estética transcultural das
percepções e das concepções do mundo que possa determinar o horizonte cosmopolita das memórias e das
expectativas de todos.
Hoje, o diálogo intercultural é uma necessidade porque este se impõe como a única maneira de
poder superar o que se apresenta como a guerra das culturas. A globalização promovida pelo neoliberalismo
não consegue nos fazer reconhecer a cultura econômica do nosso comércio como destino cultural, necessário
e suficiente da humanidade. Refuta esta igualmente, o imaginário coletivo e sua busca cultural de sentido
na memória das tradições como se estas constituíssem os últimos refúgios de sentido e verdade de cada um.
Cada cultura imita, nesse refluxo, a caça globalizada aos monopólios que caracteriza o comércio de direitos,
de deveres e de bens no capitalismo avançado, num capitalismo que visa à maximização da fruição dos bens
respeitando a liberdade autárquica de cada um. Na caça à verdade, cada cultura afirma o valor e a verdade
de sua própria cultura como se as outras nada valessem. Nesse contexto, o diálogo intercultural surge como
uma necessidade, mas, com bastante frequência, este se contenta em promover uma busca pela compreensão
recíproca das culturas e prescrever o respeito pela cultura do outro como se essa cultura fosse uma pessoa
jurídica, em que bastaria reconhecer sua própria existência para reconhecê-la como tal.
A partir do momento em que a fala cultural do outro é responsável por uma memória de felicidade
e de expectativas de um reconhecimento universal das verdades presentes nessa memória, o respeito de sua
fala não pode continuar sendo puramente formal, arbitrário e moral. Estamos aqui empenhados em julgar,
queiramos ou não, se essas verdades e felicidades, pelas quais a cultura do outro é responsável, criam condição
para nós, como para este, de alcance do nosso destino, isto é, nossa própria humanidade. Tanto a compreen-
são das culturas quanto a obrigação de respeitá-las relativizam as culturas como patrimônios acidentalmente
adquiridos por grupos mais ou menos grandes e poderosos. Tal compreensão as considera como bolhas
fechadas em si mesmas que vivem apenas de consenso e rituais tribais, suficientes para proteger os indivíduos
contra ataques de outras culturas e outros grupos. Na globalização do comércio de mercadorias e no comércio
especulativo de ações da bolsa investidas pelos acionistas nas multinacionais, os quais constituem o horizonte
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dessas bolhas e desses refúgios culturais, as culturas surgem como experimentações de formas de vida que
são confirmadas ou anuladas pelo apoio consensual das comunidades que partilham. São estas, portanto,
privadas de suas capacidades de expressar, para todos, o destino cultural universal de todos. Além disso, a
compreensão recíproca que visa produzir um diálogo intercultural, unicamente preocupado em superar seus
antagonismos, obrigando cada um a respeitá-los formalmente, constitui a pior injustiça à qual essas culturas
poderiam ser submetidas, uma vez que delas são retiradas, de antemão, a possibilidade de contituirem uma
forma de felicidade e de verdade para todos como uma forma de vida universal. Na verdade, são subtraídas
delas mesmas o julgamento ao qual seus portadores aderem, reconhecendo a figura de felicidade e de ver-
dade que é a única que lhes permite ser o que eles julgam dever ser.
Essa despotencialização radical das culturas é acompanhada de uma despotencialização da arte e
do julgamento estético. A partir da modernidade, o julgamento estético parece revelar a maneira como a
criatividade artística se torna uma forma de vida. Esse julgamento oferece um modelo de sensibilização e
de realização da razão como faculdade de desejo superior. A arte aí, supostamente, demonstra a figuração
do desejo e da felicidade que atrai irresistivelmente para si a identificação dos indivíduos que a produzem.
Reconhece-se nela a beleza do fato de que essa figuração antecipa a satisfação que não se pode deixar de
desejar obter. A recepção dessa figura, tanto, pelo artista quanto pelos outros espectadores, deve se impor
sozinha, sem desvio de conceito, simplesmente porque foi recebida e compreendida de forma gratificante,
independentemente da sua atuação na realidade ou na ação.
A transformação experimental e pragmática dessa cultura artística reside na maneira pela qual bus-
camos nos apropriar dessa criatividade, experimentando-a seguindo o modelo da experimentação científica.
Como essa transformação pragmática da cultura da arte prolonga pura e simplesmente a transformação que
foi desenvolvida pelos tempos modernos, sua neutralização exige a remoção dos limites desse modelo, os
quais foram herdados de uma filosofia da consciência. É essa própria experiência de produção e de recepção
da figuração artística que é vinculada hoje, como objeto de experiência e apropriação direta dos efeitos dessa
experiência, às diferentes transformações pragmáticas da arte, como se verifica através da evolução exemplar
da pintura contemporânea, do impressionismo e do cubismo até a arte dita abstrata. Tal transformação pode
ser lida como uma adaptação do meio de figuração estética que visa ao prazer estético: a obra de arte é bela,
se e somente se, permitir gozar da experiência estética pelo simples fato de que nós a programamos como tal,
a percebemos como tal, e temos consciência de percebê-la realmente como tal.
De igual maneira, a relação com a felicidade reduzida como felicidade comum, na relação de sua
visibilização nas relações de justiça se encontra reduzida na arte do belo, quando neutralizamos seu valor cul-
tural colecionando seus diversos resultados visíveis num museu vazio de todas as musas que lhe davam vida.
A relação de visibilização das figuras da felicidade e do seu prazer no julgamento estético é frequentemente
reduzida, nos museus, à sua pura recepção visual e aos esforços de compreensão hermenêutica do sentido,
do qual seriam todos depositários e o qual seria necessário decodificar sem que se tenha as chaves para essa
decodificação. A dinâmica cultural da arte, da pesquisa e da apresentação das figuras de felicidade que nor-
teiam o diálogo de descoberta do mundo, do outro e de si mesmo é pura e simplesmente neutralizada. Os
patrimônios culturais surgem, assim, como incomensuráveis culturais: são estes respeitados e preservados
como monumentos visíveis de incompreensibilidade para seus visitantes e como monumentos imemoriais,
descarregados de sua memória viva.
Essa neutralização é derivada da redução do prazer estético àquela da percepção visual ou pic-
tórica e da redução do uso da linguagem em seu uso descritivo e científico. Através dela, todo imaginário é
pensado sob o modelo do imaginário visual e pictórico. Como o sentimento de deleite do belo natural ou
artístico é reduzido ao de uma surpresa reservada pelo mundo ou pela sensibilidade criadora, seus resulta-
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dos são supostamente, desde Kant e sua Crítica do Julgamento, universalizáveis para todos, sem que saib-
amos porquê. Proporcionam estes uma gratificação estética tão misteriosa quanto o mistério da criatividade
artística qualificada de especialidade do “gênio”, tão misteriosa quanto a ocorrência do mundo cujo caráter
sublime é reconhecido precisamente como o que está além de todas as nossas expectativas e se revela, por-
tanto, incomensurável em sua grandeza, infinidade e reprodução perpétua. E esta é tão misteriosa quanto
aquela que atribuímos ao ser humano como sendo a propriedade que o distingue dos outros seres vivos: sua
propriedade de ser pensante.
É assim que inventamos um mundo estético separado do que aquele que nos motiva a nele viver e
percebê-lo; um mundo separado do movimento pelo qual o fazemos falar por meio de percepções auditivas,
visuais, locomotoras, táteis e de manipulação. Damos a esse mundo o horizonte de uma espécie de prosopo-
peia visual em que reunimos as percepções, as obras culturais, as formas de vida institucionais nos museus
como se bastasse pendurá-las à altura dos olhos para evitar ter de compreendê-las, nos compreendermos
nelas e julgá-las como sendo,, ou não nossa própria realidade. Imitamos, assim, as ciências humanas que
nunca, antes, nos apresentaram tantas formas de vida, mas que são incapazes de nos fazer reconhecer as
formas de vida nas quais nós possamos nos reconhecer como nós mesmos, apresentando a nossa verdade, a
nossa real humanidade.
Mas esse mundo não pode mais ser reduzido à simples felicidade do olho senão no mundo em
que vivemos, pois ao suprimirmos do “museu” a musa que deu vida à reunião desses resultados suspensos,
suprimimos junto dele a nossa capacidade e a do mundo de falar. Novamente, reduzir o museu ao simples
ato de pendurar coisas bonitas à altura dos olhos depende da redução da vida do espírito a uma metáfora
da visão, a uma teoria descritiva do que produzimos como estética transcultural. O reconhecimento da
dinâmica de diálogo interno tanto na percepção como na ação de criação artística não caberia, portanto,
visar à construção de um museu intelectual reduzido a esse museu do olho, à pura e simples descrição da
existência do mundo transcultural.

O mundo-museu enquanto espaço de uma estética transcultural

Somente damos vida aos museus quando os inserimos naquilo que o diálogo intercultural produziu
como museu universal: o próprio mundo. O mundo, todos os dias, relança a nossa caça às musas, recorre ao
reconhecimento da invenção das figuras de felicidade, incluindo a infelicidade que afeta algumas culturas e
nos faz sofrer com sua falta. O mundo arranca essas figuras de felicidade do puro e simples deleite do belo,
reinserindo-as na percepção e na antecipação imaginativa das figuras da humanidade, nas quais a pressão de
uma infelicidade universal nos incita a nos reconhecermos. A emergência da alterglobalização, para a qual
tanto contribuíram os encontros de Porto Alegre, é indissociável da crítica ao neoliberalismo feita pelos mel-
hores economistas tal como Joseph Stiglitz, e da formação dos Brics, que reuniram recentemente os países
emergentes em Durban: esses fenômenos testemunham o reinvestimento das expectativas de felicidade co-
mum numa justiça social cosmopolita. O mundo, como lugar de interação das figuras de felicidade que este
obriga a inventar e realizar, se constrói, assim, como espaço de uma estética transcultural.
Não é necessário passar para o campo da geopolítica liberal ou antiliberal para notar a velocidade
com que a televisão propaga as infelicidades ligadas ao desprezo às mulheres verificadas em algumas cul-
turas. A dependência das mulheres em relação aos homens nos países mulçumanos, nos países que insti-
tuíram uma poligamia que as humilha ou ainda nos países em que se multiplicam os estupros, não somente
despertou o apoio daqueles que há séculos lutam pela igualdade cívica e civil das mulheres e dos homens.
Incentivou, de fato, que essas mulheres se juntassem em associações multinacionais para a defesa de seus
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direitos, bem como também as obrigou a reconhecer os fundamentos antropológicos dessa igualdade ao es-
tabelecer a paridade de uso do julgamento confiado aos dois sexos, em razão do uso comum da linguagem,
em quaisquer que sejam seus idiomas. O reconhecimento do que inspira essas descobertas é tão importante
quanto a que inspira o tratamento dos conflitos civilizacionais entre a Europa e as Américas. A publicação
dos 34 volumes da ética que reuniram a colaboração de intelectuais e universitários espanhóis, brasileiros,
sul-americanos e mexicanos é, nesse sentido, exemplar, na medida em que rompe as correntes do passado
de escravidão dos negros e dos homicídios de índios sem contestar suas consequências ainda em vigor, mas
transforma a análise do passado em exigências de justiça e felicidade social, e em motivações de emancipação
intelectual para o futuro.
Essas exigências de emancipação do julgamento em relação ao passado não nos isenta de promover
as exigências impostas pelo tempo presente. Não é menos urgente fazer esquecer, de uma vez por todas, as
falsas figuras da felicidade que invadiram o mundo sob a aparência das promessas de salvação populistas,
nacional-socialistas ou soviéticas no século XX, ou sob a aparência da economia de mercado liberal ou da
especulação gangrenosa do comércio de capitais. Há muito que a opinião pública internacional manifesta re-
cusa categórica em relação à injustiça perpetrada por essas falsas promessas, mas somos forçados a reconhecer
que as prescrições morais que acompanham essa recusa revelam-se incapazes de conter os efeitos. A utilização
dos museus de estilo clássico foi invocada, por exemplo, em Berlim, no Museu do Holocausto ou em Caen, no
Memorial da Segunda Guerra Mundial para superar essas catástrofes, mas há muito tempo esses monumen-
tos de memória revelaram-se insuficientes para impedirem a recaída nos excessos da barbárie que denunciam.
A percepção generalizada das infelicidades presentes exige que a antropologia intercultural nos dê acesso a
esse esquecimento necessário, retraçando a parasitagem das fontes de comunicação pelos mercados que as fez
surgir como únicas vias possíveis do progresso da humanidade rumo ao seu destino.
A confiança na equidade inerente ao mercado à qual convidava Adam Smith, vinha, como bem se
sabe, da dinâmica da comunicação que exige que os interlocutores respeitem, em suas trocas, as relações de
reciprocidade que vivenciam no diálogo em seus acordos e desacordos. A parasitagem dessas relações é con-
cebida de forma muito incompleta quando a alegada justiça inerente ao mercado é feita sob “a mão invisível”
do mercado. Deriva esta de um engodo mais profundo. Como fenômeno de secularização da salvação, her-
da, tal como revelado por Max Weber, as expectativas de retribuição do sagrado, análogas às que inspiravam
os candidatos protestantes à predestinação para a salvação. Porém, ainda mais profundamente, esse engodo
é depositário das chamadas e respostas de felicidade inerentes ao uso das emissões de sons e suas recepções,
na medida em que a emissão-recepção de sons gratifica infalivelmente a si mesma, em si mesma, pois aquele
que o emite – a criança que balbucia – não pode distinguir o som ouvido do som emitido quando o projeta
para o mundo e o consome num mesmo movimento. É essa a dinâmica de uma chamada de felicidade que
gratifica simultânea e infalivelmente a si mesma, que se projeta na relação das trocas do mercado para fazer
da experiência uma figura de felicidade que satisfaz, infalivelmente, a si mesma de forma imparcial. É como
relação indefectível de encarnação da justiça que essa relação faz gozar a si mesma como relação que somente
se incentiva a se tornar mais intensa e garantida ao reinvestir os lucros no capital da empresa. Essa relação de
justiça na troca do mercado não é simplesmente análoga à relação de diálogo concebida sob o modelo desta;
esta é a relação do próprio diálogo, o qual supostamente se aplica infalivelmente ao comércio de riquezas e,
em seguida, ao comércio de ações, à troca das operações do trabalho contra sua retribuição salarial, da mes-
ma maneira pela qual já se aplica ao comércio econômico das riquezas. É como gratificação comunicacional
que esta não tem mais a necessidade de passar pelos meandros de um conceito senão o julgamento estético
kantiano, quer lembre o deleite estético kantiano, quer inspire também a experimentação contemporânea
da arte, tal como inspira a experimentação pragmática do consenso democrático. É como tal que ele próprio
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se experimenta na especulação financeira sobre as ações das empresas, nas especulações sobre o comércio
bancário dos capitais ou bem como nesta instância que aborda as moedas nacionais dos Estados-nações ou
naquela que prolifera em ações imobiliárias. Garantida por essa consciência de justificabilidade inerente
aessa relação de comunicação dos indivíduos e dos grupos com o mundo social, essa estetização econômica
do mundo social está, antes de tudo, acima das leis. Quer seja bem-sucedida ou malsucedida, ela é, antes
de tudo, gratificada e feliz, uma vez que é apenas uma prova da liberdade autárquica por si mesma, que se
dedica assim a gozar infalivelmente de si mesma.
Portanto, não é magicamente que nós nos livramos do “horror econômico”, assim chamado por
Viviane Forrester, contentando-se em denunciá-lo ou descrever sua lógica. É preciso, ainda, conseguir intro-
duzir no seu desenvolvimento o que ele exclui de antemão, a intervenção de um julgamento de objetividade.
Não tem este, somente, de descrever os fatos do empobrecimento produzido, por exemplo, pelo investi-
mento de capital nos países de terceiro mundo e sua retirada arbitrária em boa hora, seguido de uma cura
de estabilização econômica imposta pelo Banco Mundial e pelo FMI com a ajuda da aplicação da receita
do Consenso de Washington, com o lema “liberalização da economia, seguida de privatização das empresas
públicas, seguida de austeridade imposta para reembolsar as dívidas”. É preciso, também, poder inventar e
julgar as intervenções políticas, econômicas e industriais necessárias nos diferentes jogos do mercado para
trazê-los de volta à razão, quer dizer, ao exercício de um julgamento objetivo de equidade e a um exercício
de julgamento partilhado por todos os parceiros sociais implicados, também analisado por Joseph Stiglitz
em seu ensaio Globalização: como dar certo. Apenas se conseguirmos fazer funcionar o julgamento feito por
todos sobre a estetização econômica do mundo é que teremos uma chance de mandar o neoliberalismo para
o calabouço de um museu capaz de tornar visíveis suas extravagâncias passadas e torná-lo esquecido.

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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

Transculturalidade estética: experimentação pragmática da arte e


da arquitetura

Dinah Guimaraens
Professora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universi-
dade Federal Fluminense, Coordenadora CAPES-Cofecub n. 752/12

A universidade se universaliza necessariamente dentro de um horizonte


de experimentação do homem pela comunicação, ao se reconhecer como
forma dada de toda comunicação [...] de seu ser teórico através de um pro-
cesso de experimentação dela mesma que é submetido a este julgamento
de verdade. (POULAIN, 1998)

Em eventos realizados, entre 2012 e 2015, no bojo do projeto de pesquisa “A


Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana”, na Universidade de Paris
8-Saint-Denis, na Universidade Federal Fluminense e na Universidade Federal do Es-
tado do Rio de Janeiro-UNIRIO, integrados pelos professores Dinah Guimaraens,
Guilherme Werlang, Charles Feitosa, Zeca Ligiéro e Tiago de Oliveira Pinto, do lado
brasileiro, e Jacques Poulain, Bruno Cany, Irma Medoux, Plínio Prado Junior e Phil-
lipe Tancelin, do lado francês, tivemos a oportunidade de discutir questões sobre a
reformulação ético-política do pensamento da imagem, passando à experimentação
pragmática da arte e da estética expressa em uma filosofia transcultural conceituada
por Jacques Poulain.
A tese apresentada pelo professor Bruno Cany, durante estes eventos, foi que a
modernidade do pensamento-artista é o pensamento visual como crítica à sociedade do
espetáculo, totalmente comunicacional e consumista. A imagem poética tem a vanta-
gem de não ser prisioneira da esfera técnica, e o pensamento-artista não reduz o pensa-
mento ao conceito e à lógica, na medida em que este emprega a polissemia, os símbolos
e as narrativas para criar a linguagem artística. Enfatiza Cany a relevância da pintura
metafísica de Giorgio de Chirico, ao destacar a reversão da música à imagem. A pintura
metafísica é, então, contemporânea da pintura pura ao recusar os limites da metáfora
musical.
O pensamento visual, que vê além da presença do visível, apreende a presença
ausente do invisível. E ao articular o ver-tocar-à-distância à palavra-matéria-sonora, a
imagem poética literária detém um considerável poder aglomerante de objetivação para
criar o “teatro da mente”. A poesia é um universal indeterminado, afirma ainda Bruno
Cany. O que é comum tanto para o artista-filósofo clássico (Platão e Nietzsche) quanto
para o filósofo-artista moderno (De Chirico e Artaud) é o teatro da mente do pensa-
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mento visual através da etnopoética, além dessas criações (De Chirico, Artaud) que se verificam constituir
um universal antropológico. Pensar a poesia no nível mundial e no contexto de uma antropologia filosófica
comporta, portanto, a criação poética em sua finalidade ético-política.

Poética ético-política filosófica em música, literatura e teatro



Em sua crítica literária, Charles Feitosa estabelece um diálogo filosófico sobre a transculturalidade
da cultura brasileira, tendo como inspiração a música dos Titãs para se referir às supostas formas brasileiras
de niilismo. Música e literatura são vasos comunicantes na cultura brasileira niilista, como revelado no
poema “Não-Nada”, que foi inspirado pelo “Nonada” inventado pelo escritor Guimarães Rosa. O termo
“Nonada”, que abre o Grande Sertão: Veredas (Diadorim, na versão francesa), é de extrema importância para
o significado do romance, e se tornou apenas “nada” na tradução inglesa. Curt Meyer Clason, famoso tradu-
tor da edição alemã, considera esse termo intraduzível, um dos “oito mil neologismos de Rosa” e, assim, o
transformou em quatro palavras, em uma frase principal composta por quatro sílabas, para tentar manter o
impacto: “Hat sich auf nichts”, onde “Nonada” é o que não importa e que, literalmente, não tem nada nele.
Feitosa não está sugerindo, em seu texto, que Rosa é um niilista, pelo contrário, emprega a apropriação de
um de seus “brasileirismos” como uma espécie de emblema para a pergunta: existe um niilismo à brasileira?
Na apresentação do livro de Phillipe Tancelin Quando o Caminho Retorna à Luta Poesia e Filosofia
(2005), Jacques Poulain pretende remeter a palavra às suas fontes: uma poética filosófica de resistência ao falar
sobre o Centro Internacional de Criação de Espaços Poéticos (CICEP), coordenado pelo próprio Tancelin e
que trata do encontro da poesia com as outras artes. Poulain sublinha ali os aforismos poéticos e filosóficos
que capturam o espírito intransigente das linhas de resistência desenhadas com ardor, mas com paciência, ao
longo de 35 anos de experimentação poética e teatral, engendradas juntamente com Geneviève Clancy.
De forma a alcançar uma visão filosófica sobre a única realidade que o homem pode viver no con-
texto deste mundo – no qual a intolerância, sob a denominação de liberalismo, imposta pela lei da selva no
mundo político produz seu oposto: a monopolização e a privatização frenética sob a denominação enganosa
de globalização –, Jacques Poulain opõe o hedonismo poético e a alegria do consumo da verdade poética,
anexando-os ao exercício do reconhecimento da crítica próprio do julgamento filosófico. O CICEP repre-
senta, então, para Poulain, uma utopia política que só expõe a dinâmica do discurso que anima na medida
em que anima todo o mundo na dinâmica do diálogo de compartilhamento da verdade. Aos aforismos
poéticos de Tancelin junta este reflexões filosóficas sobre as experimentações da pragmática artística através
das quais buscou, na verdade, restaurar em cada um a capacidade de perceber esta realidade como realidade
insuperável.
Para se obter tal resultado, devem-se unir os mais fortes prazeres poéticos numa crítica implacável,
removendo o transe autista e substituindo seu próprio transe pelo transe da verdade poética. Jacques Poulain
destaca que o transe autista da pragmática artística cria performances de “autismo chamânico” como ex-
pressão do fracasso da democracia liberal, o que, portanto, faz com que cada autista possa se dedicar a negar,
para si mesmo, o poder criativo e crítico de seu próprio discurso em seu próprio pensamento, não desfru-
tando de si mesmo a não ser nessa mesma negação. A transculturalidade estética proposta pelo CICEP com
a reunião da poesia às outras artes, simboliza uma “estética do coletivo” com a criação coletiva a partir dos
anos 1970 que ilustra este “estar junto” que representa o seu fruto. A imagem deve nos fazer refletir, final-
mente, sobre os desejos íntimos daquilo que Brecht chamou de Teatro, remetendo a uma nova compreensão
e ao desejo de apreensão sensível do significado de “viver junto dos homens”, como sugere Poulain.
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

Zeca Ligiéro foi o criador, em 1998, do NEPAA (Núcleo de Estudos das Performances Afroamerín-
dias) da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro-UNIRIO, com o objetivo principal de entender
por que as mudanças na vida social e cultural na América Latina levaram alguns países a buscar identidades
nativas e africanas, embora seus métodos de ensino não houvessem seguido tal tendência nos currículos,
mantendo, ao contrário, uma base essencialmente eurocêntrica. O objetivo do NEPAA, nos últimos 15
anos, consiste, portanto, no processo de ensino e aprendizagem do teatro com a análise da história das esco-
las de teatro no Brasil, tendo como base a Escola de Arte Dramática (Escola de Teatro) da UNIRIO.
Como educador, a pergunta feita por Ligiéro é esta: “Por que, apesar do conhecimento brasileiro
haver sido estabelecido em torno de três grupos étnicos: índios, europeus e africanos, as escolas (e as univer-
sidades) foram criadas simplesmente tomando como base uma dessas três tradições?” Tal conhecimento se
adequa a nossa tradição, e muda através da história do Brasil com as lutas de artistas e professores quanto às
crescentes exigências do poder público. Ligiéro acredita que um bom exemplo dessas mudanças educativo-
culturais reside na luta entre os métodos tradicionais do teatro burguês e outros tipos de teatro experimental,
em circunstâncias idênticas à significação dos restos de pequenas tradições africanas e indígenas americanas.
A lógica eurocêntrica partilhada pelo sistema escolar brasileiro vem sendo, então, criticada pelo
NEPAA por representar um modelo das pretensões hegemônicas estatais brasileiras no domínio cultural e
educacional. A propósito, três formas de erro escolástico foram destacadas por Bourdieu (1997), os quais
criam uma escola autômata como produto da constituição (e do próprio esquecimento) das restrições do
meio acadêmico com sua finalidade de conhecimento, em que a ciência estabelece o fim da ética (da lei e
da política) e da estética enquanto áreas de atuação a serem incorporadas aos campos de dissociação da
filosofia. Discorre Bourdieu, ainda, sobre o etnocentrismo escolástico que anula a especificidade da lógica
prática, quando se deve reenviá-la de volta à lógica escolástica na qual a alteridade radical a não existência
e o não valor do bárbaro como vulgar – como salientado na noção kantiana de “gosto bárbaro”–, acabam
conduzindo a um “bárbaro interior”.
A lógica da globalização parece se afirmar opondo-se a um “gosto bárbaro”, a partir de um consenso
de igualdade cultural universal. Na realidade, a desigualdade cosmopolita entre as culturas, orquestrada pela
globalização, depende da reivindicação hegemônica à verdade. Jacques Poulain destaca a primitivização das
diversas culturas, na qual a identificação com o consenso cultural reproduz a identificação dinâmica das
sociedades arcaicas à palavra dos deuses. A maior injustiça social gerada pela globalização parece produzir
o maior bem, a emancipação intelectual e cultural forçada de povos e indivíduos no que diz respeito às suas
condições materiais de existência e sua disposição para o consumo. O resultado deste aparente consenso
de igualdade da globalização cultural representa a autofalsificação da antropologia liberal na globalização,
simbolizando a incapacidade das democracias, nas chamadas culturas avançadas, de justificar a fundação de
seu poder sociopolítico sobre um conhecimento antropológico universalizado (POULAIN, 2001).

Lógica da globalização e abordagem transcultural universitária

Na sequência da reivindicação ilegítima de consenso cultural sublinhada por Poulain contra os afro-
-brasileiros e os nativos americanos, Zeca Ligiéro acrescenta críticas à hegemonia europeia nos conteúdos dos
currículos da universidade brasileira. Se esta experimentação humana cognitiva no diálogo intercultural pode
muito bem acompanhar a experimentação sociopolítica defendida pela generalização do capitalismo, a ex-
periência de consenso cultural não pode magicamente superar a guerra cultural desencadeada pela consciência
da injustiça econômica e social (POULAIN, in op. cit. p. 20). Desta forma, a identidade europeia no mercado
20
mundial, as multinacionais e as democracias deliberativas simplesmente reproduzem a postulação republi-
cana de igualdade civil e são, também, incapazes de estabelecer uma igualdade transcultural de julgamento
na república cosmopolita do diálogo.
Se uma abordagem transcultural universitária opõe ao comparativismo com a cultura europeia a ne-
cessidade de uma transdisciplinaridade acadêmica, Tiago de Oliveira Pinto mostra que a audição representou o
último dos cinco sentidos, em grau de importância, para os habitantes europeus que queriam experimentar algo
do universo sensorial tropical. Quando voltaram para seus países de origem, os viajantes da Europa nos trópicos
trouxeram com eles curiosos objetos, imagens e desenhos, – e, mais tarde, fotografias – de regiões distantes, ao lado
de relatos de locais fantásticos, cheiros, gostos e até mesmo equipamentos que ofereciam novas experiências táteis,
mas nunca seus respectivos sons. Em vez disso, para se concretizar de fato uma invenção tecnológica era necessário
preservar elementos do universo “ex-acústico”, como no caso do fonógrafo de Edison, de 1877.
A tecnologia europeia foi desenvolvida até o ponto de poder dar conta da gravação contemporânea
dos componentes musicais de sons dos índios norte-americanos. A intervenção de Guilherme Werlang
fala sobre os indígenas amazônicos Marubo, com um breve relato de Ivãpa (Vicente) sobre o mito-canto
Saiti-Mokanawa Wenía, – literalmente “O surgimento dos povos tóxico-amargos”–, revelando que foi este
ritual feito sem o contexto de um festival real, mas sim com a intenção deliberada de salvá-lo. O pesquisador
sentou-se em uma tapo-cabana perto da shovo-maloca, na comunidade Marubo de Vida Nova, no Alto Rio
Ituí, no Vale do Rio Javari, na Amazônia ocidental, em um quente meio-dia de abril de 1998.
A conclusão da pesquisa é que o tom e a duração são códigos homólogos que dividem as células mu-
sicais em frases e aquelas frases formam lacunas nas melodias e ritmos sucessivos no tempo, estabelecendo
espacialmente estruturas concêntricas e diádicas no caso de Mokanawa Wenía. Embora nem todos Saiti
sejam estruturas diádicas, essa função de estruturação das características de tonalidade e a duração de todas
as canções-mitos, do mesmo modo que as palavras que correspondem a essas notas musicais e aos intervalos
nos quais pulsam as frases, são sempre estruturadas em células compostas por versos de linhas verbais em
sucessão, através do qual a história mítica é contada poeticamente, com o uso de rimas e estrofes paralelas.
Sobre o significado simbólico e filosófico da poesia Saiti, o índio filósofo-artista-sul-americano não
é meramente um criador de conceitos, mas, sobretudo o criador da linguagem que traz à tona este pensa-
mento mítico, bem como o criador da forma singular pela qual o pensamento mítico organiza as palavras.
Bruno Cany, no prefácio do livro Que Pintura?, de Lyotard (2008), afirma que a literatura constitui o topo
desta filosofia da solidão que, desde Kierkegaard e Nietzsche, foi capaz de traçar os trilhos da arte literária.
A perspectiva musical, apresentada por Cany na pintura, é transcultural e simboliza “o amor de solilóquio
do pensamento e da expressão, este desejo infinito da discussão com outras pessoas que Lyotard nomeou Le
Différend (CANY, in op. cit., p. 7) e que aparece no mito-canto Marubo. Como o mito-canto Mokanawa
Wenía que é polifônico, o pensamento do artista não se refugia na abstração conceitual, mas sim assume seu
fraseado – sua sinuosidade sintática – e seu dispositivo dialógico duplo: os personagens interagem uns com
os outros e o próprio leitor pode, então, interagir com o autor.
Na arte da polifonia, como na arte da fuga do pensamento, se junta o domínio da polifonia e do
contraponto, como salientou Cany. Na polifonia, seja com duas ou mais vozes, os papéis de entrevistador e
entrevistado se modificam, deslizam e se invertem tantas vezes quantos sejam necessários para a implanta-
ção da composição. Já no contraponto, na medida em que os papéis dialéticos desaparecem, o questionador
é menos propulsor que questionador de suas próprias questões, em contraponto aos padrões do respondente
(CANY, in op. cit., p. 7). Heidegger considerava a linguagem como casa do ser e o Dasein (ser aí) como um
pastor do ser. Pretendia ele estabelecer uma estrutura autocompreensível e pré-compreensível do Dasein, a
partir da qual este ser aí se identifica com sua verdade de enunciação e de ser pensante. A comunicação per-
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

mite reconhecer uma realidade comum e uma verdade do sujeito da enunciação que representam também
aquelas de seu ouvinte. Essa natureza comum do diálogo que os interlocutores assumem no diálogo com eles
mesmos e no diálogo com os outros constitui a própria hermenêutica filosófica.
A linguagem responde a uma utilização comunicacional, na medida em que aumenta a verdade como
fenomenologia da comunicação e que representa a conversa livre, a qual é a projeção da força transcendental do
diálogo no mundo e na vida social. Esta força transcendental é aquela que Kant esperava da demonstração fi-
losófica. A sabedoria pragmática de Richard Rorty instituiu uma antropologia da comunicação como lugar de
solidariedade para estabelecer que a verdade que emerge do debate livre representa tanto a solidariedade quanto
a norma imanente à prática social da comunicação. A filosofia deve, assim, abandonar o mito da verdade que
emerge do confronto de duas esferas do conhecimento – a ordem do discurso e a ordem dos fatos – para alca-
nçar uma concepção interdiscursiva e dialógica (POULAIN e MEDOUX, 2012).
Se o personagem dialógico pós-moderno não é solipsista, sua lógica não é a da dialética, mas aquela
da multiplicidade, porque a pluralidade pronominalizada do personagem contemporâneo é aquela de um
pensamento que dialoga consigo mesmo (CANY, 2008, p. 8). Logrando talvez inspirar uma reflexão crítica
sobre o Brasil atual, Medoux (2011) reflete sobre o ressurgimento do pensamento crítico na África pós-
moderna, com destaque para as questões de gênero entre homens e mulheres, em que tudo se passa como se
os sintomas de falibilidade do modernismo que afetam a África deveriam ser lidos como um abandono da
razão. Na verdade, a diferenciação entre as tradições africanas e o fracasso de sua adaptação à modernidade,
denominada modernização, foi inspirada pelas ciências humanas neoliberais que pregaram uma paridade
civil e cívica de gênero e acabaram por estabelecer um processo de diáspora interna que pode ser lido como
uma nova apartheid entre homens e mulheres na África.
Os problemas de corrupção de seus líderes, o combate e a proliferação do etnocídio, a fome e a
AIDS tribal são paralelos à especulação financeira que a Europa enfrenta, do mesmo modo que a América
do Norte e a América do Sul acabam produzindo pobres e excluídos nos chamados países ricos. Esta divisão
entre as elites e as massas acompanha os efeitos da globalização econômica, a qual é conduzida como um ex-
perimento neoliberal contemporâneo do ser humano (POULAIN, 1998). Como Lyotard sugeriu, o homem
pós-moderno deveria ter um novo vocabulário para recontar, em termos históricos, a história do mundo,
abandonando uma perspectiva narrativa pragmática que legitimou uma história universal e que acabou por
aniquilar as diferenças culturais, promovendo em seu lugar um sujeito moderno cínico.
Inspirando-se em Lyotard, pode-se falar de pequenas histórias de afrobrasileiros e americanos na-
tivos no Brasil e refletir sobre a África como um modelo político colonial semelhante e um espelho social
contemporâneo. Na África, como no Brasil, os grupos locais são negados pelos modos de legitimação das
culturas particulares que pretendem conduzir as comunidades “selvagens” a se transformarem em uma so-
ciedade de cidadãos. O indígena surge, então, como o nãosujeito da era colonial que designa o “autóctone”
como qualquer coisa que possa ser aceita na sociedade africana (MBEMBE, 1988). O princípio autoritário
impresso hoje pelo Estado em sua empresa de modernização da sociedade africana gera ações e formas de
conhecimento, a fim de se fazer representar como titular do monopólio da verdade (FOGOU, 2011).
A resposta adequada da África pós-moderna reside em estabelecer um diálogo crítico com as comu-
nidades não africanas compostas por europeus, americanos ou habitantes do Oriente Médio e do Extremo
Oriente. É através da experiência da cegueira, da instrumentalização e da manipulação do alegado consenso
democrático que os colonos partilham sobre a modernidade que sua própria objetividade será garantida.
Neste diálogo crítico, resta aos universitários analisar as comunidades da diáspora na América do Norte e
na América do Sul sem cair na impotência e em certa consciência trágica de sua decadência, nem se sentirem
incapazes de nada nelas poder alterar. Tanto no Brasil quanto na África pode-se, finalmente,abandonar, em
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uma perspectiva contemporânea, formas obsoletas de pensar a democracia e o progresso como uma falha do
destino (MEDOUX, 2011).

Cultura da forma e estéticas de percepção da imagem e do ser

A experimentação transcultural se dá através da relação entre a imagem e o ser enquanto estrutura


social no espaço-tempo, definindo diferentes práticas artísticas como arquitetura, artes visuais, pintura, escul-
tura, literatura, música, dança e teatro/performance. Dinah Guimaraens trata da especificidade da arquite-
tura baseada na imagética, devendo-se conceituar suas formulações teóricas (apresentações orais) em termos
de suas configurações espaciais (expressões plásticas ou visuais) para pensar o objeto da arquitetura como um
todo e sua apreciação na dimensão artística. A concepção do projeto arquitetônico se refere a uma atividade
na qual a notação gráfica aparece como um modo de discurso, ou seja, o discurso de um estilo poético que
simboliza um dos quatro níveis de precisão propostos por Aristóteles: poética, retórica, dialética e analítica.
Caracteriza-se tal discurso poético como sendo parte da imagem em que o gosto de hábitos con-
vencionais se afirma como forma de ser que deve ser aceita como verdadeira temporariamente, ocasionando
desta maneira a suspensão da descrença sobre a realidade imagética. A arquitetura de um Museu Vivo
implantada como protótipo bioclimático no campus da Praia Vermelha/UFF em novembro/dezembro
de 2014 é, então, experimentada em sua dimensão estética e construída em sua dimensão funcional e
tecnológica. Vista como um todo, a arquitetura é um ambiente no qual as relações sociais se tornam pos-
síveis e se espacializam e o pensamento visual adota ali conceitos de uma imaginação interativa e de uma
concepção figural para reiterar sua rejeição a qualquer dicotomia entre a concepção do projeto e a gravação
da imagem figurativa. Em outras palavras, a notação gráfica empregada para desenhar diagramas e croquis
é entendida como sendo fundamental para a concepção do projeto (ARNHEIM, 1995). O projeto do
Museu Vivo almeja alcançar uma lógica dialógica ao mesclar técnicas construtivas tradicionais artesanais
e conceitos projetuais digitais, estabelecendo uma prática colaborativa entre indígenas Guarani, do Alto
Xingu (Kamayurá, Aweti e Yawalapiti) e da Aldeia Maracanã/RJ com o corpo docente, técnico e discente
da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense.
Da mesma forma, uma maloca em estilo indígena tradicional, contando com as devidas adaptações
para o aperfeiçoamento do ensino médio, abriga hoje a Escola Transcultural SHAKO MAI no Alto Javari,
Amazonas. Tendo sido construída entre 2013 e 2015, em um local de fácil acesso às treze comunidades
Marubo do Rio Ituí, na Aldeia de Vida Nova, que dispõe também de uma pequena pista de pouso, esta
escola foi proposta por Guilherme Werlang visando fortalecer o conhecimento cultural indígena, de forma
a permitir-lhe vigorar em contextos urbanos. Tendo como intenção capacitar os povos indígenas a represen-
tarem a si mesmos, mesmo após deixarem a floresta, o projeto assume que a possibilidade de prosseguir nos
estudos e o acesso à universidade representam um apoio eficiente para a autossustentabilidade indígena, pois
assim representantes dos seus interesses receberão formação educacional adequada.
Presume-se que a transculturalidade estética inclua desde propostas de experimentações universi-
tárias como estas até um diálogo entre os campos artísticos. Jacques Poulain fala sobre a existência de uma
cultura da forma nas artes visuais e estéticas de percepção, ao interpretar a famosa frase de Leonardo da
Vinci: “Nós não pintamos com a mão, mas com a cabeça” (POULAIN, 2002, p. 7), no prefácio do livro de
Adolf Hildebrand. Hildebrand é um teórico de arte e escultor alemão que ilustra a teoria filosófica de Pou-
lain (2001) sobre a dinâmica da comunicação e a harmonização do som, com base na ideia do nascimento
da psicologia da forma e do renascimento da antropologia herderiana da linguagem. A antropobiologia de
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

A. Gehlen e F. Kainz mostra que a dinâmica da recusa em se deixar falar estabelece as formas denominadas
de impressionistas, as quais são criticadas por Hildebrand. Será que tais formas impressionistas poderiam
chegar, em caso extremo, a destruir a faculdade estética da percepção e, desta forma, toda faculdade criadora
das artes plásticas no século XX, em um “horizonte de neutralização generalizada da psique, como gênese
da neutralização da criatividade pictórica e estética”? (POULAIN, 2002, p. 21).
A transição do mundo real, nas artes visuais, decorre do papel fundamental desempenhado pela
atividade criadora do olho como órgão que estabelece um espaço comum para a arquitetura, a escultura e a
pintura artística. O essencial entre as três artes da arquitetura, escultura e pintura encontra-se no elemento
que Hildebrand chama de impressões “arquitetônicas” e que representa a confluência da verticalidade, da
horizontalidade e da profundidade como lei geral que constitui o espaço de composição. Sobre a percepção
visual, logra-se estabelecer uma conexão com o mundo para responder à pergunta: o que é (re)apresentado
pela imagem (real ou imaginária)? (CANY, 2008, p. 47-48). A resposta clássica é que o plano da consciên-
cia gráfica é que formaliza e a resposta tradicional afirma que é o plano do inconsciente que se materializa
(BACHELARD, 1979), enquanto a resposta filosófica diz que é o nível de consciência abstrata que con-
ceitua. A conclusão de Cany é que é a visão que pensa, ou o pensamento que vê e pode, assim, enxergar para
além da presença do visível.
A imagem poética é a palavra como imagem do assombro invisível (CANY, in op. cit., p. 49). Se o
cinema iniciou uma revolução antropológica e civilizacional, a imagem poética tem a vantagem de não estar
presa na esfera técnica. Atualmente nos encontramos em uma inevitável encruzilhada, na qual a máquina é
tratada como um anátema a uma situação de desumanidade e de ruptura com qualquer tipo de projeto ético.
A reação à idade maquínica de maneira a recomeçar novamente, não apenas a partir de uma territorialidade
primitiva ou de um modo de pensamento “animista”, somente torna-se posível se consideramos que a inter-
face maquínica não existe enquanto eliminação da alma (anima), humana ou animal, mas sob uma ordem
de protossubjetividade que permite que se imprima uma função de coerência na máquina, tanto em relação
a ela mesma quanto em uma relação de alteridade com o ser humano (GUATTARI, 1993).
Se nosso horizonte ético-político não é outro que a crítica da sociedade do espetáculo, do todo
comunicativo e consumista (CANY, 2012) pode-se, então, detectar um viés ético e político na represen-
tação do espaço-cinema e das artes visuais, em que as imagens neossequenciais assumem tanto a forma de
imagens estáticas como a de imagens em movimento (desenhos, fotografias, stills de filmes, pinturas de pop
arte, hiperrealismo de um lado, e imagens em movimento e televisão de outro). A questão aqui é: “há tantos
estatutos de imagem quanto proliferam as imagens no mercado?” Daí a dificuldade do discurso crítico se
basear apenas em obras-primas da arte, com seus valores universais que podem representar uma espécie de
evolucionismo pictórico (SCHNEITER, 1981, p. 3).

Arquitetura incomensurável e neoecletismo pós-moderno



A arquitetura moderna de Oscar Niemeyer incorpora posturas barrocas ao funcionalismo de Le Cor-
busier. A presença de uma corrente de influência barroca lusobrasileira na obra de Niemeyer é caracterizada
pelo uso de elementos de linhas curvas e de forma livre (UNDERWOOD, 1992), tal como ocorre com a
colunata do Palácio da Alvorada (1956-1958), em Brasília. Estas colunas foram inspiradas em redes estendi-
das, ou em velas de barcos, e se tornaram ícones do poder político federal, tendo seus elementos construtivos
caído no gosto popular e sido copiados em fôrmas de gesso, dispostos maciçamente como decoração nas
fachadas das casas das classes trabalhadoras em todo o país.
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Outros elementos absorvidos das obras estéticas e funcionais de Le Corbusier por Niemeyer foram
o telhado plano e o telhado “borboleta” (teto em “v”, com uma calha central, onde a água da chuva é dre-
nada), derivadas da estética das máquinas-de-morar modernistas (GUIMARAENS & CAVALCANTI,
2006). O pós-modernismo foi definido como uma continuidade / ruptura com a modernidade (Jameson,
2004). Baudelaire (2010) fala da transitoriedade do mundo moderno com foco no papel de espectador,
enquanto Marshall Berman (1986) define o ser moderno como pertencendo a um ambiente de aventura,
poder, crescimento, alegria, autotransformação e transformação das coisas ao redor, mas que ao mesmo
tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos e tudo o que somos.
O arquiteto pós-moderno voltou a viver um novo ecletismo típico do século XIX, com as correntes
de retorno ao historicismo que revivem o passado e olham para trás para zombar da alta tecnologia. Este
é o esteticismo extremo da desconstrução como tentativa de dar autonomia ao repertório moderno, com
a desmaterialização da arquitetura formal. Tal neoecletismo pode ser um prenúncio de um novo discurso
que inclui a arquitetura em toda a sua complexidade, liberando seu apego estético e representando, então,
outra grande narrativa, como aquela do movimento moderno. Constituiria então o moderno – e, portanto,
também o pós-moderno –, uma ruptura com todos os elementos estéticos acima apontados?
A consciência contemporânea pode se juntar à grande aventura da nova tradição moderna, apagando
as barreiras entre os últimos motivos estéticos e não estéticos. A questão aqui é se a produção artística pode
voltar sua transmissão para uma atividade estética desinteressada, ao contrário da vanguarda modernista
inventada pelos surrealistas, a qual acarretou tal distância da arte que acabou conduzindo à deterioração
artística e manter a política dos intelectuais. Este retorno às concepções clássicas de beleza representa uma
volta à estética modernista, tal como foi definido por Baudelaire em O Pintor da Vida Moderna (2010:1863).
A operação crítica aqui descrita representa, então, a separação entre o novo e o presente, indicando o
primeiro verdadeiro momento de modernidade para Baudelaire. O poeta-crítico descreve a arte moderna real
que combina a realidade fugaz do momento histórico com certo grau de compromisso com o mundo eterno e
imutável de forma, assumindo assim o poder de extrair a transição eterna. Com a delineação desta desconexão
entre o presente e o novo, se podem demarcar os estágios de decomposição de um modernismo inautêntico,
não comprometido com o moderno clássico, enquanto a modernidade de Baudelaire é uma realização de certa
presença do antes dentro do mundo e de um futuro que quer reinstalar o valor desacreditado do progresso
burguês na estética.
Baudelaire (2010) conceitua o pensamento moderno baseado na imagética ao afirmar que é o
pensamento abstrato que se desenvolve filosoficamente. Já a metáfora surrealista indica uma maneira
diferente de pensar, contendo um retrovisor, um pensamento e uma visão da metáfora como imagem do
pensamento abstrato (CANY, 2012). O encontrado (trouvé) na obra do arquiteto contemporâneo sur-
realista norte-americano Frank O. Gehry revela um novo método de projeto em arquitetura, inspirado
no método crítico-paranoico de Salvador Dalí, que pode trazer à tona aspectos irracionais através de um
procedimento técnico e criativo razoável.
A maioria das obras de Gehry começa com uma escrita automática dos croquis para realizar es-
boços rápidos e livres, obtidos através da intuição e modelados em modelos formais. Os conceitos formais e
espaciais da arquitetura pós-moderna, inspirados pelo surrealismo, pelo high-tech e pelo desconstrutivismo,
ilustram uma correspondência expressiva alegórica ou simbólica, deixando-nos com o sabor de uma espécie
de nova natureza dessas formas não específicas de caráter antinatural corbuseanas (de Le Corbusier).
Os edifícios projetados com essas premissas conduzem, espacial e esteticamente, a uma espécie de
metamorfose das categorias do modelo modernista formal, através da incorporação da dualidade do seu in-
terior e do seu exterior. A forma dessa arquitetura “incomensurável”, incorporada ao sentido formal pelo pro-
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
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saico de sua forma incomum, nega os grandes projetos de Le Corbusier sobre a relação expressiva da plástica
obtida entre as linhas de paredes interiores e exteriores, abandonando sua rigidez e flexibilidade para suportar
novas funções que combinam, esteticamente, as realidades do plano aberto a partir do interior dos edifícios.
Tal incomensurabilidade ocorre, por exemplo, na Biblioteca da França, em Paris, projetada pelo arquiteto
Rem Koolhaus e pelo OMA-Office for Metropolitan Architecture (JAMESON, in op. cit., p. 201-202).

Conclusão: paisagens urbanas de Giogio de Chirico

As paisagens urbanas foram desenhadas por obras arquitetônicas que representam o teatro desde
os tempos antigos. Vitruvius descreve três cenários correspondentes a cenas de teatro urbano: o trágico, o
cômico e o satírico. Estes ambientes são modelos paradigmáticos da Renascença, nos quais dramas foram
organizados diariamente em áreas urbanas e rurais. Os espaços urbanos projetados por Alberti estabelecem
ligações com um teatro imaginário, em que foram realizadas cenas cômicas nas ruas, em curvas sinuosas,
enquanto as cenas trágicas foram feitas em cidades nobres de plano normal, contando com a limpeza de ruas
pavimentadas com fachadas de altura idêntica e constante (SCHULZ, 2008, p. 79-81).
O teatro-enunciação de Beckett e o teatro-absoluto de Artaud, nos quais a história se torna teatro
e o mito se torna história (GUATTARI, 2012, p. 183), falam sobre uma nova territorialidade enquanto
código de produção final da territorialidade e da vontade de poder, possibilitada pela produção de sinais de
efeito de reincidência no sentido linearizado, em que o signo linguístico recuperou o inapropriado. O audio-
visual é, assim, a normalização e a consumação do fantasmático. Ao contrário da fantasmática dos meios de
comunicação audiovisuais, a pintura metafísica (1909-1919) de Giorgio de Chirico é contemporânea à pin-
tura pura de Paul Klee, pintor-músico que explora os limites da metáfora musical para finalmente recusá-la.
De Chirico afirma que a crítica antropológica do estilo musical de pensar é o que desenvolve o seu próprio
modelo de visualidade. A pintura metafísica constrói imagens de um ritmo além do visível e uma lógica de
vida universal, incorporando um retorno ao classicismo mesclado ao modernismo surrealista.
De Chirico lança um novo pensamento crítico ao modelo antropológico visual da modernidade,
com a busca de um modelo semiótico no qual ocorre a solução simbólica para o seu imaginário poético e
metafísico. Constrói ele esta imagética pela negação da unidade do tempo, superando a velha antinomia da
pintura moderna com a pintura de cidades metafísicas da Itália e das arcadas reminiscentes da arquitetura
clássica (CHALUMEAU, 2009). Pela revelação da pintura metafísica, de Chirico descobre a essência da arte
pura inspirada pelo uso da faculdade transcendental da sensibilidade, onde o exercício do puro poder de sentir
é desfrutado a partir desse privilégio da fruição estética, como descreveu Kant (BOURDIEU, 2007, p. 89-90).
Tal fruição estética resulta de dois elementos: o primeiro refere-se à autonomia do campo artístico,
livre de restrições econômicas e políticas, a qual é guiada pelos padrões da arte pela arte; e o segundo trata
da ocupação do espectador no mundo social, no qual as posições em que o fornecimento de disposição pura
é capaz de dar livre curso ao puro prazer (ou a estética) são estabelecidas principalmente pela família e pela
educação escolástica. Então, para transpor sua percepção metafísica na composição de um espaço visual, o
pintor vai tentar combinar o classicismo da arquitetura antiga com a audaciosa modernidade futurista dos
primeiros anos do século XX.
A ideia da obra de arte como enigma impossível de ser resolvido está presente no projeto de arte
metafísica de Chirico. A inquietante luz da noite é propícia para a revelação das paisagens de aspecto metafísi-
co que de repente as coisas podem assumir enquanto os personagens humanos assumem a forma de modelos e
de assemblagens cubistas (CHALUMEAU, in op. cit.). Se a vanguarda modernista pode ser representada pela
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inspiração surrealista e metafísica do pintor de Chirico, que combina elementos clássicos e modernos para
criar uma nova estética, pode-se considerar aqui o caso da universidade no seio de um diálogo transcultural.
O Rio de Janeiro denomina de escolas de samba suas instituições de carnaval. Assim, será possível
que as academias de ensino possam aprender algo de novo com as escolas de samba cariocas? Valorizando sua
identidade social e trabalhando com novas audiências, a fim de estabelecer uma compreensão madura entre
seus participantes e para se renovar esteticamente, as escolas de samba no Brasil expressam a criatividade que
parece estar faltando na educação universitária tradicional (PINTO & SILVA, 1997). O Parangolé (com-
posto por vestidos, tops, banners ou bandeiras) foi criado por Hélio Oiticica para ser usado pelos dançarinos da
favela da Mangueira. Constitui, portanto, uma forma de antiarte que visa iniciar uma nova visão de como os
seres humanos e a arte podem ser integrados, causando a morte do espectador e o nascimento do participante.
No Parangolé, o samba é o motor e a ação da necessidade ontológica, no qual a roupagem está em
contraste com o relógio que fala do tempo da máquina e da produção. Como, então, a universidade pode es-
capar da postura aristocrática de um conhecimento hegemônico e acadêmico e desfrutar de um dialogismo
transcultural entre os diferentes níveis socioculturais de funcionários e alunos, e entre diferentes grupos
étnicos e de gênero?
Em resposta a esta questão, Cany (2012) sugere que se: “Pense a poesia como parte de uma antro-
pologia filosófica e um propósito ético-político”. Se o pensamento poético pode nos permitir superar uma
caricatura universal menos ocidentalizada que estrutura o conhecimento escolástico de modelo europeu,
a universidade deve estar aberta para a alteridade, abandonando uma ótica civilizacional (Nietzsche) em
favor de uma ótica transcultural (Artaud). Assim, a resposta para a universidade, bem como para a arte, é o
pensamento visual, através da etnopoesia, enquanto universal antropológico.

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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

Educação e cultura na formação da cidadania

Carlos Alberto Ribeiro de Xavier


Consultor da UNESCO para educação e cultura, assessor de Educação Integral da
SEB/MEC

A relação entre educação e cultura é estreita nas ações de formação da ci-


dadania. A partir destas é possível integrar as manifestações intelectuais e artísticas nas
práticas pedagógicas de ensino formal e informal. Neste contexto, a correção da fratura
entre as formulações e o planejamento das políticas relacionadas às duas áreas deve ser
o foco de ações articuladoras das diversas instâncias e esferas da administração pública.
O autor pretende oferecer subsídios para o entendimento das condições atuais
para o processo de planejamento de ações culturais relacionadas aos programas voltados
para a Educação Básica e para a formação de professores nas universidades. Pretende
delinear também como pode Brasília ser considerada uma cidade educadora, nos termos
da declaração da UNESCO; procura mostrar como Lucio Costa já pensava uma cidade
capaz de abrigar a capital da República e ao mesmo tempo educar a nova população
composta de cidadãos vindos de todas as regiões do país e do exterior; e ainda inspirar a
ocupação ordenada e o desenvolvimento do Norte e do Centro oeste do Brasil, até então
com baixa densidade populacional.

Antecedentes

Para o melhor entendimento de Brasília como cidade educadora, podemos


imaginar três itinerários educativos destinados à orientação de turistas, professores e
alunos ou outros visitantes. Os programas Mais Educação e de Educação Integral do
Ministério da Educação já incluem três desses itinerários educativos para os professores
que participam de Seminários que vêm se realizando na Capital Federal, em Brasília,
com a colaboração do GDF, da UnB e do Ministério da Cultura, visando à compreensão
do Plano de Lúcio Costa, do projeto educacional de Anísio Teixeira e da nova Universi-
dade imaginada por Darcy Ribeiro. São eles:
a) Anísio Teixeira e os caminhos da Escola Classe/Escola Parque;
b) Lucio Costa: a escala monumental e a escala gregária do Plano Piloto;
c) Darcy Ribeiro e o inovador projeto da Universidade de Brasília.

Antes de falar mais detidamente de Brasília, é preciso, porém, alinhar algumas


considerações sobre a educação no Brasil. Nos três primeiros séculos da colonização
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não há muito que dizer sobre escola pública, uma vez que tivemos apenas as escolas dos jesuítas destinadas
à catequese dos índios e à educação de poucos, especialmente a preparação para a vida religiosa.
Claro que é muito importante a pedagogia dos jesuítas, grandes figuras a destacar, especialmente
Padre Manoel da Nóbrega, Padre José de Anchieta e Padre Antônio Vieira. Mas não existia a escola pública
como já era conhecida em outros países. No período do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, in-
augurado com a chegada de D. Maria I, D. João VI, toda a família real e parte da corte portuguesa, que
aportaram no Brasil em 1808, começaram as mudanças e as fundações do que o Brasil passaria a ser. No
campo educacional, alguma coisa pode ser anotada.
Em uma parada na Bahia em fevereiro de 1808, D. João VI criou uma Escola de Medicina, hoje
incorporada à UFBA; no Rio criou uma Escola de Cirurgia. Mais tarde, recebeu a Missão Artística Fran-
cesa que trouxe nomes importantes no campo das artes; em 1827 foram criadas as faculdades de direito de
Olinda, em Pernambuco, e a do Largo de S.Francisco, em São Paulo. Em 1834, surgiu o pioneiro Atheneu
Norte-Rio-grandense, em Natal; a 2 de dezembro de 1837, no período da Regência, portanto, em homena-
gem ao Imperador, na data de seu aniversário surgiu o Colégio Pedro II, permanente referência do ensino.
Essas são as principais escolas surgidas no Brasil no período, mas ainda não se podia falar de escola pública
em âmbito nacional. Durante o Segundo Reinado, a educação flutuava entre o modelo tradicional e secular
do ensino católico e o ensino leigo sob a influência do ecletismo, do liberalismo e, finalmente, do positiv-
ismo. Perdeu-se muito tempo que foi mais aplicado na experimentação do que no estabelecimento de um
sistema público de ensino.
A República surgiu em meio às ideias positivistas e eram muitas as promessas sobre a educação, mas
até 1930 este assunto permaneceu no Ministério da Justiça e Negócios Interiores, em um setor denominado
Departamento de Instrução Pública, Correios e Telégrafos. Esta situação, por si só, explica como a educação
foi relegada durante a República Velha, na qual as oligarquias do acordo café com leite, entre Minas Gerais
e São Paulo, se revezavam no poder. Ao povo se oferecia apenas a instrução pública das primeiras letras.
Precisamos viver uma revolução, a de 1930, para que o Governo Provisório de Getúlio Vargas pudesse criar
nos primeiros dias de sua instalação, finalmente, o Ministério da Educação e da Saúde Pública. Note-se, te-
mos um ministério a cuidar da educação e da saúde pública dos brasileiros há apenas 82 anos. Vários países
latino-americanos estavam mais avançados e nestes já funcionavam universidades. O Brasil só veio a criá-las
em 1934, em São Paulo, e em 1935, no Rio de Janeiro. Estas primeira universidades reuniram as faculdades
preexistentes.
Nos primeiros 30 anos de funcionamento do ministério, no Rio de Janeiro, é digno de nota o
período de 12 anos de gestão de Gustavo Capanema, aquele que mais tempo permaneceu ministro. Como seu
legado deixou um sistema nacional centralizado de ensino de boa qualidade, um plano de vanguarda e liberal
para a área da Cultura e, como símbolo de uma época, o Palácio que construiu para a sede do MEC, um
marco da arquitetura modernista no mundo. Na verdade, Capanema fez existir a UNESCO antes mesmo de
esse organismo ser criado no pós-guerra, pois comandava os programas nacionais da saúde, da educação, da
ciência e da cultura em um mesmo ministério, já em 1937.
Brasília surge em 1960 como cidade educadora, como a renovação da esperança para os brasileiros,
especialmente para a educação e a cultura. A cidade foi construída a partir do Plano Piloto de Lúcio Costa,
tombada em nível nacional pelo IPHAN e reconhecida mundialmente pela UNESCO como patrimônio
da humanidade. Presidente do INEP, em 1957, Anísio Teixeira convidou Darcy Ribeiro para promover pes-
quisas sociológicas na educação e criou, a pedido do Ministro Clóvis Salgado, “o planejamento do sistema
escola pública de Brasília”, inaugurado em 1960. Era uma evolução do sistema baiano, criado por ele, das
Escolas Classe/Escolas Parque. Anisio Teixeira foi influenciado pela nova maneira de morar, das superqua-
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dras de Lúcio Costa, pela arquitetura de Oscar Niemeyer e pelo paisagismo de Burle Marx, que organizaram
a escala residencial e bucólica no Plano de Lúcio, para conceber o sistema educacional, a vida dentro da
cidade e as escolas nas superquadras.
Esse sistema escolar fez com que a população das unidades de vizinhança (o conjunto de cada quatro
superquadras) tivesse à sua disposição um Jardim de Infância e uma Escola Classe em cada quadra e uma Es-
cola Parque em cada unidade do conjunto. Em um mesmo espaço livre, para o ir e vir a pé, das crianças, dos
pais e dos professores, que podiam circular à vontade entre as unidades escolares, a Biblioteca Demonstrativa,
o Posto de Saúde, o clube de vizinhança, os espaços de lazer e recreação das quadras, e ainda, a Igrejinha de
Fátima, também a primeira construída. Esse modelo criado para uma população de cerca de até 20.000 ha-
bitantes foi implantado como modelo do Plano Piloto, a ser repetido em cada unidade de vizinhança, o que
não ocorreu.
Darcy Ribeiro, em um texto que publicou como segunda carta de Pero Vaz de Caminha, em 21 de
abril de 1960, disse o seguinte sobre o projeto de Anísio Teixeira:

Os burocratas infantes, com menos de sete anos, terão dentro das quadras arremedos de
escolinhas para brincar com o tio Augusto Rodrigues. Os mais crescidinhos, a um passo
da casa, quatro horas estudarão e mais quatro folgarão, atravessada uma alameda, numa
escola-oficina-gandaia inventada por Anísio Teixeira para fabricar gente que melhor suporte
e sustente o progresso do Brasil. Aos mais taludos, capazes de atravessar a rua dos loucos,
prometem uma escola-escada, pela qual cada um há de subir segundo o peso de seu talento.

“Devo dizer, Senhor, que a meu pesar, tudo isto, como o mais, são augúrios de homens de muita
fé”, acrescenta Darcy Ribeiro.
Para os itinerários educativos de Brasília, inicialmente descrevemos os caminhos da Escola Classe/
Escola Parque de Anísio Teixeira dentro da escala residencial e bucólica; depois, voltamos a comentar a pro-
posta de itinerários educativos de Brasília, desta vez para apresentar outras duas dimensões do Plano Piloto
de Lucio Costa: a escala gregária e a escala monumental.
Apresentar e compreender o Plano Piloto da capital federal é uma necessidade não só para os pro-
fessores, alunos, pais e servidores da educação de Brasília, como também um elemento indispensável para
todos os brasileiros. Brasília entrou para o imaginário do brasileiro nos anos 1950 e não saiu mais. Portanto,
é preciso relembrar Lucio Costa. Relembrar Lucio Costa é também deixar falar duas grandes personalidades
que embarcaram no trem da utopia do projeto de JK-Lucio Costa: um entrou em 1957, junto, portanto, com
a execução do Plano Piloto; e um outro entrou em 1960, logo depois de inaugurada a cidade.
O primeiro foi Anísio Teixeira, convocado em 1957 pelo ministro Clóvis Salgado para desenhar o
Plano de Educação e Cultura para a nova capital. Não demorou muito, como presidente do INEP, Anísio
pode rever o seu próprio projeto de Salvador e orientar o experimento da Escola Julia Kubitschek, cujos pro-
fessores foram preparados na Escola Classe-Escola Parque da Bahia para começarem o trabalho em Brasília.
A Escola Júlia Kubitschek foi o lugar onde cresceu o embrião da Escola Classe-Escola Parque de Brasília
na superquadra 308, o lugar onde se aproveitou o desenho da cidade para rever os conceitos e colocar em
prática o Plano Humano de Brasília, projeto utópico de uma sociedade nova, universalista que disporia de
uma escola pública de qualidade e de uma universidade que produzisse o novo homem brasileiro.
De Anísio Teixeira lembro duas reflexões sobre a educação:
1. O que chamamos de educação é o esforço para compreender o presente. Sem compreendê-lo não
podemos viver. Há presentes incendiados de fermento intelectual e presentes inertes. É que nos primeiros
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o passado está vivo no presente e nos entreabre o futuro. Nos outros, depreciamos o presente e quedamos
inertes na adoração do passado. Toda verdadeira crise de compreensão é uma crise de compreensão do
presente, neste sentido de ponto de interseção entre o passado vivo e o futuro que vai nascer. Num desses
momentos é que nos encontramos.
2. De mim eu só reconheço um crédito aos que me precederam: Eles sofreram mais do que nós e,
por isso, tudo lhes deve ser perdoado.
O segundo personagem foi Agostinho da Silva, português exilado desde os anos 1950, que já tinha
produzido intenso movimento intelectual no Rio, São Paulo, Paraíba e Santa Catarina. Estava naquela al-
tura dirigindo, na Universidade Federal da Bahia, o Centro de Estudos Afroorientais, fundado por ele. Veio
ajudar Darcy e Anísio na organização da Universidade de Brasília.
Para demonstrar a perfeita sintonia de Agostinho com a utopia de Lucio Costa em Brasília, retiro
algumas frases de seu livro Reflexões, Aforismos e Paradoxos:
1. Consiste o progresso no regresso às origens: com a plena memória da viagem.
2. Não há liberdade minha se os outros a não têm.
3. A nossa mente olha o vazio e o faz Espaço.
4. Passo a vida fabricando o real.
Muito antes da consagração do conceito de cidade patrimonial modernista pela UNESCO, Brasília
já nascia uma cidade educadora.

A Escola Parque na superquadra 308 sul em Brasília

O conjunto representado pelas superquadras 107/307, 108/308, 109/309, 110/310 (tanto os blocos
residenciais quanto os destinados ao comércio local, que Lucio chamou de “varejo de bairro” nas entrequa-
dras) forma uma unidade de vizinhança e cada uma delas conta com um Clube de Vizinhança, neste caso, o
de nº. 1 de Brasília. Completa-se o conjunto com o Posto de Saúde, a Biblioteca Demonstrativa de Brasília
e a Igrejinha de Fátima. Agregou-se, recentemente, ao conjunto, a Estação do Metrô da 108 Sul.
Concebido o plano arquitetônico e urbanístico que poderíamos chamar de hardware, faltava criar
o plano humano para Brasília. Como se organizaria o sistema educacional para formar o novo homem
brasileiro? Qual o programa, o software? O encarregado de tal plano foi Anísio Teixeira, que coordenou uma
comissão para a criação da UnB e para a concepção do sistema educacional na nova capital, da educação
básica à universidade.
Ele era também o presidente do INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais,
naquela altura. A comissão que coordenou contava com Darcy Ribeiro, Cyro dos Anjos, Augusto Rodrigues
e outras personalidades entre o que havia de melhor entre os pensadores da educação e da cultura no Brasil.
Vivia-se um ambiente de liberdade política e desenvolvimento econômico acelerado.
O projeto de Escola Classe/Escola Parque de Brasília é uma evolução daquela que Anísio criara em
Salvador, nos anos 1940, quando ele foi o seu secretário de Educação da Bahia. Anísio levou professores da
pioneira Escola Júlia Kubistcheck, que funcionava na cidade até então, para conhecer a Escola Classe Escola
Parque de Salvador, preparando-os para trabalharem na escola do futuro em Brasília.
O que podemos ver deste modelo: cada quadra conta com uma Escola Classe, Jardim de Infância
e vários espaços de lazer. Os alunos de toda a unidade vizinhança (conjunto de quatro superquadras) fre-
quentam a Escola Classe mais próxima e, caminhando, vão à Escola Parque da 308 em horários alternados.
Implantada a escola padrão, era natural que esta se transformasse no principal espaço cultural de Brasília,
onde o teatro da Escola Parque e o Cine Cultura tornaram-se por mais de 20 anos, o principal polo cultural
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

da jovem capital. Aí foram montadas as grandes peças de teatro, musicais e outros espetáculos que pas-
saram pela cidade, e aí, também, se realizaram as grandes reuniões e manifestações políticas, como quando
a cidade recebeu em reunião de desagravo, o sindicalista Lula que saíra da prisão em 1981; Lele veio de São
Paulo acompanhado do jornalista Audáulio Dantas, que também havia sido preso, sendo recebidos a noite,
no auditório da Escola Parque, por um grande público.
É desse modelo que derivam os CIEP – Centros Integrados de Educação Pública (Brizola/Darcy
Ribeiro); os CIAC – Centros Integrados de Atenção à Criança (Collor); os CAIC – Centros de Atenção
Integral à Criança e ao Adolescente (Itamar/Hingel); os CEUs – Centros de Educação Unificada (Marta
Suplicy) e, desde abril de 2007, o PDE –Plano de Desenvolvimento da Educação, com o programa Mais
Educação, que aliado ao Mais Cultura, Saúde na Escola e vários outros projetos afins, tem por objetivo a
universalização gradativa da educação integral.

Antecedentes do Programa Mais Educação e Mais Cultura

Em agosto de 2006, o grande artista e intelectual brasileiro Augusto Boal compareceu a uma
reunião com o ministro da Cultura, Gilberto Gil, e do ministro da Educação, Fernando Haddad, real-
izada no Rio de Janeiro no Palácio Capanema, quando anunciaram a assinatura de mais um Protocolo de
Intenções para cooperação entre os dois ministérios, visando ao desenvolvimento de programas conjuntos
de arte e cultura nas escolas.
Desde a criação do Ministério da Cultura, em 1985, assistimos a vários eventos semelhantes em
que a retórica tentava disfarçar a realidade do ensino público no Brasil, marcada pelo empobrecimento do
calendário escolar, desde os anos 1970, com o abandono crescente e cotidiano da disciplina obrigatória de
Educação Artística.
Na reunião mencionada, Augusto Boal pediu para falar em meio ao tumulto de uma solenidade que
enchia de público o Salão Portinari, do majestoso e tradicional edifício-sede do Ministério da Educação e
Saúde Pública, inaugurado nos anos 1940. A plateia do artista, desta vez, era composta de artistas, políticos,
funcionários públicos, professores e outros trabalhadores da educação.
Anos atrás, existia o MEC, Ministério da Educação e Cultura, que sucedeu ao mais antigo Ministé-
rio da Saúde, Cultura e Educação, onde só faltavam Caça e Pesca, Esportes e Turismo, tudo no mesmo saco.
Juntos, amalgamados, Educação e Cultura, ao invés de provocarem sinergia, eram comprimidos
numa coisa só. Veio a divisão multiplicadora, criaram-se dois Ministérios ao invés de um, mas cada qual
trabalhou pelo seu lado, sem olhar ao lado. Hoje, nossos dois Ministros arquitetam um projeto unificador
respeitando a diversidade de cada um, e nós nos vemos diante de uma nova concepção da Cultura e da Edu-
cação. Por que é nova, e por que é importante essa interatividade?
Educar vem do latim Educare, que significa conduzir. Educar significa a transmissão de conhecimen-
tos inquestionáveis ou inquestionados. Significa ensinar o que existe, e que é dado como certo e necessário.
Pedagogia vem do grego paidagógós, que era o escravo que caminhava com o aluno e o ajudava a encontrar a
escola e o saber. Educação significa a transmissão do saber existente; Pedagogia, a busca de novos saberes.
Essas duas palavras não podem ser dissociadas, porque não podemos aceitar um saber paralítico,
imóvel, nem descobriremos jamais novos saberes sem conhecer os antigos.
Educação e Pedagogia são duas irmãs que são, ao mesmo tempo, mães e filhas da Cultura. Filhas,
porque a Cultura existe e se manifesta através do saber que ensina, e do saber que busca. Mães, porque
através delas nasce uma nova Cultura, sempre em trânsito.
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Trânsito para que futuro? Surgem então os conceitos de Ética e Moral. Esta vem do latim mores, que
significa costumes. Qualquer costume, mesmo os mais bárbaros e odiosos, podem fazer parte da Moral de
um lugar e de uma época. A escravidão já foi Moral no Brasil, e os escravos que lutavam por sua liberdade
eram chamados de fujões e rebeldes – hoje, sabemos que foram heróis e eram sábios.
Nenhuma Moral social deve ser aceita só porque faz parte dos costumes de um infeliz momento.
Não podemos aceitar o latifúndio e a corrupção, nem a fartura vizinha da fome – males da pátria contra os
quais temos que lutar.
Moral refere-se ao passado que sobrevive no presente. Ética, ao presente que se projeta no futuro: não
queremos o Brasil como foi nem como é, mas... como queremos que seja? Qual a ética que nos guia e justifica
nossas vidas? Queremos um Brasil em que todos os brasileiros sejam plenos cidadãos, e não se pode ser pleno
sem os fundamentos da Educação basilar, sem as audácias da Cultura livre, e sem o diálogo entre as duas.
A fala de Augusto Boal vinha ao encontro do que se pretendia com o acordo de cooperação que se
anunciava naquele dia, conforme consta da portaria que criou uma Comissão Interministerial encarregada de
tratar da indispensável colaboração entre as duas pastas, para o desenvolvimento de programas de arte e cultura
nas escolas. Passaram-se dias e meses, sem se ver, pelo menos, reunida tal comissão uma única vez: a preocu-
pação do MinC com sua própria clientela de artistas, intelectuais, escritores, cineastas, animadores culturais,
interessados no financiamento de seus próprios projetos e do MEC em ampliar o tempo e os espaços educativos
nas escolas, bem como discutir com a sociedade seus novos programas, não permitiu que a cooperação se con-
cretizasse em ações efetivas, apesar das boas e sinceras intenções de ambos os lados.
No MinC, surgiram diversas ações, como a implementação dos Pontos de Cultura e outras ativi-
dades que buscavam ampliar a cidadania cultural e, no MEC, ampliaram-se os horizontes com o desen-
volvimento do programa Mais Educação. Entretanto, ainda não se materializavam as atividades educativas
nas escolas, um pouco porque estas não abriam seus portões para a entrada do novo; em parte, também,
porque os animadores culturais não estavam acostumados a saírem de seus espaços ou mesmo não estavam
preparados para atividades educativas. Entretanto, o principal entrave para a ampliação dos espaços educati-
vos continuava a ser o tempo de permanência dos estudantes nas escolas. Com um turno apenas, de três ou
quatro horas diárias, não é mesmo possível exigir muito mais do que era feito. Foi necessário esperar outro
momento, o do lançamento do PDE-Plano de Desenvolvimento da Educação para se conseguir avançar.
O representante japonês que compareceu à Rio + 20 foi apresentado como o ministro da Educação, Cultura,
Ciência e Tecnologia, Meio Ambiente e Esportes, integração que já havia feito o ministro Gustavo Capanema nos
seus tempos. Ele praticamente inventou a UNESCO antes de a UNESCO existir, juntando em uma só
pasta a Educação, a Ciência e a Cultura, com anos de antecedência; sem nos esquecermos de que o seu
ministério incluía também a Saúde. Partiu de um diagnóstico e indicava equações para os grandes, e ainda
atuais, problemas nacionais, prioridades nacionais e solução nacional: a Educação e a Saúde Pública. Mais
tarde, em um momento feliz: Brasília. Darcy Ribeiro, por um lado, e Anísio Teixeira, por outro, deram
ao Presidente JK e seus utópicos Oscar Niemeyer, Lucio Costa e Roberto Burle Marx o que poderíamos
chamar de plano humano. Era um plano ambicioso para a educação básica e superior; estavam a inventar
o Brasil, como eles mesmos disseram.

Brasília: nasce uma cidade educadora

As afinidades eletivas de Lucio Costa e de Juscelino Kubitscheck quanto a Brasília ficam evidentes,
pois o reconhecido arquiteto urbanista não queria apenas apresentar um projeto para a nova capital, queria
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

mesmo era ajudar Juscelino a realizar seu sonho e sua promessa, o projeto utópico de uma nova civilização
nascida da Capital da Esperança, a NOVACAP, que influenciou a música, o cinema e a cultura nacional,
pois também estava na cabeça de todos os brasileiros.
Maria Elisa Costa afirma que seu pai, Lucio, não apresentou o projeto no concurso da nova capital
para provar alguma teoria ou demonstrar algum novo aspecto da arquitetura moderna, que ele também in-
ventou no Brasil. Não precisava disto. Ele queria muito mais do que apresentar um projeto: Lúcio era sócio
da utopia JK.
Há algum tempo, em um seminário sobre o patrimônio histórico, participei de um debate sobre as
cidades históricas mineiras, cujas construções estão em permanente ameaça em tempo de chuvas. Ali refor-
cei o argumento de que todas as cidades são históricas, pois todas têm a própria história para contar.
Assim também são as cidades educadoras, qualquer cidade pode tornar-se educadora. Em toda e
qualquer cidade, pequena ou média, ou mesmo nos bairros ou periferias das grandes cidades, e mesmo das
megalópoles que já temos no Brasil, poderemos reconhecer o território em que se insere a escola ou as escolas
de determinada localidade, de forma a aproveitar ao máximo todas as possibilidades educativas sem perda
de qualidade. Podemos sempre agir localmente, sem deixar de ter uma consciência global dos problemas
da modernidade. As crises da modernidade nos atingem a todos, sejam as questões ecológicas, climáticas,
econômicas, sejam as novas problemáticas de mudança da escola e do processo de aprendizagem e ensino.
Para mudar a escola, temos de mudar também a maneira como vemos a cidade, a família, a comunidade e
a organização social onde aquela se insere.
No caso de Brasília, temos um caso exemplar, pois essa é a verdadeira intenção de se chamar o
plano urbanístico de Plano Piloto; de se chamar a concepção da primeira superquadra como Superquadra
Modelo e de se considerar modelar o Planejamento do Sistema Escolar Público de Brasília escrito por
Anísio Teixeira, em 1957, e implantado em 1960, ao mesmo tempo que se concluía a construção das
primeiras unidades residenciais do Plano Piloto de Lúcio Costa. Note-se que, ao mesmo tempo que Oscar
Niemeyer absorvia em seus projetos arquitetônicos as ideias de Lucio Costa, também Burle Marx e artistas
como Volpi e Athos Bulcão colaboravam com o paisagismo e as obras de arte para desenharem as escalas
residenciais e bucólicas do mesmo Plano Piloto. Estabelecidos esses parâmetros, Anísio Teixeira tratou de
aproveitar a genial concepção dos arquitetos para imaginar o sistema educacional, tomando por base a unidade
de vizinhança, ou seja, o conjunto de cada quatro superquadras.

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Parte I

Práticas transculturais

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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

Partilha da verdade universitária no campus da Praia Vermelha|UFF:


a construção da oca xinguana como protótipo bioclimático

Dinah Papi Guimaraens


Arquiteta e Professora da Universidade Federal Fluminense PPGAU-UFF
Marina Vasconcellos de Carvalho
Designer e Mestre em Arquitetura e Urbanismo PPGAU-UFF

B
aseando-se no conceito de filosofia transcultural da UNESCO sugerido
pelo filósofo Jacques Poulain, busca-se aqui discutir formas dialógicas de comunica-
ção informal entre culturas indígenas e o conhecimento formal universitário acadêmi-
co. Pretende-se, para isso, abandonar a imagem antropológica à qual a pragmática
contemporânea nos submete — a imagem do homem que quer controlar a si mesmo
da mesma forma como quer controlar o mundo — para que possamos dar ensejo,
finalmente, ao diálogo transcultural em que vivemos. Ao se colocar em prática, esta
comunicação informal permitiria a concepção da partilha do julgamento de verdade
enquanto lugar de construção intelectual de culturas, na contramão das limitações da
interculturalidade ou da multiculturalidade, bem como a realização de um exercício
reflexivo de autoavaliação crítica a partir da investigação transcultural.
O projeto educativo sobre arquitetura bioclimática do Espaço Paisagem e
Lugar/Museu Vivo estabeleceu práticas dialógicas projetuais e construtivas entre ín-
dios da Aldeia Maracanã, no Rio de Janeiro, indígenas Aweti, Yawalapiti e Kamayurá
do Alto Xingu, Mato Grosso, professores e estudantes universitários, incluindo um
protótipo de arquitetura tradicional implantado, em novembro/dezembro de 2014, na
Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói. Desta forma, materializou-se
no campus da Praia Vermelha, através de um Canteiro Experimental, um protótipo
de arquitetura indígena (oca) com estrutura de madeira e bambu; embira, fibras ex-
traídas de casca de árvores utilizadas nas amarrações e sapê como cobertura, para
experimentação de saberes tradicionais no Museu Vivo implantado. Contando com
apresentações rituais em uma grade de eventos que procurava contemplar as atividades
cotidianas da vida indígena, explicitou-se ali como era a vida do índio no seu dia a dia,
seus costumes e sua visão de mundo.
O objetivo maior do Museu Vivo é fortalecer o patrimônio cultural imaterial
indígena através da apresentação de danças, rituais, atividades artístico-artesanais e da
cura pelas ervas medicinais, inserindo-se assim, igualmente, no Livro de Registro das
Celebrações proposto pelo Departamento de Patrimônio Imaterial (DPI) do Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), do Ministério da Cultura
(MinC). O caráter inovador do atual projeto reside na atualização de uma visão de
dentro, ou seja, dos próprios índios sobre a visão civilizada ocidental sobre eles. Ao
38
Painel Transcultural I pintado por Duda Oca Xinguana sendo construída no Oca Xinguana e Painel Transcultural II
Penteado no seminário Museus e Trans- terreno da UFF, na Praia Vermelha, realizado por Duda Penteado no Fórum
culturalidade. MAC-Niterói, RJ, 2013. Niterói, RJ, 2014. Arte-Ação Transcultural. MAC-Niterói/
RJ, 2014.

possibilitar uma vivência das formas de construir e habitar dos indígenas brasileiros, assim como ao divulgar
e comercializar objetos etnográficos e turísticos de temática nativa, este projeto pretende enriquecer a troca
de saberes entre as culturas indígenas tradicionais e as culturas urbanas abrangentes.
Ao lado de apresentações rituais de grupos indígenas tradicionais, no Museu Vivo, os índios urba-
nos residentes no Grande Rio ali realizam um processo de feedback crítico em relação à linguagem complexa
da sociedade nacional que, sem nunca haver avistado um único indígena em sua vida cotidiana na corte ca-
rioca durante a época colonial, conseguiu reproduzir na obra Primeira Missa no Brasil, do artista acadêmico
Vítor Meirelles, os integrantes das tribos Tupinambá, etnia quase inteiramente dizimada pelos portugueses
e cujos sambaquis ocupam atualmente a costa litorânea do estado do Rio de Janeiro.
Qual é, então, o papel da universidade ante a mundialização que ameaça irrevogavelmente diluir as
diferenças regionais na América Latina? A fim de estabelecer um diálogo interdisciplinar e intercultural ao
longo da América Latina, a Universidade Federal Fluminense, com a cooperação da Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO, encontra-se envolvida em uma proposta inovadora de estética transcul-
tural que já envolve outros países latino-americanos. Tal projeto foi apresentado por Jacques Poulain, titular da
cadeira UNESCO de Filosofia da Cultura e das Instituições pela Universidade Paris 8-Saint Denis, durante
uma visita à Universidade Federal Fluminense.
De acordo com o próprio Poulain, a universidade visa permitir o fortalecimento social da cultura
no ser humano, favorecendo uma mente crítica que se atualiza através da filosofia, da literatura, das artes
plásticas, da arquitetura, da música, da cultura de comunicação e da história. Desta forma, os eixos teóricos
a serem desenvolvidos pelo Museu Vivo envolvem diversas práticas culturais e transculturais no Brasil, na
América Latina, no México, na Austrália, no Canadá, na África e nos Estados Unidos da América, levando
em conta a valorização do patrimônio imaterial da humanidade e os aparelhos museológicos como espaço de
perpetuação da memória de um povo e como instrumento de emancipação e reconhecimento de identidades
de países e comunidades.

Museu vivo: protótipo de arquitetura bioclimática indígena

O Museu Vivo se baseia no conceito de arquitetura bioclimática pesquisado, na Amazônia, por


Severiano Mário Porto e outros arquitetos brasileiros, cujo modelo se contrapõe arquitetonicamente, em seu
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

regionalismo conceitual, à unificação e massificação da globalização por que passam as práticas da arquite-
tura contemporânea de lógica projetual digital.
Os eixos teóricos desenvolvidos no projeto podem ser assim resumidos:
a) O patrimônio imaterial da humanidade e os aparelhos museológicos como espaço de perpetuação da
memória de um povo e como instrumento de emancipação e reconhecimento de identidades de países e comu-
nidades, destacando, entre estes, os ofícios de construção de ocas indígenas do período colonial aos dias de hoje;
b) A filosofia e a antropologia transcultural como arcabouço intelectual para se fazer um bom
diagnóstico da realidade pós-moderna da Cultura e do Estado;
c) O conceito do Museu das Origens (1978), de Mário Pedrosa, que enfoca como as culturas vivas
representadas por nossas artes indígenas, africanas/afrobrasileiras, populares e de imagens do inconsciente
desaguaram na arte moderna/contemporânea, conclamando desta forma os povos do terceiro mundo a as-
sumirem seu papel no palco da contemporaneidade.
É dentro da ótica contemporânea da transculturalidade estética que o Museu Vivo pretende desvendar
algumas pistas sobre as questões filosóficas que perpassam o presente momento histórico, na visão de Mário
Pedrosa: “Em países como os nossos, que não chegam esgotados, ainda que oprimidos e subdesenvolvidos,
ao nível da história contemporânea, [...] quando se diz que sua arte é primitiva ou popular vale tanto quanto
dizer que é futurista.”

Esta arte viva, mencionada por Pedrosa para definir a pujança das culturas indígenas, pode ser sim-
bolizada pela tensão estabelecida entre o apolíneo e o dionisíaco como manifestações da arte e da vida, pre-
sentes no pensamento de Friedrich Nietzsche e apresentados em sua primeira obra: O nascimento da tragédia:
ou helenismo e pessimismo (Die Geburt der Tragödie oder Griechentum und Pessimismus) (1871). Vilém Flusser,
no livro Ficções Filosóficas, de 1998, apropria-se deste conceito nietzschiano para expressar as características
de uma arte viva pós-moderna, caracterizada por duas revoluções arrasadoras: a telemática e a biotécnica.
Assim, como falar de inovação tecnológica ao tratar das culturas vivas nativas brasileiras na atualidade?
No caso da pertinente discussão sobre uma arquitetura bioclimática ou verde, como buscar então inspi-
ração nas ocas indígenas amazônicas, xinguanas e do litoral do país? Arquitetos como Severiano Mário
Porto já estiveram lá, pesquisando as técnicas tradicionais populares na habitação do Amazonas para criar
novos protótipos de uma arquitetura inteligente e adequada ao clima brasileiro úmido e tórrido, com am-
plos telhados de cobertura vegetal que permitem a saída do ar quente e o resfriamento térmico do espaço
interior. Será que é possível agora, a partir da revolução telemática discutida por Flusser, criar protótipos
inovadores de ocas digitais, nos quais a tecnologia de ponta se alia a técnicas construtivas milenares? Esta
é uma das indagações levadas a cabo pelo atual projeto.

A implantação de um espaço arquitetônico de canteiro experimental de bioarquitetura indígena e a


realização das atividades desenvolvidas em um Museu Vivo possibilitaria à universidade cumprir sua missão
de docência, pesquisa e extensão universitárias ao permitir o acesso de agentes indígenas à educação digital
e sua inserção em novos postos de trabalho, ocasionando a inclusão social dos índios urbanos, ocupantes da
Aldeia Maracanã/RJ e, indiretamente, das aldeias Guarani fluminenses, através de:
a) Treinamento em Arquitetura Bioclimática e Tecnologia Digital, procurando estabelecer uma
visão crítica dos indígenas quanto aos objetos de cultura material por eles criados;
b) Oficinas de técnicas artesanais tradicionais indígenas tais como cerâmica, tecelagem, cestaria,
esculturas em madeira; contos, lendas e mitos; dança e música de cunho ritual;
c) Aplicação de técnicas inovadoras para a reforma das casas tradicionais indígenas (ocas), com isola-
40
mento em resina de poliuretano, a ser aplicado no pauapique das empenas externas e no sapê das coberturas;
d) Incentivo à alimentação tradicional indígena através da discussão de técnicas de replantio de
espécies naturais da Mata Atlântica;
e) Interligação das comunidades indígenas que habitam o estado do Rio de Janeiro com outras al-
deias indígenas em nível nacional e internacional, através da Internet, com o objetivo de divulgar a memória
viva e a tradição oral indígena, fazendo uso do instrumental da economia de troca existente nas culturas
comunitárias indígenas.
Caberia ao IPHAN/MinC, por sua vez, colaborar com a universidade para o mapeamento, a docu-
mentação, o apoio e o fomento ao patrimônio cultural imaterial dos grupos indígenas que se encontram disper-
sos no meio urbano do Grande Rio, ao possibilitar a estruturação de um espaço acadêmico transcultural como
de agregador social e cultural das tradições orais, artesanais, rituais e performativas de nossas culturas nativas.
O Museu Vivo, ora proposto, representa um projeto técnico-universitário de pesquisa, documen-
tação e tratamento de informação para a melhoria das condições de continuidade e sustentabilidade dos
saberes, modos de fazer, formas de expressão, festas, rituais, celebrações, lugares e espaços que abrigam práti-
cas culturais coletivas vinculadas às tradições das comunidades indígenas. Os benefícios culturais a serem
auferidos a partir da implantação do Museu Vivo, através de uma ênfase na pesquisa e na documentação
digital dos saberes construtivos indígenas (ocas e malocas), têm como público-alvo, ao lado do público em
geral, os corpos docente e discente da UFF e da UNIRIO, incluindo representantes da Universidade Paris
8-Saint Denis envolvidos na pesquisa n. 752/12 CAPES-Cofecub, “A Estética Transcultural na Universi-
dade Latino-Americana”.
Permanentemente, este museu apresentaria produtos interativos digitais e objetos indígenas, como
a construção de ocas indígenas, cestaria, artesanato de sementes, cerâmica, esculturas de madeira, perfor-
mances de música/dança e gastronomia tradicional, colaborando para a melhoria das condições de continui-
dade e sustentabilidade dos saberes, modos de fazer, formas de expressão, festas, rituais, celebrações, lugares
e espaços que abrigam práticas culturais coletivas vinculadas às tradições das comunidades indígenas que
habitam o estado do Rio de Janeiro, ou seja, dos cerca de 35.000 índios urbanos que ocupam as habitações
de baixa renda do Grande Rio.

Museu das origens: alegria de viver, alegria de criar (1978)

Indignação e lamentos à parte, o sinistro que destruiu o acervo do Museu de Arte Moderna/MAM-
Rio, em 8 de julho de 1978, trouxe à tona um momento privilegiado na cena cultural para se repensar a
função estética e histórica da instituição museológica. Após este incêndio, o crítico de arte Mário Pedrosa,
de volta do exílio político em Paris, depois do golpe que depôs Allende, no Chile, em 1977, propôs retomar
as origens das artes plásticas nacionais, estimulando a matriz indígena a ocupar seu espaço.
A exposição “Alegria de Viver, Alegria de Criar”,1 por ele concebida, representa a possibilidade de
renovação artístico-cultural, na medida em que constituía, nas palavras do próprio Pedrosa, uma apresentação
de valor histórico, artístico e cultural da primeira nação que aqui ocupou territórios e montou suas aldeias e
seus artefatos, simbolizando uma comunidade que organizou a vida homogênea de prodigiosa sabedoria no

1
Mário Pedrosa lançou, como renovação estética em 1975, em Paris, juntamente com os críticos Miguel Rojas e Jacques Lassaigne, o livro Arte
na América Latina desde a Descoberta, e também o texto de introdução no catálogo de exposição de Alexander Calder na Galeria Maeght (Mário
Pedrosa: “A Bienal, hoje, é uma promoção superada”, em depoimento a Sheila Leiner para o jornal O Estado de São Paulo, 31 de agosto de 1975.)

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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

fazer e no conceber, as quais constituem as primeiras manifestações de arte autêntica saídas do nosso território.
Enfatizando a delicadeza da arte plumária indígena esta mostra, com curadoria da artista plástica Ly-
gia Pape que não chegou a se concretizar, deveria ocupar três andares do MAM-Rio. A exposição incluía um
manto tupinambá do século XVI, peças arqueológicas da era paleolítica, adornos corporais, filmes e instru-
mentos musicais e, principalmente, a construção de uma oca xinguana Yawalapiti ocupando o pé direito do
museu, com o intuito de demonstrar que “arte não é coisa artificial, mas que vem do homem, qualquer que seja
a tecnologia em que viva”.2 Para Pedrosa, a tecnologia prepara, mas não cria nada, nem ontem nem hoje.
Segundo este crítico de arte, era raro encontrar exemplos parecidos com o da cultura indígena
porque “a altíssima civilização sob a qual vivemos e sofremos, não une, mas dispersa os povos espalhados
pelo mundo, tendo a propriedade cada vez mais angustiante de confundir progresso com técnica e criação
com produção.”3 A incapacidade de criatividade autêntica surge sob a aparência de progresso e conduz a
contradições irredutíveis os povos do terceiro mundo, enquanto os índios demonstram que o trabalho não
é uma maldição, mas que, dentro de seu meio, é uma permanente fonte de alegria criativa, ao lado das con-
tribuições de ordem artística e cultural que atestam sua irreprimível força criativa.
Lançou ele nos pilotis incendiados do MAM, em 1978, entre a ginga dos passistas e ao som dos tambores
da Escola de Samba da Mangueira, o Manifesto do Museu das Origens, em que previu o estabelecimento de cinco
módulos: Museu do Índio, Museu de Arte Virgem (Museu do Inconsciente), Museu de Arte Moderna, Museu do
Negro, Museu de Artes Populares, como alternativa histórica da crise artística vivida pela vanguarda brasileira.4
Em Discurso aos Tupiniquins ou Nambás, Pedrosa (1975)5 questionava a continuidade da arte
moderna buscando responder à pergunta: nas sociedades desenvolvidas em que a arte, como luxo estetizante,
sucumbe diante da voracidade do mercado capitalista, as vanguardas dos países da periferia, erroneamente,
estariam em busca da ultimíssima novidade, em vez de perceber que a história cultural do terceiro mundo não
repetirá o desenvolvimento desses países, podendo, no lugar disso, construir sua própria história, tal como
ocorre no campo da arte, da arquitetura contemporânea e mesmo na morfologia das favelas:

Na fase histórica em que estamos vivendo, o Terceiro Mundo, para não marginalizar-se de todo,
para não derrapar na estrada do contemporâneo, tem que construir seu próprio caminho de desenvolvim-
ento, e forçosamente diferente do que tomou e toma o mundo dos ricos do hemisfério norte. [...] Ele tem que
expulsar de seu seio a mentalidade “desenvolvimentista” que é a barra em que se apóia o espírito colonialista
[...]. Os pobres da América Latina vivem e convivem com os escombros e os cheiros inconfortáveis do pas-
sado. Os ultramodernistas e alguns de seus progressos, de molde comumente americano, estão umbilical-
mente vinculados às nossas favelas e barriadas. O paradoxo é que estas são as que não mudam, como não
mudam a miséria, a fome, a pobreza, choças e ruínas. Mas é por aí que passa o futuro. Aqui está a opção do
Terceiro Mundo: um futuro aberto ou a miséria eterna. [...] Entretanto, abaixo da linha do hemisfério satu-
rado de riqueza, de progresso e de cultura, germina a vida. Uma arte nova começa a brotar. (PEDROSA,
1975 apud Arantes, 1995).

2
A arte não é fundamental. A profissão do intelectual é ser revolucionário…Entrevista concedida ao Pasquim, 18 de novembro de 1981.
3
Mário Pedrosa – Repensando uma estética nacional a partir das cinzas do MAM. Entrevista de Mário Pedrosa a Maria Angélica Carvalho para o
jornal O Globo, 14 de julho de 1978.
4
Pedrosa, M. (1995). O novo MAM terá cinco museus. É a proposta de Pedrosa. In ARANTES (1195, p. 309-312).
5
Mario Pedrosa. Discurso aos Tupiniquins ou Nambás. Redigido em Paris, 1975. In ARANTES (1995).
42
Espaço Paisagem/Museu Vivo: agir comunicativo e Aldeia Maracanã

Ocorre uma analogia entre a construção, no campus da Prais Vermelha da UFF, ao lado do poste-
rior desmonte, em abril de 2015, cinco meses depois, de uma oca xinguana, a qual foi erigida tendo como
inspiração a proposta original de Mário Pedrosa para o MAM-Rio, posterior ao seu trágico incêndio. Como
protótipo do curso de “Arquitetura Bioclimática Indígena” ministrado na Escola de Arquitetura e Urban-
ismo, tal evento revela, na forma como ocorreram os fatos, vicissitudes comuns com aquele sinistro que
teve lugar no referido museu quanto ao descaso das instituições educativo-culturais relativo ao patrimônio
histórico-cultural material e imaterial. Tal evento aconteceu de fato, no mesmo momento em que locais
da cidade do Rio de Janeiro e de Niterói se afirmaram como Patrimônio Mundial da Humanidade como
paisagem cultural urbana.
O Espaço Paisagem/Museu Vivo representava um protótipo de arquitetura bioclimática transcul-
tural baseado em métodos construtivos tradicionais indígenas, com a previsão de um espaço multiuso para
abrigar um Laboratório Transcultural da Paisagem e do Lugar, TRANSPALU e, o funcionamento de um
observatório da paisagem que permitiria a apreciação científica dos bens naturais e ambientais registrados
pela UNESCO, visando à requalificação arquitetônico-paisagística e urbanística da Baía de Guanabara pela
equipe técnica da Escola de Arquitetura e Urbanismo/EAU. Contou tal projeto com a inspiração do registro
pela UNESCO (2012) do Rio de Janeiro/Niterói, como o primeiro caso de paisagem cultural urbana.
Segundo o IPHAN/MINC, os locais da cidade valorizados com o título da UNESCO são alvos
de ações integradas voltadas à preservação da paisagem cultural, nas quais se incluem o Forte e o Morro do
Leme, o Forte de Copacabana e o Arpoador, o Parque do Flamengo e a Enseada de Botafogo, a entrada da
Baía de Guanabara e Fortaleza de Santa Cruz, arredores do campus da Praia Vermelha da UFF. No dia
1º de julho de 2012, a cidade do Rio de Janeiro foi contemplada como o primeiro centro urbano a receber
o título da UNESCO de Patrimônio Mundial como paisagem cultural urbana. A candidatura, apresentada
pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) foi aprovada durante a 36ª Sessão do
Comitê do Patrimônio Mundial que esteve reunida em São Petersburgo, na Rússia, a partir de 25 de junho
daquele ano.
Um dos principais objetivos do projeto transcultural consiste em revelar como a universidade
pode imprimir inovações pedagógicas em educação no contexto multicultural brasileiro. Tal conceito
se encaixa nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afrobrasileira e Indígena, segundo a Lei nº 11.645 de 10/3/2008. De acordo
com o decreto nº 3.551 de 04/8/2000 do Departamento de Patrimônio Imaterial (DPI) do Instituto de
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), o protótipo do Museu Vivo baseia-se na natureza
intangível dos bens que constituem o patrimônio cultural brasileiro (GUIMARAENS, 2003), no que
diz respeito às formas de construção de habitações tradicionais indígenas do Xingu, da Amazônia e das
comunidades costeiras.
A comunicação transcultural do deste projeto se centra, portanto, em um espaço dialógico, o qual se
baseia, por sua vez, na avaliação antropológica, arquitetônica e territorial das culturas indígenas envolvidas.
Vários grupos étnicos, em todo o país, estão criando museus vivos, revelando, assim, como as populações
indígenas estão ansiosas para integrar e participar como cidadãos comuns na sociedade brasileira. O museu
pode ser percebido como um espaço fragmentário, em que as representações culturais e políticas das relações
estabelecidas entre diferentes grupos e categorias sociais são encenadas. A contribuição da antropologia para
o campo da museologia reside na elaboração de autoconhecimento no que diz respeito à articulação cul-
tural a ser aplicada dentro dos museus, decodificando hierarquias sociais existentes em tais instituições. Os
43
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
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objetos museológicos constituem parte de um sistema de comunicação através do qual indivíduos, grupos e
categorias sociais podem trocar informações relativas ao seu status e suas posições sociais. Estes objetos de-
marcam posições precisas e identidades, podendo realmente produzir uma forma inovadora através da qual
indígenas e outros grupos sociais logram experimentar novos sistemas identitários. O diálogo transcultural
deriva, portanto, da capacidade de cada cultura de se propor como aquela forma de vida que todos podem
partilhar em um espaço dialógico de amplo alcance.
O Museu Vivo deriva, ainda, de uma postura participativa que permite aos índios se tornarem seus
membros, seja como curadores, docentes e até mesmo como construtores. Pretende-se, com este projeto, re-
sponder às seguintes questões que exploram vínculos entre o patrimônio cultural imaterial indígena, o meio
ambiente — inerente a uma arquitetura bioclimática — e à indústria criativa da cultura:
1) Como pode a reconstrução coletiva do passado indígena, no presente, representar um movi-
mento para se imaginar um futuro mais justo cultural e socialmente na América Latina?
2) Como é que o passado das populações urbanas indígenas pode afetar questões de sustentabili-
dade social (ou sustainismo, termo que se opõe a já esgotada “sustentabilidade”), incluindo a capacidade de
adaptação, coesão e identidade das comunidades nativas?
3) Como a aplicação do conhecimento do passado nos desafios sociais contemporâneos e futuros,
especificamente no que se refere ao bem-estar das sociedades indígenas brasileiras, pode ser encarada como
uma questão crítica na atualidade?
Nas megacidades brasileiras do Rio de Janeiro e de São Paulo, a separação problemática entre na-
tureza e cultura apresentada pelas ontologias ocidentais é reproduzida na oposição de elementos naturais e
culturais nas paisagens, resultando na separação problemática dos recursos naturais e culturais nas questões
de planejamento e desenvolvimento. A participação popular em relação à arquitetura e ao urbanismo e as
representações de cidadania centram-se na ação comunicativa (HABERMAS, 2003), o que pressupõe certo
grau de autonomia individual e coletiva através da reflexão crítica sobre a liberdade. Este conceito refere-se
à tradição iluminista que permite a criação de políticas repressivas temporais no ambiente urbano.
Para Kant, no âmbito da prática, a razão logra se capturar a si mesma, na medida em que é constitu-
tiva para o agir moral. O agir comunicativo assinala interações sociais para as quais o emprego da linguagem,
orientado pelo entendimento, assume o papel de coordenador da ação. A teoria da linguagem, especialmente
a semântica que desvenda o sentido das exteriorizações linguísticas através da compreensão da linguagem,
representa o lugar no qual uma pragmática formal, de procedência kantiana, pode se encontrar com pesquisas
do campo analítico (HABERMAS, 2007, p. 65).
À guisa de reflexão conclusiva, surge aqui a discussão de Jacques Poulain (1992, p. 74-75) sobre o
diagnóstico heideggeriano da modernidade como pensamento da vontade de poder e como subordinação
da razão teórica a uma razão prática cega sobre si mesma, que não tem outra função a não ser reprimir o
que fala em cada palavra, ou aquele que pensa em cada pensamento: o ato de julgar. Segundo Poulain, a
renúncia ao julgamento que se exige, fazendo com que todos pensem seu pensamento, conduz a uma atitude
de agnosia típica do autista que se tranquiliza ao não perceber mais do que um mundo visual indiferenciado
ao seu redor. Ocorre, então, uma perda objetiva do julgamento ético e o abandono da ação à ritualização
e à pragmatização técnica, ao mesmo tempo que o indivíduo se livra de ter de julgar a si mesmo sobre seu
presente ético-político.
Tal perda de julgamento ético, típica de uma pragmática autista tecnocrática, pode talvez justificar,
em parte, o comportamento burocratizado da Reitoria da Universidade Federal Fluminense, que impediu
a permanência da oca xinguana no campus da Praia Vermelha, alegando que este protótipo de arquitetura
bioclimática tradicional não se adequava ao Plano Diretor universitário, por estar situada em um local onde
44
estava, anteriormente, previsto um estacionamento da Agência de Inovação da Pró-Reitoria de Pesquisa,
Pós-Graduação e Inovação/PROPPI. Opondo-se a um abandono da ação à ritualização e à pragmatização
técnica típica do autismo neoliberal no capitalismo tardio, que parece imperar na universidade brasileira em
um campo prático-teórico do agir comunicativo, o Museu Vivo, com sua proposta universitária transcultur-
al, pretende contribuir para uma reflexão crítica do espaço urbano que também se define pela participação
de uma nova classe média articulada por redes virtuais.
A partir de junho de 2013, entraram em erupção forças coletivas disseminadas através das redes sociais
indicando que, como foi sugerido por Lévy (1996), o espaço virtual é um espaço real. Reivindicações da juven-
tude, que se posicionou contra a expulsão dos indígenas da Aldeia Maracanã, em março de 2013, finalmente
fluíram para a manifestação pública de Black Blocs e desaguaram nos rolezinhos que invadiram os shoppings
centers brasileiros. Pretende-se, assim, ampliar o alcance do conhecimento universitário a fim de encontrar
soluções viáveis para o impasse técnico-governamental atual em áreas urbanas de transporte e de habitação.
Tal fato se junta às reivindicações indígenas para a preservação e a restauração do prédio histórico da Aldeia
Maracanã, que foi ocupado por índios urbanos como uma espécie de bandeira nacional, o que possibilitou o
surgimento de novas identidades culturais e políticas no Rio de Janeiro, ao buscar uma resposta instigante a
esta questão: como o patrimônio imaterial indígena se encontra vivo em centros urbanos do Brasil atual?

Projeto do Museu Vivo

A partir do Canteiro Experimental, o projeto de arquitetura, seu detalhamento e o projeto paisagístico


do Museu Vivo foram representados aplicando-se conceitos de arquitetura bioclimática junto à estética digital
arquitetônica. Em busca do diálogo transcultural com as culturas nativas envolvidas no processo projetual
da arquitetura, a metodologia de pesquisa lançou mão do método comparativo da antropologia social no
sentido de investigar e documentar os processos construtivos indígenas, interligando-os às técnicas digitais
da arquitetura contemporânea, objetivando, assim, alcançar um produto híbrido colaborativo para a criação
do Museu Vivo.
Cada etapa do trabalho contava com uma equipe diversificada composta por indígenas, alunos e
professores da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense. Sua implantação
decorreu de um programa arquitetônico traçado na cadeira de projeto de arquitetura, como o protótipo da
aluna Liza Ferreira de Souza. O objetivo do projeto partiu de um diálogo transcultural baseado na estrutura
mítica do universo Guarani, inspirando-se na arquitetura de Severiano Mario Porto. Este projeto segue um
pensamento que se refere à escala humana e à harmonização da edificação com o meio ambiente. Como
estratégia de ação para o Museu Vivo, foi projetado o estabelecimento de oficinas e exposições vivas, tem-
porárias e permanentes, contando com um palco de apresentação musical e coral; espaços para a exibição de
filmes etnográficos, contos, mitos, lendas e informações sobre ervas medicinais, além de um restaurante com
gastronomia indígena na parte interna da edificação.
Na parte externa foi pensado uma área própria para construção de uma oca temporária para ex-
posições e produção de artesanato indígena e um auditório para palestras, debates, seminários e aulas ao ar
livre que teria uma cobertura em quatro águas, inspirado nas quatro estações. No paisagismo, se pretendia
utilizar espécies de vegetação típica indígena com o emprego da palmeira Juçara, entre outras plantas da rica
flora brasileira nativa, dispondo de uma área destinada ao plantio de espécies vegetais de grande significado
cultural indígena, sobretudo para os Guarani, como a mandioca, o milho, a batata doce, a banana e a mel-
ancia. Cabe lembrar que os índios participaram de todas as ações do projeto apresentado.
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
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Projeto Museu Vivo | TFG


Trabalho final de graduação.
Aluna: Liza Ferreira de Souza, 2011.

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Projeto de TFG - 1, 2, 3, 4 e 5 1 2 3

4 5 Simulação do Museu Vivo no campus da


Praia Vermelhada UFF - 6
4


Referências

ARANTES, Otília. Política das artes. Mário Pedrosa. Textos escolhidos I. São Paulo; Edusp, 1995.
FLUSSER, Vilém. Ficções filosóficas. São Paulo, EDUSP, 1998.
GUIMARAENS, Dinah. Museu de arte e origens: mapa das culturas vivas guaranis. Rio de Janeiro; FAPERJ/
Contracapa, 2003.
HABERMAS, Jurgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro; 2007.
Consciência Moral e Agir Comunicativo. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro; 2003.
LÉVY, Pierre. O que é o virtual? São Paulo; Editora 34, 1996.
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia: ou helenismo e pessimismo. São Paulo; Editora Schwarcz
Ltda., 1992 (1871).
PORTOCARRERO, José Afonso. Tecnologia indígena em Mato Grosso. Cuiabá; Entrelinhas, 2010.
POULAIN, Jacques. De L’Homme: éléments d’anthropobiologie philosophique du language. Paris; CERF,
2001.
POULAIN, Jacques & SCHIRMACHER, Wolfgang. Penser apres Heidegger. Paris; L´Harmattan, 1992.
SOUZA LIMA, Mirian Aiko e OLIVEIRA, Beatriz. Por um regionalismo coeficiente: a obra de Severiano
Mário Porto no Amazonas. São Paulo; Martins Fontes, 1985.

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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

Escola xamânica: arte e transculturalidade na Amazônia ocidental

Guilherme Werlang
Professor do Departamento de Artes do Instituto de Arte e Comunicação
Social (IACS-UFF)

1 Do um sem o múltiplo
1.1 O dualismo ameríndio: a falência do Estado

E m um artigo publicado em fins dos anos de 1990, ([17]), sobre a cosmo-


logia de índios falantes de uma língua tupi, Tânia Stolze Lima, etnóloga brasileira, faz
referência a uma assertiva xamânica já famosa entre os Guarani, povos da mesma raiz
linguística tupi, conforme Pierre Clastres: “Les choses en leur totalité sont une; et pour
nous qui n’avons pas désiré cela, elles sont mauvaises.” ([3]:170)

Essa assertiva tem uma significação cosmológica, na medida em que esses


povos sustentam que sua existência é irremediavelmente incompleta, trágica, até. Os
Guarani desejam ser seres perfeitos sobre uma Terra imperfeita: sua existência seria um
devir constante, uma jornada constantemente incompleta rumo a um estado inalca-
nçável, ao longo de suas vidas, de completude, de universalidade mesmo. Esse estado
seria a imperfeição, na vida; mas poderia significar, outrossim, a perfeição, na morte.
O universo dos viventes seria um mundo unívoco, por oposição à ambivalência da
morte. E a univocidade, segundo os Guarani, é má: “[…] que dit la pensée Guarani?
Elle dit que l’Un, c’est le Mal.” ([3]:171)
Clastres, entrementes, chama nossa atenção para os perigos do estruturalismo: as
inversões automáticas das dicotomias comparativas poderiam nos induzir a pensar que o
pensamento ameríndio rejeita o que o ocidental buscou. Para os Guarani, “a totalidade”,
“a completude” e “a universalidade” não são o contrário da multiplicidade, como entre os
pré-socráticos. De resto, elas não evocariam a reunião de todas as coisas apenas, um “todo”
maior do que a soma de suas partes; mas, ao invés, evocariam seu próprio contrário: sua
efemeridade, o sinal de sua imperfeição incompleta, corruptível, de sua finitude.
O mundo do Um, entre os Guarani, segundo Clastres, é o universo da designa-
ção verbal unívoca. A alternativa, contrariamente às conclusões do pensamento oci-
dental, não seria a esfera do Múltiplo; mas, ao contrário, a do Dois. A dualidade seria
a marca da potência, pois abre as possibilidades da ambiguidade, da coexistência do
humano e do nãohumano na mesma existência.
O Um que a filosofia social ameríndia rejeita, em suma, é o Estado, a Justiça, a
48
Igreja, segundo a interpretação bem conhecida de Clastres, seguindo um velho julgamento dos missionários je-
suítas nas terras baixas da América do Sul: que as línguas tupi não tivessem o “r”, o “l”, o “f” era gramaticalmente
coerente com a noção de que seus falantes não tinham um “Rei”, uma “Lei”, uma “Fé”.

1.2 A tradicional loucura animista e os bloqueios interculturais

Os Marubo, povos falantes de uma língua pano, na Amazônia ocidental, sustentam que a realidade
é, de certo, dual: para cada planta venenosa, há uma planta curativa; para cada agenciamento social, natural
ou sobrenatural, há um negativo e um positivo; para cada metade má, há uma boa. Custou-me muitos anos
entre eles, no âmbito de minha pesquisa etnológica, para compreender as implicações de seu dualismo, a um
só tempo anímico e fisiológico, sobre suas relações com o Estado brasileiro.
A prosopopeia ocidental, que atribui subjetividade às instituições governamentais, substantivando,
abstratamente, as posições de poder nas hierarquias dos organogramas burocráticos, é antitética a essa proso-
popeia anatômica indígena. Nós, brasileiros, fetichizamos uma espécie de poder bem personalista à guisa de
funções administrativas: o coordenador é “a coordenação”, o diretor é “a direção”, assim como, quando se trata
de obter um reconhecimento oficial da chefia indígena pelas agências governamentais, deve-se chamar o líder
de “liderança”. Os Marubo, ao invés, projetam suas afecções e suas funções cognitivas sobre certas partes do
corpo, projetando sua cognição e suas capacidades afetivas sobre o meio ambiente. O que resulta, nos encontros
entre as representações indígenas e as do Estado, é a mais pura oposição entre uma subjetividade naturalista e
sobrenaturalista, a dos indígenas, e uma objetividade culturalista, a das instituições do Estado brasileiro.
Esse resultado pode ser descrito, também, como a oposição da universalidade impessoal à per-
sonificação do ambiente circunstancial. A projeção da autoridade do mundo dos Brancos em uma esfera
inacessível aos Índios serve para manter as abordagens indígenas aos agenciamentos sociais a uma distância
que os reduz à efemeridade: para o mundo ocidental, a ausência do universal quer dizer, a contrario sensu,
a presença exclusiva do efêmero. É inadmissível, ao que parece, na estatização dos territórios indígenas,
qualquer forma de dualidade que não seja essa, a reduzir a fugacidade das culturas autóctones aos vestígios
do passado pré-colombiano, por oposição à homogeneização institucional à qual elas são submetidas.
O que resulta é um isolamento em torno das terras indígenas, como se elas fossem os últimos refúgios
para populações sem qualquer contato com os Estados-nação. É certo que elas o são; mas se é verdade que
o Vale do Javari, o mais ocidental dos territórios indígenas no Brasil, abriga a maior concentração de grupos
humanos efetivamente isolados das sociedades industriais em todo o mundo, os povos que lá habitam e já têm
contato com o Ocidente há mais de 150 anos têm a responsabilidade de estreitar as distâncias culturais, para
sanar o mal-estar criado pelos desencontros nas relações indígenas com o Estado.
Eu proponho aos leitores deste artigo uma reflexão sobre essas relações no nível das trocas in-
terculturais, da assistência médica e sanitária e, sobretudo, da educação que o governo brasileiro oferece
aos índios da Amazônia Ocidental. Eu gostaria de explorar as implicações de seu dualismo anímico-
fisiológico — como uma espécie de loucura animista tradicional, na prática e na performance dos saiti e
dos shõti, nos “cantos-mito” e nos “cantos de cura”— sobre a nova escola xamânica do Vale do Javari, que
está em vias de construção entre os Marubo do Alto Rio Ituí.

1.3 O dualismo marubo: a efemeridade incessante

Os Marubo sustentam que seu corpo carnal, yora, divide-se em duas metades. São, ambas, não
apenas dois hemisféricos físicos, mas, ao invés, dois vaká - viz. duas “almas”: a alma do lado direito (mekirí
vaká), a alma do lado esquerdo (mechmirí vaká). Essas duas categorias mantêm uma relação analógica com
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

as duas entidades mais inclusivas de seu mundo sobre-humano, quer dizer, o espiritual e o animal: os “es-
píritos” yové e as “sombras” yochiñ. As muitas outras ditas “almas” desses corpos são redutíveis a essas duas
categorias, sejam às almas “esquerdas”: a alma de suas sombras, dita por eles “nossa alma” (noke yochiñ); a
alma “dos olhos” (verõ yochiñ); as almas das excretas (“dos excrementos”, poiñ yochiñ, “da urina”, isõ yochiñ),
sejam as almas “direitas”: além da alma do lado direito propriamente, a alma do coração “do pensamento e
do sopro”, chinã nato:

alma direita (merikí vaká) => “pensamentos-sopros”(chinã nato) => “espíritos” yové

{
“nossa alma” (noke yochiñ)
alma esquerda (mechmirí vaká) => alma “dos olhos”(verõ yochiñ) => “sombras” yochiñ
alma “dos excrementos” (poiñ yochiñ)
alma “da urina”(isõ yochiñ)

Essas duas categorias anímicas regulam, por exemplo, a lógica do infanticídio entre os Marubo: que
os gêmeos não sejam tolerados entre eles; que o segundo irmão gêmeo ou a segunda irmã gêmea sejam mortos
é sinal de que ele ou ela deve sempre ser “da sombra”, “animal” ou, consequentemente, um agente ligado às
doenças — um yochiñ —, o que quer dizer que um gêmeo, de cada dois gêmeos que nascem, deveria morrer,
ao fim das contas. Essa dualidade, entrementes, não consiste em uma dicotomia de valor moral, mas em um
equilíbrio dinâmico, efêmero, mesmo: a exegese nativa sustenta que a vida não é possível sem ela.

1.4 A temporalidade dos dualismos: círculos e linhas

De fato, caso se admita que essas duas categorias anímicas, com suas contrapartidas cósmicas, são
referenciáveis ao dualismo musical dos mitos marubo — ou, vice versa, que os cantos-mitos têm significação
cosmológica -, elas correspondem a duas moções temporais: a linearidade e a circularidade, a efemeridade e
a reiteração, o transitório e a repetição, como veremos.
Adiante, após alguma informação preliminar, apresento um exemplo concreto: o canto-mito mo-
kanawa wenia, viz. a “emergência dos povos amargos”, também dito “dos povos selvagens ou venenosos”.
Os mitos marubo, ditos saiti, são cantados, normalmente, por um xamã, em uma festa que porta esse
mesmo nome, os saiti. Os participantes mais jovens da festa repetem cada verso do saiti, entoado por um xamã, ao
som de uma célula musical, empregando uma forma de responsório vocal que é seu método de educação coletiva
mais tradicional. É o modelo de escola que esses povos querem seguir, quando pensam sobre os modos de inserção
indígena no sistema governamental do Brasil. É certo que o governo não oferece— mesmo em seus programas de
educação oficiais, bilíngues, oferecidos aos índios— sessões xamânicas durante a noite, com música, com dança,
com pinturas corporais e com substâncias alucinógenas. É ausente, sobretudo, o uso de modos de transmissão do
conhecimento que possam dar conta de suas qualidades dinâmicas, de suas moções temporais, irredutíveis à ausên-
cia do tempo que caracteriza a eternidade na qual o Ocidente projetou sua verdade mais universal.
É essa dinâmica temporal, não obstante, a situação normal em que esses mitos são cantados. É o
caso, acima de tudo e normalmente, de mitos de origem, como todos os mitos cantados entre os Marubo:
aqui, um “canto-mito”, um saiti que narra a emergência original dos povos que habitam a floresta mais
profunda, que sabem utilizar os perigos potenciais dos venenos selvagens— sejam eles vegetais, sejam ani-
mais—, o “amargor” do ambiente, em seu favor:
50
Figura 1: canto-mito mokanawa wenia, o saiti da “emergência dos povos amargos”

O dualismo do canto fala por si só: cada uma das duas metades dessa célula sonora, repetida algumas
centenas de vezes ao longo do canto-mito, corresponde a um verso intercambiável com a outra metade; cada
metade, por sua vez, é divisível em duas metades menores, cuja correlação define a natureza — seja reiterativa
e circular, seja sucessiva e linear — de cada metade maior.
Esse dualismo, concreto assim — mas, também, semelhante às abstrações cosmológicas dos
Marubo —, é o traço mais original de minha etnografia sobre esses índios. A identidade — a ambigu-
idade mesmo, diria Clastres, desde os Guarani -, entre os cantores e as entidades cantadas é um traço dos
mais presentes na etnografia amazônica (e.g. [16], [1]). Seria bem fácil, pois, confundir toda performance
musical indígena desses mitos com a “loucura animista” descrita pelos antropólogos, desde Edward Tylor
e James Frazer ([18], [5]) até Lévi-Strauss e os pós-estruturalistas ([8], [4], [19]). É certo que, por conta de
seu monismo epistemológico, esses povos foram discriminados, no princípio, depois louvados ([2]); como
a cosmologia xamânica em geral, entretanto, esse monismo foi um obstáculo nas interações interculturais
amazônicas entre os indígenas e o Estado, sobretudo no campo da educação.

1.5 A prosopopeia musical marubo

É certo que, na Amazônia ocidental, o mito e a música fazem falar o mundo: o mundo falado (o
mito) é o mundo escutado (a música). A identificação original entre humanos, animais, plantas e outros ob-
jetos da natureza, entre os Marubo, resulta da capacidade de identificação do canto-mito entre os cantores
e os ouvintes, inclusas, entre ambos, as entidades nãohumanas. Sua eficácia é mensurável como capacidade
terapêutica dos cantos de cura, as versões individualizadas e funcionais dos cantos-mito. Os cantos de cura
operam através de um discurso verbal e musical que descreve as doenças particulares, sem que as etiologias
façam referência a categorias patológicas universais: a doença é sempre “de alguém”, como costuma ocorrer
entre nós; mas esse “alguém”, entre eles, não é o nome de um cientista que a descobriu, mas o próprio doente.
Daí que esses discursos musicais de cura sejam sempre individuais; mas são funcionais, também,
porque são julgados com respeito a sua eficácia, não a sua coerência como assertiva ontológica. Ou, melhor
dizendo, são construídos a partir da sintaxe das assertivas ontológicas feitas nos cantos-mitos, cuja veracidade
é apreensível com respeito à percepção xamânica da realidade; mas seu valor semântico é pragmático: como
a retórica antiga, eles “têm sucesso” ou “falham” em curar ([14]:8).
Essa interpretação estaria correta se as relações entre os cantos de cura e os cantos-mitos fossem
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

puramente formais; se a cura fosse, tão somente, psicológica; se a estrutura anímica ameríndia fosse, em
suma, destacável dos corpos indígenas. De fato, assim como o Um ameríndio que Clastres descobriu se
opõe ao Dois, não ao Múltiplo, as almas ameríndias, a se julgar desde o seio da cosmologia marubo, são
potencialmente divisíveis em dois, durante os estados normais de saúde, ao longo da vida, em geral; mas se
dividem, em ato, em dois, apenas nos casos de doença e na morte. Da mesma forma, se o eterno e o impes-
soal anímico se opõem ao tempo unilinear, unidirecional e irreversível entre nós, a música marubo realiza
essa estrutura dual como moções temporais, alternativamente lineares ou circulares.
Dessa forma, a cura mítico-musical indígena é tão pragmática como, por seus fundamentos, tem
valor de verdade. As moções temporais dos cantos identificam os estados humanos de saúde ou de doença
com as duas categorias cosmológicas mais importantes do universo marubo, os yochiñ e os yové. O equilí-
brio entre esses dois tipos de entidades nesse universo é decisivo para a saúde humana; mas trata-se de um
equilíbrio dinâmico, porquanto musical.

2 O dois e seus múltiplos


2.1 A compulsão epistemológica dos antropólogos

Eduardo Viveiros de Castro, em seu artigo sobre o que ele chama de “perspectivismo ameríndio” ([20]),
chama a atenção de seus leitores para a compulsão epistemológica dos estudos antropológicos: seja na caracter-
ização do animismo por Tylor, seja na comparação entre magia e religião por Frazer, seja no conceito sobre o
pensamento selvagem descrito por Lévi-Strauss, todos tentaram, sempre, descrever formas culturalmente dis-
tintas de compreender a realidade, naturalmente, objetiva do mundo. O etnólogo brasileiro propõe examinar
as cosmologias indígenas no âmbito de uma espécie de relativismo ontológico, quer dizer, de um ponto-de-vista
“perspectivista”: como se o indígena figurasse que o ocidental via o mundo como um ser humano, de certo, mas
o via de um modo totalmente diferente — como se ele visse o mundo como realidade objetiva!
É certo que a perspectiva indígena sobre a visão objetivista do mundo ocidental não seria subjetiva,
tão simplesmente; mas, tal como a do antropólogo, ela há de ser perspectivista: a condição do conhecimento
do mundo, universalmente humano, seria a perspectiva — inclusive a dos animais, dos espíritos, etc. Em
compensação, a realidade objetiva em si seria universalmente relativa, de acordo com o corpo da entidade,
humana ou não, de onde se toma a perspectiva humana, viz. a cognição universal.

2.2 O perspectivismo e a etnologia ameríndia

Daí que, segundo Viveiros de Castro, os humanos, os animais e os espíritos amazônicos são, sem-
pre, cognitivamente, humanos. Da mesma forma, poder-se-ia dizer que as pessoas amazônicas são sempre
antropólogos. É uma forma bem criativa de se ser etnocêntrico, certamente, malgrado seja suspeita de um
vício de origem: o relativismo ontológico!

2.3 O neoanimismo e os dualismos ocidentais

Que os dualismos ocidentais, o um versus o múltiplo, consequentemente o objeto versus o sujeito, a na-
tureza versus a cultura, sejam tributários do dualismo cartesiano, o corpo versus o espírito, tudo isso já é suficiente
para que se suspeite de sua subsunção a uma oposição ainda mais cosmológica na história do pensamento ocidental,
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em um sentido mais literal, pitagórico, mesmo: a oposição teológica entre o hiperurânio eterno e o sublunar fugaz.

2.4 A hipótese antropobiológica e a performance indígena

Arnold Gehlen e sua hipótese antropobiológica, segundo Jacques Poulain ([14]:14), seriam as guias
para a superação do dualismo cartesiano que sustenta os jogos de linguagem e seus estudos, na era industrial
e pós-industrial. Gehlen propôs uma teoria da ação como tautologia entre a intenção e o ato: “[…] nel con-
cetto di azione è compreso tanto il pensare, il conoscere e il volere dell’uomo, quanto la sua fisicità, ma in
modo tale che entrambi gli aspetti vengano pensati uno actu come reciprocamente presupponentisi e inclusi
l’uno nell’altro.” ([7]:14)
Gehlen desenvolve, em seguida, sua crítica ao racionalismo como crítica ao dualismo epistemológico
ocidental, tão válido, no mínimo, quanto a indistinção entre o natural e o sobrenatural no mundo pré-científico:
“[…la] reale efficacia a distanza delle opinione fa parte […] dei reperti magici di una cultura di intellettuali,
tanto quanto la credenza che si possa dare stabilità al comportamento umano a partire dalla coscienza.”
([7]:51; em itálico, no original)
É impossível, entrementes, que se suspeite de um “relativismo ontológico” no âmbito dessa antro-
pologia filosófica. Gehlen encontrou, especulativamente, a origem das representações figurativas da arte
paleolítica nos ritos de imitação: a estilização dos atos vividos na performance ritual pôde preencher, com os
recursos de sua própria codificação, o hiato entre o desejo e a satisfação, criando uma “satisfação de fundo”,
de onde a “estabilização do mundo exterior”, sua durabilidade pré-conceitual ([7]:62–4). Essa ritualização
performativa, nas origens da arte humana, formaria os antecedentes do desenvolvimento da linguagem
verbal — que, por sua vez, transformaria os ritos cósmicos em performances com fins singulares ([7]:67). A
ciência não estaria jamais longe demais do mesmo método: isolar a experimentação vis-à-vis a realidade para
construir modelos que explicarão essa mesma realidade.
Gehlen poderia descrever o efeito da canção dos mitos marubo como um resquício da função sim-
bólica original que os espíritos yové, essas entidades correlatas ao pensamento e à respiração, dão, ao cantar, à
objetividade visual — considerada enganosa por eles, os Marubo — , dos yochiñ, os “duplos” dos corpos: da
sombra, dos olhos, dos excrementos: “[…] l’agire entra in rapporto con se stesso ed esprime questo rapporto
in se stesso : nella semplice scansione ritmica e nell’ipersignificatività si conquista per questa via la capacità
simbolica.” ([7]:156; em itálico, no original)
A repetição circular do canto serve para dar significação imitativa, a figuração do mito, como
resposta dos cantores a sua performance musical ([7]:157). As entidades às quais os cantos-mitos dão forma
temporal — a respiração-pensamento dos yové, a imagem dos yochiñ — são tentativas para se compreender
relações de causa e efeito entre fenômenos distantes no espaço: a etiologia das doenças. As relações analógi-
cas dessas entidades com as almas humanas — a da esquerda, mechmirí vaká, a da direita, mekirí vaká —
provêm da aplicação da mesma lógica ao processo de vida e de morte, de saúde e de doença.

2.5 O autismo pragmático

A explicação acima é dita “antropobiológica” porque seu modelo de experimentação é o desen-


volvimento do bebê humano. O circuito que isola a explicação do mundo do mundo que ela explica, posto
em movimento na arte, em sua origem performativa, está na origem, também, das capacidades linguísticas
de todos os humanos ao longo de seus primeiros anos de vida. O fechamento desse circuito permite, no
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
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princípio, a invenção da linguagem pela criança, a partir de seu balbuciar infantil. Depois, há duas alterna-
tivas: esse circuito pode ou bem se abrir em direção aos outros, como sói ocorrer, para integrar os circuitos
maiores da comunicação, ou então se fechar mais ainda em si mesmo, resultando na repetição eterna do
que o desencadeou: a repetição da repetição, o método primitivo da simbolização.
Essa segunda alternativa, menos frequente, é o autismo. O autismo pragmático, segundo Jacques
Poulain, é a abstração de todo julgamento de verdade da linguagem, rumo à redução de toda comunicação
à realidade psicológica, subjetiva, relativa, socialmente convencional que ela designa ostensivamente como
se fora ela a própria realidade real, universal. É, em suma, o Um religioso que se torna instituição: o Estado,
a Justiça, a Igreja. É essa a doença genérica do homem na era industrial, conforme Gehlen:
[…] la primitivisation des relations sociales et intersubjectives, réduites aux circuits de con-
sommation, de sexualité et d’agressivité, dans la perte du sens de la réalité — solidaire de
l’expérimentation de toute réalité dans l’imaginaire — et enfin […] le refuge cherché par
chacun dans des attitudes hyper-rigides pour maîtriser malgré tout, par la programmation
logico-mathématique ou par la planification sociale, les processus de pensée accompagnant ces
explosions affectives, cognitives et motrices. ([14]:14)

A incapacidade de bem compreender a natureza individual, artificial da conexão entre os sons emiti-
dos e os sons ouvidos está na origem de todas as formas de autismo, inclusive as formas coletivas, como a da
pragmática contemporânea. A natureza psicológica, subjetiva, relativa, socialmente convencional da própria
linguagem, como criadora de realidades percebidas, se torna a Mãe Natureza, de quem o homem é a criatura.

3 Sapientia universalis

3.1 A pragmática da totalização do mundo

Poulain sustenta, a partir de Gehlen, que a consciência é a objetificação do prazer de antecipar a


consumação da resposta ao estímulo que a desencadeia através da palavra. Quando essa consciência adquire
a capacidade de se subtrair da experimentação do mundo, torna-se ela obsedada pela repetição do estímulo
inicial, voltando a fechar continuamente um circuito de autogozo que procura fugir do fracasso. Quando
essa consciência, já autista, ao se tornar coletiva, tem pretensões totalizantes, ela arrisca, ou mesmo quer,
exaurir o mundo de toda possibilidade de subversão, exceto pela doença e pela morte.
A totalização do mundo é o resultado de uma tentativa de eleger uma pragmática comum como a única
alternativa para explicar a diversidade humana. A tentativa — já autista, por si só — realiza-se em detrimento
do diálogo transcultural. Essa pragmática, na Amazônia, constitui-se no desafio que as cosmologias ameríndias
rejeitaram desde as primeiras tentativas de consolidar as instituições governamentais entre os povos indígenas.

3.2 A natureza tautológica das questões da realidade ameríndia

Os xamãs marubo, na Amazônia ocidental, estão sempre prontos a afirmar que o conhecimento das
etiologias de cada caso patológico é a condição necessária e suficiente para aceder à cura. Os liames entre seus
cantos-mito (saiti) e os cantos de cura (shõti) são formais, em dois sentidos, pelo menos: na forma musical e na
forma mítica dos saiti e dos shõti, de ambas as categorias, as mais importantes da performance xamânica.
Os cantos marubo são sempre celulares, quer dizer: constituídos por células sonoras que sempre
54
se repetem. Cada célula, como a que vimos acima, é cantada reiteradamente como forma de escanção dos
versos do mito. Há uma célula diferente — o que se chama mané, entre os marubo — , com um motivo
musical particular, para cada canto-mito, assim como cada um desses mané corresponde à identidade musi-
cal de cada xamã-curador. Outrossim, tal como os versos narram um mito para cada motivo musical, para
cada mané particular — nas formas paralelas que reafirmam, em um outro nível poético, a circularidade da
repetição musical —, cada canto de cura, em seu conteúdo verbal, corresponde a um caso de doença, não a
uma categoria patológica. O que a medicina científica considera como sintomas de doenças é tratado pelos
xamãs como diversas entidades, porquanto a lógica da afecção dessas entidades segue a construção mítica
particular feita sob a medida do doente.

3.3 As representações científicas

É certo que os médicos também estariam sempre prestes a entrar em acordo com os xamãs, ao
dizer que seu conhecimento etiológico é a condição prévia, a longo prazo, para a cura de todas as doenças;
entretanto a medicina científica, como toda pragmática baseada na ciência, procura liames causais entre
fenômenos mutuamente distantes no espaço através de cadeias de causalidade material entre eles. A me-
dicina revela-se eficaz através da formulação de questões que demandam respostas quantitativas, mas às
quais somente o “sim” e o “não” são respostas válidas. Ela ocupa-se, em suma, da tradução de perguntas
analógicas, metafóricas mesmo, em respostas digitais, às quais responderia a realidade pitagórica, última
das coisas. A experimentação científica produz resultados na medida de seus aparatos de mensuração, que
requerem condições artificiais, numéricas, para se aproximar dessa realidade.
Os xamãs, por sua vez, não utilizam modelos universais para classificar, nem para curar as doenças:
ele criam mitos para cada indivíduo, como se a cura de todas as doenças fosse a de casos psicológicos. Os
liames causais, se os encontra entre personagens míticos criados ad hoc, quer dizer, os sintomas personifica-
dos e as moções afetivas que os curam: força para a fraqueza, tranquilidade para a tremedeira, frio para a
febre. E ainda assim, embora o xamã não possa figurar que seus personagens surrealistas sejam criaturas
mensuráveis, redutíveis a números, ele e o médico são, ambos, criadores de linguagens das quais a medicina
ocidental não pode se beneficiar sem esforço.

3.4 O consenso cego

O problema da redução de toda causação médica a relações materiais é que ela segue uma formulação não
somente materialista, mas também objetivista do conhecimento, que imagina que as interações linguísticas sejam
indicações ostensivas de relações que são independentes da consciência dos parceiros que interagem. Seu corolário
é, de um lado, a universalização dessa realidade; de outro, a relativização das trocas linguísticas. É evidente que o
objetivismo da Natureza-Mãe e o subjetivismo da diversidade cultural são duas faces de uma mesma moeda.

4 A estética da produção
4.1 A ética social ameríndia

Em diversos artigos, a antropóloga Joanna Overing defendeu a visão de uma filosofia social da
convivialidade amazônica (e.g. [12]). Sob o influxo de seus estudos de campo entre os índios das Guianas
55
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

(Amazônia Setentrional), Overing elabora a noção de “endogamização da afinidade”, quer dizer: a transfor-
mação da diferença cultural em identidade consanguínea. Os meios dos quais os ameríndios se utilizam para
fazê-lo são muitos: desde a manipulação de termos de parentesco ([9]) até as elaborações cosmológicas sobre
os perigos da violência antissocial sobre o equilíbrio do mundo ([10], [11]).

4.2 A estética como condição de possibilidade do saber xamânico

Overing estabeleceu, também, em um volume publicado com seus alunos e seus associados ([13]),
uma relação entre a ética social e uma estética da convivialidade na Amazônia. Em mais do que uma moral
platônica das sensações, os Marubo e outros povos de sua família linguística, por exemplo, consideram o “belo”
(rao), além de “bom”, também “brilhante”. Os Marubo, além dos cantos que evocam os espíritos e outras af-
ecções emocionais, utilizam desenhos geométricos em pinturas corporais e em objetos sagrado, folhas e cascas
de árvores odoríferas, enquanto bailam por toda a noite para tornar propícias as sessões xamânicas.

5 Mathesis universalis

5.1 A cosmologia: Pitágoras na Amazônia

O meio mais seguro de acesso ao mundo dos espíritos, entre os Marubo, malgrado a sinestesia que
se costuma registrar nas culturas xamânicas dessa região ([6]), é através dos sons dos saiti (“cantos-mitos”),
dos shõti (“cantos de cura”) e de outras formas de música vocal menos comuns (viz. os initi, os cantos dos
xamãs stricto sensu: os romeya). Os cantos operam uma dialética entre a linearidade musical (inclusa na circu-
laridade das células cantadas, cf. supra) e a circularidade das fórmulas poéticas (inclusa, como paralelismo,
na linearidade da narrativa mítica).

5.2 A música, de novo e sempre: o homem é som

Os sons humanos, segundo a hipótese antropobiológica adotada por Poulain, é a mônada que an-
tecede os dualismos representacionais do corpo e do espírito humanos, que constituiriam, por sua vez, os
fundamentos da epistemologia ocidental ([14]:24). A capacidade de coordenar o som emitido ao som ouvido
é função da antecipação da consumação do desejo permitida pelas capacidades linguísticas: a palavra já é o
gozo do desejo que ela mesma exprime, pelo próprio fato da expressão verbal do que se deseja. Do mesmo
modo, a linguagem permite a antecipação do gozo do que se deseja ver, assim como de todas as expectativas
sensoriais expressas pela palavra.
Os cantos de cura marubo não são cantados somente para os doentes. Canta-se, o mais das vezes, so-
bre os corpos dos pacientes, normalmente deitados sobre uma rede, mas, como entre outros povos amazônicos
([16]:85), o paciente sobre o qual se aplica a cura não está consciente do que se passa entre os agentes desta.
Os xamãs, com frequência, cantam juntos, cada qual com um motivo vocal (mané) diferente, tornando a
compreensão do conjunto muito difícil para quem quer que seja. O xamã, além disso, pode cantar sobre
alimentos medicinais, como sobre um prosaico mingau de banana, longe demais daquele a quem o ali-
mento cantado é destinado.
O canto, em suma, não se destina à consciência do doente, mas a seu corpo. Ele perfaz um circuito
desde a boca do xamã, através do corpo do paciente, até, de volta, o ouvido do curador. Dentro desse cir-
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cuito, compreende-se todo o ambiente, do qual a eficácia da descrição musical—através de sons musicais,
viz. de modo algum por designação ostensiva—resulta na saúde e na vida da comunidade indígena.

6 O xamã como curador universal


6.1 A transculturalidade ameríndia

Em junho de 2011, um professor bilíngue e um xamã, Benedito e Robson Marubo, visitaram a


Europa, no âmbito de minha estadia como professor visitante no Instituto de Musicologia Weimar-Jena e
com o apoio da instituição sem fins lucrativos Ourchild. De suas apresentações sobre sua cultura xamânica e
sobre os conflitos resultantes das relações interculturais no Vale do Javari, seu local de origem na Amazônia
Ocidental, surgiram projetos sobre a troca dos saberes indígenas e da educação nacional, sobre oficinas de
saúde e de educação e sobre uma escola transcultural, na qual o conhecimento xamânico poderia se combi-
nar, de maneira complementar, com os estudos preparatórios para a universidade.

6.2 A saúde transcultural

Os projetos que têm por objeto a saúde visam a uma combinação de abordagens indígenas e
acadêmicas à saúde e à educação nas comunidades autóctones do Vale do Javari. Seu território de ação é a
partilha transcultural entre o conhecimento xamânico e o científico, no contexto das ações médicas sobre as
doenças infecciosas e endêmicas locais — como a malária, a tuberculose e, sobretudo, as hepatites virais —
assim como sobre os currículos oficiais que conduzem à universidade. Esse objetivo geral exige a combinação
de práticas rituais de cura e de educação com a medicação alopática e com os métodos didáticos ocidentais.
Esses projetos realizarão suas metas no âmbito da assistência médica convencional e da educação
formal. Esses contextos permitirão um bom resultado no treinamento de especialistas indígenas em educa-
ção para a saúde e em educação em geral — seja para estabelecer um paradigma de comensurabilidade entre
os xamãs, os médicos e os cientistas, seja para desenvolver uma linguagem adequada para exprimi-lo em
termos comensuráveis.
A metodologia dos projetos inclui, ao lado da assistência médica e da educação formais, oficinas
entre os portadores do saber tradicional indígena, com a participação do pessoal de saúde que se ocupa das
populações locais, em busca da interface entre a ciência e a medicina ocidentais e as concepções xamânicas.
As posições do xamã, do médico e do cientista, do sujeito e do objeto de transmissão do conhecimento se
tornarão intercambiáveis.

6.3 A educação transcultural: uma escola xamânica marubo

Conforme vimos, na Amazônia ocidental, a educação indígena tradicional ocorre em rituais com
música e dança, ao longo de toda a noite. O Estado brasileiro recomenda e oferece, ainda que precariamente,
a educação bilíngue em algumas aldeias ao longo do dia. Como em outras escolas indígenas no resto do país,
os programas oficiais também atendem ao direito do ensino na língua materna.
Sobre conformarem-se pouco à cultura autóctone, as escolas bilíngues nas aldeias indígenas são in-
suficientes para preparar os estudantes para os exames de admissão à universidade. A Terra Indígena do Vale
do Javari é maior do que a soma dos territórios de diversos países europeus. A educação básica nas aldeias é
fraca, o que significa que os alunos devem percorrer um longo caminho, desde uma idade precoce, de suas
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casas até as escolas da sede municipal brasileira mais próxima. Outrossim, os professores precisam redobrar
seus esforços para atender seja ao ensino tradicional indígena, seja ao trabalho nas escolas bilíngues.
Os Marubo, um dos principais povos indígenas no Vale do Javari, confrontam essa situação difícil
em suas vidas cotidianas. A construção de uma escola transcultural, atualmente em curso, em um local
acessível para o conjunto das 13 aldeias dos Marubo do Alto Rio Ituí, é uma resposta ao estado atual das
coisas. Ela oferecerá, aos alunos que frequentam as escolas financiadas pelo governo brasileiro, durante suas
férias escolares, os conhecimentos indígenas de maneira mais tradicional. Os professores, assim, poderão
combinar os ensinamentos tradicionais e oficiais mais à vontade. A escola serviria como um internato para
os estudantes que estão prontos a obter a qualificação da escola secundária conducente à universidade, en-
quanto lhes permite manter e aprofundar seus laços com suas raízes culturais, xamânicas.
A educação é, certamente, uma etapa importante rumo à emancipação dos povos autóctones da
Amazônia. As partes interessadas são sempre os melhores defensores de seus próprios interesses. A sociedade
brasileira já oferece as condições necessárias a esse fim: a integração dos alunos indígenas a estruturas esco-
lares preexistentes, todavia, só ia trazer consigo a perda da identidade e das raízes culturais.
A escola em questão, com apoio tanto internacional (a organização alemã Ourchild) quanto do gov-
erno brasileiro (Secretaria de Educação do Estado do Amazonas), reforçará a cultura indígena na medida
em que permitirá o êxito em contextos urbanos. Ela permitirá que os povos indígenas, assim, se representem
autenticamente, mesmo depois de haver deixado a floresta. A escola pressupõe que a oferta de condições para
se seguir nos estudos e ter acesso à universidade equivale a um apoio eficaz em direção à autonomia indígena,
uma vez que ela se traduzirá na formação de representantes dos próprios interesses indígenas.

Figura 2: escola xamânica dos Marubo do Vale do Figura 3: a escola xamânica, com Benedito Marubo
Javari, em junho de 2014. e seu filho Shane Pei, em fevereiro de 2015.

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Referências

[1] BASTOS, Rafael José de Menezes. A Festa da Jaguatirica: uma partitura crítico-interpretativa. Flori-
anópolis; Editora UFSC, 2013.
[2] BIRD-DAVID, Nurit. “Animism Revisited: personhood, environment, and relational epistemology”.
Current Anthropology 40 (Supplement), p. 67–91, 1999 

[3] CLASTRES, Pierre. La Société contre l’État. Paris; Les Éditions de Minuit, 1974.
[4] DESCOLA, Philippe. In the Society of Nature. Cambridge; Cambridge University Press, 1994.

[5] FRAZER, James. The Golden Bough: a study in magic and religion. Ware; Wordsworth, 1982 (1911). 

[6] GEBHART-SAYER, Angelika. The Geometric Designs of the Shipibo-Conibo in Ritual Context. In Jour-
nal of Latin American Lore. 11(2). 1985, p.143–175. 

[7] GEHLEN, Arnold. L’Origine dell’Uomo e la Tarda Cultura: tesi e risultati filosofici. Milano; Il Saggia-
tore. [Tradução de Urmensch und Spätkultur. Philoso-phische Ergebnisse und Aussagen. Wiesbaden; Aula
Verlag.], 1994 (1956).

[8] LÉVI-STRAUSS, Claude. La Pensée Sauvage. Paris; Plon. 1962. 

[9] OVERING, Joanna. “Today I Shall Call Him ‘Mummy’: multiple worlds and classificatory confusion”.
In: OVERING, Joanna, ed. Reason and Morality. London; Routledge. 1985a, p. 152–179. 

[10] OVERING, Joanna. “There Is No End of Evil: the guilty innocents and their fallible god”. In David
PARKIN, ed. The Anthropology of Evil. London; Blackwell, 1985b.
[11] OVERING, Joanna. “Images of cannibalism, death and domination in a “non violent” society.” In-
Journal de la Société des Américanistes. Tome 72, 1986, p.133–156. 

[12] OVERING, Joanna. “In Praise of the Everyday: trust and the art of social living in an Amazonian
community””. In Ethnos. Vol. 68:3, 2003.
[13] OVERING, Joanna & Alan PASSES, eds. The Anthropology of Love and Anger: an esthetics of convivial-
ity in native Amazonia. London; Routledge, 2000

[14] POULAIN, Jacques. L’Âge Pragmatique ou l’Expérimentation Totale. Paris; L’Harmattan, 1991.

[15] POULAIN, Jacques. De l’Homme: éléments d’anthropobiologie philosophique du langage. Paris; Les Édi-
tions du Cerf, 2001.

[16] SEEGER, Anthony. Why Suyá Sing: a musical anthropology of an Amazonian people. Cambridge: Cam-
bridge University Press, 1987. 

[17] STOLZE LIMA, Tânia. “The Two and Its Many: reflections on perspectivism in a Tupi cosmology”.
In Ethnos 64(1), 1999, p. 107–131.
[18] TYLOR, Edward Burnett. Primitive Culture: researches into the development of mythology, philosophy,
religion, language, art and custom. New York; Harper & Row, 1958[1871].
[19] VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Araweté: os deuses canibais. Rio de Janeiro; Jorge Zahar, 1986.
[20] VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “Cosmological Deixis and Amerindian Perspectivism”. In Jour-
nal of the Royal Anthropological Institute 4(3), 1998, p. 469–488.

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Instituto Tamoio, povos originários e Aldeia Maracanã

Carlos Tukano
Professor e Presidente da AIAM-Associação Indígena Aldeia Maracanã

N asce o primeiro movimento indígena multiétnico do século XXI, na era


contemporânea, na cidade do Rio de Janeiro, em 20 de outubro de 2006, com o intuito
de lutar e buscar nossos direitos que estão escritos na Constituição de 1988, no que diz
respeito à educação, saúde, demarcação de nossas terras, entre outros, e que, muitas
vezes, não são cumpridos pelos estados e pela União e lutamos para desconstruir a ima-
gem estereotipada do índio brasileiro.
O marechal Cândido Mariano Rondon criou o SPI (Serviço de Proteção ao
Índio) em 1910, tendo funcionado em diferentes formatos até 1967, quando se tornou a
FUNAI (Fundação Nacional do Índio). O professor e antropólogo Darcy Ribeiro criou
o Museu do Índio em 1953, com o objetivo de defender os povos indígenas brasileiros,
bem como seus saberes e patrimônios.
Com a chegada dos europeus em 1500, os povos indígenas que aqui habitavam
vivenciaram uma realidade de extinção e etnocídio, levando grandes nações indíge-
nas de diversas etnias, neste continente, a desaparecerem para sempre. Com o intuito
de resgatar e melhorar culturalmente a imagem dos povos originários, buscamos o
caminho do diálogo em espaços de negociação com os governos federal, estadual e
municipal e com ONG que tratam de questões indígenas. Ironicamente, o europeu
quando aqui chegou denominou os povos locais, de índios, associando-os a povos sel-
vagens, atrasados, um obstáculo ao progresso. Há outros esteriótipos e termos utiliza-
dos para fazer referência ao índio brasileiro, por exemplo, o uso dos termos “programa
de índio” e “ índio quer apito”. Até os dias atuais, os povos indígenas carregam estes
estereótipos sobre suas culturas e modos de vida.
O Instituto Tamoio dos povos originários deu origem à Aldeia Maracanã, que
foi criada para debater e propor avanços sobre as diversas questões que afetam os povos
indígenas. Deste encontro produziu-se uma série de debates e reflexões sobre os fatos
que acontecem nas diversas aldeias de todo o Brasil, sobretudo os temas relacionados
aos recursos naturais, conhecimentos tradicionais e patrimônio material e imaterial
pertecentes aos povos indígenas brasileiros. A demarcação das terras indígenas foi a
todo momento problematizada pelo grupo da Aldeia Maracanã, assim como a exclusão
do índio nas estruturas e instituições do estado e da sociedade nacional.
Quando as comunidades indígenas se relacionam com os não indígenas, estes
percebem que o índio não é muito ativo, não tem voz nas discussões. Por isso a pauta
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do movimento indígena Aldeia Maracanã foi no sentido de questionar a atuação social fora do âmbito das
aldeias, provocando a mudança dessa imagem. O indígena, hoje, quer saber quais são os seus direitos e de-
veres, isto é, está reivindicando o direito de ser um cidadão brasileiro.
Quando ocupamos o antigo prédio do Museu do Índio, em 20 de outubro de 2006, estava ele
abandonado pela União há três décadas, desde 1977, quando houve a mudança do museu para o bairro de
Botafogo. Permanecemos no antigo prédio do Museu do Índio até 22 de março de 2013, quando fomos
retirados pelo governo do estado do Rio de Janeiro através da força policial.
Durante o período que ali estivemos foi possível divulgar nossos rituais, cantos, danças, grafismos,
fazer palestras sobre nossas culturas, com convivências e exposição de nosso artesanato. E, deste modo, con-
seguimos falar de nós, sem intermediários. Revelar o que somos, e não ser lembrados somente no calendário
escolar, no dia 19 de abril, “O Dia do Índio”.
Tivemos boas parcerias, como as universidades UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro),
UFF (Universidade Federal Fluminense), UFRJ (Universiade Federal do Rio de Janeiro), FAETEC (Fac-
uldade de Ensino Tecnológico), Fundição Progresso, Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação—
SEPE-RJ, Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação—CNTE, Fundação Darcy Ribeiro—
FUNDAR, Defensoria Pública da União—DPU, e muitos outros.
Visávamos mostrar a realidade dos povos originários, neste século XXI, a face escondida do verda-
deiro índio brasileiro que durante cinco séculos vem vivendo como refém de sua própria história, um simples
personagem e não um ator principal, vivendo sob a discriminação e os preconceitos impostos pela “sociedade
civilizada”. Indígenas que deixaram suas aldeias e origens pelas mais diversas razões e que vivem nas cidades
são considerados índios urbanos, caracterizados sem sua própria identidade e sujeitos, como qualquer cidadão
urbano, às sanções penais. Ao longo do tempo, tem se discutido sobre a questão indígena em conferências,
congressos, eventos e até agora não se chegou a um denominador comum para soluções práticas.
A pergunta surge: atualmente, quem fala em nome do índio ?
Até hoje sofremos agressões em todos os sentidos, principalmente no plano moral e físico como, por
exemplo, no estupro de mulheres e em invasões de nossas terras, e não temos defesa de estrutura jurídica
própria, não temos poderes jurídicos. Índio que vive em áreas urbanas tem de ser reconhecido pela sua
própria identidade. Este é o papel do governo federal através de seus órgãos, como o Ministério da Justiça e
Direitos Humanos.
No Brasil, atualmente, a população indígena é de aproximadamente 896.000 habitantes entre as
reservas e áreas urbanas, segundo a estatística de 2010 do IBGE , que por sinal é um número muito reduzido
em um país tão grande. Há mais de 30 anos que venho defendendo que é significativa a presença indígena
em áreas urbanas. Na minha reserva indígena, de Pari Cachoeira, Yauaretê, Taracuã e a sede do município
de São Gabriel da Cachoeira, no estado do Amazonas, fomos doutrinados pela Igreja Católica, pela Ordem
dos Missionários Religiosos Salesianos. Este número de habitantes apontado pelo IBGE representa metade
da população indígena vivendo nas cidades. Chego a tal conclusão pela análise do “internato indígena”,
implementado no passado pelos religiosos salesianos e jesuítas.
O internato possuia, sem dúvida, os seus méritos, que aqui não enumero. Todavia por representar
uma diminuição da distância estrutural que separa o mundo tribal da sociedade nacional, atuou como fator
de estímulo, quando não na própria expulsão indígena, no processo de migração para a cidade. A orga-
nização semiurbana dos núcleos educacionais já permitia aos índios participarem das pautas culturais mais
significativas da vida na cidade.
Eis aqui agora uma nova realidade indígena descrita por alguns observadores e estudiosos, que me
leva a acreditar que o índio urbano poderá ser elemento determinante na solução dos problemas indígenas,
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vistos em sua totalidade. O exemplo do índio Juruna, embora de forma um tanto reduzida, ensinou que
é possível um percurso com prevalência política, que gere uma consciência cultural e tribal própria, uma
consciência étnica para si. É a razão crítica de uma “nova” perspectiva interétnica que desejo ver. Também
houve um consenso social com relação às agressões sofridas pelos povos indígenas das Américas. Permanece,
no entanto, a pergunta: como estão os índios, hoje em dia, em particular os do Brasil?
Darcy Ribeiro conclamava satisfeito que os índios do Brasil iriam sobreviver. Recordo-me da Con-
ferência dos Índios, na Aldeia Karioca, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, por ocasião do evento ECO92,
em maio de 1992, na qual a percepção foi de otimismo quanto ao percurso indígena no Brasil.
Ficou estabelecido que um comitê intertribal cuidaria diretamente dos interesses das nações indí-
genas. Infelizmente, a proposta não vingou e não saiu do papel. Culpa dos índios, omissão do governo e
dos grupos de apoio à causa indígena, sem falar dos interesses econômicos e de quem quer tirar o índio das
aldeias. Enfim, criou-se uma situação grave de abandono que faz com que os índios ainda sejam tratados de
forma caritativa e assistencial, longe da tão sonhada autonomia indígena. Não se ouve o termo depreciativo
“índio quer apito” mas, por sua vez, o Brasil não pode se dar ao luxo de esquecê-lo, sob pena de perder a sua
identidade em todos os sentidos, seja político, religioso e até de perspectivas futuras. Então, o melhor pedido
de perdão é uma ação sinergética para valer, isto é, devolver ao índio a possibilidade de criar condições de
ter suas opiniões próprias.
Com esta minha visão política indígena, ingressei na jornada de luta da Aldeia Maracanã e continu-
arei lutando para que os governos nos ouçam mais. Os povos indígenas não podem se calar.
De outubro de 2006 até março de 2013, um coletivo de várias etnias indígenas veio a formar a
chamada Aldeia Maracanã, ocupando e animando com vida o antigo Museu do Índio no Maracanã, a fim
de que neste espaço fosse criado um Centro Cultural Indígena com o apoio do poder público. O processo
oficial de criação do futuro Centro Cultural Indígena do Maracanã deu grandes passos entre 2013 e 2014,
em parceria com a Secretaria Estadual de Cultura do Rio de Janeiro.
Em julho de 2012, o governo do estado do Rio de Janeiro comprou a propriedade da União e de-
clarou sua intenção de demolir o prédio para permitir a reconfiguração do entorno do Maracanã, em função
da Copa do Mundo de 2014. No final de 2012, vozes se manifestaram contra a demolição do antigo prédio
do Museu do Índio, que há um século e meio carrega a memória dos povos indígenas do Brasil. O local
foi palco de movimentos sociais jamais vistos na questão indígena na cidade do Rio, mobilizando todas as
classes sociais, independentemente de cor e raça, crença e religião. O Brasil e o mundo assistiram a tudo
através da imprensa nacional e internacional.
No dia 22 de março de 2013, fomos expulsos à força após várias reuniões, diálogos e propostas que
foram em vão. O governo foi irredutível, e o tempo tinha se esgotado. A Defensoria Pública da União ( DPU)
acompanhou todas as negociações e até mesmo no último momento da expulsão.
No final de julho de 2013, pressionado pelas manifestações populares que tomaram as ruas de
todo o país em junho de 2013, o governador do estado do Rio de Janeiro recuou em sua intenção de
demolir o prédio e reabriu o diálogo com o coletivo Aldeia Maracanã. Através da secretária estadual de
Cultura, Adriana Rattes, criou uma mesa de negociação que resultou em medidas positivas de diálogo
com os indígenas e os apoiadores da causa, tendo em vista a instalação do Centro de Referência da Cultura
dos Povos Indígenas no antigo prédio, que seria restaurado. Em setembro de 2013, o INEPAC—Instituto
Estadual do Patrimônio Cultural anunciou o tombamento do prédio, fato que foi publicado no Diário Ofi-
cial. Na mesma época, a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro anunciou o tombamento do prédio pelo
próprio Instituto Rio Patrimônio da Humanidade. Em dezembro do mesmo ano, foi publicado no Diário
Oficial o decreto de afetação já tombado pelo INEPAC, para a futura criação de um Centro de Referência
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da Cultura dos Povos Indígenas (universidades indígenas).
Em março de 2014, foi criada a Associação Indígena Aldeia Maracanã (AIAM) e o Centro de
Referência da Cultura dos Povos Indígenas, com estatuto e eleição de sua diretoria, podendo representar
legalmente as questões indígenas no estado e no país.
Vale lembrar que a “ocupação” indígena teve seu início no dia 20 de outubro de 2006, com 35 rep-
resentantes de 13 etnias indígenas: Pataxó, Krahô, Guajajara, Krikati, Tukano, Apurinã, Xavante, Tikuna,
Mayuruna, Tabajara, Karajá, Guarani e Potiguara, que ocuparam o casarão que outrora abrigou a sede do
Museu do Índio. A ideia da ocupação surgiu no I Encontro dos Tamoios, na Universidade Estadual do Rio
de Janeiro (UERJ), uma reunião de representantes de várias etnias com o objetivo de discutir as questões a
elas relacionadas.
Muitos índios já divulgaram suas culturas em escolas, palestras e em feiras de artesanato. O fato de
o antigo prédio do Museu do Índio ficar ao lado do Estádio do Maracanã, tendo em vista os grandes eventos
internacionais na cidade do Rio de Janeiro como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, pode-
se imaginar o tamanho do problema institucional, até hoje não solucionado totalmente e gerando conflitos
no decorrer do tempo. Atualmente, os indígenas continuam reivindicando o restauro e a revitalização do
espaço e que o governo do estado tome as devidas providências, como prometeu. Até agora, o restauro do
prédio não foi iniciado. Muitos movimentos aderiram à causa da Aldeia Maracanã e compactuam na luta das
causas indígenas no país.

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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

Antes ocas de palha, hoje teias de concreto

Carolina Camargo de Jesus


Professora graduada em História pela Universidade Federal Fluminense/UFF

O ouro admirado nos afrescos das inúmeras igrejas existentes na América


Portuguesa foi encontrado em terras nativas. Portugueses cobiçosos, ou peris, como
eram chamados pelos índios, adentraram o litoral baiano e extraíram o precioso mi-
nério brasileiro. Ao retornar para a Europa, a Coroa Portuguesa logo encomenda
aos artistas e artesãos da corte que transformem este ouro em beleza e requinte na
arquitetura das igrejas, palácios e utensílios domésticos.
Na arquitetura colonial observamos a convivência entre o português e o índi-
gena, o cristão e o pagão, o concreto e o sapê, o ouro e a madeira, os azulejos e os sopapos.
Dois mundos, duas culturas, duas formas, que no aprendizado da colonização ergueram
as inúmeras construções brasileiras.
Neste trabalho, queremos compreender como convive este bocadinho de Tupi com
o outro bocadinho de São Sebastião. Quando vejo a cidade do Rio cheia de contornos cos-
mopolitas com elevados, portos, pontes, viadutos, preenchida de sentidos urbanos e civiliza-
tórios, encontro uma cidade que, como tantas outras, simplesmente cresceu à beira de um rio.
Estamos iniciando o encontro com a história da cidade do Rio de Janeiro
pela perspectiva do século XVI, a partir das fontes oriundas dos relatos dos viajantes,
cronistas e missionários que por aqui passaram e deixaram muitas contribuições para a
historiografia criar as imagens do momento da chegada ao litoral da América colonial.
No meio das teias de concreto, encontrei um rio de ocas de palhas e descobri que esse
passado colonial está soterrado pelos silêncios e endurecido pelo rigoroso concreto.
São duas cenas que surgem, a que pertence ao campo do primitivo/indígena e a
que pertence ao universo contemporâneo do mestiço/urbano. Foi massacrada a memória
dos ancestrais originários desta terra, vivendo apenas como imagem de um passado
colonial ou ganhando atuação histórica como peça de acervo dos museus nacionais.
Ora, as duas imagens do Rio colonial e do Rio contemporâneo convivem na
memória da apoteótica cidade cheias de encantos mil. Elas se opõem, dialogam entre
si, disputam os lugares da memória oficial e da memória real, uma imagem distorce a
outra. São questões que brotam nas entrelinhas deste tecido orgânico urbano que está
aí montado para todos desfrutarem, cheio de destroços e ossos que ajudam a dar vida
ao movimento que fazemos em busca da cidade do amanhã.
Essas imagens que aqui estamos apresentando são desafiadas a conviverem lado
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a lado, e nos fazem pensar que isso é possível sim. É só pensarmos no desejo harmônico do ensejo do Carnaval
traduzido nas mãos de um povo que “antropofagiza” suas dores e as transforma em alegorias de Carnaval.
É fugaz olhar para o Rio e não conhecer as bases que assentam esta cidade que cresce, vive, luta
e morre sobre a memória dos ancestrais originários desta terra. Dar as costas a esta parte de nossa memória
significa ter a mesma postura dos autores do descobrimento. Apresentar a história da cidade somente através
da perspectiva colonizadora é ter os olhos voltados para um mesmo ponto durante um longo período de
nossas memórias.
Para darmos passos rumo ao novo e ampliarmos nossos horizontes, precisamos reconhecer e respeitar
as bases — mesmo que estejam submersas — de nossa memória carioca. Quando as populações indígenas que
que aqui residem encontraram o antigo prédio do Museu do Índio, em 2006, o mesmo estava em ruínas.
Descobrimos, através de documentação oficial, que este local, que já abrigou a antiga sede do SPI
—Serviço de Proteção aos Índios, também abrigou o Marechal Rondon, precisamente na época em que o
indigenismo estava surgindo sob novos olhares — oriundos das novas produções da antropologia francesa.
No período entre as décadas de 1960 e 1970, o Museu do Índio, com a participação de populações
trazidas das aldeias para se incorporarem às pesquisas científicas semeadas pelas ideias de Darcy Ribeiro e
Marechal Rondon buscou ser um laboratório de estudos indígenas, e como seria um museu de caráter indí-
gena dentro do contexto da sociedade moderna e industrial.
Darcy Ribeiro, assim, abriu inúmeros horizontes para os povos indígenas brasileiros, sendo um
deles o espaço físico, que ficou denominado então como o Museu do Índio. Um dos objetivos, como
podemos perceber no texto a seguir foi dar ao índio o direito de ocupar o espaço urbano, posicionando
a cultura indígena junto da civilização urbana. A década em que este espaço foi pensado é marcada pela
Comissão Rondon, quando grandes intelectuais, como o próprio Ribeiro, lutaram ao lado dos índios pela
demarcação de seus territórios.
O Museu do Índio, mantendo a orientação que lhe foi originalmente traçada, de desmascarar os
preconceitos mais correntes sobre os índios, pela contraposição de fatos que patenteiem sua falsidade, pre-
stará um serviço educativo de valor inestimável. Tanto mais porque este resultado é obtido sem qualquer
deformação, até ao contrário, dando maior realce àquilo que é realmente característico na vida diária dos
índios, na luta pela subsistência, no convívio de família, nas atitudes para com as crianças, na sua alegria de
viver e na vontade de beleza que exprimem em todas as suas obras (RIBEIRO, 1962, p.170).

Atualmente, vivenciamos esta luta dentro do espaço físico do que hoje é o antigo Museu do Índio,
local idealizado por Darcy Ribeiro e movimento dos povos originários. Lutamos a cada dia para que seja
oficialmente dos povos indígenas. A característica marcante do local, atualmente, é que ele existe como es-
paço de resistência e preservação da cultura indígena na cidade do Rio de Janeiro e é fruto do encontro de
diversas etnias que habitam o litoral brasileiro e que têm como propósito defender, preservar, educar, cuidar,
viver e ressignificar a memória indígena dentro de um espaço urbano.
Povos da “Pindorama” orientam-se pelo princípio da ancestralidade, e este princípio é transmitido
nos rituais sagrados que buscam o retorno às origens (ELIADE, 1969). A epistemologia cosmogônica pre-
sente na cultura indígena nos ensina que o ato de retorno à terra dá sentido à luta pela defesa dos territórios
tradicionais. Buscar um espaço dentro da cidade do Rio de Janeiro para apresentar a cultura e a educação
indígena sob a orientação político-pedagógica das próprias populações de índios é manifestar novos saberes e
práticas históricas dentro do contexto urbano.
As populações indígenas orientadas pela força ancestral das populações atingidas pelo grande mas-
sacre no período da conquista dos territórios da Guanabara, no ano de 2006, se uniram e se dispuseram a
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

recuperar junto às autoridades o prédio do museu na sua arquitetura original. Ao lado da edificação os indí-
genas fincaram suas toras e palhas para também recriar suas próprias edificações. Assim identificamos que
o retorno dos indígenas aos territórios tradicionais trouxe novos questionamentos e abriu um leque de novas
produções que buscam dar respostas aos novos anseios que estão ressurgindo neste século XXI, a partir das
vozes oriundas do movimento dos povos originários no âmbito nacional.
Reflexões que foram surgindo durante a escrita deste trabalho: por que só temos a versão eurocên-
trica da fundação da cidade do Rio de Janeiro? Onde se encontram as vozes dos sujeitos que são os filhos de
Uruçu-mirim? Os indígenas que hoje habitam o local produziram um material para registrar este momento,
para eles com um grande significado histórico.
O antigo Museu do Índio foi ocupado no dia 20 de outubro de 2006 por 35 indígenas de 13 etnias
diferentes como forma de resgate dos Direitos dos Povos Originários do Brasil. O prédio, de propriedade do
Ministério da Agricultura, estava abandonado e em ruínas, a intenção era reformá-lo e transformá-lo num
centro de convergência educacional, de preservação e difusão da cultura indígena. (Texto produzido pelo 1º
Seminário Índios em Contexto Urbano, em 2009).

Identidades pessoais e identidades coletivas

O ato de ocupação de um determinado território não é realizado de forma aleatória, isolada ou


desprovidade significados e sentidos para a organização cultural indígena. Acompanhamos a ocupação do
prédio do museu desde os primeiros passos, como a entrada, a limpeza do terreno (que estava completa-
mente abandonado pelos autoridades responsáveis), os rituais com pedido de proteção, a reunião oficial de
legitimação do ato, as festas de reinauguração do espaço até a construção de novas edificações típicas das
etnias presentes na ocupação. Todo este caminho representou, para as etnias participantes, uma recriação
da cultura indígena inserida na dinâmica moderna, industrial e capitalista na qual se vivencia uma outra
temporalidade.
As populações indígenas chegaram neste novo espaço com o propósito de estabelecer diálogos e
laços com a população não indígena, com a sociedade que se urbanizou. Esta sociedade pode aprender com
as comunidades indígenas uma forma de resgatar um modo de viver mais simples e se despir de alguns precon-
ceitos, problematizações e distanciamentos que marcaram a identidade brasileira durante séculos, nos quais o
índio foi, e talvez ainda seja, concebido como o bárbaro — aquele desprovido de humanidade e que, portanto,
deve estar longe da civilização. No entanto o índio conseguiu progredir e eliminar as formas e as estruturas do
atraso, inclusive como modo de preservação de sua cultura.
Este caminho poderia ser avaliado como um diálogo entre formas diferentes de viver através das dife-
renças culturais. A partir de alguns relatos indígenas que habitam o local, este seria um mecanismo para romper
com esta prénoção. É um desafio que para as populações indígenas que buscaram o contato com os sujeitos
urbanos: estes têm em seu inconsciente coletivo a presença indígena adormecida ou deformada pela educação, a
qual lhes ensinou a olhar o índio como um estranho e, em alguns casos, como inimigo do progresso.
Um embate surge quando estas populações negam o papel de submissos, tutelados, selvagens,
desprovidos de fé, isolados do espaço da cidade e enfrentam os preconceitos forjados pela cultura dos
ditos civilizados. É uma forma de reencontrar e preservar as suas tradições. Por isso, conhecer a maneira como
as populações indígenas, que foram citadas na nossa parte introdutória, caminham e se organizam no tempo
e no espaço, mesmo que na dinâmica do caos urbano, é fundamental para o crescimento do brasileiro urbano
na crise do século XXI. Através da comunicação vivenciada junto das populações indígenas, podemos perceber
como o seu caminho é pensado, planejado e realizado coletivamente e, desta maneira, podemos concluir que
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são etnias que se pensam enquanto nação, como um todo, como um organismo único, no qual as individu-
alidades nascem para compor um tecido coletivo, coeso e com uma organicidade capaz de estabelecer uma
comunicação saudável, em que as diferenças são postas em segundo plano quando a ordem é lutar pela terra.
Os indígenas pertencentes às diversas etnias de todo o Brasil buscam, no espaço do Maracanã,
resgatar aquele elemento comum deixado pelos ancestrais do território da Guanabara, em um movimento
de ir até o passado para viver o presente. Isto é comum para as populações que se baseiam no princípio da
ancestralidade, princípio norteador dos povos originários brasileiros. Deste modo, o indígena é livre para
recriar o seu valor, sua moral, sua ética, sua concepção de mundo, sua educação e sua cultura, sem ter de
recorrer aos trajes da civilização que os doutrinou nestes anos todos.
Percebemos que a presença indígena no contexto urbano provoca, junto à sociedade moderna e
industrial, um grande debate, considerando-se as diversas opiniões acerca do índio: muitos pensavam que
os índios já foram extintos, outros acreditam que o índio só deve ocupar os espaços afastados da civilização,
outros, que os índios são incapazes de viver na cidade, já que não acessam os códigos e leis que regem a vida
citadina. Como vemos, o índio é tido como incapaz, infantil, coitado, selvagem, fortalecendo a ideia de que
ele é submisso aos “civilizados”. São problematizações e preconceitos que provocam um distanciamento entre
o urbano e o indígena, no momento em que este livremente busca o espaço da cidade para nele criar novos
significados.
Um espaço que suscita nas identidades pessoais e nas identidades coletivas novos questionamentos
e significados, na medida em que se buscam os territórios originários. Aí são encontradas as próprias iden-
tidades, memórias e principalmente as histórias que nos são fontes vivas de um passado que tem 500 anos
de luta e que forja os espaços de memória dentro da cidade do Rio de Janeiro. Índios, também personagens
da história dessa cidade, que buscam reinaugurar espaços, linguagens e caminhos que possibilitem seu en-
contro com o homem urbano. E que este possa ter um encontro consigo mesmo e com sua história, sem os
rótulos preconceituosos que impediram o conhecimento de sua própria história pessoal e coletiva.
O sonho de reconstruir o universo indígena, dado como morto, silenciado e desaparecido com a
vitória dos portugueses no processo de posse do território batizado por Rio de Janeiro, ressurge do vale das
cinzas, das ruínas, dos destroços e se ergue com justiça e braços fortes dos Pataxó, Xavante, Guajajara, Tu-
kano, Karajá, Potiguara, Apurinã, Puri e outras etnias que, reunidas, realizaram a construção das edificações
indígenas no espaço do Maracanã — local sagrado para a etnia Tupinambá, onde cada tora de árvore, cada
pedaço de palha foi sendo tecido e erguido por guerreiros e guerreiras no ato de retomada dos territórios
tradicionais, assim chamados pelos populações indígenas participantes deste momento.

O índio na linha do tempo histórico

Acreditamos ser importante o debate sobre os espaços originários, tema que provoca um diálogo com a
noção que temos sobre o tempo, já que as noções de espaço e tempo compreendem os fundamentos básicos do
saber-fazer História. Inserir a temática indígena dentro dos espaços que ritualizam a dinâmica da oficialidade sig-
nifica trazer oss índio para a esfera da nação brasileira, e não simplesmente tratá-los como estranhos e alheios que
devem ser tutelados, por serem diferentes do que se apresenta como “civilizado”.
Quando mostramos nossa linha do tempo histórico em sala de aula, temos como principais fatos
históricos: presidentes que inauguraram as chamadas eras, guerras do velho mundo, revoluções e regimes di-
tatoriais, porém, não incluímos em nossa linha do tempo a história das lutas dos indígenas brasileiros. Como
dizia Varnhagen, de tais povos na infância não há História; há só etnografia (VARNHAGEN, 1978, p. 30).
Esta afirmação paralisou as análises sobre as populações indígenas, impedindo-nos de tirar o índio do pas-
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

sado colonial como sujeito bárbaro e suprimido com o processo de conquista e colonização. Tal visão, de
fato, estagnou as pesquisas no âmbito da história.
Quando não consideramos suas lutas como fatos históricos, estamos na realidade tratando-os como
sujeitos desprovidos de história e, portanto, de memória. Por isso, se faz necessária uma intervenção consti-
tucional que nos “obrigue”, enquanto educadores, a incluir em nosso planejamento pedagógico os atores que
tiveram suas memórias enterradas para que, desenterrando-as, possamos preencher as verdadeiras lacunas na
linha do tempo que apresenta a história do povo brasileiro.
Quando introduzimos em nossa linha do tempo os fatos históricos que apresentam as lutas dos povos
indígenas, não estamos dando as costas ao nosso próprio espelho e sim, estamos demonstrando a importância
de se apresentar os sujeitos que tiveram suas vozes silenciadas por quem escrevia a “verdadeira” história dentro
do processo de luta.
Outro aspecto que pensamos ser de suma importância para o que será abordado na temática indígena
em sala de aula: devemos enfocar produções acadêmicas ou as produções do movimento indígena nacional ou
simplesmente o diálogo estabelecido entre ambos. Assim, cabe a pergunta: como os educadores selecionam as
fontes que serão abordadas em sala de aula, espaço formador e produtor de conhecimento?
Abordar a temática indígena em sala de aula permite criar novos diálogos com a história colonial
produzida até os dias atuais e que está, a todo momento, em diálogo com os anseios, questionamentos e
novas problematizações que produzirão, num futuro próximo, novos parâmetros curriculares. A produção
da memória oficial pela História tradicional seleciona como sujeitos da história os atores dominantes que
provocaram um etnocídio na literatura produzida com o ato de conquista, e este fato fez com que os índios
não fossem incorporados à memória oficial como sujeitos da História.
Chegaram à baía de Guanabara em janeiro de 1565 e no istmo da península de São João, ao pé do
morro depois chamado Pão de Açúcar, Estácio de Sá construiu o seu arraial. Em 1º de março levantou-se
a cerca que constituiu o núcleo da cidade e foi chamada São Sebastião, em lembrança do Rei de Portugal.
Estácio de Sá tomou as medidas administrativas necessárias à fundação da cidade mas o núcleo não pas-
sava de um pequeno arraial que por longo tempo, sobreviveu bravamente aos ataques cotidianos de Tamoio
e franceses dos arredores. Em 1567, chegou a armada de Mem de Sá e Cristóvão de Barros para auxiliar o
pequeno núcleo e em 20 de janeiro ocorreu o violento combate que deu aos portugueses a vitória e a con-
quista do forte de Uruçumirim, importante reduto dos inimigos. (SILVA, R.M., 1996, p.8-30).

Percebemos que a descrição do ato de chegada até o ato de conquista de Uruçumirim revela como
este fato contribuiu para o nosso mito de fundação, e como tal evento produziu um discurso e arquitetou
nossa memória e nossa retórica sobre a história de fundação da cidade do Rio de Janeiro. Porém, em nossa
análise não basta apenas acreditar que a História desta cidade só pode ser contada e lida a partir dos relatos
que mostram a vitória dos portugueses sobre o Tamoio, ou seja, apresentar na sala de aula uma única visão
sobre os fatos. Se apresentamos a linha do tempo que traça o horizonte do período do descobrimento apenas
desse ponto de vista, não permitindo que outras versões e sejam reveladas, cremos estar cometendo, com esta
omissão, um equívoco metodológico sobre os fatos que envolvem a fundação da cidade do Rio de Janeiro.
Compreendemos que cabe ao educador buscar, nas fontes, as vozes dos guerreiros e guerreiras que
lutaram também por esta cidade. Na busca pelas vozes dos ancestrais da etnia Tupinambá, que habitavam
o solo da Guanabara até a metade do século XVI, encontramo-nas nos registros deixados pelo viajante e
também membro da tripulação de Villegagnon, Jean de Léry (1972), que buscou empreender o projeto da
França Antártica no território próximo à baía de Guanabara.
Como fonte histórica, Jean de Léry nos deixou um diálogo que estabeleceu com a população Tu-
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pinambá. Em seu livro Viagem à terra do Brasil, ele descreve os hábitos e costumes destes índios. Vamos aqui
apresentar um trecho deste diálogo, precisamente o momento em que Léry pede ao Tupinambá que descreva
o local onde está situada a sua aldeia:
Francês - Mamópe nde reta? Onde está é a tua moradia? (Aqui ele se refere à residência.)
Tupinambá – Kariók, Uyrá-uasú–oé, Josy-yrasík ou Joeyrasík, Pirakã-iopã, Eirajá, Itanã, Tarakuirapã,
Sarapoy. Keriý, Akaraý, Kurumuré, Itaók, Joararuã. Takuarusutýba, Okarantín, Sapopéma, Nurukuy, Arasa-
tyva, Ysypotýva. (Estas são as aldeias ao longo da praia, entrando no rio de Geneure (Janeiro), à esquerda,
indicadas por seus próprios nomes; não sei de tradução ou sentido que possam ter). (Estas são as aldeias sitas
à margem direita do referido rio). (Estas são as maiores aldeias, dentro da terra, tanto de um como de outro
lado do rio). Há várias outras das quais poder-se-á ter amplo conhecimento por intermédio dos naturais, bem
como os chefes, reis presumíveis, que nelas moram, e, conhecendo-os, julgá-los. (LÉRY, Jean de, 1972, p.227).

Neste trecho, o Tupinambá apresenta ao francês todos os nomes que referenciam o lugar onde a
residência está situada. No trecho abaixo, indicará ele onde fica a sua residência: F – Mamópe setã? (Onde é
sua moradia?) T– Kariók–pe. Em Carioca. ( Este nome é o de um pequeno rio próximo, que assim se inter-
preta: casa de Kariós; composto desta palavra Kariós e de ók, que significa casa. Tirando o s e adicionando ók,
dará Kariók. O pe (be) é partícula de ablativo que indica o lugar pelo qual se perguntou ou aonde se deseja
ir) (LÉRY, Jean de, 1972, p. 227-228).
Com o diálogo apresentado acima, podemos imaginar a cordialidade estabelecida entre Jean de
Léry e o Tupinambá. Léry “conhece” a cidade do Rio de Janeiro através do olhar do indígena quando este
revela o local que abrigava a sua aldeia.
Pensar o passado colonial brasileiro é um mergulho que fazemos nas raízes que nos mantêm vivos.
O que foi cristalizado sobre a memória colonial brasileira, acerca da temática indígena, apresenta o índio
como um tema que está encerrado no passado colonial, e lutar contra este ponto final posto sobre o falso
descobrimento do Brasil é uma batalha travada contra a força dos autores do descobrimento.

Na trilha dos museus

Ao longo da pesquisa, fomos até as urnas funerárias do acervo do Museu Nacional na cidade do
Rio de Janeiro. Conhecemos o pouco que restou de patrimônio material do povo Tupinambá — materiais
estes encontrados em Araruama, município da região dos Lagos no estado do Rio de Janeiro, lugar sagrado
para os povos que habitavam a região. O material arqueológico guarda uma pequena parte da memória das
populações que habitavam o território da Guanabara no ano de 1552, período anterior ao grande massacre
de 1580, fato este que exterminou grande parte da população Tupinambá.
Iniciamos nossa pesquisa de campo pelos materiais arqueológicos, com o intuito de conhecer e
sentir o que existe de memória sobre as populações do território da Guanabara do século XVI. A partir
de então, surgiram algumas inquietações sobre o que temos de registro histórico destas populações, e
ficamos atentos a este fato. Ao tomar notas durante o trabalho de campo fomos interpretando simbolica-
mente aqueles registros históricos encontrados no momento da escrita deste trabalho. Em seguida, fomos
até o Museu Histórico Nacional, localizado na praça XV, a fim de encontramos o acervo lusitano do
período da colonização do Brasil, ou seja, fomos em busca do que é exposto aos olhos do público sobre
a memória de quem nos colonizou, e encontramos as armas usadas na guerra aos “povos sem história”.
Espadas cravejadas de pedras preciosas, fuzis, canhões e todo um arsenal bélico à disposição do visitante
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

do lugar que queira conhecer o passado colonial, saber quem foi o vencedor, logo, quem foi o vencido.
Os símbolos narram a história e ficam no nosso inconsciente como a imagem daquilo que devemos
guardar na nossa memória, isto é, o que fomos encontrando neste caminho percorrido pelos museus alimen-
tou bastante o imaginário de um visitante desapercebido que forjou em seu pensamento as imagens da luta
pela fundação desta cidade maravilhosa, e concluímos, então, que é desta maneira que se forma a memória
oficial. Podemos então notar que é nos museus cariocas que estão guardadas as diretrizes que selecionarão
os símbolos históricos da nossa pátria mãe gentil. Acompanhar o descobrimento do Brasil pelo olhar e pela
interpretação dos missionários, cronistas e agentes do governo colonial é testemunhar o nascimento de uma
nação sem poder conhecer a mãe. Apenas uma raiz é apresentada na memória oficial, e a outra é deixada no
espaço do silêncio. Um testemunho que nos leva a refletir sobre a seguinte questão: qual a contribuição dos
registros do século XVI para a nossa história?
Sabemos que houve um etnocídio em nossa trajetória histórica, e remexer nesta ferida provoca dor,
espanto e uma forte necessidade de superarmos estas marcas históricas. Cremos ser um dos papéis da historio-
grafia, que se ocupa desta temática, refletir sobre tal questão, a fim de superarmos algumas injustiças deixadas pelas
lacunas das fontes produzidas no calor dos acontecimentos do século XVI. Quem traz uma enorme contribuição
para o campo da etnografia histórica é Cristina Pompa, que manifestou, em sua recente tese de doutorado, a ne-
cessidade de remexer e revisar a história da América colonial:
Lançando mão de fontes inéditas e de uma releitura cuidadosa de documentos já conhecidos, pesquisas
recentes estão procurando reescrever a história colonial da América indígena, mostrando, ao contrário, um
mundo de rápidas mudanças, de adaptações, de negociações, de construções permanentes de identidades no
interior do quadro político extremamente instável. (POMPA, 2003, p.22).

Nesse trecho, apresentamos a necessidade da autora de buscar novos horizontes e novas abordagens
na temática da América indígena. Ela aprofunda o debate apresentando novos autores como Neil Whitehead
(1993), Gerald Sider (1994), Steven Stern (1992) e Jonathan Hill (1996), que apontam para um novo paradig-
ma da leitura sobre a conquista da América indígena. O furacão de questionamentos, revisões e novos olhares
acerca dos atos de conquista e colonização da América indígena têm como centro, para interpretação dos
fatos, as vozes do movimento indígena das Américas, já que para nós são estas vozes que fazem nascer o que
aqui estamos chamando de “furacão”.
São as necessidades e questionamentos oriundos do movimento social indígena que nos movem a
produzir este trabalho e, no caminho, ocorreu o benéfico encontro com as análises propostas por Cristina
Pompa, que as elaborou dentro do olho do furacão que surge neste início do século XXI, junto do anseio
ancestral de luta pelos territórios indígenas.
Está presente, em nosso tempo cíclico, os sentidos da História que tecemos a cada dia. Na cosmov-
isão dos povos indígenas, o tempo tece os seus ciclos, e podemos compreender que o movimento é em busca
dos ancestrais que vivenciaram a batalha que originou a fundação da cidade do Rio de Janeiro. É necessário
para que possamos compreender a história fundamentada nas duas visões dos fatos. Acreditamos ser fun-
damental a interpretação do indígena sobre o passado colonial brasileiro, como bem atentaram Viveiros de
Castro e Carneiro da Cunha (1993), quando abordaram a forma indígena de construir a história, através da
sua cosmovisão e da sua temporalidade cíclica. São os povos indígenas que sentem, a cada dia, o preconceito,
a discriminação e as injustiças presentes na memória oficial.

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O índio como bárbaro

A noção de bárbaro encontrada nas descrições dos missionários, viajantes e cronistas marca a ima-
gem do índio brasileiro na perspectiva eurocêntrica que predominou na historiografia, mesmo após o fim da
colonização. A literatura encontrada no século XVI, principalmente nas obras de Jean de Léry e André The-
vet, nos ensinou a olhar o índio como o bárbaro ou selvagem, e este fato gerou um grande distanciamento
entre índios e não índios. E, assim, o encontro entre “civilizados” e “bárbaros” inaugurou um mundo novo,
o novo mundo que conhecemos até hoje, com imagens que ainda não podemos enxergar no espelho, sem
passar pelos filtros dos nossos colonizadores. Vejamos como os povos indígenas são descritos e revelados ao
mundo, no período do século XVI:
É essa região, na parte mais bem conhecida e explorada (cerca do trópico brumal, ou mesmo mais além),
habitada por povos maravilhosamente estranhos e selvagens, sem fé, lei, religião e civilização alguma [...]. Os
selvagens vivem à maneira dos bichos, tais como os fez a natureza, alimentando-se de raízes e andando sem-
pre nus, tanto homens como mulheres, pelo menos até que, ao contato dos europeus, se venham despojando,
aos poucos, dessa brutalidade e vestindo-se de um modo mais conveniente (THEVET, André, 1944, p.175).

Os selvagens também comem serpentes grossas como um braço de homem e longas de uma vara; mas vi-os,
entretanto trazerem serpentes rajadas de preto e vermelho para casa [...] (DE LÉRY, Jean, 1972, p.100).

No século XVIII, encontramos na literatura francesa de Montaigne, uma abordagem diferen-


ciada sobre a questão indígena, e esta perspectiva permitiu enxergar o indío não apenas como o bárbaro
ou selvagem, ou seja buscou conhecer a alteridade sob outro olhar.
Mas voltando ao assunto, não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos; e, na verdade,
cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra. E é natural, porque só podemos julgar da
verdade e da razão de ser das coisas pelo exemplo e pela idéia dos usos e costumes do país em que vivemos.
Neste a religião é sempre a melhor, a administração excelente, e tudo o mais perfeito. A essa gente chamamos
selvagens como denominamos selvagens os frutos que a natureza produz sem intervenção do homem. No
entanto aos outros, àqueles que alteramos por processos de cultura e cujo desenvolvimento natural modifi-
camos, é que deveríamos aplicar o epíteto. (MONTAIGNE, M. 1980, p.101).

No século XXI, percebemos uma busca por uma releitura da história colonial, desfazendo mitos,
rompendo com determinadas perspectivas teóricas, trabalhando com a temática indígena para além do
período colonial. Buscam-se por novas fontes que revelem com sinceridade e respeito a presença do índio na
construção da história do povo brasileiro. Neste novo horizonte encontramos o trabalho de Cristina Pompa,
que faz uma análise dos relatos dos missionários, cronistas e viajantes, buscando uma releitura destas vozes.
Um segundo risco, mais sutil, é o de esquecer que os relatos refletem um processo de “tradução” em
andamento; em outros termos, o “outro” descrito pelas fontes já está, na maioria das vezes há muito tempo,
num processo de relacionamento com o “eu” ocidental, que é seu próprio “outro”. O que ele é e o que ele faz,
ou seja, sua auto-representação, depende também do interlocutor, para quem a informação é dirigida e que,
possivelmente, a solicitou (POMPA, 2003, p.27).

Na introdução de seu trabalho, Cristina Pompa analisa, de maneira distanciada, as fontes produzidas
nos relatos de viajantes, cronistas, missionários e agentes coloniais, não as inserindo em seu trabalho como
verdades facilmente incorporadas nas análises histórico-antropológicas do processo de chegada dos homens
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

do velho mundo em territórios “bárbaros”. Perceber como as imagens que foram produzidas nas leituras e
interpretações sobre a alteridade do ultramar foi fundamental para pintarmos, em nossa memória, o passado
colonial e, principalmente, como o índio participou ou foi omitido dos fatos que forjaram a construção desta
nação.
Há nesses relatos inúmeras deformidades, silêncios, lacunas, interpretações preenchidas de precon-
ceitos. Deste modo, faz-se necessário incluirmos as vozes dos sujeitos que foram impedidos de participar da
construção do passado colonial brasileiro:
Esta operação historiográfica, porém, deve ser conduzida à consciência das dificuldades inscritas no campo
semântico (os textos missionários) apresentando uma dupla irredutibilidade: a temporal expressa na dicoto-
mia antigo/moderno, e a expressiva, marcada pela oposição entre oralidade e escrita. Em outros termos,
põe-se a questão da possibilidade e dos limites do uso das fontes escritas, produzidas pela cultura que se
autopercebia como única legítima produtora de valores de civilização, na reconstituição da história das
culturas orais, cuja voz foi silenciada e justamente pelo discurso do civilizador (POMPA. 2003, p.25-26).

Portanto, aceitar o que foi construído como verdade acerca de como foi erguida esta nação, partin-
do apenas do discurso do civilizador é, em nosso entendimento, um pouco limitado para o campo histórico-
metodológico que, neste novo século, busca ir além das memórias do ultramar e olhar bem para onde nossos
próprios pés pisam e, com isso, possibilitar que encontremos as raízes que foram soterradas pelo silêncio.
A ideologia brasileira quer o índio – e também o negro como um futuro “branco” dissolvido pela
amalgamação racial e pela assimilação, na comunidade nacional. Entre os desejos, a ideologia e os fatos,
medeiam, contudo, grandes distâncias, tão grandes que à propalada ideologia assimilacionista brasileira,
com respeito aos índios, não corresponde uma atitude assimilativa (RIBEIRO, 1962, p.141).

Conhecer e apresentar o passado colonial que mostra o índio despido de interpretações que sempre
partiram do olhar do outro não é um movimento que fazemos em busca das originalidades, mas sim um
respeito que admitimos para nós, futuros historiadores e educadores, devemos ter em relação à nossa cultura
e principalmente às raízes.
Deste modo, acreditamos ser fundamental a construção de um Museu Vivo de culturas vivas, como
bem escreveu Mário Pedrosa, no qual as formas de apresentação da arte e dos elementos oriundos da cultura
indígena estejam falando do índio vivo e sua realidade. É um desafio para as populações indígenas erguer e
gerir um equipamento cultural, como um museu, pois não faz parte da dinâmica cultural destas populações
a ideia de museu, pertencente ao mundo europeu. No entanto, por um processo de diálogo com a cultura
e a arte do mundo europeu, as comunidades indígenas acreditaram ser importante de preservação da arte,
seja a pintura, a dança, a música e a literatura, considerando que as manifestações próprias da arte indígena
podem ser traduzidas dentro das linguagens próprias da cultura e da arte europeia.

Referências

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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

Parte II

Ensaios: poética e estética

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Antonin Artaud: o homem-teatro vindo do Alhures

Bruno Cany
Universidade Paris-8 Saint-Denis
Trad.: Guilherme Werlang

A rtaud, que sobrevive a uma crise radical de desapropriação de si, revolu-


cionou o teatro e subverteu o pensamento — não apenas o do teatro. Ele engajou o
teatro e a poesia em uma revolução filosófica: o teatro não deve mais ser psicológico e
sociológico, mas deve ser total e metafísico.
Artaud se inscreve na filiação ao renascimento do artista-filósofo, iniciada
por Kierkegaard e Nietzsche, no século XIX. Mas rompe com esses grandes anteces-
sores, que continuavam a pensar o pensamento-artista sob o modo da música (heran-
ça pitagórico-platônica), e faz com que o teatro e o pensamento entrem na revolução
visual da modernidade. Para ele, o teatro, que é a arte do pensamento visual, oferece
à imagem uma concretude que as outras artes ignoram.
O pensamento teatral elabora, assim, o homem dual, um misto de alma e de
corpo, pensamento a partir do corpo; o homem hieróglifo, que se comunica com todo
seu corpo (e não apenas com sua boca), e que é a interface entre o visível e o invisível
humanos, divinos e cósmicos.
A partir do Duplo, que corresponde, na cena, à carne, e que é a massa indis-
tinta da alma e do corpo, base orgânica do teatro, e a partir da Crueldade, que cor-
responde, na cena, à linguagem, e que é a força que anima o Duplo e o faz produzir
signos, Artaud elabora uma singular antropologia poético-metafísica.
Quando os lugares do espetáculo não se apresentam mais a ele, o homem-
teatro se redobra sobre si mesmo, fazendo, de seu corpo, seu espaço teatral próprio.
Ele descobre, então, que o corpo do homem-teatro é um corpo sem órgãos, um corpo
livre das funções vitais que constringem o corpo fisiológico e poluem nossas vidas
cotidianas. Mas, logo, sob a pressão de reiterados fracassos, a teatralidade nômade se
desloca mais ainda, passando do homem-teatro ao teatro-poesia, cuja cena é a página
de seus cadernos de estudante, onde o pensamento se “grafitiza”…
Ora, esse pensamento fulgurante — e fulgurante através dos tempos ! —,
que cresce de maneira exponencial, nutre-se de diálogos filosóficos transculturais:
Esse pensamento experimental, em ruptura radical com a cultura ocidental,
nutre-se de diálogos com os Alhures. De início, o antropológico, no caso da loucura,
que o permite colocar em questão seu dualismo dialético; em seguida, os culturais,
com a Antiguidade greco-romana, que lhe permite desdobrar sua concepção da cru-
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eldade; com o Teatro balinês, que lhe revela a presença física da metafísica; e com as terras dos taraumaras,
que o mergulha na eficácia performativa da magia…

Palestra

Antonin Artaud revolucionou o teatro e o pensamento: o teatro em sua prática e em sua teoria; o
pensamento do teatro e, ademais, o pensamento da cultura. Por isso, praticou a pluridisciplinaridade — sua
obra reúne poemas, peças de teatro, escritos críticos e teóricos sobre o teatro e o cinema, traduções, adaptações
romanescas etc.— e participou da transcultura nascente: ele reinveste os trágicos gregos, descobre o teatro
balinês e parte para o México, ao encontro dos taraumaras…
Entre tudo isso, o “homem-teatro” não só desempenha todas as funções (cenógrafo, dramaturgo,
comediante, decorador, estilista de roupas, teórico, redator de manifestos, crítico…), mas ainda, e sobretu-
do, vive o que pratica: Jean-Louis Barrault narra como, em um dia de 1933, quanto o encontrou na Coupole,
o homem que tinha diante de si se identificava como Heliogábalo.
Artista-filósofo, como antes dele o fora Xenófanes, ele não separa mais a arte da filosofia (poesia e
pensamento, teatro e pensamento) do que separa a arte da vida e a filosofia da vida.
O ponto de partida do trajeto fabuloso do pensamento de Antonin Artaud é que a loucura está
em primeiro lugar em sua vida. Ela impõe-lhe que não espere reconciliação com o logos, o pensamento
pacientemente elaborado pelo Ocidente, depois da Grécia antiga. E ela o leva a pensar, e a encontrar alhures,
sua lógica própria, necessariamente paradoxal: será a da crueldade.
Eu não quero abordar, aqui, essa questão essencial; mas é impossível não notar que a loucura é seu
alhures original, lá de onde ele vem, antes que se dirija para outros alhures: o Oriente, o México…
A revolução teatral que ele inicia se desenvolve na trajetória circular de seu pensamento: parte da
escrita e retorna a ela, conforme uma evolução-revolução em três tempos.
O primeiro momento, 1920-1927, concentra-se em torno do Teatro Alfred Jarry, fundado em 1926.
Seu ponto forte é o teatro prático. Trabalhando, aliás, ao lado de Lugné-Poe, Jouvet, Pitoëff e Dullin, Ar-
taud participa da renovação do teatro francês; mas tenta radicalizá-lo. O Teatro Alfred Jarry monta quatro
espetáculos, que não totalizam mais do que oito apresentações.
O segundo momento, 1932-1935, concentra-se em Le Théatre et son double (O Teatro e seu Duplo),
publicado em 1938, em seu retorno do México. Seu ponto criativo é ser um teatro teórico (fundamento de
todo o teatro experimental vindouro): Artaud tenta elaborar “conceitualmente” qual poderia ser esse teatro,
realmente inovador. Sua finalidade permanece, todavia, prática. Ele monta Les Cenci — uma ilustração de
seu teatro da crueldade —, que não terá mais do que 17 apresentações.
O terceiro momento, 1947-1948, é duplo. De um lado, concentra-se em torno do fracasso de sua
conferência no Teatro do Vieux-Colombier, em janeiro de 1947, e da interdição de sua emissão radiofônica
intitulada “Para terminar com o julgamento de Deus”, em fevereiro de 1948. De outro lado, transborda-se,
tal como a enchente de um rio, em dezenas de cadernos escolares, e, em particular, nos Cadernos de Ivry
(fevereiro de 1947— março de 1948). É um teatro poético-filosófico. A teatralidade nômade, que passava
de um teatro a outro, de um apartamento a uma fábrica abandonada (possibilidade vislumbrada no Teatro
Alfred Jarry, mas que permanece eventual), naufraga em seus últimos lugares e, simultaneamente, descobre-
se “fora de lugar”, nas páginas de seus cadernos.

76
1) O teatro Alfred Jarry

Antonin Artaud se posiciona, aparentemente, no teatro, com os membros do cartel que ele monta,
na poesia, com os surrealistas: ele quer participar ativamente dessas duas “revoluções” artísticas, mas desco-
bre que elas não vão longe o suficiente e quer radicalizá-las; porque, ao menos no que nos concerne, aqui:
Em primeiro lugar, o teatro não é um divertimento: ele engaja o homem por inteiro sobre as questões fun-
damentais. Arte e filosofia são modos diferentes de um mesmo questionamento. Em segundo lugar, o teatro
não é mais anedótico: ele apresenta uma visão do homem no mundo. Ele rejeita a empresa textual e afirma
o corpo hieróglifo.
O pensamento de Artaud é profundamente dual. A dualidade estética maior, que se irradia
através de toda a sua obra, é a da interdependência do teatro e da poesia. Mas essa dualidade enraíza-se
na dualidade antropológica de alma/de espírito e do corpo. Essa dupla dualidade estético-antropológica
está presente desde o início, em L’Ombilic des limbes (O Umbigo do Limbo, 1925) e nos textos surrealistas
(do mesmo período).
O que há de poético no teatro de Artaud assim como o que há de teatral em sua poesia encon-
tram-se em dois textos-poemas particularmente exemplares: Le jet de sang (port. O jato de sangue, janeiro
de 1925) e Paul des Oiseaux ou la Place de l’Amour (Paulo dos Pássaros ou a Praça do Amor, abril de 1924-
fevereiro de 1925).
Em O jato de sangue, que é uma paródia de uma peça de Armand Salacrou, o teatro oferece ao poema
um espaço (embora mental, i.é virtual): o da cena teatral. Espaço que ignora, ordinariamente, a poesia e que a
poesia, o mais das vezes, ignora também. Essa cena oferece o arcabouço de uma imagem física ao poema.
Em Paulo dos Pássaros..., de que nós conhecemos três versões, a matéria é a mesma que em
Correspondance avec Jacques Rivière (Correspondência com Jacques Rivière, 1923-1924). É a do drama
da reflexividade da consciência, mas, aqui, teatralizada. No verso de uma das folhas da segunda edição,
Artaud anotara: “essa dissolução do pensamento e da alma, essa arborescência de ideias, de sentimentos, de
gestos, que se esvanecem perpetuamente ao meu redor”.
Para esse pensamento, que não consegue ser dono de si mesmo, a novidade (em relação à Correspondên-
cia...) reside na articulação de ideias, de sentimentos e de gestos. Pois é por essa articulação que ele pode teatrali-
zar o paradoxo do pensamento. Em outras palavras, o teatro lhe permite repensar o teatro do pensamento.
Em Correspondência com Jacques Rivière, Artaud afirmara, em primeiro lugar, a desapropriação de
si. Sua “assustadora doença do espírito” abre-se para uma crise do espírito (que remete, é claro, a Hegel),
que resulta, em consequência, em uma crise da arte. Aqui, trata-se da poesia que não pode mais manter o
formalismo da individuação apolínea. Nessa ocasião, ele refuta a proeminência da alma e afirma o corpo,
carnal e vitalista, no seio de um novo pensamento sobre a dualidade corpo/alma.
Ao mesmo tempo que a problemática do espírito coloca um problema poético, a problemática da
alma apresenta um problema metafísico. Ora, a crise poética do espírito é, distintamente, um problema
físico, fisiológico até (assim os problemas psíquicos encontram sua objetivação em uma forma literária),
enquanto a crise metafísica da alma é, distintamente, um problema ontológico (ôntico). Em consequência:
a arte (a poesia) deve se assumir como informe na composição e como impura em seus componentes.
O teatro poético lhe permite, então, se reapropriar, novamente, da velha metafísica do teatro do pensa-
mento. Ora, o teatro filosófico — “teatro da verdade”, em A República —, é definitivamente elaborado em con-
traposição sistemática ao teatro trágico (ator maior, com a sofística do nascimento da democracia ateniense).
Mas, no que nos diz respeito, Platão faz o pensamento passar de uma teatralidade trágica a uma teat-
ralidade teórica, ao mesmo tempo que nos faz passar do pensamento visual, fisiológico (pensar é ver—como
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um testemunho ocular—o divino antropomórfico) ao pensamento teórico (pensar é ver— mas com o olho do
espírito— as formas abstratas). O teatro, como cenário, é o operador metafórico que vai permitir que o pensa-
mento se pense pensamento e não mais visão. Que faça, portanto, um passo decisivo rumo à abstração. O olho
(metafórico), ao se desengajar do corpo físico, oferece a condição necessária para a reflexividade vindoura…
Na outra extremidade do arco da filosofia clássica, Nietzsche retorna ao teatro trágico. Mas, para
ele, o teatro trágico é um teatro de palavras. Um teatro de filólogo.
Sabe-se que Nietzsche não desistia de querer percorrer o caminho inverso do que o fizeram Sócrates
e Platão: remontar, do pensamento socrático-platônico, ao pensamento heraclitiano, via Sófocles. Sua am-
bição é a de tornar possível o retorno ao pensamento trágico. E, ao mesmo tempo, paradoxalmente, não
cessará de pensar o pensamento conforme os termos propostos por Platão, da apreensão musical do teatro
da abstração. Ocultando a narrativa contextualizante, bem como a narrativa mítica (que são um dos segre-
dos mais bem guardados da filosofia platônica), Nietzsche redescobre a força da metáfora no pensamento
alegórico, que se opõe à impotência da analogia no pensamento teórico, e desenvolve uma concepção origi-
nal da metáfora como ferramenta preconceitual e musical, em seu diálogo contínuo com a tragédia grega.

2) O teatro antigo

Antonin Artaud, igualmente, retorna ao mundo trágico, o da tragédia grega e romana, de He-
liogábalo. É o lugar de seu primeiro diálogo transcultural com o Alhures.
É assim que, ali onde Nietzsche já reintroduzira o corpo (isto é, o corpo das sensações, que não é
uma abstração), Artaud introduz o teatro não metafórico: com ele, o teatro do pensamento não é mais uma
imagem virtual. É o do corpo que pensa e do pensamento que sofre.
Em Manifeste pour un théatre avorté (Manifesto para um teatro abortado,T. II, 1927, p.28–33), Ar-
taud nos confia que ele encontra no teatro antigo uma fonte de inspiração e que sua ambição é a de remontar
às fontes humanas e inumanas do teatro e as ressuscitar totalmente.
Esse é o ponto, tão revolucionário (em ruptura total com o teatro de sua época) quanto arqueológico
(retornando ao que havia de vivo e de dinâmico no teatro antigo: a pragmática mágico-religiosa). O desafio
moderno, entretanto, não repousa sobre os deuses, mas sobre os humanos. Seu projeto, também, é o de tornar
visível o invisível humano: “Se fazemos teatro não é para representar peças, mas para conseguir que tudo o que
há de obscuro no espírito, de enterrado, de não revelado se manifeste em uma espécie de projeção material real”.
Para tornar aparente esse invisível aos olhos dos espectadores, é preciso não procurar provocar “a
ilusão do que não é, mas, ao contrário, tornar aparente aos olhares um certo número de quadros de imagens
indestrutíveis, inegáveis, que falarão diretamente ao espírito”. Ora, o que fala “diretamente ao espírito”
(ideia recorrente, em Artaud) é o “invisível humano feito visível”.
Os objetos, os acessórios, as decorações mesmo devem ser entendidos em um “sentido imediato”,
sem transposição (algo como a tautegoria schellinguiana): “deve-se tomá-los não pelo que representam, mas
pelo que, na realidade, são”. É impossível dizer melhor que o teatro é imagem concreta, e que a imagem é
produção do pensamento.
Três coisas aparecem, aqui: a) que no seio da revolução total, o pensamento-artista parou de se pen-
sar música (apreendendo as sensações evanescentes) para se pensar imagem; b) que essa imagem pela qual
o pensamento pensa é uma imagem concreta (apreendendo a própria matéria metafísica); c) que a imagem
concreta, porquanto produção do pensamento, escapa ao incômodo do maquinismo, que ela é emancipação
das máquinas e da tecnologia: que é o homem o Mestre das Imagens, não as imagens os Mestres do Homem!
78
O teatro não é a finalidade [do entretenimento], mas um “meio” (p. 34) para fazer advir a realidade
inquietante e metafísica, isto é, para fazer advir uma imagem concreta do corpo invisível.
Mas para poder conferir sua concretude ao teatro no pensamento, é necessário que o teatro (do pensa-
mento) seja uma imagem. Ora, quem pensou a imagem do teatro do pensamento foi Giorgio de Chirico, em
sua pintura metafísica. Foi ele o primeiro que levou o pensamento artista a abandonar a imagem metafórica do
pensamento (quando se pensa), tal como ele é pensado, de Platão a Nietzsche, passando por Rousseau, depois
Kierkegaard e Schopenhauer, em benefício da imagem concreta do pensamento. É a Chirico, pois, e não ao
autor de Ecce Homo, que cabe a honra de remeter o platonismo a esse ponto essencial.
Todavia, em sua Pintura Metafísica, como no teatro-poema de Artaud, o corpo, que perdeu sua
abstração conceitual, permanece privado da substância, em virtude do fato de que a imagem figurativa das
artes visuais permanece virtual. Assim, se o teatro poético permitiu que Artaud apreendesse concretamente
o pensamento, resta a ele aceder a um teatro que oferece a seu corpo a substancialidade. Para isso, será ne-
cessário que ele desengaje o teatro, arte da imagem concreta, animada, das artes visuais, para integrar aquilo
que, hoje, chamamos de artes vivas.

3) A descoberta do teatro balinês

É em 1931 que Artaud encontra, concretamente, o teatro oriental: ele assiste a um espetáculo
balinês na Exposição Colonial. É um espectador assíduo, assim como Henri Michaud.
Em sua revolução total, empresa realizada a partir da elaboração de uma arte total em que o teatro
e a poesia, a arte e a filosofia são indissociáveis, o encontro com o teatro antigo resultara insatisfatório, pelo
fato de se tratar de uma arte do passado, uma arte não viva. Ora, se a arte permitiu ao pensamento redesco-
brir o pensamento-visão, e se o teatro ofereceu uma concretude a essa imagem, o pensamento novo deve,
ainda, encontrar, simultaneamente, sua substancialidade, sua expressão metafísica.
Em resposta à crise inicial do espírito (que engendrou uma crise da poesia e uma crise do espiri-
tualismo), a tentativa de fundação do corporeísmo que dela resulta (“Eu cultuo não o eu, mas a carne, no
sentido sensível da palavra carne”—Fragments d’un journal d’Enfer— Fragmentos de um Jornal do Inferno,
T.I, 1926, p. 139) não se abriu para um materialismo que rejeitasse toda espiritualidade, mas para uma
metafísica: “Colocar-me em face da metafísica que fiz para mim, em função do nada que trago comigo”.
(ibid., p.136).
De que metafísica se trata? É ali que está um dos eixos sobre os quais o pensamento de Artaud
trabalhará até seu último sopro. E como praticar essa metafísica a partir de um pensamento que pensa por
imagens concretas e substanciais ? É ali que o teatro balinês é, para ele, uma verdadeira revelação.
É possível condensar assim os aportes do teatro balinês ao pensamento de Artaud. Em primeiro
lugar, é um teatro do cenógrafo (e não do dramaturgo); é a realização da ideia do “teatro puro, onde tudo,
concepção e realização, não vale, não existe senão por sua objetivação em cena” (T. IV, p.65). Em seguida, é
um espetáculo total, onde em que a dança, o canto, a pantomima, a música concorrem para a realização de
uma obra que não deixa nenhuma porção do espaço sem uso, e que coloca em ação “uma nova linguagem
física, à base de signos e não mais de palavras”, e cujos atores são hieróglifos animados (ibid.). Enfim, é a
confirmação de uma de suas velhas intuições, a saber, que o teatro metafísico é possível e que é mesmo a
solução para sair do teatro psicológico e sociológico. É o choque dessa verdadeira subversão de valores que
dá toda profundidade filosófica à luta contra o teatro dos dramaturgos: porque o espaço teatral oriental é
um território do concreto, prenhe de signos. Ora, esses signos nos trazem aos olhos uma física para além da
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vida cotidiana, uma física dos estados profundos do pensamento: uma física do invisível feito visível.

4) O teatro e seu duplo

Em Le Théatre et son double (O Teatro e seu duplo), Antonin Artaud propõe duas imagens para re-
pensar o teatro: a alquimia e a peste, a partir das quais ele redescobre o simbólico.
A alquimia oferece ao teatro a eficácia não efetiva do simbólico que se abre ao pensamento, pois o
teatro procura o ouro metafísico como a alquimia procura o ouro físico. Como a magia e o ritual, a alqui-
mia permite que a imaginação seja tocada pelo real metafísico, enquanto os símbolos nomeiam “os estados
filosóficos da matéria”.
A peste oferece ao teatro um modelo de imagem paradoxal que, por sua associação inabitual,
inesperada, subverte o espírito do homem e, ao subvertê-lo, o coloca em movimento. A peste é uma ale-
goria que retoma uma imagem concreta (factual e diversa — por onde se opõe ao conceito) sobre o plano
simbólico. A alegoria permite a obtenção do abstrato a partir do concreto — sendo os símbolos as formas
dessas transferências.
O Teatro e seu Duplo procura tirar as lições dos achados que o teatro balinês oferece. Nesse livro,
no qual Antonin Artaud elenca suas ferramentas, o teatro prova ser filosófico porquanto é o lugar da reuni-
ficação dialética das duas substâncias humanas.
O Duplo, em cena, corresponde à carne, na vida. É um complexo indefinido de matéria e de es-
pírito que o ator modela sobre a cena; o comediante não representa um personagem (representação de uma
coisa em sua ausência), mas ele se oferece, tornado o invisível em visível: a carne de seu corpo. Essa carne,
invisível na vida. Essa carne que, nos textos surrealistas, já era, para quem fora desapropriado de seu próprio
pensamento, o lugar da reconquista de si. Essa carne que, desde essa época, abre-se a uma metafísica do ser
e ao conhecimento da Vida, pois ele é a dupla-face espírito/sensibilidade. É o lugar do princípio.
O Duplo é, então, essa massa indistinta de alma e de corpo que é a base orgânica do teatro. É a
substancialidade que lhe fazia falta até aqui.
O homem “carnal” opõe-se, então, ao homem “psíquico”: ele não é o outro termo da dualidade,
exclusivo, por sua vez, como o fora, antes dele, o homem “psíquico”. Não; o homem “carnal” é o homem
dual (esse misto de alma e de corpo) pensado a partir do corpo. Pensar incluindo o corpo na representação
do pensamento. O corpo do homem carnal não é, pois, privado de psyché, ele não pode sê-lo. Senão, seria
privado de humanidade. Reduzido a uma animalidade da qual nada o distinguiria. Se o homem ocidental
pode ter um complexo de superioridade (uma alma transcendente), não pode ter um complexo de inferio-
ridade (um corpo dominante, hegemônico). Ele não passará, então, por aventuras inversas às do homem
cartesiano, que, tendo encontrado sua alma, faz esforços desesperados para a articular a seu corpo, que jaz
do outro lado da vidraça.
Ele parte, pois, da ideia de que aquela dualidade é estúpida, inoperante (vide Descartes) e que a
ausência de síntese não se deve à doença, à loucura, e sim à não pertinência da própria dualidade. Ele parte,
pois, de uma noção que não separa as substâncias alma-corpo: essa noção é o Duplo, matéria indefinida de
duas substâncias, e ele volta ao teatro, à cena, e ao pensamento para nos oferecer esse Duplo, a dualidade
reunificada (mas não não unificada, como em Heráclito) e amorfa que se trata de articular: o Duplo é uma
massa indistinta de carne e de alma, um pré-corpo não individuado, base orgânica do teatro. Essa base
orgânica é a massa a partir da qual Artaud quer produzir os signos, diretamente no espaço: gestos, jogos de
luz, ruídos, cores, objetos.
80
Ora, uma força é necessária para articular a massa inorgânica aos signos extralinguísticos; é ela que
move a base orgânica, e que ele nomeia crueldade.
A crueldade é um nexo paradoxal que une a harmonia e a dissonância: é a “discórdia harmo-
niosa” dos corpos desarticulados dos atores balineses traçando no espaço as explosões sonoras e visuais do
que poderíamos chamar de seus discorps (“discorpos”): entre corpo e discurso, dissonâncias e ressonâncias
(GROSSMAN, E.).

A crueldade é o correspondente teatral da linguagem: ela é o que faz o signo, o que move a massa
orgânica e amorfa em um signo.
Carne – Duplo
Linguagem – Crueldade
O teatro estabelece uma comunicação (signo), mas extralinguística (a linguagem não é mais do
que um elemento físico (acústico): o signo não é figuração (representação), mas inserção (apresentação) no
visível, e o homem torna-se, integralmente, um ser comunicacional. Ele torna-se um hieróglifo de uma
comunicação que lhe ultrapassa. Pois “metafísico” quer dizer acesso a uma realidade cosmoteológica. Ela
engloba tanto o ritual do espaço teológico quanto a magia do espaço profano.

5) A viagem ao México

Os dois encontros precedentes, que são o Alhures greco-romano e o Alhures balinês, permitiram que
Antonin Artaud compreendesse que a crise do teatro e da poesia com a qual ele se confrontava se inscreve, na
realidade, em um crise da cultura europeia.
Essa crise da cultura ocidental reside em sua falta de envergadura intelectual e seu fechamento em
seu materialismo e seu racionalismo. Artaud compreende que o que propõe — de um lado, uma metafísica
poética que recoloca em seu centro o homem, porquanto o que pensa para além do mundo físico, é aquele
mesmo que tem os pés na terra; de outro lado, que esse homem, recolocado no centro da ontologia, não
é um ser limitado pela individualidade psicológica— tem poucas chances de ser ouvido e acredita que o
México, em virtude do estado de sua cultura, responderá melhor a suas expectativas. Quando de sua pri-
meira conferência proferida no México, conclui assim, sem ambiguidade: “a cultura racionalista da Europa
faliu e eu vim às terras mexicanas procurar as bases de uma cultura mágica” (T. VIII, p. 183).
Segundo ele, a revolução mexicana reatou o espiritualismo com a matéria e com a autoalienação, ou
seja, a inscrição do indivíduo no Todo da Sociedade, da Natureza, do Cosmos. Quanto ao pensamento mági-
co, é o pensamento pragmático da eficácia sobre os outros e sobre as coisas, da revelação do espaço metafísico.
Ele tem razão, sem dúvida. O ocidente atravessa uma crise dupla do sujeito, com a despersonaliza-
ção e a autoalienação:
A despersonalização, que é um problema de identidade, a resposta à “quem sou eu?” não consegue
se fixar. Henri Michaux (com Qui je fus ? - Quem fui eu ?, 1927, e as grandes obras sobre as drogas) e Fer-
nando Pessoa (com seus heterônimos) são os dois grandes criadores contemporâneos da despersonalização.
O problema é o do corpo exterior: o invólucro corporal (o corpo físico) não consegue mais aparecer como
lugar da síntese orgânica da alma e do corpo. O corpo não é mais continente.
A autoalienação, que é um problema de essência, a resposta à questão “que é o que eu penso ?” não con-
segue mais fixar. Não há qualquer problema de identidade, aqui. Artaud não tem nenhuma dúvida sobre a capaci-
dade de seu corpo oferecer o que ele é. Sua dúvida jaz em sua capacidade de aceder ao que ele é. É um problema do
corpo interior: o invólucro (o corpo físico) consegue, sem dificuldade, assegurar a presença de “quem eu sou”; em
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
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compensação, não há segurança de que essa (a minha) presença consiga assegurar a do invisível que está em mim.
A despersonalização é, sobretudo, um problema do escritor: este vive mil vidas, graças à empatia.
De repente, ele percebe (pode ser que perceba) que não sabe mais se seu corpo, como síntese orgânica, tem
meios para assegurar sua identidade, ao passo que a autoalienação, ao menos a que Artaud vive, parece,
antes, um problema do comediante. A identidade é assumida pela síntese orgânica. Em compensação, não
se diz que essa identidade consegue se reintegrar, isto é, tornar visível o invisível que assegura sua coerência
e sua conexão à cosmoteogonia.
Quanto à terra dos taraumaras, ela lhe oferece “um pouco de[ssa] realidade” que ele busca desde seu
ingresso na arte. Sua viagem é a travessia de “um mundo de signos sagrados, de poesia e de teatro em estado
puro”, na qual o que lhe interessa, em primeiro lugar, é o encontro com o que ele já escrevia em Héliogabale
(Heliogábalo), a saber, o encontro com a força ritual da nominação. Essa eficácia performática, que ele en-
contra, portanto, nos ritos verbais, é exatamente o que procura ressuscitar na cena do teatro, e da qual falara
em Lettres sur le language ( Cartas sobre a linguagem), de O Teatro e seu duplo.
Para Artaud, a escritura poética funda-se no fato de emprestar às palavras sua energia material, sua
força de projeção no espaço, sua possibilidade de perturbação física. Voltar às fontes plásticas e ativas da
linguagem é, então, reencontrar a potência da eficácia simbólica que os feiticeiros taraumaras conferem a
seus fetiches ou a seus talismãs (GROSSMAN, E.).
O teatro será, então, mais e mais poético, e a linguagem, que permanecerá presa à comunicação
extraverbal, mais e mais central em sua concepção teatral.

6) O teatro poético-metafísico

Esse terceiro e último momento de elaboração teatral, conforme dissemos, articula-se em torno de
dois conjuntos: o de um teatro poético para além do teatro. Seu ponto forte é o teatro metafísico do corpo
sem órgãos. Ele oferece textos prontos e remete a uma teatralidade nômade. Antonin Artaud, o homem-
teatro, permanece aquele ator cujo corpo medeia o pensamento entre nós.
O fato de que, desde sempre, Artaud arrisca sua vida na vida e dramatiza ao extremo a articulação
do teatro à vida. Entretanto, a teatralidade nômade vislumbrada por ele desde a origem não é jamais um
impasse total conducente ao abandono de todo o projeto teatral. Já após o fracasso do Teatro Alfred Jarry,
ele respondeu com o “homem-teatro”: a realização do teatro nele, esse ser da união entre o homem e o ator
que se torna fusão do homem-ator e do espetáculo em seu conjunto.
E é ainda o caso, na conferência proferida no Vieux-Colombier. É certo que ele é absolutamente
subversivo, porquanto perde seus meios: gagueja, deixa cair seus scripts... absolutamente patético ! E no
entanto, é também para ele a ocasião única de expor sua arte teatral nova. A despeito do fracasso, André
Gide notou bem que é seu personagem que Artaud oferecia ao público: a um só tempo, de um histrionismo
sem-vergonha e de uma total autenticidade. A oferecer um “espetáculo” relevante do Teatro da Crueldade,
tal como ele estava a revisitar e para o qual iria logo compor um novo “manifesto”.
Muitos anos antes, Anaïs Nin anotara em seu diário, a propósito da conferência que Artaud proferi-
ra na Sorbonne sobre O Teatro e a Peste, que, de maneira imperceptível, ele abandonava o fio de seu discurso
e se punha a representar alguém morrendo de peste. Para ilustrar sua conferência, representava a agonia.
Ninguém percebeu quando tal começara, nem como, mas as pessoas prenderam a respiração. Depois, pouco
à vontade, começaram a rir…
Então, Antonin Artaud representa no teatro, mas também em sua vida e durante suas conferências.
Ele representa seu teatro da crueldade: sua vida projetada na cena. A vida metafísica, em que é apreendido o
82
princípio que coloca em movimento a massa orgânica amorfa dos signos. O movimento não é simplesmente
um dinamismo físico; é, também, vida da linguagem do corpo do homem hieróglifo, metafísico !
Através do pré-corpo que é o Duplo, esses dois planos se articulam um ao outro. Ora, essa articulação
dinamita nossos conceitos de “alma”/“espírito” e de “corpo /“matéria”. Pois ela dinamita a própria noção de
corpo, que se torna corpo metafísico, o discorpo produzido pela crueldade: é assim que ele se despedaça (corpo
fragmentado), depois perde o que não é essencial: seus órgãos (corpo sem órgãos). Eis o que mostra aos olhos o
teatro da crueldade: uma reconceituação “etantista” e dolorosa do homem, verdadeira metafísica existencial.
Ora, se depois do fracasso dos Cenci, Artaud interiorizou o teatro, tornou-se ele mesmo, defini-
tivamente, seu próprio espaço teatral, o fracasso último do Vieux-Colombier conduziu o homem-teatro a
deslocar ainda mais para diante o lugar de sua teatralidade nômade. Ou, mais exatamente, essa teatralidade
nômade, sempre pressionada para mais longe, é reconduzida para o limiar da loucura, de onde emergira sua
poesia, 25 anos antes.
O segundo conjunto, que é o dos famosos cadernos escolares, e particularmente os últimos de todos,
os Cadernos d’Ivry, é o de um teatro poético para além da loucura. A teatralidade não é mais, simplesmente,
a do “corpo sem órgãos”, do corpo que rejeitou sua organicidade, mas a da palavra: a página que se torna a
cena do pensamento.
Ora, a escritura é, para o pensamento, o que o corpo é para o ator. Nessa página de caderno, a escri-
tura se confunde com o desenho como gráfico. A escritura linear explodiu, e essa explosão liberou a potência
teatral: “Reproduções muito numerosas de páginas dos cadernos, diz E. Grossman (sua editora), mostram
aos olhos e à leitura, ao mesmo tempo, essa cenografia dos signos sobre a página (desenho, escritura) que
caracteriza a colocação no espaço teatral, gráfico e ritmado, dos últimos textos de Artaud.”
Os desenhos fazem ver a matéria referencial da escritura sob uma outra luz: em sua dimensão grá-
fica. A matéria da palavra não é mais o sentido, mas a grafia, a qual remete ao som (é imagem do som, no
sentido de tornar visível o invisível). A palavra perde seu sentido, e, ao perdê-lo, ganha o de seu desenho.
Sons e sentidos / traços e letras. O som faz ouvir o sentido, enquanto o traço faz ver a letra.
Pode-se pensar que os últimos fracassos (a conferência do Vieux-Colombier, a emissão de rádio) con-
duziram ao colapso definitivo: que se o corpo não consegue mais se exprimir, então é o silêncio, o fim. Porém,
pode-se, igualmente, escolher a lembrança de que já certos textos de O Umbigo do Limbo (O Jato de Sangue,
Paulo dos Pássaros) são textos nos quais o teatro habita o território da poesia. Quero dizer, a escritura.
Assim, o teatro do homem do teatro, isto é, um teatro não metafórico, o do corpo orgânico plural,
deve, por sua vez, ser apreendido pelo pensamento (mas não pelo pensamento que oculta o corpo, dessa vez):
o corpo perdeu seus órgãos vitais; mas que importa ? Ele conserva sua concretude plural inapreensível pelo
conceito clássico. Ele conserva, ao seio do pensamento, uma substancialidade que o pensamento filosófico
não conheceu depois que a ontologia filosófica veio substituir a velha ôntica dos pré-socráticos, esses pensa-
dores visuais da substancialidade da physis.
Assim, o teatro do homem-teatro é, in fine, o teatro da palavra (poética) de seu corpo sem órgãos.
Palavra escrita, pois o teatro não metafórico do corpo orgânico plural foi apreendido pelo pensamento, por
um pensamento hieroglífico, grafitizado sobre a página, radicalmente não idealista. E quando esse corpo
perdeu seus órgãos (tornando aparente que ele não era o corpo orgânico), conservou sua concretude plural
na cena da escritura poética.

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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
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Museu, poesia e patrimônio imaterial em Alphonsus de


Guimaraens

Lucas Guimaraens
Doutorando em Filosofia pela Universidade Paris 8 – Saint Denis e Universidade Federal
do Paraná; Superintendente de Bibliotecas Públicas e do Suplemento Literário da
Secretaria Municipal de Cultura de Minas Gerais

A literatura e a memória social

Como disse Michel Foucault:


[...] j’aurais voulu pouvoir me glisser subrepticement. Plutôt que de prendre la parole,
j’aurais voulu être enveloppé par elle, et porté bien au-delà de tout commencement
possible. J’aurais aimé m’apercevoir qu’au moment de parler une voix sans nom me
précédait depuis longtemps (…)1.

A assertiva foucaultiana trata, todos sabemos, de premissas do estruturalismo


vigente e daquilo que Foucault chamou de épistémé, i.e. regras de formação e condições
de possibilidade de um dado discurso em uma determinada época. O pensador francês
mostrava, poeticamente, a impossível fuga das leis estruturais da linguagem, daquilo
que, em si, já pertencia a qualquer prática social. Não deixando isso de lado, gostaria, no
entanto, de entender estas palavras também como a percepção arqueológica do filósofo
de que a criação das práticas discursivas e extradiscursivas de um povo e a perpetuação
de sua identidade passam, inexoravelmente, pelo som, pela música e pelas palavras.
A literatura e, mais precisamente, a poesia, nesse contexto, é vista como som
articulado inicial, origem da comunicação, das palavras e das coisas. Assim, seja pelos
poetas ditos do status-quo como Walt Whitman e Homero, até chegarmos a Garcia
Lorca, Pablo Neruda, Mario de Andrade, Drummond, Allen Ginsberg e outros, a poe-
sia tem como papel perenizar e moldar o sustento de um povo e de sua identidade.
A poesia, ao contrário da ideia defendida por certos críticos de que esta re-
sidiria em torres de marfim inalcançáveis, está mais presente em nosso cotidiano do
que imaginamos. Dai a assertiva de Manuel Said Ali, filólogo brasileiro, considerado
como um dos maiores sintaxistas da língua portuguesa, de que, mesmo sem nos aper-
cebermos, produzimos versos todo o tempo: decassílabos, dísticos etc.

1
FOUCAULT, Michel ; L’ordre du discours, Leçon inaugurale au Collège de France prononcée le 2 décembre 1970.
Tradução para o português : “Gostaria de me insinuar sub-repticiamente no discurso [...]. Em vez de tomar a palavra,
gostaria de ser envolvido por ela e levado bem além de todo começo possível. Gostaria de perceber que no momento
de falar uma voz sem nome me precedia há muito tempo [...]. 
84
Assim, nos ensinamentos de Ezra Pound,2 a melopeia, compreendida esta como a produção de cor-
relações emocionais por intermédio do som e do ritmo da fala, e a fanopeia, que é a projeção, através das pala-
vras, de um objeto na imaginação visual, seriam dois artifícios das palavras que, ainda que inconscientemente,
configuram-se como dois pilares da arte das palavras e da identidade cultural de um povo e de uma língua.
A partir do ano de 1989, a UNESCO, em sua Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradi-
cional Popular, já colocava em evidência suas preocupações quanto ao perigoso desaparecimento de culturas e
usos sociais que, não sendo tangíveis, representam as verdadeiras riquezas de uma comunidade. Nesta mesma
recomendação e, a partir dela, em vários outros textos internacionais, línguas, música, danças, jogos, mitologias,
rituais, costumes, artesanato e literatura foram e são motivos de proteção e, em determinados casos, fazem parte
da Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade.
Como a própria Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial da UNESCO dita,
existe uma “profunda interdependência entre o patrimônio cultural imaterial e o patrimônio material cultural”, 3
o segundo servindo de invólucro protetor e instrumento de memorização destas imaterialidades culturais.

O Museu como espaço crítico de produção identitária

Neste sentido, o Museu teria exatamente este papel: o de perpetuar práticas culturais com vistas a
permitir o desenvolvimento das identidades nacionais e mundiais. Ou, nas palavras do urbanista-filósofo
Leonardo Barci Castriota: “O fim da conservação não vai ser a manutenção dos bens materiais por si mes-
mos, mas muito mais a manutenção (e a promoção) dos valores incorporados pelo patrimônio.”
Jean Louis Déotte, professor da Universidade Paris 8, demonstra em seu livro L’Epoque des Appareils
que a ideia de Arte como conhecemos hoje somente se tornou possível a partir do surgimento da Instituição
Museal. Sejamos claros: o museu não inventou a arte, porém ele inaugurou o que chamamos de “regime esté-
tico da arte”. O aparelho museológico, isolando o “material”, colocando “em suspense”, entre parênteses, a des-
tinação cultural das obras de arte, ou seja, emancipando a obra de arte de seu passado, permitiu pela primeira
vez na história da humanidade que estas sejam contempladas por elas mesmas. Este fato possibilitou ao homem
a atividade kantiana de julgamento estético inevitavelmente contemplativo e desinteressado, baseada na relação
entre imaginação e entendimento, gerando uma revolução diante do que chamamos de sensibilidade comum.
Essa revolução se deve ao fato de o museu ter aberto caminho rumo ao reconhecimento da
igualdade de nossa faculdade de julgar a obra de arte, na medida em que esta instituição permite a to-
dos compartilhar da mesma experiência contemplativa artística e julgar o acervo museológico de forma
igualitária, sem distinção de raça, cor ou origem social. Além disso, sendo a temporalidade do museu
retroativa, as obras de arte contemporâneas são por ele absorvidas na medida em que elas detêm certa
capacidade de “salvar” o passado. Neste ponto, falamos da instituição museal como uma espécie de “es-
cudo” temporal, no qual o que está em jogo é o estabelecimento da “verdade histórica”. Desta forma, não
seria leviano afirmar que a criação do museu é intrínseca ao desenvolvimento do julgamento estético e
político, de forma livre e igual no mundo ocidental.
Assim, podemos constatar que o museu exerce dois importantes papéis na sociedade contem-
porânea: ele configura a sensibilidade comum de um povo ao mesmo tempo que inventa e estabelece a noção
de igualdade social. Historicamente, o museu do Louvre, por exemplo, pode ser analisado sob esses dois
aspectos em que, emancipando as obras de arte da obscuridade de colecionadores pertencentes à nobreza
2
POUND, Ezra; ABC of Reading.
3
CASTRIOTA, p. 211.
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francesa e fazendo com que elas possam ser vistas e apreciadas de forma igualitária, trouxe à tona a experiên-
cia sensível de apreciação da obra de arte, experiência sem a qual o autorreconhecimento, do povo francês,
em uma identidade cultural comum, e a consolidação da unidade política francesa seriam improváveis.

IPHAN e patrimônio imaterial da humanidade

No Brasil, de acordo com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (e seguindo de-
terminações da UNESCO) a criação, pelo Decreto nº 3.551/2000, dos diferentes Livros de Registro sugere a
percepção de distintos domínios na composição da dimensão imaterial do patrimônio cultural. Senão, veja-
mos: os bens culturais de natureza imaterial estariam incluídos ou contextualizados nas seguintes categorias
que constituem os distintos Livros do Registro:
1) Saberes: (a) conhecimentos e (b) modos de fazer (c) enraizados no cotidiano das comunidades;

2) Formas de expressão: (a) manifestações literárias, (b) musicais, plásticas, (c) cênicas e (d) lúdicas;

3) Celebrações: (a) rituais e (b) festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade,
do entretenimento e de outras práticas da vida social;

4) Lugares: mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e se reprodu-
zem práticas culturais coletivas.
Isto posto, a literatura (e particularmente a poesia de Alphonsus de Guimaraens, como veremos a se-
guir) não faria parte de um Saber (1), ligado a um Conhecimento (1a) enraizado na tradição literária brasileira
(2a e seguintes) e também no cotidiano de uma comunidade específica, i.e. cidades barrocas mineiras (1c)?
No Brasil, a literatura de cordel é o marco da sensibilidade artística de um povo. Fugindo integral-
mente dos arcanos acadêmicos, a história é passada por rimas e ritmos que não são outros serão a memória
sonora de um povo.

O Museu Casa Alphonsus de Guimaraens

Em Minas Gerais, no final do século XIX, surge Alphonsus de Guimaraens. Tendo já obtido o
bacharelado em Direito e recém-formado em Ciências Sociais em São Paulo, volta para as Minas Gerais,
tornando-se, de imediato, Promotor de Justiça. Cedo já se encontra produzindo seus versos. Sua obra inclui
ainda um livro inteiro em francês, Pauvre Lyre, e uma tradução de Heine, Nova Primavera. Dado à arte
decadentista e simbolista de sua época, o que mais nos impressiona é sua influência na vida cotidiana de
grandes comunidades e, mais precisamente, na vida dos moradores de Mariana e Ouro Preto. Morre no ano
de 1921 na cidade de Mariana, onde passou seus últimos 15 anos de vida como juiz municipal.
Tendo sido laureado por ilustres intelectuais brasileiros e internacionais (p. ex. Mário de Andrade, Oswald
de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Otto Maria Carpeaux, Juscelino Kubitschek— ex-presidente do
Brasil— Jacques Poulain e Elfie Poulain), são as mãos e vozes dos cidadãos que revivem, constantemente, o
legado do poeta.
Assim, chegamos à justificativa do aparecimento do Museu Casa Alphonsus de Guimaraens: a
criação de um museu em Mariana que reunisse o acervo do poeta Alphonsus de Guimaraens surgiu como
proposta em 1971. A ideia se concretizou quando, em 1975, o governo do estado de Minas Gerais adquiriu
a casa do poeta para abrigar o museu. A casa foi restaurada pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico
e Artístico (IEPHA-MG), entre 1976 e 1979.
O Museu Casa Alphonsus de Guimaraens foi inaugurado em 1986 na casa em que Alphonsus de
86
Guimaraens viveu entre 1913 a 1921, e foi conceituado como uma instituição cultural voltada para o estudo,
exposição e divulgação da vida e obra de Alphonsus de Guimaraens, fixando-se como um centro de pesquisas
sobre a literatura mineira. Construída em fins do século XVIII, a edificação de dois pavimentos, residência
típica de setores mais abastados da sociedade colonial, situa-se no centro histórico de Mariana, integrando
conjunto arquitetônico tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/IPHAN.
O acervo do museu é fruto de doações (a maioria feita pela família do próprio Alphonsus de Guima-
raens quando da criação da instituição); é composto também pela biblioteca particular de Alphonsus, na qual
se inserem obras raras; por conjunto de fotografias; por objetos referentes à vida privada do poeta e à carreira
de juiz e sobretudo à atividade literária; também por documentos textuais entre os quais se destacam artigos
(já publicados), originais de manuscritos de textos, poemas e correspondências. Além de sua exposição de
longa duração, o museu oferece também exposições temporárias, oficinas culturais voltadas em sua maioria
para o público escolar, e uma agenda de eventos como saraus e ciclo de conferências.
No entanto, a conservação do museu não é das melhores: ele se encontra fechado. Motivo: uma
parte das paredes está rachada, tornando perigosa a recepção do público. Ora, se é verdade que o museu
foi criado pela iniciativa das autoridades políticas da época, não é falso dizer que esta instituição foi e é
alimentada pela vontade das comunidades locais. Aliás, o museu e a obra do poeta são tão importantes que
em 2009 o Projeto Cantando Alphonsus comemorou 25 anos de existência, dando provas de seu vigor: um
público crescente de estudantes de escolas públicas, particulares, moradores de Mariana e cidades vizinhas,
além de turistas do Circuito dos Inconfidentes que se deleitam com a poesia de Alphonsus de Guimaraens
em saraus e outros eventos poéticos pelas ruas da cidade colonial.
Cantando Alphonsus tem o propósito de incentivar os estudos sobre a obra de Alphonsus de Gui-
maraens e, ao mesmo tempo, aproximar o público da sua poesia simbolista. Em 2001, passou a integrar
os trabalhos da Universidade Federal de Ouro Preto e, em seguida, efetivou parceria com o Museu Casa
Alphonsus de Guimaraens sob a coordenação da Superintendência de Museus/Secretaria de Estado de Cul-
tura e com a Academia Marianense Infanto Juvenil de Letras, Ciências e Artes. Cantando Alphonsus faz o
caminho desejável para qualquer museu que pretenda se constituir em uma ponte entre a obra e o público.
A cada ano, num ritual coletivo, ultrapassando as fronteiras do sobrado que serviu de residência ao poeta
e sua família, o museu se lança em muitas direções, ganha as ruas de Mariana, e a poesia de Alphonsus se
eterniza no movimento vivo de uma comunidade que o canta.
Percebemos, pois, que o processo de desenvolvimento do aparelho museológico tende a se autotrans-
formar em ações dinâmicas e não somente como estagnação de quadros na parede. Voltando ao Decreto nº
3.551/2000, este evento não seria também a transmutação do conhecimento originário (a poesia) em música
(2b) e demais artes (2c e d)? Finalmente, tudo isso não seria exatamente o que podemos determinar de festa
que marca a vivência coletiva do entretenimento e de outras práticas da vida social (3b)? No entanto, em
2010 o museu fechou temporariamente suas portas, e o projeto Cantando Alphonsus desde então não pôde
ser realizado em suas instalações. As comunicações com o governo são sempre morosas. Todos os projetos
(hidráulicos, elétricos etc) foram realizados e aguardamos agora sua restauração.
Pelos reflexos das obras de Alphonsus de Guimaraens nas academias e nas ruas das cidades brasilei-
ras barrocas não temos motivos de preocupações. No entanto, quando analisamos a difícil perspectiva de
renovar seu Museu Casa tão somente com os recursos governamentais, percebemos uma real necessidade
de transformar esta situação em luta incansável pela memória apenas de um poeta, mas de uma cultura que
possui suas raízes primárias numa pretérita literatura de Bernardo Guimarães (tio-avô de Alphonsus) e suas
personagens romântico-crítico-libertadores, como a escrava Isaura e a índia Jupyra, e que perpetua sua seiva
através da aclamação popular de sua obra e a de seus descendentes, notadamente os inigualáveis Alphonsus
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

de Guimaraens Filho, Afonso Henriques Neto, Luiz Alphonsus e Dinah Guimaraens. Da nova geração—
onde me incluo— há também Augusto de Guimaraens Cavalcanti e Domingos Guimaraens.
Vale sempre lembrar dos versos de nosso poeta maior, Carlos Drummond de Andrade:

... Algum estudante, sim, espero vê-lo


debruçado sobre a Pastoral aos Crentes
do Amor e da Morte, penetrando
o cerne dociamargo
de um verso alphonsino cem por cento.
Algum velho da minha geração,
uns poucos doidos mansos, e quem mais?

Onde o poeta assiste, não há cocks


autógrafos, badalos, gravações.
está cerrado em si mesmo (tel qu’en lui-même
enfin l’ éternité le change...)
e descobri-lo é quase um nascimento
do verbo:
cada palavra antiga surge nova
intemporal, sem desgaste vanguardista, lua
nova, na página lunar
(Luar para Alphonsus, Lucas Guimaraens)

Referências

ALI, Manuel Said. Versificação Portuguesa, São Paulo; Edusp, 2006.


CASTRIOTA, Leonardo Barci. Patrimônio Cultural: conceitos, políticas, instrumentos. São Paulo; Annablume,
2009.
CUNHA, Manuela Carneiro da Cunha. Cultura com aspas. São Paulo; Cosac Naify, 2009.
DÉOTTE, Jean. L’ époque des appareils. Paris, Ed. Léo Scheer, 2004.
FOUCAULT, Michel. Dits et Ecrits. Paris; Gallimard. Vols. 1 e 2, 2001.
L’ordre du discours. Leçon inaugurale au Collège de France prononcée le 2 décembre 1970, Paris; Gallimard,
1971.
GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia Completa. Rio de Janeiro. Nova Aguilar, 2001.
POUND, Ezra. ABC of Reading. England, Faber & Faber Ltd, 1951.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. Lisboa;
Cortez, 2007.

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De que corpo se trata no niilismo europeu e no niilismo brasileiro?

Charles Feitosa
Professor do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas PPGAC-UNIRIO

Filosofia pop

C omo uma forma de resistência tanto ao eruditismo como à excessiva sim-


plificação em filosofia, estou envolvido, desde 2004, com o projeto de uma “filosofia
pop”: pensar o mundo em uma linguagem bem-humorada e acessível, sem contudo
perder a densidade inerente aos conceitos.
Não inventei o termo “filosofia pop”; roubei o conceito de Deleuze, que muito
rapidamente menciona a expressão, sem maiores aprofundamentos, no contexto da ne-
cessidade de novas formas de ler e de escrever na filosofia. Minha apropriação do termo
se orienta por experimentar com aspectos que talvez o próprio Deleuze não tenha pre-
visto mas que teria, imagino, aprovado. A primeira ressalva é que o uso do termo “pop”
nada tem a ver com a acepção corrente, presente em títulos de programas televisivos
do tipo “Super-Pop” e que se aplica ao entretenimento de cárater raso, fácil e mera-
mente comercial. A ideia, ao contrário, é resgatar o projeto presente no movimento
da “art pop” dos anos 1950, em que o conceito de “pop” era visto como algo imagina-
tivo, rebelde, original, irreverente, crítico e alegre. Através de técnicas de duplicação,
reprodução, incorporação, reciclagem, superposição e colagem de elementos díspares
nas telas, os integrantes do movimento ajudaram a consolidar uma nova estética, uma
outra sensibilidade, enfim, uma linha de fuga de dentro do sistema.
O principal aspecto da “filosofia pop” é a atitude consciente de descompromis-
so com a distinção entre “alto” e “baixo” em termos de cultura. Assim como nas telas de
Andy Warhol compareciam simultaneamente referências do mundo erudito, como da
cultura de massa, a filosofia pop também defende a interseção constante dos conceitos
fundamentais da filosofia com os aspectos considerados normalmente os mais banais
da existência. A filosofia pop busca resgatar a riqueza e a inteligência da vida cotidiana,
desprezada tradicionalmente como o famoso obscurantismo do “senso comum”.
Uma das consequências desse descompromisso com a dicotomia “alta” x
“baixa cultura” é a expansão tanto dos autores quanto das questões supostamente clás-
sicas e incontornáveis. A ideia é que a filosofia não precisa se restringir a pensar apenas a
questão da liberdade ou da verdade em Descartes ou Kant, mas pode e deve também se
debruçar sobre as questões de poder no uso do controle remoto nas diferentes constela-
ções familiares ou ainda sobre os desdobramentos éticos-políticos das ideias presentes
em uma história em quadrinhos, um videogame ou uma letra de funk. 89
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
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Vale ressaltar que de nada adianta integrar os temas das artes e da vida cotidiana na filosofia se ela
continuar a manter uma certa atitude prévia de superioridade. Há alguns anos tive uma experiência ainda
mais inquietante em um evento sobre Filosofia e Literatura. Uma professora de literatura apresentou uma
inédita leitura e interpretação de letras de funk carioca. Naquela época, a cidade ainda discutia a legitimidade
do funk, ameaçada de censura em nome de uma injusta associação que a classe média e a mídia faziam entre
essa manifestação artística, política e cultural e o tráfico de drogas. Nesse sentido era uma ação altamente
afirmativa trazer para a universidade um debate em torno do que estava sendo produzido na periferia e não
apenas nos famosos “centros de excelência”. Entretanto, ao fim da comunicação, ao ser perguntada se gostava
de ouvir funk, a professora respondeu que detestava, que aquilo não era música, muito menos poesia. Ela
só estava abordando o tema porque estava na moda!! Parece que o funk só poderia ser incluído na pauta na
condição de “literatura inferior”. Na minha opinião, esse tipo de integração à força das artes de rua pela aca-
demia só reforça a dicotomia entre alto e baixo na cultura. A filosofia pop não é diferente apenas pelos seus
temas, mas também pela sua abordagem. O modo como se pensa é tão importante como “o quê” é pensado.
Um outro aspecto importante de uma filosofia pop é a proposição de uma outra relação entre con-
ceitos e imagens ou, de forma mais abrangente, entre filosofia e arte. Tradicionalmente a filosofia tem duas
atitudes em relação à arte: ou levanta suspeitas sobre sua capacidade de contribuir para uma ampliação da
compreensão humana do mundo, ou então instrumentaliza as imagens e as obras de arte como se fossem
meras ilustrações e atestações de argumentos conceituais, empobrecendo assim a riqueza de possibilidades
que elas poderiam ainda nos oferecer. A filosofia pop entende que as imagens não são inferiores aos concei-
tos quando a tarefa é pensar o mundo, ao contrário, as imagens exigem outros tipos de pensamento e abrem
perspectivas inacessíveis ao raciocínio lógico convencional. Por isso mesmo, meu livro se chama Explicando
a Filosofia com Arte e não através da Arte. A filosofia pop busca parcerias com as artes, deixando-se levar
por elas, permitindo-se processos de hibridização, mesmo correndo o risco de se tornar outra coisa, uma
mutação, quase uma monstruosidade.
Cada uma das características mencionadas da filosofia pop até aqui mereceria uma abordagem mais
profunda e detalhada. Para mim, o aspecto mais fundamental de mudança de paradigmas: a tradição da
filosofia é historicicista, disciplinar e eurocêntrica, a filosofia pop é temática e geograficizada. Por temática
entenda-se que ela privilegia as questões e os conceitos sem desprezar sua evolução e transformações, mas
colocando-os em segundo plano. Bem ao contrário da concepção pedagógica bastante em voga no Brasil,
que compreende filosofia em primeira instância como a aprendizagem de sua história, em detrimento dos
problemas e dos temas. Além disso, a filosofia pop é uma “geofilosofia”, quer dizer, busca sempre conectar o
local com o universal, no nosso caso, na tarefa de abordar filosoficamente as ambiguidades e paradoxos da
nossa própria cultura. É nesse contexto de uma geofilosofia pop que se instauram as seguintes reflexões sobre
a questão do corpo, tanto no niilismo europeu, como no brasileiro.

O niilismo europeu segundo Nietzsche

O que é estar aí “no-nada” europeiamente? A expressão niilismo europeu vem de Nietzsche, mais
especificamente das anotações de 1886-1887, reunidas na compilação intitulada Vontade de Poder . A primeira
observação importante a se fazer sobre o título vem de Heidegger, no seu comentário sobre a Vontade de Poder
como Arte (1936), segundo o qual o nome “europeu” refere-se a todo o mundo “ocidental”, e não apenas ao
assim chamado “velho mundo”. Se Heidegger tiver razão, então já tenho aí uma importante objeção à minha
hipótese. Caso “europeu” seja sinônimo de “ocidental”, então o niilismo do qual fala Nietzsche também nos
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abarca. Ou não? Será um absurdo sugerir que a cultura brasileira extrapola de muitas maneiras a categoria do
“ocidental”? Parto então dessa desconfiança, a de que o Brasil não ocupa um lugar homogêneo no ocidente,
mas que é uma cultura na fronteira, de fronteira, que talvez esteja por toda a parte, ou em lugar nenhum, como
o sertão de Guimarães Rosa. Isso me faz insistir na questão: existem formas brasileiras de niilismo?
No prefácio de Vontade de Poder, Nietzsche diz que o que vai ser contada é a história dos próximos
dois séculos. As imagens giram em torno de um futuro inexorável, Nietzsche fala de necessidade, destino,
catástrofe, corrente, como se o niilismo fosse uma onda tão gigantesca quanto inevitável. Em uma já famosa
formulação, ele menciona o niilismo como o unheimlichste aller Gäste, ou seja, o mais estranho de todos os
hóspedes. O niilismo tem o sentido de alguém que não pertence à casa e que talvez seja até considerado uma
visita indesejada, mas que já consentida. É um invasor, que não apenas é estranho como também nos faz
ficar estranhos de nós mesmos.
Para falar do niilismo Nietzsche diz que tem a perspectiva privilegiada de filósofo e de Einsiedler
por instinto. Ensiedler é uma palavra dúbia que pode significar tanto “eremita”, alguém que se retirou do seu
lugar habitual, como também “imigrante”, alguém que veio de outro lugar. Em ambos os casos está enfa-
tizada a ambiguidade de estar simultaneamente dentro e fora. Segundo Nietzsche, o filósofo tem a vantagem
de ser alguém acostumado à experimentação, alguém que já se perdeu nos labirintos do futuro e que vê o
que vai acontecer como alguém que olha para trás; já o eremita-imigrante tem a vantagem de ver a partir
de uma perspectiva exterior, como alguém que passou através e para além do niilismo. Por isso Nietzsche se
autodenomina “o primeiro niilista completo (perfeito) da Europa” (ibid.).
E o que esse pensador imigrante diz sobre o niilismo? O niilismo é definido de muitas maneiras,
mas sua principal característica é a recusa radical de valores e de verdades. A existência é vista como uma
pena, os valores superiores se deterioram, falta um sentido para as coisas, faltam respostas para as perguntas:
“alles hat keinen Sinn!” [nada tem significado ou só o nada tem significado!]. As categorias de meta (Zweck),
unidade (Einheit), todo (Ganze) e ser (Sein), nas quais colocávamos um valor, nos são tomadas, o mundo
parece esmaecido, sem densidade. A causa principal do niilismo pode ser atribuída a uma longa história frus-
trada de vontade de verdade, de fé na racionalidade, de expectativa não realizada de um mundo controlável
e previsível. Os principais sintomas são as sensações de desorientação, de insegurança, de angústia, de tédio.
Os efeitos colaterais são o desprezo e o ressentimento por tudo que estiver associado ao mutável e ao sensível,
tal como o corpo, suas paixões e afetos.
Existe uma certa ambiguidade no texto de Nietzsche, pois embora o niilismo seja inevitável, ele
pode e dever ser combatido. Trata-se da tarefa do pensador eremita diagnosticar a crise e preparar as mu-
danças que permitam sua superação. O niilismo pode ser considerado uma consequência lógica de mais de
2000 anos de dominação moral cristã. O Brasil, evidentemente, também faz parte dessa história, mas de que
maneira? Não seria, por exemplo, a tendência predominante da cultura nacional de supervalorizar o corpo,
a aparência e os prazeres imediatos em detrimento dos valores éticos ou das atividades intelectuais um sinal
de que o niilismo ganha uma outra roupagem nos trópicos?

Formas do niilismo

Não existe apenas uma forma de niilismo, o próprio Nietzsche fala de niilismo radical, completo
e artístico (no caso de Wagner). A principal nuança se refere ao niilismo ativo (“enquanto sinal de um
poder elevado”) e ao niilismo passivo (“recuo e decadência das forças”). O niilismo ativo talvez pudesse ser
representado na figura de um skinhead destruindo os telefones públicos de seu bairro, enquanto o niilismo
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
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passivo talvez pudesse ser representado pela atitude de indiferença dos vizinhos, observando a cena como
se não fosse com eles. Nietzsche refere-se a si mesmo como o “niilista completo”, alguém capaz de levar às
últimas consequências a crescente desvalorização dos valores absolutos de “bem”, de “verdade” e de “beleza”,
e preparando o terreno para a criação de novos e diferentes valores. O niilismo completo se realiza através
de uma filosofia a marteladas, dirigida contra os ídolos da cultura, mas também pela filosofia com diapasão
(Stimmgabel), capaz de captar sutilezas nos discursos inaudíveis ao ouvido humano desavisado.
Existe, ainda, uma forma de “niilismo incompleto” que Nietzsche também chama de reativo: “O
niilismo incompleto e suas formas: vivemos no meio dele. A tentativa de escapar do niilismo, sem efetuar
uma transvaloração de todos os valores: produzem o contrário, tornam o problema ainda mais difícil” (Von-
tade de Poder, §28). Isso quer dizer que tanto a desvalorização generalizada do corpo e dos valores terrenos
quanto sua forma contrária, a supervalorização reativa do prazer imediato sobre qualquer forma de esforço,
são ambas indicadoras do niilismo europeu.

Que corpo é desprezado no niilismo europeu?

Antes de examinar os principais aspectos do “niilismo incompleto” na cultura brasileira contem-


porânea, será necessário relembrar alguns momentos significativos de suspeita contra o corpo na tradição
idealista europeia. O episódio mais conhecido encontra-se no Fédon, também conhecido como Sobre a
Alma, um dos quatro diálogos de Platão dedicados a descrever os momentos finais de Sócrates. A cena é
simples: Sócrates vai morrer em breve, condenado a beber cicuta pelas acusações de descrença nos deuses e
corrupção da juventude. Platão não esteve presente na situação, mas descreve Sócrates nem desesperado nem
triste com a morte iminente, mas tomado de profunda indiferença, encontrando tempo para argumentar e
discutir nuanças de suas doutrinas. Esse gesto de desprezo pela morte baseia-se na crença de que o corpo é
uma prisão para a alma imortal que o anima. Morrer é o fim das imperfeições do corpo, mas é o começo da
libertação da alma de sua prisão na dimensão do sensível. Toda a vida de um filósofo é a contínua preparação
para esse momento:
— Sócrates: Crês que seja próprio de um filósofo dedicar-se avidamente aos pretensos prazeres tais como o
de comer e de beber? — Símias: Tão pouco quanto possível, Sócrates — Sócrates: E aos prazeres do amor?
— Símias: Também não! — E quanto aos demais cuidados do corpo, pensas que possam ter valor para tal
homem? [...]Símias: Acho que não lhes dará importância, se verdadeiramente for filósofo. [...]— Sócrates:
E agora, dize-me: quando se trata de adquirir verdadeiramente a sabedoria, é ou não o corpo um entrave se
na investigação lhe pedimos auxílio? (FÉDON, 64d/e).

A morte é o ritual de purificação da alma contra a infecção advinda do corpo. É por isso que,
enquanto sua mulher, Xantipa, se debatia e gritava de revolta (um comportamento “típico das mulheres”,
segundo Platão, cf. Fédon, 60a), Sócrates celebrava seu destino como se fosse uma nova aventura, e não uma
despedida da existência.
Outro momento emblemático encontra-se na noção extremamente problemática, mas ainda per-
sistente na contemporaneidade, da separabilidade de corpo (a coisa que sente) e mente (a coisa que pensa) a
partir de Descartes. Baseado nessa doutrina dualista, Descartes é capaz de duvidar não apenas da capacidade
dos sentidos de obter conhecimento, mas da própria realidade corporal, enfim, da própria carne. Na famosa
passagem da IIa. Meditação de Descartes a propósito do pedaço de cera, realiza-se um gesto semelhante ao de
Platão na busca de purificação contra o corpo. Ao aproximar a cera do fogo, Descartes constata a perda de
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suas características sensíveis: “isso que resta de seu sabor se vai, o odor se esvanece, sua cor muda, sua figura
se perde, ela cresce, se torna líquida e quente, só com dificuldade pode-se tocá-la, e se alguém bate nela,
não produz nenhum som” (II, p. 89 ). Descartes interpreta tal experimento como o processo de purificação
do objeto de seus aspectos singulares e acidentais. O que permanece da cera após a “prova de fogo” é que
constitui a sua verdade, algo que só pode ser apreendido corretamente através de uma inspeção do espírito.
O sensível é instável, transitório, finito e é tarefa do entendimento corrigi-lo e aperfeiçoá-lo. Problemático
na experiência cartesiana é justamente o fato de que a cera, enquanto um mero agregado ou composto de
propriedades sensíveis isoladas e indepedentes entre si, seja apenas a cera do clínico, do físico, do cientista, e
não da percepção. Em outras palavras, após o processo de purificação não sobra nada da cera, a não ser um
esquema lógico construído pelo entendimento. Se os sentidos podem ser desligados, ainda que provisoria-
mente, então isso já é uma indicação do lugar que eles têm na determinação da essência humana: o sujeito
cartesiano é um Eu, que mesmo sem mãos, olhos, carne, sangue e sentidos, pode existir.
O terceiro momento paradigmático na história de interpretações niilistas do corpo é apontada por
Nietzsche na sua Genealogia da Moral (1877), como sendo isso que ele denomina o “caminho rumo ao anjo”
[Auf dem Wege zum “Engel”]. O olhar asséptico para a vida, marcado por cansaço e pessimismo, enauseado
com a própria existência, enfim, o olhar niilista materializa-se no catálogo de repulsas ao corpo, atribuído
ao Papa Inocencio III (1161-1211): “procriação impura, nutrição repugnante no corpo da mãe, inferioridade
da matéria a partir do qual o homem se desenvolve, fedores abomináveis, secreção de saliva, urina e excre-
mentos” (Genealogia da Moral, II.7).
Aqui vale uma observação, parece que a função corporal de produzir excrementos seria uma das
maiores objeções à natureza divina do homem. Já Hegel apontava diversas vezes em sua obra para o desa-
fio de explicar, em termos conceituais, como era possível que pelo mesmos canais passassem as produções
mais elevadas (o esperma) e as mais inferiores (a urina) do corpo humano. O filósofo italiano Giorgio
Agamben, em um ensaio de 2009 dedicado ao “Corpo Glorioso”, retoma essa questão a partir de aspectos
polêmicos na teologia cristã. O problema do “corpo glorioso” é o de determinar a exata natureza do corpo
dos ressurretos no paraíso. Trata-se de um problema escatológico, nos dois sentidos da palavra, algo que
diz respeito aos tempos extremos da humanidade, mas também à condição humana nos seus extremos, a
saber, em relação a seus excrementos.
A questão é: Como será o corpo ressurreto? Em que medida o corpo glorioso compartilha carac-
terísticas com o corpo terreno? Agamben lista várias polêmicas teológicas a esse respeito, por exemplo, qual
idade terão os corpos daqueles que ressurgirem? A idade em que tinham quando morreram ou uma idade
perfeita, nem muito jovens nem muito velhos? Outras questões a respeito do “corpo glorioso” tratam do
gênero (afinal, os corpos dos ressurretos vão manter as diferenças sexuais ou serão todos perfeitos, quer dizer,
masculinos? !); e à integridade (pessoas que tiveram partes do corpo amputadas em vida, recuperarão seus
membros?). Finalmente a questão se coloca sobre os genitais e os órgãos de excreção. Quanto ao sexo, os
órgãos reprodutores estarão lá, apenas não serão operantes. Estarão lá apenas para expor sua potencialidade,
serão órgão “sagrados”, quer dizer, separados do uso cotidiano: “nada mais enigmático do que um pênis
glorioso, nada mais espectral do que uma vagina puramente doxológica” afirma Agamben, não sem uma
certa ironia (in op. cit, p. 99). Finalmente, se os órgãos reprodutores estarão lá, mas inoperantes, também
não haverá secreção de esperma, suor, saliva, leite materno, urina ou fezes. O corpo glorioso é um corpo
meramente ostensivo, que não poderá ser usado. Aqui surge a questão: haverá alguma semelhança entre o
corpo glorioso ressurreto e o corpo glorificado na cultura brasileira contemporânea?

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Qual corpo é cultuado na cultura brasileira contemporânea?

A imagem do “corpo glorioso” da tradição cristã se assemelha à imagem do corpo cultuado na cul-
tura contemporânea brasileira, na medida em que ambas são produzidas através de um processo de idealiza-
ção. Idealização aqui não quer dizer apenas a construção de um modelo perfeito, mas também a seleção e a
supervalorização de alguns aspectos em detrimento violento de outros.
Um diagnóstico rápido, sem pretensão de esgotar a questão, aponta para pelos menos três aspectos
principais que caracterizam o tipo de corpo a ser buscado na contemporaneidade. Em primeiro lugar, trata-se
de um corpo superestetizado (A) pela propaganda e pela cultura de massa. A publicidade coloniza tanto nosso
imaginário que quase ficamos surpresos de encontrar tantos corpos imperfeitos na rua. A nova forma de sus-
peita contra a materialidade do corpo se traduz em “lipofobia”. O ideal de 0% de gordura traduz a imagem de
um novo corpo, um corpo sem carne, quase etéreo ou desvanecente. Além da ditadura da magreza nota-se uma
celebração da beleza para esconder o desgosto com as dimensões tidas como cruas e imediatas do corpo (vide,
por exemplo, o horror aos pelos corporais, revelando-se na obrigação quase moral de depilação).
Em segundo lugar, trata-se de um corpo supertonificado (B), cuja força é moldada pelo padrão dos
esportes, incluindo sua expressão mais radical, o fisiculturismo. É interessante observar que os corpos forta-
lecidos pelo esporte não necessariamente inspiram desejos eróticos, mas parecem comportar também uma
vontade de se libertar de um corpo pesado e portanto mau, doente, imperfeito.
Paradoxalmente, quanto mais artificialmente fortalecidos são os corpos pelo esporte, mais parecem
desarmônicos, vide, por exemplo, a dificuldade com que a maioria dos fisiculturistas têm de realizar um
gesto simples como o de caminhar.
Por fim, trata-se de um corpo supermedicalizado (C), submetido a um ideal de saúde associado
à hiperatividade, ou seja, a prolongar ao máximo, seja através de drogas ou aparelhos, a manutenção das
atividades corporais até o completo colapso do sistema. A supermedicalização dos corpos contemporâneos,
visando sua hiperexcitação, evoca de alguma maneira a recente fascinação pelos zumbis no cinema de
massa. Tratam-se aí também de corpos que continuam se movimentando, mas não vivem, não sentem, não
pensam mais. Enfim, o vasto projeto contemporâneo de melhoramento do corpo pressupõe a acusação de
que ele continua não sendo suficientemente belo, forte ou saudável.

Conclusão provisória

De uma certa maneira, a glorificação do corpo na cultura contemporânea (provavelmente não ape-
nas no Brasil) chega ao mesmo resultado da filosofia idealista ocidental que despreza o corpo, pois trata-se
aí de processo análogo de sacralização que desrealiza o corpo possível. Em ambos os casos, tudo se passa
como se o corpo fosse reduzido a uma aparência volátil; nas duas situações revela-se uma aversão subterrânea
contra a materialidade corporal, na sua transitoriedade e vulnerabilidade.
Para enfrentar os aspectos dessas novas formas de niilismo, talvez seja preciso repensar nossos va-
lores de beleza, força e saúde, em prol de outros e melhores tipos de atletismos. Talvez seja necessário reabili-
tar o corpo cotidiano nas suas fragilidades e ambiguidades para que se invente, a partir dele mesmo, e não
de um corpo aperfeiçoado ou idealizado, outras formas possíveis de “glória”. Uma tarefa para a dança e as
artes da performance em parceria com a filosofia pop.

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A exploração da arte africana primitiva sobre a economia neoliberal
transcultural

Eyene Mba
Universidade Omar Bongo (Libreville-Gabão)
Tradução: Daniel Mendes Fernandes

P odem as comunidades e os artistas africanos tirar partido do mercado da


arte? Este texto quer responder a essa questão, por um lado, revisitando a maneira pela
qual as produções dos antigos na África conseguiram se fazer distinguir como obras
de arte com valor estético intrínseco; e, por outro lado, examinando os modos de ex-
ploração aos quais está submetida a arte primitiva africana na economia transcultural
mundial.

I A arte negra e o diálogo transcultural

Antes de serem qualificadas como “obras de arte”, as máscaras e estátuas da


África negra foram primeiramente consideradas como objetos ritualísticos e sagrados.
Diferentemente das obras de arte dos artistas europeus, frequentemente expostas em mu-
seus e galerias de arte, as produções artísticas africanas eram inacessíveis ou proibidas ao
grande público. Devido ao fato de que essas produções eram escondidas, longe dos olhos
dos estrangeiros, das mulheres e dos profanos, e também porque a exposição dessa arte
somente ganhava lugar durante grandes cerimônias, tais como funerais e iniciações dos
jovens, os europeus dos séculos passados acreditaram que essas representações escultóricas
e pictóricas eram fetiches, ídolos ou amuletos, isto é, depositários do espírito dos ances-
trais. 1 O discurso colonialista, que enxergava os africanos como primitivos, sustentará
formalmente que a arte negra não existe. Nesse contexto, as produções africanas serão
apresentadas nos museus ao lado de ferramentas dos homens pré-históricos, interes-
sando ao público somente porque elas representam uma etapa da humanidade. E, no
entanto, no início do século XX essas produções, há muito consideradas como “arte
sem o sublime”, serão vistas como o que Kant chama de “produções do gênio”,2 isto é,
modelos, obras exemplares. Porque está claramente estabelecido que é graças à redesco-
berta das máscaras e estátuas africanas que as produções da África adquirem o status de
1
Cf. Carl Einstein. La sculpture nègre [A escultura negra]. Tradução de Liliane Meffre. Paris, L’Harmattan, Coll. “L’Art en
Bref”, 1998.
2
Emmanuel Kant, Critique de la faculté de juger [Crítica da faculdade do juízo], § 46, in Œuvres complètes, II, sous le
direction de Ferdinand Alquié, Paris, Editions Gallimard/ “Bibliothèque de la Pléiade”, 1985, p. 1089-1090.
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obras de arte, a tal ponto que pintores modernos como Henri Matisse, Maurice Vlaminck, Pablo Picasso,
Georges Braque buscarão nelas uma nova inspiração.
Assim, ao visitar o Museu do Homem [Musée de l’Homme] em Paris, em 1905, Pablo Picasso sai
transformado, encontrando na arte negra as bases de uma nova estética: o cubismo. A obra As donzelas de
Avignon [Les demoiselles d’Avignon] é a ilustração perfeita da influência positiva da arte negra em produções
cubistas de Picasso: das cinco mulheres nuas representadas, três são pintadas com rostos que, na época,
causaram escândalo, pois se assemelham a máscaras africanas. A força criadora e a originalidade vistas por
Picasso na arte negra baseavam-se na riqueza, na variedade das figuras e dos motivos geométricos, bem
como na vitalidade que dela se irradia. Ao ponto de todos os seus amigos pintores, como Braque e Matisse,
acabarem por enxergar as produções africanas como obras de arte e comprá-las de etnólogos e viajantes que
as traziam da África. Alguns artistas as oferecerão a seus amigos; assim, o pintor Vlaminck presenteará De-
rain com uma estatueta. Os poetas Guillaume Apollinaire e André Breton também começarão a se envolver
e terão importantes coleções de objetos africanos que lançarão a moda da arte negra no mundo inteiro.
Hoje, a arte negra existe de fato. Certamente, a arrogância do discurso colonialista, que artistas euro-
peus como Paul Gauguin outrora desafiaram, mostrando que a civilização europeia não é superior à civilização
primitiva, continua a ser retransmitida pelos teóricos da arte contemporânea. Por exemplo, em seu livro, sob
o título sugestivo Arts premiers: l’ évolution d’un regard [Arte primitiva: a evolução de um olhar] (2005), Lionel
Richard desenterra velhos preconceitos mantidos sobre a arte dita “primitiva”, entre outras, a arte africana.
Parte ele da ideia e que o museu do Quai Branly nasceu da vontade de “impor” o discurso segundo o qual a
produção de “objetos fabricados longe do Ocidente e seus hábitos de pensamento, tinham seu lugar na história
universal da arte, tanto quanto as esculturas da Grécia clássica e os quadros da Renascença”. 3 Lionel Richard
acredita que as artes primitivas suscitam problemas tanto em relação à sua natureza quanto em relação à
sua origem. Percebe ele que essas produções não são iguais às belas artes dos artistas ocidentais, cuja cultura
e cujas percepções artísticas estariam nos antípodas das produções dos povos das artes tradicionais. Dessa
forma, Lionel Richard insere a arte numa abordagem unidimensional e imóvel, na medida em que entende
que a arte se expressa numa linguagem “uniforme, para o mundo inteiro e por toda a eternidade”. 4
O mal-entendido de Lionel Richard é comum a todos os especialistas que tendem a ler a arte pelo
prisma de uma linguagem universal. Tudo se passa como se eles fingissem omitir as particularidades cul-
turais e as diferenças de estilo de representação pictórica e escultórica que distinguem um povo de outro.
Quando Hegel argumenta que a arte é a manifestação sensível do espírito de um povo, quer ele imprimir
uma ênfase filosófica sobre o particularismo cultural que caracteriza a obra de arte. Trata-se de estabelecer
que na arte— mas não exclusivamente — cada povo deposita suas mais altas concepções do espírito de
sua comunidade ou do universal, tal como concebido numa determinada sociedade. Consequentemente,
mesmo que se admita que, além das diferenças de estilo, a arte é acima de tudo universal, no sentido de que
ela designa uma forma de reflexividade inerente a toda consciência humana, não se pode excluir o princípio
de contextualização da universalidade em curso na arte. Porque, se a arte é universal, se é uma atividade
reflexiva da consciência de si como conceito do espírito, entende-se que a reflexão tendo por fundamento
atávico a época do artista, a obra de arte só pode exprimir a maneira pela qual o homem representa o que ele
é pela translação direta no estado da história global de sua comunidade histórica efetiva.
No meu entender, os teóricos que negam à arte negra a força criadora que a faz ser obra de arte
repetem o mesmo erro de Platão: querer ler a arte de um único ponto de vista. Para Platão, o único ponto
3
Lionel Richard, “Ces arts dits ‘premiers’”[Essas artes ditas “primitivas”], Arts Sacrés, N°3, janvier-février, 2010, 44.
4
Ibid., p. 46.

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de vista era a ontologia; para os comentaristas da arte negra, é a cultura ocidental. Platão pensava realmente
que o pintor é incapaz de virtude intelectual que reside na parte mais alta da alma humana, que ele é um
ignorante que dá a luz a “fantasmagorias e não a seres humanos reais”. Segundo ele, a criatividade artística
está longe de exprimir a vida real, a vida autêntica, a da Ideia e do conjunto de arquétipos do mundo sen-
sível. A criação do artista lhe surgia como um simulacro porque o artista conheceria “somente o que envolve
a aparência”: 5 “a arte da imitação está, portanto, bem longe da verdade e é, aparentemente, por essa razão
que pode esta dar forma a qualquer coisa: para cada uma, na verdade, atinge apenas uma pequena parte e
essa parte é, ela própria, somente um simulacro”. 6 Concebendo assim a criação artística, Platão não indaga
concretamente sobre a própria essência da arte. Pelo contrário, sua acusação contra os artistas se cristaliza em
torno da definição de um objeto que não é o objetivo epistemológico da arte, na medida em que é a busca da
verdade. Em outras palavras, ao submeter a arte à prova dessa verdade de que o filósofo, por si só, pode dar
conta, Platão criticou a arte a partir do que não é seu objetivo último. Desse modo, ele parece não entender
que não se pode exigir que a obra de arte produza a verdade segundo os mesmos procedimentos e a mesma
forma que o discurso filosófico. É esse mesmo erro que reproduzem todos os teóricos que comentam sobre
a arte negra, em particular, e as artes primitivas, em geral, de acordo com os cânones dos artistas europeus.
O argumento frequentemente evocado segundo o qual as máscaras e as estatuetas africanas não têm
qualquer valor estético em si e por si mesmas7 não convence ninguém hoje. Na realidade o entusiasmo pela
arte negra nos “felizes anos 20” na França, por exemplo, decorreu em grande parte, do seu valor estético. Na
década de 1920, a maioria dos franceses, sobretudo os parisienses, que sobreviveram aos horrores da Grande
Guerra de 1914-1918, tinham vontade de se evadir. Eles saíam para festejar e dançar nos Bailes Negros nais
quais se tocava jazz. E, através dessa música, herança dos antigos escravos africanos que têm raízes nos Estados
Unidos, se apaixonaram pela arte negra. Era o tempo dos jazzmen como Louis Armstrong, da cantora negra de
music-hall Joséphine Baker, e dos vestidos do grande costureiro Paul Poiret que se inspirava na arte africana.

II Do reconhecimento à exploração liberal das obras de arte africanas

O entusiasmo pela arte negra, na década de 1920, traduziu o reconhecimento pelos ocidentais da
originalidade das obras de arte africanas. O que os artistas e os contempladores das obras de arte descobri-
ram na arte negra foi uma filosofia de vida e um tom mais místico e expressivo. As máscaras e estatuetas
da África provam que as obras de arte valem pela profundidade de sua expressão e sua linguagem estética.
Como ninguém fica indiferente com a exposição desses objetos, eles têm tanta presença quanto um ser hu-
mano. Aliás, as satisfações estéticas geradas por esses objetos foram e são tão notáveis que os grandes colecio-
nadores de obras de arte terminaram por armazená-las. Assim, o suíço Josef Mueller começa, por exemplo,
a constituir, durante suas viagens para a África negra, uma fabulosa coleção de arte africana cujos objetos
serão posteriormente reunidos no futuro Museu Barbier-Mueller, em Genebra. A atração exercida pela arte
negra foi tão forte que alguns artistas europeus, como Maurice Vlaminck, chegam a denunciar a pilhagem
das produções artísticas africanas.
As consequências dessa pilhagem são visíveis na África: as sociedades africanas hoje estão privadas

5
Platão, A República, livro X, 601c.
6
Platão, A República, livro X, 598b.
7
André Malraux, Le musée imaginaire [O museu imaginário], Paris, Gallimard, 1965.

97
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

das obras de arte produzidas por seus ancestrais. As hecatombes orquestradas pelos missionários, destruindo
as estatuetas e máscaras para fins religiosos, deram lugar a outras hecatombes: a pilhagem das obras de arte
na África tradicional do final do século XIX, no término da colonização francesa. Despojadas, despossuídas
de seu patrimônio cultural, as sociedades africanas estão vazias.
Hoje, centenas de exposições de arte africana são organizadas a cada ano no mundo. Museus,
galerias de arte e colecionadores particulares – em Paris, Nova Iorque ou Tóquio – arrebatam as estátuas de
ancestral dogon, as maternidades baulê, as máscaras fang que nos grandes leilões internacionais alcançam
preços recordes de vários milhões de dólares. Assim, em maio de 2011, a Sotheby’s vendeu uma estatueta
feminina Iorubá por 1,65 milhões de dólares. Os objetos primitivos e misteriosos da África negra seduzem
os ricos. Da mesma forma, uma máscara fang da coleção de Pierre Berès foi vendida por 385 mil euros. A
questão é saber quem se beneficia com a troca desses objetos?
Os efeitos negativos do mercado transcultural neoliberal parecem, portanto, óbvios, assim como
os resultados negativos da globalização econômica. A consolidação da assimetria, da desigualdade e da de-
pendência entre artistas primitivos e artistas modernos, a miséria causada aos primeiros por não se benefi-
ciarem de seu direito de propriedade intelectual e por verem usurpados seus direitos de posse pelos colecio-
nadores e negociantes de artes primitivas, a exploração pelos negociantes que passam de país em país, de
aldeia em aldeia, para arrebatar das comunidades objetos cujo valor artístico é excepcional, aparecem como
catástrofes tão mortais quanto os terremotos e as calamidades naturais.
Essas obras não são datadas nem assinadas, enquanto sua venda pode beneficiar somente os coleciona-
dores e não as pessoas que as produziram. A dificuldade para os africanos de reivindicarem as divisas oriundas
do comércio dessas obras é evidente. No direito francês, a característica fundamental das obras de arte, como
estatuetas e esculturas, é que elas devem existir como propriedade intelectual do artista, isto é, executadas por
suas próprias mãos. No entanto, no caso da arte primitiva africana, estamos lidando com obras anônimas ou
comunitárias. Certamente, pode-se alegar que, como patrimônio cultural dos povos africanos, essas obras
de arte pertencem às comunidades nas quais tinham funções religiosas e que, em virtude desse princípio, as
comunidades teriam o direito de reivindicar sua reapropriação. Essa é a tarefa que foi assumida pela Fundação
Zinsou em Cotonou (Benin): recuperar a memória do país berço do vodu, num contexto em que um leão Fon,
vendido por 1 milhão de euros em dezembro de 2011 na Christie’s, pertenceria a Behanzin, o rei do antigo
reino de Dahomey, atual Benim. Mas essa abordagem é confrontada com a fraqueza institucional, na medida
em que as comunidades e os estados africanos ainda não tomaram consciência da importância da luta pela
reapropriação de bens culturais coletados pelos ocidentais.
A África se vê, portanto, privada de oportunidades oferecidas pelo mercado das obras de arte que
eram de sua propriedade. A impossibilidade atual de não transferir o valor de mercado das produções artísti-
cas tradicionais a seus produtores, no plano estritamente jurídico, impede que as comunidades tirem proveito
das vantagens de um comércio que constitui ainda uma alternativa ao desenvolvimento endógeno. Assim,
perpetuam-se as velhas receitas da exploração liberal. À pilhagem das riqueza econômicas, outrora denunciada
pelos pensadores neomarxistas, 8 a partir do conceito de comércio desigual, associou-se a pilhagem dos bens
culturais. Como consequência, surge um relatório de exploração, tanto econômico quanto cultural, que im-
plica o reconhecimento da desigualdade entre os estados e as comunidades.
O mercado transcultural neoliberal conduz, dessa forma, à depreciação tanto cultural quanto
econômica das necessidades das comunidades africanas e de todas aquelas que viram seus bens culturais

8
Carlos Roméo, Sur les classes sociales en Amérique latine, Paris, François Maspero, 1968, p. 30.

98
pilhados por colecionadores e negociantes europeus. Ele reproduz a opressão cultural e econômica as-
sociando as artes ditas primitivas à satisfação dos desejos narcisistas dos negociantes europeus. A mer-
cantilização dos bens culturais bem como a especulação financeira, que dão origem ao objeto comercial,
impõem às comunidades formas de vida contestáveis.
Para pôr fim aos efeitos culturais e econômicos nefastos dessa mercantilização neoliberal dos produ-
tos culturais primitivos, a África se vê forçada a restabelecer suas instituições políticas, jurídicas, econômicas
e culturais. Ela deve, em particular, reinvestir no campo do diálogo intercultural. Esse reinvestimento de-
veria levá-la a tomar consciência da falência atual de suas instituições culturais reconhecendo, por exemplo,
que várias de suas comunidades não estão preparadas – ou que elas devem se preparar – para se encarregar
da responsabilidade de manter seguras e confiáveis as obras de arte antigas, atualmente na posse de colecio-
nadores e negociantes ocidentais. Mas o diálogo cultural considerado aqui pode existir concretamente como
regra de vida incondicional somente na medida em que venha a se aliar filosoficamente à diversidade cul-
tural. Concordamos com Jacques Poulain que a diversidade cultural, seja ela cultural, social ou educacional,
deve permitir a cada povo e a cada indivíduo o direito de dispor de si próprio e de julgar suas condições reais
de existência, ao reconhecer seu direito próprio de julgamento sobre sua “natureza humana” e ao permitir
que o juízo sobre outrem ou sobre si mesmo possa satisfazer suas próprias expectativas, independente do fato
de tal julgamento ser considerado positivo ou negativo.
Além disso, essa diversidade, ou melhor, essas diversidades culturais devem permitir que os indi-
víduos e os povos se autodeterminem em função da objetividade consensual, criando um mundo em que
as diferenças se constituam e estabeleçam uma relação, a fim de curar a privatização do juízo que se apro-
pria, como um saber quase divino, do que o outro deve ser e fazer. Consequentemente, essas diversidades
culturais devem se tornar um projeto, e um projeto decididamente cosmopolita, no qual o reconhecimento
público do direito que cada um tem de exercer um julgamento crítico em termos culturais, políticos e
econômicos deveria caminhar lado a lado com o reconhecimento da democracia como condição objetiva da
vida humana.

99
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
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O surrealismo enquanto poética no mundo moderno

Augusto de Guimaraens Cavalcanti


Poeta e doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-Rio

S
egundo Nicolas Bourriaud (2009), a arte moderna nasce no momento da
invenção da fotografia e do cinema. 1 A arte moderna lida com uma visão aberta do
presente. À procura do desconhecido, a dilatação do instante é transformada em uma
atualidade sempre em curso de transformação. Mais do que um estilo novo, a moderni-
dade é um novo espírito do tempo. 2 Neste contexto moderno, as “errâncias surrealistas”
são comentadas por Bourriaud como práticas críticas de deriva urbana que valorizam o
gesto, a dilapidação de energia e o conflito produtivo. Trata-se, no caso do surrealismo,
de uma escrita em que o autor coloca em jogo sua própria existência e concretiza uma
relação com o mundo em sua obra, propondo sua vida como modelo artístico pronto a
ser adaptado segundo as escritas do acaso. É porque a modernidade nasce de hiatos, de
fraturas do pensamento, que a montagem e a colagem serão procedimentos característi-
cos da arte do século XX, por lidarem com a realidade heterogênea que se apresenta. 3
Em 1919, Max Ernst concebe a colagemartifício diferente dos papéis colados
que até então haviam feito alguns artistas como Braque — em cima de uma concep-
ção de alquimia visual, isto é, da “exploração do encontro casual de realidades dis-
tantes sobre um plano não conveniente”. 4 Tal exaltação da imaginação (imagem em

1
Segundo Nicolas Bourriaud, um novo espaço mental se abre com o cinema. A primeira obra de arte que dialoga
com as consequências da invenção do cinema é a Roda de bicicleta de Marcel Duchamp, de 1913. O ready-made
representa a primeira obra cinematográfica em seu princípio em série. Sem imitar a forma fílmica, Duchamp utiliza
a possibilidade cinematográfica de significar através da própria realidade, não precisando do auxílio de um signo ou
do intermediário de uma representação. O ready-made marca a passagem do espaço simbólico para o tempo real do
objeto. A figura do cineasta passa a procurar no artista um modelo de prática do presente suficientemente aberta para
influenciar profundamente seus modos de produção. (BOURRIAUD, 2009, p. 34-35).
2
No mundo social do trabalho racional a arte será separada das outras atividades manuais. Como produto da civili-
zação industrial, certo tipo de arte moderna se recusa a considerar a separação entre o produto da obra e a existência
do artista. São estas formas artísticas refratárias à especialização e que criam pontos de passagem, perambulam pelos
tempos mortos do rendimento máximo das forças produtivas. (Cf. BOURRIAUD, 2009).
3
BOURRIAUD, 2009, p. 31.
4
Em seu laboratório de possibilidades, Max Ernst começa a desenvolver métodos que lhe permitem ir para além da
pintura em práticas fundadas sobre a irritabilidade das faculdades mentais em que a fricção, depois da colagem que
tinha já fortemente atraído a atenção dos poetas, desempenha um papel preponderante. No entanto, o termo colagem
é impróprio, já que a maior parte das colagens de Ernst foram feitas sem cola, mas oficializada pelo seu uso. (DUROZOI,
p.248).
100
ação) é gerada pela ferocidade de um tipo noturno de humor que materializasse o seu imaginário. Como
aponta Max Ernst: “Se é são as plumas que fazem a plumagem, não é a cola que faz a colagem”. 5Para Ernst,
a colagem seria um “instrumento hipersensível e rigorosamente exato, semelhante ao sismógrafo, capaz de
registrar a quantidade exata das possibilidades de felicidade humana em qualquer época”. 6 A sucessão de
imagens aspirada pelos surrealistas é tão intensa que os poetas a realizam com um fluxo verbal cuja associação
de objetos visa adquirir uma eletricidade própria. Para Max Ernst, na colagem, a intensificação súbita das
faculdades visionárias se desenvolveria numa “sucessão alucinante de imagens contraditórias, superpondo-se
umas às outras, com a persistência e a rapidez que são próprias das lembranças amorosas”. 7 O mecanismo de
funcionamento da colagem evoca o equivalente plástico da imagem poética; Max Ernst descreve:
Um dia no ano de 1919 fiquei impressionado com a obsessão que exerciam sobre o meu olhar as páginas
de um catálogo ilustrado em que figuravam objetos para a demonstração antropológica, microscópica, psi-
cológica, mineralógica e paleontológica. Eu encontrava ali reunidos elementos da figuração tão distantes que
a absurdidade mesma de sua reunião provocou em mim uma súbita intensificação das faculdades visionárias
e fez nascer uma sucessão alucinante de imagens contraditórias.8

Desta forma Pierre Reverdy delineia a imagem poética: “Ela não pode nascer de uma comparação,
mas da aproximação de duas realidades mais ou menos distanciadas. Quanto mais relações entre as duas
realidades aproximadas forem distantes e exatas, mais a imagem será forte – maior será a sua potência
emotiva e a sua realidade poética”. 9 Por sua vez, Louis Aragon escreve para o catálogo de La Peinture au
délfi (1930), um texto em que aponta a colagem como a única saída para o divertimento anódino da qual
teria se transformado a pintura em suas preocupações temáticas, materiais e decorativas.10 Enquanto a in-
tenção da colagem cubista é realista e referencial (o objeto de uso colado sobre a tela é o ponto de partida
da organização do quadro e da sua sintaxe), na colagem de Max Ernst, os diferentes elementos utilizados
são tomados para representar aquilo que já haviam representado, ou então para, mediante uma espécie de
metáfora absolutamente nova, representar algo absolutamente diferente. A colagem surrealista parte de uma
generalização dos procedimentos metafóricos até chegar em um plano em que a metáfora seja criadora de
sentido. Por isso, a função da colagem surrealista é semântica e o seu funcionamento metafórico. 11 Vejamos
como Jacqueline Chénieux-Gendron (1992) comenta a diferença entre a colagem do tipo cubista e a colagem
do tipo surrealista:
Quando Michel Leiris insere em Aurora a narrativa de sonhos realmente sonhados e anotados antes mesmo do
projeto de escrever o texto, e declara depois que tais colagens parecem caucionar de algum modo a narrativa
cuja perspectiva era autobiográfica (entendida esta palavra no sentido amplo), está praticando a colagem cubi-
sta. Quando Breton copia uma notícia de jornal, em que desloca apenas um nome de pessoa, substituindo-o
pelo de Guillaume Apollinaire (Une maison peu solide, 1919, em Mont de piété), está fabricando aquilo que Mar-

5
Alexandrien, p. 65-66.
6
Alexandrien, p. 97.
7
Cf. Ernst, Max . Au-delà de la peinture, Cahiers d’Art, n.6-7, 1936, retomado em Ecritures, p. 242.
8
Ernst, Max. Au-delà de al peinture, 1936. Ecritures. Gallimard, 1970.
9
Nord-Sud, março de 1919, Reverdy apud Chénieux-Gendron, p. 72.
10
Para que se compreenda a novidade da invenção de Max Ernst, Louis Aragon a distingue da colagem cubista de “papéis colados” em Braque e Pi-
casso. Segundo Aragon, a colagem substituiu uma arte aviltada por um modo de expressão de uma força e de um alcance desconhecidos. Restitui
um “verdadeiro sentido à velha atitude pictórica, impedindo o pintor de se entregar ao narcisismo, à arte pela arte, fazendo-o regressar às práticas
mágicas que são a origem e a justificação das representações plásticas, proibidas por várias religiões”. (Cf. Alexandrien, p. 95.)
11
Cf. Aragon. Max Ernst, peintre des illusions, Les collages. Hermann, 1965.
101
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

cel Duchamp teria chamado de ready-made perturbado, e a relação do texto copiado com a intrusão do nome
de Apollinaire cria um efeito de colagem metafórica. (...) Para Breton, Aragon, senão para Éluard, a metáfora
é criadora de sentido. Não se limita a revelar formas ainda desconhecidas por nós mas preexistentes – como
garantia a teoria das correspondências baudelairianas. Se cria um real que depende dela e se inscreve no curso
da história, é pelo efeito de sentido, pela intermediação da linguagem. (CHÉNIEUX-GENDRON, p. 81).

A poesia será valorizada pelos surrealistas como atividade fundamental devido à sua capacidade de
escapar dos limites impostos pela razão, visto ter o pensamento primitivo como fonte. Para explorar a capa-
cidade poética na existência cotidiana, os surrealistas rejeitam o fantástico pitoresco e buscam ultrapassar a
ficção para atingirem um estado de “alta ficção” (DUROZOI, p. 19), em que os contrários entrem em uma
relação mítica de embate de símbolos. Nesse sentido, a arte primitiva influencia os surrealistas por ser uma
diferente forma de arte que confere ao real um sentido irracional. Neste sentido, o pintor Paul Gauguin
é valorizado pelo seu desejo bárbaro de opor a vida selvagem à vida civilizada quando vai para o Taiti no
fim do século XIX. 12 No entanto, o que os surrealistas desejam mesmo é inventar sua própria mitologia no
cotidiano urbano, em vez de recorrer a temas inspirados em outras mitologias clássicas; querem procurar
por fontes inexploradas. 13 Para os surrealistas, viver segundo um mito é encarar a ação mais cotidiana
como permeável, no limite, ao conhecimento. O mito é um discurso – sequência de enunciações ou frases
portadoras de sentido – que se baseia em uma rede de imagens que joga com a polissemia da linguagem;
“exige uma leitura poética que, longe de escolher a imagem e separá-la da isotopia do discurso, concede
a todas as dimensões de significação igual pertinência”. 14 Por se situar no campo da experiência psíquica
da contradição, os mitos não se baseiam em temas unívocos, concebem que toda concepção de verdade é
também um efeito de significação.
O poeta surrealista busca construir comparações sugeridas por atrações fulgurantes de compara-
ções que não devem permanecer estagnadas, mas sempre em estado de rotação: “desviando cada objeto de
seu sentido a fim de despertá-lo para uma realidade nova”. 15 Do encontro de relações inesperadas entre as
palavras e as coisas é que surge a evocação do maravilhoso cotidiano. Nesse sentido, os surrealistas valori-
zam a imaginação e a infância como mananciais de uma “verdadeira vida” guiada pelo sentido do jogo e
pela poesia de associações imprevistas. Nessa via transgressora do previsto, o surrealismo combate conceitos
formais da antiguidade como harmonia e equilíbrio, criticando o fato de a estética rejeitar tudo o que não
lhe corresponde. Por isso, os surrealistas buscam grupos sociais que escampem às determinações (morais,
ideológicas, religiosas) do Ocidente, buscando nestes grupos certa virtude mágica da arte por oposição ao
seu valor decorativo ou puramente de fruição estética. 16 Também o conceito de belo é ampliado como con-
cepção selvagem ou algo que pode não estar submetido à visão “civilizada” de mundo. Como ressalta Sarane
Alexandrian (1976), para além da mera curiosidade, os surrealistas levam ao extremo o interesse pela criação
de povos longínquos, mas rejeitam a solução plástica realista das máscaras africanas; preferem se comunicar
como o espírito que dita estas formas. Assim, os surrealistas opõem a arte oceânica à arte africana justamente
12
Cf. Alexandrien, p. 22.
13
Do ponto de vista surrealista, uma arte primitiva como a oceânica não poderia ser vista à margem da produção oficial, muito menos como algo a
ser analisado a título de curiosidade ou de desvio da norma estética ocidental. No entanto, recopiar os seus processos formais não seria senão insti-
tuir um novo academicismo. O que interessa aos surrealistas é em abordar a fecundidade de um onirismo e de um pensamento mítico ocultados
pela história oficial. Tal arte oceânica contrastaria com a monotonia de uma pintura oficial domesticada.
14
CHÉNIEUX-GENDRON, p. 121.
15
CHÉNIEUX-GENDRON, p. 70-76.
16
Por exemplo, a revista surrealista VVV persistirá em mostrar a importância das bonecas Katchimas esculpidas pelos índios do Arizona à imagem
dos seus deuses e que constituem, segundo Breton, “a justificação mais brilhante da visão surrealista”. (DUROZOI, p.229).
102
pelo poder de interpretação poética do mundo em oposição a uma arte baseada em critérios realistas. 17 Da
profusão de uma variedade de estilos, os surrealistas valorizam na arte melanésia o fato de nela a representação
conceitual prevalecer sobre a representação perceptiva. 18
O surrealismo explora zonas da arte que haviam sido até então relegadas à etnografia, como a arte
bruta. O convite surrealista ao primitivismo traz uma solicitação ao despojamento de si e também uma lem-
brança das virtudes das civilizações não ocidentais que lhes interessam. Entre o abstracionismo e o realismo,
o surrealismo defende a existência de um figurativismo mágico cuja possibilidade foi mostrada pelas artes
ditas “selvagens”. Assim, os surrealistas buscam indefinidamente novas narrativas primitivas e míticas como
espécies de racionalidade superior que nunca se deixa cicatrizar pelos acervos do conhecimento. No entanto,
o surrealismo combate mitos do tipo religioso por considerá-los opressivos. Para criar novos mitos os artis-
tas surrealistas lutam contra os mitos mumificados pela religião ou adulterados para uso das massas. Para
Benjamin Péret, as religiões trabalham com o empobrecimento da poesia mítica e terminam por ossificar a
poesia em narrativas quase estanques. 19 Tal é o mito buscado pelo surrealismo: “não conteúdo de crenças,
imposto pelo exterior a uma consciência humana (leitura narrativa de uma proposição paradigmática), mas
desejo de estranhamento sensível, cujo conteúdo deve ser inventado” e constantemente reinventado por
cada poeta. 20 Diferentemente dos primeiros apreciadores dos fetiches bárbaros do princípio do século XX,
os surrealistas selecionam os seus objetos de predileção, agindo de uma forma parecida com etnógrafos. O
que, na mentalidade mítica, parece primordial aos surrealistas é que ela precede a separação dos poderes
do homem, esses poderes que o projeto surrealista tem precisamente como fim reunificar: anteriormente à
instauração de uma distinção entre poesia, filosofia e ciência, como afirma Benjamin Péret:
É preciso admitir que um denominador comum, que não pode deixar de ser a magia, une o feiticeiro, o
poeta e o louco. Ela é a carne e sangue da poesia. Melhor, na época em que a magia resumia toda a ciência
humana, a poesia ainda não se distinguia dela. [...] o homem dos tempos antigos apenas sabe pensar segundo
o modo poético e, apesar da sua ignorância, penetra talvez intuitivamente mais longe nele próprio e na
natureza, da qual mal está diferenciado, do que o pensador racionalista ao dissecá-la a partir de um conhe-
cimento completamente livresco. [...] não se trata aqui de fazer a apologia da poesia à custa do pensamento
racionalista, mas de protestar contra o desprezo da poesia por parte dos detentores da lógica e da razão. [...]
O homem primitivo ainda não se conhece, procura-se. O homem atual perdeu-se. O de amanhã deverá
reencontrar-se primeiramente, reconhecer-se, tomar contraditoriamente consciência de si mesmo. 21

17
Segundo André Breton a escultura oceânica, tanto pela escolha de seus temas como pela sua técnica, se opõe à estatuária africana por não cor-
responder a uma visão excessivamente realista das coisas. A estatuária africana havia sido reabilitada pelos cubistas de um ponto de vista técnico
que concernia a seus modos possíveis de figuração, e não coincidiam com o ambiente de revelação que caracteriza a abordagem surrealista da
arte primitiva. No começo a aventura surrealista é, para Breton, inseparável da fascinação exercida pelas obras oceânicas. Tais obras oceânicas são
consideradas como um maravilhoso ao alcance do homem, uma arte que, exprimindo mitologias sempre vivas, possui uma densidade poética
própria em que a preocupação do belo é secundária à sua intenção expressiva. (Durozoi, p. 231-236).
18
Desde 1948, os surrealistas marcam a oposição entre a África e a Oceania a partir do confronto entre a abstração e o espírito mágico, entre a
redução (metonímica) de qualidades exteriores e a síntese metafórica. O que os cubistas interrogam na arte africana são as questões técnicas, os
planos e os arranjos, as combinações de volumes, a estrutura de suas formas. Já os surrealistas interrogam a arte oceânica em sua função mesma.
Os surrealistas irão valorizar na própria Europa a arte celta e sua desproporção como um contrapeso à influência maciça da arte grega na arte
ocidental e sua visão antropomórfica de mundo que estagnaria o movimento e cristalizaria a emoção ocidental. (Cf. CHÉNIEUX-GENDRON, p.25 &
ALEXANDRIEN, p. 27).
19
Em contraposição, Georges Bataille, ao ser chamado para escrever para o Surréalisme em 1947, defende que a ausência do mito é o mito mod-
erno por excelência. Esta posição passa a ser incompatível com o grupo bretoniano.
20
CHÉNIEUX-GENDRON, p. 125-127.
21
Péret, Benjamin. La Parole est à Péret. In. Déshonneur des Poètes, J.J.Pauvert, col. Libertés, 1945, p. 51.
103
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

Para os surrealistas, a imagem poética é a vida de todo conhecimento22. Trata-se, para cada surre-
alista, de definir seu método de investigação nesta “floresta de indícios” que é a cidade. O inconsciente dos
poetas engendra-se diretamente no núcleo misterioso das cidades, e isto mais especialmente nos lugares em
que o maravilhoso cotidiano gosta de se revelar: as ruas, as praças públicas, os teatros e os cinemas popu-
lares, as feiras e os cafés. Os poetas são viajantes atentos a procurar por palavras condutoras e objetos que
possam ser deslocados de modo a fazer-lhes ocupar posições insólitas uns em relação aos outros. São estas
combinações bruscas e deslumbrantes que visam reinventar os meios de conhecimento que os primitivos
e as crianças utilizam naturalmente. Para os surrealistas o real ainda é desconhecido, seria ainda preciso
reintegrar o homem ao real através da imaginação poética; seu principio motor seria o desejo para o qual a
imaginação cria e gera o real. 23
As frequentes incursões dos surrealistas ao Marché aux Puces (Mercado das Pulgas) – principal-
mente no tempo de Nadja (1928) –tinham como fim a procura de objetos fora de moda, cuja necessidade
prática não fosse evidente e que pudessem ser descobertos dentro da categoria do insólito com a atração
do nunca antes visto de objetos encontrados; estes objetos encontrados se multiplicariam anonimamente.
Nesta busca pelo insólito no cotidiano, Breton costumava dar especial valor para as pedras, já que via no
reino mineral o “domínio dos índices e sinais”. Organizava grupos para procurar pedras nas margens do
rio Sena e considerava que, quando se interpreta uma pedra que se descobre, cultiva-se um sentido poético
que no homem precisa ser educado. As pedras seriam ready-mades cuja função alquímica seria a de “tornar
espiritual tudo o que há de mais material”. Segundo Sarane Alexandrian, Breton afirmava que “uma pedra
insólita encontrada ao acaso possuía mais valor do que a que foi procurada e desejada com todas as forças:
As pedras – as pedras duras por excelência – continuam a falar àqueles que querem ouvi-las. Dirigem, a cada
um, uma linguagem à sua medida”. 24 Quando interroga os objetos e escuta a língua das pedras, Breton age:
ele ouve-se, ao ouvir o mundo. Seu poder de fabulação recria o mundo à imagem de seu delírio.
O poeta surrealista busca uma matéria bruta do pensamento, livre das determinações acumuladas
por sua biografia. Como propõe Paul Éluard, “é a poesia que deve fazer o poeta, não o inverso”. Também
Rimbaud afirma: “É falso dizer: Penso. Dever-se-ia dizer: Pensam-me”. 25 O poeta Éluard o explica em uma
breve fórmula: “o poeta é muito mais aquele que inspira do que aquele que é inspirado”; “ver, é receber, refle-
tir, é dar a ver”. 26 Longe de pretender ser o primeiro movimento a enveredar pelos caminhos que trilhavam,
os surrealistas pensavam “levar ao paroxismo um estado de espírito que outrora animara alguns criadores
isolados, mas que estes não tinham ainda desenvolvido até uma total emancipação da arte”. 27 Diferente-
mente dos futuristas, os surrealistas não queriam destruir as bibliotecas e os museus, mas construir outro
tipo de tradição a ser valorizada ao invés das glórias, dos lauréis e dos corolários já consagrados. Guillaume

22
Para além das figuras dos discursos, o conceito de imagem, para os surrealistas, abrange as imagens mentais e textuais em uma relação que não
é direta, mas que se fundamenta na riqueza das imagens geradas a partir desta relação. A consciência imaginante é valorizada como produtora de
devaneios em uma relação na qual consciência perceptiva e consciência imagética se interconectem em uma espécie de explosão de analogias
imprevistas a justapor duas ou mais realidades distantes. Pela imagem poética se pode vislumbrar uma interdependência geral dos objetos do
mundo, sendo tudo comparável a tudo. A imagem do poema faz desvanecer qualquer preocupação com um sentido prático direto; ela cria seu
próprio sentido e redefine a noção de insólito. Para os surrealistas, a invenção da metáfora depende da simultaneidade da aproximação aleatória
de significantes a gerar efeitos de sentido pela efusão de novos significados que surjam de significantes que tenham a liberdade de se entrecru-
zarem numa espécie de alquimia das letras a valorizar o poder relacional da linguagem.
23
DUROZOI, p. 50-164.
24
ALEXANDRIEN, p.147-149.
25
DUROZOI, p. 116-182.
26
DUROZOI, p. 295.
27
ALEXANDRIEN, p. 11.
104
Apollinaire revelou aos surrealistas que o poeta deve buscar uma cumplicidade com o pintor, e que este
deveria ser um aliado na busca do desconhecido. Não à toa que tantos pintores participam do grupo sur-
realista: no surrealismo, pintores são vistos como poetas e vice-versa, pois o processo pictural e o poético
são potencialmente idênticos para a arte mental surrealista. Para os surrealistas, tanto a pintura quanto a
poesia – para serem realmente significativas – devem alargar o campo de conhecimento humano. Segundo
Breton: “O surrealismo assinala à imaginação pictural um fim que é o da poesia: que se levante a cortina
sobre o espaço em que o homem, liberto das opressões da realidade exterior, triunfa dos seus fantasmas e
muda a vida”. 28
O termo “surrealismo” utilizado por Guillaume Apollinaire como “fantasia lírica” na peça Les
Mamelles de Tirésias (1917) adquire um significado muito mais experimental com o grupo de André Breton.
Antes de ser uma concepção de beleza que se propagou em todas as artes plásticas, o surrealismo foi uma
revolta contra a estética, revolta esta que substitui a estética pelo gosto do acaso. Através do surrealismo as
noções tradicionais de quadro e de escultura são trocadas por jogos de palavras e de coisas. O surrealismo
valoriza sobremaneira a possibilidade de transformar um objeto comum em raro pela intervenção pessoal do
artista criador. 29 Inicialmente, no primeiro período de sua criação, o surrealismo teve uma intenção satírica
de contestar a utilidade dos objetos domésticos e opor objetos de sua fantasia a objetos de arte. Como mostra
Sarane Alexandrian (1976), só em um segundo momento os surrealistas renovaram a psicologia dos obje-
tos e aprofundaram o seu significado e sua ação na vida humana. O que impede de conceber o surrealismo
como um movimento puramente de negação ou antirracionalista é o fato de ele possuir preocupações opostas
a toda a concepção que mutile a razão – “o surrealismo não gosta de perder a razão: gosta de tudo o que a
razão nos faz perder”, segundo Breton. Ainda André Breton descreve que, por excelência, o ponto móbil que
move a atividade surrealista é a esperança de encontrar um certo ponto em que “a vida e a morte, o real e o
imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo” possam deixar de serem
percebidos contraditoriamente. 30
O elemento surreal ou o suprarreal não é contrário ao real, mas sim a reintrodução naquilo que
habitualmente é considerado como real daquilo que era mantido à sua margem. 31 Para os surrealistas, o
sonho traz vestígios de organização e pode ser aplicado às questões fundamentais da vida. Dois estados apa-
rentemente contraditórios como o sonho e o real formariam uma espécie de realidade integral pelo produto
de suas tensões para formar uma dimensão suprareal. Em conformidade com as contradições da vida,
este “suprarreal” seria formado pela permanente comunicação entre o sonho e o mundo real, sem que este
diálogo gerasse uma confusão entre a distração e sua prática. Desse modo, a “suprarrealidade” é definida por
Louis Aragon como a relação em que as dimensões opostas se avizinham; relação em que o espírito engloba
o “horizonte comum das religiões, da magia, da poesia, do sonho, da loucura, das embriaguezes e da frágil
vida, essa trêmula madressilva que acreditais bastar para povoar o céu”32. Nesse sentido, todas as opções
surrealistas estão marcadas por uma tentativa geral de reconciliar opostos em uma reconciliação que nunca
28
DUROZOI, p. 250.
29
Cf. ALEXANDRIEN, p. 30.
30
BRETON apud DUROZOi, p.108.
31
O suprarreal ou surreal não é o sobrenatural ou um principio religioso transcendente. Trata-se antes de um princípio imanente que “não se
deixa reduzir ao irreal”. Distingue-se contudo daquilo que comumente é chamado real, porque “o mostra sob um aspecto completamente novo.
Une nele, com efeito, todas as formas do real. Integra mesmo o que se chama com demasiada facilidade o irreal, porque o irreal é pelo menos
um elemento do imaginário, e o imaginário uma forma de existência humana”. O suprarreal é uma noção que “foge como o horizonte diante do
caminhante”, porque é depois de ultrapassar os dois conceitos (real e irreal) que o supra-real “imagina uma relação mais geral, em que estas duas
relações se avizinham”. (Cf. DUROZOI, p. 45).
32
Aragon, Louis. Traité du style, Gallimard, 1928 e 1980, pg,187. (Aragon apud Chénieux-Gendron).
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se complete, nunca coloque fim ao seu movimento: mantendo no máximo ponto de tensão as duas atitudes
simultâneas. Afirma André Breton em Vases comunicantes (1932) que: “comparar dois objetos tão afastados
quanto possível um do outro, ou utilizando outro método, reuni-los de uma forma brusca e impressionante,
continua a ser a tarefa mais elevada a que a poesia pode aspirar”. 33
Este poeta cuja atividade é comandada por uma ação capaz de ultrapassar a antinomia do sentido
racional e intuitivo do conhecimento possui critérios que são também sensoriais. Longe de se comprazer
num devaneio sem eficácia, este poeta busca interconectar conhecimento e prática humana em um pro-
cesso de permanente transgressão das separações habituais da lógica cartesiana. 34 Ao contestar a separa-
ção irreparável entre ação e sonho, o poeta reinventa uma palavra poética que, numa espécie de tensão
demiúrgica, busca conceder à linguagem uma preponderância imagética de leitura e um instinto de
surpresa. Este instinto de surpresa perturbadora agiria contra os perigos do esteticismo. Assim, os poemas
surrealistas são construídos sob uma ideia de choque –confronto entre a palavra e a coisa – em que certa
beleza convulsiva é buscada em um conflito agudo em permanente estado de tensão. Um caso exemplar
de tal poética parece ser René Magritte. Seja aproximando objetos semelhantes para lhes fazer sobressair
as diferenças, ou colocando um objeto em contradição com a palavra que o designa, Magritte dedica-se
à tarefa de tencionar sua observação ativa da realidade. Mesmo se apoiando solidamente no objeto que o
inspirou, Magritte pode mudar o seu sentido pelo seu poder de perpétuo estranhamento. Sua pintura não
é uma prospecção do invisível: trabalha com a exclusão de símbolos e mitos, transmite fielmente o real e
mesmo assim muda o seu sentido. Cada quadro seu é um ato de reflexão poética sobre o mundo que busca
mais levantar novos problemas que ponham de novo em questão as soluções adquiridas do que encontrar
novas soluções para velhos problemas. Sua técnica é serva de suas ideias. 35 O acabado da obra tem menos
importância do que a intenção que nela transparece.
As preocupações linguísticas estão no centro do surrealismo, já que não há pensamento fora das
palavras, todo o surrealismo sustenta esta proposição. A poesia surrealista não descreve uma visão anterior
e por isso não é mística: é a partir da poesia que se pode buscar uma iluminação. A vidência poética não
pode ser assimilada por um poder visionário. O desregramento dos sentidos deve ser também compreen-
dido como um desregramento dos significantes. 36 Em uma espécie de tensão demiúrgica o poeta acredita
ser possível recriar uma palavra efetiva que seja a figura de uma ideia que corroa a ideia de casualidade
através do pensamento mítico. Os mitos dos primitivos são considerados como narrativas de legítima
exaltação poética. Para artistas surrealistas como André Breton e Louis Aragon, não há progresso possível
sem mito, não há nenhuma possibilidade de “superação suprarreal sem intenção mítica, sem explosão dos
desejos num mito exaltante”. O estado anárquico organizador das coisas seria mantido pela poesia e pelo
mito. No Préface à une mythologie moderne, Aragon denuncia a ilusão dos filósofos, seja a qual for sua
obediência, de pretenderem que a evidência conduza à verdade, que a certeza signifique a realidade. Com
efeito, a quem se engana, o erro parece tão evidente como a verdade: “O erro é acompanhado de certeza.
O erro impõe-se pela evidência”. Mitos novos nascem sob cada um dos passos errantes do poeta; uma
mitologia ata-se e desata-se por uma poética do acaso e seus erros produtivos e fecundos. “A qualquer erro
dos sentidos correspondem estranhas flores da razão”. 37
Em primeiro lugar, o surrealismo se situa no plano da linguagem sem estar submetido à dupla

33
BRETON apud ALEXANDRIEN, p. 127.
34
DUROZOI, p. 138-143.
35
Cf. ALEXANDRIEN, p. 128-129.
36
DUROZOI, p. 133.
37
DUROZOI, p. 190-193.
106
sujeição da lógica e da comunicação imediata, já que se verifica que a palavra, em si própria, se beneficia de
certa independência em relação ao sentido que vulgarmente se lhe reconhece. O que mais importa ao sur-
realismo é a exploração do caráter plurissemântico da palavra poética. À palavra poética seria dado o poder
de explorar a constante interpenetração do físico no mental para triunfar sobre o dualismo da percepção e
da representação. Neste sentido, Breton define uma nova concepção de escrita por oposição ao escritor que
pretende dominar e domar seu discurso. A linguagem é vista por Breton como algo diverso de um meio de
comunicação de mediação inerte entre locutores. Para os surrealistas, a linguagem tem a sua vida própria,
o seu modo particular de existência, independentemente da utilização que dela se pode fazer. Haveria um
além do sentido ilimitado da linguagem para a qual uma palavra poética não submetida aos referentes cole-
tivos poderia conquistar sua autonomia relativa a todas as ideologias. Do ato de negar a função imediata de
comunicação da linguagem é que o surrealismo constrói sua atividade criadora de um mundo que almeja
ultrapassar os empregos corriqueiros da língua para se entregar a uma irrupção de imagens que faça trans-
gredir os limites cotidianos em uma combinação que faça ir além do concebível e do dizível. 38
Nesse sentido, André Breton considera as inspirações verbais como infinitamente mais ricas de
sentido visual e muito mais resistentes ao olhar do que as imagens visuais propriamente ditas. Por isso, o
surrealismo gira em torno da imagem verbal e suas implicações na escrita e seu número de combinações
possíveis. A palavra desembaraçada de seus referentes pela sua inclusão num contexto fora do habitual
concede a um eventual acompanhamento visual uma margem de indeterminação muito mais extensa do
que a imagem entrevista por relações mais estreitas com o real. 39 Os surrealistas acreditam ser possível
deixar falar em si a linguagem, que ela tenha vida própria em um texto que revele a imaginação pessoal do
escritor e seus sonhos reais; para os surrealistas esta imaginação pessoal é muito mais selvagem e potente
do que os racionalistas o fariam pensar. O ponto supremo buscado pelos surrealistas não é transcendente,
mas somente se atinge em um estado momentâneo de indistinção entre um animal, uma chama ou uma
pedra. Tal sentimento imagético do real se atinge pela consubstanciação com um pensamento selvagem
que pensa o mundo sentindo-o; tal como nos primitivos, percepção e representação não se separam, mas
formam uma faculdade única de percepção. 40
Assim como se nega a ser uma metafísica da poesia, o surrealismo também não deve ser lido como
uma poética do fantástico em si, já que busca uma forma de realidade em que todas as contradições da vida
sejam equacionadas em estado de fratura de modo que se possa extrair o caráter fantástico do real mais co-
tidiano. Não se trata de opor um universo fantástico à realidade, mas de conciliar esta com o processo lógico
dos estados delirantes ou oníricos, para formar uma sobrerrealidade. 41 Dessa forma, mesmo que a poética
surrealista se baseie no culto ao estranho e na exaltação do imaginário, quase nenhum antepassado da arte
fantástica, barroca ou maneirista é por ela valorizado, já que o surrealismo exclui o maravilhoso elaborado
sem necessidade interior, sem a completude do desejo e do sonho na descrição do impossível. Aquilo que
Louis Aragon sublinha como uma “metafísica do concreto” – definindo a atividade surrealista – não se
trata de uma “magia do além”, mas de uma “magia do aquém”. Para Aragon, no caso do surrealismo,
também o concreto é igualmente um objeto de interesse metafísico, ambos são vasos comunicantes, sendo
possível pensar em uma metafísica do concreto. 42
Para diminuir a antinomia entre a razão e a desrazão, os surrealistas não escolhem a loucura contra a

38
DUROZOI, p. 113-115.
39
DUROZOI, p. 133.
40
DUROZOI,p. 200.
41
ALEXANDRIEN, p. 52.
42
DUROZOI, p.173-174.
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razão – sendo essa escolha tão exclusiva e injustificável quanto a escolha inversa que é da ordem social – mas,
pelo contrário, “trata-se de fazer admitir que não poderiam existir razões sérias para afastar “a priori” certas
possibilidades do espírito da dita razão normativa da existência”. Desprezar a loucura seria criar uma sepa-
ração entre o normal e o patológico e mutilar o mental, quando o que o surrealismo busca é explorar todas
as possibilidades do espírito sem dar preferência a nenhuma delas. O que está em jogo é o poder metafórico
da linguagem como combinatória sempre a descobrir imagens poéticas novas. A atividade do jogo pode
ser um grande motor do universo surrealista. Tomar o jogo a sério é, para os surrealistas, além de tomar a
atividade lúdica como reinvindicação de liberdade, “mostrar que a verdadeira seriedade não está de modo
nenhum onde habitualmente se situa”. 43 Para os surrealistas toda atividade criativa é mítica, inclusive o jogo:
na medida em que ela nega as antinomias entre as realidades exteriores e arma a imaginação para o outro
lado das coisas. À arte é permitido reencontrar a infância pelo prazer do jogo e por certo caráter primitivo
que faz tábula rasa das convenções morais mais utilitárias. 44
Em vez de reforçar uma subjetividade fechada sobre si própria, o artista surrealista deve procurar
atingir uma intersubjetividade no interior da qual as diferenças pessoais, sem se abolirem, vêm enriquecer-
se reciprocamente e alongar o campo mental de cada uma.45 Ao mostrar o que o mundo tem de irracional,
a imagem poética surrealista constrói seu estremecimento pela fusão das coisas entre si e pela fusão do ser
nas coisas. Trata-se de uma espécie de razão ardente de alquimia da linguagem. Contrariamente aos místi-
cos ocultistas que procuram um aniquilamento na visão, o surrealista recorre a uma supraconsciência que
seja consciente daquilo que se passa nas camadas mentais mais densas. O surrealismo é, antes de tudo,
uma prática da linguagem ligada a uma leitura da vida. Para Breton, a literatura não é um fim, mas um
meio. 46 Nesse sentido, toda obra surrealista quer criar uma espécie de “realismo aberto”, um “realismo sem
margens”.47 Não se trata, absolutamente, de falta de rigor. Como afirma Louis Aragon: “Que não se creia que
o surrealismo seja um refúgio contra o estilo. No surrealismo tudo é rigor. Rigor inevitável”.48
Segundo André Breton, um poema não deve ser julgado pelas representações sucessivas que provo-
ca, mas antes pelo poder de encarnação de uma ideia, a que as representações, libertas de toda a necessidade
de encadeamento racional, apenas servem de ponto de apoio. O alcance e a significação do poema são outra
coisa que “a soma de tudo o que a análise dos elementos definidos que ele utiliza permitiria aí descobrir”.49
Tal capacidade ilimitada de assimilações possíveis da imagem poética remonta à fonte dos ritos mitológicos.
Tal ponto de vista “bretoniano” trabalha a imagem poética como uma ponte entre uma imagem e outra para
apostar na capacidade imagética de recompor uma cadeia de analogias. Deste modo declara André Breton:
“Nunca experimentei o prazer intelectual a não ser no plano analógico”. 50 O homem não vê sobre a terra
senão uma “explosão de aspectos da realidade que certamente mantêm relações em profundidade, mas que
o raciocínio lógico nunca penetrará. Estas antinomias aparentes não serão resolvidas senão pela força da
analogia, pela intuição poética”. 51 Tal intuição poética sobre o mundo deve ser capaz de gerar aquilo que

43
DUROZOI, p. 154-158.
44
DUROZOI, p. 206.
45
DUROZOI, p. 254.
46
DUROZOI, p. 303-305.
47
DUROZOI, p. 295.
48
ARAGON, Traité du style. (ARAGON apud DUROZOI p. 312).
49
Cf. DUROZOI, p.65.
50
BRETON apud DUROZOI, p.205.
51
DUROZOI, p. 199.
108
Apollinaire definiu como uma “razão ardente”, para opor à razão fria dos racionalistas. 52
O projeto surrealista recoloca no circuito comportamentos e práticas antes marginalizadas pelo
exercício da poesia. Os surrealistas encontram seus antepassados em uma linha que vai de Nerval a
Novalis, passa por Gauguin Lautréamont e Rimbaud, e tende a “fazer voltar o homem ao sentimento
primordial que teve de si mesmo e que o racionalismo positivista corrompeu”. 53 Para os surrealistas os
jogos de linguagem não são gratuitos, mas perturbam o funcionamento dos hábitos mentais e a própria
concepção de realidade. 54 Os poetas jogam, escreve Paul Éluard, “mas pela primeira vez desde a origem
do mundo, tome muito cuidado, eles estão jogando como homens”. 55 Na medida em que o surrealismo
se apresenta não como um saber, mas como uma prática num domínio poético e plástico, as associações
livres propostas pelos surrealistas são de utilidade prática, propõem uma trama relacional da equivalência
de contrários. A maior busca surrealista é reconstruir as pontes entre o sonho e o real, entre o sujeito e o
objeto. Como expõe Paul Éluard, não há dualismo entre a imaginação e a realidade: “tudo que o espírito
do homem pode conceber e criar provém do mesmo veio, é da mesma matéria que a sua carne, que o seu
sangue e o mundo que o cerca”. 56
De modo a pôr em prática uma relação dialética entre o escrever e o viver – que mutuamente se fe-
cundam – os surrealistas buscam mesclar na escrita escritor e objeto até que estes já não mais se diferenciam
como blocos fundidos que escapem da estética e até da própria noção de literatura. Para diminuir a distância
entre vida e sonho, os surrealistas se utilizam dos acontecimentos biográficos e das rêveries nascidas de leitu-
ras como dados que sirvam para condensar a escrita em um plano em que imaginário e vivido não cessem
de remeter um para o outro em seu processo de descoberta. Neste contexto de descobrimentos e achados, o
surrealismo representa, primeiramente, uma atitude perante o mundo, fundada pelo desejo de restabelecer a
continuidade do eu ao objeto. Tal continuidade almejada determina um comportamento lírico que pintores e
poetas adotam ao interrogarem os mistérios dos objetos de modo a ouvir a voz de tais objetos em um instante
em que ocorre um achado. É por isso que, para o surrealismo, se torna necessário vaguear ao encontro de
tudo. “Esperar é o ato poético por excelência”. 57 A imaginação não é tomada como um jogo gratuito, mas
sim como um jogo de riscos proveniente da aproximação de duas ou mais realidades afastadas. Através de um
primado da imaginação, no surrealismo, a vida já não mais aparecerá como um fato, mas sim será “um fato
primitivo e uma energia indecomponível”. 58 Os surrealistas apostam nos poderes da palavra poética regida
por uma espécie de pensamento mítico pelo qual “o valor poético se descobre no mesmo momento em que
é transgredido”. 59 Como escreve Francis Picabia, os surrealistas sonham tocar “o princípio da matéria” das
palavras. 60 A invenção poética é definida por Louis Aragon como um “realismo sem beiras”. 61
52
Cf. DUROZOI, p.2 02.
53
BRETON, André, Entretiens, 1950, reed. 1969, p. 285.
54
Para Paul Éluard, as palavras são signos enganosos, são mais as frases do que as palavras que constituem a matéria prima do pensamento: um
conjunto de sentidos que se faz e se desfaz a cada instante por mil trocas. Uma nova linguagem deve ser buscada liberada da obrigação de sig-
nificar. Seria esta uma linguagem que permaneceria aberta a todas as virtualidades do sentido e que constituiria um “análogo sensível”. Somente
a linguagem liberta daquela “que basta aos tagarelas” pode se tornar poética. (Cf. ÉLUARD, prefácio à coletânea Les animaux et leurs hommes,
1920, apud CHÉNIEUX-GENDRON, p.78)
55
ÉLUARD, Paul. Conduite intérieure, La vie moderne, 4-11 de março de 1923.
56
L’evidence poétique, Pléiade, I, p. 516.
57
DUROZOI, pp.335.
58
CHÉNIEUX-GENDRON, p.3.
59
CHÉNIEUX-GENDRON, p.8.
60
CHÉNIEUX-GENDRON, p.41.
61
CHÉNIEUX-GENDRON, p.181.
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Segundo a utiliza muitas vezes André Breton, em francês, a palavra tradition (tradição) rima como
bâillon (mordaça) 62. O senso de provocação surrealista começa a partir da nomeação por antífrase da re-
vista Littérature (em 1919) que remete à legenda da art poétique de Verlaine: “E todo o resto é literatura”63.
A radicalização da dúvida cartesiana é trabalhada pelos surrealistas como um método de invenção em que
toda a civilização é questionada, todas as ideias em uso são contestadas, todas as convenções são repensadas
em função de uma maior adequação às paixões. Mesmo assim, o surrealismo não rejeita a paciência nem a
erudição, que respondem a outro desejo, o de compreender e de analisar. 64 Para os surrealistas, a poesia deve
escapar aos especialistas. Trata-se de inverter a hierarquia de valores tradicionais e recusar o caráter posi-
tivista da arte conceitual. De modo a corroer os corolários nacionalistas, Breton defende o plano da poesia
como um conceito de revolução permanente.
O surrealismo se afasta de uma tradição majoritária para se apoiar em filosofias e artes não racio-
nalistas, não normativas, não etnocentristas. André Breton desloca a ideia de “belo” da ideia de gosto e de
prazer estético. Em divergência com uma estética clássica, os surrealistas são alheios à preocupação com
a figuração e com a obediência às regras (às vezes quase transcendentes) que permitiam atingir o belo. A
ideia de projeto estético em seu sentido racional é abandonada: “a escrita e a arte surrealistas não se definem
nem por um estilo, nem por uma feitura”. 65 Realizando a alusão metafórica em nome de um “racionalismo
aberto”, o imaginário surrealista trabalha com o “reabastecimento de toda atividade poética (entendida no
sentido mais amplo, sem preocupação com modo de expressão nem gênero)”. 66 Para estes, a linguagem é o
termo de uma sensação, como se lhe sentissem o “poder germinativo”. 67 Para os surrealistas, a poesia já é
ação: “escrita em ato e não na busca conceitual de verdade”. 68
O que os surrealistas descobriram a partir do inconsciente foi menos um lugar de volta às fontes do
que o imaginário como função central do sujeito, a partir da qual se reordenam conhecimento e ação. Para
os surrealistas, a imaginação seria muito mais do que mero poder de distanciamento. Ela seria participante
ativa em toda ação, como ressalta André Breton: “A imaginação não é dom, mas por excelência objeto de
conquista”. 69 A partir de uma desconfiança de que o erro e a verdade não podem ter traços diferentes (que
ambas dependem de seu oposto para se impor por evidência), Louis Aragon busca extrapolar a noção de
mito e inverter a proposição segundo a qual os mitos de hoje seriam os resíduos da atividade consciente
do homem. O homem moderno estaria impregnado de uma atividade mítica e a poesia chegaria a tocar o
símbolo (não mais tocado pelo intelecto) através da presença de múltiplas condensações70. A fim de que se
desaprendam os dualismos, os surrealistas irão valorizar o mundo pré-lógico da infância, dos primitivos e

62
Cf: CHÉNIEUX-GENDRON, p.29.
63
CHÉNIEUX-GENDRON, p.36.
64
Cf. CHÉNIEUX-GENDRON, p. 211-212.
65
CHÉNIEUX-GENDRON, p. 188.
66
CHÉNIEUX-GENDRON, p. 212.
67
CHÉNIEUX-GENDRON, p. 197.
68
CHÉNIEUX-GENDRON, p. 124.
69
Assim prossegue Breton : “Digo que a imaginação, onde quer que tome os seus empréstimos – para mim, isto fica por demonstrar – se de fato
toma empréstimos, não tem de se humilhar diante da vida. Haverá sempre, particularmente, entre as ideias ditas recebidas e as ideias...quem
sabe, por receber, uma diferença capaz de tornar a imaginação senhora da situação do espírito”. (BRETON, André. Il y aura une fois, Le surréalisme.
ASDLR, nº1, julho de 1930.
70
CHÉNIEUX-GENDRON, p. 122-123.

110
dos loucos. 71 O prazer de transgredir certas leis da linguagem está presente no surrealismo como modo de
interrogar as interdições que separam o homem de seu próprio pensamento, questionando o divórcio ir-
reparável entre a ação e o sonho, interrogando a oposição do ato à palavra, do sonho à realidade, do presente
ao passado e ao futuro. 72
O imaginário, para os surrealistas, está no centro das faculdades do homem. Para os surrealistas, o
plano da imagem poética está no plano da ação e não da construção lógica de pretensão racional. Embora
ela tenha uma lógica própria, a imagética surrealista busca devolver nos pensamentos que se haviam tor-
nado inoperantes na vida em sociedade uma eficácia primitiva baseada na produção de analogias. Como
descreve Louis Aragon, pela imaginação surrealista a vida pode ter restituída a sua “cor trágica”. 73 Assim,
os devaneios e os sonhos noturnos são valorizados pelos surrealistas como fontes de revelação da capa-
cidade humana de ampliação de consciência. Mergulhar sem rigor na vida seria ser infiel ao imaginário
de acontecimentos possíveis. Diante da realidade dos lógicos impera o princípio da não contradição que
separa o pensamento e a linguagem. Já para os surrealistas, pela prática do “pensamento falado” se busca
reivindicar um erro produtivo dos sentidos; a partir desta errância é que pensamento e linguagem se relac-
ionam. O pensamento poético é um condutor de eletricidade mental, um “inimigo da página” que levanta
o problema da transformação de energia. 74 Por defenderem que a fantasia é do domínio do parecer e não
do ser, os surrealistas se colocam em desacordo com a teoria dos estoicos sobre a imaginação. 75 Para Platão,
seria preciso escolher entre mythos e logos, entre os mitos de Hesíodo ou de Homero, entre “a palavra que
serve para criar a ilusão, benfazeja ou malfazeja, e o discurso regrado para conquistar a Verdade”. 76 O sur-
realismo escolheu a primeira.

71
A inocência buscada pelos surrealistas é esquadrinhada pela poesia como testemunho de uma inocência primeira, não no sentido de um
movimento regressivo rumo a uma temporalidade da ausência de tempo, mas no sentido ético de uma liberdade desprovida de culpabilidade.
Inocência que se atribui ao pensamento selvagem. O surrealismo foi buscar no romantismo alemão a noção de Marchen: “produto imediato,
necessário, ideal e profético da imaginação entregue a si mesma”. (Cf . CHÉNIEUX-GENDRON, p. 140)
72
CHÉNIEUX-GENDRON, p. 164-173.
73
ARAGON, Louis, Le paysan de Paris, p. 164.
74
BRETON, André. Arcane 17, p. 8.
75
Cf. CHÉNIEUX-GENDRON, p.137-140.
76
CHÉNIEUX-GENDRON, p. 119-120.

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Performando “Dona Mariana, princesa turca, cabocla curandeira,


arara cantadeira”

Zeca Ligiéro
Coordenador do NEPAA – Núcleo de Estudos das Performances Afro-Ameríndias e
Professor do PPGAC – UNIRIO

E u já havia incluído, no fechamento do meu livro Corpo a Corpo: estudos das


performances brasileiras, o artigo “Dona Mariana, princesa turca, cabocla curandeira,
arara cantadeira” falando da figura que havia me encantado por ocasião da minha pri-
meira visita ao Pará, durante o projeto intitulado Muiraquitã, com o qual havia recebi-
do o prêmio Interações Estéticas pela Funarte (2010). Entretanto, o material que eu en-
contrara, embora abundante, não me parecia ainda satisfatório como pesquisa, devido
à complexidade do assunto e por ainda contar com um reduzido número de referências
bibliográficas, entre as quais podemos destacar: Prandi (2001), Ferretti (2007), Santos
(2009). Além disso, eu também não havia respondido à questão principal: como os
turcos foram parar no ritual do tambor de mina?
Afeito à pesquisa histórica, procurava justificar a presença dos turcos no Bra-
sil por meio da presença dos sírios-libaneses, expulsos pelos otomanos (turcos) e que
migraram para o Brasil, especialmente para diversas cidades do norte do país, durante
o ciclo de riqueza da região, ou seja, no boom da borracha do começo do século XX.
É possível que outras etnias de muitos outros países dominados pelos turcos tenham
chegado fugidas ao Brasil, passando a ser designadas “turcos”.
Mas os dados eram insuficientes para uma abordagem mais “científica”. Numa
nova visita ocasional a Belém, tive a chance de presenciar, filmar e fotografar um ritual
na casa da Mãe Isabel. Novas questões dali surgiram. Tive a chance, ainda, de conversar
com duas sacerdotisas de Rio Branco, Acre, que recebiam respectivamente a Cabocla
Mariana e sua irmã Erundina, as quais me passaram outras histórias sobre as entidades
turcas. Portanto, se a minha pesquisa histórica ficou estagnada, a outra foi caminhando
ao sabor das minhas andanças e conversas com o povo de santo.
Dessa forma, pude perceber o enredo da família turca encantada que chegou
ao Brasil, inicialmente na praia do Lençóis, como contam algumas cantigas, ou pela
Ilha de Marajó, como afirmam sacerdotes como Pai Taiandô, de Belém, depois migrou
rio acima, como os peixes, em direção a Manaus, onde atualmente pode-se encon-
trar, em muitos sites e blogs, fotos de rituais dessas entidades em diversos terreiros, daí
tendo se espalhado pelos afluentes do rio Amazonas, indo até lugares distantes como a
fronteira da Bolívia e do Peru. Tambor de mina, encantaria ou mesmo umbanda, não
importa o porto onde a cabocla Mariana atraca com sua família de encantados turcos.
112
Se me falhavam os dados históricos para comprovar a genealogia turca e/ou sírio-libanesa e suas posteriores
migrações, os materiais orais foram se multiplicando e os temas se repetindo com pequenas variações locais,
enquanto as irmãs foram tomando forma na minha imaginação. Comecei a pedir aos meus amigos de Belém
ou aos visitantes que me trouxessem imagens de gesso de Mariana e do marinheiro Fernando, assim uma
iconografia do imaginário popular foi ocupando, com destaque, o panteão caboclo de um altar interativo da
sala do Núcleo de Estudos e Performances Afroameríndias – NEPAA, que coordeno na UNIRIO.
A participação no Encontro do grupo de trabalho do Desenvolvimento de Identidade Cultural
(CIDC), junto ao Instituto Internacional de Teatro (ITI), realizado em Baku, capital do Azerbaijão, em
2012, país vizinho da Turquia, levou-me a planejar, no retorno para casa, uma visita de curta duração àquele
país. E assim o fiz. Quando estava em Baku, em uma das reuniões de trabalho do CIDC, fui presenteado
pelo colega italiano Fabio Tolledi com um livro por ele editado em inglês Stories of Stars and Acrobats: forms
of theatre between Turkey and Europe. O livro me trouxe muitas surpresas agradáveis sobre as formas tradi-
cionais de teatro de sombra turcas, bem como sobre a importância da relação do xamanismo com o teatro
turco tradicional que, mesmo em crise, como demonstra o livro, tem uma incrível história. Vi aí nascer uma
conexão interessante do xamanismo turco, tradicionalmente vindo da Ásia Central (os turcos migram da
Ásia Central para a região da Anatólia somente no século XI, trazendo muitas influências culturais do Tibet
e da China, conforme aprendi com o artigo de Quarta (2012)) . Novamente, me via entre conexões poéticas
e filosóficas, mas ainda muito longe de qualquer pesquisa “científica” mais consistente. Obviamente, neste
momento, eu não pretendia fazer nenhuma pesquisa séria mas me aproximar do universo turco que eu
desconhecia por completo. Seria mesmo uma viagem turística, levado pela curiosidade em conhecer mais de
perto os palácios, as lendas, os museus, a dança dos dervixes... E foi o que fiz.
Os dias em Istambul foram repletos de visitas a museus, à tradicional Mesquita Azul, à margem
asiática do Bósforo e outros passeios memoráveis. Pude também assistir, por duas noites consecutivas, apre-
sentações do ritual Sani dos dervixes discípulos dos antigos Sufis em forma de espetáculo da dança, as quais
registrei em filme. Registrei este particular ritual de performers com suas túnicas brancas, dançando em
círculo e girando sobre seu próprio eixo. Como qualquer outro turista adquiri objetos locais, tirei fotos, e
comprei alguns livros e CDs sobre as tradições turcas.

A criação de um texto sobre a princesa turca que vira cabocla amazônica

Ao voltar para casa, durante um prolongado fim de semana, comecei a ouvir as músicas clássicas
do antigo reino otomano. Resolvi anotar algumas observações, visando uma possível montagem teatral
com o pessoal do NEPAA. Incialmente, havia pensado em um espetáculo com três mulheres que pudessem
tocar, cantar e dançar enquanto contavam a história de Mariana e suas irmãs Erundina e Jarina. Claro,
incluindo a linguagem do teatro de sombras, que eu também desconhecia e que era parte do legado turco
do império otomano, cuja origem remonta ao antigo Oriente. Tudo me parecia mágico em torno de uma
história fabulosa de migração, lutas, transgressões e profundas metamorfoses. Principalmente a história de
transformação do feminino, de uma mulher saída de um mundo dominado pelo Islamismo que adota um
outro universo absolutamente diferente, uma radical experiência transcultural, quando literalmente incor-
pora o universo afroameríndio da Encantaria do Pará e do Maranhão. Do patriarcado muçulmano turco,
fiquei impressionado, sobretudo, com o palácio de Topkapi (em turco: Topkapı Saray) que significa “porta
do canhão” e foi construído, em 1453, pelo sultão Mehmet II, logo após a conquista da cidade, conhecida
na época como Constantinopla. Topkapi foi a residência dos sultões por três séculos, com sua arquitetura
suntuosa e um anexo especial para o harém, com habitações para uma centena de mulheres fortemente es-
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coltadas pelos escravos eunucos negros, residentes na entrada do prédio.


Chamou-me também a atenção as relíquias conservadas pelo poder do Império Otomano, objetos
que jamais pensaria encontrar em minha vida, como o cajado de Moisés, um pedaço do crânio de João Ba-
tista, um pote onde Abraão costumava comer, além de vidrinhos com tampa de ouro com cabelos do profeta
Maomé. (Lembrei-me até da expressão “pelas barbas do profeta!” que pela primeira vez na vida fez sentido.
Segundo a tradição muçulmana, antes de morrer o profeta se depilou e doou os cabelos aos mais fervorosos
adeptos). As relíquias de outros profetas provavelmente foram saqueadas pelos otomanos de outros reinos
mais antigos, de origem comum judaico-cristã.
Geralmente, estudamos o Islamismo como sendo oposto ao pensamento judaico-cristão, mas ali
percebi que o primeiro era uma continuidade dos outros, não constituindo bem uma ruptura. Em seu livro
De l’ homme. Eléments d’anthropobiologie philosophiques du langage, Jacques Poulain desenvolve uma teoria
muito interessante sobre o desenvolvimento da prosopopeia judaico-cristã que, esta sim, aparece como rup-
tura com a instituição totêmica baseada no culto à natureza, ou ainda com os cultos politeístas, propondo
uma única força transcendente, superior a todas elas, monoteísta e única, e portanto excludente das outras
forças. Este princípio único se baseia na força da Palavra. Pois Deus teria ele mesmo nascido assim da proso-
popeia verbal: Le vivant monothéiste s’ identifie ainsi à l’unique être dont la vie est Parole et dont la parole est vie
puisque c’est en lui qu’ il se vit, dans la projection de cette prosopopée de la parole au sein de sa propre prosopopée
verbale, de sa reconnaissance de l’Unique. O monoteísta vivo se identifica, assim, com o único ser no qual
a vida é palavra e a palavra é vida, na medida em que é nele que se vive na projeção dessa prosopopeia da
palavra no interior de sua própria prosopopeia verbal, de seu reconhecimento único.
Assim, revi as relíquias como uma coleção de troféus, de lembranças que reafirmavam uma certeza,
um pensamento que começa com o judaísmo, depois desenvolvido pelo cristianismo e por último, neste
caso, aprofundando de forma mais radical ainda a “palavra ouvida”de Deus pelos profetas, diretamente da
voz de Deus e, então, transcrita e transformada em leis para reger os comportamentos humanos dentro da
ideia da Palavra e do monoteísmo.
Na tranquilidade de Santa Teresa, separei os livros e as fotos, e comecei a manuseá-los em busca
de desenvolver algumas anotações, visando conceber um espetáculo futuro. Queria aproveitar que estava
ainda impregnado de vivências e produzir algo. Coloquei o CD de música otomana que, imediatamente, me
transportou. Em vez de esquetes, ou mesmo diálogos, ou ainda uma descrição de cenas, me veio uma poesia,
uma contação de história em versos soltos.
O sultão teve três filhas
cada uma
de uma concubina nova
escolhida no seu harém:
uma raptada na África
outra prisioneira de guerra de um reino da Ásia
e ainda uma outra vinda
do outro lado do estreito
de Bósforo
comprada de um mercador amigo
de um continente que mais tarde ficou conhecido
como Europa.

Minha primeira dúvida: intrigava-me a ideia da turca loura. As imagens da princesa em gesso de
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Belém eram todas louras. Pensava que, talvez, por causa da moda de muitas brasileiras de se oxigenarem, isto
poderia ter constituído uma interferência, seria uma visão brasileira a criação de uma princesa turca como
uma loura. Mas, verifiquei que entre muitas gravuras e pinturas tradicionais de mulheres do harém como
louras, havia também as morenas, e naturalmente as negras. Até o momento, tudo leva a crer que nenhum
ocidental entrou nestes haréns, sendo então impossível realmente saber como eram estas mulheres. Mas, em
toda a história da região da Anatólia até a região da cidade de Istambul, antes e depois da chegada dos turcos,
houve muitas invasões, ocupações de exércitos, cruzadas, escravidão e portanto, processos de miscigenação.
Bizâncio, Constantinopla e depois Istambul, postada de um lado na Ásia e de outro na Europa era em si um
ponto de passagem e também foi um dos maiores centros comerciais do mundo durante mais de mil anos,
por onde passavam caravanas de comerciantes, rota das especiarias da Índia e da seda da China, e do tráfico
árabe de cativos negros da região da Etiópia e Sudão, no norte da África, para servir grande parte da Ásia.
Imaginar louras, morenas e negras é bem possível nesse lugar.
Um outro ponto estranho e inexplicável na história é por que o sultão era derrotado pelos cruzados
cristãos. Isto parece estar mais ligado aos confrontos entre mouros (árabes) e cristãos do que com os turcos,
cujo império otomano se expande justamente com o declínio dos árabes e muitos anos depois da última
cruzada. Mas aí segue a tradição oral, que não deixa mentir jamais:
Mas o sultão que era fiel ao profeta Maomé
travou uma batalha para provar
que era turco e não mouro.
Derrotado
o sultão fugiu com as três filhas e sua esquadra
seguiu pelo mediterrâneo
em fuga pelo mar Egeu
e chegou às longínquas terras do norte da África,
chamadas pelos gregos e romanos
de Mauritânia,
último bastião dos domínios árabes

A versão da história que mais me encantou, descreve o momento em que a esquadra do sultão e as
três filhas permanecem ancoradas em um porto no norte da África, para armar a resistência e retomar o seu
reinado na Turquia. O papel das irmãs princesas surgia a reboque dos acontecimentos em torno de Mariana,
embora em muitos rituais a que assisti, as duas irmãs, quando incorporadas, mostravam-se até mais ativas
que ela, e mesmo em alguns casos protagonizando os rituais, mais agressivas no tom do canto e mais enér-
gicas em suas danças. A história de Mariana é a única que sobreviveu:
Mas quis o destino
que num dia de passeio
um marinheiro
que contava lorota
jogando dados na calçada
no dia de folga
a encontrasse envolta em tanta seda e pedraria
apenas seu rosto
na janela da roupa
os olhos também cheios de maresia
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e prontos para navegar


mas ainda sem rumo e sem nau.
Somente um desejo extremamente forte
para burlar ordens dadas
há tantos séculos pelo profeta que começou
a guerra santa com três espadas
uma reta, uma curva e outra em ziguezague
por designação do próprio Alá.
Como era possível abandonar o reino turco familiar
ainda que ancorado em terras
que não lhe pertenciam?
Abandonar o pai e as irmãs
cortar os laços com o passado
e correr para os braços
de um marinheiro sem terra
e sem pátria
de nome Fernando?

Na visita ao palácio de Topkapi, me impressionei com as três espadas do profeta. Na minha santa
inocência não havia imaginado Maomé como um guerreiro, proprietário de três tipos de espadas que provo-
cavam três tipos de perfurações e de destruições simultâneas. A história foi sendo criada, grande parte escrita
no mesmo dia. À noite, li a história para Carla, minha namorada, e ela ficou fazendo perguntas sobre o que
tinha acontecido com a Mariana, com as irmãs. Quando não tinha resposta, recorria às toadas que eu havia
recolhido em vários lugares e que forneciam dados sobre a personalidade de Dona Mariana, e voltava a folhear
os livros sobre os reinos, voltando depois para as várias entrevistas. Quem era Fernando?
Era um Fernando moreno e febril
que joga dados e manda recados
numa caligrafia que parecia amarrar
todas as palavras de amor em laços
e cordas para transformar em flor
traços e rabiscos avulsos
significados ocultos
em frases nunca lidas
e jamais ouvidas por Mariana
até aquele momento.

Aí, conta-se apenas que ela, apaixonada, resolveu fugir com ele disfarçada de marinheiro, uma frase
curta para uma complexa decisão. Este parecia-me ser um ponto importante: demonstrar a mudança entre o
corpo familiar, de princesa criada para o casamento e sua completa transformação em mulher que vai atrás
do seu homem, que se encanta, que se rebela diante do destino traçado:
Para onde fugir os dois?
Dois estrangeiros em uma terra estrangeira?
No fogo da paixão,
o casal construiu um plano secreto
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entre os labirintos de ruelas
vozes cruzando portais
gelosias
sibiladas entre
gretas
rotulas de fasquias
bilhetes trocados
amassados dentro de anéis de prata
entre os seios suados
transportados
emissários secretos
fugas planejadas em detalhes
no vai e vem de uma caligrafia
de sonho em negro nanquim
no correr da pena
tatuada a fogo
por um desejo
em brasa.

Que novo universo é este? O que ele exige? Há um impasse. Como fugir de um universo judaico/
cristão/islamita, fundado em lei inexorável e organizado pela Palavra que ditou leis divinas, definidas como
a única possibilidade sob a forma da necessidade ética, isto é, de um comportamento social invariavelmente
bom, infalível e adquirido de forma irreversível, inabalável. Somente seria possível através de uma profunda
ruptura com o princípio monoteísta da sua tradição, para reencontrar os rituais ancestrais e outras mito-
logias das incertezas das águas do mar de Mármara, Egeu, da Trácia, da Cilicia, de Creta que compõem o
Grande Mar Mediterrâneo em torno da sua Turquia, cujos mistérios míticos haviam sido renegados. Agora,
para ir ao encontro do amor de um outro homem, também desconhecido, como seria possível fazer a tran-
sição entre o universo da princesa e o do marinheiro plebeu?
Num belo dia
chegou um uniforme da marinha
no colo de Mariana
era azul e branco como mar e a espuma
e havia ainda um gorro estranho
e mais um casaco grande de malha de ferro
com um cinto largo
e uma espada de prata.
E ela pensou que se vestisse tudo isso
e mais aquilo
ia parecer uma pirata
e riu do perigo
que ela estava abraçando.
E como tanto cabelo louro
sobrava para todo lado
e não cabia nem no gorro nem no casaco
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ela pegou a tesoura


como se fosse faca
para cortar o ouro do cabelo
como uma herança turca
que ia deixar em cachos
pelo assoalho da casa
que já não era a sua
e assim feminina
mas com cara de homem
entrou na farda
como se fosse sua
antes teve amarrado
os seios com uma mordaça
de pano
escondendo a mulher
que começava a nascer
justamente
naquele momento

Mariana não somente cruza a fronteira da classe social como a do gênero. Ao cortar o cabelo de ouro,
abandona sua persona de princesa virgem, mercadoria de troca entre reinos, para ser ela mesma: mulher que
segue seu plano, sua viagem, seu desejo. Assume ser dona do seu destino, com todo o risco que possa repre-
sentar para a sua vida e a de seu companheiro.
E assim vestida
em uniforme
a princesa largou a família
sentando praça na marinha
deixou o nome
a aparência
em terra
para se juntar ao seu amor
em cima d’ água
o marinheiro tatuado
no casco do barco
com uma sereia num braço
e um coração flechado no outro
de nome apenas Fernando.

A história de amor poderia ter um final feliz, da princesa que foge do seu destino traçado para
encontrar a felicidade para sempre em um outro país, desconhecido. Mas não é esta história que é contada,
não é um conto de fada.
Não se sabe como
mas o fato é que tal amor
um dia foi ouvido
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visto
ou ouvido falar
percebido
quando a nave perdida
no meio do oceano
não ousava jamais
pensar em amor
ou coisa parecida
tomou conhecimento
de tal ousadia
o amor entre dois marinheiros
maculando a honra de homens
orgulhosos da virilidade.
Sabedores ou não
de se tratar de uma mulher
disfarçada em princesa doida de amor
ou homem afeminado
em momento de amor secreto
foi dada uma resposta sem julgamento
a punição maior:
o abandono no mar aberto
para a morte líquida
e certa.
Não se sabe se foram jogados juntos
ou separados
para ser maior a solidão
dos corpos em desespero na hora fatal.
Pois a culpa do amor exercido
os dois tinham igual
sem importar o gênero
ou patente na farda.

Um trágico final. A história de tantos que, para realizarem o amor que sentem, acabam em uma
situação em que suas vidas são ceifadas. Perguntava-me: como esta história ficou conhecida? Ninguém pode
ainda adivinhar se havia algum africano naquele barco, um cozinheiro, um copeiro ou um da estiva que
fazia patuá e mandinga, e que tenha escapado com vida para contar a história.
O fato é que a Princesa foi encontrada
num ritual
do Tambor da Mina
na Ilha de Marajó
ela cantava e dançava
e adivinhava coisas
sobre destinos passados
e futuros.
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Nos corpos de negras, mestiças, caboclas, indígenas


Mariana se apresentava
ora princesa, ora cabocla
e não pude saber como esta gente
fazendo um ritual antigo de pajelança
misturado com coisa da Costa da Mina
trazia a princesa de terras tão distantes da Ásia.

De que etnia seriam estes negros que restauraram o comportamento turco em seus rituais, nos
estados que passaram a ser beneficiados com a criação da Companhia Geral de Comércio do Gran Pará
e Maranhão em 1775, que com a proibição da escravidão indígena, passou a trazer africanos cativos para
suas lavouras cujo ingresso até aquela data era relativamente pequeno, cerca de apenas três mil. Entre 1755 e
1777, esse número saltou para 12 mil. Difícil saber quais as procedências destes escravos: angolanos, congos,
ashanti, fanti, gê, fon, jeje? E por que foram os negros os guardadores desta história? No Maranhão, são
fundadas as primeiras casas de tambor de mina pelos escravos da antiga Costa da Mina. Sabemos também
da presença de sírios, libaneses e árabes no Maranhão, em Belém e na Amazônia, atraídos pelo ciclo da bor-
racha. Teria esta realidade alguma relação com o aparecimento da família turca neste ritual? Mundicarmo
Ferretti, uma das mais importantes pesquisadora no assunto, é categórica ao refutar qualquer influência da
chegada dos sírio-libaneses ao norte do país no culto estudado.
A entidade espiritual conhecida por Rei da Turquia, embora tenha entrado na (tambor de) mina
após a abertura de vários terreiros em São Luís, foi recebida por negros antes da entrada no Maranhão dos
primeiros imigrantes sírio-libaneses (frequentemente chamados turcos no Brasil), mais tarde miscigenados
às populações locais.
Tendo como fonte a tradição oral, a história da princesa não naufragou em alto mar. E a história
aqui segue contada e recontada por sacerdotes, caboclos em toadas e versos soltos que vão colorindo Mariana
com suas cores e sotaques pois, se o corpo padece de doença, a alma imortal se reinventa na fé.
Em viagens ao Acre, encontrei pelo menos duas sacerdotisas que incorporavam as princesas turcas.
Embaixo de um pé de jurema, ouvi também histórias delas contadas por uma outra entidade, que mesmo
não sendo da banda delas, me dizia em tom categórico que não se furtaria em dar algumas informações
para o doutor, como me dizia Zé Pelintra. E soube ainda pela pesquisa de Reginaldo Prandi (2001), que a
família turca e os encantados também já estão em São Paulo e em outras bandas do sul maravilha. Do vídeo
protagonizado por Pai Taiandô de Belém, “A descoberta da Amazônia pelos turcos encantados”, me deixei
levar pela linda versão do encontro da turca com o universo indígena:
Na praia ela encontra
uma índia tapuia chorando
chora porque perdeu seus filhos.
Espanhóis que passaram a caçar índios
como se fossem feras
transformados
guerreiros em escravos
e levados
para além mar.
Suas lágrimas irrigam a praia
singrando a areia até o mar
120
de tão abundantes e constantes
formam o fenômeno
da pororoca.

Aqui penso em uma mitologia brasileira sendo criada, não apenas como algo folclórico, decorrente
da ideia quase estereotipada da união perfeita das três “raças”, mas mostrando como a mistura das “raças”
decorre muitas vezes de processos violentos, e as alianças entre indivíduos de lados opostos acontecem como
forma de sobrevivência, não sendo somente por mera atração ou simpatia.
Ela agora leva a crença na dança que ela cria
quando dança.
Onde será que Mariana aprendeu a dançar?
Se com as mulheres do harém quando criança?
Ou com alguma negra mucama no norte da África?
Ou com as índias das aldeias ribeirinhas?
Ou com todas elas?
Ou já nasceu em seu corpo assim essa dança?
Ou não terá aprendido a dança
com algum deus da mudança
protetor das identidades
migrantes?

A xamã indígena recebe Mariana e a inicia nos seus segredos da floresta. Mas todo conhecimento é
passado com a dança. Embora a dança de Mariana pareça mais dança de negra pelo uso tridimensional do
movimento e as contorções do torso, ela passa a pertencer à falange dos caboclos do mato. Os caboclos de
pena da região norte trazem consigo o contexto da floresta amazônica, e com eles vêm as mitologias locais e
suas relações com os animais, as plantas, a natureza.
Mariana aprende a voar para outro mundo
para trazer os segredos da cura
e no ritual aparece como uma arara
vermelha e azul.

No livro Los Chamanes de la prehistória, logo no primeiro capítulo os autores descrevem característi-
cas comuns dos xamãs de diversas regiões do planeta, nos aproximando do universo das pinturas rupestres
pelo prisma de que elas se relacionam com os xamãs de diferentes culturas, já que o estado alterado da
consciência que as gerou é um ponto comum tanto nas cavernas da África como nas da Europa. Segundo os
autores, as investigações neuropsicológicas realizadas em laboratórios detectaram três estágios de consciên-
cia alterada, como um processo contínuo, chamado também de “transe” ou “estado alucinatório extremo”.
Estas três etapas não necessariamente ocorrem progressivamente: no primeiro estágio são vislumbradas
formas geométricas voadoras, em ziguezague, paralelas que se alargam, contraem e se expandem, se movem,
se dissolvem em cores vivas que se constelam em torno da pessoa. Muitos grupos interpretam estas formas
dando-lhes atributos da natureza como movimento de astros, encaixando-os em uma cosmogonia prévia.
Numa segunda etapa, os xamãs se esforçam para perceber nestas formas objetos do dia a dia, carregados de
simbolismo religioso ou emocional. Já o terceiro estágio é alcançado por meio de um torvelinho, o indivíduo
entra por um túnel de imagens circulares em movimentos de redemoinho. No meio deste processo, o xamã
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então observa suas primeiras alucinações em forma de pessoas, animais e outros elementos.
Quando sai, ao final deste túnel, se descobre no estranho mundo do transe: os monstros, os huma-
nos e o entorno são extremamente reais. As imagens geométricas estão sempre ali, sobretudo na periferia
das figuras humanas. Estas imagens são como projeções em uma tela na parede ou no teto, como quadros
tridimensionais que se transformam, por sua vez, em formas vivas. Neste estado, o indivíduo sente que pode
voar e se transforma em um pássaro ou em outro animal.
Curandeira como arara
parteira como cabocla
guerreira como princesa
Entre o mar e a selva
subindo e descendo o rio
encontrou a sua moradia definitiva
onde tem a floresta nativa.

O xamanismo de Mariana pode estar associado com os mais antigos xamãs da China ou da Sibéria
que eram mulheres parteiras. A pesquisadora Karen Vogel toca em um ponto muito interessante, a relação
das xamãs antigas com a parteira, o que nos leva a melhor compreender a ligação da cabocla Mariana, xamã
indígena, que vai se ocupar do parto de mulheres com risco de vida. Primeiramente, ela chama a atenção que
a necessidade de parteira aumentou com a evolução dos humanos, cujas cabeças aumentadas pelo crescimento
do cérebro levou a um equilíbrio mais difícil durante a gestação com o fato de os bebês nascerem “imaturos”
e precisarem de mais cuidados se comparados com os animais. Coloca tal ocorrência, todos os tipos de de-
mandas sobre a estrutura social das mães que amamentam, devendo também aumentar as exigências sobre as
parteiras. As parteiras têm a experiência de pegar os bebês e, geralmente, em algum momento de suas vidas,
também engravidam e dão à luz. Esta dupla experiência, ao longo de milhões de anos, dá às parteiras um
vasto campo de conhecimento sobre a gravidez, nascimento e criação dos filhos. Este conjunto de conheci-
mentos inclui a sabedoria sobre o que fazer se algo der errado, ou alguém fica doente ou ferido. A importância
da evolução humana da tradição de parteira me parece ser a raiz lógica do xamanismo feminino.
Buscando uma definição para o xamanismo, a autora mostra-se um tanto ou quanto indecisa devido
às dificuldades da atividade, e assim completa o seu raciocínio: o xamanismo é um conceito que tem muitos
significados ligados a ele. Quanto mais eu estudo o xamanismo, mais eu amplio o uso do termo. Acho que
engloba uma visão de mundo tão profunda e, ainda, muito diferente das outras religiões do mundo. Acho
também que há muitas maneiras de ser um xamã e usar a energia xamânica. Todos nós temos momentos
xamânicos, como no nascimento e na morte.
Maria Lucia Nepomuceno, sacerdotisa do candomblé e da umbanda, trabalhando na periferia de
Rio Branco, Acre, relata como foi o seu primeiro transe, no qual a cabocla Mariana se manifestou diante do
perigo iminente da morte durante o nascimento de uma criança:
– Com uns treze pra quatorze anos que surgiu a cabocla Mariana na minha vida. Tinha uma senhora, uma
vizinha, ela estava ganhando neném, ela estava parindo mesmo em pé na porta, e ela chamou. Eu peguei
uma fralda e coloquei na cabeça e saí, e quando eu cheguei na porta a mulher estava em pé, segurando
assim (levanta os braços como se a mulher estivesse segurando na parte superior da porta) dizendo assim:
“Espere, que o neném está nascendo!” E ai eu não vi mais nada. E foi quando eu recebi pela primeira vez a
cabocla Mariana. Ela veio, mandou a mulher deitar, ela fez o parto. Um parto perigoso, porque era época de
friagem, ela mandou a mulher deitar, e ficou do lado de fora e a mulher pelo lado de dentro, deitada. E ela
fez o parto, limpou tudo direitinho, cortou o umbigo, e depois ela foi embora. Então, a minha iniciação foi
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assim, sempre em horas que tinha alguém correndo risco, ou algum perigo, eu incorporava.

Portanto, a associação entre xamanismo e o papel da parteira é trabalho do “curandeirismo” da


cabocla Mariana, momento bem que se sente convocada e aparece, sempre onde há “riscos ou perigos”,
como confirma sua sacerdotisa no Acre, porque ela se sente responsável pelo que ocorre nos momentos ex-
tremos da vida: o nascimento e a morte, como pensa a pesquisadora Karen Vogel. Revendo a importância
da mulher xamã turca, torna-se interessante perceber, também, a sua ligação com as antigas sociedades
orientais. Na China, por exemplo, a mulher xamã era associada com a parteira; o antigo ideograma chinês
Wu que significa “xamã” é apresentado por duas mãos (femininas) como se estivessem prontas para se-
gurar algo. Elas estão dispostas espelhadas em torno do caractere “I” que significa trabalho. Trabalho de
parto? Ideograma chinês Wu, xamã.
Outro aspecto que me chamou a atenção na história é o processo de transformação de Mariana e
consecutivamente, do seu enredo. O romantismo que a levou à ruptura com os modelos judaicos-cristãos-
islamitas, o encontro com o príncipe encantado, a conduza um outro patamar (não se repete aqui a história
que marcou a minha infância e que assisti no circo em Laje do Muriaé, cujo título conta o desfecho da
história: O Céu uniu dois corações). Da mesma maneira como Fernando surge, ele desparece da história.
O personagem Marinheiro Fernando aparece obviamente no tambor de mina e na umbanda, mas vem
com outros marinheiros, não mais diretamente associado ao romance vivido com a princesa, agora uma
cabocla “individualizada”. E, como reza a lenda, suas irmãs também fixam residência na floresta amazôni-
ca, reafirmando que a sua busca de amadurecimento como uma entidade feminina muda todo o quadro
familiar. Ela, que aparentemente não tinha nem “mãe” e parecia ter sido gerada entre as diversas “mulheres
anônimas do harém” e ela que nunca teve filho, também vai ser parteira e curandeira. Sendo parteira,
abre simbolicamente o caminho para suas irmãs também encontrarem suas identidades afroameríndias,
promovendo a cura do espírito e do corpo, dentro de um processo de amadurecimento como ser humano
que transcende a necessidade de se completar no seu oposto masculino, ao encontrar o seu verdadeiro
self. Ao final da história, Erundina, a irmã mais velha, e por último, Jarina, a irmã caçula, se juntam a ela.
Jarina passou muitos anos na praia acreditando que o pai, o Rei da Turquia, um dia viria buscá-la. Até que
um dia, sem nenhuma explicação, ele veio encontrar as filhas. Ora, aqui o Pai abandona também o dogma
do Deus único, judaico/cristão/muçulmano para se juntar às filhas que abraçaram os ritos afroameríndios.
Em vez da volta à sua terra natal, das conquistas e guerras e coisas de homem, ele se volta para o feminino
e, inversamente, se submete à proteção das xamãs que, em vez de manusearem suas espadas como o faziam
quando estavam em sua companhia, trabalham com as ervas para curar aqueles que padecem dos males do
corpo e do espírito. A explicação que me ocorre é que a única maneira de continuar vivo seria ele também se
transformar, uma vez que pela palavra de Deus transmitida e consagrada pela cultura judaico-cristã-islamita
ele estaria no céu ou no inferno, não mais existiria um self para desfrutar de danças e festas em companhia
de sua família turca/indígena/negra/brasileira. A última parte do texto, pontuo com a linda toada cantada
pela Mãe Rita do Centro de Umbanda (T.EU.C.Y.):
O seu pai é rei
a sua mãe ela é rainha
o seu castelo é de cristal
a sua barquinha é de sapê
e a estrela que alumia os oceanos
é ela a cabocla Mariana.

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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

A toada, sintetizada de maneira bela, embora pertencente originariamente a uma nobre turca, pro-
prietária de castelo de cristal (seria uma alusão aos azulejos brilhantes que imitam vidro e as fontes espel-
hadas dos seus castelos?) revela que ela opta pela itinerância do barco que vagueia de uma margem a outra
sem rumo certo porque, generosa, aguarda o momento da ação de misericórdia aos humanos necessitados.
Como andarilha sobre as águas ou voando sobre as matas como arara, prefere o teto indígena de caboclo,
das folhas de sapê; trocando a estirpe de uma fidalguia congelada no tempo pela volatilidade daqueles que,
depois de rumarem pelos desertos e montanhas derramando o sangue alheio em nome de um credo único e
salvador, encontram a imortalidade definitiva entre a floresta e o rio, ou junto à areia do mar. Por isso ela é
uma estrela capaz de iluminar o além mar.

A criação de uma performance por um diretor?

Compor esta história, reunindo os vários materiais, foi algo que me tomou completamente. Uma
vez concluída, eu queria contá-la imediatamente. A cada amigo que encontrava, eu começava a lê-la. E
depois, não contente, comecei eu mesmo a operar uma sonoplastia, criando o clima que julgava adequado
para cada cena. Pedi a outras pessoas para lerem, enfim queria produzir este material como peça de teatro.
A esta altura já tinha um longo título: A História de Dona Mariana, Princesa Turca, Cabocla Curandeira,
Arara Cantadeira, uma radionovela em ondas curtas e longas. Por fim, tomei coragem e me inscrevi no VIII
Encontro de Performance e Política das Américas de 2012.
A construção da performance me trouxe alguns desafios e muitas descobertas. A única experiência
com performance solo acontecera há dois anos. Em 2010, eu havia sido convidado para fazer uma perfor-
mance no Colóquio internacional de arte contemporânea e museus: Transversalidades Poéticas e Políticas
em Porto Alegre, em agosto de 2010. Depois de hesitar eu concordei. Mas só consegui saber o que faria,
quando recebi a correspondência com a programação do evento e o meu nome fazia parte mesmo de uma
sessão de performances intitulada Fala do Artista . A proposta da performance escrita soou-me como a
questão da palavra do artista e a tomei no sentido literal. Levou-me ela a uma grande reflexão desde que
aprendi a falar, e como fui me identificando com a arte e os “eus” que começaram a falar dentro de mim
como expressões artísticas: o poeta, o pintor, o cartunista, o dramaturgo, o diretor, o ator.
Fiz uma apresentação em power-point a partir das grandes transformações sofridas em minha vida,
culminando com a iniciação às culturas africanas, das quais estive próximo desde os tempos de menino. Eu
me sentia à vontade deste jeito, ser didático a respeito da minha própria vida. Mas eu já havia entrado em
contato com o que Michael Kirby chamou de autoperformance ou selfperformance . Naquele ano, havia vis-
to, também, a performance Leitura de um Guru, de Lúcio Agra, no ENAP – Encontro Nacional de Antro-
pologia e Performance em São Paulo, que também apresentava seus materiais pessoais de forma coloquial
para contar suas próprias histórias, inventadas ou não. O fato de usar imagens diretamente retiradas do meu
trabalho de desenho da adolescência ou mesmo dos filmes 8mm da minha época de estudante universitário,
que recuperei e digitalizei para a performance junto com outros documentos resgatados de minhas distintas
fases de encontro com as artes, tornava a performance extremamente pessoal, como a informalidade das
minhas aulas, ou ainda como uma contação de história entremeada com momentos de franqueza de uma
conversa com um analista: eu me expunha.
No processo de criação para a minha segunda performance, cheguei por momentos a me perguntar
se a performance que eu estava querendo criar com Mariana teria algo a ver comigo no sentido pessoal,
uma espécie de aventura do meu eu, meu lado feminino, estas indagações contemporâneas sobre o criador
124
e sua obra, como um prolongamento de questões subjetivas. Mas, vi que não seria por aí o meu foco. Meu
ponto de partida era outro, e num certo sentido este novo trabalho me remetia ao universo do contador de
histórias, e o sentido da especulação biográfica foi abandonado por completo. Entretanto, alguns aspectos
formais da outra performance haviam me incitado: a projeção de vídeo e a utilização dos meus próprios de-
senhos conjugados com minha narrativa, a utilização do microfone era algo de que também havia gostado.
Confrontei-me com algumas questões para conceber esta nova performance que se aproximava mais da
linguagem do teatro do que propriamente da conferência ou da sala de aula, como a anterior.
1) Qual é a história? E como apresentá-la? O texto foi concebido como uma poesia. Ao pensar em
fazer esta performance, entretanto, eu não me via lendo o texto, durante quase meia hora e, também, não
queria recitar o texto como uma contação de história tradicional, enclausurando uma narrativa que era
mais poética do que naturalista em uma espécie de monólogo. Não queria transformar esta história em algo
propositadamente teatral, com pausas dramáticas e entonações enfáticas. Uma narrativa mais cool também
não seria o caso, uma vez que eu estava totalmente envolvido com as peripécias do enredo e, principalmente,
com as transformações do seu personagem principal. Optei, então, por criar uma espécie de novela ra-
diofônica, em que a história chegasse ao ouvido do público de forma clara, objetiva, e que me desse liberdade
para manipular outros elementos durante a narrativa. Procurava um tipo de apresentação durante a qual eu
pudesse criar uma sequência de ações com objetos do culto de Mariana, trabalhando uma espécie de narra-
tiva paralela com meu corpo e a manipulação dos objetos em consonância com a história, não uma simples
ilustração da gravação, que foi feita num estúdio profissional. Colegas acharam que mudei pouco de tom da
voz na gravação, que fui pouco dramático. Talvez pudesse dar mais ênfase a determinadas passagens, mas
fiquei feliz com o resultado pois queria algo mais contado, conversado, às vezes levemente dramatizado, com
uma discreta ironia em algumas passagens, seguindo um pouco o que aprendi com Dona Zefa e sua nar-
rativa minimalista, antiteatral, despretensiosa, de forma a não induzir o envolvimento emocional a priori,
mas informar e deixar que a plateia possa, por ela própria, formular conceitos e sentimentos sobre a história.
Buscava, sempre, uma narrativa épica.
2) Qual é o espaço conveniente para o que quero fazer? Uma performance solo, criada na solidão
de nossas considerações, sofre mudanças consideráveis na medida em que a encenamos. Portanto, imaginei
algo como um espaço de arena semicircular, com uma cortina onde seriam apresentados vídeos e fotos,
enquanto eu iria manipular os objetos, levando-os para atrás da cortina para criar a sombra. No primeiro
ensaio aberto, percebi que estava trancado nos quatro cantos do palco. Não via a plateia, atuava para mim
mesmo, segurava os objetos, mas eles não tinham vida. Quantas coisas! A simples ação de pegar um objeto
denota, conota. Como pode também ser branca, como a de uma arrumadeira transferindo uma coisa de um
lugar para o outro para tirar o pó. Depois de alguns ensaios, percebi que o espaço deveria ser circular. O
espaço circular acabou sendo limitado por pequenas velas e os objetos a serem usados na ação. Mesmo com
uma cortina branca tangenciando o círculo mais para o fundo, eu não saí mais de cena mesmo quando ia
manipular os bonecos (as estatuetas de Mariana, Fernando e da cabocla Erundina) e demais objetos. Uma
amiga me contou que em Java, uma das possíveis origens do teatro de sombra, o público pode escolher ou
ficar na frente para ver a sombra ou ficar atrás para ver o manipulador e os atores fazerem os diálogos da
cena, cuja sombra é projetada na tela. Não havia chegado a este requinte pois meus espectadores ficaram
sempre na frente da tela, inclusive porque havia projeções com letreiros no começo e no final do espetáculo.
Ou seja, como performer abandonei o palco italiano, mas como diretor de cena, não.
3) Qual era a iluminação precisa? A iluminação do ambiente foi outra escolha crucial. Para criar a
sombra, precisaria de uma iluminação que me permitisse ter luz e projeção das figuras. Inicialmente, pen-
sava em desaparecer completamente para que os objetos pudessem ganhar forma, como no teatro clássico
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da sombra. Decidi experimentar a iluminação com a vela, com a lamparina e com a lanterna de pilhas.
Optei por usar todas elas para, em cada momento, criar um clima distinto. Ao escurecer a sala, os objetos
ganharam destaque quando iluminados. Pensei, por um momento, que apenas os objetos iriam contar a
história. Mas não funcionou; depois percebi que tudo era importante, não somente quando os bonecos
criavam vida, mas no espaço entre uma cena e outra. Apenas na cena final havia um refletor sobre mim,
demarcando o final da performance com o blackout do mesmo. Cada apresentação teve uma iluminação
diferente e creio que, pelo fato de o teatro de sombra ser uma técnica pouco conhecida, quando apresentava
a peça em teatro ou em espaços alternativos sempre aparecia um iluminador que também criava comigo,
e, no final, compreendi que para o solo performance funcionar eu dependia de uma equipe bem antenada
com a proposta. Pois eu, também, improvisava bastante. E, a cada performance, ia descobrindo novas coisas
embora mantivesse uma sequência de ações em sincronia com a minha própria narração gravada.
4) Que objetos usar? Os objetos estariam visíveis ou apareceriam magicamente? Sempre no meu
teatro gostei de revelar o truque, então a ideia de os objetos estarem escondidos também me levaria para fora
de cena para ir buscar o objeto, o que não me parecia interessante. A opção de colocá-los no chão me pareceu
ideal, pois remetiam à realidade do altar do chão e permitia à plateia observar desde a passividade do objeto
à intenção épica do performer em dar vida e mesmo interagir com a estatueta de gesso, transformando-a em
boneco vivo.
5) Que roupa vestir? Para o começo da performance pensei em me vestir como um dervixe, um
casaco comprido preto, aberto, uma saia rodada branca e uma camisa também branca. Incialmente me vesti
com manga curta, depois passei a usar uma camisa de manga comprida e achei que compunha melhor. Eu
mesmo criei um chapéu no formato de cone, só que, em vez do original em lã, fiz de bucha, desta que se
usa para se ensaboar. E segui o modelo de dervixe ao tirar o manto preto, quando ficava com a roupa toda
branca que facilmente era associada com a mãe de santo quando colocava o cordão de contas. Logo, era
um único figurino sendo transformado; a saia, por sua vez, era colocada em determinado momento e em
um único movimento virava as asas brancas de uma arara. Por baixo, havia uma calça branca, desta que no
candomblé é chamada de roupa de ração.
6) Devo dançar como Dona Mariana? Como vão ser as danças? Que música vou usar? No meu
trabalho sempre submeto todas as ideias, por mais brilhantes que pareçam, ao exercício da prática para
ver se funcionam. Não quis usar as músicas dos dervixes, pois acho que ficaria ridículo querer imitar uma
performance deles e poderia parecer uma cena de pastelão, cômica. Tudo veio naturalmente ao ouvir
o CD Music of the Ottoman Empire: Turkish Classical Music concebido e executado pelo maestro turco
Erkan Dedeoglu com uma orquestra de instrumentos do Oriente Médio, norte da África e de algumas
partes da Ásia. Comecei, então, a dançar em um processo de treinamento para me aproximar da história,
do espírito turco, justamente as músicas que me haviam inspirado para compor o longo poema narrativo.
O treinamento de dança tendo sido incorporado na performance, fui aos poucos experimentando aqueles
movimentos que vinham de minha memória, não importando se eram dos dervixes, dos caboclos, das
mães de santo da umbanda, do candomblé ou do tambor de mina, e foi nascendo, assim, uma espécie de
sequência de danças sem, contudo, terem sido necessariamente organizadas como coreografia ou mesmo
uma partitura cênica.
7) Que outros aparatos técnicos devo usar? Queria usar também a tela das sombras para projetar o
documentário que havia feito na minha pesquisa, e assim o fiz, com uma breve introdução incluindo tam-
bém os desenhos executados a partir das imagens de livros e fotografias. Seria uma forma de introduzir ao
público a pesquisa, a história, o processo saído da realidade mas, ainda, muito próximo do imaginário. Ao
final da história, voltava ao documentário quando pela primeira fui chamado pela Dona Mariana, incorpo-
126
rada por um pai de santo em Soure, na Ilha de Marajó, que adivinhou muitas coisas a meu respeito e eu lhe
pedi, então, permissão para contar sua história.
Ainda me é difícil avaliar o resultado das apresentações. Sei que cada dia conto melhor a história,
e cada dia vejo o quanto tenho ainda para aprender. Às vezes me pergunto, onde quero chegar fazendo esta
performance? Afinal, eu não me preparei nem fisicamente nem psicologicamente para atuar assim. O fato
é que a performance me despertou para o fato da importância da dança para o meu próprio corpo. Em um
diário que as vezes faço, anotei sobre o treinamento para me manter atento e sem dor no corpo, que agora
me acompanha independentemente da performance.
Ontem, depois de três dias no solo africano, pela primeira vez consegui dançar. Na realidade danço
apenas duas músicas, sempre as mesmas. A primeira, um pouco mais curta, dura cerca de 5 minutos e a se-
gunda, uns 8 minutos. Elas aparecem seguidas no CD. Na primeira, uso 3 minutos no meu solo de Mariana
com alguns movimentos de giro, tipo dervixe, que faço. Na segunda não tenho coreografia alguma e a música
apresenta pelo menos quatro andamentos distintos, com ritmos próprios. É como se não fossem a mesma
música, como se fossem uma grande colagem mas que, de alguma forma, uma força estranha as interligasse, e
algumas sequências se desdobram em outras em surpreendentes ritmos. Não consigo memorizar a sequência,
nem acertar alguns movimentos para encaixar. Por isso mesmo, me deixo levar pela pura experiência corpo-
ral ao procurar me relacionar com a música. Ora são meus pés e pernas que guiam o meu movimento, ora
parecem ser os braços, ora o torso. A verdade é que cada dia me sinto mais confortável em dançar a música,
apesar de não ter me preparado para ela. Mas é como se fosse rompendo, a cada dia, a fronteira do meu “corpo
que transporta a cabeça” para um corpo mais solto, descompromissado com ideias de movimentos e propício
para uma experiência mais intensa com o que sou naquele momento, e que ainda pouco conheço sobre onde
posso chegar no espaço. À medida que me solto, sem pensar, consigo realmente me sentir no espaço no exato
momento e tenho sensações novas de uma estranha alegria ao cruzar a fronteira do que sei e entrar num ter-
ritório sobre o qual não sei quase nada sem a sensação do erro, do errado.
Na performance de Mariana, com todas as dúvidas que ainda aparecem quando entro em cena e
começo a performance, parece que é a coisa mais sensata que faço em toda a minha vida ao acompanhar a
minha voz contando esta história que tanto me fascina, indo além do que meu corpo pode ir em expansão
e contração do movimento; em ritmo, ora acelerado, ora suave, no giro, e, na concentração para sentir e ser
preciso em cada parte da cena, não sendo automático, manter a plena atenção, mas ter clara a sequência de
cenas. Um exercício, uma meditação, uma oração.

Referências

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bor de mina”. Revista Letras da Universidade de Aveiro (PO), v. 25, 2007, p.5.
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Planeta Editorial, 2010.
LIGIÉRO, Zeca. Corpo a corpo: estudos das performances brasileiras. Rio de Janeiro, Garamond, 2011.
LIGIÉRO, Zeca. Muiraquitã, direção. Produção NEPAA-UNIRIO, 2010, resultado do Prêmio Interações
Estéticas pela FUNARTE (2010) disponível na biblioteca virtual do Instituto Hemisférico de Performance
e Política das Américas – NYU http://hidvl.nyu.edu/video/003674828.html
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
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KIRBY, Michael. “Autoperformance issue, an introduction”. In: The Drama Review, New York University,
v. 23, n. 1, 1979.
POULAIN, Jacques. De l’ homme. Eléments d’anthropobiologie philosophiques du langage. Paris; Editions du
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PRANDI, Reginaldo. Encantaria brasileira: o livro dos mestres, caboclos e encantados, Rio de Janeiro, Ed.
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QUARTA, Roberta. “Turquish shadow theatre: Karagoz – comicity and nomadismo” In TOLlEDI, Fabio.
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SANTOS, Keila Andreia Cardoso dos. O navio, a esquadra, os faróis e a espada: a performance de Toya
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curso de Artes Cênicas da Universidade Federal do Pará.
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2003, In: http://www.motherpeace.com/karen_female_shamanism.html

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http://en.wikipedia.org/wiki/Wu_%28shaman%29
http://www.oei.es/noticias/spip.php?article7344%C2%A0

128
Musicologia e transculturação

Tiago de Oliveira Pinto


Titular da cátedra de Estudos Transculturais da Música das Universidades Franz Lizst
de Weimar e Friedrich Schiller de Jena, Alemanha, e professor do Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social – USP

“Não somos mais prisioneiros da nossa história.”


Barack Obama 1

A transformação de ruídos/sons em sonoridades/música é um processo cul-


tural. A produção de sonoridades faz parte das atividades humanas desde o início
da evolução da humanidade. De que forma o som deixa de ser ruído para se tornar
sonoridade? E quando é música? Como podemos entender o procedimento complexo
com que sonoridades são construídas e acrescidas de significados a partir da noção de
transculturação? Estas são as questões que norteiam as propostas teóricas apresenta-
das neste ensaio.

A crise da musicologia

Dos fenômenos sonoros produzidos pelo homem, a música está entre os mais
complexos e diferenciados2, tanto em relação à sua diversidade cultural – não há povo
nem sociedade desprovidos de música -, quanto ao desenvolvimento das muitas histórias
da música em todo o mundo. Como objeto de pesquisa a música é o assunto principal
da musicologia histórica, da etnomusicologia, da musicologia sistemática e dos estudos
de música popular.3 Destas abordagens, a musicologia histórica é a precursora e protago-
nista principal da moderna ciência acadêmica da música desde meados do século XIX.

1
Uma das traduções livres, publicadas pelas mídias no Brasil e alhures das palavras Today America choses to cut loose
the shackles of the past (Hoje a América escolhe soltar os grilhões do passado), pronunciadas durante o encontro com
o presidente de Cuba, Raul Castro, na Cidade do Panamá, em 10 de abril, 2015.
2
A música é uma das inúmeras manifestações sonoras do ser humano. O compositor e pesquisador de sons canadense
Murray Schafer faz um levantamento geral daquilo que chama de Soundscape (Paisagem Sonora) para designar a am-
bientação sonora do homem. Apresenta um levantamento sistemático de todas as manifestações sonoras que represen-
tam o meio ambiente sonoro do mundo, causado pela natureza e pelo próprio homem (SCHAFER, 1997).
3
Para uma introdução aos diferentes ramos da musicologia acadêmica, ver os verbetes correspondentes em The New
Grove Dictionary of Music (Londres, 1998-2005). Um balanço da etnomusicologia no Brasil é feito, entre outros, no
“Dossiê Etnomusicologia“, São Paulo, Revista USP, nº. 77, 2008.
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
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A partir daí e durante pelo menos um século, a musicologia histórica definia a história da música (escrita e
“erudita”) como parte de uma história oficial da arte do mundo ocidental, portanto representada por obras es-
pecíficas cujo conjunto se integra ao patrimônio cultural de uma nação e suas instituições. Até mesmo Mário
de Andrade, em sua Pequena História da Música (1936), obedece ao padrão da historiografia musical do seu
tempo, conectando o desenvolvimento das técnicas musicais a percursos históricos, essencialmente europeus,
e seus desdobramentos, inclusive no Brasil.
Desde que estabelecida nas universidades com cadeiras próprias, fica evidente que inúmeros estilos
e práticas musicais existentes no mundo não se encontram representados no campo de estudo da musicolo-
gia histórica. Fundamentalmente filológica na sua metodologia e regida por concepções estéticas peculiares,
a musicologia histórica só podia se ocupar de um recorte muito limitado da produção musical do mundo:
a escrita e “da arte”. Com que métodos, porém, tratar da música popular que não depende de um sistema
regrado musical e nem dos cânones estabelecidos? De que maneira lidar com tradições orais transmitidas
de uma geração a outra sem o apoio de uma escrita musical, ou seja, independente do que em inglês é de-
nominado de sheet music para a musicologia histórica? Ou então, como avaliar a música intimamente ligada
a práticas que não permitem apreciar e analisar o fenômeno musical unicamente enquanto sonoridade?
O que fazer com as músicas orientais, africanas etc, que funcionam de acordo com normas que não são
compatíveis com as orientações da musicologia histórica? Desta impossibilidade de a musicologia histórica
pesquisar música não europeia surgiu, no início do século XX, a etnomusicologia, inicialmente com o nome
de musicologia comparada (ou comparativa). Apesar de subdisciplina musicológica, a vertente comparada
dependia do amparo metodológico da etnologia. O antagonismo entre história e etnologia, presente nos dis-
cursos acadêmicos daquele período, alicerçou estas duas subdisciplinas da musicologia. No entanto, a partir
de meados do século XX, a crescente “cumplicidade” de história e antropologia foi aos poucos esvaziando
a dupla orientação da musicologia entre história da música (ocidental) e as tradições orais (não ocidentais).
Não um afastamento, portanto, mas a vinculação transdisciplinar entre história e antropologia levou à con-
trovérsia epistemológica da musicologia e, desta forma, à sua mais recente crise:
1. A história da música entendida como “universal”, quando somente voltada à música ocidental, ou
“geral”, quando preocupada exclusivamente com a música de concerto ou chamada erudita, deixando
de lado a música popular, o rock etc, necessariamente não cumpre com o que se propõe no seu título.
Este é um dos motivos pelos quais programas de música no Brasil optaram por chamar os seus cursos
de história da música de “Música, Cultura e Sociedade” ou semelhante. 4
2. A etnomusicologia, viés da musicologia focado nos elementos “específicos” dentro do relativismo
dos diferentes contextos culturais, ignora que o fenômeno musical estudado representa, muitas vezes,
fatos de grandeza maior, portanto de relevância antropológica mais abrangente, ao mesmo tempo que
se exime de participar de uma discussão contemporânea sobre música, quando leva o seu título à risca,
voltando-se à procura de etnicidades nas tradições musicais, dando mais ênfase aos que a produzem, e
não necessariamente ao fenômeno musical mais específico. 5

4
Recentemente Paulo Castanha criticou o paradoxo dos cursos de musicologia histórica no Brasil, em especial quando se referem ao curso de
História da Música, por se tratar de um curso cujo título e conceito se encontram “em declínio” (CASTANHA, 2015).
5
É consenso coloquial entre antropólogos que “etnografias da música” realizadas por etnomusicólogos muitas vezes não dispõem de instru-
mentos teóricos de primeira mão para tal. Assim, como verificado por Castanha (2015), que aponta para a deficiência em teoria historiográfica
na formação e na pesquisa dos historiadores da música no Brasil, também a etnomusicologia sempre ficou muito aquém da produção teórica na
antropologia, à qual se vincula utilizando-a, na melhor das opções, com defasagem de tempo e portanto não à altura da teoria e dos conceitos
antropológicos mais atuais.
130
O contínuo demarcado pelas duas vertentes da pesquisa musical, a “história geral da música” (musi-
cologia histórica) e os “estudos etnográficos da música” (etnomusicologia), se reflete na caracterização destas
formas distintas de estudar a música nos seus respectivos contextos históricos e culturais.

Musicologias

História geral da música -> <- Estudos etnográficos da música


eurocentrismo <- -> post colonial studies
história escrita <- -> história oral
etnocentrismo <- -> relativismo cultural

Após um século e meio de estudo de diferentes períodos da história da música, de biografias de


compositores e de suas obras, a musicologia fatalmente se esvaziaria, se estivesse definitivamente atada a um
esquema antagônico rígido como o delineado no quadro acima. Não resta dúvida de que a atual crise musi-
cológica decorre principalmente desta camisa de força conceitual. Ela fica especialmente clara na dicotomia
entre etnocentrismo 6 e relativismo cultural.

Transculturación

É considerando este quadro geral da crise das duas principais vertentes epistemológicas da musico-
logia (a histórica e a antropológica), que um estudo transcultural da música ganha real importância. Cun-
hado pelo antropólogo, folclorista e musicólogo cubano Fernando Ortiz (1881-1969) em 1940, o termo
“transculturação” surgiu com base no contexto histórico de Cuba, cuja economia se funda, a partir do
período colonial, nas monoculturas do açúcar e do tabaco, mantidas graças à mão de obra escrava prove-
niente do continente africano. 7
Além de buscar um termo antropológico, que melhor traduzisse a dinâmica cultural do seu país,
Ortiz pretendia uma oposição conceitual ao termo “aculturação”, como desenvolvido e adotado nos estudos
afroamericanos a partir dos anos 1930 por Melville Herskovits (1895-1963) e seus seguidores. Ortiz critica o
termo “aculturação” por fazer subentender que determinada cultura, quando dominada, se rende ao ditado
da cultura dominante, assumindo suas práticas e internalizando seus significados. Diferentemente dessa
visão, transculturação denota que o processo de embates socioculturais não se dá de maneira tão unilinear,
tão subjugado a relações de poder. A dinâmica do entrelaçamento de elementos culturais, de mentalidades e
de técnicas de saber é muito mais complexa, independendo de ordens regidas por grupos dominantes ou por

6
Entendo etnocentrismo dentro de uma definição psicológica, conforme adotada nas ciências sociais e políticas. Caracteriza uma postura pautada
por convicções pre-concebidas em que a escala de valores reflete conceitos culturais próprios, obedecendo unicamente a uma visão de mundo
individualista. Ver ambém James G. Kellas: The Politics of Nationalism and Ethnicity, MacMillan, London, 1998, p. 6: “Ethnocentrism is basically
a psychological term, although it is also used generally in the study of society and politics [...]. It is essentially concerned with an individual’s
psychological biases towards his/her ethnic group, and against other ethnic groups” (Etnocentrismo é basicamente um termo psicológico, embora
seja também geralmente empregado no estudo da sociedade e da política [...]. Está ele essencialmente afeito às parcialidades psicológicas de um
indivíduo relativas ao seu próprio grupo étnico e aos preconceitos contra outros grupos étnicos).
7
Há, no Brasil, uma região que se assemelha às condições históricas cubanas: o Recôncavo Baiano. Além do açúcar, a região também é responsável
pelo melhor tabaco que se produz no hemisfério sul desde o século XIX. A cultura local do Recôncavo, com suas práticas religiosas, suas festas e
música, pode também ser interpretada a partir dos conceitos teóricos de Ortiz. Para as tradições musicais no Recôncavo Baiano ver, entre outros,
Oliveira Pinto (1991), Marques (2006) e Graeff (2013).
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
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mecanismos de adaptação do fraco ao forte. Está aí a força motora da sua subversão, da sua resistência e do
seu embate transformador, que atinge a realidade sóciocultural como um todo. A história de Cuba retrata es-
tes movimentos transculturais que atravessaram todas as camadas sociais, corromperam os dogmas vigentes,
sejam políticos ou religiosos, fazendo surgir uma cultura que constantemente reordenou os seus elementos
formadores, recriando e assim também renovando ordens e conceitos estéticos. Em “transculturação” Ortiz
encontrou um termo que compreende a processualidade dos fenômenos socioculturais e que por isso tam-
bém inclui a profundidade histórica dos fatos, dos saberes implícitos e dos artefatos culturais. A concepção
teórica de cultura, que se ajusta ao conceito “transculturação”, pertence assim tanto à antropologia quanto à
historia. 8
Hemos escogido el vocablo transculturación para expresar los variadísimos fenómenos que se originan en Cuba por
las complejísimas transmutaciones de culturas que aquí se verifican, sin conocer las cuales es imposible entender
la evolución del pueblo cubano, así en lo económico como en lo institucional, jurídico, ético, religioso, artístico,
lingüístico, psicológico, sexual y en los demás aspectos de su vida. La verdadera historia de Cuba es la historia de
sus intrincadísimas transculturaciones (ORTIZ, (1940) 1983). 9

O título da obra em que Ortiz discorre, pela primeira vez, com mais detalhes sobre transculturação
é Contrapunteo cubano del tabaco y el azucar (Contraponto cubano do tabaco e do açúcar ), (ORTIZ, 1940).
Chama a atenção que enquanto o subtítulo original da obra Advertencia de sus contrastes agrarios, económicos,
históricos y sociales, su etnografía y su transculturación (Advertências de seus contrastes agrários, econômicos,
históricos e sociais, sua etnografia e sua transculturação) menciona, por último, o conceito teórico central
do livro, o início do título principal, contrapunteo, assinala um momento que também pode ser entendido
como musical (contraponto). Na música polifônica, “contraponto” é uma técnica de composição que designa
o movimento contrário de diferentes vozes ou partes instrumentais. Como exemplo, pode-se tomar a obra
musical de Johann Sebastian Bach, que apresenta momentos magistrais da técnica do contraponto musical
barroco. Parece que Ortiz, ao escolher Contrapunteo para o título da sua obra, termo ainda inexistente na
terminologia sociológica, se fez guiar por esta polifonia construída por movimentos contrários das diferentes
partes, mas que mesmo assim, resultam em algo coerente e de audição aprazível. Transculturação, portanto,
já vem vinculada, desde o início do seu emprego, a metáforas e elementos musicais. Em Contrapunteo Cuba-
no há, de fato, duas vozes principais que entram em constantes contrapontos. Ligadas ao açúcar e ao tabaco,
não poderiam se apresentar de forma mais contrária: o primeiro branco e doce, o outro escuro e amargo.
A primeira edição cubana de Contapunteo Cubano foi prefaciada pelo antropólogo Bronislaw Ma-
linowski (1884-1942), que já mantinha correspondência regular com Ortiz e que o encorajou a submeter o
novo termo à discussão antropológica:
Todo cambio de cultura, o como diremos desde ahora en lo adelante, toda transculturación, es un proceso en el
cual siempre se da algo a cambio de lo que se recibe; es una “toma y da ca”, como dicen los castellanos. Es un
proceso en el cual ambas partes de la ecuación resultan modificadas. Un proceso en el cual emerge una nueva

8
A partir dos anos 1980 a dimensão filosófica do termo é discutida em trabalhos que dão preferência a ”transculturalidade“ (transculturalité/
Transkulturalität) e não a “transculturação” enquanto conceito. Ver os trabalhos de Jacques Poulain, Sorbonne, Paris, ou de Wolfgang Welsch,
filósofo da Universidade Friedrich Schiller de Jena, Alemanha.
9
Escolhemos o vocábulo transculturação para expressar os variadíssimos fenômenos que se originam em Cuba das complexas transmutações de
culturas que aqui se verificam, pois sem conhecê-los torna-se impossível entender a evolução do povo cubano, tanto no aspecto econômico quanto
naqueles institucionais, jurídicos, éticos, religiosos, artísticos, linguísticos, psicológicos, sexuais e nos demais aspectos de sua vida. A verdaddeira
história de Cuba é a história de suas intrincadíssimas transculturações. (ORTIZ, (1940) 1983).
132
realidad, compuesta y compleja; una realidad que no es un aglomeración mecánica de caracteres, ni siquiera un
mosaico, sino un fenómeno nuevo, original y independiente (MALINOWSKI, (1940) 1983).10

Na década de 1960, a musicologia fora de Cuba se apropria, pela primeira vez, do conceito trans-
culturação conforme definido por Fernando Ortiz. Provocado pelas circunstâncias geopolíticas, o embargo
a Cuba e a existência da cortina de ferro, desenvolveu-se um intercâmbio regular entre Havana e Berlim
Oriental, que mobilizou pesquisadores e musicólogos entre 1960 e o final dos anos 1980. O então douto-
rando de musicologia alemão Axel Hesse realizou pesquisas de campo em Cuba, onde, inclusive, entrev-
istou “Don Fernando”, forma carinhosa com que Ortiz era tratado pelos seus conterrâneos. De forma até
então inédita, a dissertação de Axel Hesse, Transmissions-Singen im kubanischen Spiritismus (HESSE, 1971),
aplica os conceitos teóricos de Ortiz em uma análise diferenciada do repertório religioso afro-cubano. Neste
trabalho o rigor analítico da musicologia alemã alia-se à hermenêutica da antropologia transcultural de
Ortiz. Axel Hesse é quem, pela primeira vez, busca uma definição de transculturação musical (Musikalische
Transkulturation), distanciando-se, à maneira de Ortiz, dos conceitos de aculturação da escola de Melville
Herskovits. Relevando um ou outro jargão cientificista do materialismo marxista pós-muro, o texto é bem
preciso na sua arguição. A seguir, uma síntese da definição de “transculturação musical” que apresenta:
Transculturação musical é um processo coletivo na cultura ou da prática musical [...] que acontece através de uma
seleção crítica [...], induzindo o surgimento de uma nova cultura musical, cuja marca de reconhecimento passa a
ser a não-identidade com determinados elementos ou com a soma das culturas de origem (HESSE, 1971).

É notável esta definição de transculturação musical de Axel Hesse, baseada na antropologia de Fer-
nando Ortiz, não só porque abre mão da ideia segundo a qual membros de uma cultura dominada necessaria-
mente ficam submetidos à cultura daqueles que os domina (aculturação), mas também por ignorar um certo
historicismo romântico das “raízes” da presença negra no continente americano, já em voga e reproduzido
pouco depois, com grande sucesso, no romance de Alex Haley Roots: The Saga of an American Family (1976).
Finalmente, ao sublinhar a “não identidade” da cultura contemporânea com elementos anteriores e suposta-
mente formadores no seu processo de transculturação, a definição de Hesse propõe uma abordagem realmente
nova e definitivamente distante dos conceitos antropológicos comuns daquele período. A partir deste e dos
estudos cubanos, como os de Argeliers Leon (1959), Maria Elena Vinueza (1986) ou Olavo Alen Rodrigues
(1994), entre outros, e além do trabalho monumental do próprio Fernando Ortiz sobre os instrumentos musi-
cais afro-cubanos (Ortiz, 1954), a musicologia passou a contribuir enormemente com os estudos culturais, ao
mesmo tempo que a música confirmava ser um campo privilegiado para os estudos transculturais.
Os resultados do trabalho de pesquisa de Axel Hesse passaram largamente despercebidos pela mu-
sicologia alemã, que até 1989 se encontrava atrelada a uma disputa ideológica interna de um país dividido
entre dois sistemas mundiais. Junta-se a este fato também a primazia norte-americana no campo da etno-
11
musicologia na segunda metade do século XX . A ausência total do reconhecimento conceitual de uma
transculturação musical se estende, assim também, à musicologia internacional.

10
“Toda mudança de cultura ou toda transculturação é um processo no qual sempre se dá algo à mudança daquilo que se recebe; é um toma lá
da cá, como dizem os castelhanos. É um processo no qual ambas as partes da equação resultam modificadas. Um processo do qual emerge uma
nova realidade, composta e complexa; uma realidade que não é uma aglomeração mecânica de caracteres, nem sequer um mosaico, mas sim um
fenômeno novo, original e independente.” (Malinowski, (1940) 1983)
11
A primazia conceitual norte-americana na etnomusicologia, que também é, em grande parte, internalizada no Brasil, fica evidente nos trabalhos
sobre a história desta (sub)-disciplina. Trabalhos recentes (de autores americanos) sacramentam o vínculo preponderante da etnomusicologia com
a academia anglo-americana, quando a história retratada e os trabalhos comentados pertencem unicamente a este domínio (ver, por exemplo,
RICE, 2014).
133
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

Música

O principal desafio que se dá para a musicologia, através de uma abordagem transcultural, é a am-
pliação do seu leque epistemológico e metodológico. Os dois parâmetros, acústica e cultura, ou seja, som e
sonoridades, respectivamente, estão presentes na busca de uma definição de música ao longo da história da
musicologia enquanto disciplina acadêmica (OLIVEIRA PINTO, 2001). Entre as várias definições, as mais
citadas na musicologia são a histórica tönend bewegte formen (formas musicais em movimento), (HANSLICK,
1854), ou a antropológica humanly organized sound (sons emitidos pelo ser humano), (BLACKING, 1971).
Há, além destas, tentativas de encontrar um denominador comum para as diferentes atribuições utilizadas na
definição de música, apesar da dificuldade que existe em muitos idiomas de se traduzir o termo de forma eq-
uiparável. No verbete Musik do célebre Riemann Musik Lexikon (Dicionário de Música Riemann), seu autor,
o musicólogo Hans Heinrich Eggebrecht, adverte que dentro do rigor semântico com que é tratado, o termo
“música” se aplica apenas à tradição musical da cultura ocidental (EGGEBRECHT, 1967). Eggebrecht parte,
para esta sua afirmação, do conceito de música composta, portanto “feita”, um opus perfectum et absolutum,
conforme a ideia que surgiu a partir do século XVI, quando, na música ocidental, cada vez mais o composi-
tor fixava sua obra através da escrita. A definição de Eggebrecht, que restringe o significado do termo música
à tradição de arte ocidental, coincide com o uso que o antropólogo Claude Lévi-Strauss faz da música em
alguns dos seus textos mais importantes. Lévi-Strauss sugere que a exegese de mitos indígenas seja feita como
a leitura de uma partitura de uma sinfonia ou de uma ópera. Sempre que se refere à música, esta música é da
tradição ocidental e erudita.
As obras dos compositores Bach, Wagner ou Ravel são muito importantes para Lévi-Strauss, porque
acredita, que ao abrir mão do mito como gênero cultural, o Ocidente encontrou na música dos grandes mes-
tres, composta e anotada, a melhor maneira de preencher o vácuo deixado pelo mito. Capítulos e subtítulos
da sua obra monumental em quatro volumes, a Mythologiques (LÉVI-STRAUSS, 1964-1972), são termos
da música ocidental: Ouverture, Tema e variações, Allegro etc. Lévi-Strauss reconhece na natureza uma gama
infinita de ruídos, da qual o homem faz uma seleção para produzir sua música. A passagem, portanto, de
ruídos à música, seria uma representação viva da transição da natureza à cultura. Já para o filósofo e econo-
mista Jacques Attali, ruídos são essenciais para entender o desenvolvimento histórico e social do homem.
Semelhante a Lévi-Strauss, Attali não analisa a música diretamente, mas constrói suas análises sociais e
econômicas a partir e através dela. A música daria estrutura aos ruídos, assim como a sociedade dá sentido à
vida do homem e se desenvolve paralelamente à sociedade, sendo disposta conforme esta, e muda quando há
transformação das condições sociais (ATTALI, 1977).
Também fora do campo mais imediato da academia, deparamos com definições de música. Uma de-
las, interessante, se encontra na fala do protagonista principal do romance Doktor Faustus de Thomas Mann
(1955), o compositor Adrian Leverkühn. Para Leverkühn, é tarefa do ouvinte, ao longo da sua escuta, “com-
12
preender toda sonoridade de modo a organizá-la” mentalmente. Leverkühn entende música enquanto con-
figuração sonora, fundamentalmente “organizada”. Difere esta da maioria das definições de música porque
o protagonista do romance de Mann não se prende, com esta definição, à obra e ao fenômeno musical em si
mesmo, em primeiro plano. Busca entender a música a partir daquele que percebe e que aprecia a respectiva
sonoridade. Portanto, a música se faz notar fenomenologicamente, ao mesmo tempo que suscita a construção
de determinadas ideias sobre ela. Em última instância, o ouvinte é o principal responsável pelo surgimento
(ou não) da música na sua mente: para quem não entende, ou não quer entender, até mesmo músicos ou

12
No original: Alles Klingende organisierend erfassen.
134
conjuntos profissionais – exemplos aleatórios: a London Symphony Orchestra, a dupla Milionário e José Rico,
a polifonia vocal das mulheres do povo Uagogo da Tanzânia etc –, não produzem nada além de ruídos. Já
a sonoridade emitida a partir de uma garrafa de plástico manipulada, percutida e amassada por Hermeto
Paschoal, significa, segundo este, música na sua acepção mais pura. Em suma, decide o que é música quem a
percebe, criando um conceito a seu respeito ao organizar mentalmente a respectiva sonoridade.
Um possível denominador comum para toda a prática musical, mesmo não necessariamente
designada como tal, se encontra representado em alguma forma de sonoridade. Fica evidente, por ex-
emplo, na definição que os Kamayurá do Alto Xingu atribuem à origem da música (maraka). Segundo
os especialistas deste povo indígena, maraka se insere na corrente sonora ihu, o que no plano mais geral
significa “todos os sons” (MENEZES BASTOS, 1978). Aqui, portanto, o substrato da produção musical
está expressamente vinculado ao fenômeno puramente sonoro.
Mas será que um possível predomínio da sonoridade, como no caso da concepção Kamayurá, pode,
em última instância, levar à “autonomia do som” na música? Esta é a pergunta explorada na recente filosofia
da música do filósofo Gunnar Hindrichs (2014). Hindrichs chega à conclusão de que som ou sonoridade,
utilizado para qualquer tipo de produção musical, já é som previamente trabalhado, material extraído e de-
stacado dos ruídos (e da natureza, conforme nos explicaria Lévi-Strauss), portanto feito e aprontado para se
tornar música e não para assegurar autonomia enquanto material sonoro. É este material sonoro, já cultural,
que serviria para a criação musical de toda espécie, ritual, artística etc.
Em geral, a transculturação musical desconhece a autonomia total e absoluta do som, inclusive porque,
em sendo música, sonoridades sempre fazem parte de um acontecimento performático maior. A importância
da mimesis – padrões de movimento como técnicas motoras (do músico) ou mecânicas (ao instrumento mu-
sical) – é intrínseca a toda manifestação musical. Uma excelente descrição disso se encontra novamente na
literatura. Desta vez, é Machado de Assis que ilustra o elemento mimético do ato musical. Música é sonori-
dade e performance, conforme mostra no seu conto O machete, de 1888. Nele, descreve uma apresentação
instrumental, de machete, uma viola de pequeno porte do músico Barbosa. Convidados presentes no sarau
da casa do violoncelista Inácio testemunham e se entusiasmam com a sensibilidade e com a virtuosidade do
tocador do pequeno machete. Machado de Assis enfatiza que a música que apresenta é “obra de ocasião”, não
obra de mestre (de Weber ou de Mozart):
Barbosa tocou-a, não dizer com alma, mas com nervos. Todo ele acompanhava a gradação e a variação das notas;
inclinava-se sobre o instrumento, retesava o corpo, pendia a cabeça ora para um lado, ora para o outro, alçava a
perna, sorria, derretia os olhos ou fechava-os nos lugares que lhe pareciam patéticos. Ouvi-lo tocar era o menos; vê-
lo era o mais. Quem somente o ouvisse não poderia compreendê-lo (MACHADO DE ASSIS, 1888).

Ao mesmo tempo que a perspectiva transcultural diversifica os conceitos voltados aos fenômenos
sonoros, fazendo aumentar substancialmente seu leque tipológico, ela também dá importância ao ensejo e,
portanto, ao fenômeno vivo, à performance e seu contexto, ambos igualmente dentro de uma perspectiva
dinâmica e processual do acontecimento cultural.

Sonoridades organizadas

Sonoridades organizadas fazem parte de um evento, de uma performance ou de um ritual maior.


Ou acontecem de forma isolada. Torcidas organizadas, por exemplo, constroem o pano de fundo sonoro
de um jogo de futebol, o que nem sempre é percebido como música, mesmo que organizado em grupo.
135
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

Ao mesmo tempo sabemos de escolas de samba, hoje perfeitamente estabelecidas, que nasceram de um
grupo de torcida organizada de futebol. A discussão sobre sons ruidosos ou sonoridades musicais também
diz respeito à utilização e à performance de instrumentos sonoros ou musicais. Há instrumentos musicais
que emitem sons tanto dentro de um contexto musical na acepção mais pura, quanto sons de alerta, não
musical ou de identificação de determinado grupo. Sinos, campânulas e gongos funcionam dentro desta
dupla função, em todo o mundo. É o caso dos chamados “surrões” dos caboclos de lança dos grupos de
maracatu rural da Zona da Mata de Pernambuco. Guerreiros paramentados, os caboclos de lança car-
regam nas suas costas três a quatro grande sinos (o surrão), que repicam a cada pulo ou passo de dança.
Esta sonoridade que se junta ao pequeno terno (conjunto) de músicos e aos cantores do grupo é própria
desta agremiação do carnaval de Pernambuco. No estudo sobre os maracatus rurais, que realizei nos anos
1990, já chamava a atenção em especial a sua produção sonora, vinculada a uma simbologia ininteligível
para os observadores de fora:
The soundscape produced by the performance of the maracatus rurais is certainly the most dramatic sound element
to be found among all the carnival associations in Pernambuco. One needs to understand that the maracatu rural
sound is intentionaly produced within a much wider framework than merely that defined by the music and dance
dichotomy alone. The powerful sound is mainly produced by the caboclo de lança warriors, who in the overall
drama¬turgical concept of the group’s performance, act by moving ahead in fast and almost leaping steps from
one corner of the square to the other, always in a single or double row line. While running, the bells on the back
of these dancers produce an almost ear-shattering noise. But, in the same way the inner order of their mysteri-
ously coordinated running in lines emerges, the overall noise seems to bear an intrinsic logic, which, however, is
completely unintelligible for outsiders (Oliveira Pinto, 1996). 13

Uma sonoridade urbana semelhante, mas de gênese completamente diferente daquela dos surrões
dos caboclos de lança, surgiu no início de 2015 no Brasil, gerada pela percussão de inúmeras panelas de
metal. O “panelaço”, movimento popular de protesto, basicamente composto de som, é uma ação concerta-
da 14 de um segmento social que acusa o governo de corrupção e de clientelismo. Em evidência especial em
cidades como São Paulo, o “panelaço” consiste na percussão de panelas de metal, efetuada simultaneamente
por milhares de pessoas das janelas dos seus apartamentos.
Esta ação remete, de fato, para quem a conhece, à sonoridade das pancadas metálicas dos surrões
dos maracatus rurais da Zona da Mata. Sem querer, com esta comparação, sugerir alguma relação factual e,
muito menos, diminuir a importância – em especial também a complexidade sonora – dos maracatus rurais,
ambas as ações se pautam em uma resultante sonora de impacto inequívoco. As duas sonoridades coletivas
causam espanto e, em Pernambuco, até medo. Ambos os universos sonoros – as panelas batidas de São Paulo
e os surrões percutidos do interior de Pernambuco – ganham especial força na “calada” da noite.
O que nos assinala um olhar transcultural sobre fenômenos tão díspares? Os efeitos sonoros de
ambos são, do ponto de vista fenomenológico, muito parecidos, e possibilitam assim um aprofundamento
analítico. A questão antropológica se estabelece a partir do fato sonoro em si que, produzido por grupos de
13
“A paisagem sonora produzida pela performance dos maracatus rurais é, certamente, o elemento sonoro mais dramáticao a ser destacado dentre
todas as associações de carnaval de Pernanbuco. É necessário perceber que o som rural do maracatu é produzido intencionalmente, no interior de
um escopo muito mais amplo do que aquele meramente definido pela dicotomia música e dança. O poderoso som é produzido,principalmente,
pelos guerreiros do caboclo de lança que, na concepção dramatúrgica mais ampla de performance grupal, atuam se movendo, de forma rápida,
em passos quase saltados, de um canto da praça para outro, sempre em linha simples ou dupla. Enquanto tocam, os sinos nas costas dos dançari-
nos produzem um ruído quase ensurdecedor. Porém, da mesma maneira que a ordem interna de sua misteriosa correria coordenada em linhas
emerge, o barulho enorme parece construir uma ordem intrínseca a qual, contudo, é completamente ininteligível para não iniciados”.
14
A ação concertada refere-se a uma ação na qual se atua dentro de um grupo coeso, como se fosse um só corpo.
136
pessoas, evidencia, nos dois casos, uma intencionalidade coletiva comum e compartilhada. O antropólogo
Michael Tomasello, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, em Leipzig, defende a tese de que
a evolução da cultura humana se deu a partir de atividades comuns e efetuadas de forma intencional. Fala,
15
a este respeito, de uma shared intentionality (TOMASELLO, 2005, 2014). Uma evidente intencionalidade
compartilhada se mostra nas práticas musicais de um grupo que, através de uma “temporalidade compar-
tilhada”, ainda vem aumentar a intenção do grupo na coordenação dessas ações coletivas. Ao longo da sua
evolução, o ser humano sempre teve a necessidade de buscar a ação coletiva para atingir objetivos ansiados
por todo o grupo. De certa forma, podemos constatar que as duas ações de intenção compartilhada, “pan-
elaço” e surrões percutidos, buscam afugentar o que aflige e prejudica um grupo de pessoas: corrupção de
um lado, maus agouros do outro.
É sintomático que, ao compararmos os dois fenômenos sob uma ótica social, os combatentes sempre
se assemelham à fisionomia dos combatidos: (1) uma suposta “elite” paulistana investe o panelaço contra
a elite política do momento que, esta em parte, é até derivada da anterior e (2) com suas danças ruidosas,
os caboclos de lança intimidam espíritos e seres transcendentes, entidades igualmente caboclas da Zona da
Mata. Nota-se que mesmo a ambientação, que nos dois casos se opõe entre o urbano e o rural, é mantida
enquanto sistema fechado: combatentes e combatidos dividem o mesmo espaço social e conceitual. Para os
de fora, há uma irracionalidade nessas ações sonoras de intenção compartilhada, porque, em última instância,
o resultado almejado não se concretiza. Se, no olhar do pesquisador, o panelaço oferece um exemplo paradig-
mático de como nascem rituais, ele somente se justifica naquilo que o fez deflagrar, ou seja, na atual “conjun-
tura” política do país. 16 Muito provavelmente, o panelaço já surge com os seus dias contados 17 porque aqui a
intenção compartilhada ainda não significa uma ação de real “temporalidade compartilhada”, o que seria es-
sencial para, em algum momento, se tornar musical (tal qual ocorreu com as torcidas organizadas de futebol).
O tempo histórico do panelaço é compartilhado, não existindo aqui, porém, uma “subtemporalidade” que é
musical, para ser compartilhada também: milhares de pessoas participam da mesma ação concertada sem, no
entanto, sincronizar a sua percussão, sem lhe dar uma temporalidade estruturada e comum. Já a sonoridade
centenária dos surrões pernambucanos se pauta na temporalidade compartilhada do movimento cíclico da
repetição musical e mítica. Além disso, não perde a sua razão de ser, uma vez que os espíritos da Zona da
Mata não desaparecem, encantam. Somente assim, o folguedo ritual dos maracatus rurais se renova a cada
ano, essencialmente através do universo sonoro – compartilhado e estruturado – que produz.

15
Shared intentionality (Intencionalidade compartilhada) é definida como “the ability to participate with others in collaborative activities with
shared goals and intentions“ (A habilidade de participar com outros em atividades colaborativas, com intenções e objetivos compartilhados); (TO-
MASELLO et al. 2005: 675). Requer de especially powerful forms of intention reading and cultural learning, but also a unique motivation to share
psychological states with others and unique forms of cognitive representation for doing so (Requer formas especialmente podereosas de leitura
intencional e aprendizado cultural, mas também uma motivação única para partilhar estados psicológicos com outros e forma única de represen-
tação cognitiva para fazê-lo.), ( (TOMASELLO et al. 2005: 675).
16
De acordo com o pronunciamento feito pela presidente Dilma Rousseff (8-3-2015) e que serviu de ensejo para o panelaço em São Paulo, e
também em outras capitais, a crise na qual se encontra o pais seria de ordem “conjuntural”.
17
Saliento que a análise do panelaço decorrente da comparação com a performance dos surrões pernambucanos se refere unicamente à sonori-
dade do “panelaço”, ocorrido no dia 8 de março de 2015. A menção se refere a um fato presente. O seu desdobramento, ainda desconhecido, levará
a modelos de interpretação mais complexos, e certamente divergentes do aqui proposto. Já o maracatu rural se constrói sobre uma profundidade
histórica, que nos permite hoje uma compreensão mais ampla deste fenômeno, exemplo do quanto a antropologia necessita do quadro referen-
cial histórico, e vice-versa (OLIVEIRA PINTO, 1996).
137
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

Patrimônio cultural intangível (ou imaterial)

Sonoridades geradas em determinados contextos ritualizados são marcadas por significados, o que
também ocorre com a música que, por isso, pertence ao domínio de cultura imaterial. Buscar uma definição
e entender como funciona a cultura imaterial aponta para outra pista que pode levar a um discernimento
transcultural da música e de sonoridades.
A questão básica desta abordagem é não partir, necessariamente, de obras concluídas, passíveis
de repetição ou replicáveis. Para entender o que são obras no contexto da história e das culturas musicais,
podemos buscar sua avaliação tomando como modelo de comparação o domínio do patrimônio imóvel,
os monumentos artístico-culturais. O conceito de patrimônio intangível, ligado às artes cênicas (perform-
ing arts), aos rituais, à musica etc., ganhou importância a partir da convenção da UNESCO de 2003,18
vinculando-se, inicialmente, à ideia de que existiria algo como uma obra mestre de cultura imaterial. É
precisamente a designação masterpiece of intangible cultural heritage, com a qual a UNESCO rotulou mani-
festações culturais selecionadas para comporem a lista dos patrimônios intangíveis da humanidade. Poucos
anos mais tarde, porém, abriu-se mão do termo masterpiece para as manifestações de cultura imaterial pois,
além de unitário, o termo evoca uma conexão involuntária com a obra singular – obra mestra, ou de mestre
– concluída e de autor.
Ficou patente que o foco geral da pesquisa musical não pode mais ficar restrito a aspectos locais ou
a outros critérios limitadores. Incentivou-se dentro da alternância do local, do nacional e do global, uma
percepção que privilegia a relação que não se dá de maneira sucessiva, ou excludente, mas simultânea. Trans-
culturação insere-se aqui no não isolamento e também na onipresença destes três níveis, independentemente
do local geográfico e de um tempo definido. Termos como “originalidade” ou “autenticidade” perdem a sua
significação normativa, chegando a tornar obsoletas as dicotomias entre original e cópia, ou entre original
e derivados. A morfologia dos artefatos de cultura retrata formas diversas e criativas de lidar com elementos
de teor histórico variado, provindos ou não de processos migratórios. A translação (do latim translatio) como
processo cultural, ganha relevância na recolocação mental e local destes processos, sejam eles políticos ou
culturais. A ideia de tradução pode ser entendida como transgressão de fronteiras, momento em que valores
e padrões de pensamento se deslocam quando na busca de uma reconfiguração contextual.
Na musicologia, este processo se mostra exemplarmente no recurso metodológico da transcrição,
quando o pesquisador “traduz” o fenômeno sonoro da gravação para a mídia visual da partitura. Assim a
passagem de um script para o transcript é, na análise musicológica, a transferência do artefato cultural em
si para um (novo) dado a ser analisado. Perceber este processo também serve para investigarmos a trans-
ferência e a “transculturação” de elementos culturais, em que scripts são constantemente abandonados ou
reelaborados através de um transcript.
A transcrição musical foi o ponto de partida epistemológico e a base prática para a análise das
sonoridades de outros continentes durante um século de história da etnomusicologia. 19 Este processo
de tradução (translatio), a transcrição, dependia de um elo que fazia parte da gravação sonora, essencial
para a confecção das partituras: uma nota Lá, sonoridade sempre presente nos primeiros fonogramas, os
chamados wax cylinders do fonógrafo de Edison. Após fazer funcionar o fonógrafo de Edison, esta nota
Lá era gerada pelo próprio antropólogo com um diapasão de sopro, poucos segundos antes do início pro-
priamente da gravação, o registro de cânticos, de música instrumental etc. A nota Lá gravada possibilitava
a aproximação do musicólogo transcritor ao fato sonoro conservado pela gravação. O som do diapasão
18
Convenção do Patrimônio Imaterial, www.unesco.org
19
Sobre transcrição, ver ELLINGSON (1992) e OLIVEIRA PINTO (2001).
138
que antecedia a música gravada assumia papel de referencial sonoro-tonal para que a transcrição pudesse
ficar fiel ao âmbito da frequência original da música gravada em relação ao sistema sonoro (Tonsystem) do
musicólogo. A sonoridade do diapasão gravado passaria assim a servir de ponte entre Ocidente e Oriente,
ou seja, era um elo sonoro entre o mundo dos músicos registrados pela gravação e o universo daqueles que
acionavam o gravador: antropólogos, missionários, folcloristas, musicólogos.
Através dos diferentes processos de translatio (cultural, midiático, tecnológico, performático, políti-
co etc.) que lhe são próprios, o Patrimônio Musical assume dimensões mais amplas e, portanto, diferentes
daquelas do chamado patrimônio histórico e arquitetônico. A sua avaliação transcultural infringe e ultra-
passa as fronteiras conceituais impostas pelas obras mestras da história da música ocidental. A abordagem
transcultural libera a musicologia histórica das amarras estéticas canônicas de determinado repertório (o
clássico) e desobriga a etnomusicologia de se submeter à restrição do contexto definido e específico. Final-
mente, não se impõem mais fronteiras a priori de acesso à música. O que dá rumo à investigação musicológi-
ca, como um todo, é o uso e os sentidos da música, não mais tipos ou gêneros definidos de antemão, como
a música de arte dos diversos séculos de historia ocidental, ou sonoridades vinculadas a contextos culturais
predefinidos e fechados.

Cultura enquanto patrimônio

A discussão de patrimônio e transculturação se mostra especialmente atual nos estudos de ar-


quitetura, quando o interesse vai além de objetos de pesquisa no contexto cultural da tradição ocidental
para trazer à tona, por exemplo, a situação atual das edificações históricas em países asiáticos. As políti-
cas de conservação e o tombamento de patrimônio material histórico passa por grandes transformações
conceituais a partir das diretrizes de identificação e de proteção formuladas pela UNESCO. Um dos
principais articuladores desta discussão, o historiador de arte e arquitetura Michael Falser, explana em
seus estudos sobre o patrimônio arqueológico do Camboja e de Laos, o quanto o passado colonial destes
países asiáticos e a atual pesquisa arqueológica entram em choque com os atuais discursos políticos e de
identidade nacional (Falser 2012, 2013). Falser propõe um conceito de cultura diferenciado, sempre que
a intenção é entender processos de patrimonialização e a fabricação dos símbolos de identidade que daí
resultam. A teoria formulada pelo autor prevê seis características principais que servem de alicerce ao ar-
cabouço conceitual de uma teoria cultural patrimonial. Trata-se dos elementos: (1) local, (2) substância,
(3) espaço/ambiente, (4) situação/condição, (5) tempo e (6) identidade. 20 Argumenta que estes tópicos
sempre estão presentes na discussão e análise de edificações históricas, sua arqueologia, recuperação, ma-
nutenção e proteção. Mas a pesquisa e o levantamento de dados não se encerram aí, porque o patrimônio
em si está inserido em conceituações mais abrangentes, locais e mesmo globais.
Dando continuidade à proposta de Falser, quero sugerir que ela se aplica também ao domínio
intangível da cultura, especialmente porque prevê uma dupla exegese dos termos negociados nesta teoria
de patrimônio histórico-cultural: (1) uma avaliação museológica, corrente no pensamento ocidental, e (2)
um corte transversal que acresce cada um dos seis termos com uma aplicação transcultural.

20
No original, os termos utilizados são: Ort, Substanz, Raum, Zustand, Zeit, Identität, (FALSER, 2013, p. 25).
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

A tabela expõe as seis características do Patrimônio Cultural, colocando-as entre as duas vias de per-
cepção das mesmas. Acima, está o enfoque museológico de acordo com as convenções ocidentais da história
da arte e da ciência e, abaixo, a perspectiva ampliada, segundo uma orientação transcultural de pesquisa que
vai além daquela proposta por Falser (2013). A partir das características definidas para o Patrimônio Cultural,
que possibilitam uma leitura diferenciada dos mesmos termos conceituais – materiais e intangíveis, conven-
cionais e transculturais etc – conforme o exposto, segue o esboço de uma metodologia transcultural para o
discernimento de Patrimônio Musical.

Patrimônio musical e sonoro

A preocupação em dar à musicologia dimensões diferenciadas, de modo a aplicar a pesquisa musi-


cal a toda espécie de música, depende tanto da abordagem metodológica, quanto da origem da respectiva
manifestação sonora. As seis características transculturais, apresentadas na tabela acima, não estão presas
às categorizações histórica ou etnográfica que até então distinguiam as duas vertentes mais correntes da
musicologia. Percebe-se, então, que o enfoque transcultural transfere o fenômeno musical e sonoro para um
patamar de relevância global. Preocupado com uma musicologia mais universalista e menos segmentada
entre histórica ou antropológica, o musicólogo norte-americano Charles Seeger propôs, ainda na primeira
metade do século XX, um plano, ou sumário (conspectus), que oferece uma orientação para toda e qualquer
inquirição musicológica (SEEGER, 1955).
Seeger entende o seu conspectus como um tipo de mapa, pelo qual o pesquisador navega de acordo
com o seu interesse para melhor resolver as questões da sua pesquisa musicológica. Pode “trafegar” pelos
campos da biologia, da acústica, da história e da antropologia, 21 orientando-se de acordo com o seu interesse
e para alcançar a sua meta, percurso este que sempre será individual e de acordo com o tema da pesquisa.
Neste sentido Seeger considera que seu mapa suscita abordagens mais funcionais do que estruturais:
For me, after I have completed presentation of the functional aspect of the case, that is, how best to drive the

21
Um comentário sobre o projeto de Charles Seeger encontra-se no texto de Anthony Seeger In. Ethnography of Music (SEEGER, 1992). Uma
tradução deste último trabalho foi publicada em Cadernos de Campo, vol. 17, nº. 17, USP, 2008.
140
principal roads on the map that is my conspectus, it may be very close to what is final. (...) I would expect that
each person who would accept it might modify it to suit his particular world view (SEEGER, 1977, p. 127). 22

Chama a atenção a forma aberta desta ferramenta metodológica que Seeger oferece e que, segundo
ele, com alguns reparos e acréscimos, se aplica também aos estudos da dança, das artes plásticas ou da ar-
quitetura (SEEGER, 1977, p. 127).
A simulação de um percurso (road map), como estratégia metodológica, pode nos servir de ponto
de partida para dar à presente teoria do Patrimônio Musical uma dinâmica “performática”. O que importa é
que este esquema, aberto para a formulação e resolução de questões musicológicas, funciona para a pesquisa
de toda e qualquer espécie de música, independentemente de contexto ou de origem histórica ou cultural, ou
seja, serve como instrumento de orientação para a busca de fenômenos sonoroculturais de uma forma geral.

Um road-map através dos conceitos de cultura

As seis características do modelo de análise cultural que foi proposto para o estudo do Patrimônio
Musical e, segundo uma perspectiva transcultural, podem ser visualizadas através da sua disposição em um
“hexágono cultural” do Patrimônio Musical:

Um mapa que possibilita o “tráfego” pelos seis conceitos para a construção de um plano de pesquisa
e de inquirição para a musicologia surge no momento em que vários hexágonos se juntam, à maneira de
favos de mel, formando um hexágono maior, composto por sete ou mais hexágonos culturais.

Para mim, depois que completei a apresentação dos aspectos funcionais do caso, quais sejam, como melhor trilhar as estradas principais no
22

mapa que é o meu conspectus, se deve estar bem perto do resultado final [...] Eu poderia esperar que cada pessoa que aceitasse isso poderá
modificá-lo de forma a adequar à sua visão de mundo particular. (SEEGER, 1977, p. 127).
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

Dentro deste esquema, multiplicado em outros hexágonos semelhantes, mas com a organização dos
conceitos modificada, a passagem de um termo conceitual ao outro pode decorrer de hexágono a hexágono,
com a possibilidade tanto de retorno quanto de um maior distanciamento do ponto de entrada no sistema.
A pesquisa musical tem à sua disposição opções semânticas diferenciadas do respectivo termo que
encontra ao longo do percurso, uma convencional e a outra transcultural. Compõe-se assim, enquanto
agrupamento de “hexágonos culturais”, um mapa para a análise cultural do Patrimônio Musical e dos
fenômenos sonoros. Um exemplo: interessa montar um itinerário para a análise cultural da sonoridade dos
surrões dos caboclos de lança dos maracatus rurais de Pernambuco. O trajeto pelos termos pode seguir uma
ordem, que representa uma das propostas do mapa dos hexágonos: 1 (local), 5 (tempo), 3 (espaço), 1 (lo-
cal), 2 (substância) e 6 (identidade). A repetição de local (1) significa que, inicialmente, temos a localidade
geográfica precisa, para, em seguida, optarmos pelo conceito de “zona de contato” para o respectivo termo
(local). Há inúmeras outras maneiras de se escolher o itinerário para a pesquisa. O que decide a ordem e o
emprego dos conceitos é o questionamento inicial da pesquisa e o interesse que a conduz.

Comparado ao road map do esquema de Charles Seeger (o conspectus), o presente modelo é simples
e reduzido, menos ilustrativo do que o anterior. A sugestão para a análise é que a abordagem dos termos
básicos do modelo teórico de Patrimônio Musical ocorra tanto de forma aberta, aleatória, quanto também
predefinida e dirigida. Sugere finalmente que, assim como a fluidez e a fugacidade dos fenômenos sonoro
e musical, a análise teórica que se aplica pode funcionar muito bem com um approach que, em si mesmo,
também encerra a “fluidez” do seu objeto de pesquisa.
142
Para uma estética objetiva sonora e musical

A preocupação com uma pesquisa acadêmica voltada à musica e a sonoridades produzidas nas mais
diferentes partes do globo já fez as musicologias, mesmo que ainda segmentadas, darem um destaque mais
universalista à pesquisa musical, aproximando uma vertente epistemológica a outra. No Brasil isso fica
patente na recente criação de cursos e de áreas/posições acadêmicas que se denominam “Música, Cultura e
Sociedade”, e que representam o encontro institucional da história da música com a etnomusicologia, dentro
de uma perspectiva que, melhor do que até então, condiz à situação específica no país.
Hoje, o interesse na estética objetiva se manifesta de várias maneiras e já não é tão recente. Entre
os estudiosos de música e performers asiáticos, há elaborações estéticas de aspiração universalista bem mais
antigas do que os respectivos movimentos no mundo acadêmico ocidental (HOWARD, 2006). Foi esta
conscientização em relação à importância simbólica das performing arts que levou ao reconhecimento global
– manifesto pela UNESCO em 2003 – do domínio intangível das heranças culturais, não menos significa-
tivo do que no caso das edificações histórico-culturais do patrimônio cultural da humanidade.
Uma estética objetiva musical que, independentemente, de relativismos culturais, de categorias
como erudito e popular, ou de períodos históricos, pauta-se fundamentalmente no reconhecimento de três
elementos: (1) na noção de que há configurações sonoras específicas presentes em toda parte no mundo, (2)
nos estudos recentes do cérebro, com a avaliação diferenciada dos aspectos psicológicos da experiência musi-
cal e, finalmente, (3) na universalidade inerente à música, através da sonoridade, e que lhe dá autonomia
para oferecer momentos de profunda satisfação estética a quem a percebe e presencia. 23
Conclui-se que há, nisso tudo, uma sapientia universalis intrínseca à música, uma sabedoria univer-
sal que ela transmite através da intersubjetividade sonora da performance musical. Com ela o humanly or-
ganized sound se apresenta na sua significação máxima, portanto, independente das limitações de geografia,
de mentalidades ou de períodos históricos. A orientação transcultural faz crer que o reconhecimento desta
sabedoria universal ajuda a lidar com as especificidades sonoras – os saberes locais – com mais pertinência.
Afinal, é a transculturação musical que nos possibilita transitar com mais desenvoltura entre o material e
o intangível, entre ruídos e sons, ir e vir de script a transcript, para finalmente abraçarmos aquilo do qual
percebemos também ser uma parte: o grande universo das sonoridades musicais.

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FALSER, Michael. Kulturerbe – Denkmalpflege: transkulturell. Eine Einleitung. M. Falser & M. Juneja

23
A este respeito, ver o estudo de Michael Tenzer (2015) que parte de uma abordagem neo-darwiniana para chegar a uma estética objetiva e
universal da música.
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

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144
A antropologia intercultural para a transculturalidade de gêneros

Irma Julienne Angue Medoux


Tradução: Daniel Mendes Fernandes
Professora de Filosofia da Universidade Omar Bongo, Libreville, Gabão

O diagnóstico de pós-modernidade, por mais que tenha sido atacado por


alguns pós-colonialistas africanos como um discurso decadente, até mesmo como
uma das expressões ideológicas do capitalismo avançado, não deixa de ser menos uma
ferramenta de análise importante para quem desejar comparar as diversas culturas e
tradições estéticas africanas distribuídas ao redor do mundo. Todas elas enfrentam
uma coabitação entre aspirações modernas ligadas à vontade de reconhecimento das
produções plásticas das comunidades e um retorno a hábitos tradicionais que se opõem,
ou não, nesta marcha rumo à democracia.
Tal clivagem talvez seja menos visível na diáspora afroamericana da América do
Norte, na qual a luta contra o racismo e o desejo de afirmação da arte dita “primitiva”
tiveram de mobilizar seus líderes, bem como os que buscaram se integrar às elites da
comunidade multicultural norte-americana. Eles tiveram de encontrar maneiras de se
adaptar às experiências neoliberais dos bens culturais que fazem a riqueza das sociedades
liberais norte-americanas. Mas essa clivagem é objeto de todas as atenções, por exemplo,
do governo brasileiro, quando ele quer privar seus ex-escravos de terem acesso à educa-
ção, do primário ao ensino superior, a partir de seus programas ditos “de interiorização”.
Essa clivagem é então considerada como uma falta de acesso à educação, uma falta que
deve ser tratada através da instauração e do desenvolvimento do acesso de toda a popu-
lação da diáspora africana.
A comunidade africana, de fato, é confrontada atualmente com a clivagem co-
tidiana entre suas tradições e o fracasso de sua “adaptação” aos desafios experimentais
colocados pela experimentação neoliberal da arte e também pelas ciências que refletem
seus resultados: as ciências humanas. Os problemas de integração das produções plásti-
cas tão tradicionais quanto modernas nos museus da África revelam o quanto os países
africanos são levados a negar à arte e aos artistas africanos o poder e a verdade estéticos
que deslegitimavam o discurso colonialista dos séculos passados. Esses problemas de
integração são tão perigosos quanto as lutas tribais e a proliferação dos etnocídios.
A repercussão de todos esses efeitos sobre os problemas de transculturalidade
de gêneros, sobre as relações entre homens e mulheres, acontece em todos os países do
mundo, sobrecarregando as pessoas do sexo que parece ter disposição a ser dominado,as
mulheres, sem que a ideologia modernista de paridade entre homens e mulheres que
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

caracteriza o modernismo contemporâneo da revolta feminista possa constituir um disfarce eficaz. Tudo se
passa como se esses sintomas da falibilidade do modernismo que afetam a África devessem ser lidos como
um abandono da razão. Esses sintomas acompanham, em todo caso, esse fenômeno da diáspora interna
que poderia ser lido como um novo apartheid entre homens e mulheres, que acontece dessa vez dentro da
comunidade presente no continente africano.
De forma mais geral, essa clivagem entre elites e populações, entre “dirigentes” ou “decisores” de
um lado, e as “massas”, do outro lado, retomando as categorias questionáveis dos sociólogos, acompanha os
efeitos da globalização cultural conduzida como experimentação neoliberal contemporânea das artes. Isso
acontece no horizonte do destino experimental ao qual os próprios artistas contemporâneos se entregam
como se experimentassem o mundo. O acordo experimental com os objetos estéticos, buscado pelos nego-
ciantes da arte experimentando a verdade de suas hipóteses, não é garantido de antemão. O acordo com o
próximo, experimentado como consenso pelas sociedades contemporâneas ditas “multiculturais”, também
não é garantido de antemão.
A modernização buscada pelos tempos modernos, através da autonomização das instituições cult-
urais comparada às religiões, parece ter sido uma inútil paixão coletiva: seu fracasso programado parece dar
razão a todos aqueles que a rejeitaram como um ideal puramente ocidental propagado pela colonização euro-
peia do resto do mundo e, depois, travestido sob diversas máscaras e retransmitido pelas diversas instâncias
do capitalismo avançado.
Da mesma forma, tal clivagem se manifesta como oposição entre tradição e modernidade. Aban-
donados por seus governos na condução cotidiana de suas vidas, os indivíduos e grupos que são vítimas
desse abandono não conseguem encontrar o sentido de suas vidas na globalização econômica nem na cos-
mopolítica que tenta contê-lo. Buscam estes novamente esse sentido em suas raízes, em suas “tradições”, que
parecem ser capazes de curar tanto sua saúde física quanto sua saúde social. É assim que enfrentam crises
culturais semelhantes às crises das sociedades ditas modernas que os havia colonizado, mas suas próprias
crises são reforçadas pela consciência de não ter os meios para superá-las.
Tomadas por um ideal de modernização desenfreada, as diversas crises que abalaram as sociedades
do mundo inteiro foram descritas pelas ciências humanas e sociais como crises de racionalidade, de legiti-
mação e de motivação, ou, ainda, como neutralização das instituições e do psiquismo. Ligadas a uma perda
do senso de realidade, obnubiladas pela vontade de dominar econômica, moral, psicológica e politicamente,
e até mesmo pelos sistemas lógico-matemáticos, as catástrofes políticas, totalitárias e/ou racistas, como
também as catástrofes provocadas por uma especulação gananciosa e cega, provocaram todas as experimen-
tações científicas, sociais, institucionais ou psíquicas (possíveis) para estabelecer tanto um diálogo racional
com o mundo externo quanto um diálogo com a natureza do próprio ser humano.
A ausência de credibilidade das metanarrativas de emancipação, diagnosticada por Lyotard em sua
obra intitulada A condição pós-moderna, somente põe em dúvida a capacidade do artista de se apropriar, de
uma vez por todas, das propriedades quase divinas do autodomínio e da autonomia absoluta às quais essa
liberdade suspostamente lhe daria abertura através dos sistemas legais, morais e políticos. Reconhecido
como ser de linguagem no século XX, revelou-se, de fato, que nenhum domínio da linguagem, das insti-
tuições e do psiquismo humano era acessível magicamente, pelo puro e simples uso desta linguagem ou
somente porque o artita pensava.
Nesse contexto, a importação dessas crises para a África provocou uma recaída na velha confiança
na natureza, numa natureza que somente pode responder favoravelmente a esse desejo de conhecimento e
de domínio do homem: recolocando-o magicamente em contato com o ser, com o mundo, com o próximo
e consigo mesmo.
146
Os próprios filósofos europeus tiveram essa recaída entre 1920 e 1950. A tentação heideggeriana
de garantir autenticidade à vida humana, colocando cada um em contato com o ser, pôde assim exercer
sua sedução e dominância sobre os homens e as sociedades que não fizeram mais do que resistir às sirenes
dos tempos modernos. Complementada pela tentação wittgensteiniana de re-harmonizar nossos contem-
porâneos doentes com espasmos psicológicos e filosóficos, a experimentação da linguagem pareceu poder
encontrar em si mesma sua própria terapia: deixando nossos contemporâneos se ajustarem aos êxitos e fra-
cassos que encontraram enquanto experimentavam todas as formas de vida possíveis se curvando às leis de
seu êxito. O recuo dos indivíduos e grupos para as tradições africanas ocorreu no horizonte dessa confiança
inocente no diálogo com a natureza, seja a natureza externa do mundo ou a natureza interna do ser humano.
Foi essa recaída que os “novos iluministas” franceses– Lyotard, Foucault, Derrida e Deleuze –
queriam impedir. O diagnóstico pós-moderno, aplicado sobre todos nós por Lyotard, se insere na tradição
do Iluminismo dos Tempos Modernos e sua rejeição ao diálogo religioso com o mundo. Ele tem relação
com a liberdade absoluta de rejeição e repulsa que o Iluminismo havia exercido ao negar a verdade de
qualquer fé. A retomada do diálogo com a natureza externa do mundo e com a natureza interna do homem,
entretanto, tem sido feita na comunidade africana sem aderir a essa rejeição do diálogo religioso com o
mundo. A especificidade da África pós-moderna reside precisamente nessa retomada que, além disso, se
harmoniza mais com a pós-modernidade experimentalista de Rorty do que com a dos europeus.
Nesse contexto, o neopragmatismo de um autor como Richard Rorty parece com efeito exprimir
a consciência da autorregulação inerente a essa experimentação. Tal consciência parece ser capaz de curar a
consciência do fracasso e da angústia secretada pelo diagnóstico pós-modernista, tipicamente europeu, sobre
o estado atual da humanidade. Assim, ele também parece exprimir as expectativas de uma transculturali-
dade pragmática. Essas expectativas parecem estar ao alcance das nossas mãos: acessíveis ao diálogo entre
tradição e modernidade, que parece caracterizar qualquer comunidade contemporânea.
Tal consciência experimental está desobrigada de ter de considerar o descrédito dado às narrativas
de emancipação como um fatídico fracasso. Esse descrédito faz da consciência pós-moderna europeia uma
consciência infeliz, uma consciência que está certa sobre seu fatídico fracasso, que tem a certeza de que não
pode mudar nada. A África pós-moderna parece desobrigada de avançar sobre essa consciência trágica.
Porém, por mais que ela procure esse diálogo transcultural a qual conduz ao sabor dessa experimen-
tação consigo mesma– não se encontra menos problemas reais, análogos aos que a consciência pós-moderna
deve enfrentar sobre a consciência europeia infeliz, porque suas elites, sejam elas políticas, econômicas ou
intelectuais, exibem claramente sua afinidade com os ideais de emancipação da modernidade, mas a forma
como elas pretendem realizar esses ideais permanece prisioneira de uma vontade de poder já diagnosticada
por Nietzsche, Heidegger, Gadamer e Rorty, presente nos ideais jurídicos, morais e políticos da modernidade.
Continuam estas elites dependentes da vontade de autocertificação coletiva e consensual dos ob-
jetivos que elas se propõem. Esses objetivos são bons e validados de antemão se eles estiverem a prióri em
conformidade com os ideais democráticos, estejam eles de acordo ou não com a resolução dos problemas
econômicos, políticos, sociais ou antropológicos reais enfrentados. Como pode a comunidade africana, tão
multicultural quanto as outras comunidades do mundo, restaurar uma unidade em si que lhe permita ser
“a comunidade” que deseja ser? Como pode superar essa clivagem que não é somente dela, mas que com-
partilha com todas as comunidades do mundo? Seria pela dedicação à magia consensual que acompanha
a experimentação neoliberal do ser humano? Seria pela partilha com filósofos pós-modernos europeus de
seus sentidos de tragédia e de sua consciência de não poder escapar ao fracasso da civilização, fracasso este
inerente a qualquer modernidade? Na minha opinião, nem um outro caso aqui se aplica.
A África pós-moderna somente conseguirá enfrentar seu destino quando se tornar crítica, somente
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

quando criticar os resultados da globalização transcultural sobre si mesma, somente quando criticar a men-
talidade que gera esses resultados, e isso sob a égide de uma reflexão acadêmica e filosófica prevenida. É assim
que pode esta participar eficazmente de um diálogo transcultural, tanto com sua diáspora norte-americana
ou sul-americana quanto consigo mesma e com as diferentes culturas nas quais vivem os indivíduos e os gru-
pos que as formam.
Essa é a única forma pela qual a África conseguirá entrar também em diálogo crítico com as co-
munidades não africanas, sejam elas europeias, americanas, médio-orientais ou extremo-orientais. Porque a
forma pela qual ela assimilou as concepções que seus colonos tinham da modernidade lhe parecia boa pelo
simples fato de que confiava ao consenso democrático o cuidado de assegurar a todos as condições de vida
e liberdade validáveis por todos. Porém, ela experimentou a cegueira, a instrumentalização e a manipulação
desse consenso e experimentou igualmente o fato de que o consenso não constitui de modo algum uma
autoridade que possa ser um substituto dos deuses das religiões arcaicas ou do Deus judaico-cristão. Deve
a África portanto, julgar os resultados do diálogo que ocorre entre suas tradições culturais e suas elites, não
para eleger esses resultados, mas para julgar a existência e a validade objetiva das formas de vida humanas
que estes conseguem ou não concretizar.
Nesse diálogo, o objetivo da comunidade africana pós-moderna é analisar as diversas formas pelas
quais ela mesma, as comunidades de sua diáspora e também as outras comunidades ao redor do mundo
procedem a essa crítica esclarecida das nossas sociedades pós-modernas, sem no entanto cair no sentimento
de impotência. Assim como a comunidade africana, outras comunidades somente vão superar suas clivagens
quando passarem a fazer uso de seu julgamento crítico sobre seu próprio desenvolvimento: é assim que elas se
apropriam de sua modernidade e sua capacidade de se reconhecerem e serem reconhecidas como comunidades.
Como essas “comunidades” ajustam seus conhecimentos contemporâneos trazidos pelas ciências
epistemológicas e lógicas ao conhecimento do mundo em que vivem se refletem em suas vidas? Como
ajustam sua proximidade “moderna”, constitucional, aos direitos humanos na prática judiciária dos juízes
que atuam em seus Estados-nações? Como participam da instauração de democracias fundamentadas em
consensos contingentes, mas nem por isso menos prudentes? Como tomam parte nos vereditos dados pela
opinião pública internacional sobre a hecatombe produzida pelos excessos mortais do capitalismo, tanto em
países pobres como em países ricos? São estas capazes de remobilizar a história de suas culturas, fazendo dela
uma ferramenta fundamental e inspiradora de “sabedoria” mínima?
Qual é a ação empreendida nesses diferentes contextos para tratar o problema das relações dos homens
e mulheres no respeito mútuo da faculdade de julgar, sabendo que ambos participam de um uso comum da
linguagem e da reflexão crítica? As relações de submissão das mulheres em face dos homens, que algumas so-
ciedades africanas mantêm na pretensão de respeitar suas tradições, são radicalmente diferentes daquelas que
algumas sociedades muçulmanas tradicionalistas continuam, ainda hoje, a exigir que sejam respeitadas?
Sabe-se que Jean-François Lyotard depositou o intelectual na tumba, pois acreditava que nenhum
problema de civilização não mais podia ser considerado universal o bastante para justificar a existência do in-
telectual como tal e que ele havia, portanto, perdido sua função ao perder sua força de convicção. O destino das
mulheres africanas nos parece, entretanto, refletir uma crise de civilização e de cultura que requer que tomemos
consciência sobre a radicalidade dessa crise e que possamos perceber, nesta tomada de consciência intelectual,
um ponto de Arquimedes capaz de elevar um continente inteiro à altura de suas aspirações.
Só os intelectuais podem, portanto, levantar a questão, situando adequadamente o destino dessa
mulheres na economia cultural do mundo, na medida em que eles devem procurar, em suas críticas, escla-
recer as condições de emancipação que devem ser oferecidas a cada indivíduo, pelo simples fato de que esse
um é igual a todos os outros como ser de linguagem, como enunciador que deve participar na transformação
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de suas condições de vida quando esta se revela incontornável.
Portanto, os intelectuais não têm de aceitar serem depositados na tumba só porque seu problema
de justiça e equidade não parecia universal o bastante para que pudesse despertar o pensamento. Esse
problema de justiça e equidade das mulheres, eufemisticamente chamado de “a questão dos gêneros”,
revela-se na verdade universal, desde a socialização dos homens e das mulheres. Mas é por almejar chegar
à consciência de todos, quando todos os outros problemas são proclamados resolvidos, que se requer uma
emergência para que os intelectuais retirem todas as mulheres dessa tumba na qual, desde sempre, têm
sido mantidas encarceradas pelo que chamamos de “civilização” e na qual as mulheres africanas ainda
hoje sucumbem ao seu destino.
Tal problema surge como questão de emancipação social, porém, somente será resolvido se “es-
cutarmos” as mulheres que lá vivem e que reconheçamos seu poder de julgar. Escutemos o que dizem
efetivamente os intelectuais quando se empenharem na tarefa de resolver seu próprio destino e o destino
dessas mulheres do seu continente. Porque dando uma solução para esse problema poderão organizar uma
solidariedade de consciência que lhes permita tratar os outros problemas de civilização e cultura.
O destino das mulheres africanas não reside, somente, no peso das tradições que exigem sua sub-
missão. Ele também é condicionado pela loucura que está no cerne da vontade de poder que move a experi-
mentação capitalista do ser humano.
As mais arbitrárias relações de dominação impostas pelo neoliberalismo e o desaparecimento do
monopólio dos Estados-nações no campo da política, fizeram com que os cidadãos do mundo, cidadãos
cosmopolitas, experimentassem uma real ausência de liberdade. A fraqueza dos Estados-nações, em rela-
ção aos ataques da especulação bancária contra sua moeda, fez deles os últimos baluartes da liberdade dos
indivíduos, mas esses últimos baluartes são naturalmente muito fracos para impor sua moral bancária aos
bancos do mundo inteiro que continuam suas intrigas sem se preocupar com seus regulamentos.
Nesse contexto globalizado, as únicas instituições poderosas o suficiente para contrariar essa de-
bandada econômica generalizada são aquelas que carregam a própria razão, aquelas que propagaram as
narrativas de emancipação inventadas pelos Tempos Modernos: são as instituições da crítica acadêmica, na
medida em que a emancipação social, defendida por Karl Marx e Max Weber, não mais parece suficiente
para conter a loucura e o desenfreio da especulação sobre os valores financeiros. Não basta mais discernir
as condições que permitiriam respeitar uma justiça social com base na redistribuição dos lucros e dos bens.
O que se trata de produzir é uma verdadeira emancipação intelectual que coloca cada um ao abrigo da
loucura propagada pelo desenfreio da especulação financeira, tanto quanto pelas recaídas tradicionalistas
a que esta induz.
Mas, essa especulação financeira é baseada numa vontade de poder. Essa vontade de poder ape-
nas mudou de lugar – submeteu a política econômica à economia e se estabeleceu nas próprias relações
econômicas, da maneira mais arbitrária e mais abstrata. A alienação denunciada por Marx e Weber passava
ainda pelas relações de produção e pela alienação da mão de obra dos trabalhadores. A vontade de poder
que move a especulação bancária não tem qualquer interesse por esse desvio que passa pela mãodeobra
dos trabalhadores. Quer esta produzir diretamente um aumento de capital que passa pelo investimento
das apostas feitas sobre as ações das empresas. Esse aumento seria diretamente fiador do bem social dos
especuladores e justificaria sua consciência de dominação.
Nossa convicção é que o machismo que reside na base dessa vontade de poder econômico, que tam-
bém residia na crença das capacidades dos Estados-nações de assegurar um dia a justiça na terra, impede
hoje que as instituições acadêmicas de cumpram seu papel de emancipação intelectual. Essa emancipação
não é somente para ser descrita e analisada nas suas condições mais vitais, mas é para ser, de fato, instaurada.
149
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

Podemos combater esse machismo pelas armas intelectuais somente se nos encontrarmos presos em relações
de dominação que tornam a vida dos dominados insuportável. Nos condenam, em condições globais, a uma
pobreza continuada, apesar e através de todos os projetos de desenvolvimento “durável”.
Os que enfrentam essa situação de “dominação durável” são os que têm sido dominados desde a
construção das instituições ditas arcaicas e mais tarde nas instituições modernas do direito, da moral e da
política e, finalmente hoje, na privatização do mundo pelos dominantes. Portanto, os únicos dominados
duráveis que podem se tornar eles mesmos, conscientes do dever de se emancipar, são hoje as mulheres. Soz-
inhas, são obrigadas e capazes de detectar na emancipação intelectual a emancipação necessária em relação
à sua condição de dominada.
A verdadeira paridade entre homens e mulheres não tem de ser conquistada segundo o modelo de
que gozam os homens; nem tem esta de renunciar a si mesma humilhada pelas tradições que escravizam
umas em detrimento de outras. Ela é inscrita na forma que todo ser humano supera seu status de prematuro
crônico que Louis Bolk havia descoberto, e na ausência das coordenações hereditárias instintivas em relação
a tudo o que é estranho à sua espécie somente quando se entrega à emissão-recepção de sons e inventa a
fala. Essa descoberta do século XX não exige, simplesmente, que deixemos falar todas aquelas que foram
silenciadas, reduzindo-as ao seu papel de ouvintes das verdades que lhes são comunicadas e de executoras
das ordens que lhes são dadas. Acima de tudo, exige esta, assim como insisto em meu texto, que levemos em
conta de forma responsável os julgamentos que fazem sobre sua situação, porque teremos concedido a elas
uma educação e uma formação que as terá tornado capazes de formar esses julgamentos independentes.
Portanto, para escapar ao seu destino, as mulheres africanas não têm de aguardar nosso acordo para
que lhes concedamos uma paridade cívica com os homens, ou uma paridade civil na direção das empresas;
têm de formar um julgamento que esteja à altura das expectativas de autonomia que têm em companhia
das intelectuais as quais estão preocupadas com o destino de todas enquanto cuidam do seu próprio des-
tino. E, por isso, os acadêmicos africanos e as acadêmicas africanas são responsáveis em primeira e última
estância. Eles somente podem produzir sua própria emancipação com reconhecimento da opinião pública
internacional e do diálogo internacional se produzirem nos “dominados duráveis” do continente africano a
emancipação intelectual que pode, por si só, evitar sua alienação social atual.

150
Parte III

Comunicações

151
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

Um caso em transculturalidade: Brasil e a arte-ethos do continente


afro-atlântico

George Nelson Preston


Diretor Fundador do Museu de Arte e Origens – MOAO, Nova York

O título deste trabalho foi alterado de seu original “A estética negra ameri-
cana em comparação a lógicas contraditórias, identidades e agendas curatoriais do movi-
mento ‘pós-negro’, o qual foi apresentado no Primeiro encontro afro-atlântico no Museu
Afro Brasil, São Paulo, em 26 de maio de 2010.
Desde meados de 1990, nos Estados Unidos, diretores de museus e curadores têm
tentado dar conta de uma lógica contraditória sobre identidades e agendas curatoriais, com
a intenção de reparar o apagamento da memória dos artistas e de temas afro-descendentes.
Tal interesse decorre de uma constatação sobre o papel que os museus desem-
penham ao influenciar a divulgação de identidades racioculturais negativas. Porém,
o surgimento dos conceitos de um Atlântico negro e de uma identidade “Pós-Negra”,
nos anos 90, parece contradizer e desafiar a razão de ser da chamada abordagem cu-
ratorial corretiva.

O que é o “pós-negro”?

Duas considerações importantes no âmago do ‘pós-negro’ referem-se ao sur-


gimento de uma consciência atlântica negra e à crença em uma nova identidade pós-
negra livre de concepções tradicionais e de equívocos relativos à arte, aos temas e aos
artistas negros.
Mas se o ‘pós-negro’ pretende derrubar as noções obsoletas de arte negra, então
isso não significa que, de fato, não seria mais desejável promover especificamente ar-
tistas negros, especialmente se fosse constatado que eles não estariam mais sofrendo
qualquer forma de discriminação.
O planejamento do Primeiro encontro afro-atlântico no Museu Afro-Brasil
já vinha sendo pensado há longo tempo. Tanto seu diretor Emanoel Araújo, quanto
o colecionador de fotografias do século XIX, Haskell Hoffenberg, e eu já vínhamos
discutindo a ideia repetidamente, desde 1987, como parte de nossa discussão sobre “A
mão afro-brasileira”, referente à exposição e às publicações comemorativas do Cen-
tenário da Abolição da Escravatura, ocorridas em 1988.
No atual trabalho, levo em consideração questões museológicas elaboradas
para a mostra “A mão afro-brasileira”, além do texto original concebido para o En-
152
contro afro-atlântico e algumas questões suscitadas pela consciência ‘pós-negro’. Emprego aqui o termo
“negro-atlântico”, “afro-atlântico” e “atlântico” como qualificadores pares de uma consciência estética,
uma arte/etos compartilhada. “negros atlânticos” não constituem uma “raça”, uma nacionalidade ou mes-
mo uma diáspora, no sentido normalmente usado por acadêmicos afro-descendentes norte-americanos há
mais de duas décadas.
Em 1993, Paul Gilroy publicou The Black Atlantic: Modernity and Double Consciousness (Os Negro-
atlânticos: modernidade e dupla consciência). A proposição histórico-cultural desse inglês afrodescendente
moldou o termo “negro atlântico”, uma metáfora do Oceano Atlântico como “um continente em negativo”,
em relação à história da cultura e em contraposição ao essencialismo racial ou ao nacionalismo cultural de
alguns estudos da diáspora africana.
Ocorreu, em seguida, um deslocamento do peso dos estudos africanos de uma ênfase em questões
sobre a herança cultural da África para um dinâmico e constante intercâmbio complementar entre a África
como representando o Novo Mundo e a Europa. Gostaria de inserir minha própria definição – a de conti-
nente aquático – de forma a lograr compará-la com aquela de “continente em negativo”.
A articulação de fenômenos culturais por acadêmicos frequentemente deixa a desejar sobre a vida
do fenômeno, porque o autor se sente menos obrigado a expressar suas ideias devido à precisão das notas de
rodapé. O escritor fica, assim, satisfeito em definir generalidades, e seus personagens podem funcionar como
jogadores em micro-histórias.
O entendimento da bacia atlântica como um continente aquoso tem sido definido muito antes de nós
acadêmicos termos rotulado o fenômeno negroatlântico ou afro-atlântico. É claro que nós reconhecemos que o
Brasil tem sido historicamente um fulcro e uma alavanca, uma argamassa e um pilão da estética afro-atlântica
desde a chegada dos escravos africanos.
Certamente, uma das mais profundas expressões literárias do Negroatlântico é a última trilogia de
Antonio Olinto Marques da Rocha, O rei do Keto, Trono de vidro e A aasa d’ água, escritos entre 1984 e 1987,
e que se inserem entre as exposições literárias da consciência afro-atlântica mais acessíveis intelectualmente.
Alguns personagens de A casa d’ água, como é o caso de mestre Didi dos Santos, que aparece descri-
to no livro como menino de coro, continuam vivos. Antonio Olinto menciona, ainda, uma máscara geledé
nagô/yorubá, esculpida em Daomé a pedido do terreiro Ile Asipa, tendo sido a mesma enviada por navio a
Salvador em 1900. Um fragmento dessa máscara se encontra na cidade de Nova York, enquanto o terreiro
lIe Asipa de Daomé está atualmente ativo.
Uma pintura famosa de Gerbrandt van den Eeckhout talvez seja o mais antigo documento do
afro-atlântico quotidiano e “material”. Eeckhout foi comissionado pelo Duque de Nassau, uma das pri-
meiras vozes do enciclopedismo europeu. O duque foi governador do então chamado Brasil holandês, que
corresponde agora a partes das Guianas e do nordeste brasileiro.
Van Dantzig, no livro Ghana Notes and Queries (Notas e questões de Gana), pode ser considerado
como o primeiro acadêmico que discutiu essa pintura como uma expressão do intocado continente atlân-
tico. Ela representara um homem afrodescendente portando uma akan afena (espada real), original da Costa
do Ouro, com lanças tupi-guarani em suas mãos. Ele veste um kilt de lã português denominado “pano da
costa”, constituído de um tipo de tecido de madras. Uma presa de elefante aparece à direita, em primeiro
plano. Ao fundo, à distância, vemos uma torre de vigia de pescadores da África Ocidental. Uma mulher foi
retratada junto a essa representação do africano com cestas do Congo, frutas brasileiras e importadas, um
cachimbo holandês e uma rede de arrastão em uma torre de vigia de pesca da Costa do Ouro.
As exposições e interpretações contraditórias relativas à diáspora e à arte de afro-descendentes re-
sultaram em um deslocamento, na agenda curatorial da diáspora africana de temas ligados à comunidade
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

atlântica, para a arte ‘pós-negra’ de artistas afro-descendentes. Um exemplo de tal afirmativa foi a exibição
Freestyle exhibition (Exposição modo de vida livre) no Studio Museum, no Harlem, em 2001.
Free Style foi dedicada a uma apresentação ‘pós-negra’, com a intenção de questionar as agendas
curatoriais prévias das chamadas “exposições corretivas”. Seguem algumas citações da mesa-redonda na qual
o crítico Huey Copeland entrevista Thelma Goldin, curadora-chefe do Studio Museum, no Harlem, e o
artista conceitual Glenn Ligon.

Thelma Goldin: Eu havia sido doutrinada pelo multiculturalismo… Percebi então o quão
provinciana era aquela doutrinação, porque eu somente via a experiência americana como se a
experiência de outros artistas afro-descendentes tivessem acontecido no passado.

Huey Copeland: O conceito “negro atlântico” oferece uma narrativa anti-hegemônica da


modernidade que tem profundas ramificações para o nosso entendimento do presente...
Como a formulação de Gilroy que lhe permitiu novas formas de interrogar criticamente mo-
mentos históricos anteriores, assim o mundo da arte contemporânea é tão frequentemente rotu-
lado como global e disperso... O conceito “negro atlântico” não só nos permite negar um glo-
balismo reconhecidamente amorfo, mas também permite tornar mais precisa a nossa história.

Thelma Goldin: A história é importante, especialmente nas práticas sobre as quais estamos
falando, porque ela marca o ponto de referência que define identidade e lugar, na medida em
que os artistas a reivindicam e a reproduzem em seus trabalhos. O ‘pós-negro’ na exibição
Freestyle nomeou uma nova geração de artistas afro-americanos que era inflexível em relação ao
fato de não serem artistas “negros”, mesmo se suas obras estivessem impregnadas de negritude
e estivessem, de fato, extremamente interessados em redefinir noções complexas de negritude.

Glenn Ligon: Há uma geração de artistas mais jovem do que eu que estabeleceu uma relação
diferente com imagens de negritude. A história da minha geração ou da geração anterior à
minha afirma que Thelma e eu estávamos comprometidos com a era do alto multiculturalismo,
a qual enfatizou a questão das imagens negativas e positivas de negritude. De fato, essas eram
questões com as quais não nos sentíamos à vontade.

Thelma Goldin: Eu aprendi em um contexto internacional, no qual as práticas podem se desdo-


brar individualmente e ainda assim se constituir como parte de um diálogo mais amplo, mas que
não devem estar necessariamente atreladas a uma linha de pensamento... Essa foi nossa missão
no Museu no início dos anos 2000... A missão precedente era: “O SMIH coleciona, apresenta,
preserva, e interpreta trabalhos de artistas afro-americanos e artefatos da diáspora africana”, o
que era válido naquela época para uma instituição que havia sido fundada no Harlem, em 1968.

Aquela missão representava a posição de artistas afro-americanos em um momento histórico em


que o universo artístico ainda era altamente excludente, logo, o museu era concebido como um centro cor-
retivo da situação daqueles excluídos.
Reivindicando a história da África como ferramenta da identidade negra, o que isto significou sobre
a missão do museu é a constatação de que havia uma divisão entre os artistas afroamericanos vivos e os ar-
tefatos da diáspora africana... A missão atual afirma que o museu estabelece um nexo com os artistas negros
154
locais, nacionais e internacionais, com seu trabalho inspirado na cultura negra, representando um local de
intercâmbio dinâmico de ideias sobre arte e sociedade.
Em face do racismo institucionalizado, Emiliano Di Cavalcanti cria uma alternativa para o ícone
cultural dominante de negritude. A natureza morta representa um gênero europeu estabelecido, no qual
os objetos do quotidiano são colocados sobre a mesa e dispostos como um exercício formalista. Em Ma-
cumba, Di Cavalcanti faz referência a essa tradição europeia usando ideias composicionais e ilusionistas
emprestadas das pinturas barrocas holandesas de interiores e natureza morta. Mas Emiliano substitui os
emblemas de status material europeus do século XVII por objetos autênticos de macumba brasileira. Colo-
cando parafernálias de macumba como tema de arte europeia de gênero histórico, Di Cavalcanti preconiza
sua igualdade com os objetos da natureza morta europeia.
A paisagem (como parte da coleção permanente do Museu Afro Brasil) nos revela uma paisagem
contemporânea como figuras nos retratos de Eckhout. Aqui, nenhum objeto de cultura material é retratado.
A paisagem e sua flora são os ícones do Brasil, em sintonia com suas raízes.
Nas primeiras décadas do século XX, o Brasil embarcou em um programa de europeização. Mil-
hares de europeus foram trazidos para o país e os afro-descendentes tornaram-se párias sociais. Um sinal cu-
rioso desses tempos foi a pletora ridícula de cópias baratas de esculturas clássicas gregas, que ficavam dispostas
nos jardins dos ricos.
Embora tais cópias banais do Lussipus tenham feito com que este se levantasse de sua tumba em
um estado de ira, brasileiros de descendência europeia consideravam, todavia, essas monstruosidades supe-
riores à arte indígena ameríndia e afro-brasileira. O confronto estabelecido na pintura de Leon Ferrari entre
o Espírito Santo e a pombagira nos faz lembrar o papel que a religião desempenhou no patrocínio de uma
hierarquia de identidade cultural.

Conclusão

Por último, eu gostaria de considerar o ‘pós-negro’, em relação ao negro atlântico, como uma agenda
curatorial que pode expressar a ideia dessa integração. Como se pode ver a partir da diversidade de temas e
iconografias da Comunidade Atlântica, há uma nova identidade a ser proposta ao público. A definição dessa
arte como sendo produzida somente por “afro-descendentes” é polêmica. A Comunidade Atlântica não é de
uma raça. Ela é uma consciência, uma cultura, o ethos compartilhado em um continente aquoso.

Leon Ferrari L.
Alegoria do Brasil.
Rosana Paulino - Dorso Negro com Leite Branco O Espírito Santo e
Ama de Leite I e II. Wet Nurse I & II a Pomba Gira

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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

Duda Penteado Brasil Under My Skin (Brasil Sob a Minha Pele), 2010

Emiliano Di Cavalcanti
– Macumba (1958) O.C.

156
Arte pública: educação em escolas públicas de Nova York

Liza Renia Papi


Professora adjunta associada do Departamento de Artes, Saint John’s College Queens,
Nova York

A estátua de George Washington foi realmente a primeira obra de arte públi-


ca em Nova York?, perguntou Ouynga, um aluno da oitava série de uma escola pública
do Leste do Bronx. Este retrato impressionante de George Washington, na Union Square
Park, foi elaborado por Henry Kirke Brown, em 1865. Foi a primeira escultura pública
em Nova York e, ainda hoje, é uma das obras de arte mais veneradas ao ar livre.
Tem esta inspirado muitas outras esculturas ao ar livre, há quase 150 anos,
de arte nos parques públicos. Mesmo com o alto poder aquisitivo de Nova York, os
subsídios para as artes estão abaixo do orçamento há cerca de 20 anos. Todos os anos
a cidade é brindada com murais públicos, esculturas, performances e instalações. O
meio artístico está produzindo cada vez mais artistas profissionais, frutos de uma nova
geração de estudantes oriundos das escolas públicas dos cinco distritos de Nova York.
O que é a arte pública hoje? A arte pública está em toda parte, podendo ser perma-
nente ou temporária. Vivenciamos tal arte em nossa rotina diária e, às vezes, não a
percebemos. Essas expressões públicas incentivam-nos a repensar nosso ambiente físico
e cultural e nosso lugar dentro desta paisagem urbana complexa. A arte pública é apre-
sentada em diversos lugares, como parques, corredores de edifícios, dentro e fora das es-
colas, metrôs e outros espaços públicos, como aponta o crítico de arte Jonathan Kuhn.
Afirma este autor que a arte pública temporária continua a desempenhar um forte pa-
pel de vanguarda em uma cidade de competição visual virtualmente ilimitada e que,
em seu melhor aspecto, detém o poder de surpreender, debater, agitar e causar es-
cândalos ocasionais.
Hoje, independentemente do desempenho econômico novaiorquino, muitas or-
ganizações surgiram para apoiar artistas ao ar livre. Doris C. Freedman representa um
campeão de arte pública e é considerado um defensor incansável da lei “Percent for Art”
em Nova York desde o final dos anos 1960. Foi nessa época que artistas independentes
se reuniram para criar e executar obras de arte conceitual para galerias, museus e espaços
abertos. Enquanto muitos artistas conceituais protestaram contra a guerra do Vietnã,
ainda hoje, a arte pública demonstra uma preocupação social e ambiental, com artistas
como Christo que “limpou” o rio Arkansas para ali erigir uma escultura que simbolizava
os fundamentos estéticos e econômicos do Reino dos Emirados Árabes Unidos.
Na primavera de 2013, o Jardim Botânico de Nova York recebeu uma atraente
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

instalação de Philip Haas, The Four Seasons (As quatro estações). O trabalho de Haas foi inspirado no pintor
renascentista italiano Giuseppe Arcimbold, do século XVI, que pintou retratos compostos de frutas, legumes
e flores. Cada escultura de Haas representava uma das estações do ano, medindo cerca de 15 metros cada.
Eram retratos abstratos que indicavam as quatro estações do ano em uma incrível façanha plástica
que misturava duas pinturas clássicas, bidimensionais e tridimensionais, resultando em uma escultura contem-
porânea de arte pública orgânica. Sons da primavera eram diferenciados de um inverno turbulento frio, ao
ouvirmos coloridos cavalos dançarinos que afluíam à cidade. Eram estes do Maranhão, onde o cavalo-marinho
ou o bumba-meu-boi simbolizam uma das principais tradições do folclore. Representam tais cavalos os sons da
obra Heard NY (Ouça New York) do artista e designer Nick Cave, contando com quinze tons de som equino,
dispostos em uma instalação situada no Terminal Grand Central do edifício Vanderbilt Hall.
Durante uma semana, em março de 2013, tal espetáculo foi realizado duas vezes por dia, às 11.00 e
às 14.00 horas, no espaço do MTA Arts for Transit. Este salão geralmente funciona como uma sala de espera
para os viajantes que se dirigem para fora da cidade, tendo sido transformado em um palco público para
abrigar movimentos de dança. Os quinze cavalos esculturais e seus corpos de ráfia, coloridos de maneira
brilhante, destacaram-se no salão ao rodar e balançar suas peles felpudas que vestiam os estudantes de dança
da escola Ailey, os quais giravam no ar. Pisando forte e balançando o chão, corpos cobertos por listras rosas,
azuis, verdes, amarelas, marrons e tons de dourado coloriam o moderno espaço da Grand Central, tudo isto
animado pelo ritmo de tambores e instrumentos tocados ao vivo.
A organização denominada Artes, no Chelsea, contratou a artista Carol Bove para apresentar seu
trabalho Sete esculturas de grandes dimensões, no Yards Rail, terceira e última parte do High Line. O High
Line tornou-se uma inspiração para os artistas novaiorquinos e internacionais refletirem sobre formas criati-
vas de se envolver com a singularidade histórica da arquitetura local e trabalhar com design avançado, pro-
movendo um diálogo com a vizinhança e a paisagem urbana, criando um centro dinâmico de arte pública.
A arte pública pode, então, satisfazer uma necessidade humana básica para a descoberta?
O High Line é o perfeito exemplo de espaço privado, reciclado e transformado em um espaço-arte.
Outros locais, como o Madison Square Park e o Parque Sócrates, cumprem dois ideais públicos: revelar a
criatividade dos artistas e permitir o lazer nos parques públicos. A partir da criação destes espaços de arte
pública passou a haver maior interação entre artistas consagrados e estudantes, que representam uma nova
geração com uma perspectiva emergente, brilhante e incomum. Vermelho, amarelo e azul foi uma instalação
criada por Orly Genger, exposta no Madison Square Park.
A interessante escolha de material natural, com corda atada à mão pintada de vermelho, permitiu
a implantação de um projeto de onda em torno do centro do parque. Esta obra consistia de 1,4 milhão
de metros de corda e 3.000 galões de tinta pesando cerca de 45.000 quilos. Genger comentou que ficou
mais surpresa com o peso do material do que com a solidez que deu à peça. Seu trabalho evoluiu em 2004,
quando ela construiu sua primeira peça ao ar livre para o Parque de Esculturas Sócrates em Long Island City,
Queens. Sendo forçada a encontrar um material que seria mais resistente às intempéries do que a lã, desco-
briu ela uma corda usada para alpinismo. Vermelho, amarelo e azul esteve em exibição de maio a setembro
de 2013. O Madison Square Arts encomendou mais de uma centena de obras a diferentes artistas desde sua
fundação em 2000. Em suas galerias Verde e Ao Ar Livre do Madison Square Park ,frequentemente, vêm
sendo exibidas obras desafiadoras de artistas emergentes. Para assinalar o quinto ano do Madison Square
Arts, o Madison Square Park Conservancy exibiu obras de um artista no auge de sua carreira: o renomado
escultor internacional Mark di Suvero.
As esculturas exibidas demonstraram uma gama expressiva de épicas construções em feixes de aço
deste escultor, incluindo do duplo tetraedro vertical até formas em conversa de fábulas de Esopo, culmi-
158
nando com o encontro de uma forma orgânica da terra, na obra Beyond. A obra de Sol LeWitt também foi
celebrada no parque com o seu trabalho Círculo com torres, que posteriormente seguiu para a inauguração
de uma exposição na Universidade do Texas em Austin, em março de 2013.

Arte pública em Nova York – uma breve perspectiva sobre a educação escolar

O Parque Sócrates de Esculturas, em Long Island City, é o único local na área metropolitana de
Nova York dedicado especificamente a oportunidades para artistas criarem e exporem esculturas públicas
em larga escala e instalações multimídia em um ambiente único, ao ar livre, incentivando a interação entre
artistas, obras de arte e o público. A existência do parque é baseada na revitalização urbana e na expressão
criativa de processos essenciais para a sobrevivência da humanidade e da melhoria do meio ambiente.
Constituiu este inicialmente uma ribeira, um aterro urbano abandonado e um lixão ilegal até 1986,
quando uma coalizão de artistas e membros da comunidade, sob a liderança do artista Mark di Suvero,
transformou-o em um estúdio aberto para estudantes e um espaço para exposições de artistas e moradores
locais. O parque fica a um quarteirão do Museu Noguchi. Seu programa de residência artística serve como
inclusão vital para espaços de arte pública e é apoiado pelo Departamento de Parques e de Recreação de
Nova York, oferecendo uma ampla variedade de serviços públicos gratuitos, como sessões de cinema à
noite e oficinas de escultura. A arte pública inspirou professores a trazer de volta as teorias do velho Piaget,
ao afirmar que “brincar” é a melhor maneira de entender um assunto. O professor de arquitetura Haresh
Lalvani, do Pratt Institute, incentiva os alunos a ver de forma diferente a arte. Lalvani, criador do Seed54,
acrescentou nova vida a um canto suave da rua 54 com a 6ª avenida.
Este artista também finalizou uma peça como colaborador de Milgo/Bufkin, consistindo sua obra
em uma arquitetura baseada na fabricação de metais e no Greenpoint, empresa que estabeleceu com Donald
Judd e Sol LeWitt. Afirma Lavani que: “Não é o meu papel pensar sobre o que os outros dizem dela”. “Se eles
acham que é feio, tudo bem. Se eles acham que é bonito, muito bem. [Minha] arte não serve para educar o
público. Vou lá para expô-la a novas ideias e experiências.” A escultura de metal de Lalvani Ovo com buracos
foi criada pela associação de formas e sequências numéricas. O aço foi disposto na horizontal, com um corte
a laser para fazer uma dobra, sendo esta obra então montada sob uma forma oblonga para que transeuntes
pudessem vê-la. Henry Fountain pergunta se a partir de agora, quando Nova York estiver coberta de poeira,
os arqueólogos vão poder escavar através das muitas camadas de seu futuro para descobrir a escultura de aço
inoxidável que atualmente se encontra no canto sudeste da rua 54 e da Avenida das Américas. O que Lalvani
acharia disto?
Em 2007, Alexandra Leff, vice-diretora do Programa de Arte Pública Leap, buscou estabelecer um
programa único novaiorquino de arte pública destinado a estudantes. Hoje, em seu sexto ano, este Programa
de Arte Pública apresenta obras com temáticas sociais, compostas por estudantes de Nova York, contando
com mesas-refeitório pintadas e instaladas nos principais parques da cidade, mostrando obras de arte em
exposição a cada verão, de junho a agosto. O programa é baseado em currículos tirados de ensino médio da
disciplina Estudos Sociais. Os alunos exploram questões da comunidade local em contato direto com as pes-
soas e, às vezes, indiretamente se relacionam com questões nacionais e globais, incluindo o meio ambiente, a
poluição, responsabilidades cívicas e jurídicas nacionais, diversidade cultural e até mesmo injustiças sociais.
Os alunos escolhem os temas que julgam relevantes.
Em 2013, os alunos escolheram temas que abordavam violência armada, abusos contra crianças,
gravidez na adolescência, apoio ao furacão Sandy e outras questões ambientais. Os alunos têm a opor-
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

tunidade de serem entrevistados pela televisão e jornais e podem, ainda, se encontrar com artistas ilustres
convidados e com criadores de arte pública para discutir seu trabalho e seu processo de criação. Participa-
ram do movimento artistas como Christo, Julian Schnabel, Chuck Close, Mark di Suvero, Milton Glaser,
Kenny Scharf, Dennis Oppenheim, Tom Otterness, Alice Aycock, Mel Kendrick, Lorna Simpson et al.
O programa finaliza com uma exposição de estudantes em toda a cidade, realizada em dez parques
em cooperação com o Departamento de Parques e de Recreação de Nova York. Como afirma Alexandra
Leff : “Ao explorar esses temas importantes, os alunos aprendem que a arte pública pode ser usada para
promover suas ideias e estabelecer uma voz ativa em suas comunidades. Nós apresentamos, a cada ano, a
maior exposição de alunos na história dos parques de Nova Iorque e a primeira exposição de estudantes dos
cinco bairros da cidade”. “Não é uma questão de paciência, mas uma questão de paixão”, alegou a esposa de
Christo, e também artista Jeanne-Claude, em um de seus últimos discursos proferidos no Programa de Arte
Pública da Leap, incentivando o trabalho do extenso grupo de alunos participantes.

Arte pública e artistas e o apoio à educação através do Programa de Arte Pública Leap

A história da arte pública é frequentemente proferida com ênfase, especificamente na palavra arte,
mas com bem pouca consideração no contexto do “público”, como discute Tom Finkelpearl em seus “Diálo-
gos” e em seu livro Arte Pública. O autor estabelece uma conectividade pedagógica ao entrevistar arquitetos,
artistas, assistentes sociais e o filósofo Paulo Freire, que fala sobre “a escultura do diálogo e do uso da arte
para promover a consciência crítica”. O encorajamento que os artistas consagrados imprimem aos estudantes
e a outros artistas emergentes no Programa de Arte Pública Leap sem dúvida resultará em uma tradição
em arte pública que se estenderá até as gerações futuras. Os nomes mencionados são apenas um punhado
de artistas profissionais generosos e inspiradores que já participaram do Arte Pública Leap e que apoiam a
educação através de um programa de artes avançado.
Alice Aycock é outra figura importante que contribui para o sucesso do Leap e atualmente é mem-
bro do corpo docente da Escola de Artes Visuais em Nova York. Ela produz obras inspiradoras, como Star
Sifter, uma grande escultura arquitetônica que está em exposição na rotunda do novo terminal do Aeroporto
Internacional JFK. Seu mais novo projeto é o Park Avenue Paper Chase, inaugurado em 2014.
Christo é bem conhecido em Nova York por seu trabalho no Central Park, The Gates”de 2005,
em colaboração com sua falecida esposa Jeanne-Claude. Ele está trabalhando na MSU Denver Center, Rio
Arkansas, Colorado, em um projeto chamado Sobre o Rio, obra também planejada com Jeanne-Claude.
Christo é idealizador de três obras principais: a Mastaba, uma escultura permanente nos Emirados Árabes
Unidos; Pacote Big Air, constando de um barril inflado de 295 metros que foi exposto em 2013 na Ale-
manha, e Sobre o Rio que está atualmente parado aguardando uma resolução de um litígio pendente entre
grupos de cidadãos e órgãos estaduais e federais que aprovaram o projeto. Jeanne-Claude estava colaborando
com o Programa de Arte Pública Leap há muitos anos, e o carisma de Christo para atrair os estudantes os
fez entender a importância da reciclagem na criação da arte como reflexo da vida.
Chuck Close, em um recente artigo de Patricia Cohen, afirmou aos alunos que a arte salvou sua
vida. Close, que criou uma tapeçaria com imagens de Obama com o objetivo de contribuir para a vitória do
presidente, quando visita a Leap em sua cadeira de rodas é sempre bem-vindo pelos alunos, que o saúdam
calorosamente. Fechar é outro artista bem conhecido pelos seus grandes retratos blowup, feitos na década de
1970. Foi este artista escalado para instalar uma obra gigante de mosaicos, com uma série de retratos para
a campanha da cidade, na estação de metrô da rua 86 leste Straphangers, que tem como proposta aliviar a
superlotação do metrô de Nova York. Tal obra custa cerca de um milhão de dólares e Fechar afirma que o
160
que o inspira são as fotografias de artistas que ele tem recolhido durante todos estes anos.
Dennis Oppenheim (1933-2011), artista conceitual do meio ambiente, recebeu atenção internacio-
nal por um corpo de arte conceitual que inclui performance, escultura e fotografia. No início de 1970, Op-
penheim atuava na vanguarda de artistas que utilizavam filmes e vídeos como um meio de investigar temas
relacionados com a body art, arte conceitual e performance. Em uma série de trabalhos produzidos entre
1970 e 1974, Oppenheim usou seu próprio corpo como lugar de desafio: explorou os limites do risco pessoal,
da transformação e da comunicação através da performance ritual de ações e interações. Oppenheim ainda
inspira os estudantes do Programa de Arte Pública Leap a aprender como encontrar uma nova perspectiva
sobre as suas obras favoritas: Dispositivo para erradicar o mal, de 1997, e de 2009.
Julian Schnabel (1951, Nova Iorque) tornou-se famoso em Nova York por criar retratos quebrados
em pratos de mosaico na década de 1970 e por dirigir um filme sobre o neoexpressionista grafiteiro Jean-
Michel Basquiat, de 1996. Schnabel declarou aos alunos da Leap que nunca pensou em se tornar um diretor
de filmes até que um amigo o chamou para ajudar a dirigir um filme. Conta ele com outro sucesso através
de uma história de drama, em um filme sobre uma menina palestina órfã crescendo durante a guerra árabe
israelense. Schnabel alcançou o sucesso, também, com seu trabalho de artes visuais quando vendeu uma
pintura, Notre Dame, na Sotheby´s, por 93.500 dólares. Seu mural Espanha, atraente colagem de placas que-
bradas, cerâmica e pintura a óleo, está em exibição permanente no Museu Guggenheim de Bilbao. Schnabel
vive em um castelo cor-de-rosa, no West Village, o Palazzo Chup. Durante nossa visita com alunos de uma
escola do Bronx, aconselhou-os a nunca jogar fora seus maus esboços, pois, para ele: “Continuem a fazer
isso, criar, pois tudo é arte.”
Kenny Scharft pintou seu último mural em Nova York, entre Houston e Bowery, em 2010. Scharft
inaugurou em 2013 uma exposição na Pauls Kasmin Gallery, Soho, NYC, mostrando pinturas e esculturas
que influenciaram muitos artistas e estudantes com sua famosa obra Graffiti. Em 2012, Scharft criou um
mural no Lower East Side, entre as ruas Staton e Rivington, que causou muito espanto e mudou a ambiência
do bairro. Seu estilo de mesclar histórias em quadrinhos com personagens coloridos é bem-humorado. Os
alunos adoram seu trabalho, bem como o trabalho de seu falecido amigo Keith Haring, com quem os alunos
aprenderam a criar murais em quadrinhos usando símbolos ou imagens semióticas.
Mark di Suvero é um escultor expressionista-abstrato que vive em Nova York e tem um estúdio
em Long Island City e East River, perto do Parque Sócrates que ele ajudou a criar. Publicou, recentemente,
um livro intitulado Dreambook, uma compilação de imagens de esculturas, poemas e ideias. Sua escultura é
convidativa e suas obras constituem conjuntos monumentais, incorporando aço e madeira. Suvero emergiu
como uma estrela nos anos 1960. Representou o primeiro artista vivo a mostrar sua escultura no Jardim das
Tulherias, em Paris, e o primeiro homenageado com três grandes exposições no Storm King Art Center. Su-
vero apresentou uma grande exposição ao ar livre, de maio 2013 a maio de 2014, no Museu de São Francisco
de Arte Moderna (SFMOMA), em parceria com o Serviço Nacional de Parques (NPS) e o Golden Gate
Parks Conservancy Nacional. Suvero recebeu o Lifetime Achievement Award em Escultura Contemporânea
do Centro Internacional de Escultura, em 2005.
Tom Otterness criou um estilo que caiu no gosto do público e dos estudantes, graças às suas
linhas redondas magistrais de personagens humorísticos bonitos e profundos, com representações críticas
da história. No Nelson A. Rockefeller Park, situado no final da Chambers Street e do rio Hudson, há uma ex-
posição permanente de suas figuras mais intrigantes. Nomeou-a de Mundo Real, constando de uma série de
figuras folclóricas antropomorfas que representam os sete pecados capitais. Otterness parece viver uma vida
subterrânea com obras de arte pública aparecendo por toda a cidade, assim como em outra série permanente
de trabalhos expostos nas linhas A, C e E e na rua 14, na estação do metrô. Seu mais recente trabalho será
161
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

exibido no Muni Metrô em São Francisco, na Califórnia, o qual será aberto ao público em 2019.

A melhoria da comunidade pela arte pública

Laurie Anderson é uma artista performática e é pioneira da música contemporânea. Em sua apre-
sentação Going to Nowhere coloca ela esta questão: “Como podemos melhorar nossa comunidade?” Através
de uma obra de arte que representa “viver em um quadro de avisos, porque a cidade tornou-se demasia-
damente cheia de informações”, fala sobre lugares, escalas e pessoas. Pepón Osorio cria instalações que
envolvem reciprocamente lugares na comunidade e seu povo. Pepón afirma que não se encaixa na descrição
“artista”. Seu trabalho lida com uma série de contradições, coexistindo com a raiva que contradiz emoções
progressistas do corpo humano. A obra Nenhum Grito Admitido na Barbearia revela questões étnicas e
representa um rito de passagem para se tornar um homem. “Ser artista é um desafio, não é uma opção”, diz
Pepón. “Alguns dos meus trabalhos fazem as pessoas se sentirem desconfortáveis, mas mostram a comuni-
dade de onde viemos”, reitera Pepón. No trabalho Na Cena do Crime, ocupou ele parte do sul do Bronx até
a Park Avenue.
John Waters é um cineasta que dirigiu o famoso filme urderground – Pink Flamingos, uma comédia
divina introduzindo a drag queen Flamboyant. Águas coletadas, obra de arte produzida em massa, revela
que o artista, em seguida, descobriu maravilhas no poder de agressão na arte contemporânea. Ele não só
visitou escolas e universidades mas também prisões, ali estabelecendo um diálogo entre famílias e vítimas de
crime. Sua arte contribuiu, assim, para a criação de vídeos de arte pública falando sobre assassinos em série
ou questões degradantes, insultuosas ou tentadoras e outras ideias que, dentro de uma comunidade, podem
parecer tabu.
A artista Maria Dominguez é uma das primeiras muralistas de Nova York. Muitos de seus murais
não existem mais atualmente. Começou a pintar na década de 1980, e hoje apenas uma de suas obras,
Nuestro Barrio, ainda está disposta entre a rua 104 e a Lexington Avenue, na parte espanhola do Harlem.
Recentemente, exibiu seu trabalho na Biblioteca da Faculdade Hunter, projetando 10 minutos de seu vídeo
Art. 22 Public. Esta artista foi diretamente influenciada por projetos de arte pública no início dos anos 1960
e 1970, de artistas como Claes Oldenburg. A Arte Povora, da década de 1960, parece estar retornando com
os trabalhos de Dominguez, George Baselitz e Julian Schnabel e suas obras de arte pública.
Alejandro Guzman apresentou recentemente Happening e sua neoexpressionista dança-escultura El
Vejigante. Em 2012, criou uma série de esculturas e performances intituladas Intelectual Abandonado: The Melt-
down. Guzman fica dentro da escultura para ajudar a movê-la, segurando um pássaro em uma mão enquanto
com a outra joga um chifre que emite sons de dinossauros, à medida que atira moedas para o público alienado.
A arte de Guzman é influenciada por artistas como Oldenburg, Oppenheim e Schnabel que, na década de
1960 e 1970, realizaram obras de Arte Povora ou Happenings. Guzman é conhecido como sendo o criador de
obras cheias de energia, calor, crítica equilibrada e humor, as quais criam um novo neoexpressionismo.

Organizações de apoio à arte pública

No final da década de 1970, comentou-se muito sobre Louise Nevelson, que perambulava a esmo
em seu bairro, no centro do Soho, para procurar pedaços de madeira nas ruas de forma a poder com-
pletar sua última escultura. Então, a associação de desenvolvimento do Downtown Brooklyn começou,
162
com a construção de um jardim de esculturas, um programa de ação no bairro Washington Heights,
patrocinando a exibição de arte pública em Manhattan. Muitos outros artistas foram apoiados por criar
esculturas a partir de materiais do meio ambiente, especialmente em um evento organizado por Doris
Freedman. Foram fundadas as instituições The City Arts, City Walls e Creative Times dentro do programa
sem fins lucrativos de arte pública para patrocinar experimentações artísticas. A OIA–Organização para
Artistas Independentes – foi fundada por um grupo de treze artistas, em Battery Park, em 1981. O
Conselho Cultural de Manhattan patrocinou, em 1984, seu primeiro parque baseado no Projeto de Arte
Pública e Movimento Molecular concebido por Lisa Hoke. Muitos centros culturais de apoio à arte ao ar
livre também foram fundados, como o Centro Cultural Snug Harbor, em Staten Island.
Hoje em dia, a arte pública está recebendo grande apoio de fontes governamentais, associações
privadas e doadores. A organização de pesquisa mais recente e eficiente na arte ao ar livre é o museu sem
paredes, como o Le Musée Imaginaire, e um aplicativo para smartphone, que viabilizaram uma nova maneira
de conectar os estudantes ao público artístico. Penny B. Bach, diretor e produtor, incentiva os alunos a se
candidatarem a programas para criar arte pública. A galeria Arsenal é um sonho que recentemente se tornou
realidade para os artistas. A Arsenal é apoiada pelo Departamento de Parques e de Recreação de Nova York,
e oferece muitas oportunidades de bolsas para artistas e uma variedade de oficinas. A arte pública cumpriu,
então, sua missão?
O futuro é agora, e contém novas possibilidades progressistas, incentivando o público em geral,
jovens e idosos a pensar e agir de maneira criativa. Com os esforços contínuos da Arte Pública Leap, de orga-
nizações de apoio à arte pública, e de artistas, estudantes e artistas emergentes podem ter a possibilidade de
trabalhar seus talentos, ajudar suas comunidades e fazer das cidades um museu de vanguarda sem paredes.

163
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

A transculturalidade como desafio epistêmico

Evandro Vieira Ouriques


Coordenador do NETCCON – Centro de Estudos Transdisciplinares de Psicopolítica e
Consciência da Escola de Comunicação – UFRJ; supervisor de pós-doutorado do PACC –
Programa Avançado de Cultura Contemporânea da Faculdade de Letras – UFRJ; professor de
pós-graduação do Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza – UFRJ

C omo George Preston, diretor do Museu de Arte e Origens, Nova York,


sublinha ao dizer que diante de um “gancho de direita na sua direção” você tem de se
esquivar, e por isso ele entende que o acadêmico precisa aprender esporte para poder
dar conta da realidade, o que muitas vezes não acontece, trago aqui alguns “ganchos
de direita”-mas também “de esquerda”–para contextualizar empiricamente a situação
premente que configura o argumento da transculturalidade como desafio epistêmico.
Vejamos, em primeiro lugar, (fig.1) o estado real da concentração do que se
convenciona designar de “riqueza mundial”: em 1992, 20% da população mundial con-
centrava 82,7%.
Oito anos após (fig. 2), portanto em 2010, 0,5% da população mundial adulta, a
que ganhou mais, e muito mais, de 1 milhão de dólares líquidos naquele ano, concentrou
35,6% da denominada “riqueza” mundial. Acrescido do grupo de 7,5% intimamente ligado
a estes 0,5%, e que ganharam entre 100 mil e 1 milhão de dólares –portanto o total de 8%
da população mundial adulta – controlou 79,5% da denominada “riqueza” mundial. E estes
dois segmentos, acrescidos dos 23,6% que ganharam entre 10 mil e 100 mil, controlaram
95,8%..., restando então 4,2% da “riqueza” mundial para os 68,4% da população mundial
adulta que ganhou, em 2010, abaixo de 10 mil dólares anuais líquidos.
Vejamos, agora, porque muito se fala, mas quase nunca se vê a realidade do fato, a con-
centração de renda específica nos Estados Unidos. E o façamos sob a perspectiva de um 2013 em
que a “mulher mais rica do mundo manda pobres trabalhar”, a “parar de beber” e de ter “inveja”,
e o Fundo Monetário Internacional-FMI apresenta aos espanhóis (no que obtém o apoio até do
vice-presidente da Comissão Europeia) a redução dos salários para combater o desemprego .
Divididamos então a população norte-americana em seus quatro grandes gru-
pos de renda com a mudança que tiveram, entre 1979 e 2009 (Fig.3-out/nov, 2012),
justamente as três sinistras décadas que sincronizam a totalização pela verdade absoluta
dos rendimentos e os princípios absolutos da pós-modernidade.
Impressionante, não é verdade? Enquanto os cidadãos continuam pensando
apenas que sua autonomia resume-se ao “direito”de morar em cidades (e os campos
são completamente dominados pelo agronegócio, produção energética e commodities) e
consumir, nas cidades norte-americanas existem 22 residências vazias para cada morador
de rua, e 50% das cadeiras daquele Congresso são ocupadas por milionários, enquanto
164
Fig. 4

Fig. 1
Fig. 5

Fig. 6
Fig. 2

Fig. 7

Fig. 3

165
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

apenas 1% da população norte-americana é milionária.


Por que as pessoas obedecem? Por que as forças de transformação social não conseguem historica-
mente unidade na diversidade? Por que há problemas epistêmicos graves na Teoria Social?
Aguardemos, por gentileza, mais um pouco, enquanto examinamos outras provas empíricas de que
a transculturalidade precisa ser compreendida como o desafio epistêmico central de nossos tempos, marcado
pela fragmentação oriunda da fragmentação primeira entre Cultura e Natureza, fragmentação que sintomati-
camente só desaparece de maneira simulada na totalização pelos rendimentos.
Vejamos, então, os resultados concretos de tal ausência de transrelação entre Cultura e Natureza.
Se tivéssemos abandonado, em 2007 (Fig. 4), o estado mental de “crescimento ilimitado”, slogan do “de-
senvolvimentismo”, filho da sequência conceitual civilização-primitivo, progresso-atraso, modernidade-
tradição, levaríamos 43 anos, ou seja, até 2050, para gastarmos um planeta de recursos naturais para man-
ter o padrão de produção e consumo. Como não fizemos isso, e a Rio+20 está aí como prova irrefutável,
naquele mesmo ano de 2050 gastaremos dois planetas e 1/3 de recursos naturais... Imagine se o orçamento
de sua casa fosse administrado dessa maneira... Certamente você seria chamado de “louco e irresponsável”.
Em termos psicopolíticos explicamos que o que está acontecendo é o estado de perversão, isto é, a adição,
pelo sujeito, a um objeto do real ou imaginado; no caso o consumismo e a concentração de renda e poder
que o move, que o sujeito supõe dar conta do sentido.
E agora temos (Fig. 5) as curvas de 1750, 1880, 1850, 1900, 1950 e 2000 dos índices de Temperatura
Média do Hemisfério Norte, População, Concentração de CO2, PIB, Perda de Florestas Tropicais e Bosques,
Extinção de Espécies, Veículos a Motor, Uso de Água, Consumo de Papel, Exploração de Pescados, Perda de
Ozônio e Investimento Estrangeiro. Trata-se da própria imagem aqui centenária do esforço de ereção monu-
mental da mentalidade dualista, patriarcal, machista.
E aqui (Fig. 6), os dados de como foi a corrida consumista dos anos 1960 até 2008, e as projeções
até o mesmo ano de 2050, referenciado na Figura 4. O cinza mostra a exploração e o consumo de carvão. É o
carvão, por exemplo, um dos principais impactos que recai sobre os quatro povos indígenas da Sierra Nevada
de Santa Marta, Colômbia: os Arhuacos, Kankuamos, os Wiwas e os Koguis.
Completando este fundamento empírico do argumento deste artigo, vejamos agora a relação entre
a Pegada Ecológica e a Biocapacidade (Figs. 7, 8, 9, 10, 11, e 12) de alguns países centrais, por serem con-
siderados “desenvolvidos” ou “em desenvolvimento acelerado” e, portanto, “exemplos” que deveriam ser
seguidos sem discussão, como o Brasil vem fazendo.
Como se pode ver (Fig.7), os Estados Unidos mantêm seu padrão de produção e consumo obtendo
biocapacidade para isso retirando-a de outros países, na esteira do que fizeram antes e continuam a fazer
países “desenvolvidos” em sincronia com a transferência de renda.
À medida que a China se “desenvolve”, mais e mais recursos naturais são retirados de outros países.
A França consome acima de suas reservas de recursos naturais desde antes dos anos 60... É a história imperial:
o saque sistemático de recursos dos países não imperiais para a elaboração de uma estética– um “museu in-
terno”– que passa a ser admirada e oferecida como “a desejável” para todos, inclusive, sintomaticamente, para
aqueles dos quais os recursos foram e são retirados pela força física e/ou simbólica. E a Dinamarca! Observe
a tentativa de reverter o processo a partir do início dos anos 1990. E esta é a situação real da Alemanha, que
também e tanto idealiza-se como um país-referência, quando, de fato, empiricamente, não existem recursos
naturais suficientes para produzir para todas as pessoas do mundo os bens e serviços que se consideram “de-
senvolvidos”, “bons e necessários para todos”. E quando, ainda por cima, tais bens e serviços eliminam os bens
e serviços que caracterizam a multiplicidade de culturas e suas diversidades econômicas que queremos res-
peitar e vivenciar com a estética transcultural da universidade; do museu; da arte, e, digo eu, da Teoria Social?
166
E esta é a situação do Brasil... O resultado do funda- Fig. 8
mentalismo de mercado, do “desenvolvimentismo”
que captura (e equaliza) à “direita” e à “esquerda”. Se
a linha verde fossem as “entradas” de seu orçamento
pessoal e a linha vermelha a das suas “despesas”,
você continuaria a manter o mesmo planejamento
estratégico? É por isso que a transculturalidade é um
desafio epistêmico.

A transculturalidade como desafio epistêmico

O Museu é lugar emblemático da possibi- Fig. 9


lidade do encontro entre culturas.
E a Universidade, o lugar da criação das
condições do conhecer necessário, portanto das
condições filosóficas, epistêmicas para este encontro.
Por isso, a filosofia que move o Museu, e
move os que fazem os museus, é o sintoma do estado
em que se encontra o diálogo entre as civilizações
(OURIQUES, 2001).
Tal diálogo entre as culturas é exigido
para a superação dos chamados “conflitos intercul-
turais” (ROJAS, 2002), por exemplo no contexto Fig. 10
das migrações na Europa e Estados Unidos, das
demandas de autonomia intraeuropeia, por ex-
emplo, da Galiza, País Basco e Catalunha e das
reivindicações dos povos originários e culturas ru-
rais na América Latina, África, Ásia e, de maneira
geral, em todo o mundo.
Como analisa Johan Galtung:
We now enter a fascinating, multi-polar, period in
world history. Six civilizations amount to six devel-
opment models; scattered on eight poles in an octago-
nal world: USA and EU, both West-liberal; Russia
Fig. 11
searching (educated guess: for an improved version
of West-Marxist); India, huge, but at a loss with its
Hinduism; China as China (with Japan in a pain-
ful search for stability between USA and China); the
Muslim world, OIC-Organization of Islamic Coop-
eration, searching for an ummah in the OIC region,
with the sunni-shia conflict resolved; Africa search-
ing for an eclecticism based on West-secular, Islam
and something of its own; Latin America right now
steeped in a creative intra-West dialogue. Let it be,
167
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

let it happen. Our future depends on these dialogues. (GALTUNG, 2013, p. 3) 1

Neste sentido, o Museu é possibilidade-chave da experimentação total da transculturalidade de-


fendida por Jacques Poulain. Apenas a transculturalidade é capaz de promover o referido encontro, de que
precisamos, na medida em que a interculturalidade é visão ainda dualista, com cada identidade cultural en-
capsulada em si mesma, em uma posição de inútil “tolerância”, conceito que reveste quase sempre intenções
de catequese e, portanto, de eliminação do outro, entendido como uma exterioridade absoluta a ser reduzida
a mais do mesmo. Neste artigo compartilho como entendo e vivencio tal questão a partir da perspectiva
psicopolítica da Teoria Social (OURIQUES, 2002, 2006, 2007, 2009a, 2009b, 2010a, 2010b, 2011, 2012a,
2012b, 2012c, 2012d) à qual venho me dedicando, bem como à sua metodologia operacional de mudança de
cultura, a Gestão da Mente. Para mim, transdisciplinar desde 1984 e não dualista desde 2002, o Museu ao
qual dediquei diretamente 21 anos de minha vida é a possibilidade de construir um pedagógico e emancipa-
dor lugar transcultural, no qual somos, a um só tempo, iguais e diferentes; e, portanto, lugar onde efetiva-
mente nos encontramos, nos re-unimos.
Ou seja, como demonstrado por Marcio Tavares d’Amaral, vivenciamos a experiência da cultura
de comunicação, distinta da atual cultura de informação, que objetiva apenas o convencimento do outro: a
referida catequese, por exemplo, a do “desenvolvimentismo”, que elimina qualquer outra maneira econômi-
ca de viver. O sentido da transculturalidade é o da instauração deliberada através da força de vontade (no
sentido de Spinoza), do lugar onde os migrantes encontram o que lhes é comum, a matriz, esta que é a
origem de todas as matrizes, a única referência capaz de conectar-los com o sentido, como compreendido
por Cornelius Castoriadis: o lugar onde a diferença, como as dos povos originários e populares, é de fato
respeitada, uma vez que o respeito só é possível quando epistemicamente se constrói a possibilidade do en-
contro, o lugar onde vigora a experiência da unidade original, no qual se formou a mônada psíquica.
Como diz um milenar provérbio hindu – que ele seja, aqui e agora nesta reflexão sobre o Museu,
quem sabe, nossa Musa inspiradora: “quando eu não sei quem eu sou eu sirvo a você (seja pela vitimização,
seja dominando você, pois dominar é também uma forma de servidão); e quando eu sei quem eu sou, eu sou
você”. Este estado de fusão é conhecido no Ocidente apenas na tradição monista. Por isto, antes de prosse-
guir, torna-se necessário esclarecer que estou falando de uma perspectiva distinta da dualista, que coloca a
filosofia no buscar a alegria na harmonia ou na dissonância e, portanto, assumir um caráter trágico, fun-
dado na inexistência de uma natureza no sentido clássico, à qual só restaria adequar-se religiosamente. Sem
dúvida, esta recusa às filosofias que pretendem interpretar o real para impor-lhe um sentido é muito saudável
até certo ponto, pois trouxe emancipação em face da opressão metafísica, mas sua opção por perceber a re-
alidade como in-significante, sem unidade, sem natureza, sem ser objeto adequado ao pensamento, e assim
constituída ontologicamente como artifício através do singular e do acaso, não impediu a permanência de
um fundo metafísico na pós-modernidade, composto pelo menos por três eixos identificáveis empiricamente
(e expostos em parte no início deste artigo), bem como na dramaturgia da mimesis que tem marcado as
artes:

1
Entramos, agora, em um fascinante e multipolarizado período na história mundial. Seis civilizações conduziram a seis diferentes modelos de
desenvolvimento, os quais se encontram espalhados em oito polos, em um mundo octogonal: os Estados Unidos e a União Europeia, ambos
ocidentais-liberais; a busca da Rússia, com o presságio de uma versão melhorada do marxismo ocidental; a Índia, embora enorme, mas sofrendo
também a perda de seu hinduísmo; a China como China, com o Japão em uma dolorosa procura por estabelecer sua estabilidade entre os Estados
Unidos e a China; o mundo islâmico, com a Organização de Cooperação Islâmica-OIC buscando estabelecer uma nação ou comunidade (ummah)
na região, através da resolução do conflito entre sunitas e xiitas; a África, procurando alcançar um ecletismo baseado no Ocidente secular e em
algo de sua identidade própria; a América Latina imbuída, no momento atual, de um diálogo criativo com o Ocidente. Que assim seja, deixemos
as coisas acontecerem. Nosso futuro depende desses diálogos (GALTUNG, 2013, p. 3).
168
(1) o da totalização pelos rendimentos e de sua crescente concentração, proporcional à devastação da
biocapacidade que sustenta objetivamente a vida humana;
(2) o do fundamentalismo tecnológico que captura grande parte dos movimentos de mudança social,
como o da cultura digital, que supunha como verdade absoluta o rizomático, em detrimento do arbóreo, e
que bastaria estar conectado para ser colaborativo, democrático e desmonetarizado;
(3) e a insistência em afirmar um espírito cujo fundo seria delírio, acaso e indiferença, o que acabou
por expulsar da Igreja o fornecimento do sentido mas o tem visto ressurgir, com imensa eficácia na publici-
dade e no marketing, tanto os do consumismo quanto os do fundamentalismo religioso e de todas as políticas
conservadoras em alta neste século XXI que segue em passagem.
É assim que a pós-modernidade, com seu trágico horizonte de fracasso e angústia corajosamente assi-
nalado por Irma Medoux, tem sido acanhada, como bem disse Terry Eagleton: com respeito à moralidade e à
metafísica, embaraçada quando se trata de amor, biologia, religião e a revolução, grandemente silenciosa sobre
o mal, reticente a respeito da morte e do sofrimento, dogmática sobre essenciais, universais e fundamentos, e
superficial a respeito da verdade, objetividade e ação desinteressada. (EAGLETON, 2005, p. 144).

Sem dúvida, incentivar a sociedade a não agir por princípios ontoteológicos, e a criar consensos e
seguir a ética da solidariedade, da “discussão sem coação” é fundamental. Mas tentar eliminar a possibili-
dade do universalismo de valores, supondo que a humanidade poderia organizar-se apenas pela adaptação
às contingências da história não poderia resultar em outra coisa senão defrontar-se com a esfinge do funda-
mentalismo de mercado e a morte em grande parte da arte e dos museus.
Defender que cada povo fala sua própria linguagem do bem e do mal, e que cada um deles inven-
tou a língua de seus costumes e de seus direitos, impede a experiência da transculturalidade, tornando os
povos reféns de um relativismo incapaz de dar conta de questões objetivas, prementes e universais como
Sustentabilidade, Responsabilidade Social, Direitos Humanos e Direitos da Terra, por exemplo, que de-
pendem obrigatoriamente de valores universalisáveis, vale dizer, transponíveis à escala universal como o da
solidariedade, gratidão, generosidade e celebração da dádiva da Vida.
Como já mostrou Jesús Martín Barbero, a questão de fundo do “desenvolvimento” é justamente o ataque
epistemicida, como aponta Boaventura de Souza Santos, que tal fundamentalismo ocidental faz de maneira univer-
sal contra o vigor das identidades culturais. O que os movimentos étnicos, raciais, regionais e de gênero reivindicam
é o direito universal à própria memória e ao exercício de sua maneira de viver e estar no mundo; ou seja, de seus
territórios mentais (OURIQUES, 2009), vale dizer, do fluxo de seus pensamentos, afetos e percepções.
Um exemplo concreto de respeito a tal direito universal é assim:
[...] garantizar los procesos de producción simbólica. Por ello, es más peligrosa la construcción
de una carretera sobre un cementerio indígena que el etnoturismo o la venta masiva de arte-
sanía. En la primera actuación, se despoja a la comunidad de referentes simbólicos que aseguran
la construcción permanente del sujeto-y/en-la-comunidad; en tanto que en la segunda actu-
ación, se agregan valores que podrán coexistir si existe las garantías de construcción simbólica.
(ROJAS Y MORENO, 2004) 2

É desta maneira que se constrói a transculturalidade, a garantia para as culturas do vigor universal
dos valores societais, uma vez que apenas ela permite que nos envolvamos com o outro até deixá-lo de ver
2
(...) garantir os processos de produção simbólica. Por isso, é mais perigosa a construção de uma estrada sobre um cemitério indígena do que
o etnoturismo ou a venda maciça de artesanato. Na primeira hipótese, se despoja a comunidade de referências simbólicas que asseguram sua
permanente construção do sujeito-e/na-comunidade enquanto, na segunda hipótese, se agregam valores que poderiam existir caso existissem as
garantias de construção simbólica (ROJAS Y MORENO, 2004).
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

como exterioridade (ou apenas como exterioridade), pois, como mostrou Heisenberg, a observação de um
fenômeno do exterior não apenas o modifica, mas também geralmente o faz desaparecer...
A experiência da observação nãodualista das pessoas, das culturas, do mundo e da Vida na multipli-
cidade de suas diferenças é observar a verdadeira riqueza, a dádiva, esta: a alternativa à dialética do senhor
e do escravo. Não se trata de dominar o outro, nem de ser dominado; nem de domar a Natureza, nem de
ser esmagado por ela; mas de pertencer a um conjunto mais amplo, de restabelecer a relação, de tornar-
se membro. Por medo (...) de se deixar enganar, o moderno não consegue mais abandonar-se à corrente
cósmica, “prender-se”. Ele reduz todo o universo a objetos aparentemente não ameaçadores porque não
prendem [um objeto e um animal doméstico prendem menos que uma pessoa], não comprometem, objetos
dos quais ele pode desligar-se instantaneamente [pela obsolescência programada e consumismo]. E ele gera
a poluição, sufoca naquilo que ele rejeita e que acaba por rejeitá-lo. (GODBOUT, 199,p. 252).

O que é exatamente o contrário do que a experiência da transculturalidade nos oferece, como nos
mostram os Wiwas, povo originário da referida Serra Nevada de Santa Marta:
En la origem de las cosas y en el establecimiento de su funcción en el Universo se sustentan las normas para el com-
portamiento de las personas y de la sociedad en la relación entre los seres humanos y de estos con todos los elementos
del Universo. Para nosotros las normas no están en los códigos legales o en mandatos morales, sino en el origen del ser
de las cosas de la Naturaleza y la llamamos “Ley de Origem”. [...] Unidos hay paz, unidos hay inteligencia, unidos
hay poder, unidos viene la sabiduría, unidos se hace la fuerza (ESTEPA, 2011, p. 49). 3

A superação do “museu interno”

Mas como construir e vivenciar este estado mental, se a lógica epistêmica do Ocidente moderno e
pós-moderno e, portanto, da Academia, é, como referido, o dualismo, segundo o qual estamos presos entre a
“unidade”, que seria sempre autoritária, e a “lógica multicultural da alteridade e diversidade”, cujas “políticas
de reconhecimento” não logram transformar direitos sociais e políticos em direitos econômicos diante, como
bem diz Jacques Poulain, dos “autistas pragmáticos” da financerização da Vida e de seus seguidores, por
exemplo os da pontuação acadêmica que dão continuidade na Universidade ao epistemícidio que queremos
superar com a transculturalidade.
Trata-se, portanto, como disse em outro lugar (OURIQUES, 2012), do sujeito desencapsular-se “da
não objetividade da perversão, pois objetividade é uma abertura solidária para as necessidades de outros, algo
que está muito perto do amor. É o oposto do egoísmo, não de interesses e convicções pessoais” (EAGLE-
TON, 2005, p.180); é da ordem de um conceito alvo do escárnio da esquerda: o da referida ação desinteres-
sada (OURIQUES, 2004)e, portanto, em sua origem, o conceito político radical, portanto psicopolítico, que
precisamos para fazer vigorar a transculturalidade, uma vez que o amor é:
Essa espécie de simpatia imaginativa [...] [que] se compraz com o bem-estar dos outros com um gosto quase
sensual. O desinteresse -que, para a teoria pós-moderna, é a última palavra em matéria de ilusão - é um tapa
no individualismo egoísta [...]. (EAGLETON, 2005, p. 183-184).

Esta possibilidade de encontro transpessoal, e assim transcultural, é construída, sob minha perspec-
3
Na origem das coisas e no estabelecimento de sua função no Universo, se sustentam as normas para o comportamento das pessoas e da so-
ciedade na relação entre os seres humanos e, destes, com todos os elementos do universo. Para nós, as normas não estão nos códigos legais ou
nos mandatos morais, senão na origem do ser e das coisas da Natureza que denominamos de “Lei de Origem”. [...] Unidos há paz, unidos vem a
sabedoria, unidos se faz a força (ESTEPA, 2011, p. 49).
170
tiva, quando cada cultura, e cada indivíduo que a compõe e sustenta, assume psicopoliticamente a revisão
crítica e redescrição pragmática de seu museu interno, de sua arquitetura, de sua museografia; do que chamo
território mental: no qual ocorre o fluxo de pensamentos, afetos e percepções que compõe a mente, entendida
como o organismo inteiro; este museu interno com seu fluxo de obras expostas que usamos como modelos
de verdade, de modelos de felicidade, quando eles estão expostos por uma curadoria, uma museografia e um
design de montagem que expressam sinistramente apenas um julgamento excludente, baseado, como diz
George Preston, na produção de “ismos”.
Estamos, portanto, diante de um desafio tremendo, imenso, sistêmico, complexo, em rede, de
superar a mentalidade da pilhagem do que se entende como “primitivo” (da arte, sobretudo a partir do
século XIX, e dos recursos naturais e commodities desde o século XVI) e a continuidade da construção,
na Europa e nos Estados Unidos, de ambientes e leilões com os resultados desta pilhagem sistemática que
nos são apresentados como se fossem desejáveis e, portanto, como modelos de suposto “desenvolvimento”
a serem perseguidos.
El concepto de desarrollo como hoy lo entendemos tiene su origen en una relación incestuosa entre la
ciencia y el poder. Las ciencias naturales primero pretendieron explicar el origen de la vida por medio de la razón
y el método. De dichas búsquedas proviene el concepto de evolución como una ley de la vida que produce cambios
en los organismos y los lleva a transformarse de organismos simples a otros más complejos. La evolución, en un
sentido amplio, ha sido entendida como un proceso que ha determinado la historia de la naturaleza y como una
ley que rige el destino de la vida. Desde la ciencia suponemos que la evolución es progreso y bienestar. (ESLAVA,
2007, p. 203).4

Como diz o grande sociólogo indiano Ashis Nandy, no conjunto dos pensadores compromissados,
em todo o mundo, com a reunião e aprofundamento dos acadêmicos do Leste, do Sul, do Oeste e do Norte
compromissados com a descolonização mental: as forças antigas da ganância humana e da violência, recon-
hece-se, conseguiram apenas encontrar uma nova legitimidade nas doutrinas antropocêntricas da salvação
secular, nas ideologias de progresso, normalidade e hiper-masculinidade, e nas teorias de crescimento cumu-
lativo da ciência e da tecnologia. (NANDY, 2011:X)

Trata-se de enfrentar o desafio epistêmico de superar psicopoliticamente, através do aprendizado e


exercício do Amor, da Beleza, da Compaixão, da Alegria e da Celebração, a presença, no museu interno de
cada um de nós, dos estados mentais da ignorância, do ódio e da ganância, estes pilares centrais da arquitetura
mental que produz a obssessiva pilhagem do fanatismo do mercado, a estetização econômica, o fundamental-
ismo sob todas as suas obscuras faces.
Esta arquitetura mental é o próprio museu epistêmico, epistemológico e metodológico no qual nas-
cemos e o qual esquecemos, supondo que os museus são apenas os prédios como este em que estamos, e,
esquecidos do próprio museu interno ficamos, então, inconscientemente a carregá-los: (1) temendo-os e (2)
reverenciando-os, pois temer e reverenciar é o que aprendemos em relação ao Museu, como lembrado por Jack
Lohman, diretor do Royal British Columbia Museum e, assim, temendo-os e reverenciando-os (3) os reproduz-
indo em nossas ações no mundo, inclusive em nossos museus físicos, externos.
É apenas através desta consciência psicopolítica que, entendo, podemos superar o silêncio epis-

4
O conceito de desenvolvimento, como hoje o entendemos, tem sua origem em uma relação incestuosa entre a ciência e o poder. As ciências
naturais, inicialmente, pretenderam explicar a origem da vida através da razão e do método. Destas pesquisas provém o conceito de evolução
como uma lei da vida que induz a mudanças nos organismos e nos conduz à transformação de organismos simples em outros mais complexos.
A evolução, em um sentido mais amplo, tem sido entendida como um processo que tem determinado a história da natureza e como uma lei que
rege o destino da vida. Desde a ciência, supomos que a evolução é progresso e bem-estar (ESLAVA, 2007, p. 203).
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

temicida e fazer vigorar a unidade na diversidade; quando cada Cultura radicaliza a Comunicação– a base
antropológica, psíquica e biológica de toda experiência–, e, assim, escapa – através da presopopeia amplifica-
da na contemporaneidade – de ser capturada pelos mesmos e citados valores da ignorância, ódio e ganância
que diz querer superar no plano que chama “social” e “político”.
Esta tarefa demanda uma nova Teoria Social que permita o vigor da transculturalidade, da indis-
sociabilidade entre a Natureza e a Cultura, as grandes parceiras, pois a suposição de que seríamos indepen-
dentes dela, ou de que ela seria o lugar da captura, está no cerne de nosso desafio e torna-se uma imensa
oportunidade.

Da interculturalidade à transculturalidade

O desafio para a pós-modernidade, insisto, é que a comunicação transcultural, o museu transcul-


tural, a estética transcultural falam necessariamente de uma ética transcultural. Da capacidade de entender
a simultaneidade em que ocorre unidade e singular, liberdade e disciplina, Lei e Acolhimento.Portanto,
de um conjunto de valores estáveis e consensuados de maneira positiva, capaz de fazer frente ao consenso
destrutivo da redução da complexidade da Vida e do Mundo aos rendimentos, à maximização do uso da
Natureza e da Sociedade.
Pues el conflicto y las reivindicaciones operan, necesaria e inevitablemente (más necesariamente), desde procesos de
absolutización identitaria, para, desde dicha polarización extrema, establecer una interlocución. [...] no hay rei-
vindicaciones y conflicto sin un juego dicotómico, sin un espacio binario; pues la utopía reivindicativa se desplaza,
necesariamente, a través de referentes binarios”. (ROJAS y MARTÍN, 2009, p. 207-208). 5

Desta maneira, apenas a compreensão epistêmico-experiencial (portanto total renovação da consciên-


cia, renovação mental) do nãodualismo, reitero, permite escapar desta captura; permite mudar psicopolitica-
mente de atitude e, apenas então, praticantes da unidade aberta, encontrar as epistemes originárias referidas,
ameríndias, africanas, populares etc., para as quais a Natureza é viva e a Vida pensamento do tecido; pensam-
ento da pele; pensamento respiratório; quando a Mente é o organismo todo, território mental, e o pensamento,
integral, portal filogenético, lugar do sagrado; alcançando não os simulacros de prazer dos bens e produtos
insustentáveis e excludentes da obsolescência programada mas sim, então, a verdadeira felicidade, a da colabo-
ração positiva entre as culturas e entre a Cultura e a Natureza.
É neste sentido que o problema é de fato a transculturalidade, e não a comunicação intercultural ou
a interculturalidade, na medida em que estas últimas:
desde una perspectiva genealógica, constituyen un discurso y una práctica funcional e instrumentalizada para la
“resolución” de determinados conflictos sociopolíticos y económicos, tras los procesos migratorios y reivindicativos.
[...] Los fenómenos que configuran el objeto de estudio de la “comunicación intercultural”, constituyen construc-
ciones postraumáticas, en tanto productos de los procesos migratorios y reivindicativos. (id. p. 206-207).6

5
Em seguida, o conflito e as reivindicações operam, necessária e inevitavelmente (mas necessariamente), em relação aos processos de absolutiza-
ção identitária para, no nível de tal polarização extrema, estabelecer uma interlocução.[...] não há reivindicações e conflitos sem um jogo dicotômi-
co, sem um espaço binário; pois a utopia reivindicativa se desloca, necessariamente, através de referentes binários. (ROJAS y MARTÍN, p. 207-208).
6
Sob uma perspectiva genealógica, constituem um discurso e uma prática funcional e instrumentalizada para a “resolução” de determinados
conflitos sociopolíticos e econômicos, após os processos migratórios e reivindicativos [...] Os fenômenos que configuram o objeto de estudo
da “comunicação intercultural” representam construções pós-traumáticas, portanto produtos dos processos migratórios e reivindicativos (id, p.
206-207).
172
Mas que, como reconheceu Nobleza Asunción-Lande já em 1986, apesar de poder:
ayudar a crear una atmósfera que promueva la cooperación y el entendimiento entre las diferentes culturas [aunque]
el conocimiento de la comunicación intercultural no se puede considerar por sí mismo como suficiente para resolver
los problemas de comunicación [incluso porque] hacen hincapié en el aspecto cultural en vez de hacerlo en el aspecto
de comunicación de los contactos interculturales. (apud ROJAS y MARTÍN, 2009, p. 199). 7

Esta é a tarefa hercúlea que nos demanda a transculturalidade, transculturalidade que faz recuar
para antes da existência o “outro”, este fenômeno criado epistemicamente pelo dualismo e mantido como
exterioridade absoluta através de operações psicológicas com fins políticos; portanto, psicopolíticas; como as
da pedagogia da opressão, da concentração da propriedade dos meios de comunicação, do caráter panóptico
da internet, do neuromarketing para fins comerciais e políticos e da quarta geração da guerra, a guerra psi-
cológica; operações psicopolíticas que envenenam o museu interno, o território mental.
É por isto que, diante do avanço generalizado do retrocesso em todo o mundo, precisamos de uma
outra Teoria Social, na qual a transculturalidade como desafio epistêmico é superada no espaço, no território,
na política, na cultura, na universidade.
Para termos, como defende Jacques Poulain, a estética transcultural na Universidade.
E a partir deste lugar, a Universidade, que de tão decisiva está reduzida ao “dissenso consentido”,
podemos fazer instaurar a estética transcultural no mundo, que reconhece e apresenta psicopoliticamente em
termos de pensamentos integrais, afetos integrais e percepções integrais a realidade que mantém a ordem do
espaço, do território, da sociedade, da cultura e de um governo que governa desde o saneamento até a repara-
ção de si mesmo como pessoa.
Aproximo-me do final com as palavras do Mamo Zeukukuy Kankwwrwa Manchukua, um
Mamo (autoridade espiritual) da Cultura Kogui da Serra Nevada de Santa Marta, Colômbia, onde estive,
a convite do Programa de Antropologia da Universidad del Magdalena, em maio de 2013, justamente para
tratar de como é possível epistemicamente superar a pós-modernidade e compreender o pensamento dos
povos originários e assim poder criar currículos apropriados inclusive para o desenho estratégico de políti-
cas públicas:
Nuestro pensamiento es universal [diria talvez Jaques Poulain transcultural] porque abarca cuanto existe, es decir,
lo visible y el invisible, los grandes misterios que encierra la Naturaleza y que, hasta ahora, el hombre no sabe, pues
todo lleva a la química y a las ciencias, pero ignora que todas las cosas tien su espíritu, inclusive las plantas, las
piedras, todo esto conforma un pensamiento que va al universo, unido todo como un respiro, como un aliento. Este
es un pensamiento que no lo he inventado yo, sino que tiene miles de años. (ESTEPA, 2011) 8

É por isto que escutar, compreender, aplicar e vivenciar esta perspectiva psicopolítica da Teoria Social
de gestão do museu mental, na constituição antropológica de um outro homem e uma outra mulher, é que
garante a estética transcultural.
A transculturalidade, se me permite Jacques Poulain, é a superação da vaidade humana, deste estado
7
Ajudar a criar uma atmosfera que promove a cooperação e o entendimento entre as diferentes culturas, (embora) o conhecimento da comuni-
cação intercultural não possa ser considerado, por si mesmo, como suficiente para resolver os problemas da comunicação (inclusive porque) o
depositaram, insistentemente, no aspecto cultural, em vez de depositá-lo no aspecto da comunicação dos contatos interculturais (apud ROJAS Y
MARTÍN, 2009, p. 199).
8
Nosso pensamento é universal (diria, talvez, Jacques Poulain, transcultural) porque abarca tudo o que existe, isto é, o visível e o invisível, os
grandes mistérios que encerra a Natureza e que, até agora, o homem não sabe, pois tudo conduz à química e às ciências, mas ignora que todas
as coisas têm seu espírito, inclusive as plantas e as pedras, tudo isso conforma um pensamento que leva ao universo, unindo tudo como uma
respiração, como um alento. Este é um pensamento que não inventei, mas que tem milhares de anos (ESTEPA, 2011).
173
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

mental que faz pensar, afetar e ser afetado, e perceber que se estaria dotado de caraterísticas supremas, supe-
riores a qualquer outro ser vivo; deste estado mental que acaba por se transformar, sobretudo com a ambição
da modernidade, no suposto “direito” de tentar controlar e dominar.
A construção psicopolítica do estado mental da transculturalidade, que sabemos exigir a superação
epistêmica e a experimentação total em nós mesmos, tem sido minha missão como acadêmico, consultor de
organizações, terapeuta de pessoas, casais e grupos, e ativista social.
O vigor da estética transcultural é o resultado direto da nossa capacidade de eliminar de nossos mu-
seus mentais internos, como disse, a ignorância da Unidade Original (a Raiz, o citado Sentido do qual trata
toda a Tradição que queremos respeitar), o ódio (a ausência da Unidade Original, da Raiz) e a ganância (a
tentativa sempre frustrada e catastrófica de preencher a ausência da Raiz através da superposição de objetos
que é a adição ao consumo).
O vigor da estética transcultural é assim o resultado de nossa capacidade de construirmos– em rede
–a ciência do encontro, a arte do encontro. De capacitarmos, como entendo que George Preston concorde,
nossa mente entendida como o organismo todo, a absorver e a controlar o método da emancipação. Este mé-
todo que se chama aprendizado do Amor; da verdadeira sensibilidade artística, na qual eu e o outro somos nós
mesmos, vigor do sagrado, liberação do imaginário– que por seus resultados concretos na experimentação total
eu prefiro chamar de território mental, de fluxo de estados mentais; este método psicopolítico– e apreciativo,
complexo, sistêmico, transdisciplinar e nãodualista– que permite encontrar o próprio homem.
Mesmo que para isso precisemos compreender que este encontro só se dará quando encontrarmos um
nome nãopatriarcal para denominar a nossa espécie, então movida transculturalmente pelos valores societais;
valores de expressão da potência de julgar-nos epistemicamente; e, neste processo, realizar a nós mesmos.

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176
O museu nacional latino do Smithsonian

Luis R. Cancel
CEO, Entrepreneurial Cultural Consulting e Coordenador de Artes Plásticas, Cidade
Criativa, Mestre em Administração Pública pela Universidade de Harvard/Kennedy
School of Government (Escola de Governo)

E ste texto irá traçar as longas raízes da rivalidade entre as duas monarquias
europeias, Inglaterra e Espanha, cujos desejos de controlar as riquezas e terras do Novo
Mundo as colocaram em concorrência direta na América do Norte. As ex-colônias
britânicas mantiveram essa rivalidade após estabelecerem suas independências. As dife-
renças religiosas entre os protestantes anglo-saxões e a Espanha católica e os habitantes do
Novo Mundo geraram antipatia e confrontos constantes, incluindo três guerras contra os
índios Seminoles, a Guerra do México (1846-1848), concluindo com a Guerra Hispano-
Americana (1898). Esses conflitos e conquistas levaram os educadores americanos a en-
sinar a história dos Estados Unidos a partir da perspectiva anglo-saxã, referindo-se aos
primeiros assentamentos dos britânicos e ignorando ou diminuindo a história e a partici-
pação de colonos espanhóis. A necessidade de conciliar a história da América de forma
a contar, de modo real e inclusivo, a história continental do país é de vital importância,
uma vez que a sociedade atual aceita a realidade de que um em cada seis americanos é
latino e de que essa representa a parcela mais jovem da população e também a que mais
cresce. Foi proposta a expansão da respeitável Smithsonian Institution, em Washington,
D.C. com o Museu da Nação, incluindo uma ala dedicada a discutir a história, a arte
e a cultura americana sob uma perspectiva latina. A Comissão Nacional, que emitiu o
relatório do museu, cita Dana Ste. Claire:
Existem partes significativas da história americana que foram deixadas de lado devido
ao modo como ela foi escrita ao longo dos anos. É imperativo que a história da América
inclua a rica história dos hispânicos, começando com a chegada de Juan Ponce de
Leon na Flórida, em 1513, e a fundação de St. Augustine, o mais antigo assentamento
europeu continuamente ocupado da nação, em 1565, por Don Pedro Menéndez de
Aviles– na verdade, esta representou a primeira América. Os povos hispânicos tiveram
um papel fundamental no desenvolvimento cultural e histórico e na fundação da nação
norte-americana, simbolicamente, e esta é uma história de suma importância que deve
ser contada.

O Museu Nacional Latino da Smithsonian Institution ora proposto, está sendo


gerado há bastante tempo e, quando finalmente for autorizado pelo Congresso dos
Estados Unidos e assinado como lei pelo presidente da República, será o símbolo da
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
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vontade da nação de se envolver honesta e completamente em uma discussão sobre a sua rica história e seu
passado, presente e futuro. Representará um experimento ousado na tentativa de conciliar divisões e ecos de
antigas rivalidades que ainda carregam uma energia cinética e será, igualmente, uma instituição projetada
com as ferramentas mais modernas de comunicação e diálogo. É através do diálogo honesto e construtivo
que devemos ensinar a história e que pessoas de diversos pontos de vista podem, através deste diálogo, en-
contrar um denominador comum.

Pano de fundo

De forma a revelar a natureza da rivalidade presente no título deste texto, preciso levr seu leitor
de volta ao ano de 1776. Nesse ano, Thomas Jefferson está na cidade de Filadélfia, cercado por dezenas de
delegados das 13 colônias britânicas para debater o texto da Declaração de Independência, documento que
auxiliaria a criar uma nova nação independente no Novo Mundo. Pulando da costa atlântica através do que
hoje chamamos de continente norte-americano e cruzando por centenas de tribos indígenas e suas confed-
erações ao longo do caminho, aterramos em um morro bem arborizado, na costa do Pacífico, onde Juan
Bautista de Anza decide que será o local ideal para estabelecer El Presidio Real de San Francisco. Ordena ele,
então, a José Joaquin Moraga que ali realmente estabeleça o forte em 17 de setembro de 1776 e, com aquele
ato, planta a semente do que viria a ser a cidade de São Francisco.
Nesse local encontramos, em 1776, com poucos meses de diferença, os temas de dois rivais euro-
peus, Inglaterra e Espanha, em lados opostos do mesmo continente, alegando que a mesma massa de terra
no meio era deles. Ambas as monarquias, é claro, trataram os povos indígenas como bens móveis para serem
usados para o trabalho barato e para serem convertidos em cristãos ou mortos. Uma rivalidade entre a In-
glaterra protestante e a Espanha católica, enraizada no século XVI envolveu mais do que apenas uma luta
por terras e riquezas no Novo Mundo, e acabou se transformando em uma rivalidade religiosa, quando a
Inglaterra, sob o governo da rainha Elizabeth I, abraçou o protestantismo. A Espanha se tornou, então, a
maior defensora do Papado. Paixões religiosas foram, e ainda são, as crenças mais intratáveis, e encontrar
um ponto de diálogo comum pode ser o caminho mais difícil de trilhar. Os dois países que haviam sido,
outrora, aliados contra seu inimigo comum francês passaram a molestar os navios uns dos outros, saqueando
seus tesouros e atacando suas respectivas colônias por centenas de anos.
Não é à toa que foi criada uma antipatia profundamente enraizada nas Treze Colônias contra os
espanhóis. Tal ponto de vista hostil sobre os espanhóis facilmente foi transferida para a nova nação dos Es-
tados Unidos da América. Podemos mostrar esse viés usando a Flórida espanhola como exemplo. O estado
da Geórgia faz fronteira com a Flórida ao norte, onde os colonos da Geórgia invadiram e atacaram aldeias
indígenas Seminole da Flórida, as quais responderam aos ataques. Estes conflitos ocorreram em 1817-1818
na Primeira Guerra Seminole, quando o general Andrew Jackson conduziu o exército dos Estados Unidos
contra os Seminoles e, após um ano inteiro de conflitos, efetivamente controlou o leste da Flórida. O Trata-
do de Adams-Onis assinado com a Espanha, em 1819, cedeu a Flórida espanhola para os Estados Unidos em
troca de cinco milhões de dólares e a renúncia de quaisquer reclamações dos Estados Unidos sobre o Texas,
como resultado da compra da Louisiana.
Como estudante de terceiro grau, quando comecei a aprender a história americana, os livros didáti-
cos e o currículo apresentavam Jamestown (1607), na Virgínia, como o mais antigo assentamento europeu
bem-sucedido e aprendi, então, sobre o capitão John Smith e suas façanhas heroicas. Nada foi dito sobre
San Agustín, que foi fundado em setembro de 1565 pelo almirante espanhol Pedro Menéndez de Avilés. St.
Augustine, na Flórida, é agora reconhecido como o mais antigo assentamento europeu continuamente ocu-
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pado nos Estados Unidos continental e, posteriormente, tornou-se a capital da Flórida espanhola por duzen-
tos anos, mas a história americana na minha geração, nos ensinou a nunca mencionar Álvar Núñez Cabeza
de Vaca, o primeiro europeu a passar oito anos vivendo com os povos indígenas do sudoeste, caminhando
através do que é hoje o Texas, Novo México e norte do México.
Entre 1528 e 1536, Cabeza de Vaca passou de segundo comandante de uma expedição espanhola
de cerca de 600 homens que desembarcaram no Texas para um escravo seminu de várias tribos nativas
americanas. Para sobreviver, aprendeu a ser comerciante, cirurgião e etnógrafo, registrando detalhes dos
costumes dos povos nativos com quem viveu. Mas tais figuras históricas e suas façanhas são em grande
parte desconhecidas da grande maioria da população dos Estados Unidos. Atualmente, se alguém pesquisar
a hstória dos Estados Unidos na Wikipedia, um artigo ali reproduzido se resume em discutir o Período
Colonial referindo-se ao fato de que os primeiros assentamentos foram estabelecidos em 1607. Essa é uma
clara referência a Jamestown e não a St. Augustine.
A história americana, como até hoje continua a ser ensinada nas escolas americanas, reflete os va-
lores culturais etnocêntricos da maioria da população que vê os hispano-americanos como os “outros”. Esse
distanciamento torna difícil encontrar um terreno comum para tecer uma narrativa histórica que respeite as
histórias e as contribuições de ambos os segmentos da sociedade americana.

Criação de uma comissão

Em maio de 2008, o presidente George W. Bush assinou a Lei Pública n. 110-229 (s. 2739) que es-
tabeleceu uma comissão bipartidária de 23 membros nomeados pelo presidente da República e pelas lideran-
ças de ambos os partidos no Congresso. Esses comissários foram escolhidos com base em suas qualificações
em administração de museus, perícia na captação de recursos, experiência no serviço público e compromisso
demonstrado com a pesquisa, o estudo ou a promoção da arte latino-americana, sua história e cultura. Sua
missão foi a de “formular um plano para uma instituição sustentável de caráter mundial, cuja missão seria
a de iluminar a história americana para o benefício de todos”. Foram dados dois anos a esta Comissão para
realizar seus estudos e encontrar o melhor caminho para a criação de um museu que usaria ferramentas
contemporâneas de interpretação para conseguir uma penetração nos mais amplos segmentos possíveis da
sociedade norte-americana.
A Comissão foi organizada em seis comitês centrais com a finalidade de aprofundar diversos aspectos
técnicos da questão:
O Comitê das Comunicações Públicas;
O Comitê da Obtenção de Verbas;
O Comitê de Visão, Missão e Programas;
O Comitê de Seleção dos Edifícios e do Terreno;
O Comitê de Governança;
O Comitê de Aquisições.
Cada comitê trabalhou integrado com uma equipe de consultores contratados pela Comissão para
assisti-los em seu trabalho. Foram nomeados dois vice-presidentes dos comissários que nortearam o trabalho
de sua comissão e os consultores. Fui designado como vice-presidente, juntamente com Sandy Colón-Peltyn,
do Comitê de Seleção dos Edifícios e do Terreno. Logo de início, a Comissão optou por não realizar uma
única grande conferência em Washington, D.C., mas sim levar o trabalho da Comissão para as principais
cidades com grandes concentrações de latinos, tornando assim mais fácil para toda a comunidade participar
do processo de investigação. Ocorreram oito audiências públicas em todo o país, realizadas em Chicago,
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Albuquerque, Austin, Miami, St. Paul, Los Angeles, New York City e San Juan, em Puerto Rico.
Em cada uma dessas cidades, a Comissão se preocupou em colocar várias questões-chave para a
comunidade latina, incluindo as seguintes:
- Como um Museu Nacional pode impactar suas organizações culturais locais latinas?
- Deveria o museu ser parte da Smithsonian?
- Onde é que este Museu Nacional deveria estar localizado?
- Você apoiaria financeiramente um Museu Nacional Latino?

As respostas a essas perguntas, ao longo de 14 meses de audiências, foram notavelmente consistentes.


O público esmagadoramente afirmou, cidade após cidade, que um Museu Nacional como este deveria ser
estabelecido; que deveria representar parte da Smithsonian; que deveria estar localizado em Washington,
D.C.; que os latinos iriam apoiar o museu financeiramente e que cuidariam do Museu Nacional, ajudando,
apoiando e trabalhando em colaboração com suas organizações locais culturais latinas. Sobre a questão onde
se localizaria o museu, em Washington, caso se pudesse construí-lo mais rapidamente, a Comissão perguntou
se em um local distante do conjunto de museus da Smithsonian ou, caso fosse demorar muitos anos a mais
para fazê-lo, na Smithsonian, o que eles preferiam? A maioria votou inequivocamente na construção do mu-
seu na Smithsonian Institution.
O benefício alcançado pela Comissão ao ter pesquisado a opinião do povo americano de forma
tão abrangente foi que seus membros puderam apresentar um relatório ao Congresso e ao presidente da
República que representava, com autoridade, as vozes e opiniões de seus cidadãos. A questão sobre o museu
fazer parte ou não da Smithsonian foi bastante surpreendente. Não muitos anos antes, uma coalizão de
líderes culturais latinos havia emitido um relatório duro contra esta instituição, acusando-a de negligência
intencional. Este relatório consistiu numa acusação ao complexo dos museus mais famosos do país sobre a
ausência de programação e de operacionalização referentes à comunidade latina. O relatório havia solicitado
audiências no Congresso e obteve uma quantidade considerável de críticas negativas na imprensa, mas pelo
lado positivo, a Smithsonian abraçou uma autocrítica e tomou medidas concretas para melhorar sua atuação
junto à população hispânica do país.
O Congresso destinou um financiamento adicional especificamente para uma iniciativa latina que
incentivasse vários museus da Smithsonian para prever a contratação de pessoal especializado em desenvolver
programas que destacassem a história latina em termos de arte e cultura. A Smithsonian estabeleceu, então,
seu Centro Latino para desenvolver exposições e programas públicos baseados em temas e objetos latinos e
da América Latina, mas não um museu com equipe proporcional, orçamento e coleções.
Em maio de 2011, a Comissão apresentou um relatório ao presidente Obama e às diversas Comissões
do Senado e da Câmara dos Deputados que teriam competência para estabelecer o museu. Em essência, o
relatório indicou 17 recomendações e conclusões que podem ser baixados da Internet no link http://www.
americanlatinomuseum.gov/pdf/NMAL%20FINAL-Report.pdf
Em resumo, o relatório afirma que: “A Comissão determinou que há necessidade de um novo mu-
seu nacional em Washington, D.C. que se dedique à preservação, à apresentação e à interpretação da arte
americana latina, suas expressões culturais e suas experiências; um museu que ilumine a história americana
para o benefício de todos.”
Ao recomendar que o país avance nesse objetivo de estabelecer um novo museu nacional, a Comissão
reconhece que precisa equilibrar duas prioridades vitais: não contribuir para qualquer nova despesa federal
em curto prazo, ao mesmo tempo que pretende avançar no sentido da criação de um museu nacional que
integre a experiência latina na narrativa norte-americana”.
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Estabelecendo o museu

Embora o relatório tenha sido amplamente visto e discutido e sua página no Facebook conte com
milhares de seguidores, apenas o Congresso pode aprovar uma lei para estabelecer o museu. Tenho o
prazer de informar que a legislação autorizando que a Smithsonian Institution pode estabelecer o museu e
designando o Edifício de Artes e Indústria, no National Mall, para abrigá-lo foi lançada em março de 2012,
tanto no Senado (S.568) quanto na Câmara dos Representantes (H.R.1217). A legislação foi copatrocinada
por representantes republicanos e democratas e agora está aguardando audiências para sua aprovação.
Como considero no título original deste artigo, pode um museu lograr terminar com uma rivali-
dade cultural profunda? A resposta parece estar vinculada a uma perspectiva filosófica de longo prazo: a
cura de uma ferida só pode começar quando ocorre sua aceitação. Se o corpo legislativo supremo de uma
nação e seu presidente concordam em estabelecer o Museu Latino-Americano, parece-me que há, então,
um consenso para avançar em um caminho que renderia uma visão transcultural da história americana.
Seria ele um sinal de mudança ao se distanciar de uma visão única e dominante de como a nação veio a ser
constituída e ao aceitar um diálogo entre vários partidos que sempre foram visíveis uns para os outros, mas
não reconhecidos como tal?
A partir do momento em que o museu for estabelecido pela via legislativa, um longo processo de
cicatrização da ruptura entre o Inglês e o Espanhol começará. Então, sim, um museu poderá curar uma
rivalidade, já que tal museu será dedicado a “iluminar a história americana para o benefício de todos”. Será
que a cura ocorre durante a noite? Não, este vai constituir um processo geracional que só irá acontecer à
medida que mais elementos dentro da sociedade mais ampla (artistas e educadores, jornalistas, universidades
e meios de comunicação social) possam se envolver em uma conversa sobre o significado de ser um cidadão
americano. Este esforço vai exigir a aceitação e a integração de 11 milhões de almas que atualmente se en-
contram marginalizadas, como os trabalhadores não documentados da sociedade norte-americana, pois,
embora nem todos sejam latino-americanos, a grande maioria realmente o é. E a nação tem de abraçar a
geração de jovens que foram criados e educados como norte-americanos, mas não possuem cidadania, os
sonhadores, como eles se tornaram conhecidos.
Construir um museu no National Mall representa um longo processo, na medida em que o Museu
Nacional da História e da Cultura Africana-Americana levou 12 anos para ser construído, abrindo suas portas
em 2015. O Museu Nacional Latino da Smithsonian Institution – SALM pode começar a se programar mais
cedo, mas sua construção vai levar um longo tempo. Eu, pelo menos, mal posso esperar para que isso aconteça.

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O Museu Nacional do Índio Americano e a transculturalidade

Rosane Maria Rocha de Carvalho


Museóloga e relações públicas, doutora em Ciência da Informação e presidente da As-
sociação dos Amigos do Museu Antonio Parreiras, Niterói, RJ

O objetivo deste trabalho é tentar problematizar se há evidência da trans-


culturalidade em torno dos projetos e do processo de construção do National Museum
of the American Indian, do Smithsonian Institution, criado em 1989 e inaugurado
em 2004, em Washington D.C. Para realizar esta análise pretendo desenvolver uma
reflexão a partir de artigos científicos sobre transculturalidade e sobre museu vivo, iden-
tificando, na gênese da instituição, na missão do processo da arquitetura, na gestão
das coleções, na visão do diretor e do curador para a América Latina e na de um an-
tropólogo cujos estudos têm este museu como foco, possíveis desdobramentos políticos
na sociedade americana contemporânea implicados com a abertura desta instituição,
assim como suas relações com a história americana evocada nos depoimentos dos en-
volvidos para justificar a existência do NMAI.
Portanto, pretendo, na proposta formulada para justificar a elaboração deste
museu, também indicar as diferenças de um museu nacional e um museu vivo, desta-
cando, na rede de relações dos diversos personagens envolvidos, a formulação de uma
indigenidade a ser representada e apontada, especialmente dentro dos limites dos textos e
dos autores escolhidos. A partir da proposta que a coordenadora do seminário “Museus
e Transculturalidade, Novas Práticas Pós-Modernas”, a professora dra. Dinah Guima-
raens, nos propõe em seu texto a respeito do papel do Museu e o impacto das Artes
no diálogo transcultural (2012), venho trazer algumas ideias a respeito da forma como
se articula o Museu Nacional do Índio Americano (National Museum of the American
Indian) nos Estados Unidos.
Pretendemos discutir aqui como se relacionam a coleção museológica em um
Museu Nacional e a proposta de profunda conexão com as nações indígenas num
modelo de museu “diferente”, apontando para um diálogo cultural conforme enun-
ciado por Dinah Guimaraens:
Neste mundo multicultural, as diferentes culturas parecem neutralizadas. Elas são fa-
dadas a restaurar rituais dogmáticos para resistir às tentativas de fazer delas bens de
consumo como quaisquer outros. A única saída que se oferece como alternativa parece
ser a vontade de construir uma capacidade comum de transformar estas culturas a par-
tir da instauração de relações mútuas e de um diálogo intercultural.

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O axioma intelectual emitido com extrema propriedade pelo ex-secretário Roberto McCormick
Adams, da Smithsonian Institution, foi, na época, uma recomendação visionária e fundamental que per-
maneceu como fundamento para o NMAI:
Este é um museu nacional que leva em conta a permanência, a autenticidade, a vitalidade e autodetermi-
nação das vozes dos índios americanos [...] como a realidade fundamental que deve representar. [Nós] nos
movemos decisivamente da antiga imagem de museu como templo, com seu clero superior e autogovernante
para um fórum comprometido não com a difusão do saber recebido, mas com o encorajamento de um
diálogo multicultural.

Para o diretor fundador do museu, Richard West Jr., na conferência proferida em maio de 2009
na Semana Nacional de Museus, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio,
realizado no Museu de Astronomia e Ciências Afins, Rio de Janeiro, foi difícil compreender a imensa relação
e interconexão das duas partes do construtor intelectual do secretário Adams – por um lado, o Museu Na-
cional como lugar de permanência da autorrepresentação e autodeterminação cultural e, por outro, a ampla
proposição museológica do museu como fórum e as implicações conceituais e cívicas desse conceito.
Dentro do contexto do diálogo intercultural, a proposta seminal do Museu Nacional do Índio Americano
expressa a transculturalidade das culturas ameríndias, abrigando uma das maiores e mais diversificadas
coleções do mundo de seu tipo. A grandiosa arquitetura curvilínea do museu, seu paisagismo indígena e suas
exposições, tudo projetado em colaboração com as tribos e comunidades de todo o hemisfério, se combinam
para dar aos visitantes de todo o mundo o sentido e o espírito da América Nativa.
Trata-se de um Museu Vivo perpetuador da cultura tradicional através do desenvolvimento de
práticas de resistência cultural e de inovação artística conscientes. Tanto o acervo material quanto o acervo
imaterial são trabalhados de forma a permitir a compreensão da formação cultural de diferentes etnias
indígenas e o seu estágio atual. O projeto deste museu nasceu comprometido com os grupos indígenas de
todas as Américas. Na época em que o Congresso americano autorizou a sua criação, além de uma grande
adição de coleções do patrimônio cultural dos nativos americanos ao conjunto de museus da Smithsonian
Instution, o Congresso indicou ainda que a América nativa dever ter um papel participativo e colaborativo
no Museu Nacional do Índio Americano (WEST, 2009).
Seu processo de criação a cargo da Smithsonian Institution se iniciou em 1989. Desde a aprovação
da legislação que permitiu sua criação, o NMAI tem estado firmemente empenhado em trazer vozes nati-
vas para que o museu apresente e escreva, seja no local de um dos três prédios do NMAI, seja através das
publicações ou da Internet. O NMAI também se dedica a atuar como um recurso para as comunidades
indígenas do hemisfério e serve ao grande público como um canal honesto e profundo para as culturas nati-
vas – presente e passado, em toda a sua riqueza, profundidade e diversidade. O museu trabalha para apoiar
a continuidade da cultura, valores tradicionais e as transições na vida do nativo contemporâneo.
Oferece, tanto no seu prédio em Washington quanto no de Nova York, galerias de exposições e espa-
ços para apresentações, palestras e simpósios, pesquisas e educação. O Centro de Recursos Culturais (CRC),
em Suitland, abriga coleções do museu, bem como a conservação, repatriação, programas de imagem digital e
centros de pesquisa. Os esforços de divulgação do CRC, fora dos três edifícios do NMAI o qual muitas vezes
denominado de “quarto museu”– incluem sites, exposições e programas comunitários. É importante notar que
desde a concepção do projeto arquitetônico, assim como no desenvolvimento das coleções do NMAI, foram
feitas parcerias com os americanos nativos em todas as instâncias do museu.

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O processo da arquitetura

Começando no início de 1990, o Museu Nacional do Índio Americano (NMAI) abriu diálogos com
as comunidades indígenas e indivíduos em todo o hemisfério ocidental. Essas reuniões iniciais resultaram em
um documento marco do museu, The Way of the People (1993), que foi além dos requisitos básicos do edifício
para incorporar sensibilidades nativas em todo o edifício do museu. Uma série de temas emergiu dos diálo-
gos. Um deles envolveu a natureza intuitiva do edifício: é necessário ser um museu vivo, nem formal, nem
calmo, localizado em estreita proximidade com a natureza. Outro tema foi que o projeto do edifício devia,
claramente, fazer referências celestes, com uma entrada principal virada para o leste e uma cúpula que se abre
para o céu. Muitos comentários expressaram o desejo de trazer histórias indígenas até a atualidade através da
representação e interpretação das culturas indígenas como fenômenos que vivem em todo o hemisfério. Al-
guns parâmetros básicos para a estrutura do edifício foram ditados pelo terreno com 4,25 hectares em forma
trapezoidal, com as restrições de construção para o National Mall por causa de um riacho que fluía abaixo do
terreno. Estes desafios foram abordados inicialmente pela equipe de design da GBQC e Douglas Cardinal,
Ltd., que incluiu os consultores descendentes das tribos, como Douglas Cardinal (Blackfoot), Johnpaul Jones
(Cherokee/Choctaw), Donna House (Diné/Oneida) e Ramona Sakiestewa (Hopi).
Duane Blue Spruce, outro arquiteto envolvido no projeto, nos fala ainda das estratégias conceituais
visando uma transculturalidade e a ideia de um território único, através de um design coeso como aspectos
comuns das culturas nativas. Para isso, círculos que representariam um nativo universal, em contínua trans-
formação, e um espaço intertribal para cantar, dançar e rezar foram recursos usados pela equipe do NMAI
na formulação de um “índio genérico” (BERTOLOSSI, 2008). Plantas tradicionais, herbários, espécimes
encontradas em reservas, assim como rochedos milenares com significados míticos e ancestrais, foram
levados para o entorno do NMAI, de modo a compor uma paisagística nativa (BERTOLOSSI, in op. cit).

As coleções

As coleções atuais do NMAI têm sua base na coleção do antigo Museu do Índio Americano (MAI),
Fundação Heye, de New York City, montado em grande parte por George Gustav Heye (1874-1957). Desde a
sua primeira aquisição em 1860, a compra de uma camisa Navajo, no Arizona, a coleta de Heye rapidamente
se expandiu para material arqueológico. O Museu Nacional do Índio Americano (NMAI) tem hoje uma
das mais extensas coleções de artefatos e arte nativa americanas no mundo, cerca de 825.000 itens repre-
sentando mais de 12.000 anos de história e mais de 1.200 culturas indígenas das Américas, segundo seu
site. As coleções do museu incluem também o arquivo fotográfico, com cerca de 324 mil imagens da década
de 1860 até o presente, um arquivo de mídias, compreendendo filmes e coleções audiovisuais em suportes
tais como cilindros de cera, discos fonográficos, filmes 16 e 35 milímetros, mídia magnética de muitas var-
iedades, além de mídia ótica e digital. O Museu conta ainda com um Arquivo documental (feito em papel),
composto por registros que datam da década de 1860 até o presente, e que preservam a história documental
do NMAI e de seu antecessor, o Museu do Índio Americano (MAI), fundação Heye, e suas coleções, bem
como outros documentos e materiais de arquivo.
Essas coleções estão profundamente interligadas, pois cada uma contém itens que se relacionam
com as outras: o arquivo fotográfico inclui imagens de objetos em uso nas comunidades indígenas ou os con-
textos das escavações de objetos arqueológicos, e o arquivo documental inclui notas de campo e documen-
tação para todos os aspectos das coleções combinadas. Através da implementação do seu Plano de Coleções,
o NMAI espera expandir o escopo das coleções e continuar seu trabalho historicamente significativo em
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documentar vidas e perspectivas indígenas, através de objetos, dos diversos meios de comunicação e outras
mídias, enquanto aumenta a integração destas coleções umas com as outras, tornando-as mais significativas
e aplicáveis aos programas de museus e acessíveis aos usuários externos.
Por último, e mais importante ainda, as coleções do NMAI têm enorme significado para os próprios
povos nativos que olham para o museu como um guardião de grande parte de seu patrimônio material e um
parceiro responsável no trabalho em curso de torná-lo acessível aos membros da comunidade e ao público na
maior extensão possível. As coleções de objetos do NMAI estão alojadas no Centro de Recursos Culturais,
em Suitland, Maryland. As coleções estão abertas a pesquisa, principalmente de pesquisadores e de nativos
das diferentes etnias que ajudam o pessoal da Gestão de Coleções a identificar os objetos, sua história, seu
uso e significado na etnia em que foram produzidos, num processo de ressignificação da coleção do museu,
recuperando informações que haviam sido perdidas. O trabalho de catalogação, feito em conjunto com os
representantes das diferentes comunidades indígenas, faz com que o museu seja vivido e experimentado
como sendo feito pelos nativos, para os nativos e a sociedade. Há cuidados específicos com a natureza dos
objetos a serem pesquisados: para acessar coleções culturalmente sensíveis, incluindo objetos sagrados e
cerimoniais, objetos do patrimônio cultural (objetos de propriedade comunitária), objetos funerários e restos
humanos, pesquisadores devem obter a aprovação prévia (por escrito) do apropriado grupo nativo ameri-
cano, culturalmente filiado.
Em 1989, a transferência do Museu do Índio Americano para a Smithsonian Institution e a criação
do Museu Nacional do Índio Americano trouxe mudanças substanciais para todos os aspectos do museu.
Além de atualizar a gestão de coleções e outras operações, atitudes em relação às coleções mudaram. Onde
a coleção tinha servido à missão de George Heye “a preservação de tudo o que pertence as nossas tribos
americanas”, a missão do NMAI, com sua ênfase na parceria com os povos indígenas e suas vidas contem-
porâneas, tem estimulado diferentes estratégias de desenvolvimento de coleções e esforços programáticos,
bem como consultas com representantes da comunidade sobre os padrões apropriados de cuidados, modos
de exposição e interpretação e operações gerais do museu. As realizações mais visíveis do NMAI foram a
abertura do George Gustav Heye Center em Nova York, em 1994, e a construção do prédio do NMAI no
National Mall, em Washington, DC, em 2004; a construção do Centro de Recursos Culturais do NMAI
em Suitland, Maryland, em 1999, e a subsequente mudança das coleções da “Filial de Pesquisa”, no Bronx,
que deram às coleções a casa que mereciam ter.
Para Richard West, os indicadores do Museu Nacional do Índio Americano, como centro comuni-
tário e cultural e como espaço cívico, são abundantes. As exposições permanentes, normalmente um meio
muito convencional nos museus, oferecem pistas sobre intenções mais abrangentes e diversas do Museu
Nacional do Índio Americano. As exposições contêm objetos, milhares deles, para ser exata, mas estes não
determinam ou definem as instalações de modo costumeiro. Ideias e temas amplos, os povos nativos em si
mesmos e o papel das comunidades merecem o mesmo destaque, e a chave é a integração de tudo isto na
apresentação. O foco nas exposições, assim como nos componentes individuais de cada comunidade nativa,
é múltiplo e se dirige a temas variados, como cosmologia nativa, operação de cassinos, questões ligadas à
saúde, vida urbana indígena e direitos para a pesca e a caça.
Em todas as instâncias do museu, os processos de conservação das coleções, programas de ex-
posições, programas educativos e até as atividades culturais programadas para o museu são trabalhadas em
parceria com as comunidades nativas em todas essas áreas programáticas.

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O Dr. Ramiro Matos

A proposta conceitual do Museu Nacional do Índio Americano, que expressa a transculturalidade


das culturas ameríndias, foi relatada pelo Dr. Ramiro Matos Mendieta, peruano, arqueólogo e curador da
America Latina do NMAI, que veio ao Rio de Janeiro em setembro de 2005 para o Seminário Internacional
Museografia e Arquitetura de Museus (Arquimuseu). Naquele evento, o curador da América Latina, em sua
palestra, não só apresentou o Museu do Índio Americano, mas também suas referências conceituais.
Conceitos importantes do NMAI:
• Enfase nas ideias mais do que nos objetos, ou seja, o acervo imaterial cultural oferece, historicamente,
maior possibilidade de compreensão da formação de um mundo transcultural, formado por diversas
nações, etnias, cada uma com seus hábitos, rituais e significados, apoiados em objetos, mas melhor
explicados através de narrativas próprias, explicitadas em depoimentos, registrados em filmes, vídeos e
performances ao vivo.
• A voz de cada etnia indígena deve guiar sua exposição. Desde o início do funcionamento do museu,
em 1994, as exposições têm curadoria coletiva, ou seja, na elaboração da exposição, o museu recebe
dois representantes de cada grupo indígena a ser abordado na mostra. Estes decidem que o material a
ser exibido seja de cultura material ou imaterial, com o suporte da equipe de profissionais e curadores
do museu. Para o museu, é importante revelar como estes grupos vivem hoje, quais seus valores, seus
problemas e suas tradições.
• O trabalho com equipes interdisciplinares, com especialistas de diferentes países, tem como exemplo, em
2009, as reuniões ocorridas com o Dr. Ramiro Matos Mendieta que, junto com sua equipe, trabalhava
em uma exposição. Contribuíram para a exposição “O Legado da Estrada Real Inka: Qhapac Nan” a
partir da perspectiva indígena na voz quechua contemporânea, a qual foi inaugurada em 2013.
• Documentar melhor as coleções, ouvindo as comunidades indígenas.
• Quanto às coleções arqueológicas, deve-se ouvir os indígenas contemporânaneos das áreas onde se
situam os sítios, na medida em que os índios contemporâneos sabem manusear o calendário inca e maia,
tais como, os Mapuche (Chile), Quechua (Peru) e Alta Verapaz (Guatemala).
• Participação de curadores indígenas que auxiliam a conservar objetos e a conhecer seu valor espiritual
de conectá-los com o divino.
• Realização do reconhecimento de peças autênticas das tribos nativas corrigindo a interpretação de
arqueólogos.
• NMAI é um dos dos únicos museus com um departamento dedicado às crenças indígenas, contando
com espaço para cerimônias.
Entre outras iniciativas, Dr. Ramiro mencionou o antropólogo Darcy Ribeiro, que almejava fazer
no Brasil um museu indígena administrado por indígenas e que ajudou muito a Smithsonian Institution a
conhecer grupos indígenas brasileiros. Informou que, no México, há museus nas comunidades indígenas
feitos por eles mesmos. Estas comunidades receberam apoio internacional, tendo sido criados 150 museus
comunitários desde 1980, naquele país. Para o Dr. Ramiro, o NMAI é um museu vivo, um museum out-
reach, sem paredes. Segundo ele, no 4º Encontro do NMAI com indígenas da América do Sul no Peru, em
2004, discutiram formas de salvar as comunidades e o meio ambiente.
Ao conhecer as conexões profundas e dialógicas do NMAI com os nativos, podemos perceber que
toda esta liberação curatorial do espaço físico e intelectual do National Museum of the American Indian permi-
tiu – na verdade, quase compeliu – à instituição estabelecer um território muito mais amplo e mais inovador.
As relações colaborativas com os povos e comunidades nativas, intensa, metódica e consistentemente bilater-
186
ais, desde o conceito, fizeram do museu mais do que apenas a usual “destinação cultural” ao longo da trilha
dos museus do National Mall em Washington, D.C. Ele se tornou mais do que um espaço impregnado de
belas e significativas coleções apresentadas de modo descritivo, didático e passivo. Mais do que isso, repre-
senta ele um lugar e um espaço de muito mais ampla dimensão e interação cívica e social, onde as coleções se
tornam não um fim em si mesmas, como afirmou o Dr. Ramiro, mas pontos de partida para ideias e temas
que documentam larga, ampla e profundamente a América nativa como país indígena, e a totalidade da ex-
periência nativa das Américas. Em outras palavras, o fórum dialógico se transformou em conceito e em nova
forma museológica já antevistos na sabedoria das nações percebidas pelas aspirações de Roberto Adams para
o NMAI, que procurou descrevê-lo de outra maneira, quase como um antimuseu.
Em sua dissertação de mestrado em Antropologia Social, Leonardo Bertolossi reconhece que, to-
mando as rédeas de suas próprias histórias, políticas e poéticas, os índios do NMAI se afastam do estatuto de
“outros” constitutivos de uma parte da nação. Em sua tradição de inventar uma nova tradição museológica
e também uma panindianidade, eles são o “Our” que introduz suas exposições, canibalizando as referências
do mundo euro-americano urbano, globalizado e presentista sob uma instituição que é afirmadamente anti-
antropológica e está em contínua transformação através de sua programação de exposições, eventos, perfor-
mances e até mesmo na paisagística nativa que a circunda (BERTOLOSSI, 2010).
Mais do que um museu do “outro” que enuncia uma identidade atual pela ancestralidade indígena,
como é o caso do Museo Nacional de Antropología, no México (CANCLINI, 1997), os índios do NMAI
apontam para o passado através de mitos e histórias, mas sobretudo para a contemporaneidade. Evitando
um tom denuncista em relação aos genocídios passados, o museu enfatiza a vitalidade e a criatividade
contemporânea, incentivando a produção de arte indígena com auxílio financeiro, além de diversos outros
programas educativos e sociais. Para Bertolossi (2010), o passado indígena no NMAI, enquanto patrimônio,
é chamado de “herança” e é visto ora como o que deve permanecer sob todas as transformações, ora como
o que deve ser reinventado e atravessado. Neste museu, simultaneamente “templo” e “fórum”, os índios do
NMAI dialogam em mundos singulares, ancestrais e cotidianos através de uma panindianidade autor-
reflexiva e crítica, por vezes uma pós-indianidade repleta de significados, heranças, culturas, naturezas e
espiritualidades, conceitos eternos por eles evocados.

Referências

BERTOLOSSI, Leonardo Carvalho. Diferentes, Iguais: A Pan-Indianidade do National Museum of the


American Indian e suas Variações. Rio de Janeiro: UFRJ/MN, 2010. 238 p. Orientador: Carlos Fausto.
Dissertação de Mestrado em Antropologia Social. Acesso em 09.05.2013. Disponível em: http://teses2.ufrj.
GUIMARAENS, Dinah. O papel do Museu e o impacto das Artes no diálogo transcultural. Niterói, Univer-
sidade Federal Fluminense, 2012.
MATOS, Ramiro. Paletra sobre o Museu Nacional do Índio Americano, apresentada no Arqui Museus
2005 –Seminário Museografia e Arquitetura de Museus, realizado em setembro de 2005, pelo Programa de
Arquitetura e Urbanismo da UFRJ. Anotações da autora deste artigo.
NATIONAL MUSEUM OF THE AMERICAN INDIAN. www.nmai.si.edu (site).
WEST Jr., Richard. Reflexões sobre os Museus no Século 21. Revista eletrônica Museologia e patrimônio,
– v.3 n.1– jan/jun de 2010. Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio /
Museu de Astronomia e Ciências Afins. Acesso em 16/02/2013. Disponível em http://revistamuseologi-
187
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

aepatrimonio.mast.br/index.php/ppgpmus/article/viewFile/105/116br/Teses/PPGAS_M/LeonardoBer-
tolossi.pdf.
BERTOLOSSI, Leonardo Carvalho. Da Dívida à Dádiva: O caso National Museum of the American Indian.
26a Reunião Brasileira de Antropologia. Grupo de Trabalho 37 – Coleções, Museus e Patrimônio. junho
de 2008, Porto Seguro, Bahia. Acesso em 13.05.2013. Disponível em: http://www.abant.org.br/conteudo/
ANAIS/CD_Virtual_26_RBA/grupos_de_trabalho/trabalhos/GT%2037/leonardo%20carvalho%20ber-
tolossi.pdf.

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Patrimônio imaterial como museografia

Jack Lohman
Diretor do Royal British Columbia Museum, Canadá

U m dos romances mais vendidos no Canadá em 2013 foi a maravilhosa


obra de Esi Edugyan, Half-Blood Blues (Melancolia Mestiça). Indicado ao Man Book-
er Prize e ao Governor General’s Award no Canadá, recebeu, em 2011, o Giller Prize
na categoria ficção. O livro conta a história de um grupo de músicos negros, antes
e depois da Segunda Guerra Mundial– dos clubes em Berlim antes da guerra, pas-
sando da Paris ocupada às ruas chuvosas de Baltimore dos nossos dias. O romance
não tem muito a ver com o Canadá nem com os museus de patrimônio imaterial.
Mas Edugyan - que vive em minha cidade natal, Victoria, no Canadá – se permite
uma piada tipicamente canadense. O protagonista Sid, desesperado para fazer com
que o motorista do táxi pare de tagarelar, ao ser perguntado onde mora responde: –
Não em London Inglaterra, mas sim em London Ontário, no Canadá.
O olhar do motorista demonstra seu desinteresse. Aprendi há muito tempo
que o Canadá é um tópico que mata imediatamente qualquer conversa. Esse é um
truque meu. Bem, não é só o Canadá. Se serve de consolação, museus também têm esse
efeito silenciador nas pessoas. Altas abóbadas e estruturas semelhantes à de um templo
raramente encorajam uma conversa. Desde o início, o design dos museus parece ter
como única intenção impor silêncio e intimidar o visitante. Essa reverência, contudo,
em muitos casos, não se refere aos objetos do passado, mas àquelas pessoas tão ricas
e admiráveis que os colocam ali. Por essa razão, nós conhecemos o museu The Getty
simplesmente como The Getty.
O que esse silêncio nos diz é que os espaços dos museus –- e talvez, por exten-
são, todos os espaços públicos – são mediados. Eles exercitam sua influência antes que
alguém tenha visto ou feito qualquer coisa dentro deles. Muitos imaginam o museu
como um grande container vazio, algo como uma grande caixa onde se pode guardar os
inúmeros objetos culturais que precisam ser preservados. Mais recentemente, o esplen-
dor arquitetural de muitos museus comtemporâneos foi desenhado para interagir com a
coleção que hospeda e para transmitir mensagens chaves.
Qualquer um pensaria imediatamente no imponente Museu Judaico de Ber-
lim, de Daniel Libeskind, com suas luzes, seus corredores sem saída, suas perspectivas
estreitas. O edifício é o conteúdo que pretende mostrar (ou, no caso do Holocausto,
marca arquiteturalmente a perda e o terror que o museu não é capaz de mostrar). Mas
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

mesmo aqui, antes que possamos entender o significado específico pretendido por Libeskind ou Frank
Gehry, o edifício exerce seu poder sobre nós. Nós nos aproximamos, o admiramos, olhamos para cima – e
já começamos com uma atitude de veneração silenciosa.
Quero começar falando sobre o edifício porque os museus podem revelar um foco um tanto estreito
no que diz respeito às suas palavras para explicar as coisas. Porque tanto o modo como as coleções materiais
e imateriais são exibidas quanto os edifícios que as hospedam são tão importantes como qualquer legenda
ou painel de texto que ali se encontram. É um equívoco que nenhum visitante comete, pois o edifício é o
primeiro impacto em sua experiência. Mas nós, os profissionais de museus, nos tornamos tão acostumados ao
nosso ambiente que nos esquecemos da influência que a edificação exerce na experiência museológica.
É claro que há muitas abordagens que podemos seguir. O Museu Judaico de Libeskind é deliberada-
mente polêmico: ele grita, ele nos sacode, ele nos causa emoção. E a arquitetura vai nos arrebatando conforme
você vai passeando por ela. Algumas pessoas podem não gostar, mas em um aspecto precisamos concordar:
esse sentimento de reverência não é em princípio ruim. Quero que as pessoas sintam o drama e o entusiasmo
da cultura. Museus são fontes inspiradoras e precisam se sentir assim. Parte do encanto de um museu como
o Royal British Columbia Museum está em seu ambiente e sua localização agradáveis. Podemos dizer que
o edifício honra o solo em que foi construído, tanto quanto as histórias dentro dele o fazem. O que você
aprende no museu é, idealmente, reforçado pelo ambiente no qual você aprende.
Os museus dos séculos XVIII e XIX, mesmo os mais desencorajantes, tinham algo a dizer com suas
fachadas aterrorizantes. Eles anunciavam que ali havia algo de importante. Um silêncio opressivo pode não
ser mais o que se espera deles, mas o silêncio em si não é algo ruim. Como tema para discussões futuras, o
silêncio faz do museu um espaço ainda mais fascinante para os visitantes. Há algo a ser dito no abrir espaço
para o outro falar. O silêncio é também uma oportunidade.
Reconhecer essa tensão pulsante entre insistência e oportunidade no próprio espaço é, eu diria, um
modo que os museus têm para se reformular para o visitante contemporâneo. E não são apenas os tijolos
e a argamassa que determinam como funcionam os espaços dos museus. Vou lhes dar um exemplo. Uma
das novas vozes nos museus no século XXI é a da tecnologia. Os museus têm cada vez mais disponibilizado
roteiros digitais em suas galerias - fones de ouvido, pontos de acesso de QR, guias de áudio e vídeo. Essas
diretivas digitais são fortemente estabelecidas (uma vez que o museu normalmente ministra seu conteúdo),
e ao mesmo tempo muito indeterminadas, visto que o visitante pode reunir quantos e quais roteiros desejar
para montar o seu passeio através da coleção. Quanto mais recurso digital disponível, mais visitantes criam
seus roteiros, e a tendência é essa.
Com cada vez mais fones, em cada vez mais ouvidos, um novo tipo de espaço de museu está
surgindo, no qual cada visitante se movimenta por conta própria e como deseja. É um sistema altamente
customizável que oferece opções e liberdade de escolha. Talvez agora seja o momento de perguntarmos,
antes que a resposta esteja completamente incorporada ao ambiente de nosso visitante: nós queremos que
a experiência no museu seja completamente autônoma? Estamos criando uma experiência menos mediada
e com mais opções, ou um exercício nada estimulante em autoabsorção? Demasiadas opções significa que
você só encontra aquilo que lhe interessa? Isso é seleção, ou shopping? “Encontro” parece ser a palavra-chave.
Ao tentarmos ser flexíveis e nos distanciar da voz curatorial dominante, ao tentarmos abrir seus espaços e
não determinar em excesso as questões do visitante, os museus estão arriscando perder qualquer possibili-
dade de diálogo. Estamos tão interessados em não impor significados que estamos arriscando nos retirar no
silêncio. Em vez de envolvimento, temos distanciamento. Em vez de comunidade, temos solidão. Este é o
risco de uma abordagem descentralizada nos museus, e eu acredito que não seja isso o que as pessoas buscam
quando se encontram em um lugar público, como um museu.
190
Minha inquietacão é que nós, guardiães de museus, temendo enquadrar a história, o conhecimento,
os arquivos e as colecões que mantemos, não deveríamos imaginar uma situação inocente em que nenhuma
mediação seja possível. O pior que poderíamos fazer é nos tornarmos tímidos e passivos. Ao contrário,
devemos entender claramente as implicações do que estamos fazendo e garantir que o museu seja parte do
nosso potencial expressivo. O edifício, como eu disse, é um corpo que pode estimular e sugerir, desde uma
ideia geral de inspiração e escala de importância até temas e significados mais específicos. O andaime in-
telectual do museu precisa encontrar também um forte ponto de apoio entre o espaço em aberto e o ausente.
Não podemos mudar as coleções, sejam imateriais ou materiais, a cada dois minutos, mas podemos revigorar
a vida intelectual do museu facilmente com novos tópicos, novas abordagens.
Encare as línguas, por exemplo, como uma via de acesso à coleção do museu. Conceitos imateriais
e abstratos não são a abordagem habitual dos objetos, e a materialidade de nossas mostras tendem a escapar
do imaterial quando nós as explicamos. Continuamos enraizados no passado material. Mas se os objetos dos
museus representam pontos de contato com os grupos de pessoas que os criam e aquelas que os descobrem,
a língua também, em todas as suas variáveis, é uma representação potencial dessas mesmas comunidades.
Mas a língua seria de grande uso como um tópico de museu, aonde as pessoas vêm para olhar para
coisas? Quando você entra no The Smithsonian’s National Museum of the American Indian em Washington,
uma das primeiras coisas que você vê – e, dificilmente, conseguiria evitá-la – é uma parede com telas de vídeo.
Essa parede de boas-vindas saúda os visitantes em não menos que 150 línguas nativo-americanas. Você é
banhado pelas línguas indígenas das Américas. É maravilhoso, e imediatamente aponta um aspecto intelec-
tual muito útil: nenhum museu, mesmo um tão influente quanto o Smithsonian, será capaz de apresentar ao
público tanta cultura em um único edifício em uma única tarde. Mesmo para compreender as poucas línguas
selecionadas com a importância e a impressão justas, você precisa colocá-las em contexto daquelas tantas lín-
guas e culturas deixadas de lado. O muro de boas-vindas é um artifício engenhoso: você começa sua visita ao
museu apreendendo de maneira gráfica e rápida o quanto há para conhecer e, a partir daí, você faz sua seleção.
E isso é feito não através de objetos, mas com uma ideia mais abstrata, e ainda assim contagiante... a língua.
O Royal British Columbia Museum está lançando seu display de línguas das primeiras nações indíge-
nas em Colúmbia Britânica. O projeto é um dos primeiros empreendimentos em parceria entre o Memoran-
dum of Understanding (Memorando de Entendimento) e o museu The First Peoples’ Cultural Council. Esse é
o mais recente projeto de uma longa história de colaboração recompensadora entre o museu e as Primeiras
Nações da Colúmbia Britânica.
Tal colaboração expande a voz do museu para incluir as vozes de outros contribuintes, em especial
aqueles com experiência e conhecimento de práticas culturais em primeira mão. Ela completa o silêncio com
som e permite uma abordagem mais multidimensional de como mostrar a cultura das primeiras nações aos
nossos visitantes. Contudo, essa exibição é ainda mais ambiciosa. Assim como a parede de boas-vindas do
Smithsonian, ela visa trazer o incontido para dentro do museu. Para nós, não é simplesmente uma questão
de línguas das Primeiras Nações, mas da visão de mundo que elas representam – sobre terra e água, família
e estruturas sociais, valores morais e estilos de vida. Paradoxalmente, é a língua que frequentemente nos dá
acesso ao “não dito”, como frequentemente ocorre com as Primeiras Nações, acesso ao “não escrito”. Tendo
a língua como foco, surgem inúmeras novas questões. Que lugar na história deixamos para o não registrado?
Como preservamos o indefinido e o não inscrito? O que poderíamos estar perdendo ao ignorarmos isso?
Como o escritor Robert Kroetsch coloca em sua coleção de ensaios intitulada The Lovely Treachery of Words
(A adorável traição das palavras), estamos descobrindo (em suas próprias palavras) que o não nomeado
permite o nomeado. O orgulho local fala. A tradição oral fala sua natureza tímida, sua liberdade do texto
autorizado. Estamos aprendendo que a língua nos dá acesso a informações que objetos exclusivamente (e a
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

história em torno deles) podem não transmitir.


Um dos objetivos da exposição é mostrar que nem tudo pode ser traduzido em uma outra língua,
e talvez seja aqui que nos encontramos no âmago das estimadas crenças. Tais conceitos são os mais difíceis
de serem articulados, a origem de cada mito de cada cultura e seus contos originais, seus pensamentos mais
genuínos. São a essência do que somos. Como escreveu Northrop Frye em seus estudos sobre o imaginário
canadense, nossos “mitos são expressões de interesse, do zelo do homem por seu próprio destino e patrimônio,
seu juízo da suprema importância de preservar sua comunidade”. Perdendo-se a língua na qual são expressas
tais crenças, perde-se esse laço que mantém unida a comunidade. A preservação dessas línguas é uma das
razões por que queremos organizar essa exposição.
Eu cito este exemplo como uma circunstância de como uma visão inovadora como a língua pode
re-apresentar a coleção e o conhecimento que ela representa. Mude o enfoque e você muda o conteúdo.
Ninguém imagina que seja viável ou desejável trocar constantemente as exibições de um museu, seguindo
os passos do tempo da moda. Mas o que podemos fazer é reapresentá-las, sugerir novas molduras e perspec-
tivas, novos pontos de partida para refletirmos sobre o que está lá, e o que não está.
A língua é uma ideia para recontextualizar a coleção intelectualmente. Mas não há escapatória
sobre o fato de que os museus são repletos de coisas. Diferentemente de uma academia, em que o horizonte
de conhecimento se amplia até onde as mentes dos estudiosos desejem viajar, o conhecimento em museus
está contido em seus objetos. É possível viajar com eles, mas eles são uma bagagem difícil de carregar.
A forma das coisas é, obviamente, seu grande poder. O prazer dos museus está no conhecimento
incorporado. A história é palpável – pedimos que você não a toque, mas a realidade do passado está ali,
diante de seus olhos, em cada pote feito à mão ou peça de jóia de estilo interessante.
O que dizemos sobre os objetos e como os apresentamos é de grande relevância. Você pode re-
escrever e a redesenhar a mesma coleção e se deparar com museus radicalmente diferentes. Mas ainda mais
convincente ultimamente, como modo de reestruturar a coleção, são as perspectivas de reunir diferentes
coleções – física, intelectual e eletronicamente.
Uma das exposições especiais que planejamos no Royal British Columbia Museum é sobre a corrida
do ouro. É uma exibição sobre movimento, um olhar sobre uma das atividades base que fizeram da Colúmbia
Britânica o que é hoje: atraindo pessoas e influências, transformando essa extensão de terra e água em um
cenário de sonhos, riqueza e felicidade. É uma história bem típica da Colúmbia Britânica. Um modo de liber-
tar-se do espírito provinciano do conhecimento do museu é imaginar a mesma exibição organizada em outro
lugar. Como seria uma exposição sobre a corrida do ouro na Califórnia ou na Austrália? Por que não abordar
esses elementos? Nunca entenderemos o lugar da Colúmbia Britânica no mundo a menos que possamos ver
como outras regiões foram afetadas pelas mesmas aventuras. Esperamos que a exibição fizesse isso trazendo
coleções de lugares tão distantes quanto a China e a Austrália, a Grã Bretanha e o sul dos Estados Unidos.
Meu ponto principal é que coleções podem ser transportadas, física e cada vez mais digitalmente.
Elas não são estáticas, e o que já foi dito sobre elas pode ser alterado. Um dos grandes projetos do Royal British
Columbia Museum é um atlas da Colúmbia Britânica, como um gigante museu digital que reunirá arquivos e
coleções de toda a província, incluindo aquelas de colecionadores particulares. É uma tentativa de recombinar
conhecimentos dispersos e disponibilizá-los para todos de graça, onde quer que estejam. Jamais poderíamos
reunir fisicamente esse material, mas a digitalização torna possível não só a sua armazenagem, como tam-
bém surpreendentes novas formas de catalogação inteligente e pesquisa comparativa. É um momento de
muito entusiasmo para museus, bibliotecas e arquivos que nos levará de volta às coleções físicas, com novos
questionamentos, necessitando de novas representações e buscando novas investigações.
O que essa união de coleções físicas requer é se libertar dos limites tradicionais do museu e dos
192
arquivos. Esses limites podem ser disciplinares, ou de comum acordo. Às vezes são limites de cultura profis-
sional, que facilmente são mumificadas como uma elevada, todavia inflexível, série de protocolos. Há poucas
coisas mais desencorajantes para um jovem curador cheio de novas ideias que ouvir “é assim que as coisas
funcionam por aqui”. A única resposta apropriada me parece ser: “então mude!”.
Esses limites também são, em um sentido bem convencional, regionais. Quando juntamos coleções
é preciso baixar a guarda. Precisamos expandir o museu se quisermos garantir que aquele conhecimento
continue vital, compreensível e relevante. Você não pode continuar em seu lugar, trabalhando quietinho no
seu canto. Você precisa viajar; você precisa olhar ao redor; você precisa deixar entrar as influências externas.
O Atlas da Colúmbia Britânica que estamos propondo incluirá todos os mais dispersos artefatos que puder-
mos encontrar, incluindo estrangeiros. A exposição sobre o ouro e a corrida pelo ouro vai passar por tudo,
das histórias dos imigrantes chineses às rotas de comércio pela América. Em ambos os casos, para entender
a Colúmbia Britânica é necessário envolvimento não só com a província, mas também com todo o mundo.
Mesmo um tópico como as línguas na Colúmbia Britânica precisa se libertar da enciclopédia provinciana.
Em uma época em que as pessoas estão trocando imagens e música pelo mundo, em que o presidente
americano está aprendendo a dançar Gangman (não muito bem, segundo sua esposa), museus precisam ser
internacionais e manter essa perspectiva internacional.
Deixe-me terminar com um exemplo perfeito de museu de patrimônio imaterial que ilustra todos os
pontos que estou expondo. O Museum of the Nisga’s People em Laxgalts’ap (Greenville), um pequeno vilarejo
de 400 pessoas a duas horas de voo mais duas horas de carro ao norte de Vancouver. O museu abriu em 2011
com 300 artefatos devolvidos pelo The Royal British Columbia Museum. A arquitetura do museu é transparente,
suas janelas refletem a forma de uma casa tradicional (maloca) e seu teto faz lembrar algumas das canoas que
você vê no rio das proximidades, o rio Naas. Ele expressa as lendas tribais dos ancestrais que sobreviveram aos
raftings no cume de altas montanhas. Ele capta a história do Txeemsim. Seus poderes sobrenaturais moldaram
o rio para que mais salmões ali desovassem e ele ensinou seus seguidores sobre o valor sagrado do lugar.
Escolher que história contar é, obviamente, algo que todos os museus no mundo têm de se pergun-
tar, e não somente no seu início, mas precisam se perguntar constantemente.
Museus são, por definição, containers. Mas talvez seja preciso virá-los do avesso e criar não apenas
acesso, mas uma abertura genuína para outras vozes, outros caminhos. Precisamos – e a metáfora deveria
ser amplamente aplicada – trazer “para dentro” do museu o que a ele não pertence. O patrimônio histori-
camente imaterial foi deixado de fora. Qualquer museu moderno que tenha fixado sua história é – para
ser completamente honesto – nada mais que aqueles museus empoeirados do passado, com suas prateleiras
amontoadas e displays imutáveis.
Museus estão associados, por definição, à contenção. Mas talvez seja preciso virá-los do avesso e
criar não apenas acesso, mas uma abertura genuína para outras vozes. Este é o convite para todos os diretores
de museus e gestores de hoje.
Para concluir, cito um pequeno trecho do romance de Audrey Thomas, Intertidal Life (Vida Inter-
tidal). A história se passa na Ilha Galiano, próxima a Vancouver. Alice pegou um livro chamado A Spanish
Voyage to Vancouver (Uma Viagem Espanhola para Vancouver):
Desde que chegou à ilha, ela estava interessada na exploração na costa noroeste. A ilha tem nome espanhol,
assim como várias outras no arquipélago, e ela se divertia imaginando esses capitães espanhóis cruzando
através de Polier Pass (Passo de Polier). Todos aqueles homens navegando os oceanos do mundo... suas espo-
sas... se prendiam às suas histórias de índios e cachoeiras, estranhas cerimônias e estranhas paisagens, assim
como Desdêmona se prendeu às palavras de Otelo? E se as mulheres fossem as exploradoras?... Imagine
um navio de mulheres, treinadas para serem hábeis no uso de todos aqueles instrumentos maravilhosos -
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

quadrantes, cronômetros, bússola - capazes de se guiar pelas estrelas, sabendo a diferença entre um horizonte
artificial e um real...

É uma passagem esplêndida. Thomas nos lembra que o patrimônio imaginário da Colúmbia
Britânica conecta todo o mundo, desde os primeiros instrumentos de navegação produzidos na China e
no Oriente Médio, a Otelo, de Shakespeare. Ler essa autora não me deixa esquecer que nós precisamos, ao
tentarmos enquadrar o passado ou o futuro, manter nossa perspectiva bem aberta.

194
Preservando o patrimônio imaterial em casa: primeira nação
Huu-ay-aht (Nuu-chah-nulth)

Angela Wesley
Primeira Nação Huu-ay-aht (Nuu-chah-nulth), British Columbia, Canadá

Q

uem eu sou e de onde venho?
Meu nome tradicional é Shii-shii-xwa-lahp. Meu nome em inglês é Angela Wes-
ley, tenho orgulho de ser uma cidadã Huu-ay-aht, da Nação Nuu-chah-nulth e membro
da casa Ahp-winisaht em minha Primeira Nação. Em casa, meu nome tradicional indica
ao meu povo quem eu sou, da onde sou e, em muitos casos, minha conexão com outras
Primeiras Nações da nossa área. O nome da minha casa Ahp-winisaht indica meu papel
na minha nação e quem é o chefe da minha casa, o chefe da minha família. O nome
da minha casa significa “a casa do meio”, um local importante em nossa comunidade: o
lugar onde reside o chefe. Os territórios da Primeira Nação Huu-ay-aht estão localizados
na parte mais ocidental do Canadá, na Ilha de Vancouver, em Colúmbia Britânica, ao
redor de uma pequena comunidade chamada Bamfield.

Nossa rica história

Não sou uma líder política ou mesmo alguém que tenha tido o privilégio de
estudar as culturas do mundo. Tenho vivido em minha comunidade, me empenhando
para nos ajudar a vencer os desafios na recente história do meu povo e a encontrar
caminhos para sobrevivermos e prosperarmos novamente em nossas terras, para res-
taurarmos e revivermos quem somos como povo. Na história da minha Primeira Na-
ção, assim como na de muitas outras culturas indígenas no mundo, vivemos dentro
de uma sociedade complexa, na qual leis rigorosas não foram escritas, mas foram bem
compreendidas por todos. Nosso Tyee Ha’wilth (chefe hereditário) recebeu os direitos
à terra, aos recursos e às águas dos nossos territórios e tinha como responsabilidade a
guarda de tudo o que estava contido nesses territórios. A responsabilidade foi outorgada
ao nosso Tyee pelo criador, Naas. Em nossa sociedade, cada indivíduo tem um papel
fundamental e foi criado para aprender todos os requisitos para desempenhar esse pa-
pel. Nossos guardiões da praia, nossos pescadores, nossos baleeiros, nossos porta-vozes
(speakers), nossos guerreiros, nossos artesãos, nossos construtores de canoa, nossos lí-
deres espirituais, nossos curandeiros, nossos caçadores e muitos outros compreenderam
que, se não cumprissem com seus papéis, toda a nossa comunidade sofreria com isso.
195
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

Nossas leis e nossas tradições eram rigorosas, e as consequências por quebrá-las, frequentemente severas.
Então, sentimos o peso da história das inúmeras gerações antecessoras que habitaram cada polegada dos
nossos territórios. Estamos cientes da responsabilidade que carregamos não só em relação ao passado, mas
também por nossas crianças de hoje e do futuro.

Nossa história colonial

O relatório do British Columbia Claims Task Force (Relatório de Reivindicações da Colúmbia


Britânica), de 1991, descreve parte da história colonial das Primeiras Nações:
• A sociedade colonial foi uma sociedade de imigrantes cujos valores eram muito diferentes daqueles dos
aborígenes.
• A nova sociedade não aceitava os valores da comunidade, enaltecia o indivíduo empreendedor, favorecia
o progresso ante a tradição, e acreditava que a evolução da humanidade encontrava-se não na harmonia
com a natureza mas em suas conquistas e transformações.
• A sociedade da Colúmbia Britânica se via como sucessora dos exploradores europeus, os quais acredi-
tavam terem “descoberto” o desconhecido, como as terras desocupadas, livres para serem tomadas.
• Milhares de anos da presença aborígine foram ignorados.
• Às Primeiras Nações não foi concedido espaço na Colúmbia Britânica.
• Aos indivíduos aborígenes foram negados reconhecimento, respeito, dignidade, ou qualquer oportuni-
dade implícita na política de assimilação.
• Quando a Colúmbia Britânica se juntou ao Canadá em 1871, o povo aborígine, que era a maioria da
população dessa província não recebeu nenhum papel importante no processo da tomada de decisão
política.
• Os termos da União não faziam menção ao termo aborígene, mas garantia a autoridade da província so-
bre a criação de futuras reservas indígenas. O Canadá assumiu a responsabilidade pelos “Índios e terras
reservadas aos índios”. E o governo da Colúmbia Britânica considerava “a questão da terra indígena”
resolvida, e, consequentemente, considerava o governo federal responsável pelos assuntos pertinentes
aos “povos aborígenes”.

Os povos aborígenes da Colúmbia Britânica foram restringidos, por lei, ao uso e ocupação de peque-
nas partes de seus territórios tradicionais, as Reservas Indígenas, e passaram à tutela do governo federal,
regidos por uma única lei federal, The Indian Act (Ato Indígena), a qual existe até hoje e rege literalmente
todos os aspectos da vida dos povos aborígenes residentes nas Reservas, desde seu nascimento até sua morte.
Se você for um cidadão (ou membro) de uma Primeira Nação, o que pode ser feito com as suas terras e seus
recursos, como seu dinheiro pode ser empregado, como educar suas crianças, como a saúde será provida e
como sua propriedade será administrada quando você partir desse mundo, tudo isso está sujeito à aprovação
do governo do Canadá, através de seu Ministério Federal de Assuntos Indígenas (Federal Minister of Indian
Affairs). Essa mesma lei, várias vezes na nossa história recente, baniu práticas como por exemplo o potlatch
(nosso festival tradicional que governou nossas economias e consagrou e reafirmou nossas práticas sociais e
governamentais), separou crianças de suas famílias sob a imposição de um sistema educacional residencial
que proibiu o uso de nossa língua e alienou de nosso povo às nossas terras, recursos e territórios. Em suma,
The Indian Act nos fez completamente dependentes dos programas de ajuda do governo federal, o que nos
levou a um estado de dependência.
196
O período da colonização teve efeitos devastadores na nossa cultura e na nossa existência. Quanto
às nossas línguas tradicionais, por exemplo, a Colúmbia Britânica é o lar de 60% das línguas das Primeiras
Nações no Canadá, contando com 34 línguas distintas. Contudo, o número de falantes de todas essas lín-
guas vem sendo reduzido para todas elas, e um relatório de 2010 expôs que todas as línguas das Primeiras
Nações da Colúmbia Britânica corriam sério risco ou já estavam em via de extinção. Falantes fluentes so-
mam apenas 5% do total da população das Primeiras Nações da província, sendo a maioria deles idosos. Es-
tatísticas mostram consistentemente que as condições sociais e econômicas dos povos das Primeiras Nações
no Canadá estão muito aquém da média nacional, com baixa qualidade de saúde e educação, água potável
e moradia, além dos mais altos índices de desemprego, encarceramento e suicídio no país.
Hoje, somos apenas uma fração da população que éramos uns anos atrás, em grande parte devido
às doenças introduzidas que devastaram a população aborígene em toda a Colúmbia Britânica. Nos tempos
modernos, por diversas razões (especialmente por sua localização isolada, falta de empregos, de acesso à
educação, aos serviços de saúde e outros), somente uma pequena porcentagem de nossos cidadãos ainda con-
segue morar “em casa” (at home); somente cem de nossos setecentos cidadãos moram em nossos territórios
(home territories). Isso é o que está acontecendo em muitas Primeiras Nações na Colúmbia Britânica e nós
compartilhamos o objetivo de vermos nossos povos retornando para suas terras natais, para viver em comu-
nidades sãs, onde tenham acesso à educação e aos serviços de saúde, onde tenham várias oportunidades de
emprego e participem de uma economia sólida e em desenvolvimento e onde a prática de nossa cultura e
língua façam, mais uma vez, parte de nossas vidas quotidianas.
Sobreviventes!
Apesar de quase um século e meio de opressão, as Primeiras Nações conseguiram sobreviver. Minha
Primeira Nação bem recentemente quebrou os grilhões do The Indian Act através do moderno processo de
elaboração de tratados da British Columbia (modern-day British Columbia treaty-making process). Junto com
outras quatro Primeiras Nações da Ilha de Vancouver, somos signatários do acordo, O Tratado das Primei-
ras Nações (Maa-nulth) com o governo do Canadá. Muitas outras nações estão começando a seguir um
caminho similar, ou estão aproveitando outras vias que aos poucos se tornam disponíveis para nos livrarmos
dessa legislação arcaica.
Desde 1º de abril de 2011, minha Primeira Nação se autogoverna novamente sob nosso tratado e
nossas próprias leis, definidas para exprimir mais precisamente quem somos e de onde viemos. O tratado nos
oferece meios como: posse de terras e recursos, autoridades governantes para assuntos críticos que afetam
nossos territórios e nossos recursos, e recursos financeiros adicionais. Com essas ferramentas, nós assumimos
novamente o papel de governar nossas próprias vidas. Pretendemos trabalhar duro para gerar mais rique-
zas, com as quais poderemos reconstruir nossas economias e nossas estruturas sociais tradicionais, a fim de
nos possibilitar reviver e agir como somos em nossas terras natais. Ao mesmo tempo, queremos que nossos
cidadãos participem completa e igualmente do “novo mundo” no qual vivemos. Apenas começamos esse
trabalho e temos objetivos grandiosos e orgulho de estarmos fazendo isso.

Passo a passo

Ao longo da preparação, e a participação em mais de 15 anos de intensa negociação com os governos


do Canadá e da Colúmbia Britânica, do moderno processo de elaboração de tratados (modern-day treaty),
aproveitamos a oportunidade e começamos a reconstrução de nossa Primeira Nação, reivindicando e nos
reafirmando em nossos territórios. Tiramos proveito de cada oportunidade e aproveitamos cada vitória legal
em favor das Primeiras Nações na Colúmbia Britânica e no Canadá. A fim de assegurar nosso direito à
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

ocupação de nossos territórios, precisávamos definir cuidadosamente nosso lugar tradicional, territórios que
nunca abandonamos. Esse processo nos ajudou, em muitos casos, a reaprender ou reforçar o entendimento
coletivo do nosso relacionamento histórico e íntimo com nossos territórios, os quais estiveram alienados por
gerações no período colonial. Entre outras coisas, temos trabalhado com as seguintes iniciativas:
• Completamos um estudo detalhado dos costumes no nosso território, identificando perto de mil locais
de uso tradicional, topônimos tradicionais, sítios históricos etc;
• Estabelecemos novas relações com o governo da Colúmbia Britânica acerca de nossos territórios ricos
em florestas, requerendo que companhias florestais nos consultem antes de extrair os recursos dessas
áreas e submetemos áreas de extração florestal a um estudo mais intenso em que haja evidências de nosso
uso tradicional;
• Chegamos a um acordo com o Serviço Nacional de Parques (Parks Canada) para a inclusão da Kiix-in,
nossa antiga capital, como sítio histórico nacional, a fim de que todo o Canadá e todo o mundo possa
aprender sobre a história de nossos territórios;
• Preservamos lugares sagrados através de nosso tratado e outros meios, e restabelecemos os nomes origi-
nais de pontos geográficos chaves em nossos territórios;
• Trabalhamos com indústrias para começar a recuperação do principal rio dos nossos territórios, onde
acontece a desova de salmões, um rio que chamamos de “o coração do povo” (the heart of the people);
• Construímos a House of Huu-ay-aht com réplicas das imagens de boas-vindas que historicamente se
encontravam em nossa antiga capital Kiix-in;
• Construímos um novo edifício para a administração e temos planos de, no futuro, abrigar, empregar e
cuidar de nossos povos em nossos territórios;
• Estabelecemos uma corporação de desenvolvimento econômico para promover negócios e empreend-
edorismo entre nossas ações e nossos cidadãos;
• Estabelecemos um “ninho de língua” (language nest), para o qual nossas crianças em idade pré-escolar e
seus pais possam ir para aprender nossa língua e nossa história diretamente dos anciães de nossa Nação;
• Continuamos revivendo e fortalecendo nossos potlatch e festivais (recentemente, minha mãe, a matri-
arca de sua família, organizou um potlatch no qual quatro gerações de nossa família, incluindo 75 pes-
soas, receberam nomes tradicionais ou tribais).
• Com o tratado, ganhamos reconhecimento em nossa terra natal e desenvolvemos nossa capacidade de
preservar nossa língua, nossa cultura e nossa identidade única.

Nós, dessa forma:


1) Ganhamos a propriedade, o controle e/ou o acesso aos nossos territórios e recursos;
2) Progredimos na habilidade de desenvolver nossa própria riqueza, com a qual seremos capazes de melhorar-
mos a vida do nosso povo com empregos, educação, gestão de nossas terras e recursos, cultura e identidade.

Escrevendo e aprovando nossa própria constituição e nossas próprias leis, nós podemos:
1) Governar a nós mesmos no futuro, baseados em quem somos e em nossa própria perspectiva do mundo;
2) Restabelecer os papéis governamentais de nossos chefes hereditários Ha’wiih (hereditary chiefs);
3) Apresentar nossos princípios e valores próprios de como nos governar no futuro; tirar o melhor
das práticas governamentais tradicionais que funcionaram por milhares de anos e traduzi-las de forma sig-
nificativa para o contexto atual.

Essas e outras iniciativas estão nos ajudando a restabelecer uma forte base sobre a qual reconstruir
nossa nação. Esses passos podem parecer pequenos na visão macro das coisas, contudo são passos muito
198
significativos que demonstram nosso desejo de reconstruir nossa nação e nos restabelecermos em nossos
territórios, nos esforçando para conservar e reviver nosso rico passado para as crianças de hoje e do futuro.

Vencendo os desafios

Entre as 203 Primeiras Nações da Colúmbia Britânica há uma vasta gama de costumes e con-
hecimentos tradicionais de nossa história imaterial. Admiro imensamente as diversas Primeiras Nações
da Colúmbia Britânica que compartilham nossa história colonial, mas que mantêm fortes suas línguas,
suas culturas e continuam vivendo tradicionalmente. Embora eu tenha falado aqui dos desafios da minha
Primeira Nação, na realidade, nós muito provavelmente estamos bem no topo daqueles que conseguem
praticar nossa cultura. Muitos costumes tradicionais ainda existem na nossa nação atualmente e, em muitos
casos, estão se fortalecendo. Quando nossos homens cantam e nossas mulheres dançam, podemos sentir, lá
no fundo, quem somos e de onde viemos, e temos orgulho disso! Estamos dando passos pequenos e per-
sistentes, mas que são necessários para garantir a sobrevivência de nossa cultura em um mundo no qual há
muitas distrações externas, especialmente para os mais jovens.
O mundo está se transformando rapidamente. Na nossa realidade histórica, nosso mundo e nossas
vidas eram cíclicas ou circulares, tendo como base nossa subsistência sazonal e necessidade de sobrevivência.
Esse conhecimento vem de como sobrevivemos em nossos territórios e de como governamos nossa comu-
nidade. Não somos mais capazes de depender dos recursos do passado. Uma força maior guia nossos ciclos
agora – televisão, computadores, internet – e em progressão linear invade nossos caminhos cíclicos e causa
tensões e conflitos tremendos. A competição pelo tempo e pela atenção de nossas crianças é enorme e agora
enfrentamos o constante desafio de tentarmos encaixar nossa conexão circular na realidade atual. Precisa-
mos trabalhar duro para encontrarmos e criarmos o equilíbrio que nos permitirá viver nesses dois mundos
que são a nossa realidade.
Enquanto os museus se perguntam como melhor abrigar, exibir e apoiar a preservação do patrimônio
imaterial – nosso conhecimento, ações e habilidades tradicionais; nossa língua, a história oral, técnicas de
arte, rituais, lendas e topônimos – como Primeiras Nações, nós lutamos para fazer o mesmo em casa, nas
nossas comunidades. Tão importante quanto, ou talvez ainda mais importante, nós, as Primeiras Nações,
precisamos cada vez mais encontrar um modo de mostrar e enfatizar a importância de revitalizar nossa cul-
tura para nós mesmos. De minha parte, vou aproveitar a oportunidade de trabalhar com qualquer indivíduo,
grupo, museu ou outra cultura que compartilhe o mesmo objetivo.
Para nós, nossa nova jornada começou logo após a meia-noite do dia 10 de abril de 2011. Por volta
de 23h45min do dia 31 de março, em frente a casa Huu-ay-aht, muitos de nossos cidadãos se reuniram
ao redor do fogo e, como em uma cerimônia, queimaram o The Indian Act, página por página. Então,
entramos na casa, nosso Tyee Ha’wilth jurou sobre nossa recém-formulada legislação Huu-ay-aht, e eles
oficialmente promulgaram um conjunto de leis que nos garantiria uma base sólida para nosso futuro e o
futuro das gerações futuras.
Assim como no dia efetivo de nosso tratado, começamos a exercer nosso poder em relação à
preservação da nossa cultura, a gestão de nossas terras e recursos, a exercer nossos direitos e a administrar
nosso próprio governo. Nosso governo agora é dirigido pela nossa própria lei suprema: a Constituição
Huu-ay-aht, um documento criado em nossa nação pelos nossos cidadãos, um documento fundamentado
em nossa cultura e tradições.
Agora é responsabilidade de nossa liderança e de cada um de nossos cidadãos, como indivíduos, tra-
balharmos juntos para transformarmos as condições econômicas e sociais de nossas famílias e nossa nação.
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

Na ocasião em que a legislação da Colúmbia Britânica foi assinada, em 2007, meu tio e conselheiro chefe
precedente, Robert Dennis, disse:
–Cada um de nós precisa se perguntar: O que eu posso fazer para melhorar meu estilo de vida?
Temos muito trabalho a fazer.
–Podemos contar com a sua ajuda?
–Sim! Como? Vamos falar sobre isso!

Nosso tratado é tudo o que o The Indian Act não é. Ao se tornar efetivo, podemos planejar e construir
um mundo diferente. Nunca mais seremos constrangidos pelo sistema que nos sufocou e oprimiu por um
longo tempo. Hoje voltamos a ser a nação determinada e autogovernante que fôramos um dia. E, assim, esta-
belecemos altos padrões para nós mesmos, tendo como base os sólidos princípios e valores do passado.
Está tudo funcionando perfeitamente para nós? Ainda não. E muito provavelmente não será nunca
perfeito, mas que fique claro que está muito melhor que nos tempos do The Indian Act. Vai levar um
tempo para pegarmos a prática de governarmos a nós mesmos de novo; vai levar um tempo para gerarmos
riquezas e alcançarmos o objetivo que temos para nossa nação e nosso futuro e continuarmos despertando,
restabelecendo e revivendo quem somos. Nós nos governávamos no passado, mas agora enfrentamos vários
desafios e realidades que não existiam antes.
Estou adorando minha nova aventura no mundo dos museus e estou entusiasmada de ter um
mentor como o professor Jack Lohman para me ajudar a entender nosso mundo em perspectivas diferen-
tes. Assim como ele, também quero que as pessoas sintam o drama e o entusiasmo da cultura. Disse ele
em sua apresentação que aquilo que aprendemos no edifício é, idealmente, reforçado pelo ambiente onde
aprendemos. Espero que possamos desfrutar de ambientes que complementem uns aos outros em museus
e “em casa”, em nossos territórios.

Chuu, Klecko... obrigada pela oportunidade de compartilhar minha história.

200
MAMIWATA: dança em deslocamento

Denise Mancebo Zenicola


Professora do Departamento de Artes e Estudos Culturais – RAE, de Rio das Ostras-UFF
e Colaboradora do NEPAA-UNIRIO

E ste artigo está inserido em um longo projeto de estudo do mito Mamiwata,


apresentado sob a forma de espetáculo de dança contemporânea, no qual o movimento
das identidades da cultura afro-brasileira é abordado. Na experiência e prática de mon-
tagem cênica de Mamiwata, procuro compreender a dança afro-brasileira como meio
estético e instigante campo para reflexões e fusões de técnicas ocidentais e orientais, com
base em uma fenomenologia do corpo e sua relação com processos artísticos. Devido a
sua errância e à busca da alteridade presentes no mito Mamiwata, aponto caminhos pos-
síveis das relações entre corpo e arte na contemporaneidade. A metáfora da vida como
uma “viagem”, bem como de proposta artística, situa um corpo dramático porque des-
locado do real, um corpo imbricado de tensões porque potencializado nas cenas.
“Porque vivemos em um tempo de perguntas fortes e respostas fracas”
(SANTOS, 2008, p. 45).

Mito arquetípico

O mito de Mamiwata, primariamente uma deusa da água Ewe está presente


em diversos países da África, como Togo, Benin, Nigéria, Camarões, Congo, entre
outros. Ele tem sua iconografia representada como uma mulher/sereia que carrega em
seus braços erguidos, uma cobra. Com mais de dois milênios de existência, renasce com
intensidade no período das sucessivas invasões europeias ao continente africano, por
volta do século XVI. Sua performance mulher/peixe, mulher/sereia, presente em out-
ras tradições, chega ao Brasil parcialmente representada pelos Orixás Iemanjá, Oxum
e Olokun, personificações de princípios supremos no sistema de valores e de explicação
da existência nas culturas iorubanas. Mamiwata faz parte do panteão de bens Vodun,
com muitos seguidores para o culto da real Dan Python, cultuada pelos povos Mina,
Adja, Ewe, Fon, Iorubá e Ibo. (DREWAL, 2008, p. 153)
No Benin, Mamiwata está presente em seus ritos específicos, bem como, no
carnaval introduzido pelos afro-brasileiros, os Agudás, também chamados retomados,
em sua volta à África. Este carnaval, o Buriyan, é um meio de se recriar o microcosmo
cultural utilizando os usos e tradições vindas do novo mundo. Neste, é comum Mami-
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

wata apresentar-se como figura mascarada e principal personagem feminina, tendo em sua roupa as cores
verde e amarelo em homenagem ao Brasil. Este espetáculo é uma criação artística que funciona como uma
marca de coesão cultural identitária e forma de conservar a memória cultural.
Segundo Drewal, as palavras Mami e Wata são enraizadas no Egito antigo e Etíope (copta), Galla
e língua demótico. Mami é derivada de Ma ou Mama, que significa verdade/sabedoria, e Wata é uma cor-
ruptela da palavra egípcia Uati, (ou UAT-ur, significando oceano de água), e os Khosian (Hottentot) Ouata
que significa água (2008, p. 385).
Dentro do princípio arquetípico Junguiano, esse mito seria um inconsciente coletivo para essas sociedades,
com uma organização prévia de comportamentos, em que os conhecimentos estariam guardados. Esses compor-
tamentos, exemplares ou não, seriam processados, através da função simbólica, organizando a consciência coletiva,
a que poderíamos chamar de ideias de base (JUNG, 1986, p.69). Para Bachelard (1998, p.25), esse mito funciona
como uma recuperação dos anseios e devaneios antigos da humanidade, armazenados no imaginário coletivo.
Ambivalência, dualidade, sabedoria, adaptação e encantamento são algumas das características que
definem este arquétipo mitológico Vodun em seu ciclo ritual. A cobra que carrega no corpo representa o
poder sobrenatural e sua constante mutação associada às trocas da pele de cobra. Mamiwata é também uma
capa protetora que envolve os povos e pune os grupos sociais que perderem suas origens e fundamentos.
Por associar três mundos, o animal, humano e espiritual, torna-se uma criatura/mito sobrenatural, é deste
encontro que vem seu poder e sabedoria.
Seu ritual tem um claro sentido interno inscrito na cosmologia e na forma de pensar desses povos
em específico, nos quais sua presença é marcante, como pode ainda relacionar-se a outros contextos, como
os provocados nas relações diaspóricas, agregando alguns elementos do mundo novo num quadro mais
dilatado e que articula esferas mais ampliadas de inter-relações culturais.

Deslocamento e trânsito

O mito se revela em “seu trânsito e fortalece um locus para representação de vivências diaspóricas”
(HALL, 2003, p.28). No Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro, pode-se usar como exempl de
um desses caminhos a atual estrada BR 101. A presença de remanescentes de Quilombos na região, entre
eles Rasa, Preto Forro, Caveira, Comunidade de Botafogo, indica o intenso trânsito de escravos, ocorrido
por mais de 200 anos. Neste percurso, também ocorria intensa fruição de contos e mitos que revelavam
performances de constante construção/reconstrução de identidades profano/religiosas que apresentam-
se, sobretudo, como práticas de comportamentos. O que se observa é que este legado tradicional, pela
sua constante fluidez e movência (BAUMAN, 2001, p.87), assume inusitadas formas que serão o esteio
para se pensar a construção identitária. As sacralidades africanas, na diáspora, assumem novos contornos
dinâmicos e descentrados, entendendo tais contornos não como uma expressão do caótico nem do inútil,
mas como resultante do pensamento humano direcionado a uma profunda relação de deslocamento hori-
zontal (geográfico) e vertical que entra em outro tempo, o tempo circular, reatualizando o tempo do mito,
o tempo do humano. No vetor criado a partir deste cruzamento, conceitos, fundamentos, nomenclaturas,
mitos e ritos dos povos Mina, Adja, Ewe, Fon, Iorubá e Ibo, em seus respectivos universos cosmogônicos
e encenados no Brasil, vão sendo retramados. Percebe-sea convivência deste mito inter-religiões, que cruza
e entrecruza realidades de interculturação.
Através da oralidade, que, longe de ser invenção é uma narrativa que repete ações já vivenciadas,
Mamiwata cumpre seu estatuto de mito que apresenta o homem em suas questões, em existências mais
profundas e ao mesmo tempo gerais, em suas relações culturais, em suas procuras.
202
Dramaturgia no corpo

Partindo de pesquisas na performance da dramaturgia do corpo e do universo mítico de


Mamiwata, utilizamos a coreografia e o trabalho do artista pesquisador/intérprete para desenvolver
este passado mítico e ao mesmo tempo real, atual e contemporâneo em seus sucessivos deslocamentos
e justaposições. Fluxo e territorialidade são características desse arquétipo que corporalizamos através de
um encontro de técnicas do corpo e videodança.
Desenvolvemos uma História de fluxos e refluxos como a nossa História; de um povo marcado por
profundos movimentos de deslocamentos, da saída forçada ou não de suas terras. Pensando sobre essas Histórias
e tantas histórias, sentimos a necessidade de fazer emergir e de nos imergir nessa história de êxodos, procurando
criar uma consciência corporal através de corpos e identidades também em constante fluxo. Uma mãe/mulher
que para continuar como tal altera e alterna sua identidade sob mil corpos e máscaras, às vezes para disfarçar
outras, para encantar outras, para punir os que se esquecem de suas origens, nossa memória ancestral.
Na experiência e prática de montagem cênica e dramaturgia que efetuamos no grupo Muanes
dançateatro, Mamiwata reafirma-se como um instigante tema para reflexões e propostas artísticas pela sua
conotação de feiticeira, mãe, mulher e sereia. Nossa tentativa é estabelecer o que, segundo Richard Schech-
ner, é um “comportamento restaurado”, para poder efetuar aspectos da performance na cena, reatuar em
seus aspectos corporais, sonoros e estéticos como uma forma de agenciamento da memória ancestral, na
medida em que tradição e memória vão sendo reelaborados no presente (2003, p.38).
O princípio de experiência proposta por Turner (1986, p.102) e o movimento que vai do mito ao
teatro, em nosso caso à dança, proposto por Schechner (1988, p.39), trazem uma perspectiva interessante,
na medida em que nos possibilita criar ciclos rituais (cenas) em dimensões contemporâneas de ações rituais
passadas e ainda presentes, por meio de imagens e performances que projetam possibilidades de experiências
já vividas. Uma estética para além do Teatro Realista, para além da Dança Contemporânea.
Tratamos cantos, danças, imagens projetadas, nomes e objetos como integrantes de um repertório
ancestral herdado, presentificado no corpo que dança. A performance Vodun de Mamiwata situa então um
corpo dramático porque deslocado do real, um corpo imbricado de tensões porque potencializado nas cenas
em ações físicas conflitantes e às vezes contraditórias, que devem ser “reencenadas”, repetidas, pois a cada
repetição, a cada ciclo ritual as ações remontam à origem da própria sociedade que a criou.
Como um mito vivo, tempo, espaço e narrativa se articulam e ganham sentido de acordo com o
ajuste cultural deste mito no contemporâneo. Trata-se de uma discussão que envolve a passagem de um
mundo mitológico aos estudos da performance, trazendo uma ampliação do “lugar olhado das coisas”,
para utilizar a expressão de Roland Barthes (1990, p.58), ao “lugar sentido das coisas” e nesse mobilizar a
produção de cenas para poder efetivar uma abordagem performativa de rituais.
Mas Mamiwata é sempre um mito contemporâneo, mesmo ali onde parece desaparecer, discreta,
talvez porque protegida pelas máscaras corporais, ou seja, pelos deslocamentos de identidades. Por isso nossa
escolha pelo uso em paralelo de imagens virtuais juntamente com algumas cenas, pois estas são imagens,
representações contemporâneas das identidades, o mito incorporado pela contemporaneidade do próprio
mito. No palco, corpos dançam dialogando com estas imagens virtuais, representações culturais, corporais,
individuais e coletivas... É partindo desse movimento, ponto dinâmico onde convergem os âmbitos pessoais,
sociais e culturais, que procuramos sensibilizar o público para a importância das construções de identidades,
na qual todos nos movimentamos quando nos deslocamos.
Assim como não pensar e não refletir acerca desses deslocamentos e “alterações”? Por que não estar
presente ou sentir a presença dessa vontade e prazer de colocar e tirar máscaras corporais? Como não se
203
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

sentir tomado por esse rito e por esse mito tão contemporâneo e presente? Assim, justificamos nosso tra-
balho por ele proporcionar uma série de reflexões críticas no âmbito da cidadania. Nossa proposta é que
através do corpo/bailarino/vídeo possamos trazer à luz esses signos não tão presentes na História de nossa
cultura e país na atualidade, mito de uma África/Brasil/África. Nosso objetivo principal é levar ao público
uma experiência artística e investigativa de movimentos presentes, ora ocultos, ora manifestos na história
de nossa formação cultural e por isso também de nossos corpos. A ancoragem no corpo foi decisão impor-
tante por permitir fazer a passagem da experiência coletiva para a cena enquanto um processo performático,
contribuindo para a efetivação do ciclo ritual. Como performance, a ação cênica encerra uma matéria que
não pode ser descuidada: o meio possível para que a comunicação se realize de forma ativa. Diversos são
os desafios que a montagem traz como questões relacionadas à performance: usos do corpo, o universo do
sensível, o cenográfico, bem como o musical, que colocam questões importantes quando pensadas em um
contexto de diálogo intercultural.
Com relação a trilha sonora, inicialmente a proposta era criar uma trilha conceitual que desse conta
de todo o espetáculo como uma base sonora. Entretanto com o desenvolvimento das composições coreográ-
ficas, este princípio caiu por terra. Ficou claro que Mamiwata é descontínua, é multifacetada, é plural, daí
optamos por utilizar uma trilha mixada de diversos fragmentos de músicas africanas, selecionadas de regiões
onde o mito é presente, músicas brasileiras, ou melhor, afro-americanas em geral. A criação sonora nasce,
então, da forma das junções e fricções que estas sonoridades, às vezes aparentemente desconexas, apresentam
ao serem mixadas, fundidas, sampleadas.
Mamiwata consolida-se então como uma pesquisa corporal prático-teórica para montagem do espe-
táculo de dança-teatro e que faz parte do projeto de pesquisa Kiriê de Griot, composto de pesquisa etnográfica
de danças, montagem e apresentação pública em Dança-teatro e consequente produção, edição e circulação
de vídeo documentário em Vídeo Dança, sediado no Polo Universitário de Rio das Ostras, da Universidade
Federal Fluminense – UFF. Um projeto multiarte em Dança/teatro/vídeo que visa rememorar a rota ilegal de
escravos do Norte Fluminense ao Rio de Janeiro, o século XIX, atual estrada BR 101, rota que possivelmente
foi um dos caminhos que trouxe este mito até nós.

Do corpo e seus usos

Neste espetáculo fazemos a hibridização de técnicas de Dança ocidentais e orientais, aproximamos


ainda as chamadas danças contemporâneas e as tradicionais; o resultado é Dança Contemporânea, Dança
Afro-Brasileira, Dança Butoh e Danças do Benin, que atravessam o mesmo corpo. O corpo enquanto espaço
sensório está no centro da nossa ação performática e ainda como foco de deslocamento de pontos de vista
para as reelaborações destas experiências e fusões de um passado/presente do tempo mítico, passado e pre-
sente de técnicas de dança. Nosso entendimento de fusão, adaptação aos corpos e centralidade do corpo na
discussão artística nasce da necessidade de encontrar um corpo que desse conta deste mito e da nossa von-
tade de transformar a palavra em ossos, tendões e carne; a vontade de canibalizar essas informações culturais
apresentadas por meio dessas técnicas. Essa canibalização vai resultar num tipo de criação que não existe nem
no Butoh japonês nem nas danças afro-brasileiras ou do Benin. Essa opção inicia sobre o que é ser brasileiro
num mundo tão internacionalizado. Instiga-nos manter nosso vínculo cultural, apesar de toda essa mistura e
das adaptações e mixagens que nossos corpos farão para receber esses princípios estrangeiros e os familiarizar.
Em meio à montagem, criamos e desenvolvemos ações teatrais performáticas em blocos temáticos sob a
forma da expressão do corpo, nascidas literalmente na pesquisa do encontro destas linguagens para retomar
tradições antigas em técnicas contemporâneas e também ratificar a ideia quase esquecida de que o dançarino
204
não dança para si, mas para reviver algo muito maior, o seu mito pessoal.
Calcamos nosso trabalho nos arrojados elementos do Butoh, uma forma considerada marginal de ex-
pressão, e que passou a ser chamada de Ankoku Butoh; dança das trevas, hoje, simplesmente Butoh.Trata-se
de uma dança contemporânea, que expressa ao mesmo tempo ideias diversas. Mobilidade e/ou imobilidade
das partes do corpo: os braços, as pernas, o tronco, o pescoço e a cabeça levam o performático a mergulhar
na viagem corporal e pessoal e conduzem à poesia.
Nossas feridas do corpo, eventualmente, fecham e cicatrizam. Mas há sempre feridas escondidas,
aquelas do coração, e se você sabe como aceitar e suportá-las, você descobrirá a dor e a alegria que é impos-
sível expressar com palavras. Você conquistará o domínio da poesia que só o corpo pode expressar” define
(Kazuo Ohno apud GREINER:1998, p.49).
Os dançarinos do Butoh quase não usam vestimentas. Para eles a roupa veste o corpo e o corpo, a
alma. E foram desses princípios de justaposição de ideias que nos fez aproximar desta técnica de dança, bem
como, do seu envolvimento com os elementos da natureza. O Ma, um princípio oriental que remonta à mi-
tologia japonesa e uma forma de tornar o invisível visível na fusão do espaço com o tempo, profundamente
complexo ao entendimento ocidental, tem no Butoh a exploração do espíritos que habitam o Ma. Segundo
Baitello Jr., o sistema desse princípio Ma apresenta nove etapas de experiências (apud GREINER, 1998, XII,
p.121).
Himorogi – representa o lugar sagrado e o lugar da sua criação;
Hashi – significa o espaço e o tempo entre duas coisas ou acontecimentos, suas bordas e intervalos;
Yami – mundo das trevas e conjuga o mundo da escuridão para o da luz;
Suki – a abertura;
Utsuroi – processos de mudança;
Utsushimi – representa a projeção do físico na realidade, o espaço onde a vida é vivida;
Sabi – imagem de um movimento preciso;
Susabi – a transgressão das regras, falta de harmonia, caos e desordem de tempos modernos;
Michiyuki – pausas e paradas das viagens.

Nas danças tradicionais do Benin, procuramos captar suas características da busca do movimento no
inconsciente comum a todo homem: a beleza e a decrepitude, a simplicidade e a complexidade, o cômico
e o trágico, a profunda concentração, quase um transe, alavancado pela dança. Na prática, os joelhos mais
dobrados, curvatura da coluna/escoliose mais pronunciada, o tronco inclinado (quase um plano inclinado,
não relaxado e alongado para frente), o diafragma aberto, projetado pela ampliação do plexo, valorização do
sapateado no chão, guizos nos tornozelos, a dança mais para si, na qual o performer é quem dança, a dança é
um solo individual, criativo e pessoal, é um performer intérprete, grande alongamento para trás dos braços, pela
ondulação dos cotovelos. Um dança que não evidencia o rebolado e sim os glúteos elevados para trás. Há nela
delicadeza no tocar o chão, pouco salto e, quando ocorrem a ênfase do salto. Ela é para baixo, é envolvimento
suave, delicadeza e velocidade baixa, pernas mais unidas e com o maior deslocamento do tronco para a frente,
dança num ritmo constante e lento, evoluindo em pequenos passos, como deslizando um moto contínuo em
suave sapateado dos pés, dá a sensação do desequilíbrio precário e movimentação circular. Nessa dinâmica,
ressaltamos ainda a relação do corpo com os sentidos da natureza, o enraizamento dos pés, a leveza dos movi-
mentos das mãos e braços se ramificando ao tempo presente e ao mesmo tempo apresentando movimentos de
conhecimentos ancestrais.
Na Dança Afrobrasileira, mais especificamente a executada para palco e praticada no Rio de Ja-
neiro, pesquisamos uma em que o tronco fica mais verticalizado, embora com flexão de joelhos. Ela tem
ainda, maior oscilação lateral da coluna, tronco com ondulação céfalo-caudal, espiralar, movimentação 205

Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

mais centrada no tronco, que oscila treme e rebola, a valorização do quadril no movimento. Há preferência
para a movimentação coreografada, decodificação do movimento padronizado, dança mais para fora com
maior espetacularidade, maior exposição do corpo, braços em plano baixo e ou médio, e pouco uso no alto.
Quando elevados, há força nas mãos, que geralmente estão contraídas, pés tocam e/ou batem no chão, pre-
sença de pulos e saltos com ênfase em cima, maior evidência do rebolado em detrimento do levantamento
do sacro, joelhos menos dobrados, pernas mais afastadas, maior base e equilíbrio no chão, o movimento é
mais sexual que sensual, forte e veloz, mais energético e saltitante; provocador, vigoroso, duo em grandes
rebolados, união de corpos, ombros ondulam com força em movimento que faz os seios balançarem, corpo
mais exposto. Corpo que mostra mais, sexualiza mais, corpo que foi escravizado.
Se é através da alma, emoções da vivência de cada um, que são criadas as sequências gestualísticas
que formam o Butoh, nas danças africanas do Benin e afro-brasileiras, a força e a performance ora vigorosa,
ora sutil de gestual minimalista apresentam o vigor do movimento potente e tribal, de grupo como um todo;
uma tensão entre a apropriação e a violência, um diálogo entre a performance pessoal e coletiva.
Se no Butoh a maquiagem melancólica e o branco sobre o corpo fazem com que os músculos sejam
realçados e suas formas expressivas delineadas em movimentos essenciais numa despersonalização neutra e
asséptica, os corpos se valorizam pela ausência de pelos e a denotação da força pelo silêncio, já as danças afro-
brasileiras viabilizam a recuperação da vitalidade e a força do corpo, de um corpo domesticado ou reagente
pelas atividades cotidianas e esmagado pelas regras estabelecidas que pulsam em movimento de força pela
presença.
Como produto desses sucessivos encontros de culturas e técnicas do corpo, trabalhamos em Mami-
wata o desenho de cada gesto simbólico que estimula ideias, associações e emoções, tramando uma visibili-
dade: as intensidades, os afetos que atravessam os corpos, a música, os movimentos que são expressos através
dos gestos, a memória dos atores bailarinos que os motiva na criação das cenas. Realçamos então os fluxos
migratórios no corpo, princípios de deslocamento, a análise desses personagens errantes, a viagem como
tema coreográfico, as formas de representação do estrangeiro e da pertença.
Finalizamos provisoriamente com a afirmação de que tratamos o corpo que se desloca como o
veículo de expressão da errância enquanto busca da alteridade, a metáfora da vida como uma “viagem”, e
sempre lembrando que a menor distância entre dois pontos é a Dança.
Axé!

Referências

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BAUMAN, Zigmund. Modernidade líquida. Rio de Janeiro; Jorge Zahar, 2001.
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TURNER, Victor. Dramas, fields and metaphors. Ithas, Cornell University, 1974.
206
Interpretações Ticuna sobre a iconografia das máscaras rituais

Priscila Faulhaber
Professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal
do Amazonas – UFAM e do Programa de Pós-Graduação em Museologia da UNIRIO

O que os Ticuna dizem de seus artefatos

A presente comunicação visa promover reflexões a partir das interpretações Ticu-


na geradas quando contemplam seus artefatos rituais. Entende-se aqui tais interpretações
como reações polifônicas na interação com artefatos etnográficos. Rompe-se assim com a
mera fascinação com a visualidade de tais objetos, procurando-se desvendar o assombro
imagético e mostrar que os discursos presentes nos relatos indígenas sobre a iconografia e
a materialidade de tais objetos implicam uma busca de conhecimento sobre o pensamento
Ticuna. Para além do sentido estético, tais intepretações implicam uma ressonância da
cultura Ticuna que enriquece o campo imagético de tais artefatos. Cotejo as interpretações
Ticuna sobre os artefatos coletados por Nimuendaju nos anos 1940 com os comentários
dos próprios artesãos sobre os artefatos produzidos em pesquisa de campo recente.
Os relatos dos índios sobre estes artefatos remetem à “festa da moça nova”,
evocando histórias contadas na iniciação da “moça nova” em sua festa de puberdade, na
qual a cosmovisão está associada à temática da fronteira. Após a entrada em cena, nesse
ritual, de máscaras produzidas pelos próprios Ticuna, é representado o imaginário da
relação com as forças da natureza, animais lendários ou ancestrais Ticuna. As máscaras e
os relatos são associados com os lugares de proveniência dos Ticuna e dos outros que com
eles interagem: os lugares habitáveis, como as colinas (“morros”) e as áreas próximas
da floresta, e os confins inacessíveis da floresta e das áreas mais elevadas (“montanhas”)
consideradas território dos entes sagrados e das forças desconhecidas.
Considerarei um artefato coletado por Nimuendaju nos anos 1940 e dois ar-
tefatos produzidos por Ticuna, com quem interagi em Puerto Nariño, cuja iconografia
expressa a visão Ticuna sobre as estrelas worecü, relacionadas com o ritual de puber-
dade feminina que consiste em um da fertilidade da terra e da mulher. Tais estrelas
estão relacionadas com outros ícones manifestos tanto na iconografia das indumen-
tárias de dança como nas figuras esculpidas nos bastões cerimoniais e nos trançados
(FAULHABER, 2003). Entre as figuras recorrentes associadas ao ritual de puberdade
feminina destacam-se entidades como os donos do vento, das chuvas e da tempestade
e a cobra grande-arco-íris, que também é um símbolo fronteiriço entre natureza e
cultura, na figura do Cobra Norato.
207
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

A cosmovisão dos Ticuna é marcadamente influenciada por processos meteorológicos que interferem
na sucessão do tempo meteorológico que determina o tempo seco e o tempo úmido, bem como o ritmo das
chuvas. A meteorologia confere sentido à passagem do tempo no calendário e organiza as atividades de sub-
sistência. Estas são organizadas de acordo com o calendário lunar, que interfere na transformação da moça
em mulher, na reprodução e no envelhecimento humano.
Os filhos da relação incestuosa entre Lua e Sol tornaram-se estrelas móveis que correspondem
grosso modo aos astros que conhecemos como planetas na astronomia moderna. A promoção do ritual
da moça nova (worecü) é planejado conforme a observação da aproximação destas entidades com a lua e a
Queixada de Jacaré (localizada na área do céu onde reconhecemos a constelação de Touro). Os Ticuna as
chamam estrelas Worecü ou Pacü, relacionando o ritual de puberdade com a visibilidade destas estrelas. Para
eles, elas sempre estão no céu e aparecem de acordo com os eventos cosmogônicos. A menor ou maior visi-
bilidade relaciona-se com processos meteorológicos de acordo com a maior ou menor umidade atmosférica,
desaparecendo alguns astros, no entanto, quando estão cobertos pela névoa ou pelas nuvens.

Introdução

Stephen Greenblatt (1991) usa o termo wonder para caracterizar o poder dos objetos expostos
para paralisar o expectador, para veicular um senso de sua unicidade e evocar uma atenção exaltada. Este
autor apresenta este termo como um contraponto à ressonância que significa o poder de tal objeto para
extrapolar suas fronteiras formais para alcançar um mundo mais amplo, para evocar no expectador as
forças culturais dinâmicas e complexas das quais este emergiu e para as quais ele é configurado na visão
de mundo de quem o contempla.
Quando os índios Ticuna comentam os motivos figurativos dos artefatos rituais da coleção Curt
Nimuendaju do Museu Paraense Emílio Goeldi, usam muitos termos em Ticuna relacionados com a fron-
teira. 1 Segundo afirmam, o termo üyiane significa “divisão das terras de outros” ou “divisa de uma fronteira
para outra”. Pode ser entre dois povos” ou “pode ser uma área de alguém dentro de um povo” quando se
estabelece “divisão, para fazer cercado”. Existe um termo específico para cerca: po´ye~ü.
Nos artefatos Ticuna existe toda uma simbologia da fronteira, relacionada com as guerras primor-
diais, simbolizada nas relações de oposição entre metades, facções, etnias ou correligionários de organiza-
ções rivais. Entre outras armas, a roda türita consiste em uma armadilha para aprisionar e destroçar os
inimigos. Esta roda aparece em representações míticas da passagem do “mundo dos vivos” para o “mundo
de cima”. Apenas alguns conseguem atravessar a barreira, sendo que a maioria sucumbe no giro da roda
türita. Esta simbologia da fronteira perpassa as narrativas míticas e histórias nas quais são apresentadas
noções da sua relação com a natureza e com outras etnias. Este imaginário é atravessado por representações
socioterritoriais que compõem a visão Ticuna da “cultura de fronteira”.
As imagens da fronteira atravessam o próprio ritual de puberdade feminina, a chamada “festa da
moça”, um rito de passagem que envolve a transposição de limiares pela moça e por seu grupo de referência.
Suas significações abrangem as temáticas da fertilidade da mulher e da natureza, da complementaridade das
metades, da passagem do tempo, das obrigações sociais da mulher e da organização dos papéis e lugares na
organização social Ticuna. Estão presentes em termos referenciais da constituição da visão de mundo deste
Os Ticuna vivem no alto Solimões milenarmente, ocupando atualmente um território na fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru. Deste modo,
1

quando se reconhecendo a si mesmos a partir das diferenças étnicas, ele percebem as diferentes identidades nacionais. As organizações indígenas
estimam que atualmente vivem 36.000 Ticunas no Brasil, 10.000 na Colômbia e 6.000 no Peru, constituindo assim a população indígena mais nu-
merosa da Amazônia Além de falar a sua própria língua, também falam português e espanhol, cruzando frequentemente as fronteiras dos três países.
208
povo, que é alterada pela repercussão das transformações ambientais em seu dia a dia e em seu calendário
das atividades sociais.
Os representantes Ticuna que participaram de tal exame, 2 dentro da elaboração de um Banco
de Dados sobre o Acervo de Peças Ticuna, 3 o entenderam enquanto uma avaliação do repertório cultural
Magüta, o povo pescado no igarapé mítico Eware por seu herói cultural Yoi’ i, do qual afirmam descender
os “primeiros homens”.
Os Ticuna do Brasil, da Colômbia e do Peru vivem hoje problemas que perpassam as diferentes
situações nacionais, independentes do país onde estejam localizados geograficamente. Sua situação geral
desperta grande preocupação, sobretudo pelo preconceito difundido pela rede de atores regionais a respeito
dos índios que leva a uma atitude generalizada de desrespeito em relação à sua integridade física e cultural.
Este preconceito e este desrespeito são a outra face de uma concepção idílica e romantizada da identidade e
da cultura indígena, igualmente equivocada.
A leitura da bibliografia sobre os Ticuna produzida no Brasil, na Colômbia e no Peru mostra que se
trata de um único povo, ainda que se verifiquem diferenças de país para país, dada a sua heterogeneidade,
que produz variações de aldeia para aldeia, e mesmo de grupo vicinal para grupo vicinal. Esta heterogenei-
dade e estas variações são comprováveis por pesquisas de campo nos diferentes países. Os relatos históricos
e os relatos míticos coletados nas mesmas são passíveis de comparação antropológica.
A despeito do processo em curso de urbanização, observa-se um movimento no sentido de fixar
residência em colinas não inundáveis, que constituem lugares de significação étnica em uma aproximação
com os valores Ticuna, como Enepü, Otaware ou ao longo do igarapé São Jerônimo. As colinas mais altas
são consideradas locais não atingíveis, como o Éware, local sagrado Ticuna, ou a montanha Taivügüne,
próxima ao Éware, onde vivem os “imortais”. Verifica-se, no entanto, a continuidade de um movimento já
tradicional de busca das facilidades da beira-rio, o que implica um distanciamento dos valores Ticuna e uma
aproximação do mundo dos brancos. Existe uma grande diversidade sociocultural entre os Ticuna, desde os
que seguem estritamente as prescrições tradicionais aos Ticuna do Médio Solimões, entre os quais a maioria
não fala mais a língua. Apesar desta evidência de apagamento da memória, nesta área o imaginário Ticuna
é ativo, registrando-se referências a relações subaquáticas por meio de lagos “centrais” “encantados” entre os
Ticuna do Alto e Médio Solimões, 1997.

Cosmovisão

Na análise da antropologia histórica da iconografia de povos pré-colombianos, Broda (2001, 2004),

2
Dentro das atividades do inventário das indumentárias e instrumentos rituais da Reserva Técnica de Etnologia “Curt Nimuendaju” do Museu Par-
aense Emílio Goeldi, levaram-se a campo as descrições e desenhos técnicos, primeiramente em 1999, comentados e contextualizados pelos Ticuna
do resguardo colombiano de Nazareth. Em pesquisas do ano 2000 e 2002 levaram-se as mesmas peças para o Enepü (terra indígena Évare II e
Bunecü, na terra indígena Evare I). Os comentários dos Ticuna revelaram, em alguns pontos, coincidência e em outros pontos, diferentes in-
terpretações. Ao final, em uma última visita ao resguardo Nazareth alcançou-se um denominador comum, pois os próprios Ticuna de Nazareth
afirmaram que as interpretações estabelecidas no Brasil (Enepü e Bunecü) expressavam de maneira mais completa a visão Ticuna. No contexto
deste projeto, foram observadas três festas: a primeira na comunidade Barro Vermelho, em setembro de 1997, a segunda na comunidade
Ribeiro, em dezembro de 2000, e a terceira na comunidade Enepü, em julho de 2003. No presente trabalho, cotejo as interpretações Ticuna
sobre os artefatos coletados por Nimuendaju com os comentários dos próprios artesãos sobre os artefatos produzidos em 2012 pouco antes de
minha interação com eles em pesquisa de campo recente.
3
O Banco de Dados com as peças Ticuna da Coleção Nimuendaju do Museu Paraense Emílio Goeldi é disponibilizado no CD-ROM Magüta Arü Inü.
Jogo de Memória: Pensamento Magüta. Belém, Museu Goeldi. Prêmio Rodrigo de Melo Franco de Andrade na categoria Inventários de Acervos e
Pesquisa, Brasília, IPHAN, 2003.
209
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

examina como a medição do tempo serve como um instrumento de planejamento das atividades produ-
tivas. Exames históricos e arqueológicos acurados de como tais povos observavam a natureza demonstram
a orientação das atividades sociais no meio ambiente e a vinculação do calendário considerando a paisagem
cultural e lugares significativos para as performances sociais (FAULHABER, 1999,2007) em termos de ter-
ritorialidade. Tais pesquisas demonstram a observação sistemática como garantia de validação do conheci-
mento. O conceito de cosmovisão supõe uma determinada coerência na combinação de noções sobre o meio
ambiente e o cosmos.
A enunciação dos mitos e cantos no discurso ritual prescreve uma ordem socialmente definida que
é justificada por meio de uma estrutura ideológica que serve como instrumento de consagração das hierar-
quias rituais (Broda, 1982). A etnicidade consiste em um veículo de expressão Ticuna tanto em termos das
linguagens nacionais quanto internacionais que atravessam as fronteiras indígenas da civilização, uma vez
que estes índios vivem em situação de contato interétnico há mais de 300 anos. Deste modo, a antropologia
do conhecimento Ticuna depende do entendimento dos sistemas ideológicos que perpassam sua cultura.
Entre os comentários dos Ticuna sobre a peça acima apresentada, foi dito que representa o movi-
mento do sol ao longo do dia (meio-dia, manhã, tarde, noite). É interessante que a forma X, usualmente
tomada em museologia como “ampulheta”, não tem propriamente este sentido para os Ticuna. Eles dizem
que é a forma da “peneira para passar o pajuaru”, ou a forma das costas da moça submetida ao ritual de
puberdade Ticuna. Há outro sentido um pouco mais complexo: segundo eles, estes “astros” que aparecem
nas figuras são os “filhos da lua”, que são primos e irmãos porque são fruto de uma relação incestuosa entre
dois irmãos, lua e sol.
No tempo mítico, eles aparecem como os filhos da união incestuosa entre Lua, masculino, e Sol,
feminino. Após ser abandonada por Lua, a mãe dos três irmãos foi violada por uma onça feroz e a avó criou os
irmãos que depois se transformaram em estrelas. Para evitar o eclipse do sol, gerador de catástrofe, dia e noite
foram separados para que Lua e Sol não pudessem mais se encontrar, e não transgredir, assim, a proibição do
incesto. Os filhos da Lua são ao mesmo tempo irmãos e primos. No tempo astronômico, correspondem aos
planetas Vênus, Júpiter e Saturno. No tempo histórico, os índios Ticuna que vivem em área de fronteira entre
Colômbia, Brasil e Peru são explorados pelos comerciantes e intermediários da comercialização da pesca e da
extração de madeira. A identificação étnica para os Ticuna passa por uma representação da fronteira étnica
entre o “mundo dos brancos” e a cosmovisão dos Ticuna.
No desenho feito com caneta hidrográfica em 22 de setembro de 2013 pelo pescador Ticuna
Casimiro, que é pesquisador de animais aquáticos (botos, tartarugas) da fundação Natütama e participa
de treinamentos geográficos, o autor apresenta as constelações no céu de modo um tanto quanto realista,
ainda que tenha invertido a posição das constelações de Baweta (que fica na área do céu da constelação
que conhecemos como Plêyades), Coyatchicüra (na área do céu de Touro) e de Wucücha (na área do céu da
constelação de Órion). Ele apresentou dois desenhos do céu: Azul escuro, com as estrelas (E´ta), amarelas
e outro com a mesma disposição das estrelas em amarelo, só que com o fundo branco. Destaca a estrela
Woramacüri, ou Pacü, estrela de seis pontas que, segundo relata, é a estrela da moça nova, que se aproxima
da lua. O desenho que representou como azul e negro representa o percurso noturno subterrâneo do sol
(Üakü) e o sobre o fundo branco o percurso diurno desse astro.
A artesã Ticuna Wentananã Tchoatüna, do clã cascavel, comentou sobre roda celeste que fez a
partir do trabalho em entrecasca de árvores com pigmento vegetal natural, dia 16 de agosto de 2012, na
maloca denominada Mawatcha (nome de uma das irmãs do herói culturais Yoi´i e Ipi e que saiu, junto com
a outra irmã Aicüna, dos joelhos do patriarca Ngutapá). Segundo a artesã, a roda representa o escudo de
Mawü, o “dono da chuva”, cuja performance anuncia a chegada da intempérie. Está figurado no centro da
210
roda o tronco Wone transformando-se no grande rio, três estrelas woramacüri estilizadas e em um terceiro
espaço vazio. Foi indicada na fala da artesã a lua nova ou a queixada do Jacaré (coyatchicüra). Segundo seu
relato, a iconografia expressa o começo do mundo, com a formação do rio amazonas do tronco de Wone, a
samaumeira mítica. Esta roda foi feita em tempo de grande estiagem. Enquanto me explicava o significado
da iconografia, a artesã iniciou uma “dança da chuva”, em uma performance ritual desempenhada poucas
horas antes de começar a chover, um dia depois do equinócio de setembro, quando o sol está próximo ao
zênite, data que o sol estava causticante mas que nesta circunstância representou o fim da seca. Em outra
ocasião, em 1997, observei um ritual de puberdade feminina também registrado no dia do Equinócio, no
qual eclodiu uma briga entre sobrinho e tio, fazendo notar que a festa da moça nova se explica antes pela
catarse social que por mecanismos de integração identitária (FAULHABER,1999).
No decorrer do seu depoimento, Wentananã começou a cantar, segurou a roda e iniciou a dança,
ritualizando a antecipação da chuva que pressentia pela umidade, demonstrando querer negociar com o
dono da chuva algum tipo de controle sobre os eventos meteorológicos, climáticos e ambientais que a chuva
que antevia iria desencadear. A chuva vinha sendo nos últimos dias anunciada pelo serviço meteorológico.
Além disso, a artesã afirmou reconhecer pela névoa forte, que dava um brilho especial às estrelas, que iria
chover. No entanto esta performance evidenciou a lógica de participação da artesã como complementar ao
raciocínio causal apresentado pelas previsões meteorológicas em padrões científicos causais.
Trazendo para a reflexão alguns pontos levantados da análise de S. Tambiah (1995), a partir do de-
bate entre Maurice Leenhardt e Lévy-Bruhl (1949), do ponto de vista forma de ordenamento do mundo, o
método científico é predominantemente causal, conforme uma linguagem de distanciamento entre o sujeito
cognoscente e o objeto cognoscível, na observação da eficácia casual dos atos técnicos. A construção do
conhecimento científico promove a sucessiva fragmentação dos fenômenos, naturalizando a explicação dos
eventos. Já na participação, o Eu é um produto do mundo que atua conforme a linguagem da solidariedade,
unidade, holismo e continuidade no espaço e no tempo.
A ação expressiva se manifesta através de entendimentos intersubjetivos, as narrativas étnicas e a en-
cenação de rituais entendidos como atos comunicativos, com eficácia performativa que abrange a unicidade
cósmica, com base em relações de contiguidade e pela lógica das interações.
Em seu longo relato, que durou mais de três horas, a artesã relacionou a iconografia da roda à for-
mação do grande rio. Relatou que, de acordo com a cosmogonia Ticuna, o mundo começou quando os seus
antepassados – o povo Magüta- viviam na escuridão porque a preguiça gigante segurava o céu, aninhada na
árvore mítica Wone (Ceiba pentandra (L.) Gaertn). O herói cultural Yoi´I lançou uma formiga de fogo nos
olhos da preguiça que soltou o céu, caindo este sobre a árvore Wone. O peso do céu sobre a árvore liquefez o
seu coração, formando o rio Amazonas. Após este evento Yoi´i e seu gêmeo mítico Ipi pescaram os primeiros
homens no igarapé mítico Eware, um tributário do igarapé Tonetü (São Gerônimo), que por sua vez desem-
boca no Solimões, já no Brasil, Yoi´i ensinou esses primeiros homens a trabalhar concedendo-lhe os nomes
clânicos, associados em metades anônimas, uma reunindo aves e a outra seres de casca, ou “sem pena”. Com
base nesta divisão em metades exogâmicas foi organizada a sociedade Ticuna.
Os filhos da relação incestuosa entre Lua e Sol tornaram-se estrelas móveis que correspondem gros-
so modo aos astros que conhecemos como planetas na astronomia moderna. O ritual da moça nova (worecü)
é planejado conforme a observação da aproximação destas entidades com a lua e a Queixada de Jacaré (lo-
calizada na área do céu onde reconhecemos a constelação de Touro). Os Ticuna as chamam estrelas Worecü
ou Pacü, relacionando o ritual de puberdade com a visibilidade destas estrelas. Para eles elas sempre estão
no céu e aparecem de acordo com os eventos cosmogônicos. A menor ou maior visibilidade relaciona-se com
processos meteorológicos de acordo com a maior ou menor umidade atmosférica, desaparecendo alguns
211
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

astros, no entanto quando estão cobertos pela nevoa ou pelas nuvens.


Se a pessoa está de ponta-cabeça, o observador vê a medula espinhal como o rio Amazonas. O
rio é a medula, a desembocadura é o cérebro e a cabeça é o oceano Atlântico. Abaixo de tudo está o mar
Primigênio. Na parte inferior estão os pés, (primeiro plano do eixo flexível), o mundo dos sem ânus (o
mundo da gente Ngeetüte). O joelho (segundo plano do eixo flexível) é o mundo dos sem olhos (o mundo da
gente Ngerüta). A parte dos músculos (terceiro plano do eixo flexível) é o mundo dos anões (mundo da gente
Metchita). No Interior do quadril (quarto plano do eixo flexível) está o mundo em que vivem os mortais
(“nós”). No tórax (quinto plano do eixo flexível) está o mundo dos condores (a cuia celeste). Na cabeça (sexto
plano do eixo flexível), conduz-se o manejo do pensamento, da sabedoria e do conhecimento (céu superior),
logo abaixo do teto do Universo. A coluna vertebral e a medula espinhal – o Caminho da Anta –comunica-
se com as outras partes do corpo, onde está o cerne da cultura Ticuna (SANTOS, 2010).
De acordo com Camacho (2003), o “eixo do Universo é um canal transparente que conduz a luz
solar a cada um dos mundos, por ele viaja o pensamento dos pajés e dos que estão sendo iniciados para
percorrer o caminho por onde circulam as energias vitais. Essas energias se unem na cuia celeste com a Via
Láctea , “o caminho da anta” e com a base do mar primigênio”...Este está na base do universo, “onde vive
submersa a grande anaconda marinha (Yewae´) ou Cobra Grande que permanece enroscada no eixo dos
mundos. Yewae´, para respirar, realiza periodicamente três tipos de movimentos:
a) Pequenos giros de rotação no sentido esquerda - direita, que são os que determinam a sucessão dos dias
e as noites;
b) Um movimento ascendente que determina as fases crescentes da lua;
c) Um movimento descendente que marca as fases decrescentes da lua. A conjunção desses três movimentos
determina o ciclo de chuvas em cada um dos mundos, assim como as marés”(CAMACHO, 2003).
A cosmovisão dos Ticuna é marcadamente influenciada por processos meteorológicos que inter-
ferem na sucessão do tempo meteorológico que determina o tempo seco e o tempo úmido, bem como
o ritmo das chuvas. A meteorologia confere sentido à passagem do tempo no calendário e organiza as
atividades de subsistência. Estas são organizadas de acordo com o calendário lunar, que interfere na trans-
formação da moça em mulher, na reprodução e no envelhecimento humano.

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1, 2010 , p. 303-313.
TAMBIAH, Stanley Jeyarara. Magic, Science and the scope of rationality. Harvard, Cambridge University
Press, 1995.

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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

Temas transversais e cultura afro-brasileira e indígena

Norma Sueli Rosa Lima


Professora do Departamento de Letras da UERJ

T endo em vista as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Re-


lações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena
(Lei nº 11.645 de 10/3/2008, Resolução CNE/CP n 01 de 17/6/2004) que determinam
que a temática da História e da Cultura Afrobrasileira e Indígena que sejam incluídas
nas disciplinas e atividades curriculares dos Cursos de Graduação das Universidades
brasileiras, cabe iniciar o debate com duas indagações:
1. Os cursos de graduação e pós-graduação vêm cumprindo satisfatoriamente
com esse papel?
2. Será possível inserir adequadamente as populações indígenas e quilombolas,
periféricas, populares e marginais neste universo escolástico, sob a ótica da globaliza-
ção e da comunicação, tendo em vista as políticas do espaço público, a valorização do
patrimônio imaterial pela UNESCO e sua decorrente educação cultural patrimonial?
Acreditamos que se faz necessária a reflexão permanente sobre os propósi-
tos, alcances e limites, tanto desta prática docente quanto do sentido de se conhecer,
preservar e divulgar, nestas, o patrimônio relativo às comunidades dos indígenas e dos
quilombolas. Importa-nos analisar historicamente o sentido da inclusão dessa temática
nas salas de aula, em uma sociedade na qual os segmentos economicamente dominantes
naturalizam as diferenças entre as classes sociais. Sendo a educação escolar um reflexo,
em última instância, das correlações de forças existentes em uma dada sociedade, ela
própria reflete os valores dominantes, bem como as suas contradições.
É notório que os temas transversais tenham sido contemplados nos Parâmetros
Curriculares, no volume dedicado ao da Pluralidade Cultural e Orientação Sexual:
entender a complexidade das origens brasileiras como uma confluência de heranças que
se preservaram, vencendo políticas explícitas de homogeneização cultural havidas no
passado, resistindo, recolocando-se, recriando-se, ativas em diferentes momentos da
história. Recuperar as origens dessas influências é valorizar os povos que as trouxeram
e seus descendentes, reconhecendo suas lutas pela defesa da dignidade e da liberdade,
atuando na construção cotidiana da democracia no Brasil, dando voz a um passado que
se faz presente em seres humanos que afirmam e reafirmam sua dignidade na herança
cultural que carregam” (PCN, 2000, p. 70).

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No trajeto da presente Lei 11.645 esta luta está exemplificada, pois a sua origem é o Artigo 26-A,
da Lei 9.394/1996, que determinava que o currículo escolar deveria estar aberto à pluralidade e às “con-
tribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes
indígena, africana e europeia”, conforme reza o parágrafo quarto do artigo. O texto não aponta especifi-
cidades nessas contribuições, podendo alimentar, deste modo, o tradicional olhar exótico sobre eles que
poderia reduzi-los a meros produtores culturais de danças, artesanato, comidas e diferentes “dialetos”. Isto,
portanto, justifica a alteração da LDB, por meio da inclusão dos artigos 26-A e 79-B, com a homologação
da Lei 10.639/2003.
Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o
ensino sobre História e Cultura Afro-brasileira.
§ 1o- O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da
África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da socie-
dade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à
História do Brasil.
§ 2o- Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-brasileira serão ministrados no âmbito de
todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística, de Literatura e História Brasileira.
O dito na Lei anterior (1996) não obrigava, nem sequer explicitava, a necessidade dos recortes e
especificações históricos inerentes à trajetória dos grupos raciais negros, excluídos, nem os efeitos humanísti-
cos, psicológicos e econômicos do processo, o que naturalmente levaria à reflexão crítica sobre a atual situa-
ção de desigualdade de acesso aos bens sociais em que se encontram (AMÂNCIO, 2008, p. 34).
Cinco anos depois, mais uma reformulação na Lei mudou a redação do Art. 26, acrescentando
o indígena: Art. 1o- O art. 26-A da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a
seguinte redação:
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados,
torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.
§ 1o- O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da
cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o
estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra
e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições
nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.
§ 2o- Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros
serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de
literatura e história brasileiras.
O fato de possibilitar a profissionais tanto das áreas de formação elencadas na Lei (Educação Artísti-
ca, Literatura e História) como a de outras no recente e pioneiro curso criado em termos de pós-graduação
tanto de Cultura Afrobrasileira e Indígena (desde abril de 2012) e de Literaturas Africanas de Língua Por-
tuguesa (em vigor a partir de agosto de 2013) pode auxiliar o melhoramento do desempenho dos docentes
em práticas pedagógicas, de acordo com a Lei 11.645, como de outros profissionais no dia a dia, sobretudo
no âmbito de suas relações interpessoais no qual se insira a cidadania.
A motivação para a matrícula dos alunos no nosso curso foi a obrigatoriedade da Lei, conforme
objetivo descrito no site da Funcefet: “O Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Cultura Afrobrasileira
tem como objetivo aperfeiçoar, atualizar e especializar profissionais da área de Licenciaturas em Letras,
Educação Artística, Pedagogia, História e Geografia para conteúdos a serem trabalhados e materiais didáti-
cos produzidos, de acordo com os objetivos da Lei 11.645, a fim de propiciar aos professores estratégias e
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metodologias que os auxiliem a aplicá-la.”


Cremos que entre as inúmeras razões que possam tê-los motivado a realizar a matrícula no curso,
uma em comum seja, em termos dos que são docentes em escolas públicas do município e do estado do Rio
de Janeiro, a preocupação com o reconhecimento da multiplicidade de manifestações e identidades presentes
no interior da escola, e do desvelamento das condições históricas em que se constituíram as diferenças entre
classes e os preconceitos étnico-raciais, as práticas pedagógicas desenvolvidas no contexto escolar ainda per-
manecem alicerçadas em condutas que ocultam ou desvalorizam as manifestações culturais dos segmentos
marginalizados ou minoritários.
A Lei 11.645/08, embora necessária, não implica mudança significativa nas práticas educativas
no âmbito escolar, uma vez que ela, por si só, não altera as relações de produção socialmente estabelecidas
nem como o conflito da definição de uma identidade brasileira híbrida. No seu percurso histórico, a
questão identitária surge, em um primeiro momento, idealizada nos moldes da Independência de 1822,
com tons ufanistas que elegeram o índio como bom selvagem– na esfera de Rousseau– e preteriram as
marcas africana e lusa. Em um segundo momento, já em 1922, esta reflexão retorna com bases críticas,
embalada pelo Modernismo Brasileiro, que num amplo movimento abarcando as artes, a política e outras
manifestações, situa a cultura brasileira com seus vários matizes identitários. Este hibridismo/pluralismo
racial, e, por extensão, cultural, era, àquela época, desconhecido na Europa, que buscou construir uma
identidade fechada que precisava ser questionada.
A propagação do primitivismo na arte, que teve origem europeia, contribuiu para o despertar de
movimentos culturalmente nacionalistas na América Latina, tendo como representantes o índio no México
e nos países andinos, e o negro, no Caribe, especialmente em Cuba. No Manifesto Antropófagico, de 1928,
Oswald de Andrade recorreu à volta dos valores pré-colombianos, com a metáfora do canibal que precisa
devorar a imagem falsa que fizeram de si em função do eurocentrismo e assume no Modernismo e na litera-
tura perspectiva que prevê o fato de o potencial cultural e a originalidade não residirem numa exclusividade
(nem somente na tradição ameríndia nem na afro-brasileira), mas sim em uma combinação. A conceituação
“transculturalidade”, dentro dessa ótica, não pode ser concebida em contradição ao ponto de vista da “inter-
culturalidade”, mas indica que a discussão deve ser ampliada e diferenciada com o surgimento de culturas
híbridas em contextos de múltiplas influências, interconexões e misturas.
Apesar de todos esses esforços e iniciativas também dos movimentos de afirmação, identificamos
ainda práticas baseadas em estereótipos não vencidos que desvalorizam as manifestações originárias dos
segmentos economicamente excluídos, entre eles, os negros e os indígenas. Além do exame da introdução de
abordagens plurais, há que se pensar, igualmente, na escola plural, reflexo que é de uma sociedade também
plural. As organizações ligadas aos movimentos negro e indígena têm investido em iniciativas voltadas para
o campo da educação, em duas linhas principais: acesso ao ensino superior e a formação de educadores.
Outra ressalva é a da adoção de políticas de preservação do acervo dessas culturas, no contexto das
transculturas e da globalização, o qual revê um conceito antigo de nação fundado sobre o ponto de vista de
uma comunidade política autônoma e de território definido que partilha instituições comuns (constituição,
governo, sistema judiciário) ou de uma comunidade de indivíduos ligados por identidade de origem, língua,
costumes, religião. Atualmente as nações tiveram suas fronteiras rompidas e extrapoladas: culturas, línguas
e costumes dialogam constantemente em um processo permanente de diáspora. Reina, portanto, um de-
sejo cosmopolita de estar no mundo, mas sem, no entanto, deixar de estar no local e de preservar as suas
tradições. Examinar de que modo o esforço da preservação da herança ancestral dialogará com noções como a
de interculturalidade com a de hibridização multicultural, será o próprio exame de um desafio sempre presente,
já que a busca do consenso ideológico é uma tentativa de homogeneizar culturalmente os povos, os indivíduos.
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É óbvio, no entanto, que a homogeneização não ocorre de uma forma absoluta por, principalmente,
três razões:
a) As estruturas da globalidade não alcançam todos da mesma maneira, o acesso à mídia ou aos bens
de consumo cultural é restrito, tanto por questões materiais quanto por interesses diversificados;
b) As influências das culturas dominantes frequentemente não são adequadas às circunstâncias locais,
sejam elas originadas em contextos políticos, econômicos ou sociais, em heranças históricas ou em condições
geográficas em cujas adaptações as expressões culturais de cada região justamente se fundamentam;
c) Indivíduos ou grupos formam a sua identidade entre adaptação e diferenciação; guardam, por-
tanto, nesse processo, uma tendência de se revoltar emocionalmente contra tudo aquilo que lhe for imposto,
com uma necessidade de libertação referente para delinear, de fato, os seus próprios caminhos.

Esta breve explanação, ciente de que o exame da emancipação identitária no contexto dos museus
transculturais, em função dos temas transversais por nós aqui propostos em termos do trabalho pioneiro e
desenvolvido junto à Funcefet, traz à tona o olhar sobre a formação de identidade cultural com base em uma
reflexão sobre identidade pessoal e social, pois o ser humano forma a sua identidade dentro e em relação
às molduras externas, molduras essas que compreendem serem qualificadas ou desqualificadas em diversas
categorias, como papéis, status e capital social, por meio do momento histórico; da tradição; da religião; das
circunstâncias geográficas e condições sociais. Molduras que revelam a perversidade histórica de segmentos
marginalizados e que iniciativas como o presente livro colaboram para tirar do limbo e trazer para a cena em
que sempre mereceram estar.

Referências

AMÂNCIO, Iris Maria da Costa; GOMES, Nilma Lino; JORGE, Míriam Lúcia dos Santos. Literaturas
africanas e afro-brasileira na prática pedagógica. Belo Horizonte; Autêntica, 2008.
ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo; Ática, 1989.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte; UFMG, 1998.
CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. São Paulo; Cosac naify, 2012.
HALL, Stuart. A identidade cultural na Pós-Modernidade. 4ª ed., Rio de Janeiro; DP&A, 2000.
LIMA, Norma Sueli Rosa. Revisitando Claridade: o encantamento da poesia cabo-verdiana com o Modernismo
Brasileiro. Niterói; UFF, 2000. Tese de Doutorado.
OESSELMANN, Dirk. & GARCIA, Maria Lúcia Gaspar (Orgs). Encontros transculturais: sua importância
para pensar e agir democrático de educadores(as) numa comparação internacional. Belém; Unama, 2010.
PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS. Pluralidade Cultural e Orientação Sexual. Temas
transversais. Secretaria de Educação Fundamental, 2ª ed., Rio de Janeiro; DP&A, 2000.
SAID, Edward. Cultura e imperialismo. São Paulo; Companhia das Letras, 1995.
Orientalismo. São Paulo; Companhia das Letras, 2007.

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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS
Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

Título:

Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: novas práticas contemporâneas


Organizadora: Dinah Guimaraens

Editor responsável:
Aníbal Bragança

Capa, projeto gráfico e diagramação:


Marina Vasconcellos de Carvalho

E79 Estética transcultural na Universidade Latino-Americana : novas práticas


contemporâneas / Dinah Guimaraens (organizadora). – Niterói : Eduff, 2016. –
217 p. : il. ; 21 cm. – (Série Pesquisas, 2).

Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-228-1195-3
BISAC SOC002010 SOCIAL SCIENCE / Anthropology / Cultural & Social

1.Antropologia e arte. 2. Estudos interdisciplinares. I. Guimaraens, Dinah. II.


Série.

CDD 370.1

Formato: 21 x 26 cm
Tipologia: Garamond Pro, Garamond, American Typewriter e Avenir Next Condensed
Papel: Cuchê Matte 90g/m2 (miolo)
Cartão Supremo 250g/m2 (capa)
Número de páginas: 217
Tiragem: 500 exemplares
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